Cor Adormecida - Versão E-Book
Cor Adormecida - Versão E-Book
Cor Adormecida - Versão E-Book
ISBN: 978-85-4160-070-5
1ª Edição
Junho 2012
2ª Edição
Fevereiro 2014
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Jo A-mi
São Paulo
2ª Edição - 2014
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Mircea Eliade
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ADVERTÊNCIA
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ÍNDICE
PÁGINAS DE ENTRELINHAS-----------------------------------------p.116
O patinho feio-----------------------------------------------------------------p.117
A raposa e o gato-------------------------------------------------------------p.119
A esperta Gretel--------------------------------------------------------------p.120
O Dr. Sabe-Tudo-------------------------------------------------------------p.121
A raposa e os gansos---------------------------------------------------------p.123
Dona Sombra------------------------------------------------------------------p.124
O gato de botas---------------------------------------------------------------p.125
O jovem gigante--------------------------------------------------------------p.126
Os cisnes selvagens----------------------------------------------------------p.127
Jorinda e Joringel-------------------------------------------------------------p.128
O rei perverso-----------------------------------------------------------------p.129
O soldadinho de chumbo----------------------------------------------------p.130
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As três fiandeiras-------------------------------------------------------------p.131
Mamãe Sabugo---------------------------------------------------------------p.133
Mãe Hilda---------------------------------------------------------------------p.134
Hans, o palerma---------------------------------------------------------------p.135
Rapunzel-----------------------------------------------------------------------p.136
SOBRE A AUTORA..........................................................................p.139
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ele...; acho que era apaixonada, sim! Às vezes é melhor não dar
ouvida às dúvidas e até escondê-las de si mesma. Mas me
incomodam os boatos sobre Id e algumas alunas. Sinceramente,
custo a acreditar que isso seja verdade. “Desde que te conheci, só
você”, ele repete; e um fio relutante de pensamento alfineta: “se ele
fez com você, por que não faria com outras novamente”. Deixa pra
lá, melhor esquecer.
Decidi ficar a maior parte do tempo escrevendo na
floricultura: enraizando e fertilizando as palavras do jeito que faço
com as flores. Vez por outra, lendo em voz alta para um conjunto
resistente de orquídeas todos os argumentos que preparei para
defender meu trabalho acadêmico. Elas são tão compreensivas!
Depois, mudo as coisas de lugar, limpo, cuido e convivo com esses
pequenos seres. Daí aconteceu: no início da primavera de 1988
diante de uma manhã ensolarada, eu voltava em direção à minha
casa para pegar um livro que havia esquecido sobre a mesa no
quintal. Eu estava exultante porque o argumento do segundo
capítulo havia se transformado num texto de 45 páginas. Com vinte
e sete anos eu sonhei com minha formatura. Não estaria com meus
colegas, não dividiria a festa com Sofie – como havíamos
planejado -, mas me formaria. Depois de quase doze meses
afastada das atividades acadêmicas eu finalizaria o processo.
Contudo, a ressaca do tempo embaralhou tudo.
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- O que não fez. Nós estamos aqui há horas e você ainda não disse
uma palavra. – gostei quando ele tocou meu queixo.
- É claro que eu disse. – sorriu - Não..., eu não disse. – rimos
juntos.
Id beijou-me a mão e eu fiquei um pouco envergonhada,
não propriamente pelo beijo, mas porque deixei transparecer certo
nervosismo. Tentando disfarçar, perguntei:
- Você anda por aí beijando a mão de todas as alunas dessa
universidade? – deslaçando minha mão das dele.
- Não só desta. Quer dizer: não! Só desta – consertou a pontuação
da resposta.
- O quê?
Ele deu uma gargalhada e me confessou meses depois que
havia rido da minha inexperiência e insegurança. Soube naquele
instante que eu me interessara por ele, mas nada comentou. E
adiantou-se:
- Disse para provocar. Você gostaria de ir ao cinema comigo?
- Para ver que filme? – perguntei esperando qualquer resposta.
Embora ele tenha me respondido com uma pergunta.
- O que está em cartaz?
- Você me convida sem saber o filme? Que espécie de convite é o
seu? – perguntei participando da brincadeira.
