2016 ElisaTeixeiradeSouza
2016 ElisaTeixeiradeSouza
2016 ElisaTeixeiradeSouza
Brasília
2016
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Brasília
2016
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iv
GRATIDÃO:
À Ana Maria Teixeira de Souza, minha mãe, pelo acompanhamento minucioso nas reflexões
referentes à pesquisa de doutorado.
À Camila Dutervil e Jorge Martins Rodrigues, amigos prestativos, pelos preciosos registros
do processo de pesquisa.
Aos meus alunos, que tanto me ensinaram e tanto me ensinam - sem eles esta tese não
teria a identidade que tem.
Às professoras e professores do curso de formação em BMC, pelas descobertas que
proporcionaram enriquecimento à pesquisa.
À minha orientadora e membros das bancas de qualificação e defesa - pessoas que fazem
parte desta tese.
Ao Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB, que me acolheu.
À Universidade de Brasília e a Darcy Ribeiro.
vi
Marguerite Duras
vii
RESUMO
ABSTRACT
This thesis discusses concepts, questions and experiences related to the universe of body
awareness and body expressiveness from a research base consists of conceptual and
empirical aspects of Somatic Education or Somatics. The circumstantial specificity and
potentially poetic expressiveness of the somatic movement is the focus of research.
Throughout the thesis: it is made a discussion that addresses epistemological and historical
aspects of the field of Somatics; questions are tabled on the vital bodily processes related
somatic movement; grounds and guiding principles for a somatic expressiveness
development work are exposed, as well as working methods and research lines; a
conceptual proposal is presented to the somatic expressive movement, which involves,
among others, the concepts 'flows of somatization', 'poetics of soma' and 'somatopoético
movement'; and it is made an exhibition and problematization of themes for reflective and
experimental study in body movement.
Sumário
Introdução 001
Apresentação 001
Referências 342
1
Introdução
Apresentação
1
Estas abordagens e outras mais, assim como suas criadoras/criadores, serão apresentadas no
capítulo 1, no tópico 'Algumas abordagens e seus criadores', a partir da página 42.
2
2
Aspectos de minha trajetória de vida úteis à compreensão do recorte dessa pesquisa serão
abordados nessa introdução, no tópico 'Motivação pessoal', na página 14.
3
Outras disciplinas também proporcionaram e proporcionam conhecimentos à Educação Somática,
embora não tenham sido foco da fundamentação teórica desta tese, como a Psicologia e a
Fisioterapia.
4
A propriocepção e a cinestesia serão discutidas detalhadamente no capítulo 2, na página 112, no
tópico 'Funcionamento da percepção de movimento'. Contudo, vale adiantar aqui que nesta tese,
apesar da propriocepção e da cinestesia serem processos muito relacionados entre si, considerou-
se a seguinte distinção: que a propriocepção pode ser compreendida como percepção de
3
A somatização, tal qual proposta por Bonnie Bainbridge Cohen (COHEN, 1993;
2015), é a experiência de mover-se monitorando o próprio movimento corporal por meio da
percepção6. Nesta tese, essa noção é expandida, considerando-se a somatização como
sendo o processo de mover-se estando-se envolvido pelo movimento, em um estado de
consciência ou mais perceptivo, ou mais sensitivo ou mais emocional, podendo haver
também uma estimulação imagética em curso, quando imagens de movimento geradas pela
mente acionam a percepção ou a sensitividade de movimento7.
Contando com os conceitos 'soma' e 'somatização' como ponto de partida, esta tese
apresenta e delimita a ideia da expressividade corporal somática a partir de uma discussão
envolvendo o conceito autoimpressividade. Formulei esse termo para nomear a
circunstância na qual as impressões somáticas vivenciadas por nós durante o movimento
corporal nos impulsionam a um aprofundamento na exploração somática, nos colocando em
retroalimentação somática8. A autoimpressividade reverbera marcantemente na
12
Ao procurar um termo que pudesse agrupar todos os tipos de artistas que lidam com o movimento
corporal como matéria-prima para seus empreendimentos artísticos, cheguei ao termo 'artista do
movimento'. Ele é usado ao longo de toda a tese para fazer referência a essa categoria de artistas.
13
Ao enfatizar a diferenciação entre conhecimentos teóricos e conhecimentos práticos, não pretendo
imprimir sentidos antagônicos para estes conhecimentos, pois trata-se de conhecimentos que se
complementam e se misturam. O que pretendo é apontar que podemos ter diferentes tipos de
contato com ideias alheias: um contato puramente teórico (apenas por leitura), um contato empírico
e um contato misto.
6
Essas abordagens buscam, cada qual a seu modo, harmonizar e expandir nas
pessoas a relação da consciência com a percepção e vivência do movimento, a fim de lhes
proporcionar maior eficiência motora, saúde, liberdade de movimento, espontaneidade,
autoconhecimento, bem-estar, capacidade de expressão e capacidade de trocar
experiências e relacionar-se. Para isso, as abordagens causam e instigam nas pessoas a
uma autoinvestigação perceptiva e sensitiva do movimento. Cada pessoa descobre a si
mesma enquanto se conhece corporalmente: seus movimentos, seus sentimentos no
movimento, seu alinhamento postural, sua estrutura óssea, seus padrões de tensão
muscular, sua forma corporal, seu volume, sua disposição corporal etc. Sendo assim, a
prática física com foco na sensibilização motora é a condição essencial para o
acontecimento de um processo educativo somático, ainda que, em algumas didáticas, essa
prática possa se dar também na imaginação, via visualização de movimentos. Tem-se o
corpo como uma totalidade: unidade que congrega as dimensões orgânica, reflexiva,
sentimental e social.
14
A grafia com iniciais maiúsculas está sendo usada nesta tese para fazer referência ao campo do
conhecimento chamado Educação Somática. A grafia com iniciais minúsculas é usada como
sinônimo de 'processo educacional somático'.
15
Cheguei a essa delimitação temporal observando datas dispersas ao longo do texto de diversas
fontes, com ênfase para os livros escritos pelas pessoas que hoje são consideradas precursoras do
campo da Educação Somática. No segundo subcapítulo do capítulo 1, a partir da página 41, são
apresentadas informações referentes ao histórico da Educação Somática.
7
O soma é então aquele que lida com dados perceptivos e sensitivos do movimento
que vivencia, esteja o movimento sendo vivenciado ativamente ou passivamente, e esteja
ele acontecendo enquanto deslocamento no espaço ou apenas internamente. À concepção
central proposta por Hanna, foram sendo acrescentadas outras ideias ao longo das últimas
décadas, por parte de pensadores do campo da Educação Somática. Atualmente,
considera-se que, falando-se em soma, trata-se de vivenciar o próprio movimento em toda
sua integridade, considerando não apenas as percepções de movimento e os sentimentos
16
Existem diferenças entre técnicas, métodos e sistemas. São diferenças na configuração do modo
de construir o saber, e de transmiti-lo. Essas diferenças são esclarecidas no capítulo 1, na página
75, no tópico 'Configurações do processo de ensino-aprendizagem'. No entanto, vale mencionar
aqui, introdutoriamente, que técnicas podem ser compreendidas como procedimentos a serem
aprendidos, modos de proceder; de realizar algo, e envolvem prescrições. Métodos são mais
abertos; são caminhos; grupos de princípios que orientam um direcionamento para um
aprendizado, e podem abrigar técnicas. Sistemas são ainda mais expansivos, pois não indicam um
caminho de aprendizado, mas um ambiente de aprendizado a ser explorado. São agrupamentos de
fundamentos teóricos, de princípios e de técnicas.
17
Conforme esclarecido na nota 14, a grafia com letras iniciais minúsculas é utilizada nesta tese
quando o termo 'educação somática' não está fazendo referência ao campo do conhecimento
chamado Educação Somática, mas sim ao processo educacional somático.
18
Página 30, tópico 'Detalhando o soma e a somatização'.
8
estruturais que existem na base funda da mente neuromotora19 (DAMÁSIO, 1996, p. 12-16),
mas também as emoções desencadeadas pelo movimento. Sendo assim, vale enfatizar que
não se deve entender o soma como alguém que se limita à observação de seu desempenho
locomotor.
19
Esse tema é abordado no capítulo 2, nos tópicos 'Mente corporificada (embodyment)' - página
105 - e 'Funcionamento da percepção de movimento' - página 112 - bem como no capítulo 3, no
tópico 'Fluxos da somatização' - página 156.
20
Dicionário inFormal (www.dicionarioinformal.com.br).
9
estado somático, estão sendo estimuladas em nosso cérebro novas comunicações entre
diferentes instâncias mentais: instâncias relacionadas com o metabolismo celular, instâncias
relacionadas com o funcionamento dos órgãos, instâncias relacionadas com a sinergia de
sistemas corporais, instâncias sensoriais, perceptivas, sensitivas, emocionais e de
abstração.
Em relação a isso, é interessante observar que essa percepção não é ilusória; que
não se trata de um engano perceptivo, mas de algo muito concreto. José Ângelo Gaiarsa, no
texto de apresentação da edição brasileira do livro Consciência pelo movimento, de Moshe
Feldenkrais, enfatiza que um gesto nunca pode ser realmente repetido, e que a ciência
comprova isso (GAIARSA, 1977, p. 10). Ao dizer essas palavras, Gaiarsa se baseia em
pressupostos da neurofisiologia que mostram que percursos neurais referentes ao
desencadeamento de determinado movimento corporal nunca se repetem em caráter
absoluto. É baseado nisso que Gaiarsa fala: "jamais nos é dado repetir duas vezes o mesmo
gesto. É uma impossibilidade estatística. Portanto, todo e qualquer movimento que fazemos
é uma criação - queiramos ou não" (GAIARSA, 1977, p. 10).
21
A trajetória e a metodologia da pesquisa serão descritos no tópico 'O percurso da pesquisa', a partir
da página 17.
10
Noto também que essa problemática está relacionada com o caráter tecnicista22
muitas vezes dominante nos ambientes de ensino-aprendizagem referentes a práticas
corporais expressivas. Há, muitas vezes, um padrão 'mecânico' de captura de movimentos.
Nas ocasiões em que esse padrão encontra-se em ocorrência, a pessoa que realiza o
movimento vivencia um raso envolvimento perceptivo/sensitivo com o movimento, não
estando integralmente presente no movimento. Esse quadro, frequentemente, convive com
a questão da imitação formal. As pessoas imitam o movimento de outra pessoa focando de
modo limitado a forma desse movimento, sem que as funcionalidades e as sensibilidades
que embasam tal movimento sejam apreendidas e sentidas. Nesse contexto, a pessoa que
ensina o movimento, em verdade não o ensina, apenas mostra o movimento. Com isso,
ocorre a cópia do movimento sem que esteja havendo uma apropriação desse movimento
por parte de quem o copia. E se a pessoa que mostra não está vivenciando o movimento
integralmente; se ela mesma já se encontra em uma realização mecânica, são grandes as
chances da cópia desse movimento já nascer viciada na lógica formal. O mesmo pode ser
dito em relação a posturas corporais.
22
No sentido de ser um processo de ensino-aprendizagem não dialógico, no qual o aluno apenas
recebe os conteúdos e os armazena, sem trabalhá-los em si mesmo. O aluno não explora o
conteúdo usando seus próprios instrumentais; não se coloca sobre ele; não se mistura a ele.
11
23
O termo 'escolas' não está sendo usado para fazer-se referência a instituições, escolas físicas, mas
sim a tendências pedagógicas.
12
A respeito das contribuições que esta tese pode dar à área da expressividade
corporal, acredito que, ao discutir a expressividade do soma apontando suas
especificidades, e ao delimitar um campo temático multirreferencial para investigações
corporais que visam o desenvolvimento dessa expressividade, esta tese contribui para a
instrumentalização de ações pedagógicas, artísticas e terapêuticas que lidem com o
movimento corporal.
24
Esse tema será detalhado no capítulo 3, no primeiro subcapítulo: 'Questões preliminares'.
25
Uso o termo 'gesto' para me referir a movimentos corporais funcionais ou comunicativos,
encarando-se o caráter comunicativo como algo que abarca também a comunicação entre
diferentes instâncias do próprio indivíduo, ou seja, movimentos que acompanham uma intenção ou
uma sensação ou uma emoção. Desse modo, estou usando uma significação mais delimitada para
o termo 'gesto', se compararmos essa significação à que foi utilizada por Gaiarsa na página 9.
26
O termo 'cena' está sendo usado aqui em um sentido amplo, que abarca não só cenas teatrais,
mas também outros empreendimentos artísticos, como performances, coreografias etc.
14
Motivação pessoal
Meu interesse pelo tema desta tese se iniciou na época em que eu cursava o último
ano da minha graduação em Licenciatura em Dança (por volta de meados de 2005) na
Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Contudo, percebo que meu
interesse pela conscientização e expressividade corporal já existia antes mesmo que eu me
tornasse consciente da existência dessa área de estudo e atuação profissional. Sendo
assim, irei expor alguns fatos ocorridos no meu passado, a fim de revelar o desejo que
moveu a concretização desta tese, e a fim também de tornar sua identidade mais nítida.
15
Olhando para minha vida pessoal, e focando minha primeira fase de envolvimento
com a dança - o período em que eu era uma menina que fazia balé - noto que, para mim,
sempre reluziu no movimento dançado algo que não era bem o passo de dança, mas
alguma outra coisa. Eu assistia espetáculos de dança nos palcos de Brasília e balés
clássicos em fitas VHS. Me intrigava como alguns artistas pareciam mais familiarizados com
o movimento ou mais encantados por ele do que outros. Durante as aulas de balé, eu me
envolvia com o movimento, sentia o prazer do mover-se; adorava coisas como, por exemplo,
as combinações entre fluxo de movimento da cabeça e dos braços.
Considerando minha passagem pela Escola de Dança da UFBA, creio ser válido
observar como ali fui me interessando por um viés mais somático na prática da dança. No
período em que iniciei minha graduação na UFBA (no ano de 2003), conheci o Método
Pilates em uma experiência vivida fora da UFBA, e depois também o pratiquei dentro dela,
em aulas de condicionamento físico. Aquilo despertou algumas percepções e reflexões
novas em mim. Passei a ver que existe uma maneira de participar ativamente dos rumos da
estruturação corporal; da postura enquanto configuração musculoesquelética. Ao final das
aulas práticas na UFBA, eu costumava ficar na sala e explorar algumas posturas de Yoga.
Passando para minha vida de artista, creio ser produtivo expor que em processos de
ensaios referentes a algumas montagens das quais participei, eu percebia que para
conseguir realizar bem aquilo que o coreógrafo/diretor havia passado, eu precisava achar
aqueles movimentos em mim, pois eles não me pareciam familiares. Eu percebia que, para
chegar a um desempenho mais avançado, no qual eu poderia chegar mais perto do melhor
16
que eu pudesse ser, eu precisaria me encontrar com aqueles movimentos no meu próprio
tempo, e não no tempo do ensaiador ou do coreógrafo/diretor. Eu notava que meu tempo de
"pegar" a coreografia era mais lento do que o tempo da maioria dos colegas de ensaio.
Desenvolvi a autocrítica do movimento, me conheci melhor. Por conta disso, eu passei a
"mastigar" bem os movimentos quando sozinha, para conseguir me sentir livre neles. O
contexto de 'cumprir a tarefa passada pelo coreógrafo' tornou nítida essa necessidade. Nas
minhas investigações criativas pessoais realizadas com o propósito de gerar trabalhos
cênicos, eu também acabava mastigando bem o movimento. Hoje percebo que isso
'engordou' minha tendência de entrar no mundo das percepções e sentimentos de
movimento para me sentir íntima do movimento, e essa tendência me levou a outra
tendência: explorar o encontro com as percepções e sentimentos de movimento também na
minha prática docente.
Feldenkrais), a Eutonia (de Gerda Alexander) e o BMC (de Bonnie Bainbridge Cohen),
sendo que deste último quase nada consegui entender na época. Logo percebi que aquilo
que sempre gostei era objeto de estudo de um campo do conhecimento, e que eu deveria
adentrar esse campo.
O percurso da pesquisa
A pesquisa de doutorado que originou esta tese durou quatro anos e meio, ou nove
semestres. Durante os três primeiros semestres do doutorado, foram realizadas algumas
leituras de importantes autores que embasam a pesquisa. Durante essa fase, a investigação
teórica consistiu no aprofundamento das respostas às perguntas: "O que é a Educação
Somática?"; "O que é o soma?"; "Quais seriam os fundamentos mais importantes para uma
pedagogia do movimento expressivo que partisse do soma?". As duas primeiras perguntas
tiveram mais rapidamente suas respostas aprofundadas (digo 'aprofundadas' porque
algumas respostas já haviam sido desenvolvidas no período de elaboração do projeto da
pesquisa), e isso trouxe uma nova pergunta: "Como o soma é trabalhado por Bonnie Cohen
no BMC?". Essa pergunta surgiu imediatamente depois que li a definição de BMC
apresentada por Bonnie Cohen em seu livro (COHEN, 1993, p. 1). Isso pode parecer sem
lógica, mas, no entanto, não é. Ao meu ver, o que se passa é que quando lemos algumas
coisas em fontes teóricas que se dedicam ao processo educacional somático, ficam muitas
lacunas na nossa compreensão, pois as palavras tentam traduzir algo que é muito vivencial;
que tem uma natureza de difícil captura literal. Minha experiência me mostrou que depois
que passamos a vivenciar algum processo educacional somático, podemos voltar aos livros
para encontrar, nas mesmas palavras lidas anteriormente, coisas que não fomos capazes
de apreender na primeira leitura. Passamos a entender que só iremos compreender
determinadas coisas quando tivermos mergulhado na prática em um nível de profundidade
considerável. Depois que identifiquei essa dificuldade, notei que eu precisaria trabalhar a
minha própria escrita sobre o soma e o movimento expressivo somático de modo bem
18
atento, para que eu viesse a conseguir tratar esses temas de modo que eles pudessem ser
facilmente compreendidos pelos leitores. Percebi que isso poderia ser uma contribuição a
mais a ser dada pela pesquisa à área da conscientização e expressividade corporal.
Após o Exame de Qualificação da tese, iniciei nova fase da pesquisa, à qual foi
acrescentado o trabalho de conceitualização das expressões que eu estava usando para
nomear processos identificados por mim. Houve também uma redimensionalização do grupo
de temas para reflexão/exploração de movimento. Me perguntei: "Dentre os temas em
19
and gesture: practices of embodiment (JOHNSON,1995), editada por Don Hanlon Johnson.
Essa publicação consiste em uma compilaçao de textos e entrevistas envolvendo
investigadores do movimento somático (dentre pioneiros e não pioneiros).
A tese possui uma parte que foca o trabalho de revisão bibliográfica (capítulos 1 e 2)
e outra na qual são feitas revisões bibliográficas, juntamente com a apresentação e
desenvolvimento de argumentos autorais (capítulos 3 e 4).
Inspiração de partida
Para finalizar esta introdução, e com o objetivo de provocar você, leitor, transcrevo
uma fala da fenomenologista do corpo Elizabeth Behnke:
O assunto que é tratado nesse ensaio, como um todo, é algo para ser
vivido, sentido, ou realizado no próprio corpo. Até mesmo as reflexões
filosóficas pressupõem um entendimento direto, em primeira-pessoa -
somático - com aquilo que está sendo discutido (BEHNKE, 1995, p. 317,
27
tradução nossa ).
Assim como foi o caso de Behnke com seu artigo, o cerne da questão trabalhada
nesta tese é a experiência do soma, e de modo mais espefícico, a experiência do
movimento somatopoético. Então, essas palavras de Behnke, tomo-as como minhas
também, visto que, a seguir, durante a leitura desta tese, virão páginas de parágrafos e
parágrafos, os quais serão provavelmente lidos enquanto você está sentado em uma
27
A word of caution is in order, however. What this essay as a whole is about is something to be lived
or felt or done in your own body. Even the philosophical reflections presuppose direct, first-person,
somatic acquaintance with what I am discussing.
24
cadeira ou deitado em uma cama. Ao dizer isso, não pretendo dar a entender que a leitura é
um gesto passivo, mas sim, reforçar que textos como este pedem que o soma seja o leitor; o
soma e sua intrínseca poética, e não aquela razão desencarnada.
25
Capítulo 1
A Educação Somática
28
[...] the brave new world to be discovered is no longer 'out there' but is the here and now of our
immediate organic being.
29
HANNA, 1970, p. 37.
26
30
'Soma' does not mean 'body'; it means 'Me, the bodily being'.
31
'Body' has, for me, the connotation of a piece of meat - a slab of flesh laid out on the butcher's block
or the physiologist's work table, drained of life and ready to be worked upon and used. Soma is
living; it is expanding and contracting, accommodating and assimilating, drawing in energy and
expelling energy. Soma is pulsing, flowing, squeezing and relaxing - flowing and alternating with fear
and anger, hunger and sensuality. [...] Soma are the kind of living, organic being which you are at
this moment, in this place where you are.
32
Este método de educação somática será discutido introdutoriamente no tópico 'Algumas
abordagens e seus criadores' - página 42.
27
história evolutiva nos trouxe" (HANNA, 1970, p. 37, tradução nossa33). Em pleno ar
conturbado, paradoxalmente poluído e fresco dos anos 1960/1970, Hanna convoca os
somas a despertarem para sua missão: "O bravo novo mundo a ser explorado pelo século
vinte e um é o imenso labirinto do soma" (HANNA, 1970, p. 37, tradução nossa34). E nomeia
si mesmo e os outros educadores somáticos de sua época "cartógrafos desse somático
continente" (HANNA, 1970, p. 37, tradução nossa35).
Depois que, no século XIX, o homem foi decomposto em partes, para nos
apoderarmos das forças e funções surgidas dessa dissecação, uma
geração de estudiosos do século XX redescobriu o ser humano na sua
totalidade indivisível. Isso significou uma mudança decisiva de enfoque.
Essa "nova consciência" assim surgida, que já não atua só de forma lógica,
33
[...] beings whose evolutionary history has brought us [...].
34
The brave new world to be explored by the twenty-first century is the imense labyrinth of the soma
[...].
35
[...] cartographers of this somatic continent.
36
A Eutonia é hoje considerada um método de educação somática, e será discutida introdutoriamente
neste capítulo, no tópico 'Algumas abordagens e seus criadores' - página 42.
28
Fica nítido que Hanna, ao propor uma nova conceitualização para o termo 'soma' e
dar um novo significado para o termo 'somática', utilizou o fio lógico que áreas como a
Filosofia, a Medicina, a Psicologia e a Psicanálise estavam utilizando para tecer suas teorias
psicossomáticas. Com esse fio, Hanna teceu uma estampa diferente e ajudou enormemente
na abertura de uma nova frente do conhecimento.
29
Segundo Eloísa Domenici, essas foram algumas das perguntas que moveram os
investigadores do movimento que posteriormente foram considerados pioneiros da
Educação Somática: “Como se dá o movimento no corpo? Quais as relações entre corpo e
mente? O que é a percepção e como ela opera? Quais as relações entre a percepção e o
37
Moshe Feldenkrais e seu método de conscientização corporal constituem tema que será abordado
no próximo subcapítulo - 'Algumas abordagens e seus criadores' - página 42.
38
Conforme esclarecido na nota 14, na introdução (página 6), a grafia com letras iniciais minúsculas é
utilizada nesta tese quando o termo 'educação somática' não está fazendo referência ao campo do
conhecimento chamado Educação Somática, mas sim ao processo educacional somático.
39
[...] l'art et la science d'un processus relationnel interne entre la conscience, le biologique et
l'environnement, ces trois facteurs étant vus comme un tout agissant en synergie.
40
Conforme informado na nota 14, na introdução (página 6), a grafia com iniciais maiúsculas está
sendo usada nesta tese para fazer referência ao campo do conhecimento chamado Educação
Somática.
41
[...] englobe une diversité d'approches où les domaines sensoriel, cognitif, moteur, affectif et
spirituel se côtoient avec des emphases différentes.
30
movimento no corpo? Qual a importância das emoções nesse circuito?” (DOMENICI, 2010,
p. 70). Por essas perguntas, percebe-se que as trilhas para as respostas estariam em
diferentes lugares, ou seja, seria necessário visitar distintas áreas do conhecimento para
achar pistas que pudessem levar às respostas, as quais seriam de fato encontradas apenas
na prática, na percepção e sensitividade corporal. Desse modo, novas perguntas seriam
criadas, e surgiriam novas respostas, e depois novas perguntas etc.
Hanna, em seu artigo que compõe a coletânea Bone, breath end gesture
(JOHNSON, 1995) - What is Somatics? (HANNA, 1995), esclarece que a conceitualização
de 'soma' proposta por ele, e utilizada na Educação Somática, refere-se ao corpo enquanto
percebido pela perspectiva da interioridade. O que especifica o soma é a localização
daquele que observa o corpo. Se o sujeito que observa é também o sujeito que realiza a
ação corporal (observada), o corpo em questão estaria sendo vivenciado como um soma.
Para Hanna, esses dois pontos-de-vista são legítimos na mesma medida. O corpo e
o soma possuem igual valor, e ambos são realidades. No entanto, enquanto fenômenos a
serem estudados, eles são categoricamente diferentes. Diversas ciências estudam o
fenômeno corpo humano muito à partir da perspectiva da terceira pessoa: observando o
desempenho dos corpos. A Educação Somática se volta para as sensações de movimento e
de ajuste postural proferidas em primeira pessoa: observamos a nós mesmos. Interessa à
Educação Somática "o ser humano enquanto experienciado de dentro, por ele mesmo"
(HANNA, 1995, p. 343, tradução nossa43). Então, é possível concluir que experimentar-se
enquanto soma é estar vivenciando o momento pela condição subjetiva das percepções e
sentimentos advindos do movimento existente no corpo, assim como do movimento do
42
When a human being is observed from the outside - i.e., from a third-person viewpoint - the
phenomenon of a human body is perceived. But, when this same human being is observed from the
first-person viewpoint of his own proprioceptive senses, a categorically different phenomenon is
perceived: the human soma.
43
[...] the human being as experienced by himself from the inside.
31
Outro esclarecimento importante feito por Hanna consiste no fato de que o soma
abrange a percepção em primeira pessoa sem que dele seja excluída a percepção em
terceira pessoa, visto que quando em estado somático, não deixamos de perceber o outro e
o ambiente:
O soma tem um talento duplo: ele pode sentir suas funções individuais
próprias via percepção de primeira-pessoa, e pode perceber estruturas
externas e situações objetivas via percepção de terceira-pessoa. Ele tem o
talento distinto de possuir dois modos de percepção (HANNA, 1995, p. 346,
46
tradução nossa ).
44 The human is not merely a self-aware soma, passively observing itself [...] it is doing something else
simultaneously: it is acting upon itself; i.e., it is always engaged in the process of self-regulation.
45 [...] these interlocked functions are at the core of somatic self-organization and adaptation.
46 The soma has a dual talent: it can sense its own individual functions via first-person perception, and
it can sense external structures and objective situations via third-person perception. It has the
distinctive talent of possessing two modes of perception.
33
mesmo, então, seu olhar para as situações vivenciadas ou observadas também está em
modificação, não sendo algo cristalizado. O estado somático modifica ou dinamiza a leitura
que fazemos do mundo e das coisas, pessoas e acontecimentos que nele estão; é um
estado que ecoa em nossas maneiras de interagir com o mundo.
Como nos lembra Bonnie Cohen, "Cada indivíduo é absolutamente único" (COHEN,
2014c , p. 8), o que me traz à memória uma frase de uma música de Raul Seixas: "Cada
cabeça é um mundo, Raimundo." E de fato, como ponderado pela Ética, dentre outras
disciplinas, existe unicidade em cada ser humano, o que aponta para a irrepetibilidade de
cada vida; para o valor inigualável de cada ser. Não há ninguém igual a ninguém. Disso
podemos observar que também existe uma unicidade somática: cada soma é um soma,
assim como cada momento é um momento. O que está então em questão é a subjetividade.
Logo, os dados somáticos são dados subjetivos. Estes dados são diferentes dos dados
científicos objetivos e passíveis de repetibilidade.
Para Hanna, é fundamental lembrar que as áreas que lidam com o corpo pela
objetividade, como por exemplo a Fisiologia e muitos ramos da Medicina, não devem deixar
de considerar as informações da primeira-pessoa, ou seja, não devem ignorar os dados
subjetivos (HANNA, 1995, p. 343). Hanna combate discursos que neglicenciam a
importância dos dados somáticos: "Evitar evidências pelo fato destas serem
'fenomenológicas' ou 'subjetivas' é algo não científico. Repudiar tais dados considerando-os
irrelevantes e/ou não importantes é algo irresponsável" (HANNA, 1995, p. 343, tradução
nossa47). Para Hanna, todo repúdio a dados somáticos mostra que a ciência tradicionalista
ainda encontra-se entranhada no comportamento de muitos cientistas. Esse repúdio seria
um resquício do modo como foi erigido o conhecimento científico (considerando-se a ciência
moderna): a partir da distinção entre os dois pontos de vista - externo (terceira-pessoa) e
interno (primeira-pessoa) - sendo que o ponto de vista da terceira pessoa se fez dominante,
e o ponto de vista da primeira pessoa fora excluído. Segundo Hanna, essa exclusão da
subjetividade se deu por princípios edificados no mundo científico para o resguardo da
ciência, como: a condição do método, o peso da objetividade e a prerrogativa do
distânciamento entre observador e objeto de estudo. Seguindo-se os caminhos apontados
por tais princípios, observou-se o céu, os astros, as rochas, os objetos, os animais, as
plantas, as moléculas, os átomos etc. Construiu-se armas, máquinas; manipulou-se
medicamentos e alimentos sintéticos.
Ainda de acordo com Hanna, observa-se que também o corpo humano é estudado
via cumprimento dos princípios da ciência moderna (HANNA, 1995, 343-345). A fisiologia
47
To avoid evidence that is 'phenomenological' or 'subjective' is unscientific. To dismiss such data as
irrelevant and / or unimportant is irresponsible.
34
observa o homem pelas lentes dos microscópios. O corpo é observado, analisado e medido
como uma entidade objetiva. Princípios e leis universais da física e da química se aplicam a
esse corpo. A medicina, para tratar ou curar as pessoas, utiliza os dados da fisiologia, mas
deve fazer isso levando em conta também a subjetividade de cada caso. É necessário,
também, coletar dados somáticos. Entretanto, muitas vezes, por um comportamento médico
bastante tecnicizado, a voz do soma não é chamada ao pronunciamento. Hanna atenta para
o fato de áreas como a Fisiologia, a Medicina e mesmo a Psicologia terem, como parte de
seus históricos, alguma negligência para com dados produzidos pela primeira pessoa do
discurso. Extendendo o pensamento de Hanna para a arte da dança, observando a história
desta arte, podemos considerar que a objetividade esteve acima da subjetividade em vários
contextos. Ainda na atualidade, em muitos ambientes de ensino e de composição
coreográfica, a voz em terceira-pessoa é superutilizada, ficando em silêncio a voz em
primeira-pessoa, o que não poderia, nesses casos, ser encarado como uma
irresponsabilidade, mas como uma escolha. Muitas coreografias são montadas a partir de
movimentos pré-definidos balizados esteticamente por um olhar externo.
Conforme fora esclarecido na introdução desta tese, nesta tese considera-se que,
quando os dados somáticos são gerados pela movimentação corporal ativa e voluntária,
ainda que motivada por um movimento imagético, e vivenciada perceptivamente,
sensitivamente ou emocionalmente, está ocorrendo uma somatização. Essa definição deriva
do significado que Bonnie Cohen, no âmbito do BMC, atribuiu ao termo 'somatização', o qual
pode ser compreendido como 'movimentação corporal durante a qual está ocorrendo um
monitoramento perceptivo do movimento' (COHEN, 1993; 2015). Bonnie deu a esse termo
um uso semântico diferente do que fora dado por algumas linhas de pensamento da
Medicina e da Psicologia. Bonnie aproximou o termo 'somatização' do termo 'soma' - tal qual
este é trabalhado conceitualmente na Educação Somática. Em seu texto Introdução ao
Body-Mind Centering (COHEN, 2015, p. 23), Bonnie conta que passou a usar o termo
'somatização' para fazer uma distinção com 'visualização' quando a visualização é
vivenciada em repouso corporal, com os dados somáticos sendo gerados apenas via
imaginação, sem haver movimento voluntário. Nas palavras de Bonnie:
48
[...] do not need, first, to be mediated and interpreted through a set of universal laws to become
factual.
49
I used this word 'somatization' to engage the kinesthetic experience directly, in contrast to
'visualization' which utilizes visual imagery to evoke a kinesthetic experience. Through somatization
the body cells are informing the brain as well as the brain informing the cells. I derived this word
'somatization' from Thomas Hanna's use of the word 'soma' to designate the experienced body in
contrast to the objectified body. When the body is experienced from within, the body and mind are
not separated but are experienced as a whole.
36
dão suporte uma à outra. Uma visualização pode levar a uma somatização e vice-versa.
Além disso, elas podem ocorrer simultaneamente.
Gerda Alexander, pensando na grande meta final do seu trabalho, pretendia "ajudar
o homem a reencontrar as origens de sua espontaneidade" (ALEXANDER, 1991, p. XVI).
Moshe Feldenkrais desejava colaborar para com a desconstrução dos efeitos do
obscurantismo das individualidades (FELDENKRAIS, 1977, p. 21). Esse almejo de
Feldenkrais também é presente no discurso de outros construtores do campo da Educação
Somática, como podemos observar no seguinte trecho do livro escrito por Gerda ao referir-
se à Eutonia:
A eutonia teve como ponto de partida meu desejo de criar, para o homem
de nosso tempo, um ensino capaz de dar a cada um a possibilidade de
desenvolver sua própria personalidade, encontrando as leis
psicossomáticas dentro de si, escapando aos estilos, técnicas e modas,
cuja influência geralmente procuramos ou sofremos sem perceber
(ALEXANDER, 1991, p. 27).
O quadro apontado por Whitehouse é algo comum na vida de muitas pessoas desde
a infância, de modo que, desde crianças, tais pessoas são condicionadas a negar
sentimentos e evitar expressões. A repressão ou emolduração do corpo (comentada por
Whitehouse), assim como a repercussão disso na vida psicológica, também é abordada por
50
O significado dessa expressão poderá ser melhor apreendido após a leitura do subcapítulo 2.2 do
capítulo 2, chamado 'Mente celular e mente corporal?', iniciado na página 102.
51
[...] body is the unconscious, and that in repressing and, more important, disregarding the
spontaneous life of the sympathetic nervous system, we are enthroning the rational, the orderly, the
manageable, and cutting ourselves off from all experience of the unconscious, and therefore of the
instincts [...]
38
Segundo Gerda Alexander, para que a pessoa possa estar mais corporalmente plena
em si mesma, ela precisa “Aprender a sentir a si mesmo e sentir o ambiente com realismo e
a manter essa habilidade em todas as circunstâncias do dia a dia" (ALEXANDER, 1991, p.
xii). É uma questão de superar distanciamentos. Esse era o objetivo almejado por Gerda em
seu trabalho. Uma vez que a pessoa se torne íntima de uma vivência consciente do corpo,
dos movimentos e da relação com os outros e com o ambiente, ela adquire um contato real
consigo mesma, com o próximo e com o ambiente. (ALEXANDER, 1991, p. xi). Como Gerda
acreditava que a função vital que mais repercutia no todo do ser humano era a tonificação
muscular, ela focava essa função no seu trabalho de resgate da harmonia psicofísica, para
que seu balanceamento reverberasse em todo o corpo. Para ela:
52
Much of our energy and aliveness is then inhibited, and we also lose access to the knowledge and
wisdom that the body holds. Often we feel cut off, disassociated from our physical body, which can
lead to sensations of ungroundedness, tension or weakness, discomfort, pain, and lack of real and
vital contact with our environment. These sensations will also be reflected in our psychological
states and the health of our bodies.
53
Ritmos fisiológicos, metabólicos. Esses ritmos repercutem nos estados psicológicos.
39
Para que o trabalho corporal possa trazer mudanças ao ser, ele precisa ser
somático, e sendo somático, irá combater a força dos condicionamentos. Esse é um objetivo
sempre presente nos empreendimentos dos educadores somáticos: quebrar o hábito
neuromotor e gerar possibilidade para o novo acontecer. Com esse trabalho, a plasticidade
cerebral concernente à função da motricidade e tudo o mais que a acompanha é animada,
vivificada conforme novos percursos neuronais deixam novos rastros no tecido cerebral,
oportunizando a ocorrência de novos padrões neuromotores. Isso acontece quando a
pessoa em processo de aprendizagem somática inaugura novos modos de realizar uma
ação corporal, o que significa que ela está mudando a maneira como habitualmente se
move e mudando fluxos de movimentos sinápticos.
54
The physical condition is in some way also the psychological one. We do not know in what way the
psyche is the body and the body is the psyche but we do know that one does not exist without the
other. And I would go so far as to suggest that just as the body changes in the course of working
with the psyche, so the psyche changes in the course of working with the body. We would do well
to remember that the two are not separate entities but mysteriously a totality.
55
[...] movement is the life of the body.
56
As the body becomes more balanced and integrated, we may experience more alertness and clarity
of mind, greater openness and spontaneity of being and perceiving. By freeing habitual holding
patterns, we can access and more fully express the creativity within us.
40
57 Bartenieff Fundamentals were developed to provide exercises for the experience of the body in
motion with an awareness of how and why it is moving.
58
O termo 'mundo natural' está sendo usado no sentido de 'natureza', mundo 'selvagem'.
41
Em relação à integração com a natureza, já que somos parte dela, Hanna traz nosso
olhar para o fato de que não somos os únicos somas a existir nesse planeta. Ele diz: "todos
os membros do reino animal são somas, porque todos os animais são seres que possuem
auto-organização e funções sensoriomotoras" (HANNA, 1995, p. 346, tradução nossa59). Ao
aprofundar-se nesse pensamento, considerando que as células são sensorialmente
autoconscientes60, Hanna vai além: as plantas também são somas (HANNA, 1995, p. 346).
Desse modo, a ecologia está presente na Educação Somática, pois nela o ser humano é
visto e trabalhado como um elemento da natureza que existe dentro de um todo maior; que
faz parte de uma rede de relações. Somos um corpo, somos um sistema, somos ossos,
músculos, nervos, circulação sanguínea, somos pensamentos, emoções, sensações, somos
células, somos água, somos átomos etc. Somos parte de um ambiente, somos um
ambiente, somos um pedaço de um grupo, somos unidades de um coletivo etc. A dimensão
social compõe o indivíduo assim como este é considerado parte do social. Nessa
perspectiva ecológica humana, o indivíduo preza pelo social de modo a não agir
egoisticamente em seu comportamento quando este, para beneficiar a si, traz desarmonia
aos outros. O mesmo pode ser dito em relação às espécies animais, vegetais e ao mundo
mineral: devemos respeitá-las. A lógica não é a de alcançar os interesses próprios acima de
qualquer custo. O outro e o mundo natural não são coisas separadas de mim; não estão
apenas fora de mim; também estão dentro de mim. Irmgard Bartenieff, Gerda Alexander,
Moshe Feldenkrais, Mathias Alexander, Mary Whitehouse e tantos outros, todos prezam em
seus discursos, de um modo ou de outro, por esses ideais.
59
All members of the animal kingdom are somas, because all animals are self-organizing beings with
sensory-motor functions.
60
Esse tema será discutido no capítulo 2, em 'Auto-organização e consciência sensorial celular' -
página 102.
42
não é o foco dessa tese, tive que me ater a personagens que foram por mim mais
aproveitados na pesquisa, e também a personagens que, na minha maneira de ver, foram
especialmente impactantes no destino da Educação Somática.
Após essas constatações, Matthias Alexander chegou à conclusão que o modo como
usava seu organismo lhe trouxe um funcionamento vocal insatisfatório, tornando ineficiente
sua principal ferramenta de trabalho enquanto ator declamador. Em seu discurso, Matthias
utilizou o verbo 'usar' como ação verbal ao mesmo tempo empreendida e sofrida. Ou seja,
ele queria transmitir a ideia de que podemos fazer um uso equivocado de nós mesmos, ou
um uso adequado de nós mesmos. Seu trabalho foi elogiado por diversas personalidades
importantes da medicina, bem como de outras áreas. Sarah Barker conta que o escritor
Aldous Huxley, quando fisicamente doente, tendo depressão e insônia, após tentar várias
técnicas como tratamento, conseguiu se curar com a Técnica de Alexander (BARKER, 1991,
p. 13). O filósofo, psicólogo e educador John Dewey escreveu na introdução do livro de
Matthias Alexander O uso de si mesmo (ALEXANDER, 2010):
O que a técnica Alexander faz é ensinar as pessoas a "usar a mente consciente para
mudar os padrões musculares subconscientes" (BARKER, 1991, p. 24). Além de ter
exercitado essa missão de vida na Austrália, Matthias Alexander também a exercitou na
Inglaterra e nos EUA. Mudou-se para Londres no ano de 1904. Lá, no ano de 1930, realizou
seu primeiro curso de formação para professores. No período da Primeira Guerra Mundial,
Matthias viajou aos EUA para divulgar sua técnica, e lá voltou outras vezes, com a mesma
finalidade (REVEILLEAU, 2010, p. 63).
