Revista Terras Sem Amos

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ISSN: 2675-3642 (impressa) 2675-3650 (online) | 1

SOBRE A REVISTA
A Revista “Terra sem Amos” é uma produção da Editora Ter-
ra sem Amos, de periodicidade quadrimestral, apresentada de
forma impressa e on-line, que surge na tentativa de criar um
espaço de articulação, troca de informações e debate entre in-
divíduos e organizações autônomas de todo o mundo. Dedica-
rá suas páginas para destacar o pensamento insurgente e suas
práticas derivadas, tais como: teoria política crítica, socialismo,
anarquismo, marxismo, confederalismo democrático e outros;
antifascismo, antirracismo, antipatriarcalismo, internacionalis-
mo, anticapitalismo; experiências de autogoverno, insurreições,
greves, motins e revoluções, dentre outros.

CONSELHO CONSULTIVO
Alexandre Wellington dos Santos Silva
Francisco Raphael Cruz Maurício
Iara Saraiva Martins
Jessica Ellen da Rocha Silva
Priscila Greyce do Amaral Gomes
Selmo Nascimento da Silva

ISSN
2675-3642 impresso
2675-3650 online

www.terrasemamos.wordpress.com
tsa.editora@gmail.com
SUMÁRIO
Conhecimentos indígenas, autonomias e lu-
tas anticoloniais Kaiowá e Guarani contra a
necropolítica e o agronegócio
Elemir S. Martins, Gislaine C. Monfort e
Laura J. Gisloti 05

O Estado capitalista e o agravamento da ne-


cropolítica nas penitenciárias brasileira em
meio a pandemia
Gabriell Araújo 13

As lutas que ascendem na pandemia: resis-


tência contra o genocídio em tempos de devir
negro do mundo
Gabriel Silva 21

Crônicas de uma pandemia negligenciada:


da pulsão de morte do sujeito à necropolítica
bolsonarista
Beatriz de Souza Silva, Marcus Bernardes e Hárl-
len Eric Benevides de Castro 29
CONHECIMENTOS INDÍGENAS,
AUTONOMIAS E LUTAS ANTI-
COLONIAIS KAIOWÁ E GUARANI
CONTRA A NECROPOLÍTICA E O
AGRONEGÓCIO
Elemir S. Martins
Gislaine C. Monfort
Laura J. Gisloti

Opu’ã Ko’a Oremba’e Yvy: retomada dos territórios


originários e recomposição dos nutrientes da “terra-
floresta”
Era uma alegria para mim viver bem. Hoje em dia as plantações não são
mais como antigamente porque não tem mais mata. Com isso, as planta-
ções não são mais produtivas, os brancos tiraram a nossa mata (NHAN-
DERU JORGE).
(...) onde os brancos comeram toda a floresta, eles mesmos acabam sofren-
do de calor, de fome e de sede (...). Nos lugares onde os brancos ocuparam
(...) só restam descampados e uma terra sem sopro de vida. Mas isso não
vai acontecer com a nossa floresta enquanto vivermos nela (KOPENAWA e
ALBERT, 2015, p. 420 e 434).
A relação respeitosa do meu povo para com a terra, a fauna e a flora é uma
expressão do modo de vida kaiowá. (...); é o agronegócio que invadiu nossos
territórios sagrados. Para nós, um grande flagelo é o biocombustível, o eta-
nol, produzido em nosso território, como sangue que jorra de nossas veias
e que inunda a terra kaiowá. Meu colega rite contou que, para os a’uwe, a
floresta precisa dos a’uwe e os a’uwe precisam da floresta; assim, eles irão
fazer a floresta reviver para continuar no território que lhes foi roubado e
ocupado pelos não-indígenas. Essa é a luta dos povos indígenas (VERON,
2018, p. 16)

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Neste início do século XXI, os anos de governo da esquerda institu-
cional, vulgo “setores progressistas”, demonstraram o aprofundamento da
matriz monocultural, latifundiária, primário-exportadora e a usurpação dos
territórios ancestrais dos povos originários no Brasil. Mais de uma década
de conciliação de classes, de intensificação do agronegócio, dos megaproje-
tos e de militarização das periferias levaram ao abismo do atual governo ge-
nocida/nazi-fascista. Os erros/fracassos da esquerda institucional demons-
traram uma vez mais a impossibilidade de transformação social e libertação
dos povos e territórios dentro do Estado e das vias hierárquicas-burocráti-
cas. De fato, não será disputando cargos entre os poderes do Estado que
conquistaremos nossa libertação e autonomia.
A expansão das fronteiras colonialistas, das invasões aos territórios ori-
ginários, o intenso avanço da contaminação de solos e rios de forma irre-
versível e os espaços de morte causados pelo agronegócio e os megaproje-
tos são faces do necropoder do Estado que intensificam a acumulação por
espoliação por séculos (SHIVA, 2003). A noção de necropoder deve ser
compreendido aqui a partir do terrorismo de Estado em que a generaliza-
ção indiferenciada e banalização da morte, a precarização territorial, a de-
gradação ambiental e o genocídio marcam o regime constitutivo do poder
(MBEMBE, 2018).
No entanto, a resistência secular dos povos originários, que aduba as
lutas ancestrais e anticoloniais, nos demonstram outros caminhos possíveis
contra as constantes quedas do céu, a necropolítica, os territórios mina-
dos e corporativos, promovidos pela ignorância do “povo da mercadoria” e
pelo karai reko (modo de vida dos brancos, segundo os kaiowá e guarani)
(KOPENAWA e ALBERT, 2015).
No sul do estado de Mato Grosso do Sul as lutas anticoloniais ger-
minam no seio da organização política dos kaiowá e guarani em diversos
contextos territoriais e através de movimentos étnico-socioterritoriais como
os conselhos tradicionais Aty Guasu, Kunhangue Aty Guasu e Retomada Aty
Jovem (RAJ) (BENITES, 2012). Conforme Martins (2015) os conselhos
possuem participação direta e ativa dos nhanderu e nhandesy1, bem como
de diferentes gerações, nos processos de auto-organização e retomada dos
territórios.

1 lideranças político espirituais.

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Processo político-organizativo que se alicerçam nas territorialidades
kaiowá e guarani com a yvy porã (terra boa) e o ka´aguyrusu (mata) (VA-
LIENTE, 2019; BENITES, 2020), com eixos estratégicos que pautam a
recuperação dos territórios ancestrais e novas relações ecológicas para rea-
propriação da natureza e das dimensões cosmológicas, frente à descaracte-
rização do território pelo colonialismo, pelas guerras de distintas intensi-
dades, pelo monopólio da terra, pela exploração do trabalho e a usurpação
do conhecimento ancestral desde o século XIX até a contemporaneidade
(BENITES, 2020).
As políticas indigenistas de Estado do século XX condicionaram o am-
plo processo de instabilidade e precarização territorial das coletividades em
pequenas “ilhas de terra” com média de 3600 hectares como Reservas Indí-
genas, que se configuraram através do deslocamento forçado, extrema vio-
lência e etnocídio contra os povos (MARTINS, 2020). Nesse mesmo pe-
ríodo intensifica-se o aumento do desmatamento e a degradação ambiental
para o avanço das relações coloniais-imperialistas com os latifúndios e pos-
teriormente da agroindústria. A usurpação dos territórios originários por
séculos de ocupação colonialista e diversas formas de violência simbólica,
tem como efeito, a falta de medicina e remédios tradicionais que agravam
os cuidados coletivos dos rezadores guarani e kaiowá (MARTINS, 2020).
Atualmente o Mato Grosso do Sul junto a outros estados da região
centro-oeste concentram mais de 80%2 de territórios corporativos, con-
centrados principalmente na monocultura de soja e milho transgênicos,
cana-de-açúcar, pecuária e outros setores econômicos como os serviços e a
indústria. Setores que potencializam a superexploração do trabalho e a pro-
letarização marginalizada sobretudo de indígenas as usinas, cortes de cana
e complexos industriais em condições de degradação sistêmica do trabalho
(VALIENTE, 2019).
Superexploração da vida, da terra e do trabalho que se acentuou nes-
se período de pandemia da COVID-19 doença causada pelo coronavírus
(Sars-Cov-2), cuja expansão é efeito da crise colonial-imperialista e da de-
gradação ecológica fomentadas pelos brancos há 520 anos. Os primeiros3
casos de contágio entre os povos indígenas no Mato Grosso do Sul foram de
moradores da Reserva Indígena de Dourados e em seguida da Te’yí kue, que
2 https://tinyurl.com/yxbxh6cq
3 https://tinyurl.com/y3meny36