- Sou professor desta universidade. Por aqui não é muito bem
quisto um professor e uma aluna juntos, entende? Pensei no cinema
porque teríamos mais tempo e espaço para conversar. Aliás, uma
pergunta: você já fez dezoito anos?
O fato é que aos vinte e sete anos, quando escrevia a
monografia de conclusão de curso, caí no meio de uma rua,
próxima à minha casa e tudo pareceu cessar: sons, cores,
sensações, movimentos. Parentes, colegas e amigos ficaram
atônitos. Como era possível que alguém dormisse, simplesmente, e
não acordasse mais? Esta era a pergunta que assaltava a todos.
Numa linda manhã na pequena alameda próxima à Rua dos
Pinheiros - cujos entroncamentos tão estreitos mal deixavam passar
dois automóveis emparelhados, com casas residenciais de muros
baixos e comércio local doméstico, onde mulheres levavam seus
filhos para brincarem na praça que podia ser vista ao final da rua,
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desculpas por ligar dando tal notícia, mas não havia encontrado
outra opção. Ela agradeceu-lhe mesmo assim.
Os dias correram deixando minha família atônita. Minha
mãe, irmãos, marido revezaram-se no hospital universitário
tentando guardar esperança diante das notícias que recebiam.
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a colocaria a par de tudo e ela, por sua vez, ficaria agradecida por
ter sido cuidada todos esses anos pelo esposo e professor emérito
de Física. Ele lhe contaria o que o mundo passara e de como as
coisas haviam mudado. Existiriam muitas noites e muitos dias para
serem vividos só nos seus relatos, e eu, como desejaria qualquer
mulher, cairia em seus braços protetores aguardando novas
revelações.
O entusiasmo de Id foi declinando, pois a realidade
mostrou-se mais dinâmica que sua pobre imaginação – talvez
menos romântica. Teve medo da mulher que via ali, à sua frente;
correu para segurar-me firme, mas como um animalzinho arredio
soltei-me dos seus braços tão logo fui abraçada.
- O que está acontecendo? – gritei - Por que a minha casa está
dessa forma? E...
Uma catástrofe: ainda não tinha reparado na minha
aparência. Ao voltar para a sala um relance de espelho denunciou a
mudança. Não consegui terminar a frase. Olhei. Olhei
demoradamente. Até então só arranjara tempo para ver o mundo, as
pessoas, os objetos, os sons. Olhei agora para Id - mas há poucos
minutos atrás ele não estava assim. Ou estava? Enlouquecera? Não
sabia ainda se chorava ou morria. Chorei. Chorei muito. Entre
lágrimas persistentes, tentava me ver um pouco mais no espelho: a
imagem embaçada pelas lágrimas desfigurava o meu rosto,
tornando os movimentos flácidos e assustadores. Chorei mais
ainda. Fiquei sentada no chão olhando e chorando sobre a imagem
que não via mais. O corpo estava cansado. Pedi para deitar-me. Id
me levou até uma cama de solteiro e enrolou-me em meio aos seus
lençóis desfeitos. Meu rosto azeitado na dor estava vermelho e
inchado. As mãos tremiam levemente com pequenos espasmos
contínuos. Dimitrius também não resistiu e chorou silenciosamente
- no seu conto de fadas particular havia esquecido de esconder o
príncipe que não resistira ao tempo: seus cabelos estavam
embranquecidos e ralos, as olheiras profundas, a barriga saliente e
o corpo mais franzino que antes. Quando eu dormi, ele tinha
apenas 42 anos e estava no auge de seu potencial físico e
intelectual: forte, alto, cabeleira farta e presunçosa, livro para ser
publicado e menções honrosas; colecionava admiradoras na
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emoção com a cena – o que não deixou de ser estranho até para si
mesmo.
Toquei e senti o cheiro do cabelo de mamãe – para quem
a velhice não abrira mão. O rosto estava mais enrugado com
olheiras grossas e escuras. A quantidade de sardas multiplicadas no
corpo desenhava variados tamanhos de manchas dálmatas. O olhar
e o sorriso, entretanto, permaneciam -, como costumava fazer em
tempos remotos. Tinha o mesmo cheiro. Apertei-a com todas as
forças. No sentido oposto fui puxada por meu irmão que ainda
guardava um ar pueril por trás da barba cheia: as lágrimas correram
em nossos rostos. Dimitrius descruzou os braços e foi até a cozinha
fazer mais chá. Agora, sentados e apreensivos, olhamo-nos com ar
de euforia:
- Eu não acredito que você está aqui -, disse minha irmã com voz
emocionada.
