Repensando A Antropologia E Leach e As Teorias de
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Marcos Spiess
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG)
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E
ste trabalho tem por objetivo refletir sobre as principais questões que perpassam
a obra Repensando a Antropologia, do antropólogo inglês Edmund Ronald Leach
(1910-1989). A partir das contribuições desse autor, torna-se possível abordar as
principais perspectivas sobre os estudos de parentesco, bem como, os principais debates e
autores que contribuíram para o desenvolvimento desse campo da antropologia. Trilhando
os capítulos que, escritos em diferentes épocas, constituem esta obra singular da história
das ciências sociais, busca-se compreender o contexto desses debates acerca das teorias de,
bem como, apresentar a posição crítica que Edmund Leach assume perante outros propostas
teórico-metodológicas.
De antemão, ressalta-se dois aspectos que é preciso considerar para a análise. O
primeiro se refere ao fato da obra Repensando a Antropologia ser constituída por um conjunto
Para que se possa compreender o conjunto de artigos que constitui a obra Repensan-
do a antropologia, considerando que eles foram publicados em diferentes épocas e abrangem
problemáticas diversas, faz-se necessário contextualizar o cenário antropológico enfrentado
por Leach e que muito influenciou no seu pensamento.
A Escola Britânica de antropologia vivenciava um grande dilema, a saber: enquanto
alguns buscavam compreender as sociedades nativas a partir de uma visão totalizadora, tendo
como referência a Europa (perspectiva influenciada pelo evolucionismo de Frazer); ou, ao
contrário, outros buscavam compreender cada sociedade humana a partir de sua especifi-
cidade, dentro da sua dinâmica cotidiana, relativizando os costumes e compreendendo-os
contextualmente (influência do funcionalismo de Malinowski).
Contemporaneamente a este dilema, surgem as influências deixadas por Radclif-
fe-Brown na antropologia. Este, de certo modo, propunha uma antropologia intermediária
entre o dilema (Frazer versus Malinowski) acima explicitado. Para tanto, Radcliffe-Brown
usava a noção de função e de estrutura social. No entanto, como nos afirma Da Matta (1983,
p. 13-4), se
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[...] para Malinowski, as instituições são respostas úteis (e funcionais) a necessidades
básicas que preexistem a essas respostas. Para Radcliffe-Brown, porém, a função é algo
puramente social, um mecanismo de manutenção da totalidade social em funcionamento.
Em outras palavras, para Malinowski, um sistema de parentesco é uma derivação elaborada
da sexualidade e do impulso sexual que é biologicamente dado. Para Radcliffe-Brown,
um sistema de parentesco é um conjunto de relações sociais que estão estruturadas em
direitos e deveres entre os indivíduos, formando uma complexa rede de elos sociais. O
funcionalismo de Malinowski tornava a comparação praticamente impossível, ao passo
que o funcionalismo de Radcliffe-Brown levou a comparação para o seu lado mecânico
e formal: tornou-se tão fácil e automática, que por um momento se chegou a pensar que
toda a ciência antropológica estava resolvida com a prática de um esquema de compara-
ção/generalização, tal como ele havia proposto.
Além desse, outros dilemas perpassavam o contexto da Escola Britânica, tais como:
Frazer (onde o indivíduo não existe) versus Malinowski (onde só o indivíduo parece ter lu-
gar); a Antropologia de gabinete versus a Antropologia de campo; o evolucionismo versus o
funcionalismo; o racionalismo (que pensa o mundo a partir de sua lógica e totalidade) versus
o empirismo (que o encara a partir da parte, do individual e da experiência concreta) (DA
MATTA, 1983, 39). Estes dilemas também precisam ser considerados a fim de se compreen-
der a antropologia, ou melhor, “as antropologias” desenvolvidas por Leach.
Fala-se em “as antropologias” de Leach uma vez que, diferente de muitos outros
antropólogos, ele não estudou apenas um povo específico. Basta mencionar que Leach pes-
quisou entre os curdos (no Irã Ocidental), entre os Kachin, os Lakher, Pul Eliya etc. Além
disto, Leach também não se prendeu a um sistema cultural específico, motivo pelo qual seus
escritos perpassam temas sobre parentesco, rituais, política etc. E além de suas pesquisas de
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campo, diversas foram as contribuições teóricas que ele conseguiu desenvolver para a antro-
pologia de sua época.