No mesmo momento em que Matthias Alexander estava divulgando sua técnica nos
EUA, Mabel Todd (1880-1956), outra importante pioneira da Educação Somática, tinha
acabado de se formar em oratória, e estava começando a ensinar, na cidade de Nova York,
sua abordagem voltada para a influência de visualizações de imagens corporais na
reeducação postural e no desempenho do corpo em movimento (MATT, 2014). Segundo
Greiner, em suas investigações, Todd se voltou para “aspectos do funcionamento do corpo
humano e seus diferentes sistemas que tornaram possível a compreensão das
44
De acordo com Pamela Matt, Todd começou a se envolver com a reabilitação física
ainda muito jovem, como uma maneira de impulsionar resoluções para seus próprios
problemas de saúde. Posteriormente, na juventude, uma queda grave a fez desenvolver
ainda mais suas estratégias próprias de reabilitação física. O trabalho de Todd, que
posteriormente viria a se chamar Ideokinesis, "emergiu no início de 1900, um período
turbulento de extraordinária criatividade na dança, na educação física e na cultura corporal"
(MATT, 2014, tradução nossa61). No início da década de 1940, ela estava bastante
experiente e havia ensinado em universidades na área de Educação Física, na qual obtivera
formação. Ela contava com um bom reconhecimento de seu trabalho. Entretanto, no fim
dessa mesma década uma nova geração de membros do Estabelecimento Médico da
Cidade de Nova York perseguiu Todd e forçou-a a finalizar suas atividades profissionais no
estado de Nova York (MATT, 2014). Além de ter dado aula em universidades e atendido em
sessões individuais, Todd também publicou livros. Após Nova Yok, ela ainda viveu e
trabalhou em Los Angeles. O prefaciador do seu livro Thinking Body escreveu: "Este livro
não é um tratado que lida puramente com o assunto Fisioterapia, mas apresenta um estudo
dos fatos fundamentais subjacentes aos princípios das dinâmicas do corpo" (BRACKETT,
1968, p. xvi, tradução nossa62).
Uma grande parceira de Todd foi sua aluna Lulu Sweigard (1895-1974), que deu
continuidade a seu trabalho e assumiu a autoria da publicação onde é apresentada a
sistematização da Ideokinesis (MATT, 2014). A utilização da visualização de imagens
metafóricas que instigam o sistema sensoriomotor e provocam alterações nas
representações mentais referentes à motricidade foi uma grande contribuição de Todd para
a Educação Somática. O olhar para a evolução dos movimentos da espécie humana levou
Todd a questionamentos que possibilitaram o afloramento de pressupostos de seu trabalho
de reeducação postural. Ela se perguntou coisas como: 'Quando o homem passou a ser
bípede, e ganhou ampla liberdade de observação e atuação, perdendo estabilidade física,
como se deu a associação das curvas e das retificações do corpo para superar a força da
gravidade?'; 'O que são de fato as linhas operantes continuamente sobre nosso esqueleto?'
(TODD,1968).
61
[...] emerged in the early 1900's, a turbulent period of extraordinary creativity in dance, physical
education and body culture.
62
This book is not a treatise dealing purely with the subject of Physiotherapy, but presents a study of
the fundamental facts underlying the principles of body dynamics [...].
45
Uma das alunas de Lulu Sweigard, Irene Dowd, tornou-se uma importante figura na
divulgação e desenvolvimento do uso de imagens metafóricas corporais em trabalhos
voltados para o aprimoramento da consciência corporal e de habilidades em dança. Ela
escreveu um livro (Taking root to fly) que aproximou os princípios da Ideokinesis aos leitores
interessados em conscientização corporal, além de ter sido um livro que muito contribuiu
para o desenvolvimento da vertente somática nas artes corporais e na dança.
Também trabalhando nas primeiras décadas do século XX com uma prática corporal
de renovação do ser, estava Elsa Gindler (1885-1961) na Alemanha. Seu método ficou
conhecido como Gindler Method (Método Gindler). Segundo Johnson, Gindler desenvolveu
"uma maneira radicalmente simples de trabalhar com a experiência, uma forma ocidental de
meditação, na qual os participantes aprendem simplesmente a como prestar atenção - ao
comer, manter-se em pé, andar, falar, levantar uma pedra" (JOHNSON, 1995, p. 3, tradução
nossa63). Sua escola foi bastante ativa durante o período entre as duas Guerras Mundiais.
Ainda de acordo com Johnson, Gindler se recusou a dar um nome a seu trabalho, e isso se
deu, em parte, como reação a pressões sofridas pelos nazistas, sendo que seu estúdio
chegou a ser queimado por estes. Este incêndio destruiu seus escritos, sendo que apenas
um sobreviveu: Gymnastik for people whose lives are full of activity (JOHNSON, 1995, p. 3).
O Dictionary of Rehabilitation (Dicionário de Reabilitação) descreve o Método Gindler da
seguinte maneira:
63
[...] a radically simple way of working with experience, a Western form of meditation, in which
participants learn simply how to pay attention - to eating, standing, walking, speaking, lifting a stone.
64
A system of bodily education that aims at the development of conciousness of posture, muscle tone,
and motion as well as of sensory acuity. It includes practice in breathing and relaxation, both aided
by automassage and, during group sessions mutual massage. Probably the most profound of the
modern systems to develop body awareness, "to be in contact with oneself" and to express oneself
in a natural and true manner in all one does.
46
regenerar sua saúde, Gindler começou a prestar atenção ao que acontecia dentro dela a
cada momento, em todas as atividades do dia. Nas palavras de Hengstenberg:
Ela descobriu que nesta prática ela entrava em um estado no qual ela não
mais era perturbada por seus próprios pensamentos e preocupações. E ela
chegou a experienciar - a conscientemente experienciar - que a calma no
campo físico [...] é equivalente a confiar no campo físico. Esta foi sua
descoberta, e isso se tornou básico a toda sua subsequente pesquisa
65
(HENGSTENBERG apud WEAVER, 2006, tradução nossa ).
Por esse processo de experimentação, Gindler direcionou seu trabalho de modo que
ele pudesse ser uma orientação para cada pessoa descobrir o que acontecia em seu
organismo, e passou a trabalhar não apenas com exercícios de relaxamento e ativação
muscular, mas com todo tipo de atividade natural à vida diária. A esse trabalho com as
atividades da vida, ela costumava se referir como 'integração' (BUCHHOLZ, 1994). Por esse
percurso, ela chegou a uma abordagem que prima pela atenção ao processos corporais, e
que contempla relaxamento e conscientização corporal. Era um trabalho voltado para
benefícios físicos e psicológicos (WEAVER, 2006). Gindler enfatizava: "o objetivo do meu
65
She found that in this practice she came into a state where she was no longer disturbed by her own
thoughts and worries. And she came to experience – consciously experience – that calm in the
physical field [...] is equivalent to trust in the psychic field. This was her discovery, and it became
basic to all subsequent research.
47
Charlotte Selver (1901-2003), uma das alunas de Elsa Gindler, foi uma figura
importante na divulgação do método de Gindler nos EUA (JOHNSON, 1995, p. 15). Selver
também desenvolveu uma abordagem própria, a qual chamou Sensory Awareness
(Consciência Sensorial) (WEAVER, 2006). Este trabalho de Selver, assim como o de
Gindler, também é considerado de uma simplicidade que impressiona. Devido a isso, Selver
foi convidada a desenvolver trabalhos regulares com estudantes de Zen Budismo
(JOHNSON, 1995, p. 15). Segundo Weaver - que afirma ser Gindler uma das avós da
Educação Somática - o trabalho de Gindler influenciou diretamente Moshe Feldenkrais em
suas elaborações sobre o movimento. Feldenkrais teve contato com os estudos de Gindler
por meio de um colega dela, Heinrich Jacoby (WEAVER, 2006).
Na década de 1940, outra importante pioneira - Ida Rolf (1896-1979) - trabalha nos
EUA com a reestruturação corporal das pessoas, ajudando-as a superar dificuldades
provenientes de limitações adquiridas e problemas congênitos. Segundo Guild, foi por
motivações pessoais, já que ela pretendia encontrar soluções para os problemas de
estruturação de seu filho, que ela desenvolveu um trabalho próprio, que ficaria conhecido
como Rolfing, Integração Estrutural, ou ainda como Método Rolf de Integração Estrutural
(GUILD, s.d.). Quando surgiu, esse trabalho trouxe muita inovação para o meio das terapias
corporais e reabilitação física, pois é um trabalho de manipulação do tecido conectivo
fascial, coisa não comum para a época. Johnson, ao se referir ao trabalho de Rolf, diz:
"Duas hipóteses caracterizaram seu método: a radical plasticidade do corpo, e os efeitos
saudáveis de se mover a estrutura corporal para o alinhamento com a força da gravidade"
(JOHNSON, 1995, p. 149, tradução nossa68). Uma vez que o corpo estivesse bem alinhado,
estruturalmente bem alinhado, diversos benefícios e curas viriam, já que "A desorganização
66
[...] the aim of my work is not the learning of certain movements, but rather the achievement of
concentration.
67
For her breathing was a teacher: simply being attentive to it is a way of learning [...]
68
Two assumptions characterized her method: the radical plasticity of the body, and the healing
effects of moving bodily structure into alignment with the pull of gravity.
48
funcional do corpo vem como resultado da exposição à contínua força da gravidade" (ROLF,
1995, p. 172, tradução nossa69).
69
Functional disorganization of the body comes as a result of exposure to the continuous force of
gravit.
70
[...] how to use their hands to capitalize on the inherent mobility of the bodily tissues, and how to
move these tissues in directions that produce more balance in a person's life.
71
Repositioning the bone is not enough; the individual muscle and allied tissue must be lengthened if
the change is to be permanent.
49
72
Bartenieff Fundamentals emphasize the internal connections that are key to dynamic rather than
static movement as the newborn's movements develop to adult movements from lying on the floor to
uprightness through crawling, sitting, standing, walking and increasingly complex spatial paths.
73
O ano de nascimento pode não ser exatamente este.
50
nossa74). De acordo com Bartenieff, três dos principais conceitos em Laban Análise
constituem o núcleo do grupo de exercícios Fundamentals: 1) a ênfase deve estar na
mobilidade e não na força muscular; 2) em qualquer movimento, há mais de um fator de
movimento operando; 3) o curso de uma sequência de movimento e sua qualidade
expressiva é determinado pela tríade: intenção, preparação e iniciação do movimento.
74
Focusing always on constellations of movement elements rather than isolated articular elements led
to new solutions of functional and, particularly, coordination problems [...].
75
What became increasingly apparent was the value of the inherent structure of dance as a regulating
power that could free the patient to express feelings, build relationships, and change attitudes
toward living.
51
padrões neuromotores e cognitivos, já que, como dizia Feldenkrais: “Nós agimos de acordo
com a nossa auto-imagem” (FELDENKRAIS, 1977, p. 19).
De acordo com Márcia Guimarães, "O que mais intrigava Feldenkrais em seu
trabalho e em seu pensamento era o contraste patente entre o aprendizado ontogenético e o
filogenético" (GUIMARÃES, 1994, p. 7). Ou seja, Feldenkrais se perguntava sobre a
peculiaridade da condição humana, e sobre sua peculiaridade de movimento. Para ele, a
autoeducação era um elemento fundamental do avanço humano, de modo que cada pessoa
precisaria crescer em autonomia. O movimento corporal seria um precioso caminho para
isso. Nas palavras de Johnson, o método de Feldenkrais: "ensina a pessoa a como liberar a
si mesma da gama estreita de padrões estereotipados de movimento que aprendemos em
nossa cultura, e a encontrar uma gama mais ampla de mover-se e de ser" (JOHNSON,
1995, p. 109, tradução nossa76). Como coloca Ruthy Alon: "A Consciência Pelo Movimento é
um método que ensina como não desistir da liberdade" (ALON, 2000, p. 13).
De acordo com Mia Segal, a capacidade que Feldenkrais tinha de estar consciente
dos acontecimentos do seu corpo era algo que impressionava as pessoas próximas a ele,
assim como sua sensibilidade táctil e sua intuição (SEGAL apud HANNA, 1995, p. 118).
Interessado em entender os mecanismos da autoimagem, e em gerar o desenvolvimento
desta, Feldenkrais trabalhou consigo mesmo e com os outros procurando desativar hábitos
neuromotores desarmônicos e criar novos hábitos. Seu objetivo não era a correção de
ações corporais, mas a correção da imagem cerebral que temos de nós mesmos, e o
caminho para isso seria o sentir (FELDENKRAIS, 1977, p. 41). Em suas palavras: "[...] o
primário e real objeto do meu aprendizado é a efetividade prática de minhas ações"
(FELDENKRAIS, 1995, p. 138, tradução nossa77). Ele trabalhava com as pessoas por meio
76
[...] teach a person how to liberate oneself from the narrow range of stereotypical movement
patterns that we learn in our culture and to find a wider range of moving, and being.
77
[...] the primary and real object of my learning is the practical effectiveness of my actions.
52
No mesmo período que Feldenkrais estava dando vida a seus métodos, Gerda
Alexander (1908-1994) desenvolvia sua Eutonia na Dinamarca e arredores, método de
prática corporal educativo e terapêutico que jogou uma reveladora luz sob a tensão
muscular de base do corpo - o tônus muscular. Este, nada mais é do que o grau de
tensão/relaxamento existente no músculo, e variável circunstancialmente. Para a Eutonia, a
'vida tônica' dos indivíduos está, em muitos casos, aprisionada ou subutilizada,
comprometendo a qualidade de sua vida psíquica. Com o objetivo de interferir nesse quadro
de limitação, pretendendo ajudar o organismo a funcionar "em adaptação constante e
ajustada ao estado ou à atividade do momento" (ALEXANDER, 1991, p. 9), a Eutonia
desenvolve um trabalho voltado para as musculaturas musculoesqueléticas. Possibilita às
pessoas um encontro, e vale frizar, bem consciente, com os níveis de tensão dessas
musculaturas, bem como com sua propriedade de flexibilização. Esse trabalho irá,
consequentemente, contribuir para a harmonização das funções tônicas do organismo, e
para a regulação do todo psicossomático, melhorando também o tônus de musculaturas
viscerais, considerando-se até mesmo as minúsculas musculaturas que existem espalhadas
pelo organismo, como as venosas. Então, a Eutonia, por meio de um trabalho direto com o
tônus muscular, trabalha somente com influências indiretas sobre as funções vegetativas.
eutonista argentina, que também é uma figura notória da pedagoga musical argentina afirma
que à Eutonia interessa as respostas que possam ser dadas às perguntas: “Como procedem
aqueles que fazem as coisas naturalmente bem, sem se cansar [...]? Que mecanismos
põem - talvez inconscientemente - em funcionamento?” (GAINZA, 1997, p. 13).
39). Outro interessante conteúdo trabalhado por Gerda são as posições de controle, que
consistem em posturas de alongamento e força nas quais se deve permanecer por certo
intervalo de tempo, a fim de que, paulatinamente, possa ocorrer um processo de
regularização do tônus muscular. É curioso observar que, segundo Gerda, ela não tinha
conhecimento das posturas da Yoga quando criou o trabalho com as posições de controle
(GAINZA, 1997, p. 43).
Olsen foi iniciada na prática e na condução do Movimento Autêntico por Janet Adler,
que fundara o Instituto Mary Starks Whitehouse doi anos após o falecimento de Whitehouse.
Olsen expõe que com Adler aprendeu a fórmula simples do Movimento Autêntico: "há um
movedor e há uma testemunha" (OLSEN, 2014, p. 42, tradução nossa79). Basta que haja
esses dois personagens, e que eles estejam sabendo das 'regras' do jogo, para que uma
78
[...] began her lifework experiencing and describing the process of 'moving and being moved.
79
[...] there is a mover and a witness.
55
A experiência pessoal que tive com o Movimento Autêntico se deu em dois âmbitos:
no âmbito de um projeto de formação continuada em contato-improvisação, o Improvisa DF
(2012); e no âmbito da formação que estou cursando em BMC, durante períodos em que
cursei alguns módulos do Programa Brasileiro de Formação do Educador Somático (2013,
2014 e 2015). Foram experiências muito ricas. Vivenciei sessões nas quais havia várias
duplas de movedor e testemunha ocupando a mesma sala de trabalho corporal. Cada
testemunha se concentrava no seu movedor. E também assisti algumas dessas sessões
sem estar dentro do jogo. Os testemunhos que vivi foram momentos de muita escuta, nos
quais estive 100% escutando, mas sem compreender racionalmente o que estava 'ouvindo';
compreendendo por caminhos viscerais, não julgatórios. Percebi que é um treino de
expansão mental muito potente, onde testemunhamos perceptivamente/sensitivamente.
Como movedora, também vivi coisas intensas e me deparei com sentimentos que identifico
estarem na base da minha relação com o mundo, com a existência. Houve uma vergonha
inicialmente, um julgamento. Depois me permiti fluir. Na ocasião em que assisti uma sessão,
observei muitas coisas interessantes. Havia uma diferença incrível de um movedor para
80
The mover closes her or his eyes and waits for movement impulses - the process of being moved.
The body is the guide, and the mover takes a ride on the movement impulses as they emerge. The
witness observes, sustaining conscious awareness of her or his own experience and of the mover.
After a period of time, the witness calls the movement session to a close, and there is a verbal
dialogue about what has occurred. The mover speaks, and then the witness reflects back her or his
own experience of the session without judging it.
56
81
Often students ask why their first experience with Authentic Movement is so serious, their first
dances so sad. Generally, we push into the unconscious what we consider to be negative - our
sadness, our meanness, our fear. But below that layer of unexpressed movement is the wealth of
human experience. That is the resource from which we draw in Authentic Movement and which we
hope to bring to the stage.
82
By internalizing a suportive, nonjudgmental but discerning inner witness, we develop self-trust at a
deep level.
57
O BMC foi criado nos EUA por Bonnie Bainbridge Cohen (1941-). Foi a partir da
década de 1960 que Bonnie Cohen deu início às investigações que dariam origem ao BMC.
No ano de 1973, ela fundou a School for Body-Mind Centering (COHEN, 2015, p. 23), que
hoje não é centralizada em um único local, mas encontra-se espalhada pelos EUA, Europa e
Brasil (BODY-MIND). Ainda hoje ela continua suas investigações, e segue dando
desdobramentos aos estudos do BMC. Bonnie graduou-se como terapeuta ocupacional, e
passou por diversas outras formações, como em dança, em Laban análise do movimento, e
em terapia do desenvolvimento neurológico. Fora aluna e comparsa de Bartenieff, dentre
outros importantes nomes do campo das práticas corporais de conscientização e
expressividade corporal. Com Bartenieff desenvolveu investigações de movimento
relacionadas com a respiração, bem como com o desenvolvimento ontogenético.
O BMC foi criado por Bonnie durante longos anos de pesquisas voltadas para a
exploração da integração corporal. Bonnie (COHEN, 1993, p. 1) se refere a essa integração
como 'alinhamento corpo-mente', ou 'centramento corpo-mente'. Então, antes mesmo que
seja iniciada uma apresentação mais detalhada a respeito do BMC, é necessário que fique
clara a concepção de mente à qual Bonnie está se referindo. A mente que aqui está em
83
Esse conceito será discutido no capítulo 2, em 'Auto-organização e consciência sensorial celular' -
página 102.
84
Esse conceito será discutido no capítulo 2, em 'Mente corporalizada (embodyment)' - página 105.
58
questão não diz respeito apenas a operações cerebrais (percepção, lógica, reflexão,
cálculo), mas também, a processos orgânicos de organização da vida celular. Desse modo,
o que está em questão é a mente espalhada pelo corpo85. Nessa concepção, temos a
inteligência orgânica como algo inerente à mente.
Para Bonnie, o corpo se move tal qual a mente se move, porque essas duas coisas
são uma unidade. Então, Bonnie trabalha modos de acessar a mente pelo movimento, a fim
de proporcionar possibilidades de melhoras no desempenho corporal, refinando a
'inteligência corporal'. Nas palavras de Bonnie: "A mente é como o vento, e o corpo como a
areia; se você quer saber como o vento está soprando, você pode olhar para a areia"
(COHEN, 1993, p. 1, tradução nossa86). A partir de determinadas qualidades de movimento
e de toque, diferentes aspectos da mente são acessados. É um acesso via percepção táctil
ou movimento corporal87. No entanto, visualizações também são importantes na exploração
realizada pelo BMC, sendo muito utilizadas.
85
Ideia ligada ao conceito 'mente corporificada', o qual será abordado no capítulo 2, em 'Mente
corporificada (embodyment)' - a página 105.
86
The mind is like the wind and the body like the sand; if you want to know how the wind is blowing,
you can look at the sand.
87
Nessa frase, o termo 'ação' está sendo usado no sentido de movimento que se quis fazer. E
'movimento' como um movimento que tenha acontecido sem que tenhamos o 'feito': o movimento
decorrente de um toque que recebemos (inerente a esse toque).
88
Changes in movement qualities indicate that the mind has shifted focus in the body.
59
De acordo com Bonnie, quanto mais sofisticado for esse alinhamento, mais
eficientes nos tornamos naquilo que fazemos. Aprimorá-lo é tornar mais desenvolvida nossa
conexão intenção-organismo. Contudo, quando falamos desse centramento não estamos
tratando de uma meta que se resoluciona, mas de "um diálogo contínuo entre a consciência
[atentiva corporal] e a ação" COHEN, 1993, p. 1, tradução nossa93). O caminho de
investigação se faz pelo trabalho com experimentações de movimentos potencialmente
capazes de redirecionar padrões de funcionamento mental. As práticas envolvem
"identificar, articular, diferenciar e integrar os vários tecidos dentro do corpo, descobrindo-se
qual a contribuição deles para o nosso movimento (com quais qualidades de movimento
estão relacionados), como eles desempenham seus papéis na expressão da mente"
89
[...] when we direct the mind or attention to different areas of the body and initiate moviment from
those areas, we change the quality of our movement. So we find that movement can be a way to
observe the expression of mind through the body, and it can also be a way to affect changes in the
body-mind relationship.
90
O metabolismo é o próprio trabalho celular; a constante construção e desconstrução de compostos
químicos necessária à vida.
91
'awareness'
92
An important aspect of our journey in Body-Mind Centering is discovering the relationship between
the smallest level of activity within the body and the largest movement of the body - aligning the
inner cellular movement with the external expression of movement through space.
93
"[...] a continual dialogue between awareness and action [...]"
60
Os padrões filogenéticos podem ser trazidos para os movimentos do corpo, para que
assim possamos expandir a inteligência concernente a eles: "[...] todos os padrões mentais
são expressos em movimento pelo corpo. E [...] todos os padrões de movimento
fisicalizados têm uma mente" (BONNIE, 1993, p. 102, tradução nossa96). A respiração, por
exemplo, é uma função vital. Quando o BMC trabalha o padrão da respiração celular (que
biologicamente se dá na instância metabólica), vivenciamos a integração corporal por meio
do sentimento de reconhecimento da nossa própria forma, conectando-nos com seus
limites, sua delimitação e seu volume interior fluídico 97. A respiração celular irá reluzir de
dentro para fora até chegar ao corpo como um todo, ou seja, irá reverberar - via auxílio da
imaginação - da instância mais profunda celular até a consciência do todo corporal. Os
padrões mentais criam ressonância entre as diversas instâncias e camadas do corpo: entre
células, tecidos, órgãos, sistemas.
94
[...] identifying, articulating, differentiating, and integrating the various tissues within the body,
discovering the qualities they contribute to one's movement, how they role they play in the
expression of mind.
95
There is something in nature that forms patterns. We, as part of nature, also form patterns.
96
[...] all mind patternings are expressed in movement, trough the body. And that all physically moving
patterns have a mind.
97
Esse padrão será discutido no capítulo 4, no tópico 'Respiração interna e celular' - página 190.
61
sistema nervoso; sistema ósseo; sistema orgânico; sistemas fluídicos; sistema endócrino;
sistema postural98. Além desses sistemas, o BMC estuda mais dois conteúdos: padrões
filogenéticos e desenvolvimento ontogenético. Esses dois conteúdos abarcam um olhar
conjunto para todos os sistemas. No estudo de todos os conteúdos (os sistemas, os padrões
e o desenvolvimento), é utilizado um jeito de acessá-los que se dá não apenas
empiricamente, mas teoricamente também. O BMC estimula o estudo da Fisiologia, da
Anatomia, da Evolução (teoria evolutiva) e da Embriologia.
98
Esses não são os nomes dos Módulos que compõe a formação em BMC, e sim nomesexplicativos.
99
Termo qualitativo que fora usado para uma identidade cultural proveniente do sistema de análise
expressiva corporal desenvolvido por François Delsarte.
62
expressionista; Irmgard Bartenieff fora dançarina, tendo sido aluna e parceira de Rudolf
Laban.
Fonte: SOUZA, 2011 - (RUYTER, 1988, p. 383 apud SOUZA, 2011, p.118).
64
Fonte: www.danceheritage.org
65
Por um lado, a guerra havia engrandecido o tecnicismo, por outro, havia incitado o
desejo de sensibilização. Esta, virou motivação tanto para educadores/terapeutas do
movimento, como para artistas do movimento, e dentre estes, diversos dançarinos. Gerda
Alexander acreditava que "a eutonia devia constituir uma base comum a todas as formas de
movimento artístico (rítmica, dança, ópera, teatro) e a todos os gestos de nossa vida
cotidiana, os jogos e os esportes” (ALEXANDER, 1991, p. 27). Estava em questão o
nascimento de um novo ser humano: um ser integrado racionalmente, sentimentalmente,
100
Nurturing all these systems was a progressive intellectual climate that honored movement as a
complex phenomenon, questioned Cartesian conceptions of mind/body separation and rejected
physical training practices rooted in mindless, repetitive drill.
66
Como analisara Eloisa Domenici, Anna Halprin levou para uma importante geração
de dançarinos, da qual alguns estariam compondo o Judson Church, proposições de
exploração corporal muito diferentes das aulas de técnicas de dança, e próximas de
proposições educacionais/terapêuticas somáticas. Um exemplo era explorar os movimentos
de cada articulação do corpo (DOMENICI, 2010, p. 71). Steve Paxton e seus parceiros no
Contato-Improvisação acompanharam e instigaram o desenvolvimento do BMC. A
abordagem pedagógica corporal posteriormente criada por Steve Paxton - Material for the
Spine - é baseada em fundamentos da Educação Somática. A prática dessa abordagem
ajuda no desenvolvimento de habilidades necessárias a quem deseja se desenvolver no
Contato-Improvisação. Irene Dowd difundiu a Ideokinesis no meio da dança; Hubert Godard
difundiu o Rolfing e outras abordagens no meio da dança.
67
101
Somatic learning is an activity expanding the range of volitional consciousness. This is not to be
confused with conditioning [...].
68
102
Conforme esclarecido na nota 14, na página 6 da introdução desta tese, a grafia com iniciais
minúsculas é usada como sinônimo de 'processo educacional somático'.
103
Formulei essa expressão para me referir às imaginações por meio das quais despertamos em nós
mesmos novas percepções e sentimentos de movimento e postura. Imaginamos coisas ou
processos irreais existindo ou acontecendo em nós, ou em nossa relação com o ambiente, ou
ainda, em nossa relação com o outro.
69
A pessoa deve estar realmente livre em sua observação, a ponto de perceber que ao
realizar novamente uma investigação motora já realizada anteriormente, ela pode encontrar
um resultado novo, diferente. E mesmo que o resultado seja semelhante, as percepções e
sentimentos podem ser variados. É uma questão de momento: “[...] um mesmo exercício,
realizado em momentos diferentes, provoca na mesma pessoa reações diversas ou
opostas” (ALEXANDER, 1991, p. 34). Um mesmo estímulo pode gerar uma pluralidade de
impressões. “Essas experiências [...] ensinam aos professores e aos alunos que não há uma
solução definitivamente válida, e que não se devem ater a receitas que tenham dado bons
resultados, mas que convém reexaminá-las constantemente” (ALEXANDER, 1991, p. 34-
35).
num determinado momento” (ALEXANDER, 1991, p. 34). A fala necessita ser clara. Não se
deve usar um tom sugestivo que induza resultados, pois é preciso garantir que cada pessoa
possa reconhecer sua própria realidade. Gerda exemplifica: “Fala-se de temperatura do
corpo, não de calor ou frio; pede-se ao aluno que sinta seu corpo, sem sugerir-lhe uma
qualidade (pesada ou leve)” (ALEXANDER, 1991, p. 36). Nesse contexto, novas sutilezas
entram no jogo: o modo de falar, de indagar e o tom da voz.
Essa admirável sacada de Gerda torna ainda mais inegável o fato de que o mediador
do aprendizado somático precisa ser, antes de qualquer outra coisa, um soma bem
desenvolvido. Esse é um ponto crucial no que tange o processo de ensino-aprendizado em
Educação Somática. O mediador precisa possuir uma sofisticada bagagem somática, ou
seja, ele precisa ter passado por um frutífero processo de educação somática105. Isso é
muito presente no discurso de Gerda, quando ela fala do professor de Eutonia: “Para ser
pedagogo em eutonia, assim como para utilizar esse método em terapia, é indispensável
aprender primeiro a viver a eutonia no próprio corpo. É a condição primordial”
(ALEXANDER, 1991, p. 33).
105
Conforme esclarecido na nota 14, na página 6 da introdução desta tese, a grafia com iniciais
minúsculas é usada como sinônimo de 'processo educacional somático'.
71
Quando fui até Elsa Gindler pela primeira vez, em 1923, ela estava muito
interessada na respiração e nas tendências positivas do organismo: de
curar a si mesmo; se renovar; se equilibrar. Gindler tinha desistido de
qualquer ensinamento, ela disse: "Não quero mais ensinar; quero procurar;
quero estudar. Eu quero descobrir, e qualquer um que queira vir comigo
para estudar e descobrir junto é bem-vindo." Esse foi um tempo magnífico
que tivemos todos juntos. As pequeninas reações e as menores
descobertas eram levadas muito a sério (SELVER, 2013, s.p. tradução
106
nossa ).
106
When I first came to Elsa Gindler in 1923 she had become very interested in breathing and the
organism’s positive tendencies: to heal itself; to renew ; and to balance. Gindler had given up any
teaching, she said: “I don’t want to teach anymore; I want to find out; I want to study. I want to
discover and whoever wants to come with me, to study and discover together, is very welcome.” It
was a magnificent time we all had together. The tiniest reactions and the smallest discoveries were
taken very seriously.
107
When class began in the morning there was first one and a half hours work on breathing. Next, we
would spend time with inner functioning as it related to how we moved. Then, we would explore
how we dealt with bigger questions: how we go into difficult tasks in daily life; how we approach
72
other people; how we get in touch with them; how we speak to them; how we help a person to rest
more, or to become more vivid, or to become more balanced. Gindler had a very deep interest in
how we acted in moments of stress. These possibilities were endless. We worked on each other,
with each other and alone. We could work the entire day on one activity, be it in class or on our
own. It was a deeply human study that embraced everything a human being could do.
108
O toque também será abordado no capítulo 3, em 'Toque' - página 145.
109
[...] aprender a tocar pero también aprender a no tocar.
110
[...] hay momentos en los que el otro cuerpo necesita estar en contacto consigo mismo o no está
preparado para ser tocado [...]
111
[...] flexible [...] atento a las necesidades del otro.
73
112
A veces, en la zona del esternón, la piel se aprieta y no le permite al hueso su movimiento natural
en el interior del pecho durante la respiración. Si observamos la piel alrededor de la columna
vertebral, veremos que hay sectores en los que la piel parece estar pegada, hablando a través de
ese lenguaje sobre la vida de la persona, sobre suas posturas, sus esfuerzos, sus tensiones, su
humor.
113
[...] function maintains structure.
114
Conforme esclarecido na nota 14, na página 6 da introdução desta tese, a grafia com iniciais
minúsculas é usada como sinônimo de 'processo educacional somático'.
74
Fonte: http://www.ideokinesis.com/pioneers/todd/todd.htm
115
Principles are fundamental 'sources of discovery' that 'enable the inspired person continually to
invent creative strategies for working with others [...].
76
É interessante reparar que alguns dicionários não usam o termo 'consciente' como
tradução para aware, e nem o termo 'consciência' como tradução para 'awareness'.
Observemos que 'estar atento a', ou 'estar ciente de' soa diferente de 'estar consciente de'.
Quando dizemos "Estou ciente disso" ou "Estou atento a isso", estou me referindo a algo.
Quando dizemos "Estou consciente disso" normalmente, não estou me referindo a uma
coisa, mas a um fato ou circunstância.
116
Michaelis Dicionário ilustrado, v. 1.
117
Michaelis Dicionário ilustrado, v. 1.
77
maneira mais útil de alguém exercitar controle voluntário sobre seu repertório de habilidades
sensoriomotoras" (HANNA, 1995, p. 348, tradução nossa118).
118
It is a most useful way of exercising voluntary control over one's repertoire of sensory-motor skills.
119
Awareness is the function of isolating 'new' sensory-motor phenomena in order to learn to
recognize and control them. It is only through the exclusionary function of awareness that the
involuntary is made voluntary, the unknown is made known, and the never-done is made doable.
Awareness serves as a probe, recruiting new material for the repertoire of voluntary consciousness.
120
[...] somatic learning begins by focusing awareness on the unknown. This active focusing identifies
traits of the unknown that can be associated with traits already known in one's conscious repertoire.
Through this process the unknown becomes known by the voluntary consciousness. In a word, the
unlearned becomes learned.
121
As the soma's achieved state of sensory-motor learnings, consciousness cannot perform beyond
78
126
Involuntary somatic events - such as autonomic reflexes - are not necessarily subject either to
conscious sensory recognition or to conscious control. Bur these involuntary functions can become
included in the repertoire of consciousness by the human learning to recognize and control them.
127
Because it involves accumulation of voluntary sensory-motor skills, the greater the range of
consciousness, the grater will be the range of autonomy and self-regulation.
128
Human consciousness is, in fine, the instrument of human freedom.
80
Essa técnica, segundo Behnke, é a chave para a sabedoria do deixar fluir. Tem-se
como prerrogativa a realidade de que, quando a consciência se une a algo corporal, o corpo
sempre irá procurar, espontaneamente, os melhores caminhos rumo aos possíveis ajustes
tônicos e posturais referentes a esse algo. Analisando detalhadamente as etapas do
procedimento (as quais podem ocorrer também simultaneamente, conforme colocado por
Behnke), observamos que na primeira etapa o matching consiste em uma espécie de
identificação, por parte da consciência, de alguma faceta da experiência corporal vivenciada
no momento. Há algo que se identifica, como uma forma, uma tensão ou um movimento -
129
[...] a process that constitutes its own unity and continuity by constant self-regulation. The
externalized 'body' seen by the third-person observer is the living product of this continuous somatic
process.
130
Michaelis Dicionário ilustrado, v. 1.
131
In its most schematic form, the matching technique may be said to consist of three parts: (1)
awareness of something in one's own body; (2) an inner act of matching or aligning oneself with
this; and (3) allowing something to change. In actual practice these can flow together
81
algo do qual se está consciente. Direciona-se a consciência para esse acontecimento, a fim
de observá-lo. Observa-se, por exemplo, a forma que uma parte do corpo está ocupando no
espaço. Se a parte do corpo for a perna, a pessoa poderá identificar a forma circunstancial
que a perna está configurando em determinada posição corporal, ou a forma da própria
perna. Se a auto-observação é voltada para o tônus de determinada parte do corpo, a
pessoa irá identificar e observar a qualidade desse tônus. Se o foco da auto-observação for
um movimento, poder-se-á identificar se ele é fluido, ou se é obstruído. As possibilidades de
identificaçãou ou reconhecimento são muitas. Nas palavras de Behnke:
Nessa fase inicial do processo de matching, conforme enfatizado por Behnke, deve-
se apenas reconhecer o que se passa, sem interferir. Identifica-se percepções boas,
identifica-se percepções desagradáveis; "goste eu disso, ou não" (BEHNKE, 1995, p. 320,
tradução nossa133). A segunda fase do processo de matching se desenrola quando, apesar
de nos sentirmos impelidos a fazer algo, a interferir na paisagem identificada, não
interferimos, e passamos a considerar que aquilo que está acontecendo está sendo
realizado por nós: aquilo está acontecendo em mim porque eu estou fazendo aquilo (apesar
de sentir que aquilo está acontecendo independentemente da minha vontade). Colocamos a
consciência em uma condição de autoria, como se ela estivesse fazendo aquilo de
propósito, como se aquilo não fosse um produto de nossos automatizados hábitos
neuromotores. No geral, após a identificação de algo que se destaca na paisagem
perceptiva corporal, temos a tendência de agir: ou nos massageamos, ou respiramos muito
profundamente, ou nos mexemos um pouco etc. Quando se trata da prática do matching,
132
Let us say, then, that I decide to practice matching. Perhaps I begin by setting aside whatever I am
doing and allowing the feeling of my own body to come more fully to awareness. I do not try to relax
or to correct my posture in any way, but simply let myself be conscious of whatever there is to feel,
just as it is, welcoming it with a calm, 'oh, how interesting' attitude rather than a critical, fault-finding
attitude. Typically, something or other will stand out - a feeling of tightness somewhere in my body,
for example, or an awareness of a particular shape, such as the feeling of one shoulder being
slightly turned to the left.
133
[...] wheter I like it or not.
82
não fazemos nada, apenas observamos, considerando, entretanto, que o que está
acontecendo - involuntariamente - está a ser feito por mim. Procuramos sentir isso. Nas
palavras de Behnke:
Outro fator interessante e importante nessa história consiste no seguinte: aquilo com
o qual eu me uno não possui uma natureza congelada, estanque, mas encontra-se em fluxo.
Como colocado por Behnke: "Eu não tento controlar isso. Eu simplesmente me junto a isso.
Não enquanto um fato estático, mas como algo em curso, e que, dessa maneira, continua a
ser. E eu faço isso não como um espectador, mas como um participante" (BEHNKE, 1995,
p. 320, tradução nossa135).
A terceira fase do matching diz respeito ao que acontece após a consciência se unir
àquilo que foca. O que acontece? Behnke comenta sua experiência própria:
134
[...] in matching, I do not try to change the shape or the tightness: I match it. [...] I enter the shape
or the tightness, feeling it from within as clearly as I am able, and I begin to appropriate it as
something I myself am doing - tightening myself precisely here, or holding myself in exactly this
shape.
135
I do not try to control it. I simply join with it, not as a static fact, but as something ongoing,
something that is continuing to be just this way. And I do so not from the vantage point of a
spectator, but from that of a participant.
83
De acordo com Behnke, as mudanças que ocorrem se dão, na maior parte das
vezes, em áreas diretamente relacionadas àquilo que se observa. Se era um retesamento
em certa região do corpo, a tensão vai se abrandando, o local vai se liberando; se era um
movimento, ele começa a ganhar uma qualidade diferenciada ou uma nova relação com os
pontos de apoio utilizados etc. No entanto, segundo Behnke, o matching pode ter sido feito
com uma parte específica do corpo, e acarretar uma mudança em outra parte, tal qual uma
reverberação, o que aponta que o tipo de mudança em questão nesse processo se dá em
níveis bem profundos, onde o todo é envolvido, havendo comunicação entre as partes
(BEHNKE, 1995, p. 138). Quando isso ocorre, de acordo com ênfase dada por Behnke, a
mudança vinda dessa reverberação é, geralmente, uma mudança na direção de uma maior
abertura proprioceptiva e cinestésica, de uma desenvoltura corporal integrada. A pessoa
tem a possibilidade então de fazer o matching com essa parte na qual o primeiro matching
reverberou, e conferir se isso a levará a uma nova reorganização.
136
Sometimes, nothing happens. But often, what happens is that I feel myself spontaneously shifting,
releasing, or reorganizing myself in a slightly different way, with a new shape and a new body
feeling.