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trabalham na Seara Alimentos Ltda. (JBS), na BRF S.A. (fusão entre Sadia
e Perdigão) e na Raízen (fusão Cosan-Shell e antiga Nova América) do setor
sucroenergético e que incide sobre a Terra Indígena Guyraroká. De fato, os
frigoríficos e as usinas foram o epicentro de propagação do vírus também
em outros municípios do país.
A nova pandemia, após 100 anos da última, evidenciou outras faces do
necropoder como a fragilidade e instabilidade socioecológica dos sistemas
alimentares das agroindústrias que só promovem escassez generalizada e
vulnerabilidades através da destruição dos ecossistemas-territórios.
Frente ao avanço da pandemia e da necropolítica, os coletivos kaiowá e
guarani fortalecem a auto-organização com mais de 73 barreiras sanitárias
e redes de apoio mútuo construídas em distintos contextos territoriais e
que atuam para diminuir a disseminação do vírus e compartilhar o cuidado
mútuo entre as comunidades. Essas ações políticas e processos de auto-or-
ganização nas barreiras sanitárias estão sendo compostas por professores/as
kaiowá e guarani, estudantes, conselheiras/os e moradoras/es (MARTINS,
2020). Com importante participação da juventude e sobretudo das mulhe-
res, que de fato, vem sendo o front das barreiras e da saúde indígena.
A auto-organização e o fortalecimento das autonomias territoriais du-
rante o período da pandemia, é fruto de um processo mais amplo da luta
por retomar os tekoha, as relações espirituais e ecológicas com todos os seres
vivos, sobretudo com os jara (guardiões da floresta e dos seres vivos/seres
protetores malfazejos e benfazejos). O processo de desterritorialização dos
povos com o necropoder, a agroindústria e a ideia de “progresso” do karai
reko, também representou a desterritorialização dos jara e a intensificação
da extrema violência contra os povos que não se separam da terra e que
combatem a noção de natureza separada dos humanos.
Mesmo diante da intensa reestruturação territorial e transformações no
manejo social da paisagem, a força dos jara são cultivadas pelos nhanderu
e nahndesy através dos cantos e rezas sagradas (como o canto do pássaro
– guardião das almas) e são como sementes que alimentam a esperança
e fazem germinar caminhos e territorialidades de resistência na luta para
retomar a terra e a floresta. A dimensão da política ancestral se opõe aos
problemas históricos causados pela diminuição dos elementos da flora, da

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fauna, das relações com o ecossistema e da diminuição dos jara. E fazem
insurgir narrativas e ações anticoloniais com novos processos de resistência.
Um pluriverso de resistência secular, conhecimento e luta ancestral de-
fendido diante da tirania dos megaprojetos colonialistas e capitalistas que
assolam o mundo. Para além de serem justas e dignas, as lutas e processos
de autodemarcação, são narrativas e ações anticoloniais que representam
territorialidades constituídas a partir da organização política de diferentes
gerações. O que tem impulsionado a criação de outros espaços de auto-or-
ganização elementares para o caráter das territorialidades autônomas e dos
territórios de resistência.
Contra a desastrosa barbárie do “povo da mercadoria” os kaiowá e gua-
rani avançam na organização da luta em diferentes contextos territoriais
e expandem as ‘retomadas’ das terras ancestrais contra o colonialismo, o
patriarcado, o Estado e o capitalismo que sustentam o agro-indústria-ex-
trativismo. A luta pelo tekoha e por autonomia territorial é o que torna
possível a recomposição dos nutrientes da terra, a recuperação da vegetação
nativa e do microclima local. Ao longo dos anos e através da presença dos
povos e manejo dos territórios e ecossistema, a terra voltará a ter equilíbrio
e sensibilidade permitindo que os fluxos de energia sejam realidade outra
vez (BENITES, 2020).

Conclusão
Contra a expansão da precarização territorial e dos espaços de morte
causados pelo agronegócio, insurge entre os kaiowá e guarani, novas ex-
periências de auto-organização comunitária e intercomunitária com novas
estratégias de recuperação do território e da floresta. Essas insurgências e
novos processos político-organizativos apresentam novos horizontes para as
atuais lutas anticoloniais e populares, e são ações políticas que potenciali-
zam caminhos possíveis nas lutas por libertação de todos os povos oprimi-
dos do mundo e pela construção da autogestão territorial.
Por fim, compartilhamos nosso respeito, admiração, solidariedade e
profundo aprendizado com as lutas dos kaiowá e guarani na retomada dos
territórios, na organização política e na construção de um mundo novo.
Seguimos firmes e lado à lado por terra e liberdade.

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Referências
BENITES, Eliel. Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta”. Revista
Nera, Dossiê, v. 23, n. 52, pp. 19-38, 2020.
BENITES, T. Trajetória de luta árdua da articulação das lideranças Gua-
rani e Kaiowá para recuperar os seus territórios tradicionais tekoha guasu.
Revista de Antropologia da UFSCar, São Carlos, n.2, p.165-174, 2012.
KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu. Palavras
de um xamã Yanomami. São Paulo, Tradução de Beatriz Perrone-Moisés,
Companhia das Letras.
MARTINS, Elemir Soare. O papel das lideranças tradicionais na de-
marcação das terras indígenas Guarani e Kaiowá. Tellus, n. 29, p. 153-172,
2015.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exce-
ção, política da morte. São Paulo, N-1edições, 2018.
SHIVA, Vandana.Monoculturas da Mente: perspectivas da biodiversi-
dade e da biotecnologia. São Paulo: Gaia, 2003.
VALIENTE, Celuniel Aquino. Modos de produção de coletivos Kaiowá
na situação atual da Reserva Indígena de Amambai, MS. Dissertação, Uni-
versidade Federal da Grande Dourados, Dourados, 2019.
VERON, Valdelice. Tekombo’e kunhakoty: modo de viver da mulher
kaiowá. Centro de desenvolvimento sustentável (dissertação de mestrado).
Mestrado profissional em sustentabilidade junto a povos e terras tradicio-
nais. Universidade de Brasília, 2018.

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Resumo: A necro-economia/necropolítica do Estado e a racionalidade configurada
pela globalização neoliberal associada ao colonialismo e imperialismo no século XXI
constituem o aprofundamento dos saques à diversidade de territórios dos povos ori-
ginários, cujos efeitos são desastrosos e se materializam em diversos aspectos da
dinâmica da usurpação de terras, seja pelo avanço das crises hídricas, pela perda da
biodiversidade, de ecossistemas, pela expansão de megaprojetos ou pelo aumento
de epidemias e pandemias. A desastrosa territorialidade estatal e as políticas do Ca-
pital modificam, submetem e soterram com enorme rapidez e voracidade irracional,
ecossistemas inteiros, paisagens diversas e ambientes. Compartilhamos aqui algu-
mas palavras sobre a importância de as lutas populares buscarem e aprenderem
com os horizontes das lutas ancestrais e anticoloniais dos povos indígenas. Neste
contexto, discutimos sobre novas experiências de auto-organização comunitária e
intercomunitária dos povos kaiowá e guarani, contra a expansão da precarização ter-
ritorial e dos espaços de morte causados pelo agronegócio, através da retomada e
recuperação do território tradicional. As retomadas são compostas pela dimensão
de uma narrativa anticolonial, bem como de práticas de resistências, fundamentadas
nas ações coletivas e autônomas, que visam recuperar o território roubado e violen-
tado, para transformá-lo em um território equilibrado e cheio de vida e caminhos.
Palavras-chave: anticolonial, guarani, kaiowá.