Da Matta (1983, p. 17) afirma que “quanto mais profunda é a experiência de cam-
po, tanto maior é sua fixação numa linha teórica bem definida e tanto menor, consequen-
temente, é a sua versatilidade teórica. O corolário sendo: quando menos profunda for a ex-
periência de campo, maior será a versatilidade teórica e a amplitude de temas com os quais
trabalha o antropólogo”. Por sua vez, Leach é aquele que consegue se manter, de certa forma,
equilibrado entre esses dois limites, desenvolvendo uma antropologia crítica, tanto teórica
quanto metodologicamente, e dialogando com diferentes paradigmas.
Observa-se que, se por um lado, o filósofo Thomas Khun afirma que, no decor-
rer da história, um paradigma científico é sempre substituído por outro tido como melhor,
possibilitando as “revoluções científicas”, numa superação ad infinitum. De outro lado, e
nos distanciando de Khun, nas ciências humanas há a possibilidade de diversos paradigmas
coexistirem. É essa convivência de diferentes paradigmas que Roberto Cardoso de Oliveira
(1997) denominou de matriz disciplinar.
A matriz disciplinar deve ser entendida como “a articulação sistemática de um con-
junto de paradigmas, a condição de coexistirem no tempo, mantendo-se todos e cada um
ativos e relativamente eficazes” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1997, p. 15). Especificamente
na antropologia, percebe-se a existência de quatro fortes paradigmas, representados por Es-
colas distintas, quais sejam: o paradigma racionalista (estruturalista, na sua forma moderna),
representado pela Escola Francesa de Sociologia; o paradigma estrutural-funcionalista, na
Escola Britânica de Antropologia; o paradigma culturalista, da Escola Histórico-Cultural; e,
o paradigma hermenêutico, presente na Antropologia Interpretativa. Nos últimos anos surgi-
ram duas novas tendências que passaram a ser conhecidas de Antropologia Pós-Moderna e de
Antropologia Simétrica (ou Pós-Social).
Se, por um lado, as diferentes dicotomias, advindas com a possibilidade de
convivência dos diversos paradigmas, afetaram o desenvolvimento do pensamento de
Leach, fazendo com que ora ele se posicionasse num limite, ora em outro. Pode-se, no
entanto, afirmar que Leach é um dos celebrados antropólogos “que transitam, consciente
e criticamente, entre os paradigmas, entre as ‘Escolas’” (CARDOSO DE OLIVEIRA,
1997, p. 23).
De outro modo, se uma “tendência empirista”, advinda da influência de Mali-
nowski, pode ser percebida nas obras referentes aos estudos de parentesco e organização
social; outra tendência, a “racionalista”, fortemente influenciada por uma antropologia de
gabinete como fazia Frazer, é percebida nas obras de Leach no que se refere aos estudos
de análise simbólica e críticas teóricas. Nas palavras do próprio Leach, “Digo que o meu
próprio trabalho inclui exemplos de monografias de ambos os tipos. leach, 1954 (Political
systems of Highland Burma), é racionalista no estilo; Leach, 1961 (Pul Eliya), é empirista”
(LEACH, 1978, p. 12).
Considerando o cenário antropológico em que Leach estava inserido e suas diversas
indagações, cabe o questionamento: quais foram, efetivamente, as contribuições de Leach
à antropologia? Talvez a resposta mais acertada é perceber que Leach contribui muito mais
como crítico do que como mentor de novas e elaboradas teorias. No limite, ele foi capaz de
criticar teorias que ele próprio utilizou para analisar seu campo, demonstrando a reflexividade
necessária que todo intelectual deve ter.
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A CRÍTICA DE LEACH: DA COMPARAÇÃO À GENERALIZAÇÃO
O caráter crítico da obra de E. Leach fica expresso já no primeiro artigo da obra Re-
pensando a antropologia. Leach, neste primeiro capítulo se propõe a repensar temas e conceitos
básicos da Antropologia. Ele demonstra a necessidade de questionar até mesmo o que está
fortemente enraizado nas concepções de método e de teoria. Longe de atingir a dúvida carte-
siana, no entanto, de modo eficiente, Leach questiona (e duvida) daquilo que é muitas vezes
aceito como certo. Ele considera que “Entre os antropólogos sociais, o jogo de construir novas
teorias sobre ruínas de teorias velhas é quase uma doença profissional” (LEACH, 2001, p. 8).
Segundo Leach, o pensamento antropológico se tornou um pensamento viciado.
Fortemente influenciados por uma tendência empírica – tradição de Malinowski, os traba-
lhos antropológicos ocorrem eminentemente em campo, decorrendo disto o perigo de não se
conseguir alcançar, a partir das excessivas comparações, as tão buscadas generalizações desejadas
pelo autor. Segundo ele, fazer uma generalização é criar uma suposição verdadeira, uma espé-
cie de verdade que nenhuma quantidade de comparação conseguiria revelar (LEACH, 2001,
p. 15) e este deveria ser o objetivo da antropologia.