- Nem eu - respondi, segurando a mão do meu irmão e de minha
mãe.
- Eu nunca perdi a fé, minha filha. Todas as noites, durante esses
vinte anos, todas as noites eu rezei pra que você acordasse. – falou
comovida.
- Mãe, eu não sei, será que eu dormi, simplesmente?
- Os médicos disseram que sim, e você não é caso único -
arrematou minha irmã -, houve mais mulheres assim.
Da cozinha ressoou o barulho de vidro estalando e
quebrando ao chão. Ninguém ligou. Id entrou com uma bandeja e
xícaras dispostas para o serviço de copa. Esqueceu-se das xícaras
ainda sujas de horas antes e não pode colocar a bandeja sobre a
mesa. Serviu, então, um a um. Outrora um militar, agora um
mordomo inglês: decidido e silencioso. Serviu a todos e retirou-se
para a cozinha. Ninguém estranhou. Tomaram chá e, entre um gole
e outro, mamãe apertava-me contra o peito. Eu pus a xícara sobre
as outras que estavam à mesa, sentei no colo da minha irmã e
beijamo-nos e beijamo-nos e beijamo-nos ainda mais. Meu irmão,
fingindo ciúmes, apontou para o próprio colo sugerindo que eu não
o preterisse. Pulei em seus braços e disse que tinha mudado pouco.
“Apenas a barba, apenas a barba”, repeti, “o faz diferente”. Ele riu
fartamente e respondeu:
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O pecado mora ao lado (nota da autora).
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Tradução: Eu te amarei sempre/ com um amor que é sempre verdadeiro/
e quando as coisas que você planeja/ precisarem de uma mãozinha, eu
entenderei/ sempre, sempre / Os dias podem não ser sempre justos/ mas
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eu estarei sempre aqui/ não apenas por uma hora/ não apenas por um dia/
não apenas por um ano, mas sempre... (nota da autora).
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refletia que era por prestar a máxima atenção aos seus relatos que
meu mundo criava outros e mais outros mundos para mim. Entre
dez e onze anos vi minha mãe discutir com ela por causa da
floricultura – após muitos anos remoídos pela saudade de vovô,
ela havia resolvido trabalhar, mas mamãe ficou contrariada
porque tal empreendimento exigiria tomar dinheiro da poupança.
Escondida em meu quarto, vi pela porta entreaberta vovó
responder: “e quando vou poder gastar meu dinheiro? Depois que
eu morrer?” Mamãe retrucou com palavras que foram abafadas
pela densa coluna de cimento armado que separava a cozinha dos
outros compartimentos da casa. Soube que a conversa tinha
acabado quando vovó fez o que sabia como ninguém: calar-se – o
que irrita profundamente minha mãe. Ri com certo sarcasmo da
situação. Ouvi a porta bater e vovó atravessou o canteiro próximo
à minha janela. Ela morreu dez anos depois do meu sono, aos
oitenta e oito anos, dormindo: o coração idoso resolveu parar de
funcionar. Fui seduzida pelas flores e vovó foi a principal
responsável. O cheiro da terra, o movimento frenético das
minhocas, a água escorrendo pelas raízes, a diferença entre essa e
aquela planta: anos de aprendizado. Assim, a floricultura foi para
mim, também, um ótimo investimento. Como filha mais velha,
sempre ficava mais tempo sozinha. Meus irmãos, entre arengas e
carinhos, eram a companhia um do outro. Papai tinha-se ido,
mamãe precisava costurar mais que antes: só me restavam os
livros e a companhia de vovó na floricultura. No início a desculpa
para minha ausência de casa era fazer companhia à vovó –
mamãe, mesmo contrariada com o empreendimento, permitia que
tivesse trânsito livre -, até eu não precisar dizer mais nada. Aos
poucos, a floricultura tornou-se uma ocupação diária.