Mombyky: Pe Tetã política ha economía oporohundipáva, ha pe sãsoreko pyahu


rérape oñangarapáva, colonia pu’aka ou jevy ko S. XXI-pe oporomondapa vévo ha
omoperõ Ava Rekoha. Oñangarapa Tekoha Ypykuéra ñangarekopy oipota potavé-
gui yvy ha ysyry ojeupe kuéra guarã año. Ko’ãga jahechakuaa mba’éichapa ombya-
ipa ha oitypa ka’aguy oĩmíva guive ha omongy’apa ysysy. Ko’ã aporeko ogueru heta
mba’asyvai, ojejukapa rupi mymba mimi ha ojehapapypa ka’aguy, ndakatuvéi ñane
pytuhẽ porã. Pe Tetã (estado) omboja’o hekope’ỹ Tekoha, omono᾽õ heta hetavévo
viru, omondyryry ka’aguy guasu, ava ha mymba rayty porãite. Ja’e voi hese kuéra
oiménepa oĩ porã hikuái iñakãme, peichaite oñembosarái ñande Rekoha guasúre,
péva ndahekovia mo’ãi araka’eve. Ko’ápe romombe’umíta mbykymi mba’éichapa
ypykuéra oñorairõ ombohovái haguã colonizador aporeko oporohundipáva

Ñe’e apyterete: anticolonia ñembotove, guarani, Kaiowá


O ESTADO CAPITALISTA E O
AGRAVAMENTO DA NECROPOLÍ-
TICA NAS PENITENCIÁRIAS BRA-
SILEIRAS EM MEIO A PANDEMIA
Gabriell Araújo 1

“Exercer o poder corrompe, submeter-se ao poder degrada.”


– Mikhail Bakunin

Um dos problemas primários do sistema penal é a seletividade dirigida


com que os sujeitos são escolhidos para serem abordados pela polícia e
eventualmente presos. Esses indivíduos, em sua esmagadora maioria, com-
partilham características comuns como a pobreza e a racialidade, e esses
mesmos atributos, dentro da mentalidade brasileira gravemente afetada
pelo racismo e o pensamento capitalista meritocrático, fazem com que eles
sejam julgados como inabilitados para pertencerem à vida social de forma
íntegra, já que foram transfigurados em classes perigosas no pensamento
comum graças ao caráter sistêmico da discriminação racial e econômica
brasileira. A maior parte daqueles que cometem crimes e não possuem esses
traços são julgados de uma forma mais branda não só pela população, mas
também pelo próprio direito penal.
Portanto, é possível entender a situação dentro do sistema penal como
necropolítica, já que é através dele que ocorre a expressão máxima da sobe-
rania, a qual, para Achille Mbembe, está na capacidade de ditar quem pode
viver, morrer ou ser exposto à morte. Transpassando-se isso ao interior das
penitenciárias brasileiras, em especial no período pandêmico, os encarcera-
dos estão frequentemente desprotegidos e expostos ao óbito, já que a Co-

1 Graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia –


GO – Brasil. Email: gabriellaraujo@discente.ufg.br

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vid-19 avança com furor contra aqueles que estão reclusos e aglomerados
em um ambiente fechado - como irei expor em breve.
Se o Estado é o conjunto de instituições políticas, legislativas, judiciá-
rias, militares, financeiras, etc , que retira do povo a sua capacidade de se
autogerir, delegando todos esses aspectos a indivíduos que determinam os
rumos de uma sociedade (MALATESTA, 2001), podemos atribuir a ele o
papel fundamental na implementação da necropolítica, visto que é através
de todo esse agrupamento de entidades que a prática da guerra contra o
terror é utilizada para demarcar a soberania estatal, detentora do poder de
controlar a mortalidade dentro e fora das penitenciárias.
Entretanto, por mais evidente que seja, é necessário afirmar que o Esta-
do não opera de forma independente da política econômica, afinal, ele é o
meio com que a burguesia consegue proteger e legitimar o poder e o direito
de explorar o trabalho daqueles que não possuem os meios de produção, e
que não têm outra alternativa para permanecerem vivos a não ser sucumbir
à venda de sua força produtiva pelo menor preço possível (BAKUNIN,
2007). Nessa compreensão, ademais, a polícia é a manifestação do poder
coercivo e militar advindo do próprio Estado. Essa organização é responsá-
vel por preservar as estruturas da sociedade, que condicionam e corroboram
as desigualdades através da sua atuação, com alvo no controle dos pobres
e dos negros desde o seu estabelecimento. Em um dos seus livros Bakunin
pondera a função do Estado afirmando que o:

‘’(...) Estado moderno, o qual tem por único objetivo a organização, na


mais vasta escala, da exploração do trabalho, em benefício do capital con-
centrado em pouquíssimas mãos; o que significa o reinado triunfante da
judiaria e dos grandes bancos sob a poderosa proteção das autoridades fis-
cais, burocráticas e policiais, que se apoiam, sobretudo, na força militar,
despóticas, por conseguinte, em sua essência, mas que se esconde, atrás
do jogo parlamentar de um pseudo-regime constitucional’’ (1990, p.129,
tradução nossa)

A burguesia - detentora do monopólio de acumulação econômica, ob-


tido através da exploração da massa trabalhadora (extração da mais-valia)
- nesse sentido, opera através do Estado para causar danos e instabilidades,
criando um ambiente seguro para manter a exploração. Um exemplo possí-
vel de ser listado é a influência das grandes corporações, que se aproveitam
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de um mundo globalizado para migrar até países que possuem a mão de
obra mais barata e evitar os benefícios e salários mais elevados de países
que possuem mais direitos trabalhistas. E, nesses países onde o trabalha-
dor é ainda mais explorado, a pobreza e o caos se mantêm irredutíveis. O
emprego precário, por sua vez, gera o desemprego que se alastra. A educa-
ção, saúde e outros serviços básicos também se tornam minguados, e esse
processo torna toda uma comunidade em “candidatos perfeitos ao encar-
ceramento’’(DAVIS, 2018), já que a desigualdade econômica possibilita as
demais desigualdades em um sistema onde as conquistas dependem das
viabilidades financeiras.
Além da compreensão econômica, o racismo caracteriza o Estado brasi-
leiro, sendo um ponto primordial para compreender o caráter sistêmico do
holocausto da industrialização que é o sistema penal. Para Foucault (2010),
a função do racismo dentro do Estado está estabelecida em duas funções.
A primeira faz referência à hierarquização das raças, fragmentando o cam-
po biológico através de uma cesura para a qual se dirige o biopoder. No
decorrer disso, a segunda função, substanciada na compreensão da morte
e sujeitos da raça degenerada enquanto um benefício para a segurança da
raça apurada, se torna possível. Então, nesse viés, a população negra estar
presa, morta ou próxima da morte nas penitenciárias ou comunidades, é
vista - mesmo que de forma pouco consciente - como uma relação positiva
para aqueles que não se enquadram nessas características.
O racismo institucional é a prática do poder que gera a dominação de
uma raça sobre a outra, através da imposição de regras que buscam man-
ter a ordem social racista vigente e por isso trazem consigo os mesmos
conflitos que a sociedade possui e entende como normais (ALMEIDA,
2019). Isso direciona o comportamento dos indivíduos, mas saliento a
importância daqueles que exercem uma função dentro do Estado - como
a opressão realizada pelos militares e também a função de tratar a lei,
exercida pelos juristas e legisladores. A partir disso, entende-se que:

“A distinção clássica entre o Judiciário, o Executivo e o Legislativo se dis-


solveu em grande parte. Os tribunais se transformaram em ferramentas nas
mãos dos políticos ou, nos casos mais extremos, os juízes -assim como os
promotores- também se transformaram em políticos. (...) trata-se do con-
trole democrático do crime aprovado pelo voto da maioria. Para isto, não

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há limites naturais, desde que não prejudiquem a maioria.’’ (CHRISTIE,
1998, p.186)