É válido salientar que para Leach existem, no mínimo, dois tipos de comparações.
Um tipo é desenvolvido por Radcliffe-Brown e o outro por Lévi-Strauss. Aprovando o mé-
todo comparativo de Lévi-Strauss e reprovando a proposta de Radcliffe-Brown, Leach afirma
que, para Radcliffe-Brown, bastaria comparar sociedades diversas a partir de um aspecto co-
mum (sistema político, sistema econômico, sistema de parentesco), de acordo com o capricho
do momento. No entanto, mesmo que isto seja ciência, a consequência disso seria a de criar
uma predisposição para se pensar uma sociedade.
O perigo da proposta radcliffe-browniana é que uma predisposição inicial na pes-
quisa pode limitar a criatividade intelectual do pesquisador. Um bom exemplo é a oposição
entre as categorias patrilinear-matrilinear. Essas categorias são, num primeiro momento, tão
óbvias e rudimentares que não é possível pensar de outra maneira senão com tal pressuposto.
Porém, em alguns casos, elas podem ser irrelevantes para pensar a estrutura social. Repensar
os pressupostos básicos da antropologia pode ser muito desconcertante, pois é romper com o
pensamento viciado (LEACH, 2001, p. 17). Ou, como afirma em Pul Eliya “What we need
to understand about a society is not whether it is patrilineal or matrilineal or both or neither,
but what the notion of patrilinearity stands for and why it is there” (LEACH, 1961, p. 11).
Ao criticar o método comparativo de Radcliffe-Brown, Leach (2001, p. 16) sugere
que “A comparação é uma questão de colecionamento de borboletas – de classificação de
arranjo das coisas de acordo com seus tipos e subtipos”. Através da simples comparação, o
pesquisador acaba buscando “tipos [que] conduz toda sua argumentação mais em termos de
exemplos particulares do que padrões generalizados” (LEACH, 2001, p. 18). Além disso, o
pesquisador seria constantemente tentado a atribuir importância exagerada aos aspectos da
organização social de sua própria sociedade do que na sociedade dos nativos.
De acordo com Leach, um dos maiores defeitos das comparações é não possuírem
um limite lógico, pois geralmente ficam expressas as razões de se escolher um esquema de
referência e não outro. Por isso, “Em lugar da comparação, tenhamos generalização; em vez
de colecionar borboletas, procuremos fazer um trabalho inspirado em suposições [...]. A ge-
neralização é indutiva: consiste em perceber possíveis leis gerais nas circunstâncias de casos
especiais” (LEACH, 2001, p. 20).
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Observa-se que interesse de Leach (2001, p. 27) está em “discernir possíveis padrões
gerais nos fatos específicos de etnografias particulares”. O que ele propõe não é que se descarte
as comparações e os trabalhos particulares, ao contrário, ele propõe que a partir disto, seja
possível as generalizações tão necessárias para a Antropologia. Em última instância, Leach
(2001, p. 27) propõe que busquemos examinar as questões antropológicas ligados ao pa-
rentesco não como um problema de estrutura social comparativa, nem como uma polêmica
verbal, mas como um caso de padrão estrutural generalizado (matemático).
A diferença entre as comparações feitas por Radcliffe-Brown e as feitas por Lévi-S-
trauss estaria no fato de que, enquanto Radcliffe-Brown opera no nível empírico e enfatiza
unicamente as oposições entre aquilo que é comparado, Lévi-Strauss estaria formulando suas
comparações em um nível abstrato e afirmando que, para além da oposição, também existe a
complementaridade das coisas comparadas.
Leach argumenta que transformando dados antropológicos em dados matemáticos,
é possível criar padrões e funções que possibilitem uma análise mais acertada da estrutura
social estudada, sendo que o resultado obtido poderá ser útil para compreender outras socie-
dades. Segundo suas palavras, “traduzindo fatos antropológicos para uma linguagem mate-
mática, embora primitiva, evitamos o excessivo emaranhado de fatos empíricos e conceitos
muito carregados” (LEACH, 2001, p. 30).
O mérito da equação matemática está, segundo Leach, na possibilidade de perceber
de modo imediato as semelhanças dos padrões que existem entre sociedades, aparentemente,
muito distintas. Um exemplo utilizado para ilustrar sua proposta estaria nas sociedades Tro-
briand e Lakher, enquanto que nos Trobriand a criança não possui parentesco direto com o
pai, entre os Lakher a criança não possui parentesco direto com a mãe. Se ficarmos somente
nos dados etnográficos, isto pareceria impossível, no entanto, é verificável e demonstrável por
funções matemáticas.