Acompanhei planos, investimentos, sucessos e fracassos. As flores
chegavam nas carrocerias abertas dos velhos caminhões. Havia os
períodos entre estações, despesas e preocupações; mas também
existia o contato com as flores, companheirismo entre mim e vovó,
e lucros. Depois de alguns anos eu me tornei sócia – discutíamos e
decidíamos juntas o que fazer no dia a dia – e cúmplice de vovó:
as fragilidades da idade faziam-na esquecer de alguns
compromissos, chegar mais tarde ao trabalho, intensificar manias
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- Como sempre o fiz, serei direto. Sua esposa não está mais no
hospital. – disse o diretor.
- Como..., para onde a levaram? Nós temos um acordo. –
respondeu indignado.
- Deixe-me terminar. Não a levamos a lugar nenhum.
Simplesmente sumiu do hospital e ninguém a viu sair. A
enfermeira foi trocar o soro da manhã, como é feito todos os dias, e
encontrou a cama vazia. – A raiva sufocou a respiração de Id. Não
conseguia atravessar o corredor de um hospital porque fora barrado
por um segurança que julgava quase um amigo, mas sua esposa
sumira sem ninguém ver. Tentou gritar com o robô disfarçado de
médico à frente, mas não conseguiu. O segurança tentou interpor-
se à conversa, porém, para sua decepção, Id não o enfrentou. Saiu
imediatamente do hospital. Andou mais um pouco até o ponto que
circundava a linda fonte com azulejos cor anil. A água corria fresca
com um som tranquilo. Há pouco mais de dois metros um
jardineiro segurava uma pá e saco de adubo. Intrigado com a
atitude que presenciara durante aquela manhã de quarta-feira,
lembrou-se de mim que há pouco falara com as flores e seguira a
passos lentos pela rua principal. “O dia vai ser longo!”, pensou,
mas resolveu perguntar:
- Senhor, senhor, eu posso ajudar? Senhor! – não adiantou. Id saiu
em direção ao estacionamento. O jardineiro ficou a observá-lo
jogar-se diante de um táxi que quase o atropelou. Balançou a
cabeça e cavou a terra: tentava aumentar a população de
margaridinhas.
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mesmo olhar para pessoa alguma, a intrusa gritou, com voz furiosa
e ameaçadora: - Quando tiver quinze anos, a princesa espetará a
mão em um fuso de fiar e cairá morta. E, sem dizer mais uma
palavra sequer, virou as costas e foi-se embora. Todos os presentes
ficaram estarrecidos, mas a duodécima fada, que ainda não havia
pronunciado o seu voto propício, adiantou-se e, como não tinha
poderes para anular o prognóstico da fada perversa, mas apenas
abrandar o seu efeito, disse: - Não será a morte que a atingirá, e
sim um sono profundo, que imobilizará a princesa durante cem
anos. O Rei, ainda esperançoso...” - a campainha tocou.
Fechei as páginas dos Irmãos Grimm e fui atender o
portão: era um entregador de flores. Sorri e pedi que esperasse.
Voltei com algumas moedas na mão. Recebi lindas margaridas que
estavam frescas como a manhã em que foram colhidas. Apertando-
as contra o peito, lembrei-me da floricultura. Uma solitária lágrima
correu-me o rosto até cair, incólume, sobre um envelope laranja. O
barulho da pequena queda fez com que atentasse para o papel. Pus
as margaridas sobre a mesa, puxei o envelope e li: “quem sabe, um
reinício... das flores, da amizade. Sofie”, e um número de telefone
abaixo da assinatura.
Beijei o cartão e fui até à cozinha buscar um vaso. O
telefone tocou. Sem importar-me, deixei que o aparelho buzinasse
meus ouvidos moucos. Fui até o quintal e pus as flores no meio da
mesa. Afastei-me um pouco a fim de medir as distâncias entre o
centro e as bordas do quadrado de madeira onde havia colocado as
lindas margaridas. O telefone insistiu, causando aborrecimento:
deixei que continuasse gritando. Fui à mesa e afastei
milimetricamente o jarro: estava certo agora. O cartão tinha
deixado na sala de estar: lembrei-me.