Para exemplificar, podemos entender a “acusação dupla’’, muito comum


no Rio de Janeiro, porquanto execução do racismo institucional. É através
desse artifício que o Ministério Público é capaz de inserir um tempo maior
de reclusão durante o julgamento, baseado-se no pronunciamento do poli-
cial que executou a abordagem, necessitando, somente, afirmar que a região
onde ela aconteceu é ligada ao tráfico de drogas. Ou seja, morar numa
região desvalida ou em um bairro endinheirado pode fazer com que seja
adicionado mais ou menos tempo a pena do réu. De acordo com os dados
levantados pela Folha de São Paulo no Banco Nacional de Mandados de
Prisão (2017), 41% dos mandados de prisão por tráfico de drogas no Rio
de Janeiro o réu era acusado ou foi também condenado por associação ao
tráfico. Esse número em muito se difere da média nacional que é de 12%.
A Covid-19 e seus impactos nas penitenciárias não é um assunto de alta
relevância nos debates entre a sociedade, uma vez que é comum enxergar
as cadeias como depósitos de facínoras sem valor. Porém, não se leva em
consideração que vários dos detentos estão esperando seu julgamento, ou
foram presos como resultado da infrutífera guerra às drogas, e muito menos
as condições vivenciadas por essas pessoas antes de se tornarem infratores.
Vários são os casos que foram noticiados e que podem ser agregados à nu-
vem de eventos não notificados de presos que estão infectados ou morreram
em função do Covid-19, já que apenas uma minoria é testada. Se o recluso
está sob a tutela do Estado no momento em que ele está preso, a sua mor-
te - tal qual as motivações que levaram ele até a criminalidade - poderiam
ter sido evitadas caso o estado fosse verdadeiramente funcional e o sistema
penal não falhasse como falha há quase 300 anos.
As visitas foram proibidas, mas segurança nenhuma essa medida é capaz
de proporcionar, já que a ausência de visitas traz riscos significativos, posto
que elas são uma espécie de fiscalização contra as violências que ocorrem
dentro das penitenciárias. Logo, a situação se agrava, já que continua-se a
prender os sujeitos que levam o vírus de fora pra dentro da mesma maneira.
Para piorar, as prisões são conhecidas pela sua precariedade - em muitas até
a água é racionada e dificulta consideravelmente a higiene dos reclusos. O
acesso à saúde tal qual seu tratamento também é ínfimo, e nessa somatória

16 | Revista Terra sem Amos, ano I, n. 02. out. 2020


de tragédias só podemos identificar as penitenciárias como um local perfei-
to para a perpetuação, não só da Covid-19, como de todas as doenças trans-
missíveis (tal qual a tuberculose que tem uma alta taxa de propagação nas
cadeias). Esse cenário deixa evidente que essa exiguidade de zelo nada mais
é do que uma etapa do extermínio sistêmico da população negra e pobre.
De acordo com os dados do mapeamento do Departamento Penitenciário
Nacional (DEPEN), o sistema penal brasileiro já confirmou 105 óbitos de
reclusos, além das mortes de agentes prisionais e dos casos ocultados graças
à subnotificação e o baixíssimo índice de testagem.

Conclusão
As cadeias brasileiras, mais do que nunca, se assemelham aos campos de
extermínio. Hoje, um sujeito preso, do menor infrator ao maior deles, não
está simplesmente com a sua liberdade individual restringida, mas com a
sua vida e sua integridade física expostas à morte. O encarceramento em
massa e a necropolítica que acontecem dentro dele são projetos fundamen-
tais para a preservação do Brasil como conhecemos hoje: um país onde a
desigualdade é um problema imenso, os direitos civis não alcançam a maior
parte da população, e o Estado tem a violência e o racismo como suas prin-
cipais características. Aqueles que sobrevivem aos horrores de tal ambiente
ainda têm de conviver com a morte social que marca a sua vida fora das
penitenciárias e os faz continuar na criminalidade em um processo cíclico
e, segundo Kropotkin (2011), vantajoso para a proteção da exploração que
acontece de forma direta através das leis, sobre a propriedade, e indireta
através da manutenção do estado.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Car-
neiro; Pólen, 2019
BAKUNIN, Mikhail. O Sistema Capitalista. São Paulo: Faísca, 2007
no prelo
BAKUNIN. Mikhail. Bakunin: Statism and Anarchy. M. Shatz ed.
New York: Cambridge: Cambridge University Press. 1990

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CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos
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-Sol, 2001

18 | Revista Terra sem Amos, ano I, n. 02. out. 2020


Resumo: A análise deste artigo parte de uma posição crítica da sociologia criminal
em relação ao sistema e ao direito penal, lançando-a como base do pensamento para
entender os problemas contemporâneos que envolvem a segurança pública dentro e
fora das penitenciárias. Na atualidade o Brasil foi assolado pela crise de saúde gerada
pela Sars-Covid-19, que já causou milhões de morte no mundo, mas principalmente
na América Latina e no Caribe. A situação do vírus dentro das penitenciárias é um
tópico comum, mas tratado com menos importância do que o necessário em quais-
quer os países. A lógica com que as prisões funcionam em todo o globo, sobretudo
no recorte dos países marginais do capitalismo, torna a Covid-19 ainda mais mortal,
pois se trata de um sistema que falhou em todas as suas propostas relacionadas ao
sistema penal - tais como aquelas atreladas à saúde e à higiene da população carce-
rária. Para compreender o tema e ter uma avaliação crítica e concreta em relação a
esse impasse, que envolve toda a sociedade de maneiras distintas, é necessário, pre-
liminarmente, entender o que são as penitenciárias, quais são suas funções e como
elas funcionam enquanto política de extermínio das populações marginalizadas em
estados capitalistas.
Palavras-chave: Sistema Penal; Estado Capitalista; Covid-19

Abstract: The analysis of this article starts from a critical position of criminal socio-
logy in relation to the system and criminal law, launching it as a basis of thought
to understand contemporary problems involving public security inside and outside
penitentiaries. Nowadays Brazil has been devasted by the health crisis generated by
Sars-Covid-19, wich has already caused milions of deaths worldwide, but mainly in
Latin America and the Caribbean. The situation of the virus inside the penitentiaries
is a common topic, but treated with less importance than necessary in any country.
The logic with which prisons operate all over the globe, especially in the cut-off of
the marginal countries of capitalismo, makes Covid-19 even more deadly, since it is a
system that has failed in all its proposals realated to the penal system – such as those
linked to the health and hygiene of the prison population. To understand the issue
and have a critical and concrete evaluation in relation to this impasse, wich involves
the whole society in diferente ways, it is necessary, first of all, to understand what
penitentiaries are, what their functions are, and how they functions as a policy of
extermination of marginalized populations in capitalista states.
Keywords: Penal System; Capitalist State; Covid-19
AS LUTAS QUE ASCENDEM NA
PANDEMIA: RESISTÊNCIA CON-
TRA O GENOCÍDIO EM TEMPOS
DE DEVIR NEGRO DO MUNDO
Gabriel Silva1

Introdução: O devir negro do mundo e a tendencial


centralidade da luta contra a violência do Estado
racializador na luta de classes.
O filósofo camaronês Achille Mbembe afirma que vivemos um proces-
so de “tendencial universalização da condição negra” (MBEMBE, 2014,
p.16) com a crescente violência da espoliação capitalista contemporânea
que destrói as conquistas econômicas da classe trabalhadora e amplia a mas-
sa das populações precarizadas, racializadas, excedentes e encarceradas com
o avanço da gestão necropolítica dos Estados.
Pela primeira vez na história humana, o nome Negro deixa de remeter
unicamente para a condição atribuída aos genes de origem africana durante
o primeiro capitalismo (predações de toda a espécie, desapossamento da
autodeterminação e, sobretudo, das duas matrizes do possível, que são o
futuro e o tempo). A este novo caráter descartável e solúvel, à sua institucio-
nalização enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro,
chamamos o devir negro do mundo. (MBEMBE, 2014, p.18)
Neste momento histórico, o devir negro do mundo se mostra na gene-
ralização e alcance nacional e internacional de revoltas tipicamente negras,
como a luta contra o cárcere e a violência policial em países de formação
escravista como Brasil ou nos EUA. A pandemia de covid-19, ao explicitar
com mais força o genocídio de Estado em especial contra as populações

1 Gabriel Silva, militante do Quilombo Invisível e da Rede de Proteção e Resistência o


Genocídio.

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racializadas, propiciou um ascenso global de lutas contra o cárcere e a vio-
lência policial, as faces mais puras da violência do Estado racializador.
Esta tendencial generalização da condição negra implica numa nova
centralidade na luta contra a violência do Estado racializador para a luta de
classes. O ascenso do presidente Jair Bolsonaro traz uma anunciada amea-
ça de submissão de toda a classe trabalhadora organizada ao extermínio
policial que hoje é reservado exclusivamente aos setores mais excluídos e
racializados. Assim, é uma questão urgente de autodefesa ampliar essas lutas
e debates negligenciadas tão sumariamente pelas organizações até hoje.