Assim como os Trobriand são um caso extremo no sentido de que o pai não tem laços consan-
guíneos com os filhos da sua esposa, estando ligado apenas à mãe deles como um afim, também
os Lakher são um caso extremo no sentido de que a mãe não tem laços de parentesco
com os filhos do seu marido, estando ligada apenas ao pai deles como um afim” (LEACH,
2001, p. 32).
1. Que o princípio de reciprocidade não se aplique de modo algum e que o grupo B não
obtenha nenhuma compensação;
2. Que a reciprocidade seja atingida através de alguma forma de compensação política
ou econômica dada ao grupo B pelo grupo A, por exemplo, pagamentos pelo casamento,
trabalho, fidelidade política;
3. Que três ou mais grupos, A, B, C, façam arranjos mútuos para “casar em círculo” – C
dando esposas para B, o qual dá esposas para A, o qual dá esposas para C novamente.
Neste caso, as esposas que C dá para B são, em certo sentido, compensação pelas mulheres
que B dá para A (LEACH, 2001, p. 98).
São estas três possibilidades que tanto Lévi-Strauss quanto Leach passam a proble-
matizar. De modo geral, Lévi-Strauss argumenta que a “troca generalizada”, advinda de um
casamento Kachin, impõe um risco inicial de o circuito de trocas não se fechar e, mesmo que
se feche isto leva muito tempo para acontecer.
Outro problema, argumenta Lévi-Strauss, é que a troca generalizada nos Kachin
supõe igualdade, mas é fonte de desigualdade. Explica ele:
Um casamento cria uma aliança entre dois grupos A e B. Os filhos do casamento podem
estar ligados a um ou a ambos os grupos por incorporação, permanente ou parcial, mas
também podem estar ligados a um ou a ambos os grupos em virtude da própria aliança
do casamento. Os símbolos que venho discutindo – de osso, sangue, carne, alimento,
influência mística – discriminam, de um lado, entre incorporação permanente e parcial e,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Edmund Leach, com certeza, foi um antropólogo que, apesar das inúmeras difi-
culdades, soube sabiamente criticar as teorias antropológicas que lhe foram contemporâneas.
Mesmo estando em um ambiente acadêmico permeado por dicotomias teóricas e metodoló-
gicas, ele conseguiu trilhar, consciente e criticamente, por diferentes paradigmas científicos.
Com suas (auto)críticas, Leach propõe uma revisão metodológica de pesquisa nos
sistemas de parentesco. Sugere que, ao invés que de extensos sistemas terminológicos, algo
mais simples também pode ser mais útil e mais seguro. A matemática, neste interim, aparece
como possibilidade metodológica a ser levada em consideração, pois, segundo ele, as funções
matemáticas possibilitam comparar diversos sistemas de parentesco de forma mais exata e,
além disso, possibilita generalizar as comparações com o intuito de aplicá-las em outras so-
ciedades.
Leach desloca a atenção na pesquisa de parentesco de conceitos como: linhagens,
descendência, patri-matrilinear e passa a analisar as alianças e os casamentos. Segundo o an-
tropólogo, é através de uma análise do casamento que é possível compreender mais precisa-
mente como se dá a relação entre grupos distintos. Além disto, o autor aponta a necessidade
de se considerar outros sistemas sociais – como o econômico, o político, o religioso – para se
compreender o sistema de parentesco.
Conforme e possível perceber, a obra de Edmund Leach é obra singular na história
da antropologia, pois possibilita diferentes discussões acerca das teorias de parentesco, e
em diferentes níveis. Certamente, assim como as contribuições de Lévi-Strauss, Radcliffe-
Brown e Margaret Mead, Leach figura entre os clássicos da antropologia, dentro os quais
sua obra se torna imprescindível para se compreender os debates teóricos e metodológicos
acerca dos estudos de parentesco desenvolvidos no século XX.
Abstract: from the work Rethinking Anthropology (1961) by anthropologist Edmund Leach
(1910-1989), this work aims to analyze the context, the theoretical heritage and the debates that
permeated the theories of kinship in the first half of the twentieth century. Emphasizing the debate
between Radcliffe-Brown and Levi-Strauss, we come to the proposed Leach that emphasizes the
marriage and alliances as an analytical ability.
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 26, n. 2, p. 303-314, abr./jun. 2016. 313
Keywords: Theories of Kinship. Rethinking Anthropology. Edmund Leach.
Referências