Os primeiros meses em casa haviam dado certa ordem à
minha vida: tinha meu quarto, retomara a escrita no diário, cuidava
do jardim, recebia parentes, assistia tevê e relia trechos de alguns
livros. Resgatei o cartão de cima da mesa, quando o telefone tocou
novamente: “alô”, falei ofendida por atrapalharem um momento
tão importante. Aparentemente era para Id, pois foi o primeiro a ser
mencionado, depois entendi por que devia ter negligenciado o
toque: a secretária administrativa do hospital pretendia marcar uma
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todo esse tempo longe uns dos outros. O que tanta distância e
tanto tempo podem nos trazer?
Do lado de dentro do vidro, sozinha, a mosca encarava-
me com todos os olhinhos que Deus lhe dera. Estática e
contundentemente concentrada, mal piscava ou mexia as asinhas.
Eu a olhava fixamente. Pensei: “e se eu vivesse do lado de dentro
do vidro, não estaria igualmente sozinha e olhando com muitos
olhinhos para fora?” Um ônibus passou e atravessou barulhento
todos os departamentos daquela quadra. Assustada, voltei-me para
trás, toquei a porta e saí. Havia bastante fumaça e o som do motor
ainda barulhava seus ecos. Como uma sobrevivente da guerra que
sai viva do meio das cinzas, atravessei a rua e deixei que a mosca
me visse partir sem despedidas. Um transeunte, que também
sobrevivera à fumaça, saiu a resmungar do motorista. Aproveitei
para perguntar onde ficava a biblioteca central. Informada e
conduzida por alguns metros, atravessei algumas ruas, uma
pequena ponte de madeira sobre uma água esverdeada e cheia de
peixinhos laranja, até chegar a uma enorme rampa que ligava a
porta principal da biblioteca ao mundo externo. Os sensores
tocaram logo que entrei – mas eu nada carregava no corpo além
das roupas e dos pensamentos. O segurança de plantão aproximou-
se e pediu desculpas – explicou que o sistema estava com defeito.
Aproveitei para pedir-lhe explicações sobre os setores em que
estava dividido aquele prédio. Ele explicou que a biblioteca tinha
três andares e um anexo - que estava para ser inaugurado. O térreo
era composto de secretarias administrativas, auditório e
hemeroteca; primeiro, segundo e terceiro andares de livros e
trabalhos de conclusão de curso organizados por áreas respectivas.
Em cada andar havia espaços computadorizados para consulta e
acesso livre à internet, bem como imensos armários de
catalogação.
Atravessei o longo corredor que separava os setores do
andar e senti-me maravilhada com tantos livros. À frente de cada
corredor existiam elevador e escada de acesso para deficientes
físicos. Também exposto ali, ficava um mapa da biblioteca para
que os visitantes soubessem locomover-se dentro do recinto. Parei
em frente a um desses mapas e segui com o dedo indicador as
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“Somente ela, senhor!”, vociferou. E sua voz foi tão forte e cheia
de autoridade que ele não questionou e nem eu protelei. Separamo-
nos. Entrei.
A reunião foi tensa e longa. Impaciente, Dimitrius já havia
resolvido diversos problemas por telefone, e, cheio de papéis,
pontas de cigarros e caneta, incomodou a passividade das pessoas
no corredor da recepção. O vigilante da ala administrativa já havia
chamado atenção sobre o fumar, mas Id pouco se importava.
Tempos depois, eu saí quase correndo da sala de audiências.
Dimitrius guardou tudo na pasta, jogou o cigarro no chão
(apagando-o com um dos pés) e correu ao meu encontro. Eu acenei
qualquer coisa dando a entender que não queria falar. Nós pegamos
o ônibus que circulava pela universidade até chegarmos ao bloco
de física. Calados, fazíamos ressonar fortes e intensas nossas
respirações – não fosse o barulho ao redor, certamente ecoariam
nas paredes enlatadas do automóvel. Descemos. Id segurou minha
mão. Andamos até o final do corredor quando a secretária do
departamento interveio:
- Professor, Gregor está à sua espera. – visivelmente constrangida.
- Mas ele disse que viria só amanhã – respondeu alto,
arrependendo-se. Pôs-se à minha frente como uma muralha
construída para limitar as linhas fronteiriças. Beijou meus lábios e
disse: - Querida, preciso resolver um assunto. Nada importante,
mas... – titubeou; - ...vou ter que resolver. Você entende? - Eu mal
percebi a presença dele naquele momento, tampouco o nervosismo
e frisson característico de seus pés a baterem inconstantes no chão.