84
Em relação ao final dessa fala de Behnke, uma questão merece destaque: o aspecto
prazeroso das mudanças espontâneas proprioceptivas. É óbvio que o prazer do movimento
não se restringe a esse contexto do matching, pois o movimento intencionado também porta
prazer, com suas forças de afeto. No entanto, vale abrir aqui um parêntese, a fim de que
seja pontuada essa tão importante questão do 'deleite'. Sentir/reconhecer que somos um
corpo, e que o corpo é naturalmente fluido; é devir, fluxo; que é, em si mesmo, movimento, e
movimento inteligente, que busca espontaneamente harmonizar-se, sem que nossa vontade
precise direcionar isso, é algo impactante, ainda que esse impacto seja manso. E nesse
ponto, há que se notar que o 'manso', assim como o 'simples', muitas vezes, é por nós
negligenciado ou despercebido.
137
One can, of course, use the 'golden moments' of bodily awareness to try out new ways of
organizing one's body, first sensing what is there and then consciously changing into a new
configuration. But the matching technique I am describing is a process in which one allows oneself
to change spontaneously, rather than attempting to direct the process in a particular way.
Sometimes the shift will be a familiar one; I may even get what I expect. If, however, I am able to
set aside both my specific expectations about what will happen next and my desire to control what
is going to happen, the spontaneous shifts can be a surprise as well as a delight.
85
devolvemos essa 'congelada' parte corporal à dimensão da continuidade. Deixamos "a porta
aberta", para que novas possibilidades possam emergir.
Com "as portas abertas", um matching ocorrido pode desencadear outro matching,
em uma retroalimentação. O matching pode ir se expandindo pelo corpo: algo desponta do
plano de fundo da experiência proprioceptica/cinestésica, ocorre um matching; pode-se dar
continuidade a isso, realizando-se um novo matching em outra parte do corpo. A diversidade
vai ganhando terreno. Diferentes impressões vão ocorrendo, diferentes sentimentos vão
surgindo. Behnke dá um exemplo:
Posso começar com algo que se salienta - por exemplo, certo sentimento
em algum lugar em torno do meu tornozelo - e ao invés de fazer o matching
apenas com o gesto [movimento] que estou realizando nessa articulação,
posso prosseguir e me unir à forma de toda a minha perna, talvez seguir
subindo e adentrar o como estou em meu torso, no outro lado da minha
138
pélvis, e assim por diante. (BEHNKE, 1995, p. 321-322, tradução nossa ).
Quando sentimos que o formato com o qual nos unimos é, em realidade, parte de um
formato maior, podemos nos unir a esse outro formato. Uma união com o osso sacro passa
a ser uma união com todo o complexo ósseo da pélvis. Segundo Behnke, por meio dessas
passagens de um matching para outro, vamos ganhando um sentido maior de integração
(BEHNKE, 1995, p. 322). Vamos deixando de nos sentir como uma soma de partes
separadas para nos sentirmos um todo, e nos sentirmos em movimento como um todo; um
todo constantemente remodulado por sinergias. O esqueleto pode ser sentido como uma
única estrutura, ao invés de um conjunto de ossos com movimentações específicas; o
sistema muscular pode ser sentido como um expesso e multidirecional músculo: "um único
largo músculo, elegantemente diferenciado em muitos detalhes intrincados, contraindo-se
aqui, e expandindo-se ali" (BEHNKE, 1995, p. 329, tradução nossa139). A experiência de
sentir-se um todo integrado pode ser estimulante e transformadora.
No entanto, parece óbvio que nem todas nossas partes corporais sejam fáceis de ser
acessadas e espontaneamente dinamizadas pelo processo do matching. Temos áreas que
não sentimos, que são vazios em nossa percepção, o que Hanna chamou de 'amnésia
sensoriomotora' (HANNA, 1995, p. 349-350). Essas áreas são como lacunas existentes
entre áreas ativas. Para esses casos, Behnke esclarece que uma abordagem frutífera,
138
I can begin with something salient - for instance, a certain feeling somewhere around my ankle -
and then instead of matching only the gesture I am making at this joint, I can begin to match the
inner "felt shape" of my whole leg, perhaps even following this up into how I am in my torso, at the
other side of my pelvis, and so on.
139
[...] one large muscle, elegantly differentiated into many intricate details, contracting here and
lengthening there [...]
86
Behnke faz uma ressalva para uma possibilidade de matching diferente daquela que
inicia-se com o reconhecimento de algo que se salienta do fundo da experiência. Essa outra
possibilidade consiste em identificar o próprio fundo da experiência
proprioceptiva/cinestésica, estando esse ambiente em estado de calmaria, sem nenhum
'algo' despontando, e se unir a ele. Nas palavras de Behnke:
[...] ao invés de começar com algo que já encontra-se saliente, posso fazer
o matching com o pré-sentimento (i.e., o ambiente geral de certa área ou do
todo, antes que qualquer coisa em específico esteja despontada; ou seja, o
fundo em sua normalidade) (BEHNKE, 1995, p. 321-322, tradução
140
nossa ).
Essa pacata aventura nas terras do 'fundo' exige uma atitude ainda maior de
abertura, um estado de sensibilidade aguçada; lúcida embriaguez perceptiva/sensitiva. A
mente reflexiva deve estar passiva e receptiva. Não se sabe o que virá. A cada instante, não
se sabe. Uma mudança ocorre sem anunciar-se, ocorrendo simplesmente. Estar nesse
'lugar', ser esse 'lugar' é algo que, normalmente, não estamos acostumados a vivenciar.
Uma experiência que pode ser considerada semelhante a isso é a meditação, pensando-se
nesta enquanto prática de observação passiva do pensamento. Quem medita, o faz porque
acredita que isso lhe faça bem, que isso seja positivo, agregador de saúde,
equilíbrio/harmonia e sabedoria. O mesmo pode ser dito em relação ao matching. Como
ressalta Behnke, ter a mente no estado de matching, "não apenas significa assumir que
140
[...] instead of starting with something that is already salient, I can match the pre-feeling (i.e., the
general ambience in a certain area or in the whole of me before anything specific stands out, the
background normality) [...]
87
posso confiar em meu todo somático, como também ajuda-me a realmente experienciar a
mim mesma enquanto um todo articulado" (BEHNKE, 1995, p. 328, tradução nossa141).
Finalizando esse tema do matching, vale destacar que o toque pode ser praticado no
contexto dessa técnica. O que Behnke sugere é que utilizemos o toque como
desencadeador da união consciência-acontecimento, quando a parte corporal na qual
estamos tentando aplicar o matching não for responsiva. O uso do toque não se dará como
costuma ocorrer normalmente. Ao colocarmos, por exemplo, a mão sobre o pé, tentaremos
sentir não o convencional - a mão tocando o pé, mas a outra possibilidade - o pé tocando a
mão. Então, Behnke sugere que uma estimulação tátil possa ocasionar o matching. Ela diz:
"[...] eu toco meu pé levemente em algum lugar desta terra de ninguém" (BEHNKE, 1977, p.
322, tradução nossa144). E chamo a presença adormecida dessa terra, dando para ela o
papel de tocador (aquele que realiza o toque), enquanto lhe tiro o papel de tocado (aquele
que recebe o toque). Penso: esse pé que toca minha mão sou eu tocando minha mão. É
uma estratégia, "[...] um caminho para quebrar o ciclo da amnésia sensoriomotora que
141
[...] not only assumes that I can trust my own somatic wholeness, but helps me actually experience
myself as an articulated whole.
142
[...] is a way to allow the whole itself to lead.
143
Esse tema será abordado no capítulo 2, em 'Recebendo e processando o ambiente' - página 98.
144
[...] I touch my foot lightly somewhere in this "no man's land".
88
nublou minha consciência [atenção] dessa parte" (BEHNKE, 1977, p. 323, tradução
minha145).
145
[...] a way to break the cycle of sensorimotor amnesia that clouded my awareness of this part [...]
89
da inteligência espontânea de movimento. Com a vida cada dia mais tecnologizada, o ser
humano está deixando de usar suas possibilidades motoras.
Feldenkrais coloca: "O estágio sistemático de ação não é de todo vantajoso. Sua
principal desvantagem é que muitas pessoas nem mesmo tentam fazer coisas
especializadas" (FELDENKRAIS, 1977, p. 47). Por outro lado, em determinadas
circunstâncias, é preciso que algumas habilidades sejam adquiridas diretamente pelo
terceiro estágio. Observamos também que a transmissão sistematizada do conhecimento é
algo necessário quando uma sociedade pretende dar ampla divulgação e acesso a
determinados conhecimentos. As técnicas, métodos e sistemas de aprendizado têm essa
função. No entanto, paradoxalmente, ao mesmo tempo que elas facilitam a transmissão dos
conhecimentos, elas também a dificultam.
90
Finalizando este tópico e este capítulo, vale a pena enfatizar que a Educação
Somática, com suas conceitualizações, questões empíricas e procedimentos peculiares
abriu e abre portas para o ser humano se conhecer e se reinventar. Conforme fora colocado
no tópico 'A Educação Somática e as Artes da Cena: frutos e raízes' (página 61), a
Educação Somática e as Artes da Cena se ajudam mutuamente desde os primórdios do
campo da Educação Somática. Esta tese deseja ser uma contribuição para essa relação
bonita e potente.
91
Alcança-me
um raio de sol
que meu olhar não pode suportar,
que meu ventre recebe prazerosamente,
e que em meus pés
desperta a memória de todos seus
verões.146
Susana Kesselman147
146
Me alcanza
un rayo de sol
que mi mirada no puede soportar,
que mi vientre recibe placenteramente,
y que a mis pies
les despierta la memoria de todos sus veranos.
147
KESSELMAN, 2005, p. 25.
92
religiosidade, apesar de muito interessantes, não constituem o foco desta tese, e por isso
não serão levados a diante. No entanto, considerei importante mencionar essa questão.
A integração corporal, que, sob um primeiro olhar, pode parecer limitar-se a ser uma
integração da pessoa consigo mesma, também é integração com o ambiente. Quando
sensibilizados somaticamente, sentimos que somos parte de algo maior. A amplitude e a
natureza desse sentimento varia imensamente entre as pessoas, e isso precisa ser
respeitado.
148
And man? Whoever he is, wherever he is, he too lives in movement. His body is a world of
movement in itself. Breathing and circulation, digestion and reproduction are all unconscious
movement processes, the wonderful motor pattern of his life. Within this pattern he lies down, he
sits, he stands, and standing, walks and runs. He sleeps, eats, copulates, fights, weeps, laughs,
and talks.
93
Durante o minuto que levará para você ler esta página [o texto abaixo fica
em uma única página do livro de Sherwood]:
Seus olhos converterão a imagem desta página em sinais elétricos
(impulsos nervosos) que transmitirão as informações ao seu cérebro para
processamento.
Além de receber e processar informações como impulsos visuais, seu
cérebro fornecerá informação aos seus músculos, para ajudar a manter sua
postura, mover os olhos pela página enquanto você lê, e virar a página
quando necessário. Mensageiros químicos levarão sinais entre seus nervos
e músculos para ativar a contração muscular adequada.
Seu coração baterá 70 vezes bombeando 5 litros de sangue para seus
pulmões e outros 5 litros para o restante do corpo.
Aproximadamente 150 milhões de glóbulos vermelhos velhos morrerão e
serão substituídos por outros recém-produzidos.
94
Toda essa movimentação organizada pelos sistemas corporais pede que haja uma
harmonia, caso contrário, vários colapsos se tornam possíveis. Para que haja um bom
desenvolvimento das células, e do organismo como um todo, é necessário haver equilíbrio
entre as funções vitais. O corpo é, em si mesmo, movimento: é fluxo tanto quanto é
estrutura; variação tanto quanto constância. O equilíbrio entre as funções vitais também é
igualmente importante para o movimento corporal no espaço.
149
While writing, I am aware of only some parts of my body and also some of my activity. You, while
95
Mary Whitehouse, nessa ode ao movimento da natureza, nos lembra que sem haver
movimento, nada existe. O movimento é o acontecimento. Há movimento no nível macro, e
há movimento no nível micro. Os átomos estão em movimento. No movimento convivem
sintropia e entropia, catabolismo e anabolismo, e isso também no corpo humano. Seja qual
for a perspectiva existencial das pessoas, se espiritualista, materialista ou outra, existe um
concreto 'algo maior' ao qual o corpo integra-se: o ambiente. A dinâmica psicológica das
pessoas é uma dinâmica de interação com o meio. A dinâmica fisiológica do corpo é uma
dinâmica de interação com o meio. Como coloca Bonnie Bainbridge Cohen: “Com cada
respiração e batida do coração estamos mudando em resposta à nossa homeostase interna,
nosso relacionamento com o ambiente e interação com os outros" (COHEN, 2014c, p. 8).
reading, are equally aware of only some parts of yourself and of parts of your activity. Immense
activity goes on in both of us, far greater than we appreciate or are aware of. This activity is related
to what we have learned during our whole life [...]
150
Movement is the great law of life. Everything moves. The heavens move, the earth turns, the great
tides mount the beaches of the world. The clouds march slowly across the sky, driven by a wind
that stirs the trees into a dance of branches. Water, rising in mountain springs, runs down the
slopes to join the current of the river. Fire, begun in the brush, leaps roaring over the ground. And
the earth, so slow, so always there, grumbles and groans and shifts in the sleep of centuries.
96
cargas elétricas subatômicas. É preciso que tenhamos sempre à nossa disposição átomos
com carga elétrica facilitadora de reações químicas, como os íons. Considerando o Planeta
Terra como contexto, podemos dizer que os átomos não nascem a cada instante, assim
como ocorre com as células e os seres-vivos. Eles estão disponibilizados. As estrelas
poderiam entrar nessa explicação, já que produzem os átomos, mas se eu fizesse isso, essa
discussão se tornaria demasiada complexa para mim. Me limitarei a dizer que os átomos
vivem no Universo. Com a morte do organismo, não há mais energia nele, porque ele parou
de alimentar-se. A vida cessou-se nas células, e os átomos vão se movendo para fora do
corpo, sendo atraídos pelo ambiente.
Diante das condições impostas pelo ambiente, incluindo as transformações que nele
ocorrem, a capacidade de adaptação é aquilo que possibilita a vida manter-se viva. Um
ótimo exemplo de adaptação ao ambiente pode ser apontado tomando-se como exemplo o
provável ancestral de todos os vertebrados terrestres - Tiktaalik roseae - o peixe que
adaptou-se a sair da água, passando a dar voltas pelo solo terrestre (SHUBIN, 2008). Em
2004, arqueólogos encontraram fósseis dessa espécie, possivelmente a primeira a coabitar
água e terra. Tendo evoluído de espécies puramente aquáticas, a estrutura óssea de suas
nadadeiras, inclusive das nadadeiras traseiras, inovou-se, rompendo com o padrão ósseo
97
dos peixes, tendo se tornado uma estrutura que possibilita outra forma de interação com a
gravidade e o peso corporal.
Uma vez mudado o meio (do aquático para o terrestre), relação com a gravidade é
outra. Os Tiktaalik roseae passaram a dialogar com a gravidade no ambiente terrestre,
deslocando-se no chão sob o apoio de suas nadadeiras-patas. No capítulo 4, no subcapítulo
'Integração das partes corporais' (página 218), ao serem vistos os padrões espinhal e
homolateral do movimento corporal, serão apontados caminhos de investigação perceptiva
que nos conectam ao Tiktaalik que temos em nós; caminhos que nos levam a visitar
padrões ancestrais de movimento, os quais estão inscritos em algum lugar do nosso longo
código genético. Como coloca Laban, movimento é também capacidade de adaptação: "O
movimento dos animais fala das sofisticadas adaptações ambientais nas quais uma espécie
particular imerge a fim de caber cada vez melhor, de modo mais diferenciado nas obras da
natureza" (LABAN apud BARTENIEFF, 1980, p. 1, tradução nossa151).
Sabe-se que o cérebro dos nossos ancestrais ficou maior quando seus
braços e mãos foram liberados para outros tipos de atividade, pela
conquista da bipedia. Com uma maior capacidade cerebral, foram tornando-
se capazes de segurar coisas com as mãos, de fabricá-las e de identificá-
las. Os usos da mão se relacionam com a modificação da sua estrutura, ao
longo do tempo, e com o aumento do tamanho do cérebro a ela
correlacionado, que permitiu o desenvolvimento de novas habilidades.
Entender que na nossa história evolutiva é a relação corpo-ambiente que
promove a transformação tanto do corpo como do ambiente nos permite
ligar o que existe fora e dentro do corpo. Mais que isso, pois nos leva a
entender como o que está aparentemente fora se torna corpo. (KATZ, 2009,
p. 27).
Disso podemos notar que o diálogo com o espaço ambiental é então fundamental -
atrito, velocidade, delimitação, compressão, direção - pois possibilita o diálogo entre
diferentes propriedades mentais. No locomover-se existe uma vontade potentemente
relacionada ao ambiente. Mover-se em locomoção é dinamizar a relação que se tem com o
151
Animal movement speaks of the fine adaptations with wich a particular species has immersed itself
into its surroundings to fit increasingly finer, more differentially into the workings of nature.
98
ambiente, considerando parte dele os outros seres que nele estão, com os quais me
relaciono; é avançar, recuar; ir ao encontro de algo, afastar-se de algo. A velocidade do
deslocamento, com suas acelerações, desacelerações e pausas estará sempre em diálogo
com o ambiente, desenhando o espaço a ser percorrido. O que indicará o desenho são as
circunstâncias relacionadas ao ambiente, e as condições físicas do organismo ou do corpo
que se locomove. Ao pensarmos a locomoção dessa maneira, enquanto dinamicidade
relacional, as formas de locomoção passam a nos revelar algum tipo de sabedoria muito
peculiar, um caráter de novidade: voar, andar, nadar, perfurar, arrastar-se etc. O ambiente
dirá qual é o meio onde se dará o locomover-se: ar (céu), chão (terra, mato, asfalto, gelo),
água (mar, rios, poças). Os organismos estão sempre buscando se preparar para essa
interação com as especificidades dos diversos meios.
Os estímulos ambientais chegam a nós por sensações, e são processados por nossa
percepção. Desse modo, sensação e percepção são dois processos estreitamente
relacionados, formando o processo sensorioperceptivo. De acordo com Harvey Schiffman:
O ambiente passa informações para o corpo por meio dos órgãos dos sentidos.
Esses órgãos são como portões de entrada dos dados ambientais no corpo: informação
luminosa e imagética, informação material, informação sonora, informação química,
informação de pressão. Os olhos captam o ambiente; a pele capta o ambiente; os ouvidos
captam o ambiente; o nariz capta; a língua capta o ambiente; o corpo capta o ambiente. A
Educação Somática dá ao sentido gravitacional um valor que não costuma ser dado a ele.
Os receptores da gravidade estão espalhados por todo o corpo152. Devido a isso é que fora
incluído na sequência a pouco mencionada o trecho: "o corpo capta o ambiente".
152
Esse tema será detalhado mais adiante, em 'Funcionamento da percepção de movimento', a partir
da página 112.
99
Considerar o processo da sinestesia (com 's') é algo que nos ajuda a compreender
que as sensações trabalham juntas. A sinestesia consiste em relações de estimulação
trocada entre esferas sensoriais diferentes. Por exemplo, determinado som, por estimulação
sonora, pode tornar meu sentido tátil mais sensível. Em uma circunstância peculiar, na qual
minha visão periférica tenha sido estimulada encontrando-se mais aguçada, pode ocorrer de
meu sentido gravitacional ficar momentaneamente mais apurado. Em níveis mais fortes, a
102
sinestesia é incomum. Quem a experimenta desse modo pode, por exemplo, sentir cheiros
ao ver imagens (inodoras), ou ver imagens ao escutar músicas.
O filósofo Alva Nöe diz: "perceber é uma maneira de agir" (NOE, 2006, p. 1, tradução
153
nossa ). Esse entendimento está muito em sintonia com o modo como a Educação
Somática encara a percepção. Nöe completa: "Perceber não é algo que acontece conosco,
ou em nós. É algo que nós fazemos" (NOE, 2006, p. 1, tradução nossa154).
153
[...] perceiving is a way of acting.
154
Perception is not something that happens to us, or in us. It is something we do.
155
Definição do Novo dicionário da língua portuguesa: "Associação simultânea de vários fatores que
contribuem para uma ação coordenada". FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986. p. 1590.
156
A título de revisão: O potencial de movimentação inerente à membrana, conforme ressalta
Sherwood (2011, p. 54), se deve ao fato de os lipídios que formam sua malha estarem
constantemente em movimento. Eles vibram, giram e movem-se, trocando de lugar uns com os
outros milhões de vezes por segundo, o que faz com que a membrana celular seja bastante
103
Então, a membrana celular tem uma qualidade que lhe é inerente: a de ser uma ativa
zona de fronteira. Essa qualidade confere à célula uma natureza tátil que está diretamente
relacionada com a função de responder a estímulos internos e externos movimentando-se e
interagindo com o ambiente. Essa função celular é tão importante quanto outras funções
conhecidamente elementares da célula, como a respiração, a digestão, a excreção e a
circulação, pois faz parte do mecanismo autorregulador da célula, o qual possibilita sua
sobrevivência. Para Bonnie Cohen, as membranas celulares são os primeiros receptores
sensoriais, pois "registram o fluxo de fluido que passa através delas e o ritmo e pressão
exercidos em suas paredes internas e externas através de dobramento e desdobramento
espontâneo" (COHEN, 2014c, p. 7).
plástica, e seja, em si mesma, puro movimento. Essa natureza da membrana é o que lhe confere
grande maleabilidade, garantindo-lhe fluidez
157
A título de revisão: O conteúdo do fluido intracelular deve permanecer diferenciado do conteúdo do
fluido extracelular. A membrana deve exercer essa manutenção. Para viabilizar as trocas entre
ambiente interno e externo sem colocar em risco o equilíbrio metabólico do ambiente interno, a
membrana destrincha em componentes menores as moléculas que encostam em suas paredes
externas, exercendo assim um controle bastante sofisticado do que poderá entrar. Esse poder se
deve à sua composição: lipídios (gordura) formando a malha da membrana; proteínas (enzimas)
dispostas como túneis que atravessam a malha, e que possuem 'portões' seletivos, 'inteligentes';
moléculas de colesterol em menor quantidade, esplalhadas na malha e impedindo-a de cristalizar-
se; e carboidratos dispersos sob toda a superfície externa da malha, tal qual antenas que dão uma
identidade específica à cada tipo celular (à cada especialidade celular). (SHERWOOD, 2011, p.
54).
158
A título de revisão: A malha da membrana tem uma camada externa voltada para fora da célula,
uma camada interna voltada para dentro da célula e, entre elas, uma camada intermediária. Esta
camada intermediária da malha é impermeável. Desse modo, tudo que está diluído na água do
fluido intercelular não consegue adentrar desordenadamente a membrana, e a água do fluido
intracelular também não escapole inadvertidamente para fora da membrana. O que passa pela
membrana precisa, necessariamente, ou ser diluível por lipídios, ou atender às 'condições
impostas' pelas enzimas que atravessam a malha da membrana como túneis. Valendo detalhar
que existem proteínas que funcionam como canais controladores de passagem de água. Além da
possibilidade de penetração da membrana, que é uma possibilidade propícia apenas para
materiais de dimensões muito pequenas, também é possível que estruturas maiores adentrem a
célula. Nesses casos, não ocorre a penetração, e sim outro processo: a membrana 'abraça' esses
materiais, encapsulando-os, e os conduz para dentro do conteúdo interno celular.
104
159
[...] primate self-consciousness.
160
[...] spark of sentience.
105
161
That approach entails the search for the properties underlying consciousness down to the level of
the protozoan [a single-celled organism] in order to identify the fundamental cell-level mechanisms
that, when scaled up in complex nervous systems, give rise to the properties that are typically
referred to as “mind”. The unanswered question is: What characteristics of living cells lead
ultimately to the various, higher-level psychological phenomena that are apparently unique to
certain animal organisms? This question concerns essentially biological functions—and is distinct
from “information processing” approaches that might be implemented in silicon systems.
106
Esses fenômenos são vistos de modos diferenciados por diferentes cientistas. Como
coloca Damásio: "Não há unanimidade nas concepções sobre a relação entre mente e
cérebro, especialmente no que concerne à consciência" (DAMÁSIO, 2000, p. 427). E
quando Damásio diz: "mente e comportamento também se correlacionam estreitamente com
as funções dos organismos vivos" (DAMÁSIO, 2000, p. 29), chegamos a um ponto que
interessa de maneira especial à esta tese.
Para Damásio, "A mente teve primeiro de se ocupar do corpo, ou nunca teria
existido" (DAMÁSIO, 1996, p. 17). Considerando juntamente essa frase de Damásio, a
autopoiese de Varela e Maturana (MATURANA; VARELA, 2003), e a ideia de mente
corporalizada de Lakoff e Johnson (LAKOFF; JOHNSON, 2002), chego a pensar que a
mente é uma faculdade corporal tanto quanto o corpo é uma faculdade mental. A fala de
Damásio exposta abaixo se sintoniza com a ideia de mente corporalizada:
O ambiente social no qual vivemos pode ou não nos estimular a explorar nossa
mente corporalizada. Saber que o meio nos move externamente e internamente nos faz
notar que precisamos tomar para nós a missão de decidir que tipo de fomento ambiental
queremos dar a nós mesmos. A ideia de 'consciência celular', trazida por Bonnie Cohen, nos
oferece um caminho de exploração de nossa mente (COHEN, 2015, p. 282). A meu ver, por
também ser uma prática, além de ser uma ideia, para que cheguemos a capturá-la
plenamente em nosso entendimento, precisamos exercitá-la. No tanto que capturei dela,
creio que Bonnie esteja falando de "descermos" em busca da sensação, ou seja, de
procurarmos vivenciar a mente tal qual ela ocorre em camadas cerebrais mais baixas, mais
próximas à medula, nas quais o trânsito entre estímulo ambiental e resposta corporal motora
é resultado de escolhas cerebrais anteriores à vontade ou intenção. Essa "descida" nos
torna um pouco mais próximos das escolhas celulares referentes à recepção dos estímulos
ambientais - a sensação. Contudo, sinto que ainda preciso praticar mais a respeito disso, e
noto certa sintonia entre essa ideia de Bonnie e a ideia da união da consciência observadora
com o acontecimento corporal trabalhada por Behnke, e apresentada no capítulo 1, a partir
108
da página 80. Deixo a seguir algumas falas de Bonnie que considero enigmáticas e
esclarecedoras. Falas nas quais ela se refere à consciência celular:
ligamentos162. A coluna vertebral, nosso eixo longitudinal ósseo, guarda a medula espinal
dentro de sua vala interna. A medula, que corresponde à porção alongada do sistema
nervoso central, é como um rabo que sai do cérebro e preenche toda a vala interna da
coluna. Ela é composta de feixes nervosos onde os neurônios comunicam resposta motora
com resposta sensorial. No trecho transcrito abaixo, Hanna explica como estão organizados
os nervos sensórios e os nervos motores ao longo da medula:
A coluna [a palavra 'coluna' está sendo usada aqui para se referir à medula]
é composta de nervos motores descendentes e de nervos sensoriais
ascendentes que saem, respectivamente, pela lateral frontal e pela lateral
posterior das vértebras. Esse esquema lateral frontal e lateral posterior
continua por todo o percurso da espinha, até o início do cérebro, onde,
justamente pela parte frontal do sulco central do córtex cerebral, passam as
vias motoras, e justamente pela parte posterior, alinham-se as vias
sensoriais. Esse é um esquema que está no centro do nosso ser. (HANNA,
163
1995, p. 344-345, tradução nossa ).
162
É importante observar que o prefixo 'sensorio' do termo 'sensoriomotor' não se refere apenas à
porção sensorial de recepção dos estímulos ambientais (sensação), mas a todo o processo de
decodificação das informações sensoriais (percepção), podendo se referir também à consciência
volitiva quando participamos conscientemente da ação motora. Quando consideramos isso, torna-
se mais apropriado usar as expressões 'estado perceptivo' e 'estado sensitivo' (que enfatiza os
sentimentos de base gerados pelo movimento), ou ainda, 'estado perceptivo/sensitivo' e não
'estado sensorial'. Bonnie Cohen faz uma colocação que deixa isso claro na página 212 da edição
brasileira de seu livro (COHEN, 2015).
163
The column is composed of descending motor nerves and ascending sensory nerves which exit,
respectively, to the fore and aft of the vertebrae. This fore and aft schema continues all the way up
the spine to the top of the brain where, just to the fore of the central sulcus of the cerebral cortex,
lie the motor tracts and just to the aft the sensory tracts are aligned. It is a schema that is at the
center of our being.
110
Desse modo, há um tráfego constante nas duas vias, que corresponde a uma troca
de informações entre o cérebro e o restante do corpo. Esse modo de comunicação faz do
sistema sensoriomotor um "sistema de feedback de circuito fechado" (HANNA, 1995, p. 345,
tradução nossa164). Essa característica de circuito fechado significa que ao mesmo tempo
que chegam dados ao cérebro, também chegam informações ao corpo, pois o circuito é
constantemente ativo nas duas vias, e extremamente veloz. No trecho transcrito a seguir,
Olsen apresenta um exemplo de desencadeamento sensoriomotor referente a uma ação
reflexa (da qual a consciência volitiva não participa):
Padrões reflexos, como tirar a mão de um fogão quente, ocorrem por meio
de um arco reflexo - os nervos sensoriais enviam um sinal para a medula
espinhal (perigo: isto é quente), os interneurônios, através da medula
espinhal, conectam a mensagem aos nervos motores, e um impulso é
enviado aos músculos da mão e do braço para responder (mova sua mão!).
Em um arco reflexo, a resposta é carregada até o nível da medula espinhal,
enquanto o cérebro está sendo informado sobre o que ocorreu: você move
antes de você estar consciente do que aconteceu. (OLSEN, 1998, p. 121,
165
tradução nossa ).
Embora essa descrição seja referente a um movimento reflexo, que não guarda em
si muita complexidade, não envolvendo o cérebro na tomada de decisões, ela já nos
surpreende muito, porque observamos como é eficiente e veloz o funcionamento
sensoriomotor. Continuando a explicação de Olsen, temos que: "Em padrões motores mais
complexos, como andar de bicicleta ou datilografar, os movimentos aprendidos são iniciados
e coordenados por vários componentes do cérebro" (OLSEN, 1998, p. 121, tradução
nossa166).
164
closed-loop feedback system
165
Reflex patterns, like lifting your hand of a hot stove, occur through a reflex arc - the sensory nerves
send a signal to the spinal cord (danger: this is hot), the interneurons connect the message through
the spinal cord to the motor nerves, and a impulse is sent to the muscles of the hand and arm to
respond (move your hand!). In a reflex arc the response is carried out at the level of the spinal cord,
while the brain is being informed of what was occorred: you move before you are aware what has
happened.
166
In more complex motor patterning, such as riding a bicycle or typing, the learned movements are
initiated and coordinated by various components of the brain.
111
Como Bonnie expõe no exemplo acima, há uma motivação para o motorista focar
pré-sensoriamente. Para Bonnie, a escolha que reside na fase do foco motor pré-sensório é
feita pela motivação, pelo desejo, pela atenção e pela consciência dicriminativa (COHEN,
2014b, p. 12). Segundo Bonnie, podemos observar a ausência ou repressão do foco motor
pré-sensório "no tédio, na resistência e nas dificuldades de aprendizado" (COHEN, 2015, p.
216). Nessa maneira de conceber o ciclo sensoriomotor, o aspecto motor é encarado de
modo bem diferente do qual ele é visto na abordagem tradicional. Para mim, fica nítido que
essas duas fases observadas por Bonnie dizem respeito à função atentiva do aspecto
motor, a qual é distinta da função reflexa e da função volitiva. Eu já havia "quebrado minha
cabeça" várias vezes tentando entender onde estaria o momento atentivo do processo de
percepção dentro do ciclo sensoriomotor. Com o acréscimo sugerido por Bonnie, o ciclo fez
mais sentido para mim.
Como coloca Bonnie Cohen, para o sentido do movimento poder existir, há uma
conjunção de processos acontecendo no corpo: a atuação do órgão gravitoceptor, os
processos proprioceptivos (propriocepção), os processos cinestésicos (cinestesia),
processos interoceptivos, atuação da visão e do tato (COHEN, 2015, p. 214). O órgão
gravitoceptor, nossa orelha interna, "registra onde estamos em relação à Terra por meio da
atração magnética da força da gravidade" (COHEN, 2015, p. 215). Dentro dos canais
circulares do órgão gravitoceptor de cada ouvido, minúsculas pedras - os otólitos - rolam
113
conforme movemos a cabeça, estimulando os cílios que revestem a parede interna desses
canais. Essa estimulação informa ao cérebro o posicionamento da cabeça em relação ao
solo (COHEN, 2015, p. 215). No entanto, segundo Bonnie, "A visão, o contato da nossa pele
com a superfície de apoio e os receptores de gravidade no corpo, que registram a nossa
massa, ou o nosso peso, também nos oferecem informações sobre a nossa interação com o
solo" (COHEN, 2015, p. 215).
Desse modo, a todo instante, o corpo traz para dentro de nós o relevo e a
consistência do ambiente onde estamos, valendo lembrar que o tato participa da percepção
gravitacional. Para Bonnie, o tato "é o outro lado do movimento. Eles são a sombra um do
outro [...] O movimento e o tato nos alimentam interna e externamente" (COHEN, 2014b, p.
18). Esse processo de receber e interpretar a ação gravitacional e o suporte do ambiente em
nossa estrutura corporal está diretamente relacionado com o tônus postural167. Ou seja,
nossa percepção de movimento estimula nosso tônus muscular. Como expõe Bonnie: "A
orelha interna também desempenha um importante papel na determinação do tônus postural
167
Esse assunto será abordado e explorado no capítulo 4, em 'Tonificação, ação e
estrutura' (página 283).
114
básico do corpo. O tônus postural é a prontidão dos músculos para responder" (COHEN,
2015, p. 215).
O sentido do movimento pode ser estimulado, assim como os outros sentidos. Toda
prática corporal irá, em alguma medida, refinar a percepção dos movimentos. No entanto,
práticas voltadas para a vivência perceptiva/sensitiva do movimento são especialmente mais
168
O sentido de 'ritmo' aqui utilizado não se restringe a 'ritmo musical'.
169
Esse tema voltará a ser abordado no capítulo 4, em 'Tonificação, ação e estrutura'
(página 283).
115
atuantes nesse refinamento, porque nos tornam mais sensíveis aos nossos próprios
movimentos.
A criança constrói a forma espacial de seu corpo por meio das experiências
que vive ao colocar as diversas partes de seu corpo na boca. o primeiro
esquema corporal que o bebê constrói é a forma tridimensional do esquema
das mãos e dos pés. O resto das partes do corpo se completa por meio das
informações adicionais provenientes de diversos tecidos [...] A construção
final do esquema corporal é predominantemente visual. (VISHNIVETZ,
1995, p. 126).
Para que o corpo possa mover-se no espaço, o cérebro precisa saber qual é a forma
do corpo, o alcance dessa forma, suas proporções etc. Isso é fundamental para o corpo
poder se deslocar de um modo inteligente, ou seja, para o cérebro poder, em uma
116
velocidade extremamente veloz, planejar como o corpo irá se mover para concretizar uma
determinada intenção motora, ou para caber espacialmente em determinado lugar. O
cérebro precisa ter à sua disposição uma representação do corpo. Essa representação, tal
qual dito por Vishnivetz, é construída por meio de diferentes procedimentos nervosos. Um
deles é a estimulação da pele, com os mecanorreceptores epidérmicos enviando sinais para
o cérebro, o ajudando a montar a silhueta do corpo. Outro, é o registro das ações
musculares, avisando ao cérebro que a parte movida existe, que ela pode alcançar tais e
tais posições no espaço etc. Mecanorreceptores de pressão também ajudam o cérebro,
enviando dados referentes à leitura da relação do corpo com a gravidade, o que inclui dados
posturais. Desse modo, conforme o bebê comece a engatinhar, andar, depois correr etc., se
relacionando de diferentes maneiras com o campo gravitacional da Terra, vão ocorrendo
diferentes registros de ocorrência de pressão/peso nas articulações. O cérebro vai
montando a forma do corpo.
170
La representación corporal no es otra cosa que la trayectoria de la aventura de nuestro cuerpo. La
aventura humana que se expresa e el cuerpo y que el cerebro recuerda y nos recuerda.
117
171
[...] is the force through which the structure functions.
172
[...] a very hot, emotional, volatile, chaotic system of energy and process [...]
173
[...] a cool system of organization, clarity and crystallization.
174
There's a wildness to the glands and a sense of control in the nervous system.
118
Os ciclos endócrinos são regulados com a ajuda da glândula pineal - outra fascinante
glândula endócrina. Essa glândula hiper sensível à luminosidade avisa o corpo quando está
dia e quando está noite (SHERWOOD, 2011, p. 685). Ela envia sinais de luminosidade ao
principal relógio biológico do corpo, o núcleo supraquiasmático (SCN), para que ele possa
diariamente "acertar seus ponteiros". Esse acerto precisa ser feito porque os ciclos
circadianos do organismo, que acompanham o ciclo dia-noite da natureza, não possuem
exatamente 24 horas, mas um pouco mais (SHERWOOD, 2011, p. 685). Desse modo, caso
o acerto não fosse feito, o organismo perderia a sincronia com o ciclo dia-noite. Alguns
hormônios precisam circular quando o corpo está em repouso; algumas proteínas precisam
ser feitas quando o corpo está em repouso. A luz estimula a consciência. A escuridão
estimula o repouso. Desse modo, a sincronia com o ciclo dia-noite é importante para o
organismo. Por isso, a glândula pineal recebe um sinal referente à luminosidade do
ambiente e o transmite ao nosso principal relógio biológico, o núcleo supraquiasmático
(SCN). Este se localiza no hipotálamo, acima do quiasma óptico, que é "o ponto no qual
parte das fibras nervosas de cada olho cruza para a metade oposta do cérebro"
(SHERWOOD, 2011, p. 685).
Capítulo 3
Este capítulo consiste na porção mais nuclear da tese. Nele apresento ideias que
são reflexo da minha experiência pessoal como movedora somática176, dançarina e docente
na área de dança, conscientização e expressividade corporal. Registro meu modo de
reconhecer e compreender a peculiar expressividade do movimento somático, a qual
considero conter uma espontânea força poética. Também aglomero e organizo
entendimentos presentes em ideias de importantes personalidades da Educação Somática,
como Mary Whitehouse, Thomas Hanna, Gerda Alexander, Moshe Feldenkrais, Bonnie
Bainbridge Cohen, dentre outros, a fim de indicar fundamentos e princípios para o trabalho
de desenvolvimento da expressividade do soma, assim como modos de provocar essa
expressividade e linhas de investigação pelas quais ela pode ser explorada. O que pretendo
com este capítulo é apresentar uma alternativa de entendimento conceitual e de caminho
pedagógico e investigativo para o trabalho de desenvolvimento da expressividade do
movimento somático.
175
Parte da letra da música Todo Mundo Explica.
176
O termo 'movedor', equivalente a 'movedor somático', será apresentado na página 122.
121
177
Even before any visible movement manifestations, there were inner impulses toward these
preparations. First, an inner impulse to attention to the space around [...] and what it included;
second, to the sense of [...] [the] own body weight and the intention of the force of its impact; third,
to awareness of time pressing for decision. All of this inner participation interrelated with the flow of
[...] movement whose inner impulses fluctuated between freedom and control. Such inner
participation is a combination of kinaesthetic and thought processes that appear to be almost
simultaneous at different levels of consciousness.
178
Every person is a dancer [...]
123
Dito isso, considero importante fazer duas ressalvas para delimitar mais claramente
esse conceito. A primeira consiste em esclarecer que a autoimpressividade está sendo
conceitualmente delimitada considerando-se o contexto do movimento somático. A segunda
diz respeito ao fato de haver uma relação entre a autoimpressividade e a interioridade,
sendo importante distingui-las, para que não sejam confundidas. A interioridade sempre
existe, independentemente do tipo de consciência que temos dela, porque ser uma pessoa
também é ser um lugar onde muitas coisas se passam, continuamente. Já a
autoimpressividade irá existir nas circunstâncias específicas da exploração somática. As
duas estão relacionadas porque a interioridade é a base da qual se deriva a
autoimpressividade.