O ascenso da luta contra o cárcere na pandemia


A pandemia do COVID-19 deu nova urgência à necessidade de abolir pri-
sões, campos de refugiados, centros de detenção de imigrantes e o desuma-
no sistema carcerário capitalista. As populações de prisioneiros e refugiados
estão enfrentando uma iminente sentença de morte pela rápida dissemina-
ção do vírus nas condições insalubres e lotadas de prisões, campos e centros
de detenção em todo o mundo (DECLARAÇÃO DA COALIZAÇÃO
GLOBAL PELA ABOLIÇÃO DAS PRISÕES, 2020)

As palavras acima abrem a declaração de fundação da Coalizão Global


pela Abolição das Prisões, articulação internacional contra o cárcere surgida
durante a pandemia, e explicitam a urgência mortal que mobiliza as lutas
de presos e familiares em diferentes países. Mobilizações dentro e fora das
prisões estão ocorrendo durante a pandemia no Brasil, Turquia, Irã, Argen-
tina, Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, México, Líbano, Canadá, Índia,
Egito, EUA, Itália, França, Espanha e outros.
Fora das prisões, as táticas de luta contam com campanhas virtuais e
manifestações presenciais, majoritariamente convocadas por familiares de
presos. Além disso, debates, publicações e posicionamentos públicos pelo
desencarceramento começam a quebrar o isolamento a que essas lutas são
submetidas. Dentro das prisões, as ações variaram entre greves de trabalho,
greves de fome, manifestações, rebeliões e até fugas.
Nesse contexto, muitos governos se viram forçados a adotar inéditas
políticas de desencarceramento que, apesar de insuficientes para impedir
a circulação do vírus nas prisões, quebraram a tendência internacional de

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constante aumento do encarceramento em massa. No Irã foram libertados
mais de 85 mil presos. Na Turquia, o congresso aprovou uma lei que pode
libertar até 100 mil presos (um terço da população carcerária do país). Na
Indonésia, 22 mil presos foram libertados. Na Colômbia, 10 mil. Medidas
paliativas de desencarceramento também foram adotadas nos EUA, na
Itália e em diversos outros países.
No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomendou o desen-
carceramento de presos do grupo de risco. Estima-se que mais de 32,5 mil
pessoas tenham sido liberadas pela medida, porém, movimentos de familia-
res denunciam que as recomendações do CNJ seguem sem efetiva aplicação
e milhares de pessoas do grupo de risco continuam encarceradas.
As principais organizações guarda chuva a unir de forma descentralizada
diferentes iniciativas em torno da pauta do desencarceramento e divulgar
em suas redes sociais as mobilizações no Brasil tem sido a Agenda Nacional
pelo Desencarceramento e as Frentes Estaduais pelo Desencarceramento
(que existem em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Amazonas
e em outros estados). Desde o início da pandemia, numerosos protestos de
presos e familiares ocorrem constantemente em diferentes Estados.
Em São Paulo, em 16 de março de 2020, na semana anterior ao início da
quarentena, houve o maior levante coordenado de rebeliões nos presídios
do Estado desde 2006, com registro de rebeliões em 15 presídios e mais
de 1300 fugas. No Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Mongaguá,
durante a fuga, diversos presos foram baleados pela Polícia Militar. Mora-
dores do entorno do CPP relatam terem visto corpos alvejados pela região
e o Movimento Mães do Cárcere denuncia o desaparecimento de dezenas
de detentos desde a fuga. Na mesma semana, os educadores da Fundação
Casa entraram em greve, denunciando o risco de contágio a que eles e os
adolescentes estão expostos. No dia 28 de agosto, uma manifestação com
mais de 2 mil familiares de presos tentou ir ao Palácio dos Bandeirantes,
reivindicando a retomada das visitas, regularização da entrada do jumbo,
desencarceramento das pessoas no grupo de risco e melhora das condições
de saúde no cárcere.
A principal resposta do Estado brasileiro até o momento foi o recru-
descimento da repressão. Cerca de R$ 20 milhões foram destinados pelo
Departamento Penitenciário Nacional para compra de armamentos, como

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granadas e munições, com o propósito de reprimir “possíveis tumultos” no
sistema prisional.

O acirramento da luta contra o genocídio policial


durante a pandemia
Em maio de 2020, o vídeo da execução de George Floyd por policiais
em Minneapolis despertou uma grande rebelião nos EUA, com forte soli-
dariedade nacional e internacional, incluindo massivos protestos de apoio
nas principais capitais europeias. Em 8 de setembro, na Colômbia, também
explodiu uma revolta popular após a disseminação de vídeo do assassinato
do advogado Javier Ordóñez por policiais.
Em Sâo Paulo, segundo dados oficiais, a Polícia Militar do governador
João Dória Jr. tem matado em média uma pessoa a cada 6 horas durante
a pandemia. As revoltas contra esses assinatos também acontecem repeti-
damente, mas ainda sem conseguir angariar maior solidariedade fora das
comunidades em que acontecem.
A Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio é a principal
organização guarda chuva a se solidarizar com as mobilizações espontâneas
dos familiares das vítimas na metrópole paulista. Durante a pandemia, até o
início de setembro, ela participou da articulação de treze atos em diferentes
periferias da metrópole. As principais pautas foram: pedindo justiça em
casos de execuções por policiais, pela libertação de presos forjados, contra
o racismo, por melhora no atendimento médico nas periferias e retomando
lutas anteriores, como o ato por memória e justiça na data dos 5 anos da
chacina de Osasco e Barueri.
Dessas ações, dois casos se destacam pela maior solidariedade e reper-
cussão que conseguiram mobilizar: os assassinatos de Guilherme e Rogério.
O jovem negro Guilherme Silva Guedes, de 15 anos foi sequestrado, tortu-
rado e executado com tiros nas mãos e na cabeça por policiais militares de
folga que trabalhavam ilegalmente como seguranças privados. O momento
do seu sequestro foi registrado em vídeo que viralizou nas redes sociais.
Moradores em protesto após a descoberta de sua morte saíram às ruas, no
dia 15 de junho, e atearam fogo em sete ônibus na região do Jd Miriam,
periferia da zona sul de São Paulo. Os enfrentamentos com a polícia se

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seguiram pela madrugada e se espalharam por outros bairros da região. Pos-
teriormente, foram realizados mais três atos, na sua Missa de Sétimos Dia,
nos dois meses e nos três meses após sua morte, exigindo responsabilização
da Sabesp e Globalsan, empresas contratantes dos assassinos.
No dia 09 de agosto, Rogério Ferreira da Silva Júnior foi assassinado
por policiais militares na data do seu aniversário, quando fazia 19 anos.
O jovem negro estava numa motocicleta indo encontrar seus amigos para
comemorar, quando policiais o mandaram parar a moto e o executaram
com um tiro assim que ele obedeceu o comando. A execução foi gravada
em vídeo que viralizou nas redes sociais. Após o enterro de Rogério, mais
de mil pessoas da comunidade do Parque Bristol, periferia da zona sul de
São Paulo, saíram para protestar em homenagem aos jovens recentemente
assassinados na região, exigindo justiça e o fim da violência policial. Após o
protesto também houve repressão policial e resistência, resultando na quei-
ma e destruição de seis ônibus. Só no Parque Bristol, durante a pandemia
este é o terceiro caso de execução que leva as pessoas às ruas, os outros dois
foram o de Igor, de 16 anos, e de um jovem conhecido como Cadu.

Conclusão
O ascenso internacional de lutas contra o cárcere e a violência policial
durante a pandemia se inscreve na tendencial centralidade que as lutas con-
tra a violência racializadora do Estado ganham em tempos de devir negro
do mundo. A proliferação de mobilizações pela vida dos racializados pode
abrir caminho para novas conquistas na luta contra a violência do Estado
e na constituição da autodefesa da nossa classe, tendo potencial para fazer
a luta de classes como um todo avançar. Precisamos fazer com que a atual
revolta internacional seja uma convocação a todos os anticapitalista para
aproveitarem a possibilidade real que pode se abrir com ela de avançarmos
nas lutas contra a repressão do Estado.