“Vá encontrar Sofie!”, ele disse. E eu fui.
Cheguei a casa no final da tarde. Dimitrius ainda pôde
ouvir as palavras de despedidas de Sofie. Assistia a um jogo de
futebol da seleção nacional e estava chateado por isso. Passei pela
sala, toquei-lhe o ombro e entrei para meu quarto – onde preferia
dormir sozinha. Saí do quarto com uma toalha na mão, tranquei-me
por alguns minutos no banheiro até espalhar um doce perfume de
alfazema pela casa. Fui para a cozinha e demorei-me por lá. Apesar
da curiosidade, Id preferiu dar atenção à partida de futebol que
estava nos seus minutos finais. O aroma quente de café fresco
misturou-se à alfazema, dando leveza ao ar. Eu peguei duas
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- Oh! Por favor, fale-me tudo que puder. Eu preciso muito saber
como aconteceu. Os detalhes..., por favor! – supliquei com voz
nervosa.
- Eu estava voltando para casa com minha filha Anita. Sabe, aquela
que veio aqui. Ela é artista hoje, até já expôs seus quadros. Ela tem
uma filhinha linda, Gabriela: é minha paixão.
- Sim – respondi tentando disfarçar a impaciência.
- Pois bem. Ela havia se machucado e chorava muito. Eu me
ajoelhei para abraçá-la e ver o ferimento.
- Eu me lembro de um choro do outro lado da rua. Sim, sim. Havia
uma criança e uma senhora. Olhei rapidamente porque me chamou
atenção o choro alto. Mas estava tão concentrada no meu mundo! –
respirei fundo e longamente.
- Sabe, eu sempre admirei a senhora.
- Você, por favor! – interrompi.
- Sim, sim. Sempre a admirei à distância. Tenho certeza que jamais
soube. Naquela época era pouco comum ver por aqui mulheres
como você: independentes, joviais, felizes.
- Nem tanto... – falei baixinho.
- Avistei-a de longe e lembro que carregava flores numa mão,
papéis na outra. Você tinha um xale que esvoaçava ao vento e a
deixava bastante elegante. Acho que tinha a idade da minha filha.
Vinte e três anos?
- Não. – falei sorrindo – Tinha vinte e sete anos.
- Tinha cara de mais menina. Não vi exatamente o momento de sua
queda. Já a vi no chão. As pessoas se aproximaram aos poucos.
Nicolau foi o primeiro a chegar.
- Certamente, dona Susan. – falei um pouco cansada dos rodeios
daquela conversa. Abri a boca, abafando-a em seguida com a mão.
- Minha conversa está um pouco maçante, não é? – disse Susan.
- Não, não se trata disso. – respondi – É que não dormi esta noite.
Realmente está ótima nossa conversa. Continue, por favor.
- O que mais me chamou atenção não foi a queda, porque pensei
que tinha desmaiado: o que não deixa de ser comum. Mas me
chamou atenção a imagem que veio com a queda: enquanto as
margaridas eram pisoteadas pelas pessoas que se aproximavam de
você, um vento forte começou a soprar naquele instante, como um
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- Você não teria a coragem de... Você não tem o direito! – disse
apontando o dedo indicador para a ponta do meu nariz.
- Eu tive e ainda tenho esse direito sim senhor. O corpo é meu,
serei eu a arcar com todos os benefícios e danos dessa gravidez e,
além do mais, é capaz de, no final das contas, eu me
responsabilizar por tudo na vida dessa pequena criatura dentro de
mim. – falei com autoridade.
- O que você quer dizer com isso? Você sabe a quanto tempo eu
sonho em ser pai, em cuidar de um filhotinho só meu. Acho que se
eu pudesse ter filhos, já teria até engravidado. – disse batendo forte
no braço da poltrona.
- Eu quero dizer que apesar de você querer ser pai, eu nunca tive o
desejo de ser mãe. Acho que isto deve contar para alguma coisa, ou
estou enganada? – ele baixou o olhar – E ter um filho no nosso
casamento pode ser apenas uma válvula de escape, ou também
estou enganada sobre isso? – saí da sala enfurecida. Sentei-me à
mesa do quintal. Ele me seguiu e ficou de pé um instante, próximo
à minha cadeira. Depois sentou e replicou:
- Cora, você tem razão. Você tem razão. É verdade, não somos o
casal mais apaixonado do mundo e já estou um pouco acabado –
disse batendo na barriga – mas nós nos entendemos, você me
conhece, eu te conheço. O que mais é preciso para que uma relação
dure? – perguntou fazendo um leve carinho no meu queixo.