179
O sentido de expressividade usado nesta tese não abrange apenas o ato de se expressar ou se
exprimir volitivamente, pois trata-se também da vida expressiva inerente à condição da existência
humana - a propriedade de dinamização orgânica e psicológica presente na forma corporal.
124
confiar em sua capacidade anímica (vinda da alma) de sentir uma forma corporal
experimentada transformando-a em percepção e sentimento. Como coloca Mary
Whitehouse:
[...] o corpo não - eu quase poderia dizer 'não é capaz' - de mentir. O ser
humano, como ele realmente existe, não pode, a nenhum momento, ser
encoberto por palavras ou roupas, e muito menos pelas coisas que ele
deseja. Não importa o que ele faça ou diga, ele tem sua própria maneira de
fazê-lo ou dizê-lo, e isso é o que revela seu modo de ser. (WHITEHOUSE,
180
1995, p. 242, tradução nossa )
A expressividade das pessoas gera, nos que a observam, leituras pessoais daquilo
que é expresso, mesmo que sejam leituras inconscientes. Isso significa que a
expressividade carrega em si signos, no sentido de indicar coisas a quem a observa.
Todavia, ela não possui, em si mesma, rótulos semânticos ou combinações de rótulos, pois
ela será recebida por cada observador de maneira subjetiva. Essa comunicabilidade
implícita ao movimento impressionava Mary Whitehouse, que a comenta:
[...] movimento é não verbal, e ainda assim, comunica, isto é, diz alguma
coisa. As impressões que temos das pessoas, nós colhemos tanto a partir
de suas atitudes físicas e gestos, quanto de suas palavras e roupas. O
nervosismo frequentemente mostra a si mesmo em pequenos movimentos
extras das mãos, pés e face; a tensão, em ombros elevados, assim como
na voz elevada; a depressão, em uma linha caída passando por todo o
corpo; o medo, em movimentos limitados e cuidadosamente controlados; e
assim por diante, indefinidamente. Tudo isso é comunicado para nós pelos
outros, e por nós para os outros, estejamos ou não cientes disso, estejamos
ou não descrevendo isso em palavras (WHITEHOUSE, 1995, p. 242,
181
tradução nossa ).
Quando há expressividade corporal elevada em uma pessoa, isso significa que sua
interioridade está dinamizada. Um exemplo disso é o torcedor do Brasil envolvido
intensamente pelos pênaltis finais do jogo Brasil x Alemanha de futebol masculino das
Olimpíadas Rio 2016; um torcedor que vibra - também por dentro. Sua interioridade não está
pacata. Da questão da interioridade dinamizada, deriva um possível desdobramento:
quando o processo interno está intenso, a pessoa que o vivencia pode impressionar-se com
180
The body does not, I would almost say cannot, lie. The human being as he actually exists at any
moment cannot be hidden, by words, by clothes, least of all by wishes. No matter what he is doing
or saying, he has his own way of doing and saying it, and it the way that reveals what he is like.
181
[...] movement is non-verbal and yet it communicates, that is, says something. Our impressions of
people are gathered fully as much from physical attitudes and gestures as from words and clothes.
Nervousness often shows itself in little extra movements of hands, feet, and face; tension, in raised
shoulders as well as voice; depression in downward drooping lines of the whole body; fear in
limited and carefully controlled movement, and so on indefinitely. They are all comunicated to us by
others and by us to others, whether we know it and describe it in words or not.
125
o que percebe em si mesma e sente. Quando, por exemplo, alguém percebe que as batidas
de seu coração se aceleraram de modo não comum e que parecem estar um pouco
descompassadas, essa pessoa irá impressionar-se com isso. Tal impressionar-se não deve
ser confundido com a autoimpressividade. Nesta, as impressões somática possuem um
caráter retroalimentador elementarmente relacionado com o movimento corporal
exploratório. Outro ponto relevante no que tange a interioridade dinamizada diz respeito ao
fato de que é possível estar havendo um alvoroço interno ainda que a expressividade
encontre-se em aparente normalidade, o que significa que a pessoa estará se controlando.
182
The source whence perfection and final mastery of movement must flow is the understanding of
that part of the inner life of man where movement and action originate. Such an understanding
furthers the spontaneous flow of movement, and guarantees effective liveliness. Man's inner urge
to movement has to be assimilated to the acquisition of external skill in movement.
183
[..] un des grands problèmes de la mauvaise utilisation de la technique: créer le mythe, c'est-à-dire,
la technique pour elle-même, la technique comme fin.
127
Quando a técnica não foi dominada, e quando não foi desmistificada, o movimento
geralmente parece artificial ou mecanizado. No caso da falta de domínio, a artificialidade na
dinâmica corporal ocorre devido a entraves técnicos. Precisamos superar as dificuldades
que a técnica nos impõe para podermos conquistá-la e tê-la à nossa serventia, e não o
contrário. Precisamos conquistar a capacidade de nos movermos sem sermos 'atrapalhados'
pela técnica que está em questão. Para isso, precisamos reconhecer nossos limites, pois só
assim poderemos trabalhá-los e expandí-los. Essa necessidade pode ser identificada em
uma fala de Laban:
Para a técnica chegar a ser esquecida, é necessário que ela seja praticada.
Conforme exposto por Olsen, quando há um novo movimento sendo aprendido, há um velho
padrão sendo modificado (OLSEN, 1998, p. 121). Olsen usa esse jogo de palavras porque,
de fato, o sistema nervoso utiliza caminhos neuromotores que ele já conhece para tentar
chegar a uma ação que ainda desconhece. Em suas tentativas, ele vai testando múltiplos
padrões motores, e combinando-os. Ele procura afetar a resposta correta (desencadear
muscularmente as ações motoras que resultarão no movimento desejado). Quando, pela
primeira vez, uma resposta boa é alcançada, dificilmente o sistema nervoso será capaz de
repetí-la seguidamente dali pra frente. Como o novo caminho neuromotor ainda é muito
"raso", o movimento acaba indo pelas "valas mais profundas" - os hábitos. Conforme a
resposta boa é repetida, ela vai sendo mais memorizada - as "valas" que levam a ela vão se
tornando mais fundas. Por conta disso, todo caminho de aprendizado de movimento é uma
serra: sobe, desce, sobe, desce. Até que uma hora, alcança-se um planalto. À medida que o
sistema nervoso vai, gradualmente, refinando a resposta, ele começa a trabalhar a eficiência
e a velocidade do movimento. Desse modo, quando nos dedicamos a aprender técnicas
corporais, o sistema nervoso está o tempo todo "parindo" novos caminhos de inervação
motora e "casando-os".
184
We shoul be acquainted both with the general movement capacities of a healthy body and mind
and with the specific restrictions and capacities resulting from the individual structure of our own
bodies and mind.
130
bem, não nos parece difícil" (FELDENKRAIS, 1977, p. 82). Quando um movimento nos
parece difícil, isso indica que não estamos sabendo realizá-lo do modo adequado, seja por
falta de habilidade, ou por equívoco. "À medida em que a habilidade cresce, a necessidade
de esforço consciente decresce" (FELDENKRAIS, 1977, p. 81). No que concerne ao
crescimento da habilidade, a auto-observação e a repetição têm um papel fundamental. O
modo de se repetir é crucial. É preciso que haja conhecimento sendo gerado: eu aprendo
como essa técnica funciona à medida que a pratico; eu não a encaro apenas como uma
meta, mas como um processo que eu observo e com o qual aprendo. Essa técnica pode
estar sendo criada por mim, devido ao fato de eu ter identificado a necessidade de sua
existência. Ou, pode ter sido criada por outra pessoa. Um caso não deve ser comparado
com o outro em termos de ter mais ou menos valor. Como enfatiza Gerda Alexander,
executar o que outra pessoa criou ou transmitiu é um exercício muito proveitoso, pois nos
obriga a percorrer caminhos e texturas de movimento que não nos são familiares, e isso
expande nosso repertório de possibilidades (ALEXANDER, 1991, p. 42).
Nesse ponto, é necessário observar que, por vezes, pode estar atuando em nossas
concepções, sem que percebamos, o falso paradigma de que toda técnica é burra. O fato de
os métodos lidarem com princípios norteadores e as técnicas com modos codificados
fomentou esse falso paradigma. Como coloca Helena Katz, a qualidade da 'experiência
movimento' é o que importa, e não a origem do movimento (se ele foi descoberto por mim ou
passado para mim por outra pessoa) (KATZ, 2009, p. 26). Se, durante uma abordagem
técnica, experiencio um movimento 'x' de queda, o qual me fora ensinado, ou, se no
contexto de um método, experiencio explorações maneiras pessoais de cair, nos dois casos,
estou experienciando. Pela qualidade do experienciar, sempre haverá algo de inaugural
naquilo que está a se aprender. Evitando-se o aprendizado mecanizado, não atento, a
qualidade do experienciar sempre irá aflorar, mesmo ao realizar-se um movimento passado
por alguém. A capacidade do artista de encontrar o próprio jeito de ser livre no movimento
precisa ser sempre exercitada.
185
"À quoi peut servir d'avoir de la technique si nous ne nous en servons pas? Quelle est la fonction
d'un comédien sinon représenter pour un public? D'un artiste sinon présenter son oeuvre dárt?"
132
3.2.1 Mudança
Em seu confronto com seu organismo, o que lhe sobra não é a ação
realizada mas a resposta do organismo a essa ação. O que importa é até
que ponto o organismo está disposto a aceitar a direção que você lhe ditou.
[...] Essa reação, às vezes, é contrária à intenção da ação. O músculo
estendido à força reagirá contraindo-se com a mesma intensidade, e essa
reação tem a mesma consistência de um reflexo." (ALON, 2000, p. 30).
O medo do novo não é frutífero, embora ele possa surgir. Para quem não tem o
costume de fazer uma inversão sobre as mãos (bananeira) ou de rolar sobre o chão no
plano sagital (cambalhota), a probabilidade de que o medo surja é alta. No entanto, o medo
pode ser transformado em vontade, conforme o fator que assusta for sendo percebido de
outro modo, como um desafio. Para que isso ocorra é preciso que surja confiança. Para que
a confiança surja, é preciso surgir entusiasmo e habilidade. Para que surja habilidade, é
preciso haver mudança perceptiva e agregação de conhecimento. Visitando movimentos
mais simples que preparem o corpo para a bananeira e para a cambalhota, a percepção
será desenvolvida, a experiência ensinará coisas e a habilidade irá aflorar, o que fará com
que o medo dê lugar à curiosidade e à disposição. O que está em jogo não é fazer uma
bananeira ou uma cambalhota, mas como fazer, e esse 'como' precisa ser apreendido
corporalmente e não apenas intelectualmente.
3.2.2 Autonomia
impulsiona sua autonomia, e à medida que esta se desenvolve, ele se torna mais livre em
seu modo de se mover e de ser.
3.2.3 Troca
186
Let yourself stay with an experience until you feel complete.
135
3.3.1 Presença
A presença altera não só a maneira como nos sentimos e nos percebemos, mas
também a maneira como sentimos e percebemos o ambiente e o outro. Ela não se restringe
a ser um estar presente em nós mesmos, pois abrange o estar presente na circunstância do
instante, o que significa que ela é um estado de trânsito dentro-fora. Andrea Olsen,
estimulando vivências somáticas por meio de palavras escritas, pergunta a seu leitor: "O
ambiente muda enquanto você se move, como você percebe a si mesmo?" (OLSEN, 2014,
187
[...] s'oppose au passé et au futur. Le présent est le temps de l'instantané, de l'immédiateté. Il est
en permanence fuyant et insaisissable car il est toujours en train de se réactualiser, de se recréer.
136
p. 5, tradução nossa188), está instigando-o a perceber que o ambinete muda à medida que
mudamos nossas percepções de nós mesmos enquanto nos movemos somaticamente. Ao
fazer isso, Olsen está instigando o estado de presença de seu leitor.
Tal qual apontado por Gerda, a presença requer objetividade e neutralidade, não
devendo ser influenciada por expectativas (ALEXANDER, 1991, p. 10). Essas são
características da observação. Observar não é julgar e também não é analisar, pelo menos
não no contexto somatico. Nesse contexto, ela é simplesmente 'observar'. O observar
somático é perceber/sentir. Então, no estado de presença estou percebendo e sentindo a
mim mesmo, ao ambiente e ao outro. Segundo Gerda, estar presente para o outro significa
que minha consciência do espaço corporal foi expandida até ele (ALEXANDER, 1991, p.
19).
188
Does place change how you move, how you perceive yourself?
189
Taking time to arrive and locate yourself invites embodied awareness.
137
"lugares", mas não lhe interessa medir onde termina um e onde começa o outro. Como o
soma é a primeira pessoa do discurso, ele experimenta a percepção do movimento, o sentir-
se em movimento e o divertir-se pelo movimento como modos de ser.
O soma também sente movimentos que imagina. E ele pode imaginar não apenas
movimentos reais, como por exemplo, o sangue trafegando pelo corpo; mas também
movimentos metafóricos, como por exemplo, o movimento de correntes marítimas dentro do
corpo-oceano. As imaginações acionam ondas tônicas nos tecidos corporais, que são ondas
de sentimentos de movimento. O soma sente e percebe enquanto imagina. O soma pode
passar a mover-se pelo espaço acompanhando a imagem-movimento imaginária: o soma
provoca o que percebe e sente.
190
O tema do pré-movimento será abordado no capítulo 4, no subcapítulo 'Tonificação, ação e
estrutura' - página 283.
138
Estou usando o 'perceber' para me referir às vivências que são mais proprioceptivas,
de arranjo e rearranjo corporal; o 'sentir' para me referir às vivências mais cinestésicas, que
envolvem mais nossas percepções rítmicas do movimento; e o 'brincar' para me referir às
vivências caracterizadas pela ludicidade, quando nos relacionamos mais descontraidamente
com o ambinete, com o outro e com o coletivo. As vivências proprioceptiva e cinestésica
nunca são "puras", ou seja, nunca acontecem sem que esteja também acontecendo a outra,
em alguma medida. Isso acontece porque a percepção do movimento é proprioceptiva e
cinestésica. É por conta desse fato que utilizo a conjunção 'mais' quando me refiro ao
momento proprioceptivo e ao momento cinestésico. Quando nossa vivência de movimento é
provocada por imagens imaginadas, a propriocepção e a cinestesia variam suas
intensidades, a depender do tipo de imagem que está sendo experimentada. Na vivência
lúdica pode haver momentos de propriocepção e de cinestesia, pois a brincadeira corporal
acaba por despertar a percepção do movimento.
livres" (COHEN, 2015, p. 44)191. Essa frase de Bonnie me faz pensar que a liberdade nos
solicita perceber, mas também nos solicita abandonar o perceber. E a liberdade, além de ser
uma circunstância, é um sentimento - um sentir.
O esforço muscular é a força que empregamos para realizar movimentos. Essa força
consome energia, a energia muscular. Essa energia é feita no interior de cada célula
muscular, e para ela ser feita, é preciso que haja oxigênio adentrando a célula. Então,
quando nos movemos, precisamos respirar bem. O fluxo respiratório irá indicar o nível do
esforço. Uma respiração que trava em determinados momentos do movimento indica que ali
o movimento fica mais difícil. Quando a respiração flui harmoniozamente, é um sinal de que
o movimento está sendo realizado de modo econômico, sem esforço excessivo, sem uso
dispendioso de energia. Então, a desenvoltura do movimento somático demanda de nós que
estejamos atentos à nossa respiração.
191
Podemos considerar que Bonnie, ao usar o termo 'continuum', está se referindo à continuidade
que existe entre processos conscientes e processos inconscientes.
140
quantidade enorme de força a ações que podem ser executadas com muito
menos energia, se forem adequadamente dirigidas e graduadas
(FELDENKRAIS, 1977, p. 82).
192
Formulei essa expressão para me referir aos conhecimentos que adquirimos com as vivências
somáticas; conhecimentos que complexificam nosso autoconhecimento e nosso conhecimento de
mundo.
141
energia e podemos gastá-la nas horas oportunas, quando a poesia do soma nos convidar a
isso.
3.4.1 Visualização
193
No capítulo 4, em 'Inspiração, expiração e pausa', a partir da página 183, a vocalização também é
abordada.
142
um osso, uma célula; podemos imaginar coisas não reais, como um osso de chumbo e um
volume corporal gelatinoso. Podemos imaginar processos reais, como a respiração celular;
podemos imaginar processos não reais, como a respiração pelos poros da pele. Quando
visualizamos coisas e processos reais, precisamos conhecer aquilo que imaginamos. Se for
uma coisa, precisamos conhecer a forma dessa coisa, sua consistência, sua textura, seu
peso (quanto mais conhecimento, melhor). Se for um processo, precisamos saber como
esse processo se desenvolve, quais conteúdos corporais fazem parte dele, e quais
estruturas orgânicas estão envolvidas nesse processo.
Quando utilizamos a visualização de coisas reais, isso nos ajuda a ser mais precisos
durante um toque, durante uma intenção de localizar algo dentro de nós, e durante um
movimento. Exemplos dessas três possibilidades (seguindo a ordem em que foram
mencionadas): visualizar o conjunto ósseo pélvico enquanto tateamos esse conjunto;
visualizar o menisco do nosso joelho direito dentro do joelho; visualizar nossas costas
enquanto avançamos de costas no espaço. A visualização de um conteúdo corporal irá levar
a mente a frisar a presença desse conteúdo em nossas representações corporais cerebrais
e, a depender do caso, irá ajudar a consciência a localizar/sentir corporalmente esse
conteúdo. Quando o conteúdo tem dimensões muito pequenas, como por exemplo, uma das
glândulas endócrinas da cabeça, não chegamos a sentir a localização desse conteúdo (pelo
menos não normalmente), mas a imaginamos. Também podemos visualizar coisas e
processos no outro, como uma forma de oferecer auxílio a nós mesmos durante um toque
que realizamos nele, ou durante uma leitura dos movimentos dele.
Quando imaginamos coisas ou processos não reais, o fato da coisa não existir no
corpo, ou do processo não acontecer de verdade, não faz a menor importância. É preciso
que isso fique claro, porque se houver um julgamento interno condenando essa estratégia, o
processo de aprendizado somático estará sendo prejudicado. As visualizações de coisas e
processos não reais são usadas para gerar o acionamento de produtivas configurações em
nossa malha neuromotora, mudanças de tônus e de qualidade de movimento. Lançamos
mão da inventividade perceptiva196. Ao imaginarmos coisas, levamos o cérebro a "construir"
as percepções e sentimentos que essas coisas desencadeiam em nós, mesmo que sejam
coisas irreais. Como coloca Irene Dowd:
194
Open your mind's eye and become aware of the image that is there for moving in this way.
195
Whatever your image, let it move you.
196
Conceito apresentado na nota 103, na página 68.
197
[...] all postural alignment patterns, all muscle use and development, all human body movement is
directed and coordinated by the activity of our nervous system [...] Therefore, in order to change our
body shape or our movement patterns we must change our neurological activity. Although this
neurological activity is habitual and/or nonconscious, changing our exact conscious goals affects
this extensive subcortical, unconscious process.
144
Quando imaginamos que nosso corpo é um volume inteiramente fluídico, que da pele
para dentro há apenas fluidos, ajudamos a função tônica muscular corporal a homogeneizar,
ou pelo menos a harmonizar, o tônus de diferentes partes do corpo. Quando visualizamos
que há correntes aquáticas mobilizando nosso volume corporal fluídico, levamos o sistema
nervoso a acionar sutis impulsos de movimento. E quando deixamos essas correntes nos
fazerem rolar pelo chão, ajudamos o sistema neuromotor a refinar padrões de iniciação do
movimento. A vivência de movimento experimentada a partir dessa imagem tem muitas
semelhanças com a vivência experimentada a partir da imagem do fluxo plasmático. Não é
de todo mentira que somos líquidos por dentro, já que corporalmente somos 70% água.
3.4.2 Toque
O toque tem uma natureza primitiva, ele é livre. Não é por ser leve, que ele será
leviano ou insignificante. Pelo contrário, um toque extremamente delicado pode despertar
profundezas. No entanto, um toque acalorado e afetuosamente vigoroso também pode
despertar profundezas. O toque é livre e primitivo nesse sentido: ele é variável. Como ele
nos faz atuar na fronteira eu-outro - no encontro das minhas mãos com o outro - ele ressalta
diferenças: a diferença eu x o outro; a diferença táctil que sinto na minha área tocada; a
198
Touch is a wonderful way to gain knowledge and give knowledge.
146
diferença no meu modo de tocar. No entanto, por meio do toque, também apagamos as
diferenças, nos unindo ao outro. Em relação a isso, são bonitas as palavras de Feldenkrais:
"Por meio do toque, duas pessoas, o tocador e o tocado, podem se tornar algo novo juntos;
dois corpos, quando conectados por dois braços e mãos são uma nova entidade"
(FELDENKRAIS, 1995, p. 139, tradução nossa199). Assim como o foco no movimento
repadroniza o movimento, um toque com foco repadroniza aquilo que toca. De acordo com
Bonnie Cohen: "A arte do toque e da repadronização é uma exploração da comunicação
pelo toque" (COHEN, 2015, p. 31).
199
Through touch, two persons, the toucher and the touched, can become a new ensemble; two
bodies when connected by two arms and hands are a new entity.
147
se a pessoa que está sendo tocada contatar seu próprio tecido mentalmente. Entretanto,
como coloca Bonnie, se a pessoa tocada não estiver participando com sua intenção, ou se
estiver inconsciente, ainda assim, o toque comunica, porque de todo modo, ele fala aos
tecidos do corpo (COHEN, 2015, p. 31).
O toque também pode se dar apenas pelo sentir, quando não há como percebermos
pelo tato aquilo que desejamos acessar ou estimular via toque. No toque celular do BMC,
pousamos as mãos sobre a área que queremos tocar, sentindo o tecido, e imaginamos as
células dessa área. Para o BMC, essas células sentem que estão sendo tocadas, e isso
estimula seu funcionamento vital. O toque, por si só, já tem uma propriedade curativa.
Precisamos usar o toque não apenas para tocar o outro, mas também nós mesmos.
Para o soma, se tocar é algo muito potente. Elizabeth Behnke aborda um ponto importante
quando nos lembra que tocar a si mesmo é sempre uma tripla possibilidade: nos sentirmos a
mão que toca; nos sentirmos a parte tocada; e nos sentirmos as duas coisas ao mesmo
tempo (BEHNKE, 1995, p. 322). Quando somos a mão que toca, podemos sentir: a
estrutura, o tônus, a adesão ou não entre os tecidos etc. Quando somos a parte tocada:
recebemos o toque, sentimos os diferentes toques e o que eles nos causam; ficamos
receptivos. Quando somos ambos, tocador e tocado, nos localizamos nessas duas
perspectivas ao mesmo tempo.
O toque em diferentes partes do corpo, conforme exposto por Gerda Alexander, nos
ajuda a enriquecer ou complexificar nosso esquema corporal cerebral, pois uma parte do
modo pelo qual o corpo se sente, se dá via tato (ALEXANDER, 1994, p. 11). Por essa via, o
corpo vai ganhando informações sobre sua própria forma, volume etc. Com isso, conforme
somos tocados, nossa representação corporal cerebral vai se tornando mais harmônica,
com conexões mais bem feitas entre as partes. A integração vai acontecendo. No que diz
respeito a isso, o toque na pele é importante. Estimular a pele de todo o corpo é ajudar o
corpo a ter uma imagem mais integrada de si mesmo.
Ser tocado é então um grande estímulo para o movimento somático, e é algo que
provoca a expressividade somática. O toque, mesmo depois de finalizado, ecoa no corpo, e
podemos nos mover a partir desses ecos, percebendo a presença ressaltada das partes
tocadas e colocando essas partes em comunicação. Também é possível e muito proveitoso
explorar combinações de toque e movimento, como por exemplo, nos movermos com
alguém tocando nossa coluna. Se a pressão das mãos de quem toca for bem dosada, o
toque não interferirá na espontaneidade direcional de quem se move. Uma pressão mais
forte irá interferir. No entanto, a pressão mais forte pode ser útil, a depender do objetivo,
148
assim como um toque pincelado, que se move. Quando o toque direciona ou sugere o
direcionamento espacial àquele que toca, outras possibilidades exploratórias se abrem.
3.4.3 Movimento
200
If I'm working with any area of someone else's body, I will go into that area of my own body to see.
In the process I become more open also. It becomes like two bells ringing on the same pitch. We
can resonate each other.
149
Tal qual fora abordado em 'Perceber, sentir e brincar' (página 136), quando nos
colocamos a observar detalhadamente um movimento que realizamos, o processo
perceptivo referente a ele nos mobiliza psicologicamente. Ficamos imersos na auto-
observação proprioceptiva; vamos percebendo como se desdobra o movimento, como
evolui. Quando não focamos perceptivamente um ou mais movimentos, mas apenas
"curtimos" o movimento corporal no tempo-espaço, vivenciamos um momento perceptivo
mais sensitivo; vamos sentindo os ritmos do movimento. Quando a experiência
perceptiva/sensitiva do movimento se torna um divertimento, ficamos imersos na ludicidade
do mover-se.
O movimento respiratório pode ser vivenciado como uma ação corporal a partir do
momento em que passamos a participar intencionalmente da respiração. Desse modo, a
respiração se torna um movimento pelo qual gero dados somáticos, assim como o ato de
engolir. Quanto o movimento intencional é visceral, as sensações que ele traz são
peculiares, e desencadeiam impressividades potentes, as quais podem, por sua vez, serem
expressas em novos movimentos. Se exploro diferentes modos de respirar, isso irá gerar
diversos dados somáticos. A dimensão emocional do soma será certamente provocada, e a
partir disso posso experienciar inusitadas combinações de texturas e velocidades de
movimento. Quando foco a consciência no movimento de engolir a saliva, após ter
investigado alguns movimentos internos da boca e da língua, isso pode gerar não só
percepções e sentimentos, mas também uma emoção, e essa emoção pode ser
corporalmente constante ou cadenciada. A instância somática que está sendo mobilizada
nessa situação é diretamente ligada a memórias neuromotoras de uma fase da vida em que
nos relacionamos com o mundo pela boca.
201
O termo 'evolução' está sendo utilizado aqui com o mesmo sentido que foi dado a ele no capítulo
2: processo constante e crescente de adaptação às circunstâncias da vida - aprimoramento das
relações com o meio e com os outros seres; complexificação da inteligência orgânica
(harmonização metabólica) e comportamental. No contexto desse capítulo, a complexificação se
estende à percepção e à consciência perceptiva/sensitiva, da qual faz parte a cognição, e
considerando as trocas interpessoais. Então, o termo 'evolução', do modo como está sendo
utilizado, não está carregando em si nenhum potencial de valoração moral.
202
Scientific information was important because I had a larger purpose than simply accumulating facts
and I was able to translate the information into useful metaphors for inviting efficient, connected
movement.
151
circunscritos por cada pessoa, pois cada um irá desdobrar o conhecimento básico do seu
próprio modo, por meio de sua sensibilidade única.
Em trabalhos em duplas, posso tocar o outro ao mesmo tempo que tenho minha
vista livre para observar a presença dos ossos na superfície do corpo dele, ou a presença
de vísceras, de músculos etc. Somo o trabalho do tato com o trabalho dos olhos. Posso
apalpar meu próprio abdômen para estimular minhas vísceras, sabendo onde cada uma
delas está. Posso circular o globo ocular pelos olhos fechados, e visualizar a cavidade
óssea onde eles se encaixam. Posso fazer isso deitada, e em seguida abandonar essa ação
perceptiva, deixando meus olhos descansarem sobre o apoio ósseo do crânio; deixando que
eles encontrem seu próprio chão, já que a gravidade também atua sobre eles.
Quando eu conheço a coluna, sei que ela não se restringe a ser um lindo móbile
ósseo. Sei que dentro dela passa a medula nervosa. Sei que pelas laterais das vértebras
152
saem os nervos que se espalharão por todo o corpo. Sei que vasos sanguíneos chegam aos
ossos, aos nervos e à medula, e que deles saem. Sei que entre as vértebras existem discos
intervertebrais, e que esses discos são como bolachas amortecedoras. Sei que eles são o o
que restou do meu eixo longitudinal embrionário. Sei que as vértebras são "costuradas"
umas às outras por ligamentos, e "forradas" por camadas de músculos. Sei que na frente da
coluna estão localizadas as vísceras, e que entre elas e a coluna passsam vigorosos
ligamentos que tem formato de tiras compridas. Sei que o "talo" do diafragma se ficha à
coluna lombar, quase no mesmo local onde se fixam as tiras do músculo pssoas. Sei que as
vértebras se afastam umas das outras ligeiramente a cada vez que inspiro profundamente, e
que a respiração massageia minhas vísceras. Todos esses conhecimentos agregam dados
somáticos à vivência do movimento somático. Estimulam a sensibilidade, ampliando a
expressividade.
No trecho transcrito abaixo, Hackney narra uma dificuldade de movimento que ela
tinha, e como ela superou essa dificuldade por meio de um embasamento anatômico.
Temos em sua fala um exemplo de como esse tipo de conhecimento pode ser muito válido
ao ganho de liberdade de movimento:
203
[...] when I first began studying breathing in relation to movement, my own movement concern was
to be able to connect my upper body with my lower body. I had a habit of breaking the coordination
and connective flow of movement from my lower to my upper at my waist area. When I moved my
arms fully, I tended to hold my breath slightly and lose my grounding. This was disturbing and I
needed anatomical support for an image that could let me experience how my whole body was
related through my central core. When I discovered the integrating relationship of the diaphragm
and the psoas (how breathing supported connection into the lower body [...] Gradually my own
internal understanding grew, aided by the anatomical information.
153
Saber o que imaginar é algo que requer estudo e curiosidade. Tenho que ser capaz
de visualizar o processo acontecendo. Então, no que diz respeito, por exemplo, à respiração
celular, preciso ter em mente a imagem: dos pulmões se enchendo de ar; dos alvéolos
recebendo os átomos de oxigênio e transferindo-os para os capilares arteriais; do sangue
passando pelo coração e sendo bombeado para o corpo; do oxigênio navegando pelo corpo
e vazando pelos capilares arteriais para desaguar no fluido intersticial dos tecidos; do
oxigênio atravessando a membrana da célula e sendo lá absorvido; da célula liberando gás
carbônico para o ambiente extracelular; do gás carbônico adentrando os capilares venosos
ou linfáticos e sendo direcionado ao coração pelas veias; do coração bombeando o sangue
"sujo" para o pulmão; do gás carbônico adentrando os alvéolos; do ar sendo expelido para o
ambiente.
Uma vez dado esse exemplo, é importante esclarecer que não precisamos ter
imagens hiperrealistas em mente, e nem uma precisão absoluta da dimensão temporal do
processo imaginado, mesmo porque os tempos fisiológicos são praticamente incapturáveis
por nossa percepção temporal. O que procuramos fazer é ir nos nutrindo
perceptivamente/sensitivamente dessas imagens, visualizando esse processo ou partes
dele em um tempo que seja agradável para nós, relaxante. É claro que muitas vezes,
durante a visualização, seremos "tragados" pelo sentir, perdendo a imagem na mente, e isso
não é um problema. Nós iremos apenas usufruir dos sentimentos ou das percepções.
154
Na finalização desse tópico, transcrevo uma fala de Hackney para expor um exemplo
de sentimento resultante de uma proposta de sensibilização corporal que tem seu
embasamento na fisiologia - a respiração celular: "Quando eu presto atenção na Respiração
Celular, eu sinto uma unidade com o universo, uma harmonia com todos os seres vivos.
Sinto que sou parte de um amplo ritmo circular sempre em andamento, que é reconfortante"
(HACKNEY, 2002, p. 62, tradução minha204).
Como coloca Andrea Olsen: "O ser humano coevoluiu com o planeta, e nossos
sistemas perceptivos e de movimento estão embebidos dentro de toda paisagem natural e
urbana que habitamos" (OLSEN, 2014, p. 3, tradução nossa205). Além das paisagens que
habitamos no presente, o soma também investiga suas memórias, assim como os ecos de
antepassados, tal qual fora mencionado no capítulo 1, em 'Aspectos do ensino-
aprendizagem' (página 67). Sendo assim, é nessa linha investigativa que se situa toda
pesquisa de movimento que revisite a ontogênese - e por meio desta, a filogênese. Ao longo
do capítulo 4, e de modo mais intenso, em 'Integração das partes corporais' (página 218),
são abordadas questões e mencionados exemplos de experimentações somáticas
referentes a padrões ontogenéticos e filogenéticos do movimento corporal. De modo que
nos próximos parágrafos irei apenas introduzir esses assuntos.
204
When I am attending to Cellular Breathing I feel a unity with the universe, a harmony with all living
beings. I sense that I am part of a larger ongoing round rhythm that is comforting.
205
Human co-evolved with this planet, and our perceptual and movement systems are embedded
within every landscape and cityscape we inhabit.
155
Depois que o bebê nasce, ele começa a expandir incrivelmente seu diálogo com a
gravidade, com o meio físico e com o seres que convivem com ele. No processo de
aprender a andar, ele desenvolve padrões de movimento advindos da inteligência cinética
de diferentes espécies que foram antepassados nossos. Voltar a esses padrões depois de já
crescido é dar ao corpo uma oportunidade de melhorar a base da sua inteligência corporal.
Conforme exposto abaixo, para Olsen, a sabedoria de movimento é a verdadeira busca do
dançarino, e não o controle do movimento, pois é ela que nos sintonizará com a inteligência
genética do movimento. Essa sabedoria é a busca de todo artista do movimento.
206
We share a highly efficient form, developed through 3 billion years of evolutionary history -
beginning with the first living cell. A multilayered nervous system is present throughout our
structure, reflecting this heritage. As dancers, rather than seek control over our bodies, we learn to
listen to this deep intelligence.
156
possibilidade do existir" (GOULD, 1974, tradução nossa207). Com essa frase, Gould chama a
atenção para o fato de que, muitas vezes, só acreditamos no que vemos, além de
subestimarmos a complexidade daquilo que estamos acostumados a ver. O soma não
subestima nada e não acredita apenas no que vê. Ele se deleita na complexidade da
existência corporal, indo do macro ao micro. O campo gravitacional existente no planeta que
habitamos é para ele uma constante oportunidade de exploração e desenvolvimento. As
ancestrais arquiteturas e dinâmicas corporais guardadas em seu longo código genético lhe
causam descobertas e encantos. Os pequenos detalhes de sua evolução individual lhe
passam significativos ensinamentos.
207
Who could believe an ant in theory? A giraffe in blueprint? Ten thousand doctors of what's possible
could reason half the jungle out of being.
157
Cada um desses estados pode estar bem intenso, ou pode estar coexistindo, em
uma intensidade mais baixa, com outro estado. Não é necessário que todos os estados
aconteçam durante uma vivência de movimento para haver fluxo somático. No entanto,
quanto mais estados ocorrem, mais complexo o fluxo. Nos parágrafos seguintes
apresentarei conceitos criados por mim com o objetivo de nomear e circunscrever
semanticamente esses diferentes estados.
o vasto oceano das impressões sensitivas rítmicas do movimento; é surfar208 nesse oceano,
ser levado por ele. A lógica pela qual esse estado surge é a abertura e o esvaziamento: me
abro para simplesmente sentir-me em variação no tempo-espaço durante o movimento,
esvaziando-me de dados proprioceptivos e de pensamentos. Quanto mais nos esvaziamos
desses dados, mais aumenta nosso estado cinestésico. Deixamos que o movimento
aconteça.
Para o estado mais lúdico, usei a expressão ludicidade cinestésica. Esse estado de
consciência é o momento em que o soma se diverte a partir de sua cinestesia. É um
divertimento espontâneo, que pode tornar qualquer movimento corporal uma brincadeira
acolhedora ou desafiadora. O riso surge causado pelo dentro e pelo fora, pois o caráter
relacional desse estágio é marcante. Coisas são descobertas ou redescobertas devido à
curiosidade brincante. Desafiamos a nós mesmos a partir de nossos desejos de movimento,
os quais brotam tanto de nossas explorações, quanto das observações voltadas para os
outros. Por meio de uma dinâmica observação e interação somática, experimentamos
corporalmente o que vemos e sentimos no outro, em uma imitação latente de reflexividade.
Podemos realizar muitas trocas com o outro, e ser muitas coisas diferentes, provocando-nos
a partir da multidimensionalidade do soma.
O estado mais emocional, chamei de cinestesia emocional. Ele está relacionado com
um grau alto de ativação dos 'sentimentos fundamentais' abordados por Antônio Damásio,
que são aqueles relacionados à malha neuromotora, e que servem de base para todos os
sentimentos voltados a outras pessoas e ocasiões (DAMÁSIO, 1996, p.12-16). Segundo
Damásio: "[...] a essência de um sentimento (o processo de viver uma emoção) não é uma
qualidade mental ilusória associada a um objeto, mas sim a percepção direta de uma
paisagem específica: a paisagem do corpo" (DAMÁSIO, 1996, p. 14). Ele esclarece: "[...] os
sistemas de que as emoções e os sentimentos dependem de forma crítica incluem [...] de
forma mais importante, os setores cerebrais que recebem e integram os sinais enviados
pelo corpo" (DAMÁSIO, 1996, p. 14). De acordo com Damásio, os sentimentos
fundamentais estão relacionados à percepção individual de conforto e desconforto físico e
sensitivo. Durante uma somatização, a memória neuromotora existente na malha neural que
interliga o cérebro e os músculos pode ser acionada de modo intenso, de modo que
podemos ser pegos por um empuxo emocional vindo das profundezas do mundo somático.
Acontece uma mobilização significativa de nossa natureza afetiva. Um exemplo disso se dá
quando despertamos uma área que encontrava-se em amnésia sensoriomotora (HANNA,
208
Foi no âmbito de uma aula de BMC, no ano de 2014, enquanto eu estava participando de uma
vivência conduzida pela professora Tarina Quelho, que ouvi o verbo surfar sendo indicado como
um sentimento; um modo de sentir-se movido pelo movimento.
159
1995, p. 349-350). Esse despertar pode nos fazer vivenciar uma emoção. Outro exemplo se
dá quando a consciência está surfando sobre o fundo sensitivo tempo-espacial do
movimento, e experienciamos o sentimento de sermos movidos pelo movimento (o que é
diferente de perceber-se em movimento). Esse sentimento pode nos emocionar, e
passamos então a surfar o mar emocional do movimento.
Quando estamos no estado de cinestesia emocional, o fluxo somático pode nos levar
rapidamente de volta à sensitividade cinestésica. Isso significa que o soma pode ter a
necessidade de baixar a intensidade emocional. O contrário também pode acontecer: o
soma pode querer se estender na emoção, ficar lá, durar nisso. Os fluxos da somatização
são idas e vindas. Se acabarmos voltando para a sensitividade cinestésica, ela pode,
sequencialmente, nos levar à perceptividade dinâmica, ou à ludicidade cinestésica: são
possibilidades. Abaixo, segue uma exposição, em formato de tópicos alistados, dos estados
juntamente com os conceitos referentes a eles:
Para que haja fluxo somático, é preciso que ocorra variação na estimulação
perceptiva do movimento. Eu notei que a mais comum inicialização de um fluxo somático se
dá com a atenção perceptiva iniciando a vivência de movimento e desencadeando a
perceptividade dinâmica, a qual, por sua vez, desencadeia ou a ludicidade cinestésica, ou
a sensitividade cinestésica. Notei também que a cinestesia emocional surge, mais
frequentemente, do estado de sensitividade cinestésica. Outra inicialização comum se dá
160
inaugurando uma ampla base na meia ponta dos pés, e sentir os ligamentos do joelho
estreiando novos entrosamentos nas cavidades articulares. Podemos planar os braços
descobrindo o apoio do ar. Podemos ter memórias do crânio a deslizar pela parede uterina,
e sensações de haver células ao nosso redor. Podemos ser deslocados por ondas
plasmáticas. Estamos nos fluxos da somatização.
Fazendo novamente menção a Rubem Alves, trago outro trecho do mesmo livro
indicado anteriormente, onde ele diz: "As ideias têm ideias próprias - são dotadas de vida,
resistem, lutam, determinam direções" (ALVES, 2014, p. 16). E mais uma vez aproveito a
linha de seu pensamento: o complexo movimento somático tem ideias próprias. Suas ideias
são os movimentos multidimensionais que dizem coisas a nós. Essas ideias, nós captamos
do modo como conseguimos captar. Elas não são fáceis de explicar. Mas isso não é um
problema, porque no mundo dos somas "[...] argumentos e razões não convencem" (ALVES,
2014, p. 17).
de criação. Afloramos pelos poros da pele para simplesmente ser. Estamos conscientes,
mas em consciências de movimento, vivenciando a mente de modos peculiares. Estamos
fazendo um mergulho: o movimento-mergulho somático. Para finalizar esse tópico e esse
capítulo, transcrevo outro trecho de Rubem Alves:
Capítulo 4
1. Respiração
2. Pulsação e circulação
3. Nutrição
4. Vibração
5. Integração das partes corporais
6. Gravidade e resposta antigravitacional
7. Tonificação, ação e estrutura
8. Espacialidade
9. Observação e contato
Esses temas abrigam aprendizados que considerei ser fundamentais, e não foram
criados por mim, mas sim identificados por mim tanto em fontes que fazem parte da
literatura da Educação Somática, quanto em práticas somáticas das quais participei.