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Nota da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio por jus-
tiça pelo assassinato de Rogério e convocando a todos urgentemente para
fortalecer a luta contra a violência policial. Disponível em: <https://tinyurl.
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Nota do Quilombo Invisível sobre a revolta em Minneapolis e a violên-
cia do Estado racista no Brasil. Disponível em: <https://tinyurl.com/yxou-
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Morte de advogado lembra George Floyd e gera onda de protestos na
Colômbia, UOL, 10 set.2020 : <https://tinyurl.com/y26mglpk>.

26 | Revista Terra sem Amos, ano I, n. 02. out. 2020


Resumo: O filósofo camaronês Achille Mbembe chama de “devir negro do mundo”
o processo de tendencial generalização mundial da condição negra, marcada pela
condição de alvo permanente da violência racializadora dos Estados e do Capital,
implicando em constante despossessão, superexploração, cárcere e execuções. A
pandemia de covid-19 marcou a intensificação da gestão necropolítica dos Estados
evidenciando por todo o planeta o devir negro do mundo, com a promoção da morte
dos mais pobres e racializados condenados para morrer de covid 19. Também agrava
o genocídio historicamente em curso nas periferias brasileiras onde os jovens po-
bres, pretos e periféricos são executados pelas forças policiais e nas cadeias super-
lotadas, que já viviam um cotidiano de massacres e doenças antes da pandemia. O
aprofundamento da política da morte não se dá sem uma crescente da resistência.
Apresento nesse artigo um breve panorama das lutas que têm surgido contra o cár-
cere na pandemia, assim como as lutas contra a violência policial, com foco em São
Paulo. Entendendo que a luta contra o cárcere e contra a violência do Estado ganham
nova centralidade na luta de classes em tempos de devir negro do mundo, convido os
anticapitalistas a fortalecerem essas lutas historicamente tão negligenciadas.
Palavras chave: desencarceramento; violência policial; devir negro do mundo.

Resumen: El filósofo camerunés Achille Mbembe llama “el devenir negro del mun-
do” al proceso de tendencial generalización mundial de la condición negra, marcado
por la condición de objeto permanente de la violencia racista de los Estados y del
Capital, que implica en constante despojo, sobreexplotación, encarcelamiento y eje-
cuciones. La pandemia del covid-19 marcó la intensificación de la gestión necropolí-
tica de los Estados, evidenciando en todo el planeta el negro devenir del mundo, con
la promoción de la muerte de los más pobres y racializados condenados a morir de
covid-19. También agrava el genocidio históricamente en curso en las periferias del
Brasil, donde jóvenes pobres, negros y de la periferia son ejecutados por las fuerzas
policiales y en cárceles superpobladas, que ya vivían una rutina diaria de masacres y
enfermedades antes de la pandemia. La profundización de la política de la muerte no
se produce sin una resistencia creciente. En este artículo presento un breve resumen
de las luchas que han surgido contra el encarcelamiento en la pandemia, así como
las luchas contra la violencia policial, con un enfoque en São Paulo. Entendiendo que
la lucha contra el encarcelamiento y contra la violencia estatal adquiere una nueva
centralidad en la lucha de clases en tiempos del negro devenir del mundo, invito a los
anticapitalistas a fortalecer estas luchas históricamente descuidadas.
Palabras clave: desencarcelamiento; violencia policial; devenir negro del mundo.
CRÔNICAS DE UMA PANDEMIA
NEGLIGENCIADA: DA PULSÃO
DE MORTE DO SUJEITO À NE-
CROPOLÍTICA BOLSONARISTA
Beatriz de Souza Silva1
Marcus Bernardes2
Hárllen Eric Benevides de Castro3

I.
A morte vem como a última colherada de café do pote. Assim inicia El
Coronel no tiene a quien le escriba de Gabriel García Márquez. A necropolí-
tica se relaciona, mais do que com os ditames da razão, aos limites da vida
e da morte. A morte que aflige o sujeito, porém também a “industrializa-
ção da morte” como mecanismo do imperialismo colonial, das revoluções
industriais, das Grandes Guerras Mundiais, do eterno combate às drogas
(consideradas ilegais), das guerras civis, do holocausto, do genocídio da
população negra e indígena, dos pobres, do feminicídio, etc. A morte estru-
tura a noção dos limites da soberania que, por sua vez, envolve a destruição
material das populações.

1 Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei


(UFSJ). Especialista em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana pela Esco-
la Brasileira de Psicanálise – BA, vinculada ao Instituto Brasileiro de Psicanálise.
Docente do curso de Psicologia no Centro Universitário FG – UniFG, faz parte do
Grupo de Estudos Marxistas – GEM (UniFG).
2 Cientista Social e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás
(UFG). Professor de Ciências Sociais do Centro Universitário FG – UniFG. Membro
da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) e líder do Grupo de
Estudos Marxistas – GEM (UniFG).
3 Graduando do curso de bacharelado em Psicologia pelo Centro Universitário FG –
UniFG, faz parte do Grupo de Estudos Marxistas – GEM (UniFG).

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Um velório revela que estamos apodrecendo em vida, segundo a esposa
asmática do Coronel que se alimenta de ilusões. A morte é um fenômeno
biológico, mas também possui um lugar na estrutura simbólica de cada um.
Em 1920, Freud (1996) propõe em seu texto Além do princípio do prazer
uma nova teoria pulsional, na qual postula duas forças opostas: às que le-
vam ao movimento, pulsões de vida, e as que levariam ao estado inorgâni-
co, intituladas como pulsões de morte. A pulsão de morte pode ser pensada
como uma tentativa de retorno a um estado inorgânico. O psicanalista nota
a existência da compulsão à repetição, uma tentativa de retornar ao estado
inanimado, anterior a vida, que se relaciona diretamente à destruição, a
agressividade e a morte. O conceito de pulsão de morte coloca em evidên-
cia, portanto, uma contradição presente no psiquismo, tendo em vista que
uma das finalidades da vida é seu desaparecimento. Dessa forma, existem
relações entre a necropolítica e as pulsões de morte?
Recorrendo à metáfora literária, o Coronel, sujeito sem nome, espera
há décadas por uma carta que irá salvá-lo da pobreza com a sua merecida
aposentadoria, fruto de serviços prestados na guerra. Nas fronteiras do real,
do simbólico e do imaginário onde está a experiência de espera do Coronel
enquanto a esposa definha ao seu lado? Vejam como a morte permeia a vida
através da guerra, da velhice, da fome e da derradeira falta de esperança.
Saindo da metáfora, a política, é vista por Mbembe, como a diferen-
ça posta em xeque pela violação de um tabu (morte, sexualidades, sujeira,
sagrado, etc.) e por que não, uma doença específica, um vírus, uma pan-
demia? Ampliemos agora nossa pergunta. Quais as relações entre necropo-
lítica e pulsões de morte ao analisar, brevemente, a política federal do Brasil
em um estado de emergência decorrente da pandemia da Covid-19?

II.
No Brasil, a pandemia do novo coronavírus, além de gerar uma crise
de saúde pública, intensificou as crises políticas. Enquanto a maioria dos
países discutiam recomendações para o enfrentamento da pandemia da Co-
vid-19, como a implantação do isolamento social e as medidas de higiene,
tendo em vista que a OMS já sinalizara a gravidade em que o surto da
doença se apresentava, o presidente do Brasil realizava declarações aterro-
rizantes. Em rede nacional Bolsonaro, em um dos seus pronunciamentos,