- Que haja amor, que a paixão nos mova!
- Você é muito romântica mesmo! – riu acariciando meu pescoço.
– vamos, vamos. Como se chamará nossa pequena, você já decidiu
isso também?
- Gosto de Alice.
- Como a Alice dos contos? A perseguidora de coelhos? –
satirizou.
- Sim. – falei séria e olhando diretamente em seus olhos.
- Concordo. – respondeu.
Depois ele perguntou sobre os sonhos do desmaio. Tentei
disfarçar dizendo que não tinha importância – mas o nervosismo do
dia anterior e a repetição do que havia lhe contado, denunciaram o
disfarce. Então eu disse que a noite de sono havia levado muitas
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vivi. As coisas que sonhei por vezes aparecem, por vezes somem,
mas, de alguma forma, estão presentes. De fato, não sei explicar no
que consistiram meus pensamentos e a síndrome da bela
adormecida; muito menos sei dizer a importância de tudo que vi.
Inventei? Criei? Intui? Nessas instâncias eu mal sei onde me
procurar. No momento, estou à espera de Sofie. Quem sabe o que
poderemos achar...
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Cor Adormecida
PÁGINAS
DE
ENTRELINHAS
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O PATINHO FEIO
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Cor Adormecida
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Jo A-mi
A RAPOSA E O GATO
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Cor Adormecida
A ESPERTA GRETEL
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Jo A-mi
O DR. SABE-TUDO
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Cor Adormecida
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Jo A-mi
A RAPOSA E OS GANSOS
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Cor Adormecida
DONA SOMBRA
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Jo A-mi
O GATO DE BOTAS
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Cor Adormecida
O JOVEM GIGANTE
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Jo A-mi
OS CISNES SELVAGENS
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Cor Adormecida
JORINDA E JORINGEL
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Jo A-mi
O REI PERVERSO
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Cor Adormecida
O SOLDADINHO DE CHUMBO
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AS TRÊS FIANDEIRAS
Era uma vez uma moça que não tinha muita vontade de
trabalhar e nem estudar. Mesmo sendo incentivada dia e noite pela
mãe, de nada lhe adiantavam os conselhos. Marieta queria mesmo
era assistir tevê e sentar-se à frente da casa para ver o que faziam
seus vizinhos. A muito custo, ajudava a completar as compras do
mês indo à rua do comércio. Passeando por ali, gostava de parar na
casa de linhas e conversar com as três irmãs fiandeiras –
notadamente, as maiores conhecedoras das vidas alheias de toda a
região. Marieta sentava-se por ali e sentia que os minutos
passavam depressa quando, ocasionalmente, podia se divertir com
uma boa conversa. Assim, numa dessa visitas descobriu pelas
fiandeiras que chegara à cidade, há pouco mais de dois dias, um
homem grande e com cara de poucos amigos; de nada sabiam dele,
apenas que deveria ter muito dinheiro, pois havia comprado a
mansão da colina. O tempo passou. Marieta se aproximou aos
poucos do novo morador oferecendo-lhe prendas de tecido
(grandes blusas confortáveis de linho, gorros de lã que podiam
cobrir a circunferência de sua cabeçorra, meias de algodão em
tamanhos especiais) que dizia ter sido feitas por ela; também o
convidou algumas vezes para tomar chá em sua casa, mostrando o
quanto era prendada. Depois de alguns meses, e outras visitas,
James resolveu casar-se com a simpática moradora daquela cidade
- pois não queria continuar pagando uma empregada e estava muito
satisfeito com os talentos domésticos de sua noiva. Assim
aconteceu. James casou e montou seus armazéns; e Marieta ainda
conhece a vida de todo mundo, só que agora do alto da colina.
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Cor Adormecida
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MAMÃE SABUGO
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Cor Adormecida
MÃE HILDA
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HANS, O PALERMA
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Cor Adormecida
RAPUNZEL
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Cor Adormecida
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SOBRE A AUTORA...
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