209
HACKNEY, 2002, p. 57, tradução nossa: Open your mind's eye.
166
No texto deste capítulo, cada tema é um subcapítulo formado por uma sintética
discussão teórica referente a aspectos que envolvem o tema, bem como por uma
explanação de exemplos de exercícios que apontam caminhos ou modos possíveis de se
explorar o tema no trabalho de desenvolvimento da expressividade somática. Dentre os
exemplos apresentados, há exercícios que foram colhidos por mim na literatura da área,
exercícios dos quais participei em vivências práticas que frequentei enquanto movedora
somática e exercícios criados por mim a partir das inspirações que a área me proporcionou.
Como professora, eu exploro esses temas em sala de aula, e acabo gerando uma maneira
mais pessoal de trabalhar com eles.
Cada tema é pensado para ser um estudo reflexivo, além de prático, porque são
muito ricos os desdobramentos que o pensar, o filosofar a respeito desses temas nos traz. A
pequena discussão que é apresentada em cada tema antes da explanação de exemplos
não tem o objetivo de dar conta de todos os desdobramentos de ideias que o tema
proporciona, mas sim de informar a respeito dos conhecimentos que considerei serem
elementares a respeito do tema, e inspirar ou instigar um estudo mais aprofundado. Tal
estudo pode ser feito por meio de livros, sites, atlas de anatomia, artigos, fotografias, vídeos
etc. Ele nos torna mais capazes de apreender os conhecimentos corporais relacionados aos
temas. Muitos detalhes que importam para a prática de exploração do movimento
somatopoético só podem ser assimilados por estudo teórico, como por exemplo, detalhes
referentes a processos fisiológicos do corpo e conhecimentos anatômicos mais
aprofundados. Isso porque a exploração da expressividade somática, conforme apresentado
no capítulo 3, demanda de nós que tenhamos uma imaginação consistente, que possa
dialogar com processos reais que acontecem no corpo. Para praticarmos essa imaginação,
precisamos ter os conhecimentos que ela requer de nós.
Sobre o tema 'Tonificação, ação e estrutura', a moldura que dei para o subtema
'Tônus, atividade e passividade' inclui informações vindas da Eutonia, bem como
pensamentos de Rudolf Laban, Hubert Godard e Bonnie Cohen. Para o subtema 'Forma
óssea, apoio ósseo e movimento articulado' utilizei basicamente informações vindas da
Eutonia, do BMC e da anatomia aplicada de Irene Dowd.
Informo novamente, tal qual fora informado na introdução da tese, que o campo
laboratorial no qual eu explorei os temas aqui problematizados foi a minha prática docente
em disciplinas de Dança que compõe o Curso de Bacharelado em Teatro do Centro
Universitário IESB, localizado em Brasília. Nos temas está todo o conjunto dos conteúdos
que, ao longo do processo laboratorial do doutorado - de agosto de 2013 a agosto de 2016 -
foram investigados teoricamente e empiricamente.
Para que a vivência dos temas seja rica para seus experimentadores, é importante
que os temas sejam utilizados ou manuseados por quem conduz o processo de
aprendizado/exploração de modo dinâmico, ou seja: um tema dá suporte para outro; eles se
entrosam e se cruzam. Quando um tema está sendo priorizado, outros temas proporcionam
materiais complementares. Em relação a isso, gosto de pensar na seguinte imagem: os
temas estão todos sobre a mesa de trabalho, os potes estão todos abertos, de modo que os
ingredientes para o pão estão todos em fácil acesso. Conforme começamos o pão e
trabalhamos ele, vamos pegando um pouquinho de cada ingrediente e formando a massa
do pão por meio de uma mistura que resultará em um sabor estimulante. A mistura dos
temas gerará a possibilidade de ocorrência de uma vivência somática multifacetada, a qual
proporcionará aos movedores mover-se em fluxos somáticos, dando vida ao movimento
somatopoético.
4.1 Respiração
Além de ser base para nosso movimento, conduzindo-nos pelo tempo, a respiração
também é conduzida por nós. Nisso reside uma característica especial e singular sua: a de
ser involuntária e voluntária concomitantemente. Essa característica coloca a respiração em
um lugar bem peculiar, pois ela é tanto passível de ser observada, sem que interfiramos
intencionalmente nela, quanto de ser conduzida de diferentes modos por nossa consciência
210
Movement rides on the flow of the breath.
211
[...] central biological process among the core functions of the live organism [...]
212
[...] a rhythmical act, repeated incessantly all through our waking days and sleep-filled nights.
169
Gerda acreditava que seria mais eficiente trabalhar o tônus muscular para que
fossem harmonizadas funções vegetativas do organismo, e dentre elas, a respiração. Ela
diz: "o trabalho voltado diretamente para a respiração conduz a consciência a prestar
atenção na respiração, e isso já altera os padrões espontâneos da respiração"
(ALEXANDER, 1991, p. 15). Ela buscava a normalização da respiração inconsciente, e
entendamos isso como um processo que pretende tornar a respiração involuntariamente
mais harmônica, ou seja, que coloque esforço em equilíbrio com necessidade, e
necessidade em equilíbrio com circunstância, trazendo ganho de economia energética e
liberdade. Gerda quer que a respiração se torne automaticamente adequada às diferentes
necessidades momentâneas, "sejam quais forem suas características" (ALEXANDER, 1991,
p. 16). Ela pretende melhorar a performance espontânea da respiração, seu desempenho,
sempre considerando a harmonia como parâmetro. Essa qualidade no funcionamento
respiratório, para ela, é um dos resultados que surgem quando se trabalha o tônus do corpo
como um todo. Vale ressaltar que, para Gerda, esse direcionamento tomado por ela em
relação à respiração é uma possibilidade, não sendo o único caminho existente. Ela
170
A meta final de Gerda não era apenas harmonizar a respiração e as outras funções
orgânicas vitais das pessoas, mas também, incidir na vida psicológicoa delas,
proporcionando-lhes bem-estar. Em relação a isso, pode-se considerar que o educador do
movimento somático expressivo também lida, em uma medida ou outra, com a
harmonização integral do indivíduo. No entanto, a finalidade do trabalho dele é proporcionar
o desenvolvimento da expressividade corporal. Observar a escolha de Gerda e de Mathias,
referente ao caminho tomado por eles para chegar-se à respiração, nos estimula a refletir a
respeito de nossas intenções referentes à respiração em nosso trabalho de exploração
somática do movimento, ou de condução/mediação.
precisa expirar mais para não perder sua resistência, ou inspirar mais para alcançar maior
potência, ou ainda, deixar mais fluida a respiração, não possa se dirigir verbalmente a ele,
para fazê-lo tomar consciência de sua ação respiratória. Em muitos casos, o professor deve
sim sugerir explicitamente ao aluno que modifique ou adapte sua respiração. Os professores
devem sempre se perguntar: "Para esse objetivo, focar ou não focar a ação respiratória?".
Reincidindo no pensamento de Gerda, vale observar que ela ainda aponta outro
importante aspecto da respiração. Um aspecto para o qual nem sempre é dado seu devido
valor: o fato de que respirar bem é ter o corpo participando plenamente da respiração -
como um todo. Considerando a importância disso, penso ser proveitoso revisar no que
consiste o processo respiratório.
O fato da respiração ser algo que envolve o corpo todo em todas suas instâncias
indica que ela é um processo fundamentalmente vital. Pela respiração ocorre uma parte
crucial da nutrição energética do organismo, já que as células utilizam o oxigênio para
formar suas cápsulas de energia (as ATPs), sem as quais não vivem. É também uma troca
maravilhosa com o ambiente; com a atmosfera e suas correntes aéreas. É uma perfeita
relação com o mundo vegetal, o qual necessita de gás carbônico para realizar a
fotossíntese, e libera oxigênio como resíduo de seu metabolismo gasoso.
Como nos lembram Bonnie (COHEN, 2015a) e Peggy Hackney (HACKNEY, 2002, p.
62): ganhamos das plantas a energia que precisamos, e damos a elas a energia que elas
213
Com essa expressão, pretendo fazer referência ao estado sensitivo em sua ocorrência mais
profunda, que considero "nebulosa" e imaginativa.
172
precisam para que possam produzir seus alimentos e nos servir de alimento. E como coloca
Louppe, a expiração consiste em "restituição do ar retirado pelo nosso corpo ao mundo,
entrando, ao mesmo tempo, em ressonância com as grandes correntes elementares, os
ventos e marés, responsáveis pelo fluxo da vida e que arrastam todo o universo consigo
durante o percurso" (LOUPPE, 2012, p. 92). O 'fazer parte da natureza', de modo a tê-la
gasosamente passando por nós, é aquilo de mais essencial na respiração. Podemos então
considerar que ela é um fluxo migratório de átomos e moléculas gasosas entre o dentro e o
fora de nós; uma corrente vital. Como colocado por Hackney: "A cada respirada, nos
conectamos e travamos um intercâmbio com o ambiente externo a nós. Quanto mais plena
nossa respiração, mais cada uma e todas as células de nosso corpo dialogam com o
mundo" (HACKNEY, 2002, p. 61, tradução nossa214).
214
With every breath we connect and have an exchange with the environment outside of ourselves.
The fuller our respiration, the more each and every cell of our bodies is dialoguing with the world.
215
Breath helps put you in touch with your own internal state. It is a link to your proprioceptive self. It
can help you locate where you are in the moment, what you are feeling.
216
[...] connects conscious and unconscious states.
173
A respiração traz consigo o olfato. É junto com o ar que entram em nosso corpo os
cheiros, fragrâncias, odores. É puxando o ar para dentro que nos familiarizamos com um
cheiro; que intensificamos nossa relação com ele. O nariz fica na face, de modo que o início
do processo de inspiração do ar e de reconhecimento dos aromas é passível de causar
movimentações na cabeça. Podemos explorar o movimento corporal a partir de
estimulações olfativas, o que confere mais um caminho possível para a exploração somática
respiratória.
Irene Dowd, ao discutir a respiração, chama atenção para o fato de que estudantes,
devido a idiossincrasias pedagógicas de seus professores, podem entrar em algumas
confusões mentais relacionadas ao ato respiratório durante o movimento e a construção de
posturas. Ela dá alguns exemplos de frases que comumente são utilizadas por professores
em aulas técnicas de dança: "'mantenha seu peito no alto, como se você estivesse inalando'
[...] 'mantenha suas costelas para baixo, de modo que seu peito não se mova quando você
respirar'" (DOWD, 1995, p. 13, tradução nossa217). De fato, sem que o propósito seja esse,
muitos desses comentários podem prestar um desserviço à integração corporal. Hackney se
posiciona claramente em relação a um ponto comum no discurso de professores de balé
clássico e outras danças: o comando para manter a barriga para dentro constantemente.
Para ela, em relação a essa realidade, é preciso estarmos sempre lembrando que a
respiração, em si, é "uma atividade viva dentro do corpo, e não se trata de segurar os
abdominais" (HACKNEY, 2002, p. 64, tradução nossa218).
Como coloca Dowd, "Felizmente, a maioria de nós não presta nenhuma atenção na
própria respiração quando está dançando, o que é algo tenaz, de modo que a sabedoria do
nosso corpo assume a coisa" (DOWD, 1995, p. 13, tradução nossa219). Com essa
colocação, Dowd se sintoniza com Gerda Alexander e Mathias Alexander, e traz para o
centro da nossa questão a sabedoria instintiva do organismo de conexão entre esforço
muscular e ato respiratório. Em relação a isso, Louppe menciona que "o corpo em
217
[...] "hold your chest hight as if you were inhaling" [...] "keep your ribs down so that your chest
doesn't move when you breathe."
218
[...] this is an alive activity within the body and is not about holding the abdominals.
219
Fortunately, most of us don't pay ant attention at all to our breathing when we are dancing
strenuously so that the wisdom of our body takes over.
175
movimento vive com a sua respiração, segundo os termos de um contrato espontâneo que
não necessita de regras precisas" (LOUPPE, 2012, p. 93). Segundo Bartenieff, "A
profundidade e a proporção da respiração se adaptam aos padrões espaciais rítmicos de
acordo com a extensão e a intensidade de nossas ações" (BARTENIEFF, 1980, p. 232,
tradução nossa220). O que é proveitoso de ser observado em relação a essa sabedoria do
organismo, é que, muitas vezes, ao nos movimentarmos no contexto da exploração
expressiva do movimento, realizando movimentos desafiadores que estão fora de nossa
gama usual ou cotidiana de movimentos, impedimos o organismo de exercer essa
sabedoria.
220
Depth and rate of breath adapt in rhythmic spatial patterns according to the scope and intensity of
our actions [...].
221
When you support your movement with breath, you move with more fluidity and ease.
176
(HACKNEY, 2002, p. 41, tradução nossa222), porque "cria fluxo" no corpo (HACKNEY, 2002,
p. 54, tradução nossa223). Então, é necessário saber resgatar a conexão respiração-esforço
quando a perdemos devido às dificuldades do movimento, bem como devido às dificuldades
geradas pelas armaduras de tensões musculares desnecessárias que construímos. Todo
artista do movimento precisa reconhecer seus hábitos negativos de tensão, bem como
seus hábitos rítmicos respiratórios desarmônicos e seus movimentos que travam a
respiração. É necessário trabalhar na desautomatização dessas desarmonias, e conquistar
novas formas de lidar com a respiração no movimento.
222
Breath influences every aspect of movement.
223
[...] creates flow [...]
224
Motion creates emotion.
177
dentro dos pulmões por causa de uma ação muscular ocorrida mais abaixo" (HACKNEY,
2002, p. 62, tradução nossa225).
225
Sometimes people think of breathing as an upper body activity - associated totally with the lungs.
But air rushes into the lungs because of a muscular action lower down in the body.
226
[...] it is like a hemisphere that arches up into the thoracic cavity forming both the roof of the
abdominal cavity and the floor of the thoracic cavity.
227
Nesse ponto, vale a pena dar uma breve enfatizada no posicionamento do diafragma em relação
aos conteúdos abdominais, porque ele é de suma importância na estruturação dos conteúdos do
tronco. Sendo um divisor entre cavidade torácica (caixa respiratória e cardíaca) e cavidade
abdominal (caixa digestiva e afins), o diafragma protege os conteúdos torácicos de desavenças
que possam ocorrer nos conteúdos abdominais, os quais são mais potencialmente tóxicos. O
diafragma é então o chão dos pulmões e do coração, e o teto do estômago, fígado e baço. Tal
qual um arredondado guarda-chuva de cabo retrátil, abrindo-se e fechando-se, ou tal qual uma
água-viva espichando-se e inflando, o diafragma coloca, internamente, todo o tronco em
movimento.
179
acionados, eles elevam mais ainda a caixa torácica. Além disso, conforme enfatiza Hackney,
há o papel dos músculos abdominais na harmonização da respiração (HACKNEY, 2002, p.
63). Ela observa que esses músculos não atuam diretamente sobre o movimento pulmonar,
mas ajudam o diafragma a funcionar bem. Citando Adalbert Kapandji, ela informa que o
diafragma e os músculos abdominais
228
[...] are always in active contraction but their activity varies reciprocally. Thus, during inspiration the
tonus of the diaphragm increases while that of the abdominal muscles decreases, and vice versa
during expiration. Hence, there exists between these two muscle groups a 'floating equilibrium'
constantly shifting in both directions [...]
229
A held abdominal area will cut down on efficiency of breathing and will eventually begin to 'deaden'
that area for sensate movement [...]
180
articulares das vértebras envolvidas, cavando um espaço ali, e assim afastando sutilmente
uma vértebra da outra. Nisso, podemos observar poeticamente que a coluna 'respira', com a
constante ampliação e diminuição dos espaços intervertebrais na inspiração e na expiração.
Quanto mais as costelas sobem, mais é liberado o espaço intervertebral. Logo, uma
inspiração profunda e harmonizada em em sua tonificação muscular, ajuda na renovação
das articulações intervertebrais, as importantes articulações que compõem nosso eixo
longitudinal.
Voltando para o movimento do diafragma, é necessário saber que ele pode ser
sentido, embora não seja muito fácil para algumas pessoas escutar o diafragma. A
percepção proprioceptiva referente ao movimento desse músculo (e não aos pulmões) se dá
de modo peculiar para cada pessoa, devido à subjetividade inerente à propriocepção,
havendo, no entanto, sensações que costumam ser comuns a diferentes pessoas. Somar a
escuta dos movimentos do diafragma à escuta do movimento pulmonar, como também da
movimentação da caixa torácica, expande as sensações táteis respiratórias - considerando
o tato interno - porque com a escuta do diafragma, passa-se a sentir-se mais a
movimentação interna que se dá em todo o tronco decorrente do movimento diafragmático.
Como coloca Hackney, "na inspiração, o diafragma aumenta todas as três dimensões da
cavidade torácica" (HACKNEY, 2002, p. 64, tradução nossa230). E esse aumento retrocedde
na expiração. Nisso, identifica-se uma integração entre tórax e abdômen, e aflora uma
percepção de tridimensionalidade, já que o eixo espinhal (dorsal) passa a ser percebido
como algo que está envolvido estruturalmente na dinâmica respiratória. A movimentação
sofrida pelos conteúdos abdominais, devido à ação diafragmática, nos faz sentir que, além
da caixa das costelas, a cintura pélvica também participa da movimentação interna
decorrente da respiração231. Torna-se perceptível a conexão entre o diafragma pélvico
(assoalho perineal) e o diafragma propriamente dito. Na outra direção do eixo longitudinal,
percebe-se essa reverberação atuar na percepção estrutural referente às clavículas, ombros
e omoplatas, e também na percepção visceral do interior da caixa craniana. Os ecos dessa
mobilidade vão se multiplicando, sendo possível perceber uma integração corporal
decorrente da movimentação diafragmático-pulmonar. Aumenta-se a quantidade de
impressões proprioceptivas identificadas. Experimenta-se um senso de volume corporal de
modo dinâmico. Nas percepções de Louppe:
230
On the inhalation, the diaphragm increases all three dimensions of the thoracic cavity.
231
Além da movimentação visceral na região pélvica, ocorrida devido ao abaixamento do diafragma, é
válido lembrar que também há um eco de movimento na pelve óssea. Como o fim da coluna se
articula com os ilíacos (nas articulações sacroilíacas), a percepção proprioceptiva das alterações
articulares vertebrais decorrentes do processo respiratório podem chegar, de algum modo, até a
pelve óssea.
181
232
Nada é mais impressionante do que observar na imobilidade absoluta
[nota nossa], alheio a toda intervenção voluntária, o movimento profundo
que persiste no nosso interior: a subida e a descida do diafragma como uma
onda que dilata e contrai alternadamente a caixa torácica. Se estivermos
mais atentos e seguirmos o trajecto da respiração até ao ponto extremo
dessa exalação, sentimos a irrigação de todo o tronco até à zona sacral, e,
ao inspirarmos, a cabeça é invadida por uma lufada de ar fresco. De facto,
todo o corpo é ventilado pela passagem contínua da respiração. (LOUPPE,
2012, p. 91).
232
'Imobilidade absoluta' aqui significa 'estado de repouso de atividade intencional', no qual haja
ausência de movimentos voluntários.
182
parágrafos anteriores. Caryn McHose, conforme citada por Olsen, nos lembra algo muito
importante, que: "[...] a inalação pode ser usada para tocar-se o próprio volume interno"
(MCHOSE apud OLSEN, 2014, p. 39, tradução nossa233). Nas palavras Hackney: "Eu
imagino a experiência da respiração ser como uma massagem, com o movimento dos
órgãos (vísceras) massageando os músculos" (HACKNEY, 2002, p. 63, tradução nossa234).
Louppe também expõe sua percepção referente a essa questão do tato interno na
respiração: "A respiração revela apenas canais, uma vez que, ao respirar, tocamos em
cavidades interiores e conhecemo-las por meio dessa experiência" (LOUPPE, 2012, p. 91).
E como coloca Hackney: "a respiração é também nossa primeira experiência de espaço
interno" (HACKNEY, 2002, p. 64, tradução nossa235). Para ela, cada respirada que damos é
uma possibilidade de experienciar mudanças nas três dimensões do espaço: vertical (cima-
baixo), sagital (frente-trás) e horizontal (lado-lado). E ainda uma possibilidade de
reconhecimento e conexão com o centro corporal: "Ao inspirar plenamente, eu estou
despertando sensações pelo meu torso. Estou 'em contato' com meu centro interno"
(HACKNEY, 2002, p. 64, tradução nossa236).
233
[...] the inhalation can be used to touch your own volume inside. Exhalation is a time to surrender,
yield, and release.
234
I imagine the experience of breathing to be like an internal massage, with the movement of the
organs (viscera) massaging the muscles [...].
235
[...] Breathing is also our first experience of inner space.
236
By fully breathing I am surging sensation throuughout my torso. I am 'in contact' with my internal
core.
237
[...] the inhalation can be used to touch your own volume inside. Exhalation is a time to surrender,
yield, and release.
183
ventrais, diagonais e laterais do tronco, o que fará com que a caixa das costelas seja
comprimida de modo mais intenso, o que, por sua vez, fará com que expulsemos maior
quantidade de ar dos pulmões. Pode-se realizar algumas respirações consecutivas entre o
relaxamento da inspiração aprofundada e o trabalho da expiração aprofundada.
Além desses aspectos, vale observar que a expiração pode desencadear algum tipo
de emissão de som vocal. Ao expirarmos pela boca, a saída do ar pode carregar consigo
sons, e podemos utilizar intencionalmente esse casamento entre expiração e vocalização. O
relaxamento da mandíbula é importante nessas propostas. "Convidando o som sem que
haja tensionamento de nenhum dos músculos do pescoço, a respiração e a voz tornam-se
uma única coisa" (OLSEN, 2014, p. 155, tradução nossa238). De acordo com Bartenieff,
produzir sons durante a expiração, "estando sentado, deitado ou em pé, reforça a
consciência de como a corrente, ou respiração, dá suporte para o endireitar e curvar de
diferentes segmentos da coluna vertebral em todas as posições e níveis" (BARTENIEFF,
1980, p. 232, tradução nossa239). Em sua prática terapêutica/pedagógica corporal, Bartenieff
abarcou exercícios oriundos de tradições hindus e budistas de meditação e concentração
voltados para a realização de mudanças na forma corporal interna e externa por meio da
utilização de específicas vogais e sequências de vogais (BARTENIEFF, 1980, p. 232).
238
Inviting sound without tightening any of the neck muscles, breath and voice becomes one.
239
Making sounds, when lying or sitting or standing, reinforces the awareness of the stream or breath
supporting the straightening or rounding of the different segments of the spine in all positions and
levels.
240
By vibrating the tissues, muscles relax, fluids flow, nerves calm.
184
O som 'a' [...] reverbera em volta e abre para cima a porção lateral das
costelas baixas.
O som 'ê' [...] reverbera na porção média superior do esterno e das costelas
correspondentes, sem elevar os ombros.
O som 'i' [...] reverbera na base do crânio e na garganta anterior, a menos
que algum músculo tenso do queixo impeça isso. (BARTENIEFF, 1980, p.
241
232, tradução nossa ).
Além dos sons sugeridos por Bartenieff, o som 'é', e o som 'ó' também podem entrar
no jogo da vocalização. Segundo Olsen, "Três componentes afetam o tom: o tamanho do
espaço entre as cordas, a tensão das cordas e a quantidade de pressão de ar enquanto o ar
passa pelas cordas" (OLSEN, 1998, p. 151, tradução nossa242). No caso dos dois primeiros
componentes, quem opera as mudanças são as duas cartilagens aritenóides, que servem
de fixação para as cordas vocais, fazendo o ajustamento da tensão entre as cordas e do
espaço entre elas a depender da intenção que antecede e acompanha a produção do som.
E participam desse jogo a boca e a garganta. No caso do terceiro componente, quem
dinamiza o processo é o diafragma. Em relação ao timbre e ao volume, ainda de acordo
com Olsen, os agentes das variações são os diversos ressonadores existentes no corpo.
241
Aqui optei por colocar a versão original em inglês sem os cortes aplicados na tradução exposta no
corpo da tese: [...] the sound oooooo, as in 'you', maintains the deepest descension of the
diaphragm, reverberating into the pelvis-lower abdomen (pubic region).
The sund oh, extended as in 'oh', reverberates around the navel and the corresponding segment of
the spine.
The sound aah, extended as in 'yoga', reverberates around and opens up the lateral portions of the
lower ribs.
The sound eeh, extended as at the very end of 'say', reverberates in the upper middle portion of
the sternum and corresponding ribs without raising the shoulders.
The sound iiih, extended as in 'meeting', reverberates at the base of the skull and in front of the
throat unless a tight chin muscle prevents this.
242
Three components affect pitch: the size of the space between the cords, the tension of the cords,
and the amount of air pressure as it passes through the cords.
243
Different body tissues have different resonant characteristics. In general, high pitches need small
resonanting chambers to amplify them because they have short wavelengths, and low pitches need
larger resonating chambers because they have longer wavelengths [...] We increase or decrease
the volume of a tone we sing or speak by adding or subtracting resonators.
185
apresentado, o 'uuu', para o mais alto (agudo), o 'iii', sentimos os ressonadores mudarem de
endereço, da pelve para a cabeça, em uma subida. Cada um desses sons pode ser
explorado separadamente, inicialmente, em uma espécie de reconhecimento da
especificidade vibracional-espacial que reside em cada um. Bartenieff ressalta que tanto na
inicialização do som, quanto na sua manutenção, não deve haver esforço muscular
desnecessário. Para que não haja excesso de tensão muscular na boca e na garganta
durante a vocalização, ela sugere que anteriormente às vogais, seja proferido o som
'mmmmm', visando-se que essa ação seja realizada com boca e garganta relaxadas, e
observando-se o todo dos espaços internos do tronco (BARTENIEFF, 1980, p. 233). Na
emissão dos sons, o uso de metáforas sensoriomotoras é muito proveitoso. Bartenieff
sugere imaginarmos todo o espaço interior do nosso tronco como sendo o interior de um
sino, afim de que, por meio dessa imagem, facilitemos o ressoar do som pelo tronco
(BARTENIEFF, 1980, p. 233). O objetivo é que possamos sentir o ressoar do som como um
processo fluido, desde a base da coluna até seu topo. Esse ressoar nos ajuda a nos
conscientizarmos do volume do nosso tronco por uma perspectiva interna: não como algo
que se vê de fora, mas como algo que se sente a partir do dentro.
Bartenieff enfatiza que a maneira como esses sons serão combinados em uma
sequência, e a quantidade de vezes que serão praticados deve ser realizada de modo a
levar-se em conta a especificidade do momento de cada pessoa em relação à sua situação
tensão-relaxamento (BARTENIEFF, 1980, p. 232). No entanto, a prática em grupo da
respiração vocalizada também tem sua importância, ainda que as necessidades singulares
sejam variadas, porque, de todo modo, os benefícios básicos serão aproveitados. Em uma
situação coletivizada, essa respiração irá proporcionar a cada pessoa sentir-se imersa em
um coletivo sonoro, em uma colorida respiração coletiva, encontrando um lugar dentro
desse todo, percebendo consonâncias e dissonâncias. Nas palavras de Bartenieff:
"Permitindo-se ser carregado pelos sons dos outros, você irá ceder à natureza fluida da
respiração sonora, e compartilhará um sentimento de comunicação" (BARTENIEFF, 1980, p.
233, tradução nossa244).
244
By allowing yourself to be carried by the sounds of others you will give in to the flowing nature of
breath-sound and share a feeeling of communication.
186
Olsen tem razão ao mencionar que "Dançarinos são treinados para manter suas
bocas fechadas" (OLSEN, 2014, p. 155, tradução nossa247), já que pelo menos grande parte
dos dançarinos nunca pôde desenvolver-se em suas habilidades integrando movimento e
voz. Então, ao praticarem respirações vocalizadas e outras sonorizações, os dançarinos
estão possibilitando a si mesmos um novo tipo de experiência em relação a suas
mandíbulas, suas gargantas, suas bocas e o som que dali escapa. Já em relação aos
atores, mesmo sendo estes acostumados a usarem a voz, muitas vezes não chegam a tirar
um bom proveito do que um trabalho fundo com a respiração pode proporcionar. Nas
palavras de Dowd:
245
As we allow unmonitored sounds to emerge from the body and hear their qualities, we become
familiar with new spectrums of experience.
246
Sound carries emotion. We have all experienced love songs stimulating our hearts, a cry freezing
us in terror, a tone of voice bringing tears to our eyes [...] By listening to our sounds, we can come
to know our feelings. Sound moves us.
247
Dancers are trained to keep their mouths shut.
187
Se você permitir que a liberação desses sons lhe dê prazer, torna-se bem
mais fácil respirar plenamente e abertamente. Tente jogar com sua
respiração. Seja gentil e tenha senso de humor. Risos e leveza têm um
efeito muito maior sobre a dissipação da tensão do que a rigidez, a
248
seriedade sôfrega e a forçação. (DOWD, 1995, p. 18, tradução nossa ).
A pausa pode ser prolongada na retenção do ar, após o fôlego inspiratório, antes de
se expirar. E também pode ser feita na retenção do esvaziamento dos pulmões, após a
expiração. Sensações vão se densificando à medida que retenções são exploradas, pois
nos colocamos mais próximos de uma entropia respiratória. No avesso disso, quando se
alcança uma fluidez respiratória especialmente cadenciada, sensações de prazer e até
mesmo de êxtase podem ser experimentadas. O corpo vai se movendo junto a essas
experiências perceptivas, sensitivas e emocionais. Para finalizar essa discussão, vale
mencionar mais uma bonita observação feita por Louppe: "O acto respiratório é, sem dúvida,
uma das raras situações em que é possível abordar experimentalmente a dualidade da
plenitude e do vazio e convertê-la numa escolha do corpo na dança" (LOUPPE, 2012, p. 97).
Uma proposta que visa o alcance de uma respiração mais harmônica, uma boa
harmonização do tônus envolvido na ação respiratória, pode ser encontrada em Dowd,
quando a autora propõe o uso de uma metáfora sensoriomotora para a somatização249 da
248
If you can allow the making of sounds to give you pleasure, it is much easier to breathe fully and
openly. Try playing with your breath. Be gentle and humorous. Laughter and lightness have a much
greater effect on the dissipation of tension than hard, serious grasping and pushing.
249
A palavra somatização não é utilizada por Dowd no momento em que ela aborda tal
188
respiração (DOWD, 1995, p. 16). Dowd sugere, durante a inspiração, imaginarmos que todo
nosso eixo longitudinal vá inchando 360º até adquirir, ao final da inspiração, uma espessura
que chegue nos limites da circunferência do tronco, como se o eixo ganhasse a largura de
todo o tronco, tornando-se um cilindro. Na expiração, Dowd sugere que imaginemos esse
cilindro paulatinamente encolhendo 360º até encontrar sua linha central, o nosso eixo
longitudinal. Pessoalmente, ao experimentar essa metáfora sensoriomotora, as impressões
vindas com as primeiras respiradas me fazem sentir tudo muito integrado, como se meu
volume interno correspondesse apenas a um único conteúdo, o que me faz avaliar que meu
sistema nervoso esteja a acionar mais harmonicamente as musculaturas envolvidas na
respiração. A partir de algumas respiradas, começo a sentir, durante a inspiração, o ar
brotando do eixo central, continuamente, como se surgisse de dentro dele e fosse se
propagando para fora, em todas as direções. E na expiração, começo a sentir o movimento
de uma maré, como se o ar fosse puxado das zonas mais periféricas do tubo (que sou) em
direção ao meu eixo longitudinal, escorrendo para dentro dele, como se houvesse uma
espécie de escoamento. É interessante observar que as repetições vão gerando novas
sensações, produzindo mais dados somáticos.
etaforização. No entanto, identifico o processo que advém com a utilização de tal metáfora como
um processo de somatização, e por isso, por conta própria, lanço mão dessa palavra.
250
You can't think or move clearly without adequate breath - it's physiologically impossible.
189
O toque é uma ótima ferramenta para a escuta das fases respiratórias. Podemos
posicionar as palmas das mãos bem abertas sobre as laterais da caixa das costelas e
observar a movimentação passiva de nossas mãos ecoando a movimentação das costelas e
o movimento dos pulmões. O toque também pode ser feito no espaço existente entre as
costelas inferiores esquerdas e direitas. Com esse toque iremos perceber, na inspiração, o
volume visceral da parte superior do abdômen descendo em direção ao quadril, afastando-
se de nossa mão; e na expiração, iremos senti-lo subindo, vindo de encontro à nossa mão.
Podemos, também, tocar o outro ao invés de a nós mesmos, e assim conhecer outros jeitos
e ritmos respiratórios. Podemos nos posicionar em diferentes posturas corporais para nos
tocarmos ou recebermos o toque. Isso fará com que a escuta das fases respiratórias se dê
de diferentes maneiras, já que, em algumas posturas, durante a inspiração, o ar irá, por
exemplo, ocupar mais a parte dorsal dos pulmões do que a ventral, ou mais as porções de
uma lateral do que de outra, a depender de como as partes corporais estão dispostas entre
si, e de como o corpo estará apoiado no chão.
251
Noticing where in your body you feel the filling and emptying to be happening. Do you swell mainly
in your chest area, your belly? Both simultaneously? Where does the emptying begin? There is no
need to change your normal way of breathing, just notice.
Notice whether the inhalation or the exhalation is longer. Notice if there is a time that you feel no
need to do either - there is a natural pause as part of your breath phrase.
190
chama movimentos mais abertos, mais amplos, e a expiração chama movimentos mais
fechados, de encolhimento.
Presenciar a respiração por uma perspectiva somática é algo que não se restringe à
respiração aérea pulmonar. É importante considerar também a etapa fluidica interna da
respiração, que se dá para além dos pulmões, na circulação sanguínea e nos tecidos do
corpo. A somatização da respiração, para ser integral, deve envolver tanto a etapa aérea,
quanto a etapa fluídica. Conhecer os meandros dos acontecimentos relacionados à fase
fluídica da respiração é algo de grande importância quando se pretende vivenciar a
respiração plenamente. Presenciar as movimentações dessa etapa, que se dão em uma
instância tão funda, tão celular, consiste, conforme discutido no capítulo 3 (em 'Fisiologia
experiencial', página 153), em imaginá-las.
252
A fisiologia descreve a respiração celular como um conjunto de "processos metabólicos
intracelulares executados dentro das mitocôndrias [organelas celulares], que utilizam O2 e
produzem CO2 enquanto retiram energia das moléculas de nutrientes" (SHERWOOD, 2011, p.
461).
191
passar outros nutrientes. Após o oxigênio ser 'desmontado' para a síntese de energia, a
célula produz o gás carbônico, como resíduo a ser expelido, e o manda para o exterior,
assim como expele outros resíduos provenientes de outros processos metabólicos. Desse
modo, ocorre outro trânsito na membrana da célula, do ambiente intra-celular fluídico para o
extra-celular fluídico. Todas nossas células respiram desse modo. Uma respiração rasa leva
pouco oxigênio ao corpo, enquanto que uma inspiração profunda nutre mais as células,
porque a quantidade de oxigênio que fica disponível no corpo é maior. Nas palavras de
Hackney: "Com cada respirada, nós conectamos e realizamos um intercâmbio com o
ambiente externo a nós. Quanto mais plena nossa respiração, mais cada e toda célula do
nosso corpo está dialogando com o mundo" (HACKNEY, 2002, p. 61, tradução nossa253).
Assim como ocorre a entrada de oxigênio para o interior celular e a saída de gás-
carbônico da célula para o ambiente extra-celular, também acontecem outros trânsitos de
substâncias pela membrana da célula. Devido a esses trânsitos, ao ganhar e expelir
substâncias, a célula está continuamente inflando e encolhendo, ainda que sutilmente.
Esses inchamentos e encolhimentos se dão de modo dinâmico, podendo esses dois
movimentos ocorrer ao mesmo tempo em diferentes porções da célula. Essa ocorrência de
expansões e encolhimentos é algo constante durante toda a vida da célula.
A respiração celular foi trazida por Irmgard Bartenieff para o centro do trabalho de
tomada de consciência da respiração. Bartenieff passou a investigar muitas coisas com
Bonnie Cohen. Juntas, elas instigaram a consciência observadora a encontrar,
sensitivamente, a movimentação de inchamento e encolhimento vivenciada pelas células;
uma vibração existente nos tecidos corporais. Para isso, lançaram mão do toque e da
visualização. Elas perceberam que a respiração celular está presente em todas as parte do
corpo, e consideraram que a respiração celular consiste em um padrão primário de
movimentação corporal. Para trabalhar esse padrão nas pessoas, foi necessário levar a elas
o conhecimento do processo respiratório interno; lembrá-las que a respiração ocorre em
todo o corpo, pelo ambiente fluídico. Foi necessário instigar as pessoas a sentir a respiração
para além dos pulmões e do tronco.
A respiração celular tem seu próprio ritmo, e não segue o ritmo do movimento de
enchimento e esvaziamento pulmonar. De acordo com Linda Hartley, quando nos
colocamos a escutar a respiração celular, começamos a perceber que há, por todo o corpo,
"uma sutil pulsação, vibração ou formigamento, uma sensação de calor, ou talvez, um ritmo
de movimento ondulante" (HARTLEY, 1995, p. 20, tradução nossa254). O microscópico
253
With every breath we connect and have an exxchange with the environment outside of ourselves.
The fuller our respiration, the more each and every cell of our bodies is dialoguing with the world.
254
[...] a subtle pulsing, vibrating, or tingling, a sensation of heat, or perhaps an undulating rhythm of
192
movimento respiratório celular ressoa no corpo. O ritmo da respiração celular, como coloca
Hartley, é algo para ser percebido pela sutileza: "Este não é o ritmo da respiração vindo e
indo dos pulmões, nem o latejamento do coração, que você também pode ser capaz de
sentir; vá mais fundo" (HARTLEY, 1995, p. 20, tradução nossa255).
Além da escuta proprioceptiva, que nos aguça o tato interno, podemos nos conectar
com nossa respiração celular utilizando o tato propriamente dito, por toque. Tocando a nós
mesmos, percebemos a respiração celular da área tocada, e nisso, a estimulamos.
Hackney, conforme estratégias utilizadas por Bartenieff, coloca em foco esse autotoque:
movement [...]
255
This is not the rhythm of the breath coming in and out of the lungs, nor the throbbing of the heart
that you may also be able to feel; go deeper.
256
Celular awareness [...]
257
Hold lightly in your awareness the knowledge that your body is one connected entity that at the
same time consists of billions of tiny individual breathing cells.
258
When you breathe are you aware of any areas of your body moving subtly?
259
[...] the sense of breathing spherically.
193
Tente colocar sua mão sobre uma área que esteja se movendo [pulsando
com a respiração] para transmitir a você mesmo, via sensação-toque, a
natureza da qualidade de movimento da respiração. Apenas deixe isso
acontecer.
Você está consciente de todas as áreas no seu corpo que estão tensas, e
que não estão em movimento, embora você sinta que gostariam de estar?
Tente colocar sua mão sobre essa área. Observe o que acontece enquanto
você traz atenção para essa área por meio da respiração e do toque. Se
você for paciente, seu toque pode levar você a sentir um sutil crescimento e
encolhimento nessa área, trazendo um sentimento de vida nova e fluida.
260
(HACKNEY, 2002, p. 53, tradução nossa ).
260
Try putting your handon an area that is moving to give yourself a touch sensation of the nature of
the movement quality of Breath. Just let it happen.
Are you aware of any areas in your body that feel tight and that are not moving, but feel like they
would like to? Try putting your hand on that area. Notice what happens as you bring attention to
that area through breath and touch. If you are patient, your touch may let you sense a subtle
growing and shrinking in this area, bringing a feeling of new life and flow.
261
'active imagination'.
262
Give your attention particularly to the area of contact and 'breathe into' the cells in that área,
enlivening them and opening a flow channel between your two bodies.