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minimiza o vírus ao afirmar que a Covid-19 não passa de uma “gripezinha”,
questionando até o motivo do fechamento das escolas4.
Há um descompasso muito grande entre as ações do Governo Federal e
os governos estaduais, que a grosso modo, estruturaram comitês estaduais
de enfrentamento à pandemia, seguindo prerrogativas da OMS. O presi-
dente, por diversas vezes, criticou medidas de isolamento social empreen-
dida pelos governadores. A nível federal, além do fornecimento de linhas
de créditos para empresas, foi liberado o auxílio emergencial para trabalha-
dores informais e a população de baixa renda. A proposta do Ministério
da Economia era no valor de 200 reais, mas foi duramente criticada pela
oposição. As tramitações ocorreram durante todo o mês de março de 2020,
e mesmo com um novo valor aprovado pelo Senado Federal (600 reais),
a proposta só foi sancionada em abril. Em setembro o Governo Federal
anunciou a redução do auxílio para 300 reais. Alguns estudiosos apontam
que estamos em uma segunda onda do vírus. Quais impactos que esta re-
dução terá para as populações mais vulneráveis?
Notamos o entrelaçamento de uma conduta política oposta aos princí-
pios de alteridade e, marcadamente, obscurantista. O presidente brasileiro,
por vezes, utiliza em seus discursos termos com a finalidade de depreciar e
invalidar o discurso do outro – até mesmo o da ciência. No mês de março
de 2020, momento em que o número de vidas perdidas no mundo já pas-
savam de quatro mil, Bolsonaro tratou o coronavírus como uma “fantasia”
ao dizer: “Obviamente, temos no momento uma crise, uma pequena crise.
No meu entender, muito mais fantasia a questão do coronavírus, que não é
isso tudo que a grande mídia propala ou propaga pelo mundo todo”5.
No dia 26 de março, em mais um de seus discursos para a imprensa bra-
sileira, Bolsonaro disse: “Eu acho que não vai chegar a esse ponto [situação
dos Estados Unidos]. Até porque o brasileiro tem que ser estudado. Ele
não pega nada”. Neste mesmo dia o Brasil atingiu o marco de 77 mortes
e quase 3000 infectados pela Covid-196. Mesmo com a comprovação do

4 UOL. “Gripezinha”: leia a íntegra do pronunciamento de Bolsonaro sobre covid-19.


Disponível em: https://tinyurl.com/yddwnf7p. Acesso em: 28 de jul. de 2020.
5 G1. Bolsonaro diz que ‘pequena crise’ do coronavírus é ‘mais fantasia’ e não ‘isso
tudo’ que mídia propaga. Disponível em: https://tinyurl.com/udnkw44. Acesso em: 28
de jul. de 2020.
6 LUSA. Coronavírus: Bolsonaro volta a subestimar pandemia e diz que nada acontece com
brasileiros. Disponível em: https://tinyurl.com/yxfn4nw7. Acesso em: 28 de jul. de 2020.

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aumento gradativo dos casos e dos alertas da comunidade científica sobre
a potencialidade de contaminação do vírus, o presidente, por meio de uma
lógica obscurantista, continua a minimizar e banalizar a vida da população
brasileira, sobretudo, daqueles que se encontram nas margens da socieda-
de – sendo estes os mais prejudicados no cenário atual, especialmente, os
povos indígenas, pessoas em situação de rua, quilombolas, camponeses e
a população preta e pobre marginalizada dos grandes centros urbanos. As
formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte, não se res-
tringem ao extermínio material de povos, mas a marginalização que tornam
as pessoas, nos termos de Mbembe “mortos-vivos”. 
Em O mal-estar na cultura, Freud se detém a discutir a complexidade da
relação entre sujeito e sociedade, ressaltando que determinadas manifesta-
ções das pulsões são permitidas ou rejeitadas a depender da norma social es-
tabelecida. Ao localizar os grupos de risco – sobretudo os idosos – é possível
perceber que há uma certa autorização para a morte do outro, perceptível
na declaração do presidente do dia 20 de março a um jornalista: “Vão mor-
rer alguns [idosos e pessoas mais vulneráveis] pelo vírus? Sim, vão morrer.
Se tiver um com deficiência, pegou no contrapé, eu lamento”7. Ademais, é
possível evidenciar na lógica deste discurso feito pelo Bolsonaro uma liga-
ção direta ao conceito desenvolvido pelo Mbembe (2018) de soberania no
contexto do necropoder e ocupação colonial na modernidade, que se trata
da capacidade de definir quem importa ou não, isto é, quem é descartável e
quem não é. Nesta cadeia de significantes o presidente brasileiro sugere que
os idosos e os vulneráveis morrerão de qualquer maneira, e, por isso, não
são tão importantes quanto aqueles que não ocupam este lugar.
No dia 20 de abril, ao ser questionado por um jornalista sobre o nú-
mero de mortes pela Covid-19 no Brasil, Bolsonaro respondeu: “Eu não
sou coveiro, tá?”8. Oito dias após esse discurso realizado pelo presidente,
o Brasil ultrapassou a China em número de mortes, com o total de 5.019
casos, e a forma do presidente brasileiro expressar suas condolências foi di-
zendo: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não
7 UOL. Bolsonaro quer convencer que vida de idoso é pedágio a pagar ao coronavírus.
Disponível em: https://tinyurl.com/ttwge7v. Acesso em: 30 de jul. de 2020.
8 GOME, P. H. ‘Não sou coveiro, tá?’, diz Bolsonaro ao responder sobre mortos por
coronavírus. Disponível em: https://tinyurl.com/ybq7bcpy. Acesso em: 28 de jul de 2020.

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faço ilagre”9 Uma questão fundamental para essa análise, evidenciado pelo
conceito de pulsão de morte é que há um caráter originário de destruição
que aponta para uma tentativa do sujeito de se colocar como alvo da agres-
sividade alheia, enunciada na última fala em que o presidente traz o foco
para si, mesmo que na problemática em questão são as vidas de milhões de
brasileiros que estão em risco – especialmente dos mais pobres – retirando
assim sua responsabilidade.
O lugar simbólico de vítima da agressividade (da facada à perseguição
midiática) torna-se o lócus central da fabricação de inimigos na necropo-
lítica bolsonarista. A noção ficcional do inimigo, pensada por Mbembe, é
abordada a partir da política (trabalho da morte) e da soberania (direito de
matar) em um jogo distante de qualquer premissa democrática. Adversários
políticos tornam-se inimigos. A alteridade é significada como ameaça aos
valores centrais do conservadorismo ultraliberal que vê na família, na pátria
e na religião as bases morais da sociedade. Contudo, apesar de evidente,
vale ressaltar que esta família não inclui uma dimensão plural como, por
exemplo, os casais homoafetivos.
Seguindo Georges Bataille, Achille Mbembe diz que “a sexualidade está
completamente associada à violência e à dissolução dos limites de si e do
corpo por meio de impulsos orgíacos e excrementais” (MBEMBE, 2016,
p. 126). Envolvem limites e tabus, portanto. Quando Freud desenvolve o
conceito de pulsão de morte, referia-se a uma energia libidinal representada
pela tendência à agressividade e à destruição presente na constituição do su-
jeito (FREUD, 1996). Tendência esta que pode ser visualizada de diferentes
formas na sociedade contemporânea, como por exemplo, a LGBTfobia –
violência direcionada às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e
travestis. Este tipo de violência é compreendida como uma das principais
características dos grupos conservadores (neo)fascistas e fundamentalistas
religiosos que estão crescendo no Brasil.
O bolsonarismo é um exemplo deste tipo de grupo que possui ideais
que vão contra aqueles que fogem da heterocisnormatividade, cujo o seu
líder já deixou claro que é homofóbico com muito orgulho10 e que, para ele,
9 O GLOBO. Com 5.017 mortes por Covid-19 em 42 dias, Brasil ultrapassa a China.
Disponível em: https://tinyurl.com/yy5jmfmk. Acesso em: 31 de agos. de 2020.
10 CATRACA LIVRE. ‘Sou homofóbico, sim, com muito orgulho’, diz Bolsonaro em
vídeo. Disponível em: https://tinyurl.com/y8s327jo. Acesso em: 30 de jul. de 2020.

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o público LGBT não tem nada a oferecer para a sociedade11. Dessa forma,
Bolsonaro e sua necropolítica deixa em evidência que, para ele, esta comu-
nidade não importa e, se não importa, é descartável. Essa é a mesma lógica
higienista presente no estado exceção e no racismo de estado categorizados
por Mbembe (2018) como alguns dos fenômenos que fundamentam a nor-
mativa do direito de matar. O discurso conservador sobre o Brasil é enclau-
surado na ideologia dominante que esconde os aspectos multi étnicos, a
diversidade sexual e a diferença cultural, além da religião “oficial” que não
tolera nada que fuja da mitologia judaico-cristã.
No dia 02 de junho, ao conversar com apoiadores que o aguardavam
na portaria do palácio da alvorada, Bolsonaro volta a banalizar a morte de
mais de 31.199 pessoas vítimas da Covid-19 no Brasil. Quando pergunta-
do sobre o que diria aos enlutados o presidente declarou: “Lamento todos
os mortos, mas é o destino de todo mundo”12. No dia 04 deste mês o Brasil
havia registrado o maior número de casos em um único dia, 1.473 óbitos.
Nesta mesma semana o governo tornou a divulgação dos dados sobre a
Covid-19 menos transparente. O painel que a priori costumava apresentar
diversos índices e gráficos sobre a doença passa a expor apenas os dados das
últimas 24 horas, sem trazer referências sobre o número de mortes ocorri-
das. Outra questão foi a alterações em relação ao horário de divulgação, o
que ocorria às 19 horas passou a ocorrer às 22 horas13. Tais atitudes expli-
citam o desejo pela desinformação da população sobre os reais impactos
da Covid-19 pelo presidente brasileiro, sendo uma lógica contrária ao livre
acesso à informação como pressuposto democrático, embora uma prática
comum em um estado de exceção.
Nota-se que mesmo com todos os artifícios coercitivos utilizados como
normas, leis e a própria religião, a pulsão de morte, por meio da agressivida-
de, continua encontrando formas de manifestação, provocando, na maior
parte das vezes, atitudes e comportamentos intolerantes e violentos de cer-
tos movimentos direcionados a inimigos ficcionais. Essa manifestação se
11 G1. ‘Estou me lixando para esse pessoal’, diz Bolsonaro sobre movimento gay. Dis-
ponível em: https://tinyurl.com/4ny36k3. Acesso em: 30 de jul. de 2020.
12 O SUL. “Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo” diz   Bolsona-
ro sobre mortes por coronavírus. Disponível em: https://tinyurl.com/y6783dob. Acesso
em: 28 de jul. de 2020.
13 ESTADO DE MINAS. Coronavírus: Em meio à omissão de dados oficiais, Brasil
registra 525 mortes e 19 mil casos em 24 horas. Disponível em: https://tinyurl.com/
yyshamwq. Acesso em: 27 de agos. de 2020.

34 | Revista Terra sem Amos, ano I, n. 02. out. 2020


torna ainda mais proeminente quando encontra uma certa autorização e/ou
incentivo por uma figura de autoridade. Um exemplo claro disso foram as
invasões e depredações de hospitais realizadas por apoiadores do presidente
após sua fala no dia 11 de junho, em que incentivava a invasão nos hospitais
para verificar se os leitos estavam realmente ocupados14.
Segundo Freud (2020), o sujeito conserva em sua essência uma impor-
tante cota de agressividade em que, para viver em sociedade, ele guarda e
espera uma provocação para manifestá-la, por vezes, sem motivo, direcio-
nando-a ao outro. Em 1930, Freud aperfeiçoa a teoria das pulsões e indica
o supereu como catalisador de toda agressividade. Esta instância psíqui-
ca foi apresentada pelo psicanalista como aquela que cumpre a função de
aumentar as exigências para o eu e averiguar se está cumprindo o que é
determinado no campo do ideal. O supereu atua em forma de consciên-
cia, auto-observação e vigia, que se expressa através de determinantes como
“você deve ser assim”. Por isso, ela pode ser pensada como a instância que
internaliza os imperativos sociais. Assim, frente às exigências imposta ao
sujeito para renunciar toda a agressividade, a saída encontrada por vezes é
de identificar-se com ela.

III. 
Neste ensaio, foram analisadas declarações públicas do presidente du-
rante os meses de março a junho do ano de 2020. As frases citadas tiveram
ampla divulgação no país e serviram de base para a análise do entrelaçamen-
to entre a pulsão de morte refletida na estruturação de uma necropolítica
bolsonarista.
Através da ligação cruel que se estabelece entre conservadorismo, ultra-
liberalismo e estado de exceção, o governo Bolsonaro é exemplificado nas
manifestações da pulsão de morte por meio da agressividade, uma vez que,
ao direcionar o seu ódio para alguns grupos (minorias sociais), desenvol-
ve uma política afastada das premissas de um Estado de bem-estar Social.
Tais efeitos se potencializam em contextos de extrema desigualdade social.
Como afirma Frantz Fanon a vida é percebida “não como o florescimento
ou desenvolvimento de uma fertilidade essencial, mas como uma luta per-

14 CATRACA LIVRE. Hospital é invadido e depredado após Bolsonaro incitar apoiado-


res. Disponível em: https://tinyurl.com/y4ajsrwg. Acesso em: 30 de jul. de 2020.

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manente contra a morte atmosférica” (FANON, 2020, p. 15).  A morte
incompleta de quem nos fala o psiquiatra martinicano se materializa na
fome endêmica, no desemprego, na falta de projetos de futuro, no comple-
xo de inferioridade e, por fim, destacamos com maior ênfase neste ensaio,
nas epidemias.
Frente ao questionamento de Albert Einstein sobre a existência da ani-
quilação das ameaças de guerra, Freud (2020) nos indica em Por que a
guerra? que a pulsão de morte obtém seu caráter destrutivo quando se di-
rige para fora, pois, quando as forças se voltam para a destruição do mun-
do externo, o organismo se alivia. Assim, a pulsão de morte, por meio da
agressividade, se coloca como o maior obstáculo para a existência de uma
sociedade verdadeiramente democrática, na medida em que ela é desagre-
gadora das relações sociais. Lembremos ainda que a pulsão de morte, para
além desta relação circunscrita com a agressividade, firma um pacto com a
manutenção de poder presente nas relações cotidianas.
Desse modo, a lógica agressiva presente no governo Bolsonaro é a mes-
ma que transpassa as soberanias descritas por Achille Mbembe “cujo pro-
jeto central não é a luta pela autonomia, mas a instrumentalização gene-
ralizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos
e populações” (2018, p. 10). As mortes são anunciadas diariamente nas
mídias de comunicação. Em uma pandemia negligenciada, além das crises
de saúde pública, ministerial e política, as falas e condutas do presidente do
Brasil ao longo dos meses formam uma crônica de banalização da morte.
Já passamos da metade do ano de 2020, não temos Ministro(a) da Saúde e
são mais de 130 mil óbitos.

Referências
FREUD, S. Além do princípio do prazer. In: STRACHEY, J. Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago, 1920/1996.
FREUD, S. O mal-estar na cultura e outros escritos. Coleção Obras
Incompletas de Sigmund Freud, Tradução de Maria Rita Salzano Moraes,
Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
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FANON, F. Medicina e Colonialismo. Editora Terra Sem Amos: Bra-
sil, 2020.
MBEMBE, A. Necropolítica. In: Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, Rio
de Janeiro, n. 32, 2016, p. 123-151.
MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exce-
ção, política de morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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Resumo: O presente ensaio investiga, à luz da Psicanálise e Ciências Sociais, declara-
ções públicas do presidente do Brasil durante os meses de março a junho do ano de
2020. As falas e condutas do presidente ao longo desses meses formam uma crônica
de banalização da morte com ampla divulgação no país e serviram de base para a
análise do entrelaçamento entre a pulsão de morte refletida na estruturação de uma
necropolítica bolsonarista. A partir disso, nota-se a ligação cruel estabelecida entre
conservadorismo, ultraliberalismo e estado de exceção no bolsonarismo durante a
pandemia da Covid-19. As manifestações da pulsão de morte são evidenciadas por
meio da agressividade, uma vez que, ao direcionar o seu ódio para grupos minoritá-
rios, o presidente desenvolve uma necropolítica afastada das premissas de um Esta-
do de bem-estar Social.
Palavras-Chave: Necropolítica. Pulsão de Morte. Pandemia.
Resumén: Este ensayo investiga, a la luz del Psicoanálisis y las Ciencias Sociales, las
declaraciones públicas del Presidente de Brasil durante los meses de marzo a junio
del año 2020. Los discursos y la conducta del Presidente a lo largo de estos meses
forman una crónica de banalización de la muerte con amplia difusión en el país y sir-
vió de base para el análisis del entrelazamiento entre la pulsión de muerte reflejada
en la estructuración de una necropolítica “bolsonarista”. A partir de esto, notamos el
vínculo cruel establecido entre conservadurismo, ultraliberalismo y un estado de ex-
cepción en el “bolsonarismo” durante la pandemia de Covid-19. Las manifestaciones
de la pulsión de muerte se evidencian mediante la agresividad, ya que, al dirigir su
odio hacia grupos minoritarios, el presidente desarrolla una necropolítica alejada de
las premisas de un Estado del Bienestar.
Palabras-clave: Necropolítica. Pulsión de Muerte. Pandemia.

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