194
Depois de um tempo tocando uma parte do corpo do outro, é interessante tocar uma
nova área, podendo-se assim, passear pelo corpo do outro. Hackney também nos lembra
que existe a possibilidade de sincronizar a própria respiração pulmonar com a respiração
pulmonar da pessoa que tocamos (HACKNEY, 2002, p. 59). Hackney ainda sugere que, a
partir dessa sintonia, as duas pessoas possam começar a se mover juntas, utilizando o
contato e descobrindo possibilidades de relacionar-se em movimento, tendo a respiração
como suporte para essa relação. Disso pode-se explorar também o mover-se junto sem
haver contato físico. Lembrando que é bom que os envolvidos conversem sobre a
experiência posteriormente. E ainda há a possibilidade de desenvolver a sincronização da
respiração em grupos, o que pode ser explorado de diversas maneiras, com movimento pelo
espaço, sem movimento, com contato físico, sem contato físico. Nessas vivências, o
indivíduo precisa manter-se conectado com sua respiração, ao mesmo tempo que se abre
para o grupo e se sintoniza com ele.
2015d, s.p). Hackney, por sua vez, registra uma curta frase bonita que sintetiza bem isso:
"A respiração aviva" (HACKNEY, 2002, p. 41, tradução nossa263).
263
Breath enlivens.
196
do fêmur me posições de bruço. Corpo solto, articulações soltas. Até a pele do couro
cabeludo, das orelhas deve ser estimulada. Toda a pela.
parte, de modo a não perder a conexão com a sensitividade vivenciada durante o repouso.
Posso convidar os alunos a perceber como a sensitividade dessa parte passa a contagiar
partes corporais próximas ou visinhas. Peço que foquem outra parte parte, e depois a
mexam, e outra... e o corpo vai sendo colocado em movimento.
Figura 06: Momento de condução de visualização da respiração celular para o início de uma
somatização da respiração.
Alunos: Tatiana Iunes (à frente, à esquerda); Walber Freitas (no centro); Karina Mercia (à frente, à
direita); Gabriel Bento (à direita, no fundo); Leonardo Vieira Telles (à esquerda, no fundo); e Rafael
Alves (ao centro, no fundo).
completo, e se esvai pelos poros da pele. Nesse entra e sai do ar, jogamos com a imagem
de que o corpo, como um todo, se expande (movimento excêntrico) durante a inspiração, e
se condensa (movimento concêntrico) durante a expiração. Estamos parados, mas somos
movimento: sentimos o encher e o esvaziar de ar de modo espalhado, por todo o corpo.
Notei que essa imaginação junta o padrão básico de movimento respiração, com
outro padrão básico de movimento identificado por Bonnie Cohen no âmbito do BMC: o
padrão esponja264. Esse padrão de movimento orgânico/corporal presente na natureza
corresponde ao movimento de passagem de substâncias presentes no meio ambiente para
dentro do corpo através de membranas porosas. Isso ocorre com as células, com as
substâncias atravessando a membrana celular. Bonnie utiliza o esponja como exemplo para
esse padrão, porque esse animal tem o corpo feito basicamente de membranas; ele é como
uma membrana dobrada ou amassada. Seu corpo é atravessado pela água do ambiente
aquático, e nisso o animal filtra essa água, retendo em seu corpo nutrientes, do mesmo
modo como libera no ambiente resíduos. Tal qual ocorre com a esponja, imaginamos o ar
limpo do ambiente adentrando-nos pelos poros da pele, ocupando-nos por completo, e o ar
sujo deixando-nos pelos poros da pele, ao ganhar o ambiente. Não fazemos esforço,
apenas permitimos esse fluxo.
265
[...] a sense of deep stillness and peace.
266
A great whoosh connects what is outside, air of the world, with the inside of me... connects the
inside of me with myself.
267
There is no goal to be reached and no targeted task. It is sufficient to Be, simple and whole,
connected within, in unity with the universe.
200
psicológicos e nosso metabolismo. Logo, o sangue tem ritmo, além de ter calor. Todo o
corpo pulsa no ritmo circulatório, aquecendo-se ou esfriando-se conforme varia a levada da
música cardíaca.
O coração possui uma forma resultante do dobramento de uma única tira de tecido
cardíaco, em fase inicial da ontogênese. É como uma pista que se compactou enrolando-se
sobre si mesma, a formar alguns loopings congregados. Nisso reside uma inteligência de
fluxo. Podemos até conjecturar que foi de modo ritmado que a tira-coração foi se
contorcendo e tornando-se algo tridimensional entre o redondo e o retangular. No coração o
sangue chega. Do coração o sangue parte. Sai pelas artérias, retorna pelas veias. Ao sair
do coração, trafega em direção a todas as partes do corpo dentro dos canais arteriais, túneis
que se bifurcam em vias de calibre cada vez menor, até que suas paredes sejam tão ralas
que por seus poros passem os componentes metabólicos sanguíneos de menores
proporções, juntamente com porções de água existentes no sangue, encharcando os
tecidos corporais. Então, esses menores canais são como os pequeninos riachos que
deságuam em áreas pantanosas.
Em relação a isso, considero ser importante realizar uma breve revisão, relembrando
que esse encharcamento é o modo pelo qual os nutrientes do sangue chegam aos tecidos
do corpo para nutri-los (nutrindo as células). O plasma (parte líquida do sangue e rica em
nutrientes) deságua para fora dos vasos circulatórios arteriais mais finos - os capilares
arteriais - que são as últimas ramificações da rede das artérias. Ao desaguar, o plasma
inunda os tecidos corporais, e assim, o ambiente extra-cecular provê às células nutrientes
trazidos pelo plasma arterial. Nutrientes atravessam as membranas celulares, adentrando as
células. O mesmo caminho é feito no sentido de regresso ao coração, pelas vias venosas.
Desse pântano iniciam-se outros pequeninos riachos - os capilares venosos -, que por
diferenças de pressão puxam o plasma para seu interior. Esses pequenos riachos vão
encontrando-se e juntando-se, a formar afluentes mais largos, os quais, por sua vez,
desembocam em grandes rios - as veias - que por fim encontram-se em uma única corrente
em regresso ao coração. No coração, o sujo sangue venoso é conduzido para o pulmão,
onde ocorre a retirada do gás carbônico do sangue, e a entrega do oxigênio, e o sangue é
conduzido de volta ao coração - novamente renovado como sangue arterial. Do coração, o
sangue é bombeado para todo o corpo, e assim se faz o fluxo sanguíneo da vida.
Bonnie Cohen enfatiza que as fases circulatórias arterial e venosa têm fluências de
características diferentes, e que isso se reflete nas nossas movimentações corporais, sejam
cotidianas, funcionais, ou expressivamente intencionais (COHEN, 1993, p. 72-75). Na
perspectiva de Bonnie, essa diferença consiste no fato de que o movimento circulatório
201
Pelo sangue não viajam apenas o oxigênio e o gás carbônico, mas diversos
nutrientes, e também os hormônios, os mensageiros químicos do corpo. Nosso sangue,
então, é cheio de emoção em potencial. A imagem exposta abaixo é uma livre
representação que fiz dos fluxos sanguíneos arterial e venoso circulando pelo corpo. As
figuras em vermelho representam o fluxo arterial, e as em azul, o fluxo sangúineo.
Figura 07: Livre representação dos sangues arterial e venoso circulando pelo corpo. Autoria própria.
A somatização das batidas do coração pode ser estendida para uma somatização do
fluxo sanguíneo. A partir da acentuação corporal rítmica que segue as batidas cardíacas,
membros e cabeça podem começar a participar da dança cardíaca, por meio, por exemplo,
de descargas de peso ritmadas dos pés no chão, como em passadas descarregantes, ou
por meio da ação de bater palmas e de pontuar braços e cabeça no ar. Entra-se em contato
com o potencial de ação do coração sobre o corpo, acessando-se assim a pulsação
sanguínea, e o fluxo sanguíneo principalmente arterial, de ida para as extremidades. O
acento que sai do peito chega até mãos, pés e cabeça. Descobre-se um movimento ritmado
algo ancestral e tribal, mas que também pode ser sentido como algo atual e comum ao
268
Ainda que não consigamos manter essa conexão o tempo todo, buscamos ela.
203
corpo dançante social contemporâneo. Nas palavras de Olsen: "Bater palmas e bater os pés
no chão ativa o sangue e estimula a circulação" (OLSEN, 1998, p. 154, tradução nossa269).
O pulsar corporal e as batidas de mãos e pés podem evoluir para saltos, abaixadas,
sacudidas. Estar nesse pulso corporal é um ponto de partida interessante para o encontro
com o outro e com o grupo como um todo. Pode-se experimentar ficar de frente para o outro
e trocar movimentos com ele. Pode-se experimentar uma grande roda envolvendo todos os
participantes. Adentra-se uma experiência pulsante que desperta força, disposição física,
coragem, ligação com a terra, ligação com o coletivo. Obviamente, cada pessoa terá suas
impresssões peculiares, mas parece ser comum que alguns desses sentimentos incidam
sobre as pessoas.
269
Clapping and stomping of feet activate the blood and stimulate circulation.
204
impulso inicial para o corpo entrar movimento. Esse relâmpago de imagem também pode
ser utilizado como algo que vira e volta anima o movimento ao longo de sua duração.
Nossa mobilidade interna plasmática nos mostra que mesmo não sendo marítimos
como as medusas, também vivenciamos marés. Como coloca Bonnie, a pulsação
"Estabelece o grande inchaço e grande afundamento das marés em todo o nosso corpo
dentro dos limites de nossa pele" (COHEN, 2015a, p.). Nos nossos tecidos corporais, o
270
A título de esclarecimento, vale mencionar que além do plasma existente no meio-extracelular, e
que encontra-se sempre em renovação, o meio extra-celular é, por si mesmo, fluido, aquoso,
tendo uma consistência semelhante à da clara de ovo, sendo rico em substâncias. Ainda existe no
ambiente extra-celular outro tipo de presença: uma matriz de fibras conectivas que dá certa
densidade aos tecidos. Essas fibras proporcionam então capacidades estruturais aos tecidos, e
também possuem uma função de serem úteis ao processo de comunicação entre as células. O
nível de estruturação de cada tecido irá variar, conforme as características da matriz conectiva de
cada um deles.
205
plasma deságua e escoa, como uma maré vindo e voltando ciclicamente. De acordo com
Bonnie, quando a imaginação se volta para esse movimento existente nos tecidos corporais,
sentimos vitalidade, força interior, musculosidade fluida, sensualidade e envolvimento ativo
com o ambiente externo (COHEN, 1993, p. 71).
A imagem das marés fluindo nos tecidos do corpo pode nos provocar
cinestesicamente, e podemos experimentar nos mover como que levados por esse delicado
e ininterrupto movimento. Junto com a 'cinestesia das marés', experiências sinestésicas
podem ser provocadas, como quando visualizamos esse ambiente fluido e imagens vêm a
povoar nossa mente, como imagens de ondas, com suas espumas, no momento em que
deságuam. Isso pode ser estimulado pelo professor ou facilitador da vivência, ao sugerir
imagens e utilizar sons que instiguem um enriquecimento sinestésico na experiência dos
experimentadores. A somatização do fluxo existente no ambiente fluido extra-celular causa
um remeximento corporal frelaxado, fluido e integrado. Nos conectamos com esse
movimento de maré que existe em nossos tecidos: maré enchendo, maré esvaziando;
fluidos escorrendo, vazando, adentrando.
Figura 08: Livre representação do fluido transicional vindo de um tecido celular e adentrando a
membrana de uma célula. Autoria própria.
4.1.3 Nutrição
Toda essa atividade da boca faz com que, nesse padrão de movimentação, a cabeça
seja a extremidade líder que guia os movimentos do corpo no espaço. A boca é o 'membro'
que encontra-se na cabeça, e que alcançará e segurará o objeto de interesse. A coluna,
enquanto tronco ósseo, se organiza longitudinalmente em sinergia com o tubo digestivo,
sendo que movimentos da cabeça, realizados para que a boca alcance o estímulo externo,
repercutem ao longo de todo o eixo, finalizando-se na outra extremidade do eixo. Instala-se-
se assim a relação cabeça-cauda (entendendo-se que a ponta do cóccix é tida aqui como
sendo a ponta da cauda). Isso ocorre porque o eixo precisa se reorganizar como um todo
para que a boca alcance o estímulo. Mesmo fora do contexto da mamada, o eixo também se
reorganiza em função dos movimentos exploratórios da língua que investiga a boca. Pelos
movimentos da língua dentro da boca e fora dela, o bebê vai adquirindo seu iniciante senso
de espaço; vai medindo; reconhecendo distâncias e dimensões. Esse senso servirá de base
para o ganho ou desenvolvimento do senso de localização espacial e de deslocamento no
espaço. Bonnie Brainbridge Cohen chama isso de "o incrível poder da Mouthing" (COHEN,
2015a, p. 21).
De acordo com Sherwood (2011, p. 591), pelo fato do tubo iniciar-se na boca e
finalizar-se no ânus, atravessando toda a longelineidade do tronco, tal qual uma passagem
do 'meio externo' por dentro do corpo, o interior do tubo não faz parte do organismo. Esse
fato é muito importante, pois é graças a isso que não somos mortos por nossa própria
atividade digestiva, já que as condições metabólicas existentes no interior do tubo são
incompatíveis com os limites toleráveis pelo organismo. Os níveis de pH do estômago, as
enzimas digestivas, os micro-organismos da parte inferior dos intestinos, se entrassem em
contato com o organismo, destruiriam nossos tecidos. Além disso, se os alimentos
entrassem em contato com o organismo antes de serem destrinchados pelas enzimas
digestivas, seriam atacados pelo sistema imunológico. Apenas após serem destrinchados a
nível de unidades indiferenciáveis daquelas que circulam pelo organismo, é que os
conteúdos ingeridos são absorvidos pelas paredes do tubo, atravessando-a e adentrando os
capilares do sistema circulatório. A partir desse ponto, esses conteúdos podem ser
considerados parte do organismo.
271
The digestive system is involved with taking in, integration, and letting go.
272
The digestive system is one area where emotional problems manifest on a physical level and can
be recognized.
212
Olsen aconselha que, deitados, em repouso e com as mãos apoiadas sobre o ventre,
façamos um reconhecimento da presença de nosso sistema digestivo. Ela sugere: "Traga
sua consciência [direcionada] para sua boca. Sinta a mandíbula relaxar e a boca cair
levemente aberta" (OLSEN, 1998, p. 129, tradução nossa273). Essa enfatizada que Olsen dá
no relaxamento das musculaturas do maxilar é importante, porque pode haver muita tensão
nessa área, o que bloqueia a chegada de sensações sutis provenientes da área interna da
boca e garganta. A esse relaxamento acrescento a possibilidade de mover um pouco o
maxilar com o mínimo de tensionamento muscular possível. Voltando para Olsen, ela diz:
"Engula. Sinta a passagem da saliva descendo o esôfago, em frente da sétima vértebra
cervical (atrás da traqueia). Imagine a descida através do diafragma e para dentro do
estômago" (OLSEN, 1998, p. 129, tradução nossa274). Nessa ação sugerida por Olsen,
atravessamos a zona de passagem entre movimento muscular voluntário e movimento
visceral muscular involuntário. Acredito que seja devido a isso que Olsen passe a usar
'imagine', ao invés de 'sinta'.
273
Bring your awareness to your mouth. Feel the jaw relax and the mouth fall slightly open.
274
Swallow. Fell the passage of saliva down the esophagus, in front of the seven cervical vertebrae
(behind the trachea). Image the descent through the diaphragm and into the stomach.
275
[...] the area below the ribs on your left side.
276
[...] the area below the right ribs.
277
[...] the area below the sternum and xyphoid process often called the solar plexus [...] where your
pancreas lies on a diagonal from the front to the back of your body.
278
[...] a dense área near the angle of the ribs.
279
Move your hands around the abdomen, feeling the interweaving of the small intestines.
280
Circle your hands clockwise around the perimeter of the pelvis; image the large intestine as it
curves back towards the sacrum to become the rectum and anus.
213
Após finalizada essa viagem imaginária pelo trato digestivo, Olsen sugere que sejam
usadas contrações musculares e massagens no intuito de nos levarmos a sentir, mensurar,
dimensionalizar a integralidade do tubo digestivo. Podemos iniciar a exploração
sensorioperceptiva contraindo e relaxando musculaturas da região da boca e do maxilar, e
finalizamos contraindo e relaxando o esfínter anal. Isso nos ajuda a perceber a ligação
existente entre esses dois pontos extremos do tubo; que é um único tubo. Olsen também
observa que quando viajamos imaginariamente pelo nosso tubo, identificamos zonas mais
obscuras para nossa percepção. Como coloca Olsen, são áreas "particularmente difíceis de
visualizar ou sentir" (OLSEN, 1998, p. 129, tradução nossa281). Para que possamos ir
amenizando essas obscuridades, Olsen aconselha: "Use sua respiração, de dentro do
corpo, e gentilmente massageie, de fora do corpo, para ajudar a trazer essas áreas para a
consciência" [direcionada] (OLSEN, 1998, p. 129, tradução nossa282).
Caryn McHose e Kevin Frank sugerem que façamos um desenho do nosso tubo
digestivo e que em seguida comecemos a nos mover de modo a mobilizar cada parte
presente no desenho. Eles consideram que isso pode parecer um pouco inacessível em
alguns momentos, mas que essa aparente inacessibilidade, desde que haja generosidade
imaginativa, pode se transformar em outra coisa. Eles aconselham: "Apenas dê a seu corpo
uma chance de jogar com um movimento digestivo" (MCHOSE; FRANK, 2006, p. 41,
tradução nossa283).
4.4 Vibração
Conforme é sabido pelo senso comum, em uma instância muito para dentro, o corpo
humano, assim como todo outro corpo (animal, mineral, celestial etc.), e assim como tudo
que existe, é um aglomerado atômico, sendo os átomos as unidades nas quais partículas
elétricas opostas e neutras estão em relacionamento por meio de uma organização núcleo-
periferia orbital. Átomos agrupados formam moléculas. A água é uma molécula. As
moléculas que formam a malha da membrana de nossas células criam entre si uma zona
onde a água não é bem vinda: é a camada intermediária da membrana celular. Graças a
ela, é possível que haja um ambiente interno celular diferenciado do ambiente externo.
Nessa malha existem túneis, e assim, ambiente interno e externo se comunicam. Os átomos
que formam a membrana plasmática vibram constantemente, trocando de lugar uns com os
outros milhões de vezes por segundo (conforme mencionado anteriormente), vindo daí o
fato de que a mobilidade é algo intrínseco à membrana, e, por conseguinte, algo intrínseco a
281
[...] particularly hard to visualize or feel.
282
Use your breathing from inside the body, and gentle massage from outside the body to help bring
these areas into awareness.
283
Just give your body a chance to play with a gut movement [...]
214
nós. A vibração pode ser compreendida como o movimento de um ponto oscilando em torno
de uma referência, e este é o tipo de movimentação vivenciada pelos átomos. Logo, tudo
que existe possui vibração atômica. Nós vibramos atomicamente.
Para Bonnie Cohen colocou essa vibração nos fundamentos do BMC, como um dos
padrões de movimento a serem estudados experimentalmente: o padrão vibração. Ele nos
leva novamente à elementar movimentação de alternância entre expansão e condensação,
sendo que, dessa vez, ela se dá na instância atômica. Disso vale lembrar que átomos se
condensam e se expandem, conforme suas órbitas diminuem ou aumentam de tamanho ao
perderem ou ganharem elétrons. Desse modo, moléculas também vivem esses aumentos e
diminuições. Para Bonnie, a vibração é um ritmo de condensação e expansão ocorrido no
nível atômico básico (COHEN, 2015d, s.p.). Dentre os padrões trabalhados pelo BMC, é o
mais elementar e mais sutil. Por meio dele, tudo possui uma natureza vibracional. Nas
palavras de Bonnie:
284
A título de revisão: Todo organismo, ou seja, toda vida, se dá a partir de compostos orgânicos. O
que diferencia compostos orgânicos de compostos inorgânicos é a presença e combinação de
determinados elementos químicos, dentre estes, têm grande importância o carbono e o
hidrogênio.
215
A vibração atômica nos mostra que somos feitos de movimento; que a matéria é
movimento. Coisas que para nossos olhos são estáticas ou encontram-se paradas, estão, a
nível atômico e subatômico, em constante movimento285. Sendo assim, em todas coisas
existe o eco dessa ininterrupta movimentação relacional entre as partículas, sendo estas
coisas vivas ou não: uma pedra, uma gota d'água, um bicho, uma glândula, uma célula, uma
pessoa. Em uma fala de Laban, transcrita por Bartenieff, ele se reporta a esse movimento
elementar presente em tudo e em todos:
285
A título de revisão: Embora exista movimento vibracional em todos os estados físicos (gasoso,
líquido e sólido), os elétrons encontram-se em diferentes graus de liberdade de movimento e de
deslocamento conforme estejam em um estado ou outro.
286
In rhythmic waves regularly spreading, the ether trembles, the small, most minute particles of
matter tremble. If there were no movement at all, all things would be lying dead in absolute rigidity
and complete apathy. No ray of light, no sound would bring messages from one thing to another.
216
A escuta da vibração atômica, segundo Bonnie, é uma experiência que nos coloca a
reconhecer a existência da alteração como base de tudo, o que significa que o padrão
vibracional é variável. Bonnie novamente se refere às relações elétricas e aos momentos
magnéticos atômicos para esclarecer isso: "A interação entre a atração e a repulsão cria um
movimento ondulatório e um ciclo de alternância de padrões de condensação e expansão"
(COHEN, 2009, s.p.). Ao esclarecer isso, Bonnie torna claro que, a prática da escuta
vibracional faz com que encontremos diferentes padrões. Nas palavras de Bonnie: "[...] cada
padrão vibracional é singular em cada momento. Ele é continuamente modificado" (COHEN,
2009, s.p.). Sendo assim, poderíamos pensar, por exemplo, que em circunstâncias
diferentes, possuímos vibrações diferentes, e que o em torno de nós repercute em nós, e
em nossos padrões de vibração. A partir dessas ideias, a seguinte percepção de Bonnie
torna-se mais compreensível: "Através da vibração nós intuitivamente nos sentimos
seguros/inseguros, em harmonia/em desarmonia" (COHEN, 2015, s.p.). Essa fala de Bonnie
encoraja o entendimento de que a prática da escuta vibracional nos torna mais sábios no
que concerne ao aspecto relacional da vida, já que, como estamos sempre ambientalizados
em tal ou qual contexto, estamos comumente nos relacionando em termos vibráteis com
diversas outras vibrações: de outras pessoas, de grupos de pessoas, de lugares sociais, da
natureza (de animais, de plantas, de rochas, dos raios do sol etc.).
217
Dito isso, podemos nos perguntar: "Em que isso é válido para o artista do
movimento?". Se considerarmos que esse artista estará, em seu trabalho criativo,
constantemente lidando com a esfera relacional da vida, já percebemos a importância que
essa questão vibracional representa para ele. Se mais sensível ao movimento vibracional,
seja seu próprio, o do outro ou o do coletivo, estará mais sintonizado consigo mesmo, com
os colegas e com o ambiente. A percepção proprioceptiva fica espalhada em todo o corpo e
trazida para a beira da pele. Se ele aproveitar isso como um combustível para os momentos
em que terá uma ação focada, seja de movimento, de fala ou de intenção mental, irá ganhar
muito na expressividade que essa sua ação irá alcançar. Também para o estado de
presença, para sua presença cênica, a conexão com a vibração atômica irá proporcionar a
ele um maior brilho e uma maior capacidade de projetá-la no espaço. Para as vivências que
envolvem estados mais precisamente emocionais, a vibração pode ser um caminho de
chegada mais inusitado, mais aberto. Para perceber sua própria evolução enquanto parte
dramatúrgica da cena ou do exerício criativo, conectar-se com sua vibração e perceber suas
alterações de padrão pode ser algo potente. Todas essas conexões podem ser otimizadas
por meio do uso da imaginação, já que imaginar a vibração também é uma aneira de
encontrá-la.
O acesso tátil a fenômenos sutis pode ser facilitado pela imaginação, com a
visualização de processos não visíveis. Procura-se, desse modo, sentir ou 'ouvir' a
ressonância dos desdobramentos do magnetismo naquilo que se toca - a cadência
elementar das ondulações geradas pelas condensações/expansões das formas atômicas.
Podemos tocar a nós mesmo, podemos tocar o outro. Nesse tipo de escuta, a identificação
da vibração atômica se dá enquanto encontro tátil com um ritmo vibracional. Quando a
vibração é acessada pelo toque em outra pessoa, entramos em contato com o outro de uma
maneira muito profunda, pois encontramos ali um movimento que acaba por interagir com o
nosso próprio movimento vibrátil atômico. Nesse tipo de toque, as mãos devem se
218
posicionar sobre o lugar a ser tocado, e ali ficar por um tempo. As mãos não devem pesar
nem mais nem menos do que o necessário para se encostar de modo repousante naquilo
que se toca. Não deve haver pressão sobre a superfície que se toca; nenhuma ação como
empurrar ou apertar. Uma vez achado o bom toque, podemos liberar a percepção.
287
The lower unit, as initiator of the center of weight, essentially serves locomotor activity (the
transport of body weight) and postural changes (the support of body weight).
220
288
The upper unit essentially serves exploring, manipulating, gesturing activities. It initiates and
extends reach space, communicates through spatial gestures, body touch, grasp, enveloping,
dispersing, intertwining.
289
Embora anatomicamente o maxilar também componha o esqueleto periférico, no contexto da
arquitetura tronco-membros isso não é levado em questão.
290
Processo referente à ontogênese, a formação do corpo humano. O processo ontogenético começa
quando os gametas do homem e da mulher se encontram.
291
Esse termo é proveniente da Filogenia, a área de estudos da biologia que se dedica a investigar
relações evolutivas entre diferentes seres vivos. Podem ser investigadas relações entre espécies,
entre gêneros, entre famílias etc. (processos filogenéticos), procurando-se desvelar vínculos
ancestrais entre os seres vivos.
221
292
Connectedness refers to the dynamic alignment of the weight-bearing structure, the skeleton, in
movement as well as stillness. It allows the flow, the movement impulse, to pass through the body
in such a way that complete activation can be realized most efficiently - without unnecessary
exertion and stress. It is obvious enough to say that legs, arms and head are 'linked' to the torso,
the foot to the lower leg, the arm at the shoulder joint, etc., but their connectedness is more than
muscles traveling over the joints to hook up two bones. It is the activated chains, configurations of
connections that control the movement process.
222
movimento das partes em um único mover-se. Usando novamente palavras de Bartenieff: "O
reconhecimento de cadeias cinéticas musculares - a sequência de músculos usada em um
movimento - diminui a dependência exclusiva da força de um músculo particular no poder do
movimento" (BARTENIEFF, 1980, p. 21, tradução nossa293).
Bartenieff sugere algumas questões úteis para quem se move procurando perceber e
explorar a conexão entre as partes corporais. Essas questões podem ser explicitadas por
um facilitador durante a exploração do movimento e também podem ser visitadas,
autonomamente, pelo próprio movedor, que pode ir utilizando-as como um norte para sua
investigação. São questões que repercutiram bastante no meio pedagógico da
conscientização e expressividade corporal em territórios das artes cênicas, e que hoje fazem
parte das ideias que animam a exploração perceptiva/sensitiva do movimento nessa área
artística:
293
Recognition of kinetic muscular chains - the sequence of muscles used in a movement - diminishes
the exclusive dependence on individual muscle strength for movement power.
294
Which parts are initiating the movement and what is the sequence of those that follow?
Are they initiated from the center or from the peripheral parts of the body?
Which parts are active or held?
To what extent are they involved with other parts?
Are the movements leading toward or away from the body center?
What configurations are formed?
[...]
Are the parts used simultaneously or sequentially?
Are they used symmetrically or asymmetrically?
How is the center of weight shifting or holding?
[...]
How is the body grounded?
223
Explorar a conectividade cinética que envolve as partes corporais mexe com nossos
padrões neuromusculares. Além de revelar possibilidades de movimento não habituais ou
desconhecidas, nos coloca a revisitar nosso processo ontogenético (ou ontogênico). Todo
mundo teve, um dia, que iniciar voluntariamente seus movimentos corporais. Quando bebês,
começamos a aprender a coordenar os movimentos das partes corporais. Nessa exploração
da coordenação, fomos aprendendo que alguns modos de conectar os movimentos de
nossas partes corporais fazem com que consigamos realizar algumas coisas, algumas
manobras corporais. Para o bebê conseguir rolar, ele precisa antes, em sua movimentação,
adentrar um tipo de integração corporal. Ele percebe o movimento do centro do corpo e sua
conexão com as extremidades da coluna. Para arrastar-se, tem que alcançar outro tipo de
conectividade. Para engatinhar, novamente outro tipo. E para andar, também. Cada estágio
vivenciado servirá de base para o desenvolvimento de um novo estágio. Bartenieff utilizou-
se bastante da análise do desenvovimento motor dos bebês/crianças para criar exercícios
corporais. Procurou desvendar como a conectividade entre as partes corporais vai se dando
no corpo desde o nascimento até a idade em que o caminhar está plenamente estabelecido.
E nesse ponto, vale lembrar que seus estudos labanianos foram ponto de partida para essas
investigações.
vida faz com que, após seu nascimento, o ser humano desdobre possibilidades de
movimento que dialogam com essas heranças. Existem elos entre as espécies de seres
vivos não apenas na fisiologia, na estrutura e na forma corporal, mas também no movimento
corporal. O ser humano então compartilha padrões de organização do movimento com
outros seres vivos. Bartenieff investigou a conectividade corporal revisitando esses padrões.
Seu olhar procurou identificá-los e tornar as pessoas conscientes de sua existência, de sua
importância, e também atuantes em sua dinamização. Ela explorou o resgate das
habilidades corporais que esses padrões requerem de nós. E os chamou de Padrões
Neurológicos Básicos (PNB). Segundo Fernandes, esse termo faz referência à "modificação
simultânea dos sistemas nervoso e muscular rumo à complexidade" (FERNANDES, 2006, p.
56) neuromotora.
Como cada estágio anterior serve de base e apoio para cada estágio
sucessivo, qualquer desenvolvimento incompleto ou omissão de qualquer
estágio provoca problemas de movimento e percepção. Ao retornar a esses
padrões básicos, podemos repadronizar as nossas respostas e estabelecer
conexões nervosas mais eficientes para sustentar o nosso movimento
(COHEN, 2015b, p. 51).
225
A horizontalidade pode ser bem explorada, de modo que o contato com o chão seja
variado, explorando-se os desdobramentos possíveis da movimentação encolhimento-
expansão, tendo-se não só o dorso no chão, mas também as laterais no chão e o ventre.
Pela horizontalidade e contato com o chão, o corpo vai começando a naturalmente se
deslocar pelo espaço por meio de rolamentos, como se pode ver na imagem exposta na
página seguinte (retirada do livro de Hackney sobre os Fundamentals de Bartenieff):
228
Alunos: Leonardo Vieira Telles, em apoio na lateralidade corporal e Rafael Alves, em apoio dorsal.
295
Before I can confidently move on my own in the world, I need to have a sense of my own center.
229
Alunos: Leonardo Vieira Telles (à frente e à esquerda), Walber Freitas (à frente e à direita), Karina
Mercia (ao fundo e no centro) e Gilmar Bruno (ao fundo e à direita).
Figura 13: Recolhimento no nível baixo e médio-baixo, tendo-se o apoio na lateralidade corporal.
Alunos: Leonardo Vieira Telles (ao centro), Gabriel Bento (à esquerda, no plano médio), Bianca
Colins (ao fundo, à esquerda), Natalia Sena (ao fundo, à esquerda mais ao centro), Karina Mercia (à
direita, no plano médio) e Gilmar Bruno (ao fundo e à direita).
230
Alunos: Leonardo Vieira Telles (à frente), em apoio no ventre; Gabriel Bento (à esquerda, no plano
médio), em apoio lateral; Karina Mercia (à direita, no plano médio), em apoio lateral; Bianca Colins
(no fundo à esquerda), em apoio lateral; Natalia Senna (no fundo, ao centro), em apoio lateral.
intenção da cabeça. Quando os cachorros estão deitados de barriga para cima, brincando e
em seguida torcem o eixo para levantar, fica nítido que o padrão espinhal está em ação.
Quanto mais o bebê vai movendo as extremidades do eixo e a coluna, mais ele vai
aprendendo a se mover. Quanto mais ele vai adquirindo força muscular e coordenação
motora, mais vai tirando a cabeça do chão. O bebê percebe que virando a cabeça de lado e
movendo a coluna, ele acaba virando para o lado, e de lado ele arqueia a coluna para virar
de bruço. A inteligência rotacional do eixo, e a inteligência do arco do eixo vão se
desenvolvendo. De acordo com Bartenieff, o rolamento é "a primeira tentativa de transportar
a parte mais pesada do corpo, a parte baixa" (BARTENIEFF, 1980, p. 21, tradução
nossa296). Uma vez de bruço, o bebê adquire força para manter a cabeça e o peito erguidos
para cima, e passa a observar melhor o meio. O movimento de sua cabeça mostra onde
está sua atenção. Sua intenção contamina toda a coluna. O bebê exercita bastante a
extensão de coluna. Musculaturas dorsais bem desenvolvidas o ajudarão a conseguir
manter-se com o tronco verticalizado quando aprender a sentar.
pelo rolar, se transforma em uma extensão, a extensão se transforma em uma flexão lateral
para a esquerda, e essa se transforma em uma flexão ventral. Esse ciclo vai se repetindo
até o rolamento chegar em seu destino. Esse exercício ficou conhecido por muitos como
'banana'. Noto que esse exercício desenvolve a consciência de que o centro oferece o
suporte de esforço necessário para a intenção das extremidades, e de que é possível
manter ininterruptamente uma refinada conexão centro-periferias durante um rolamento
longelíneo, no qual há apenas moderada mudança na forma corporal (PAXTON, 2008).
Imagem 16: Estimulação tátil da coluna durante o movimento de investigação da conexão cabeça-
cauda (2).
Imagem 17: Estimulação tátil da coluna durante o movimento de investigação da conexão cabeça-
cauda (3).
Imagem 18: Estimulação tátil da coluna durante o movimento de investigação da conexão cabeça-
cauda (4).
Imagem 19: Estimulação tátil da coluna durante o movimento de investigação da conexão cabeça-
cauda (5).
tronco, mas dessa vez, para cima. A ação de empurrar o chão com os pés pondo-se em pé
fortalece as pernas do bebê, preparando-o para o caminhar.
Foto à esquerda: fonte: Mail Online de 19 de junho de 2012. Foto de Martin Patten.
Foto à direita: fonte: G1 de 31 de janeiro de 2012. Foto de Janek Skarzynski.
O balanço frente-trás, típico desse padrão, significa: transferir peso das mãos para a
a metade inferior do corpo, da metade inferior para as mãos, quando o bebê encontra-se
deitado com o tórax estendido para cima sobre o apoio das mãos, com os braços esticados.
240
Ou: transferi peso da lateral externa dos joelhos para as mãos, das mãos para a lateral
externa dos joelhos, quando sentado. Ou ainda: transferir peso dos joelhos para as mãos,
das mãos para os joelhos, quando ajoelhado. A força dos membros é curtida pelo bebê, sua
vivacidade se amplia, o cansaço exige muito repouso. Hackey se refere a esse padrão com
as seguintes palavras: "Bem-vindo a um tempo de trabalho" (HACKLEY, 2002, p. 111,
tradução nossa297). Pessoalmente, sinto esse padrão como sendo um encontro com a força
muscular.
A exploração do padrão homólogo nos traz várias descobertas. Ela nos faz descobrir
a virilha como uma dobra funcional entre duas metades não simétricas do corpo que se
relacionam espacialmente. Nos faz redescobrir o balanço frente-trás sobre mãos e joelhos
que provavelmente fizemos quando bebês para preparar uma avançada no espaço. Ao nos
deslocarmos no estilo sapo, temos que deixar que a cintura seja como uma sanfona, que
funcione como uma área de chamamento. A conexão superior-inferior nos leva a dar outra
função para as mãos; funções diferente das usualmente dadas a elas. Passamos a trabalhar
as mãos como base, nos apropriando dessa função não usual. Pelo uso das mãos como
apoio, surgem muitas possibilidades de movimento. Aprendemos a saber entrar no chão
com as mãos, a pisar o chão com as mãos. Eu constantemente digo a meus alunos: "Se
você está usando a mão como base, não tenha receio de enfiar a mão no chão, use de fato
a palma da mão, use a mão como se ela fosse um pé, para te dar uma base forte, expalhe
os ossos das mãos no chão, use a musculatura da mão. Explore o cotovelo como se ele
fosse um joelho, se conecte com essa força de apoio dos braço".
Para o artista do movimento, ter confiança na força de base das mãos e braços é
muito importante. Ao confiarmos na capacidade das mãos e braços de absorver o peso, nos
sentimos mais seguros e livres para explorar as inversões de eixo e os giros sobre as mãos.
Estimulando o ambiente com músicas animadas, desenvolvo o estudo da movimentação do
sapo com os alunos. Faço isso depois de ter explorado muitas maneiras de apoiar-se com
as mãos, de transferir peso para as mãos, de utilizar as molas das pernas e de utilizar a
sanfona parte superior-parte inferior para se mover e se locomover. Saltamos pelo espaço
como sapos, nos desafiando. Em cada preparação de salto sentimos um desafio e uma
coragem prazerosa. Os mais corajosos, desde que sejam fortes, podem tentar esse salto a
partir da posição em pé, absorvendo o impacto da queda com as mãos. Assim ele se torna
muito desafiador. Eu costumo pedir a meus alunos que assitam vídeos de pessoas
praticando Le Parcour. Em muitos vídeos vemos os movedores realizando esses saltos de
sapo que, no caso, mais parecem saltos de "esquilos voadores". Noto que a exploração das
297
Welcome to a time of work.
241
mãos como base a partir da inteligência corporal típica do padrão homólogo nos faz mais
focados, fortes e confiantes em nós mesmo.
Voltando ao bebê, vejamos outra maneira que ele tem de se rastejar: a maneira
reptilínea. Nela, a movimentação corporal se dá na conexão entre braço de uma metade
lateral do corpo com a perna da mesma metade, por meio de flexão lateral na coluna para
aproximá-los. Ex.: flexão lateral na coluna para a direita, estabelecendo uma aproximação
do braço direito com a perna direita. Notei que isso ocorre porque que o bebê, ao invés de
iniciar sua propulsão nas duas pernas, inicia apenas em uma. Assim, quando ele se
empurra para a frente com uma única perna, ele acaba se voltando ventralmente para a
lateral da perna que não empurrou o chão. Na próxima avançada, o arranjo corporal irá
direcioná-lo para a outra lateral, e assim, os lados vão se alterando. Desse jeito, o rastejar
acaba se dando em um sutil zigue-zague. É como o movimento de uma lagartixa. O bebê
avança deslizando pelo chão, podendo também deslizar para trás, empurrando-se com as
mãos. Esse padrão fora chamado por Bartenieff de 'homolateral'.
O padrão homolateral irá então diferenciar para o corpo suas duas metades laterais.
Uma lateral se contrái enquanto a outra se expande (COHEN, 2015d, p. 75). De acordo com
Fernandes: "Não se trata de diferenciar apenas o braço esquerdo do direito, mas todo o lado
direito do corpo de todo o lado esquerdo. Ou seja, a partir da coluna (fase Espinhal), o corpo
divide-se" (FERNANDES, 2006, p. 60). Isso ocorre porque o bebê é atraído por estímulos
242
cabeça durante o deslocar rastejado homolateral. Esse foco vai nos conduzindo para o
próximo padrão, o contralateral.
Voltando ao bebê mais uma vez, podemos dizer que o padrão contralateral se
manifesta quando o bebê começa a engatinhar. As extremidades irão, a partir da posição de
quatro apoios, se comunicar em diagonais: braço direito com perna esquerda e perna direita
com braço esquerdo. A comunicação cruzada se dá pelo 'x' do corpo: as diagonais
longitudinais formadas por membros de laterais opostas se cruzam no centro do corpo,
passando pela coluna. Segundo Fernandes:
A investigação desse estágio em laboratório somático nos mostra que ele, de fato, é
suportado por todos os outros anteriores. Precisamos perceber que realmente, durante o
engatinhar, o avanço do braço direito chama a perna esquerda e vice-versa. Podemos sentir
a conexão cruzada. Para aquecer a percepção dessa conexão, podemos deitar no chão em
estrela e praticar a conexão do braço direito com a perna esquerda. Pelo chão, espichamos
para longe o braço direito, como se ele se prolongasse no espaço e nisso ficamos atentos
para perceber se sentimos a perna esquerda "querendo atender a algum chamado" do
braço direito. Experimentamos o contrário também, a perna esquerda se espichando e o
braço direito "ouvindo" o direcionamento. Depois, trocamos: braço esquerdo e perna direita.
Podemos sentir as cadeias musculares que cruzam nosso eixo. É estratégico fortalecer a
conectividade cruzada nessa estratégia da estrela, porque não há movimento pelo espaço,
estamos deitados, e podemos nos dedicar completamente a sentir a conexão. Depois,
quando vamos engatinhar, fica mais fácil perceber que no jogo cruzado, o avanço do braço
direito passa pela inteligência rotacional da coluna, e chega à perna esquerda.
Imagem 25: Padrão contralateral sendo suportado pelo padrão homolateral e homólogo.
247
A todo instante somos puxados para a Terra pela força de atração que sua massa
exerce sobre nossas massas. Força que nos possibilita pisar o chão, cair ao chão e voltar
para o chão após um salto; que possibilita nossa existência e a dos oceanos, montanhas,
planícies etc. É a força de atração entre os corpos: a gravidade, uma das quatro forças
fundamentais da natureza. A atração que todos os corpos materiais exercem uns sobre os
outros. Como anunciado na Revista Planeta, "De todas as forças do universo, a gravidade é
aquela que se estuda há mais tempo e, paradoxalmente, a menos conhecida" (DÓRIA,
2010). Para quem lida com a arte do movimento, sejam dançarinos, atores, ou outros
artistas da cena, explorar as possibilidades de experiências corporais que a escuta
gravitacional proporciona é algo que muito contribui para o desenvolvimento do potencial de
expressividade corporal. Procuramos nos relacionar mais intensamente com a gravidade.
Isso não significa que será preciso pular de para-quedas, mas que teremos que refinar
nosso modo de perceber a ação da gravidade.
ser bem mais pesada do que eu imagino."; "No final, quando eu estava me movendo
sozinha, senti o corpo solto e me senti mais leve do que normalmente me sinto.". Após
conversar com os alunos sobre como a relativização sensitiva do peso é algo
inexoravelmente ligado ao nosso estado coporal, um aluno contou sobre um sentimento que
vivenciou durante uma forte ressaca. Ele disse algo como: "Naquela manhã, ao voltar para
casa depois de ter dormido apenas por duas horas na casa de um amigo, eu parecia pesar
trinta toneladas. Parecia que eu não ia dar conta de chegar até minha casa. O percurso da
estação de metrô até a porta da minha casa parecia ser cem vezes maior do que é."
Comecemos por recordar que todo corpo (seja vivo ou não) é uma massa: uma
pessoa é uma massa; uma maçã é uma massa; uma pedra é uma massa; um planeta é uma
massa; a Terra é uma massa. A Física diz que os corpos celestes se atraem, com os
maiores (de mais massa) exercendo força de atração sobre os menores (menos massa). A
essa força deu-se o nome 'gravidade'. Os limites espaciais do alcance da força de atração
exercida por um corpo celestial sobre os corpos ao seu redor compõem o campo
gravitacional desse corpo. Quanto maior a massa de um corpo, maior será sua gravidade,
ou seja, maior será a força de atração que ele exerce sobre os outros corpos. É a diferença
de massa existente entre dois corpos que irá indicar se um deles de fato sofrerá a força de
atração exercida pelo outro. Corpos pequenos são muito suscetíveis à força de atração
exercida por corpos de massa imensamente maior que a deles. Nesses casos, a gravidade
exercida pelo corpo grande pode chegar a fazer com que o corpo menor seja puxado para
ele. Para que isso aconteça, o corpo menor precisa estar dentro do campo gravitacional do
corpo maior. O exemplo mais comum para essa situação é o de um corpo em queda livre,
250
como o que ocorre quando um homem salta de um penhasco. Ele está dentro do campo
gravitacional da Terra. Na distância que ele se encontra do centro da Terra, existe forte
atuação da gravidade terrestre. Já um astronauta que se encontra fora do campo
gravitacional da Terra, não mais será puxado por ela em direção a seu centro.
Uma vez esclarecida a física básica concernente ao peso, vale a pena discutir um
ponto pragmático referente à confusão que costumamos fazer entre peso e massa. Ao
subirmos na balança para ver o quanto estamos pesando, o número que vemos na balança
equivale à nossa massa corporal. No entanto, dizemos: "Estou pesando tanto", ao invés de
dizermos o que seria o correto: "Estou com uma massa corporal de tantos quilos". Se, três
meses depois, ao subirmos na balança vemos que o número aumentou consideravelmente,
dizemos: "Ganhei muito peso". No entanto, trata-se, mais uma vez, de massa corporal, e
não de peso. Se nessa situação hipotética, sofremos uma queda ao chão, o peso que
teremos que absorver, será maior que o peso que absorveríamos caso tivéssemos sofrido
essa queda um mê antes, quando éramos mais magros; quando nossa massa corporal era
menor. Conforme mencionado a pouco, o peso é uma grandeza de intensidade proporcional
não apenas à aceleração gravitacional, mas também, à massa corporal. Então, nosso peso
se altera conforme ganhamos massa corporal (quando engordamos), ou conforme entramos
em aceleração gravitacional (quando, por exemplo, caímos ao chão após um salto). A
massa de uma pessoa será a mesma (se ela não engordar) caso ela esteja na praia ou no
251
pico do Everest. Se vou para a Lua, lá irei caminhar por lentos e flutuantes saltos, porque a
gravidade que a Lua exerce sobre o ser humano é bem menor do que a exercida pela Terra.
Gerda Alexander nos lembra que as variações na nossa percepção de peso (sentir
algo como estando mais pesado do que costuma parecer; nos sentirmos mais ou menos
pesados ainda que na balança o número apontado seja o mesmo) são impressões
vivenciadas por nós que têm a ver com o nível de tensão de base que está a caracterizar
nosso estado muscular nesse ou naquele momento. Quando o nível de tensão de base de
nossos músculos tem uma densidade que nos proporcione uma boa (equilibrada)
autossustentação, nos sentimos mais leves. Isso significa que a pessoa que se sente leve
vive uma disposição para autossustentar-se que é significativamente maior do que a
possibilidade do colapso.
O peso, pelo fato de 'ser' algo tão real, e ainda assim, parecer relativizar-se, é um
forte protagonista na dramaticidade da vida, além de também o ser na dramaturgia da cena.
Percebemos peso em todas as coisas, e não apenas nas coisas materiais. Comumente nos
referimos a uma situação de relação interpessoal dizendo: "Isso é muito pesado pra mim".
Em tudo que fazemos existe um peso, ainda que seja o pronunciamento de uma palavra. Ou
seja, o que digo também pesa, porque será recebido pelos outros de modo a interferir em
sua tensão muscular de base e, devido a isso, irá atuar em sua percepção de peso. Todo
toque que realizamos no mundo ao nosso redor, seja em pessoas ou em coisas; seja
proposital ou acidental, tem um peso. Nosso toque pode ser brusco, pode ser delicado. O
toque que fazemos em nós mesmos tem um peso. Como coloca Louppe: "[...] é
essencialmente ao sentido do tacto que apelam as mutações no tratamento do peso"
(LOUPPE, 2012, p. 104).
Mas de onde será que vem essa relação que existe entre nosso peso, o peso das
coisas, nossas percepções e nossa disponibilidade física e psicológica? O início dessa
resposta reside no fato de que a escuta da gravidade começa no útero. De acordo com
Hartley, durante o período de vida no útero, ocorre no bebê o desenvolvimento de uma base
nervosa sensorial para o entendimento corporal referente ao reconhecimento da força de
gravidade da Terra (HARTLEY, 1995, 69). Como coloca Hartley, "O processo de ligação e o
estado pré-consciente de unidade experienciados no útero dá base e torna possíveis todos
os futuros passos do crescer e aprender" (HARTLEY, 1995, p. 70, tradução nossa298).
Depois do nascimento, após estabelecido um ambiente nutridor e acolhedor para o bebê,
este, sentindo-se seguro o suficiente, "pode entregar ou ceder seu peso à força da
gravidade, ligando-se fisicamente à terra e à sua mãe por meio do contato de todo o corpo"
298
The bonding process and related state of preconscious unity, experienced in the womb, underlies
and makes possible all future steps in growing and learning.
252
(HARTLEY, 1995, p. 69, tradução nossa299). Algo aparentemente tão simples, mas tão
importante. Desse modo, o relaxamento proporcionado pelo suporte ou superfície de apoio
prepara o bebê para a ação futura de responder de modo neuromotor a essa mesma
superfície. "O bebê ainda não pode levantar a si mesmo, mas esse ceder e soltar do seu
peso para baixo para encontrar a terra é o primeiro passo no descobrimento de ambos: a
força antigravitacional e sua própria mobilidade" (HARTLEY, 1995, p. 69, tradução nossa300).
A força antigravitacional mencionada por Hartley, em realidade, é ação antigravitacional:
uma força vital corporal muscular utilizada para responder cineticamente (por movimento) à
gravidade no sentido de opor-se a ela espacialmente.
299
[...] can surrender or yield its weight to the force of gravity, bonding physically to the earth and to its
mother through whole-body contact [...]
300
It cannot yet lift itself up, but this yielding and releasing of its weight down to meet the earth is the
first step in discovering both the force of antigravity and its own mobility.
301
The body tissues are subtly compressed by this mutual action of body weight meeting a resistant
surface, and this enables the child to feel and become aware of its physical substance, weight, and
presence.
302
[...] it must learn about [...] how to move upon this earth [...]
303
[...] [it] will learn to master its responses to this force in a purposeful way.
253
deslocar no espaço, e nisso ele adentra o aprendizado da dozagem de sua força para o
empurrar.
Em relação ao estudo de Laban referente ao seu 'fator peso', podemos entender que
ele partiu da concepção de que os movimentos são diferentemente expressivos quando há
no corpo um grau maior ou menor de tensão muscular. Louppe dá a Laban o mérito por ter
trazido o peso para o centro da questão da expressividade corporal. E, sem dúvida, Laban
foi de fato muito importante nisso. No entanto, penso ser necessário lembrar que a
participação do peso na expressividade também estava sendo levada em conta por outros
estudiosos e artistas contemporâneos de Laban, e mesmo anteriormente a Laban. A saga
do peso na investigação da gestualidade e do movimento já estava presente, por exemplo,
na expressividade pantomímica de François Delsarte e na rítmica corporal de Jaques-
Dalcroze.
304
There are risks in this willful act [...]
254
de acordo com a tensão da música feita por Stravinsky (SOUZA, 2011, p. 245-246). O balé
fruto dessa parceria choca a elite que gostava de ver mulheres delicadas flutando no ar, e
abala o mundo da dança.
Como coloca Louppe, o balé negava o peso, enquanto que nas inovações cênicas
ocorridas na modernidade, o peso é trazido para o centro das questões. Louppe cita Merce
Cunningham quando este se refere a essa mudança paradigmática: "ao contrário de negar
(e, por isso, afirmando) a gravidade na sua ascensão, o corpo obedece à gravidade
deixando-se conduzir para o chão" (CUNNINGHAM, 1952 apud LOUPPE, 2012, p. 105). O
peso passa a ser não apenas uma pesquisa de eficiência, mas "um desafio poético
primordial" (LOUPPE, 2012, p. 105).
O nível baixo é usado pelos pioneiros da dança moderna, e nisso houve uma
contribuição das estátuas delsarteanas. Tal qual os corpos de mármore expostos nos
museus, dançarinos do início do século XX deitavam-se no chão e nele ficam muito a
vontade, em posturas que buscavam a graciosidade, e das quais desenvolviam movimentos
(SOUZA, 2011). Vemos isso em obras de Duncan, de Wigman. A dança expressionista
alemã também lança mão da modulação das tensões corporais. A partir desse estudo,
Laban explorou as diferentes visualidades, as diferentes comunicabilidades inerentes aos
diversos níveis de tensão de base quando esses são associados a diferentes qualidades de
continuidade do movimento, assim como a diferentes velocidades e trajetos espaciais.
Cenicamente, ele buscava o drama que aflora dessas associações, para alcançar uma
maior potência da capacidade de comunicar do movimento.
Para Bonnie Bainbridge Cohen, o organismo interiro pisca em modulações pulsantes das
tensões de base.
maioria dos corpos), e intersecta a linha axial vertical. (OLSEN, 1998, p. 35,
305
tradução nossa ).
Saber usar o centro de peso passa a ser algo essencial quando se pretende colocar
ao avesso o tradicionalismo da modesta desobediência gravitacional na qual a dança tanto
se viciou durante séculos, com seus saltos comportados. É algo fundamental quando se
pretende colocar os pés nas alturas e a cabeça para baixo durante um salto invertido. Na
contemporaneidade, o estudo do peso novamente se desloca para sua funcionalidade, mas
em um contexto de teorização e de produção artística no qual a funcionalidade não é algo
separado da expressividade. E isso nos leva a novas expressividades. Por meio desse
caminho, a força muscular volta a ser estudada, bem como sua ausência, e nisso surgem
muitas poéticas vigorosas e tantas outras respeitosamente moribundas. O que parece estar
em jogo é uma nova maneira de reconhecer o peso, de explorar o movimento, de conceber
o corpo, e de se relacionar com sua potência expressiva; uma maneira que se diferencia de
maneiras ocorridas a um século atrás: o corpo não expressa estados emocionais, ele é uma
profusão de estados expressivos.
Algo que muito ajudou o artista do movimento a chegar a uma nova relação com a
gravidade, foram os percursos que ele passou a percorrer dentro de suas memórias
uterinas. O BMC propõe que sintamos a gravidade do útero materno por meio de
imaginações. Imaginamos o ambiente fluido, o espaço imenso, que depois se tornou menor,
mas continuou sendo espaçoso, e que por fim se tornou bem apertado. Nossas pernas e
braços, e também a cabeça e as costas empurravam as paredes do útero materno depois
de terem sido despertadas por movimentos reflexos das pernas. O que gerou o movimento
reflexo das pernas se não a gravidade atuando sobre nossas mães e, consequentemente
sobre nós, fazendo com que fôssemos mobilizados dentro do ventre materno, sentindo a
resistência do meio fluídico no qual vivíamos. Temos que lembrar, recordando assunto
tratado no capítulo 2 (em 'Funcionamento da percepção de movimento' - página 112), que a
gravidade não nos causa apenas a resposta antigravitacional, mas que ela faz parte de
nossa percepção do movimento.
305
[...] we identify the point created by the intersection of all three primary body planes, each dividing
the body equally by weight (top to bottom, fromt to back, side to side). The center of gravity lies
behind the belly button at the front of the spine (4th or 5th lumbar vertebra in most bodies), and
intersects the plumb line.
257
experiência que sempre nos levará a descobrir mais detalhes, a ter mais impressões. Para
Ida Rolf, quando o corpo está bem alinhado em seu eixo vertical, e a força da gravidade flui
por ele, essa circunstância aparentemente simples permite ao corpo espontaneamente se
curar (ROLF, 1995, p. 172).
isso, realizo o empurrar dos pés e projetar do topo da cabeça com muita atenção, aguçando
minha escuta proprioceptiva, para conseguir 'desligar' as ações musculares desnecessárias
ao meu 'encumpridamento' longitudinal vertical. É importante que a pélvis esteja bem
posicionada, sem estar 'empinada' além do ponto natural causado pela curvatura lombar.
Também é importante que as escápulas estejam bem posicionadas, para que os ombros
não caiam para a frente. Sem a interferência de um qudril mal posicionado e de um ombro
mal posicionado, podemos sentir o eixo da coluna mais nitidamente.
À medida que minhas percepções forem sendo aguçadas por eu estar bem alinhada
e estar empregando apenas o esforço necessário, vou percebendo que a cabeça é movida
para o alto devido ao empurrar do pé. Percebo uma conexão direta entre os pés e a cabeça.
Quando empurro com os pés o chão, e puxo a força de sentido contrário, vou sentindo que
antes mesmo dessa força chegar à base do meu crânio, como quando ela está, por
exemplo, na altura da minha pélvis, ela já fez com que minha cabeça fosse posicionada um
pouco mais acima no espaço. E nisso, vou percebendo o topo da cabeça chegando lá no
alto de um modo mais passivo, o que provavelmente significa que usei minhas musculaturas
de modo a privilegiar o trabalho das pequenas musculaturas antigravitacionais mais
internas, sem solicitar esforço de minhas musculaturas medianas e superficiais da nuca e do
pescoço. Com essa reorganização da dinâmica antigravitacional, deixamos os grandes
grupos musculares livres para as ações corporais que se dão em grandes amplitudes de
movimento.
Para causar um contraste com a experiência narrada nos parágrafos anteriores, faço
com meus alunos outro exercício. Peço a eles que voltemos a caminhar pelo espaço, que
plantemos a base no chão, que façamos todo o trabalho de puxar o corpo para o alto a partir
do contato da sola dos pés com o chão e, a partir daí, peço para eles abandonarem a
puxada, mantendo-se de pé, o que os faz sentir a descarga do peso, ao invés de sua
elevação. Nessa circunstância, é interessante perceber como, se a pélvis estiver bem
funcionada, podemos de fato perceber a descarga de peso na sola dos pés e nos sentimos
como que vegetalizados, plantados no chão. Essa impressão é o que chamamos
'grounding', "enchãozamento". Na imagem abaixo, a descarga de peço que desce do tronco
para as pernas é comparada à descarga de peso ocorrida em uma ponte.
260
Imagem 26: Desenho fazendo uma analogia entre a distribuição de peso do centro de uma
ponte para seus pilares de sustentação e a distribuição de peso do tronco para as pernas.
Fonte: http://www.ideokinesis.com/pioneers/todd/todd.htm
Figura 27: As três zonas de peso atuantes no alinhamento longitudinal da massa corporal
(vista lateral).
306
On the exterior of the body, the landmarks for alignment are: the side of the ankle (the malleolus),
with the side of the knee, lined up with the side of the hip (greater trochanter of the femur), with the
side of the rib cage and shoulder girdle (glenoid fossa), and the center of the ear.
262
Ficar em pé, no eixo, e ser empurrado por outra pessoa para frente ou para trás,
para a esquerda ou para a direita também é uma experiência produtiva, e traz o elemento do
264
suspense de um modo diferente. Quando o empurrão está por vir de trás, não sabemos
quando virá, nem em que intensidade, nem quais ou qual a área do nosso dorso será usada
pelo nosso parceiro como superfície para o empurrão. A prontidão se instala, e o sentido de
preservação é colocado junto ao de adaptação. A resiliência neuromuscular do corpo é
fomentada. Não há tempo de pensar enquanto se tomba, apenas de agir. À partir daí,
adentramos um pouco mais um conteúdo muito fascinante, as quedas e tudo que vem com
elas: absorção de peso, direcionamento urgencial, inércia de movimento e recuperação do
eixo. Uma gama de descobertas começam a acontecer quando estudamos esse conteúdo.
É um conteúdo que pode ser explorado em proposições diversas e distintas:
individualmente, em parcerias ou em coletivos; sob diferentes superfícies de apoio; em
diferentes estados corporais.
também usa um termo muito legal: "catapultagens" - "catapultagens [...] do peso através do
corpo" (LOUPPE, 2012, p. 110). Já quando se refere ao balanço, Louppe o define, em
termos funcionais, como sendo uma maneira a mais de escapar ao peso que somos (além
da queda); uma forma de liberá-lo. Podemos conceber que essa liberação típica do balanço
é uma maneira de fazer o peso se tornar leve. Pessoalmente, penso que quando se possui
uma boa capacidade de 'ressaltar', ou seja, de realizar a saída da horizontalidade por meio
de fluxo, o prazer da suspensão é mais aproveitado, pois ele chega a nós como prenúncio
de um arco revigorante, que nos fará visitar velozmente a horizontalidade e nos recolocará
novamente de pé, vibrantes.
307
Working through exercises on the floor minimizes the struggle with gravity and postpones much o
the complex network of acting and reacting to the environment, other people, the space around,
and other modifiers of the discharge of energy.
267
Imagem 28: Registro de um momento no qual a poética do soma gravitacional também era poética de
cena durante apresentação de um exercício de cena (dirigido por mim) no IV IESB em Cena, em
dezembro de 2014.
A escuta da gravidade também pode ser muito eficiente quando a praticamos por
meio do nosso padrão mais básico de deslocamento espacial: o rolamento. Bartenieff
ressalta a importância do rolamento como estratégia para reconhecer a gravidade e o papel
do centro corporal no transporte do peso: "A sensação de peso do corpo é dominante no
rolar a diante" (BARTENIEFF, 1980, p. 21, tradução nossa308). Hartley descreve uma escuta
gravitacional muito delicada e potente, na qual a consciência é convidada a perceber de
modo sofisticado, a partir da horizontalidade, a ação da gravidade sobre o corpo. Selecionei
alguns trechos:
Comece deitando de costas no chão [...] Feche seus olhos. Sinta as partes
onde seu corpo faz contato com o chão; perceba o chão se espalhando
para fora em volta de você, em todas as direções, suportando seu peso;
imagine as fundações da construção alcançando profundo em direção ao
coração da terra [...] Deixe seu corpo se soltar e se espalhar para encontrar
o chão que está segurando você. Sinta sua pele se abrindo para receber o
toque da terra e do ar [...] Torne-se consciente de que seu corpo é feito de
bilhões de minúsculas células vivas [...] Permita a cada célula liberar seu
peso em direção ao suporte da terra [...] Sinta de novo a terra se
308
The sensation of body weight is dominant in rolling around [...]
268
espalhando para suportar você, carregando você por meio dos seus
próprios grandes movimentos pelo espaço. Quando você se sentir pronto,
role gentilmente para um lado do corpo, e com o mínimo de esforço
possível. Nessa nova posição, sinta o puxar da gravidade atuando em cada
minúscula individual célula. Relaxe e aproveite as sensações. Role
novamente para o outro lado do corpo e descanse. Esse é um momento de
eternidade. Então, role levemente para o estômago [de bruço]. Sinta como a
redondeza da terra segura você. (HARTLEY, 1995, p. 18-21, tradução
309
nossa ).
309
Begin by lying on your back on the floor [...] Close your eyes. Feel the places where your body
makes contact with the ground; sense the floor spreading out around you, in all directions,
supporting your weight; imagine the foundations of the building reaching deep into the heart of the
earth [...] Let your body soften and spread to meet the ground that is holding you. Feel your skin
opening to receive the touch of earth and air [..] Become aware that your body is made up of
billions of tiny living cells [...] Allow each cell to release its weight into the support of the earth [...]
Feel again the earth spreading out to support you, carrying you through her own great movements
through space. When you feel ready, roll onto one side gently and with as little effort a possible. In
this new position feel the pull of gravity acting on each tiny individual cell. Relax and enjoy the
sensations. Roll again onto the other side, and rest. This is a moment of eternity. Then roll softly
onto your stomach. Feel how the roundness of the earth holds you.
269
Alunos (da esquerda para a direita): Natalia Sena, Rafael Alves e Gabriel Bento.
270
Em trabalhos em dupla, podemos usar nossa força ou nosso peso para aumentar a
descarga de peso a passar pelo corpo do nosso colega. A pessoa que recebe o peso extra
deve deixar ele passar, até chegar no chão, sem ativar suas musculaturas no sentido de
repelir esse peso. Quem impõe o peso extra deve variar esse peso, para que a pessoa que
recebe possa perceber a diferença entre diferentes descargas de peso. Com essas ações,
também sentimos melhor a presença do tînus e dos ossos, conforme será abordado no
subcapítulo seguinte. Na foto abaixo, Natalia e Walber deixa, passar por eles o peso extra
que recebem de Bianka e Emmanuel.
Alunos (da esquerda para a direita): Bianka Colins (em pé), Natalia Sena, Emmanuel Paz (em pé) e
Walber Freitas.
310
[...] noticing what body parts are suporting you. Explore equipoise relationships on one, two, three,
or four body parts.
271
seguida empurrar a Terra e nos impulsionar para o alto. Todos os saltos são propulsões.
Para conseguirmos dar um grande salto precisamos, anteriormente, flexionar tornozelos,
joelhos e virilhas: entregar o peso para a Terra e em seguida empurrá-la. Para otimizar esse
aprendizado, costumo trabalhar com meus alunos algo que chamei de 'terceiro apoio': é o
uso consciente das musculaturas do fundo da pelve muscular para propulsionar o tronco.
Quando essas musculaturas estão fortes, quando podemos contraí-las, tornando coeso o
chão do nosso tronco, temos mais força para os saltos e para os agachamentos. É claro que
temos que ter força nas pernas, contudo, a força do assoalho pélvico também é muito
importante. A contração voluntária da região perineal da pelve nos ajuda a entender como
nosso chão pélvico se propulsiona. Eu sugiro aos meus alunos nos movermos pelos três
apoios - pés e fundo pélvico - para explorarmos saltidos, agachamentos e grandes saltos.
Noto que a conexão com a força do fundo pélvico gera uma atmosfera diferenciada na sala,
algo tribal, rústico, forte, resistente, valente e versátil.
Alunos (no sentido anti-horário, começando do centro): Walber Freitas, Natalia Sena e Tatiana Iunes.
272
Figura 32: Momentum e propulsão durante uma roda de movimento apresentada no II IESB em Cena,
em dezembro de 2013.
Figura 33: Propulsão na horizontalidade durante uma roda de movimento apresentada no II IESB em
Cena, em dezembro de 2013.
Os saltos nos pedem que saibamos cair. Da mesma maneira como cedemos à Terra
antes de empurrá-la e saltar, quando caímos, precisamos novamente ceder à Terra,
amortecendo nossa queda com o flexionamento das articulações da perna. Uma queda
completa, na qual terminamos no chão, nos exige algo a mais: saber distribuir o peso do
corpo no chão durante um segundo ou menos. As articulações devem estar soltas, e
precisamos conhecer os caminhos do quedar-se ao chão. Por conta disso, é sempre
importante estudar trajetos de quedas em velocidade lenta. Explorando diferentes modos de
cair, entendendo qual distribuição de peso estará sendo feita quando esse mesmo
movimento estiver acontecendo em alta velocidade. É apenas pelo treino das quedas que
nos tornamos livres para voar.
Alunos (no sentido anti-horário, a partir da esquerda): Karina Mercia, Tatiana Iunes e Gabriel Bento.
275
A "vitória" contra a gravidade nos leva a ganhar o espaço aéreo, o ar. Subimos na
altura do espaço. Considero importante observar que o contato com o chão pode nos
sensibilizar em relação ao contato com o ar, e a gana de subir pode continuar existindo
mesmo depois de já estarmos em pé. Tentar escalar o ar é um desafio que eu proponho aos
meus alunos, e seus desdobramentos são bastante interessantes. A ação antigravitacional
se prolonga para além dos limites do nosso corpo. Digo aos meus alunos: "Tente subir
mais!"; "Como seria possível?"; "Como você percebe os pés no momento em que escala o
ar?"; "Como seus braços Ocupam o espaço?"; "E suas mãos? Elas encontram algum
suporte no ar?". É claro que adentro o jogo da inventividade perceptiva311.
Em uma oficina dada por Tica Lemos em Brasília, vivenciei um exercício no qual
uma pessoa toca um ponto da pélvis de outra pessoa com a ponta do dedo, e a pessoa que
recebe o toque deve fazer essa parte tocada levitar, o que significa que seu sistema
sensoriomotor acionará padrões de sofisticada coordenação motora, acionando o tônus
antigravitacional apenas nequele local (ou algo próximo a isso). Em seguida, a pessoa que
dá os estímulos toca em outro ponto, e depois em outro mais alto, e depois em outro ainda
mais alto, até chegar no peito da pessoa, e até chegar em suas orelhas. Observei que o
corpo vai se rearranjando delicadamente no espaço, serpentinosamente. Gostei muito de
conhecer esse exercício, porque ele me abriu outra perspectiva para trabalhar o voo, que
não a do salto. Depois disso, experimentei esse exercício com meus alunos em uma
variação: um aluno caminhava lentamente enquanto outros em volta dele iam dando esses
toques e o estimulando a ligar, do quadril para a cabeça, as respostas musculares
antigravitacionais. Chamei isso de 'caminhada para o voo'. Foi muito interessante perceber
como a cintura escapular e os braços naturalmente se comportam durante esse exercício:
eles também levitaram, mesmo sem terem sido tocados.
311
Conceito apresentado na nota 103, na página 68.
276
Simbolicamente, o centro de peso está relacionado com a terra, e o centro de levitação, com
o ar. E, em relação ao volume imaginário, conforme menciona Fernandes, o centro de peso
tem seu volume preenchido, "como se cheio de terra" (FERNANDES, 2006, p. 67), enquanto
o centro de levitação é vazio, "leve como o ar" (FERNANDES, 2006, p. 67).
A ideia da levitação, trazida por Bartenieff, acaba por sugerir que escutemos também
(além da gravidade) a levidade. Se formos aos dicionários procurar o significado desse
termo, encontraremos definições como: "Falta de peso de um corpo ou objeto; ausência de
peso de um corpo"312; "Leveza física"313. Em uma aula de BMC entrei em contato com o
sentimento de ausência de peso de uma maneira que me marcou. Em uma proposta de
exercício colocada pela professora Walburga Glatz, a levidade foi criativamente encarada
como uma força de atraçao exercida pelo céu, pelo Espaço Sideral; uma força que nos puxa
312
Dicionário Online de Português.
313
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed.
277
para o alto. Apesar de não haver nenhuma comprovação científica de que essa força exista,
percebi que utilizá-la como provocação para o movimento pode ser muito proveitoso.
Juntamente com a escuta da levidade, foi proposto que também escutássemos a
antigravidade e a antilevidade, outras duas forças imaginárias, ou não comprovadas pela
ciência. Para sentir a antigravidade, partimos da imaginação de que existe uma força que
vem de dentro da Terra, e que atua no sentido de nos empurrar para longe dela, projetando-
nos para o alto. E para sentir a anti-levidade, imaginamos uma força provinda lá do Espaço
Sideral, e que nos repele para longe dele, empurrando-nos para o chão.
314
Conceito apresentado na nota 103, na página 68.
278
Alunos: Bianca Figueiredo, Gilmar Bruno, Karina Mercia, Bianca Colins, Walber Freitas, Rafael Alves,
natalia Cenas, Tatiana Iunes Emmanuel Paz, Leonardo Vieira e Gabriel Bento.
279
Alunos: Bianca Figueiredo, Gilmar Bruno, Karina Mercia, Bianca Colins, Walber Freitas, Rafael Alves,
natalia Cenas, Tatiana Iunes Emmanuel Paz, Leonardo Vieira e Gabriel Bento.
Uma vez que a essência das forças e suas combinações tenham sido
experimentadas na ausência de movimentação espacial, nos espalhamos pela sala para
explorarmos cada uma delas e diferentes combinações entre elas. Deixamos que elas nos
levassem pelo espaço. Espontaneamente, acabamos por transitar em todos os níveis de
altura do espaço, e por nosso espaço interior, amalgamando-nos a diferentes atmosferas,
visitando limites, confluências e zonas intermediárias.
Quando experimentei esse exercício pela primeira vez, a combinação que mais me
impressionou foi a dupla antilevidade-antigravidade. Foi muito forte a experiência. Me senti
em um lugar quase que sem existência, comprimida entre duas forças que me expeliam:
uma vinda do céu, e que me empurrava para longe do céu, e outra vinda da Terra, que me
empurrava para longe da Terra. Me senti um feto em determinado momento, um ser que
flutua, que não tem acesso ao chão, mas que também não pode ir para o Espaço. Ao
mesmo tempo que existia um sentimento de fragilidade, existia uma força nisso, como se
fosse uma semente de algo potente; uma latência. Nas fotos expostas nas páginas
seguintes, alunos estão explorando livremente as forças e suas diversas combinações.
280
Figura 37: Alunos explorando as sensações de gravidade, antigravidade, levidade e antilevidade, bem
como suas combinações (1).
Alunos: Walber Freitas (à frente), Leonardo Vieira (no centro); e ao fundo, da esquerda para a direita:
Emmanuel Paz, Karina Mercia, Tatiana Iunes, Natalia Sena, Gabriel Bueno, Bianca Colins e Rafael
Alves.
Figura 38: Alunos explorando as sensações de gravidade, antigravidade, levidade e antilevidade, bem
como suas combinações (2).
Alunos: Natalia Sena (no centro à esquerda) e Walber Freitas (no centro à direita); e ao fundo, em
sentido anti-horário, começando da esquerda: Emmanuel Paz, Bianca Figueiredo, Tatiana Iunes,
Karina Mercia e Gabriel Bueno.
281
Figura 39: Alunos explorando as sensações de gravidade, antigravidade, levidade e antilevidade, bem
como suas combinações (3).
Alunos: Gilmar Bruno e Natalia Sena (ao centro); Karina Mercia à esquerda; Tatiana Iunes e Gabriel
Bueno ao fundo e Walber Freitas à direita.
Figura 40: Alunos explorando as sensações de gravidade, antigravidade, levidade e antilevidade, bem
como suas combinações (4).
O adjetivo 'tônica' vem do nome 'tônus', que é o grau de tensão de base existente
nos conteúdos corporais. O tônus não é apenas muscular, é algo do organismo, pois não
existe apenas tônus nos músculos, mas em todos os conteúdos do corpo que tenham em
seus "ingredientes" a dupla actina-miosina e seus acompanhantes. Essa dupla de proteínas
realiza o principal jogo dinâmico que confere aos tecidos corporais a propriedade de
contractibilidade e relaxamento. A tonificação é então uma função vital que interrelaciona
todo o organismo. Segundo Bonnie Cohen: "O tônus dos órgãos influencia o tônus
muscular" (COHEN, 2015, p. 74). A seguir, segue uma definição para o tônus muscular:
Nosso tônus é uma função vital regulada pelo organismo, e é influenciada pelos
ciclos do organismo. Imaginemos um corpo completamente desacordado, dormindo
profundamente às três da manhã. E esse mesmo corpo ao meio-dia, em uma reunião de
trabalho que adentrou o horário do almoço. Seu tônus não é o mesmo nessas duas
ocasiões. O organismo regula o tônus de maneira diferente durante o dia e durante a noite.
As mudanças no tônus são mudanças nas circunstâncias de vida. Conforme Gerda
Alexander, o nível tônico das pessoas normais varia um pouco (ALEXANDER, 1991, p. 13).
A constituição e o temperamento influem no tônus, de modo que a depender das
características físicas e de personalidade das pessoas, o tônus ser um pouco mais alto em
umas pessoas, e um pouco mais baixo em outras. Para Gerda, só podemos falar em
pessoas hipertônicas ou hipotônicas no sentido de suas hipotonias ou hipertonias serem um
distúrbio do organismo, "quando o nível anormalmente baixo ou alto do tônus de uma
pessoa se mantém fixo" (ALEXANDER, 1991, p. 13). E distúrbio semelhante ocorre quando
"o tônus se mantém fixo num nível médio, sem capacidade de oscilações emocionais ou
artísticas" (ALEXANDER, 1991, p. 13). A ilustração abaixo contrasta bebês com tôns bem
diferentes:
Figura 42: Bebês com tônus baixo à esquerda, e com tônus equilibrado à direita.
Como expõe Gerda, citando Henri Wallon, as crianças, "Já antes de nascer vivem
sob a influência dos estados de tensão e emotivos da mãe" (ALEXANDER apud GAINZA,
1997, p. 37-38). Como exposto no subcapítulo anterior, na vida uterina, o primeiro sentido a
ser despertado é o movimento, e a gravidade nos traz a experiência da pressão. Nos
comunicamos de modo tátil com o ambiente uterino usando nosso tensionamento muscular:
empurrando, nos reajeitando lá dentro. De acordo com Gerda, "A comunicação entre mãe e
filho se mantém depois do nascimento, por meio do ajustamento tonal" (ALEXANDER, 1991,
p. 51). O bebê vai crescendo e se comunicando pelo tato e pela voz, de modo que, nessas
duas expressões, a adaptação tonal é bem signficativa (ALEXANDER, 1991, p. 53). Gerda
cita Henri Wallon para dizer que as crianças pequenas imitam as pessoas que amam, com
elas se comunicando dessa maneira. "Quando está muito orgulhosa de seu pai ou de sua
mãe imitará seu comportamento, sua forma de parar ou de caminhar" (ALEXANDER apud
GAINZA, 1997, p. 37-38). Conforme explica Gerda:
Podemos mesmo pensar que a transferência tônica liga todos nós, que ela é um
fenômeno que, em uma instância muito sutil, nos torna uma única coisa. Como cada um de
nós tem uma história, podemos também pensar que pela transferência tônica nós
286
compartilhamos nossas histórias uns com os outros. Na imagem abaixo, podemos ver Ida
Rolf e um bebê trocando tônus enquanto se encaram. Quanta história no tônus dela e
quanta história a ser vivida no tônus dele. E o que seus tônus estarão conversando?
impulsos são aquilo que podemos perceber antes mesmo de serem percebidos os fatores
do movimento (peso, tempo, espaço e fluência) que, de acordo com a teoria labaniana, são
a manifestação do esforço. Em um dos fatores de Laban - o fator peso - encontramos o
tônus corporal. Como exposto por Ciane Fernandes, quando há movimento corporal
intensionado, ou seja, resultante de um acionamento voluntário do esforço, Laban se refere
ao peso ativo; e quando há peso no movimento mas sem que haja volitividade nesse
movimento, Laban se refere ao peso passivo (FERNANDES, 2006, p. 131). Um exemplo de
peso passivo é quando estamos caminhando e sem querer batemos o braço em algo. O
braço não está sendo colocado em movimento pela nossa vontade. Seu movimento é
consequência do movimento de outras partes do corpo. Essa ideia de Laban abriga em si o
trabalho passividade-atividade.
Hubert Godard (GODARD, 2001, p. 13), por sua vez, conceitualiza 'pré-movimento'
localizando esse fenômeno tanto na origem de um movimento, quanto na sua continuidade:
Para o corpo poder fluir, poder acontecer espacialmente em sua existência somática,
temos uma estrutura que nos possibilita isso: nosso esqueleto. Essa estrutura é feita de
ossos costurados entre si pelos ligamentos. Os músculos forram essa estrutura sempre
tendo uma des suas pontas fixada em um osso e a outra em outro osso. Segundo Bonnie
Cohen: "Os músculos e ligamentos criaram a força que moldou os ossos por meio do
processo evolutivo" (COHEN, 2015, p. 36). Quando os músculos se contraem, causam o
movimento articular, o que faz com que seja mudado o ângulo existente entre os ossos. O
movimento dinamiza as múltiplas possibilidades angulares. Para Bonnie, analisando apenas
forma dos ossos, já podemos saber muito a respeito da força muscular que neles atua. Ela
289
exemplifica: "Se um osso tem uma grande protuberância, então deve haver uma força que o
está puxando para criar essa protuberância. Ou se ele tem uma depressão, então isso
indica uma área onde é necessária uma cavidade para apoiar alguma outra coisa" (COHEN,
2015, p. 36).
Os ossos tem forma. Diferente dos músculos, que são feixes gelatinosos, os ossos
são duros e muito variados em suas formas. É curioso pensarmos que é da forma do osso
que vem a forma da parte corporal referente a esse osso. Temos ossos por todo o corpo: o
esqueleto nos dá nossa forma. Como coloca Gerda Alexander: “O sistema ósseo, cuja
eficácia está contida na beleza de suas formas, tem em si todas as possibilidades do
movimento” (ALEXANDER, 1991, p. 39). Essa frase de Gerda pode parecer estranha a
primeira vista, porque são os músculos que executam os movimentos. No entanto, os ossos
compõem a forma que é colocada em movimento. Então, nós nos movemos do modo como
nos movemos devido à forma dos nossos ossos.
É bom saber que nossos ossos são "parentes" das rochas, dos cristais; é bonito.
Como explica Bonnie Cohen:
315
[...] connective tissues in a watery ground substance with many blood vessels and nerves.
290
Pessoalmente, eu sinto que simplesmente ter em mente essa vida óssea, já faz com
que nos movamos de modo diferenciado. Gerda Alexander diz que entrar em contato com a
força do organismo residente nos ossos é um encontro com a "força vital mais profunda”
(ALEXANDER, 1991, p. 39). Para Gerda, a tomada de consciência dos ossos proporciona
“uma segurança interior e uma resistência” (ALEXANDER, 1991, p. 37). Quando
conhecemos a forma dos nossos ossos, e o modo como essas formas estão unidas no
esqueleto, nos tornamos mais versáteis em nossa movimentação corporal, e mais capazes
de nos suportar. Como coloca Gerda Alexander: "Quanto mais as imagens que temos em
mente das nossas estruturas ósseas e sistema ósseo for semelhante à imagem real, melhor.
As falsas imagens obstruem os caminhos da tomada de consciência" (ALEXANDER, 1991,
p. 38). Gerda também enfatiza que quando adquirimos percepção clara, precisa de um osso,
de sua forma, isso "produz um efeito regulador no tônus de todos os músculos que estão em
relação com os ossos realmente sentidos" (ALEXANDRES, 1991, p. 38). O desenvolvimento
da consciência óssea causa um fortalecimento da consciência do eu (ALEXANDER, 1991,
p. 38).
nosso tônus visceral da cabeça e pescoço. Como ela contamina os olhos. O trabalho não
deve ser baseado no exagero, mas no detalhe, na sutileza. Esse jogo contamina o pescoço
e o tronco. E aos poucos, os braços podem ir entrando na máscara, o quadril também, as
pernas, até que o corpo todo esteja nela. Conforme a máscara vai se expandindo, vamos
percebendo como o tônus vai caminhando pelo corpo, se direcionando, se propagando,
contaminando outras partes, como se move pelo interior do corpo, como vai surgindo em
diferentes partes ao mesmo tempo, como ele chega aos pés, qual passa a ser o
posicionamento dos pés no chão etc. Podemos sair da cadeira e usar todos os níveis de
altura do espaço. Nas duas imagens expostas a seguir, vemos máscaras - expressões - que
foram levadas para a cena durante um exercício de cena apresentado no IESB em Cena de
novembro de 2013.
Figura 44: Como o tônus diz coisas sem precisarmos dizer nada.
Alunos (da esquerda para a direita): Bianca Figueiredo, Rafael Alves, Larissa Liberato e Júnior Férris.
293
Figura 45: Voz em off (gravação) dizendo: "Sim, eu aceito", enquanto o tônus diz: "Sim, estou
tentando. Mas não sei como irei suportar".
Podemos tentar ouvir nosso tônus habitual, e nessas tentativas, podemos reparar
que ele varia. Ao fazer isso, estamos reconhecendo nosso tônus. O exercício de
reconhecimento do tônus, eu costumo trabalhar em diferentes momentos de uma vivência,
quando nos deitamos, em repouso, e observamos como estamos, no que diz respeito à
tensão do corpo. Se fazemos isso depois de diferentes atividades, vamos percebendo
algumas mudanças a cada vez que nos deitamos para perceber. Essa estratégia de entrar
em repouso depois de algum exercício para simplesmente ouvir o estado do corpo é
comentada por Gerda Alexander (1991) e por Moshe Feldenkrais (1977). Podemos, por
exemplo, chacoalhar o corpo em repouso no chão (alguém chacoalhar nosso corpo), para
despertar a consciência do volume interior corporal, e depois de finalizado o chacoalhar,
podemos observar a presença do tônus, que estará ressaltado pela vibração nos tecidos.
Quando paramos para ouvir o tônus, nossa atenção não pode ser desviado pela pulsação
cardíaca ou pela respiração. Podemos escolher uma parte do corpo para focar, podemos
simplesmente estar atentos a todo o corpo, podemos visualizar nosso sistema muscular,
podemos tocar uma parte do corpo. Pessoalmente, me inspirando no BMC, acredito ser útil
pensar nas moléculas que dão a propriedade da contractibilidade aos tecidos do corpo - a
dupla actina-mosina e suas acompanhantes - conforme mencionado anteriormente. Durante
aula de BMC, experienciei visualizações dessa dupla em ação.
294
Nesse ponto, surge um dado muito importante para o artista do movimento: ele,
assim como todas as pessoas, se sente mais leve ou mais pesado, a depender da
circunstância do momento. É como Gerda exemplifica: "A mesma escada que, num
momento de alegria, subimos sem esforço, nos parece interminável quando estamos num
estado depressivo, em que sentimos nosso corpo como se fosse feito de chumbo"
(ALEXANDER, 1991, p. 12).
Imagem 47: Manipulação do outro 100% passivo. Reconhecendo os lugares de toque que são mais
fáceis de causar o deslocamento do outro.
A pessoa ou grupo que manipula deve ter muitos cuidados como, por exemplo,
cuidar da cabeça do colega manipulado, assim como dos joelhos e cotovelos, para que
essas articulaçãoes não fiquem abandonadas e não se estendam sozinhas, pelo peso, o
que pode ser desconfortável para quem está passivo. Aos poucos, a pessoa passiva
começa a participar do movimento. Mas ela participa apenas 5%. É preciso ser leal a essa
medida, procurando realmente implementá-la. Depois, ela passa a participar 10%, e depois
30% e assim vai, até que ela esteja participando 100% do movimento, o que significa que o
exercício deixou de ser uma manipulação para ser uma condução. A pessoa que conduz
não precisa carregar nenhum pouco do peso do outro, pois o outro já assumiu para si a
tarefa de usar o nível de tensionamento necessário para se mover por conta própria. Após a
condução, começa a fase da reatividade: eu não deixo mais o outro me conduzir com suas
mãos; mas eu não fujo. Eu tiro suas mãos, me defendendo. Disso parto para um ataque,
pretendendo ter controle sobre o movimento de quem tenta me conduzir. A essa altura as
duas pessoas estão em um tensionamento muito alto e ambas estão atacando e se
defendendo. O exercício termina na exaustão. Costumo dizer que esse exercício visita toda
a 'paleta de tonicidades'.
298
Além de trabalharmos o tônus pelo tensionamento, pelo toque, pela paleta atividade-
passividade e pelo momentum, também podemos trabalhá-lo diferenciando zonas de
atividade e zonas de passividade no próprio corpo durante o movimento. Quando aluna da
UFBA, conheci o rolamento no qual uma parte ativa inicia o rolamento enquanto o restante é
'carregado'. É como se, estando nós deitados de costas, alguém estivesse puxando nosso
braço direito para o nosso lado esquerdo, causando em nós um rolamento. Há um momento
em que a parte iniciadora não tem mais o que contribuir, e damos a tarefa de iniciar o
movimento a outra parte, para que possamos rolar continuamente. Entender como a relação
passividade-atividade acontece no movimento é um trabalho importante e que muito se
relaciona com a capacidade de ter fluidez de movimento. Podemos explorar essa relação
em todos os níveis de altura do espaço.
neuromotor. Quando estivermos explorando livremente o movimento, o corpo irá usar esse
conhecimento.
Cada pessoa precisa descobrir e explorar seu próprio alongamento dinâmico. Para
poder fazer isso, ela precisa conhecer posturas de alongamento, mas esse conhecimento
não lhe basta de modo algum. O conhecimento mais importante no alongamento dinâmico é
aquele que ela gera para ela mesma ao se mover por meio do sentir: "O que está
espichando agora? Como me posiciono para espichar ainda mais essa parte sem trazer
muita tensão às suas musculaturas? É aqui o limite? Ou aqui? Como não prejudicar minha
respiração? Daqui, para onde eu poderia seguir? Qual parte me pede para ser a próxima a
ser espichada?".
300
Figura 49: O alongamento dinâmico sendo praticado em uma roda de movimento apresentada no II
IESB em Cena, em dezembro de 2013.
O alongamento nos demanda ter consciência óssea. Precisamos saber onde estão
os ossos e como eles se articulam. Visualizamos os ossos e a situação da articulação.
Exploramos a técnica do prolongamento proposta por gerda Alexander: imaginamos o vetor
do alongamento indo para além da ponta distal da parte corporal estendida (VISHNIVETZ,
1995, p. 40). Por exemplo, se estico um braço para o lado espichando ele nessa direção,
imagino que ele se estica para além do espaço; imagino que ele é mais comprido do que de
fato é; sinto a linha do estiramento indo bem longe.
Se quisermos saber como é nos mover enquanto somas ósseos, teremos que
ganhar consciência óssea. É preciso conhecer os ossos: seus tamanhos, formatos,
consistências e encaixes. Essas características precisam estar vivas em nossa mente, para
que possamos reconhecer a participação dos ossos no nosso movimento, e explorá-la. De
acordo com Gerda Alexander, a tomada de consciência óssea é uma porção significativa da
tomada de consciência global, na qual sentimos "a integração corporal de sistemas
distintos" (ALEXANDER, 1991, p 38).
301
Uma vez que conheçamos os ossos e tenhamos iniciado nossa "amizade" com eles,
podemos aprender a visualizar nossos ossos de diversos pontos de vista. Isso nos demanda
não apenas conhecer sua forma, mas conhecê-la muito bem. É algo que aponta que
estamos bem conscientes de sua tridimensionalidade. Esse tabalho de visualização
tridimensional também é sugerido por Gerda (ALEXANDER, 1991, p. 38). Tomando a caixa
torácica como exemplo, temos que ser capazes de visualizá-la por inteiro em nossa mente,
e temos que fazer isso como se estivéssemos olhando ela de frente, de costas, de lado, de
cima e de baixo. A caixa torácica ainda nos possibilita olhá-la de dentro. Os detalhes
também podem ser visualizados, como as articulações costovertebrais, e para termos eles
em mente, temos antes que ter feito um estudo visual detalhado. Na foto abaixo, eu me
posicionei por baixo da caixa torácica do esqueleto didático que estava sendo usado em
uma aula de BMC. Pela imagem dá pra reparar bem na diferença do tamanho das costelas.
Eu encaro o estudo de visualização dos ossos como algo para durar no tempo,
afinal, são 206 ossos. Minha primeira tentativa de visualização óssea foi feita com o
conjunto ósseo do quadril. Lembro como eu achava difícil visualizar sua forma. Ainda hoje,
não tenho a forma totalmente detalhada em todos os pontos de vista na minha mente, mas
avancei muito. Acho produtivo, e me ajuda bastante, visualizar o osso enquanto o toco, e
enquanto massageio ele me movimentando contra o chão. Aprendi essas estratégias no
BMC. Em uma aula de BMC tive um encontro marcante com esse conjunto ósseo. Nós
estudamos as imagens, estudamos o esqueleto e depois nos tocamos, cada um tocando a
303
si mesmo. Seguimos com os dedos uma boa parte da forma desse osso, tudo que se é
possível tocar nele. O toque da púbis e dos ísquios é revelador. É bem interessante
entender, pelo tato, que os pontos duros que sentimos no bumbum quando nos sentamos
com a coluna ereta tem uma continuidade de forma com o osso que dói quando sem querer
batemos a área entre a base das pernas no aro da bicicleta. Seguir com os dedos as pontes
que ligam essas protuberâncias me fez ganhar mais consciência do posicionamento
espacial do meu quadril dentro do todo da minha postura. Atualmente tenho estado
interessada em tocar as porções láteroposteriores dos ilíacos. Ando me surpreendendo em
perceber como elas são altas. Ando descobrindo como sentir seu contorno. Também tenho
estado igualmente interessada no toque no sacro e nos encontros sacroilíacos.
A primeira vez que recebi um toque ósseo proposital, não foi de mim mesma, mas de
um colega, durante uma aula de contato-improvisação com Giovane Aguiar, no ano de
2012. Naquele dia eu descobri que receber toque nos ossos é muito bom. Foi a primeira vez
que senti um toque ósseo, e a experiência me impressionou. Eu nunca havia pensado no
fato de que um osso gosta de ser tocado. Para mim, quem gostava de ser tocado era
músculo e pele. Estávamos em pé e em duplas, e uma pessoa da dupla tocava cada
processo espinhoso da outra pessoa. Giovane nos alertava a respeito da qualidade do
toque. Ele disse algo como: "O toque não pode ser muito forte, porque assim pode ser muito
incômodo e machucar. O osso se ressente." Essas palavras me marcaram, porque eu
304
percebi nitidamente que osso é sensível, pois eu senti dores ósseas em alguns ossos
durante o toque, enquanto não senti em outros. Fiquei imaginando porque um doeu e o
outro não se a força que estava sendo usada era basicamente a mesma. Meu colega, que
estava a par das minhas sensações também ficou curioso com isso. A "massagem" nos
processos espinhosos da coluna foi uma abertura de horizontes. Senti a presença das
minhas vértebras e a consistência delas, embora eu não tivesse muita noção da forma delas
na época.
Gerda Alexander diz que depois das tomadas de consciência referentes a cada osso
ou conjunto de ossos, um dia surge a consciência da totalidade do esqueleto. Ela fala que
essa tomada de consciência do esqueleto como um todo pode demorar anos para se dar, e
pode acontecer quando menos se espera (ALEXANDER, 1991, p. 39). Para ela, essa
consciência transforma nosso tônus. Ela diz: "[...] a percepção dos ossos produz um efeito
regulador no tônus de todos os músculos que estão em relação com os ossos realmente
sentidos" (ALEXANDER, 1991, p. 38). Então, se trabalharmos nossa percepção óssea por
todo o corpo, estaremos colaborando para a regulação do nosso tônus muscular
(harmonização do tônus das diferentes partes do corpo). Algo que ajuda na tomada de
consciência esquelética, penso eu, é a visualização do esqueleto enquanto nos movemos.
Podemos ir nos movendo lentamente, para dar tempo de ir visualizando como está o
esqueleto. É como se tivéssemos uma visão de raio x. Também podemos observar alguém
se movimentando lentamente, e ir visualizando o esqueleto da pessoa.
Outro trabalho que pode ser feito, é usar o próprio corpo como superfície de apoio
para o repouso do colega, com o objetivo de fazer com que ele sinta, de forma mais
ressaltada, sua superfície óssea que encontra-se em contato com o apoio. Na imagem a
seguir, levando em consiredação a dupla mais à frente - Karina e Gabriel - podemos ver que
Karina está utilizando o dorso de seus pés como superfície de apoio para a pelve posterior
do Gabriel. Isso fará com que Gabriel note, de modo ressaltado, a presença da superfície
posterior de sua pelve (ilíacos, sacro e cóccix). Os receptores dessa região ficam mais
estimulados que os receptores das outras partes do seu corpo, porque a superfície irregular
na qual sua pelve posterior descansa contrasta, em seu todo proprioceptivo, com a
superfície plana na qual o restante do corpo está apoiado.
Figura 53: Sentindo passivamente a superfície óssea sacroilíaca devido ao apoio irregular.
Alunos: Gabriel Bento e Karina Mercia à frente, e Bianca Figueiredo e Tatiana Iunes ao fundo.
306
As pernas da Karina fizeram uma parede para o apoio dos pés do Gabriel em uma
perpendicularidade que compactou toda a parte inferior do corpo dele. Desse modo, o
Gabriel, mesmo relaxado, tem sua parte inferior compactada. Isso faz com que o peso de
sua parte inferior seja descarregado para o chão pressionando seu complexo ósseo
posterior da pelve contra o dorso do pé da Karina. Quando há uma situação como essa, a
pessoa que faz a base pode balançar a parte do seu corpo que está sendo usada como
base, para fazer chacoalhar o corpo do colega. Na ocasião da foto, Karina fez isso. E em
seguida, reposicionando constantemente suas pernas e usando suas mãos, ela enrolou a
coluna do Gabriel, até a pelve dele estar posicionada quase acima da cabeça dele. Na
sequência, ela desenrolou, vagarosamente, fazendo com que ele pudesse sentir
passivamente a pressão de seu peso em cada uma de suas vértebras durante a
desenrolada.
Alunos: Gabriel Bento e Karina Mercia à frente, e Bianca Figueiredo e Tatiana Iunes ao fundo.
O BMC frisa a diferença entre mover-se pelos músculos, mover-se pelos ossos e
mover-se pelos ligamentos. Insirada nesse modo de conceber o movimento, e também no
movimento passivo frisado pela Eutonia, dei um nome para o movimento que, pelo mínimo
307
de esforço muscular, reconhece e utiliza a forma dos ossos para se locomover e subir no
espaço: o 'movimento articulado'. Em contraste com esse movimento, o 'movimento
muscular' é aquele que não nota a presença dos ossos, por ser baseado na força muscular.
Como visto na introdução desse capítulo, os músculos atravessam as articulações. Eles
saem de um osso e aterrizam em outro, passando pela articulação. Quando há um nível alto
de tensionamento muscular, a articulação entra em uma condição mais rígida, pois a tensão
múscular limita a possibilidade de ajustes espaciais que nela ocorrem durante o movimento.
Então, é possível criar contrastes na textura do movimento a partir da diferença entre o
movimento muscular e o movimento articular.
Olsen faz uma proposta mais organizada, ela sugere que mobilizemos cada
articulação separadamente (OLSEN, 1998, p. 41). Ela sugere que iniciemos deitados em
repouso. Ela diz: "Toque a escala do corpo, como um músico, e mova cada osso em
sequência, dos pés à cabeça" (OLSEN, 1998, p. 41, tradução nossa316). No sequenciamento
do movimento, Olsen sugere que observemos como um movimento articular vai
despertando a próxima articulação, que ainda não está sendo mobilizada ativamente, mas
que passa a ser provocada e percebida. A escápula também deve ser explorada.
Ainda em relação aos espaços articulares, vale a pena lembrar que podemos usar o
toque para estimulá-los ou por estiramentos, ou por compressões. Conhecer os ligamentos,
ter noção de sua textura e elasticidade/densidade agrega sensações a essa experiência.
Enquanto uma pessoa está passiva, outra realiza nela os toques. Os estiramentos fazem
com que os espaços articulares sejam dilatados e com isso, amplificados para nossa
percepção. O fato de nós percebermos esses espaçamentos em condição de passividade
316
Play the scales of the body, like a musician, and move each bone in sequence from the feet to the
head.
308
muscular faz com que, em nossos mapeamentos cerebrais do corpo, as juntas fiquem mais
reluzentes, ganhando mais a atenção do sistema somatossensorial. Explorei esses
exercícios inspirada na Eutonia e no BMC. Podemos fazer isso em todo o corpo, em todos
as articulações, até mesmo nas mais pequeninas, como as articulações das falanges dos
pés, os diferentes segmentos dos nossos dedos. O sentimento que vem depois é de
arejamento. Já as compressões, segundo o BMC, são interessantes porque mostram para o
corpo a descompressão. Ou seja, são interessantes porque ressaltam o oposto delas. Sentir
que uma junta foi descomprimida é muito bom. Pode ser tão bom quanto sentir uma junta
sendo estirada. Para a descompressão ser curtida, precisamos desfazer a compressão
lentamente. Após ter o corpo liberado pelas descompressões e arejado pelos estiramentos,
Podemos nos mover utilizando nosso próprio movimento para estirar, comprimir e
descomprimir nossas juntas. E por fim, podemos simplesmente nos mexer.
Alunos: Emmanuel Paz (em pé) e Walber Freitas (deitado). E ao fundo: Tatiana Iunes (em pé) e
BIanca Figueiredo (deitada).
Imagem 56: Percebendo micromovimentos no outro pelo tato / Sentindo micromovimentos com o
auxílio de um estímulo tátil.
4.8 Espacialidade
Pensando no soma, podemos dizer que ele ama o espaço, porque o espaço
possibilita o movimento. O soma no espaço é um corpo vivo, autoimpressivo e interativo
ocupando o espaço. O soma sente grande afinidade com o espaço, porque ele também é
um espaço. Ele percebe e sente muitos movimentos acontecendo no espaço que ele é. E
também percebe e sente muitos movimentos acontecendo no espaço ao seu redor. Para o
soma, explorar o espaço é uma possibilidade de extravasar-se, de desaguar. Explorando o
espaço ele sente a si mesmo; enquanto unidade, e isso o equilibra. É bom sentir-se no
espaço. E esse sentir-se é localizar-se e ter direcionamento.
Como nos lembra Bartenieff, espaço físico é tridimensional, tem três dimensões:
altura, largura e profundidade (BARTENIEFF, 1980, p. 25). Nosso corpo também é
tridimensional, também tem altura, largura e profundidade. Se pensarmos no direcionamento
espacial, ao se mover pelo eixo vertical, o corpo irá subir e descer no espaço. Ao se mover
pelo eixo horizontal, o corpo irá de um lado para o outro. E ao se mover pelo eixo sagital, o
corpo irá se mover para frente e para trás. Quando estamos em pé, a altura do corpo vai da
sola dos pés até o topo da cabeça. No entanto, quando estamos deitados, a altura vai das
nossas costas até nosso ventre (se estamos deitados de costas). Reconhecemos e
exploramos a tridimensionalidade do nosso espaço interno corporal por meio de ajustes
direcionais no arranjo corporal, os ajustes tônicos posturais. E quando extrapolamos os
limites corporais, ocupamos o espaço externo. Por essa perspectiva, o espaço é uma
extensão de nós.
veloz porque está em cima dos trilhos. Ampliando essa metáfora, temos que é pela
combinação de todos os "trilhos" que existem em nosso corpo, tal qual uma malha
ferroviária, que nos movemos multidirecionalmente no espaço.
Alguns movimentos do corpo se dão por uma inteligência de lateralidade. Outros, por
uma inteligência de frontalidade-posterioridade. E outros, por uma inteligência rotacional ou
giratória. As vértebras da coluna se inclinam para um lado e para o outro; se flexionam para
frente e retornam para trás; e giram. E existem muitas nuances de combinações entre esses
movimentos básicos. Quando concebemos o movimento do corpo no espaço como uma
consequência de seus movimentos articulares, notamos mais uma faceta do contínuum fora-
dentro. Quando começamos um movimento que tem intencionalidade de avaçar no espaço
em um deslocamento - se lançar em um trilho - podemos iniciar o movimento com o corpo
todo de uma vez, ou iniciar com uma parte, e sequencialmente deixar que o corpo a siga.
Sabemos qual é a direção que será tomada. Iniciar o movimento com o corpo todo é ter uma
única intenção e ir como um todo. Iniciar o movimento com uma parte do corpo é estimular a
vontade de movimento dessa parte, e reforçar a presença dela no mapeamento
sensoriomotor. O BMC recomenda o toque no corpo do Bebê como uma maneira de
estimulá-lo a iniciar movimentos pela parte tocada. De acordo com Bonnie Cohen,
"Aumentar a resposta de uma criança ao toque em qualquer área aumenta, na mesma
medida, sua capacidade de iniciar o movimento dessa área" (COHEN, 2015d, p. 25).
Podemos também nos relacionar com o espaço apenas ocupando ele, sem nos
deslocarmos nele. Uma ocupação pode acontecer ao mesmo tempo que um avanço. Nas
imagens abaixo, retiradas do livro Body movement: coping with the environment, de
Bartenieff (1980), é possível perceber nitidamente a intencionalidade do movimento e a
parte iniciadora:
Figura 59: Ocupação do espaço lateral (plano da porta) com movimento pela frontalidade
(plano da roda): braços para as laterais e pernas iniciando a entrada no espaço.
Figura 60: Movimento rotacional (plano da mesa). Iniciação giratória dos braços.
Tronco em rotação seguindo a intenção direcional dos braços.
Cópia manual de parte de uma imagem apresentada por Bartenieff (BARTENIEFF, 1980, p. 39).
Observação: a face da pessoa ilustrada está voltada para os braços.
314
Começando da esquerda: Leonardo Vieira Telles, Bianca Colins, Gilmar Bruno, Natalia Sena, Gabriel
Bento, Karina Mercia, Tatiana Iunes, Rafael Alves, Emmanuel Paz e Walber Freitas.
315
Dialogando com esse exercício em alguns aspectos, está o exercício que chamei
'escuta 360°': uma vivência desafiadora onde uma pessoa (de olhos abertos) é estimulada
direcionalmente por um grupo. A estimulação leva a pessoa estimulada a percorrer o espaço
360°, sendo que, para isso, o grupo dá a ela o suporte necessário, e a manipulação
necessária, quando for o caso. A escuta aos estímulos não pode ser seletiva, é preciso
encarar todos os estímulos que vierem. E a resposta tem que ir até o fim, até que a
direcionalidade do movimento tenha se esgotado. Desse modo, o suporte dos colegas deve
ser, de fato, usado, aproveitado. O chão, será, muitas vezes, um chão móvel,
propulsionador, direcionador e de relevo mutável. Os colegas, por sua vez, devem estar
bem sintonizados entre si, dinâmicos e muito bem dispostos. Outros temas participam desse
exercício, como 'passividade e atividade' e 'contato', mas nesse caso, eles estão ocorrendo
como base, dando apoio à investigação de direcionamento espacial - esta sim é o foco; é o
centro do furação.
Nas fotos apresentadas nas páginas seguintes, um grupo de alunos realiza esse
exercício enquanto eu os oriento. Karina está no núcleo do exercício. Está sendo estimulada
direcionalmente, e deve levar "a sério" a intencionalidade espacial que dão a ela. Ela deve ir
até o fim do direcionamento proposto. Se os estímulos de direcionamento vão puxando ela
para uma curva, ela tem que entrar nessa curva, mesmo que isso signifique rolar para trás
em 360° no plano sagital. Ela precisa percorrer todo o ciclo do movimento que existe
potencialmente na iniciação dada a ela. Os alunos dão suporte a ela e fazem algumas
manipulações para ajudá-la a poder prosseguir livremente nos seus direcionamentos.
316
Alunos (em sentido anti-horário, começando pela esquerda): Rafael Alves, Emmanuel Paz, Tatiana
Iunes, Leonardo Vieira Telles, Walber Freitas e Karina Mercia no centro.
Alunos (em sentido anti-horário, começando pela esquerda): Leonardo Vieira Telles, Emmanuel Paz,
Rafael Alves, Tatiana Iunes, Walber Freitas e Karina Mercia no centro.
317
Alunos (em sentido anti-horário, começando pela esquerda): Walber Freitas, Rafael Alves, Leonardo
Vieira Telles, Tatiana Iunes e Karina Mercia (ao centro).
Alunos (em sentido anti-horário, começando pela esquerda): Tatiana Iunes, Walber Freitas, Leonardo
Vieira Telles, Rafael Alves, Emmanuel Paz e Karina Mercia ao centro.
318
Para a iniciação do corpo todo avançando no espaço; o corpo como uma única
coisa, é produtivo usar os olhos fechados mais uma vez, ou vendados. É o exercício do
conduzido, um exercício disseminado em diferentes abordagens. Uma pessoa sem visão é
guiada por outra, que lhe segura um antebraço ou um ombro. As duas pessoas irão, em
primeiro lugar, acertar seus passos, achar um ritmo comum. É preciso cumplicidade entre
elas duas. É preciso que a pessoa que guie saiba que também deve cuidar da pessoa sem
visão. E a pessoa sem visão precisa confiar no seu guia. Depois que o ritmo compartilhado
de caminhada for encontrado, o guia começa a explorar caminhadas bem intencionadas em
sua direcionalidade. As curvas precisam ser curvas. Os ângulos retos, ângulos retos. A
pessoa sem visão vai percebendo como ela está mudando seu direcionamento no espaço
mesmo sem estar enxergando. Quando a sintonia está boa e o medo superado, o guia
começa a correr em alguns momentos, e a pessoa sem visão tem que acompanhar suas
acelerações na mesma hora. A corrida dos dois tem que ser sincronizada. As direções
também serão experimentadas na corrida. Quando finalizado o exercício, antes que os
papéis sejam trocados, a pessoa sem vião abre os olhos e experimenta os mesmos
direcionamentos e velocidades, mas se apropriando do controle visual do deslocamento.
queria. Eu estava apenas dando sugestões. Mas, supondo que eu tivesse planejado de
todos explorarem a iniciação pelas costas, eu poderia, para prepará-los, ter realizado uma
visualização das costas com eles sentados de olhos fechados, pedindo para eles
enxergarem pelas costas; verem, na imaginação deles, o que as costas deles estão vendo.
Poderia ter realizado uma massagem na costas, ou um contato dois a dois, costas com
costas se movendo no espaço. E poderia ter trabalhado rolamentos.
nas direções e depois olhar o espaço vazio enxergando os trajetos traçados nele. Olhar para
o espaço e ver nele a vida de movimento espalhada pelos caminhos possíveis é uma prática
imaginária sofisticada que desenvolve nossa sensibilidade direcional e nossa integração
com o espaço. Somos parte dele, nos vemos nele e sabemos que ele está em nós.
Partindo de trilhas abertas por Thomas Hanna (1995, p. 8), podemos pensar em
maneiras de explorar a potência do olhar do soma. Conforme colocado no capítulo 1, o
soma não tem apenas a percepção de primeira pessoa, pois ele também vivencia sua
percepção em relação ao outro. A partir disso, criei um nome para me referir ao olhar que o
soma direciona ao outro, às coisas, ao mundo: 'observação somática', e desenvolvi uma
reflexão relacionada a essa observação, bem como exercícios para praticá-la. Penso que a
observação somática também é um importante conteúdo a ser trabalhado em processos de
aprendizado que visam o desenvolvimento da expressividade do soma e seu potencial
poético.
317
Sem que tenhamos qualquer intenção.
321
Além de nutrir o artista do movimento, a observação somática traz a ele outro tipo
de benefício: a aquisição de movimentos. Conforme exposto no capítulo 1, em 'As camadas
do desenvolvimento das habilidades corporais' (página 88), a observação nos faz aprender,
espontaneamente, maneiras de nos mover. Praticando a recepção somática em contextos
nos quais o movimento está sendo explorado por outras pessoas, o artista do movimento
322
estará desenvolvendo múltiplas habilidades. Devemos ser capazes de viver dentro de nós o
movimento que observamos, porque não devemos nos limitar a fazer uma arte tecnicista318.
Desse modo, a ideia de observação somática nos leva a outro tipo de observação, a
qual chamei de observação somática do outro somático. Mary Whitehouse e suas
observações referentes ao jogo observador x testemunha - jogo no qual consiste o
Movimento Autêntico - foi uma uma grande inspiração nessa reflexão. Essa observação
ocorre quando o outro que somaticamente observamos está a explorar a navegação de
seus próprios estados somáticos. Nessa circunstância, somos capazes de captar mais fundo
o soma do outro. No entanto, o observador somático deve cuidar para que ele observe/sinta
o outro soma sem deixar de observar/sentir a si mesmo. Refletindo a respeito dos
desdobramentos da observação somática do outro somático, me vieram algumas questões,
como por exemplo: "O que é olhar somaticamente para um soma?" "Como é ouvir
somaticamente um soma?" "O que ocorre durante o testemunho somático de um soma se
revelando?". A meu ver, esas são questões que podem ser desdobradas em pesquisas que
visem trabalhar a poética do soma na cena.
O exercício que desenvolvo com meus alunos creio que é mais simples, pois não
demanda que aguardemos impulsos inconscientes autênticos. No jogo que proponho, o
movedor se deixa mover por dados somáticos que ele gera ao se mover, e que o instigam e
o fazem querer continuar se movendo. A testemunha observa isso. Essa situação gera uma
espécie de vínculo. Noto que passamos a nos mover não apenas estimulados pelo que
estamos percebendo e sentindo, mas também, estimulados pela presença da testemunha.
Também pode ocorrer de um momento moverdor-testemunha ocorrer durante outro
exercício maior, quando, por exemplo, um aluno se retira da atividade para observar.
Nessas situações, algumas das nuances mais sutis do jogo movedor-testemunha são
perdidas, já que o vínculo de cumplicidade entre a dupla fica fora da questão. No entanto,
também considero muito válido. Na primeira foto apresentada na página seguinte, Karina se
move conectada com seu movimento. Na segunda foto, Emmanuel encontra-se observando.
318
Mesmo sentido que o usado na página 10, na nota 22.
323
Ao centro: Tatiana Iunes e Bianca Figueiredo. À direita: Walber Freitas e Emanuel Paz.
Ao fundo: Rafael Alves, Natalia Sena e Bianca Colins.
Durante a troca de olhar táctil entra mais em questão o contato não físico do que a
observação. Noto que há uma ligeira diferença entre contato e observação. Posso estar
325
No contato não físico há sintonia sem haver contato corporal. Mesmo não havendo o
encontro corporal, há sustentação nesse contato: o outro me sustenta sem estar
sustentando meu peso; ele me sustenta com sua presença; sou emocionalmente sustentado
por ele e ele por mim; estamos juntos. Noto que além do contágio tônico e da empatia
cinestésica, outros fenômenos acontecem, como a cumplicidade sentimental. Quando há
olhos nos olhos, esse contato é vivenciado de modo intenso pelo olhar táctil. Na foto
exposta na página seguinte, Natalia e Leo estão realizando um contato não físico na cena.
No momento do contato, eles se encaravam como iguais, mas a cena se desenvolvia para
uma dominação psicológica dele sobre ela, e em seguida, eles realizavam uma sequência
coreográfica em quatro apoios e ajoelhamento, na qual ele acabava carregando ela sobre
suas costas, como se ela fosse eu manto. Dizendo isso, não pretendo explicar a cena, mas
apenas contextualizar a imagem.
326
O contato não físico também pode ser praticado sem que haja olhos nos olhos,
conforme no exemplo do cardume. Posso estar do lado de alguém, sem que nos
enxerguemos, mas ainda assim podemos estar em contato. No entanto, isso é diferente de
apenas perceber a presença do outro, pois além de perceber o outro, eu direciono pelo
menos parte de minha presença para ele. Também podemos praticar o contato não físico
nos movendo em explorações de movimento, dançando. Nos movemos em contato um com
o outro, mas sem haver um encontro corporal. Andrea Olsen sugere fazermos um jogo de
gradação do contato a distância durante uma dança: uma dupla se move sem tirar os olhos
um do outro. Depois, as pessoas se movem atentas uma à outra, mas deixando de praticar
o contato visual. E por fim, perde-se o contato (OLSEN, 2014, p. 149). Acho interessante os
desdobramento que podem vir a partir desse exercício proposto por Olsen. Como por
exemplo, uma pessoa passar a acompanhar ou monitorar a outra, espelhando sua
expressividade somática.
O contato físico pode surgir de modo bem assumido desde o início, quando nos
propomos a iniciar um contato intenso com alguém, ou pode surgir mais ao acaso, como
327
Alunos na linha à frente, da esquerda para a direita: Guilherme Azevedo, Maik Alves, Thiago Batalha,
Lívia Oliveira, Karina Mercia.
Uma maneira que acho bastante produtiva de iniciar um trabalho de contato físico é
explorar a consciência das costas pelo contato. Desse modo, os alunos tem o foco da
questão na percepção das costas, no contato físico de fato, nas percepções que surgem
disso: minhas costas em contato com outra costas. Vivenciei esse exercício como aluna da
UFBA, e nunca o abandonei, e nem abandonarei, tamanha a novidade que ele me trás toda
vez que encontro com ele.
Nesse exercício, começamos sentados com nossas costas apoiadas nas costas de
um colega. Eu me sento no meu eixo, me apoiando bem sobre meus ísquios, e para isso
preciso achar uma posição confortável para as pernas. Meu colega se senta no eixo dele.
Nós temos nossos eixos em contato. Eu sustento meu peso e ele sustenta o peso dele.
Ficamos assim por um tempo, apenas sentindo 'a flor do tato se abrir'. Gosto de usar essa
expressão em sala de aula, considero que ela surte efeitos produtivos. Na foto exposta na
página seguinte, Tatiana e Gil vivenciam esse momento:
329
Alunos: Gilmar Bruno e Tatiana Iunes à frente, Karina Mercia e Walber Freitas à esquerda e Gabriel
Bento e Bianca Figueiredo ao fundo.
331
Alunos: Rafael Alves e Emmanuel Paz à esquerda e Karina Mercia e Walber Freitas à direita.
O contato físico nos ensina como fluir com o outro no movimento, como suportar o
peso do outro, e como ser mais leve para o outro, uma vez que estejamos sendo suportados
por ele. É importante trazer a discussão do tônus e da descarga de peso para dentro do
aprendizado do contato, pois temos que saber ser maleáveis para o outro, e ser
responsáveis pelo nosso peso, mesmo se estivermos nos braços do outro. Então,
precisamos saber utilizar bem nossa ação antigravitacional. Trazemos os conhecimentos
336
diálogos tônicos posturais. Na imagem exposta a seguir, Rafael acolhe Bianca em sua forma
corporal após tê-la ajudado em sua propulsão para sair do chão.
Considerações finais
O mundo fica mais complexo aos olhos de quem tornou-se um movedor somático, e
mais artístico, despertando o artista que há em todos. No caso do artista do movimento, ter
sua sensibilidade artística desdobrada, sendo aumentada sua capacidade de expressar
sentimentos, emoções e percepções, lhe dá mais instrumentos para trabalhar no mundo a
comunicação de ideias, pontos-de-vista, ideais e acontecimentos. Palavras, textos ou
coreografias não são manifestações vazias de dados somáticos, e quando exploramos os
dados somáticos, a exploração nos faz reconhecer isso e valorizar isso. Passamos a nos
admirar com a dinâmica de nossa vida interior. O soma massageia nossa existência, nos
mostrando que é possível massagear os outros com nossa presença somática.
qual uma pessoa recebe de um grupo um toque de intencionalidade espacial e uma base
para o movimento (tema 'espacialidade'), precisando, para isso, manter-se bastante
consciente de seu tônus muscular, a fim de conseguir conferir certa porcentagem de
passividade a sua ação corporal (tema 'tônificação, ação e estrutura'), ao mesmo tempo que
precisa manter-se consciente do contato travado com os colegas, para poder se mover
fluidamente sobre eles quando a intencionalidade de movimento sugerida a ela assim o
exigir.
O estado sensitivo do movimento, além de nos fazer brincar, também pode nos
emocionar. Devido à nossa malha motora ser encharcada de memórias sentimentais,
conforme exposto por Antônio Damásio (DAMÁSIO, 1996, p. 12-16), ela aciona a dinâmica
das emoções. Vejo que a emoção está presente em diferentes graus na exploração
somática, pois até em um momento perceptivo, de foco único - de atenção perceptiva -
podemos sentir uma pontada de emoção. Se nossa percepção do movimento abriu uma
brecha na nossa sensitividade, despertando uma zona que encontrava-se em amnésia
sensoriomotora - expressão usada por Thomas Hanna (HANNA, 1995, p. 349-351) - nossa
vida sentimental também está sendo estimulada. A experiência do movimeno somático me
340
mostrou que um ato corporal pequeno, um movimento simples pode trazer uma emoção.
Não é apenas a catarze corporal solta no espaço que traz a emoção. Então, os fluxos da
somatização devem ser entendidos como um processo complexo de transição de estados e
de convivência de estados. É como se todos eles estivessem sempre ocorrendo em alguma
medida, mesmo que ínfima, enquanto um está se sobressaindo, tornando-se ampliado,
dominante.
O movimento somatopoético interessa àqueles que lidam com somas porque nele
se manifestam questões existentes nas pessoas. Essa pesquisa apontou que esse
movimento é muito útil aos artistas do movimento, considerando dentre estes diretores e
coreógrafos, porque, além de ser um desdobramento da sensibilidade, é material para a
confecção de dramaturgias corporais. Vou novamente utilizar a ideia de Bonnie Bainbridge
Cohen (COHEN, 1993, p. 1), sobre os ventos e as areias, para expor o que percebi durante
a pesquisa em relação à liga soma-cena. Bonnie diz que a mente é como o vento e o corpo,
como a areia. Isso me faz compreender que somos o ambiente; somos vento e areia, e que
o explorador de dramaturgias corporais e também o explorador de 'tramaturgias corporais' -
expressão utilizada por Helena Katz319 - pode incitar ventos a realizar uma travessia pelo ar,
para criar correntes aéreas inusitadas.
319
Fala proferida em uma aula que frequentei do mestrado em Dança do Programa de Pós-
Graduação em Dança da UFBA, em junho de 2006.
341
quem vai amontoando peças soltas, e se colocamos a descobrir qual paisagem pode ser
montada com esse quebra-cabeça. Os jogadores disponíveis a esse jogo se movem
deixando-se levar pelos ventos que os atingem. A poética dos somas vai assim
configurando uma rede de expressividades. É como coloca Olsen: quando o artista se lança
no mundo do movimento somático, a cena é uma questão de desenlace: 'da sala de aula
para o palco' (OLSEN, 2014, p. 177). A poética do soma é transportável para a cena. Mas
isso é assunto para outra pesquisa. Que esta tese possa colaborar nessa transposição. E ao
dizer isso, tenho em mente também que a cena, o 'palco', pode se dar em diferentes
configurações. Inclusive, na rua, em meio aos transeuntes do dia-a-dia, sem que eles
tenham sido anteriormente avisados de que iriam se deparar com uma cena.
342
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