A Tancareira

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A-Chan não era aborígene do Porto Interior.

Lembrava-se confu-

samente da infância, a aldeia cinzenta, perdida algures no delta. Poucas

reminiscências perduravam na sua memória. Búfalos ruminando nas

várzeas amarelas, homens, talvez parentes, debruçados no amanho duma

terra ingrata. Um pagode, alcandorado na lomba dum cerro, calvos

bonzas em lúgubres pantominas. Traficada pelos pais num terrível ano de

seca, quando mal desabrochavam os seis anos, correra de mão em mão

até desembocar no rio pela mão da Velha que a comprara a uma opulenta

matrona de Seak-ki. Fora um negócio vantajoso para a idosa tancareira,

pois nesses tempos não se adquiria uma mui-chai por preço tão

comezinho. Mas para A-Chan aquela transação foi como uma dádiva dos

deuses. AVelha conduziu-a para o extremo do delta, para a cidade branca

dos portugueses e botou-a a trabalhar naquele pedaço de rio que era o

Porto Interior. No começo, os labores foram difíceis, extenuantes para a

sua minguada compleição de tancareira incipiente. Mas a saúde triunfou e

depressa se integrou naquela existência aventurosa. AVelha tratava-a com

dureza, moía-lhe o corpo de pancadas. No íntimo, porém, o tratamento

parecia-lhe melhor do que na casa aristocrática, pois a Velha era menos

cruel e a vida mais pletórica de novidade.

Alguns meses de estágio tornaram-na exímia no mister. Guiava segu-

ramente o tancar nos errores pelo rio, escapulia-se das correntes e da vizi-

nhança minaz doutros barcos com ligeireza inusitada. Ninguém diria, ao


vê-la remar, com a embarcação pejada de fardos e passageiros, que viera

duma aldeia ignorada e fora adquirida, mui-chai, pela mão interesseira

mas, no fundo, generosa da Velha.

Não era despreocupada a vida do rio. A luta pela tigela de arroz exsu-

dava lágrimas cruciantes e todas as mulheres conheciam o acerbo travo

do ofício. Mas A-Chan, embora não amasse o rio e a Velha, preferia-os à

casa aristocrática, onde a escravidão fora mais penosa. O mulherio, que a

recebera, de início, como estrangeira, acabou por aceitá-la no seu

convívio. Ganhou amizades, porque não era mulher para coscuvilhices e,

quando podia, auxiliava as companheiras necessitadas. Falava e sorria

pouco. AVelha apreciava-a, porque era obediente e nunca se lamuriava da

sorte. Nas noites serenas, costumava acocorar-se na rua marginal para es-

cutar as narrativas das companheiras em que entravam donzelas,

guerreiros, dragões, lendas do rio e do mar, intrigas de femeaço e

confidências de amor. AVelha, sobretudo, tinha histórias encantadoras.

Asua voz rouca timbrava doçuras, quando evocava a meninice longínqua,

o tempo em que a vida do rio era mais fácil, quando as festas do Ano

Novo e do Oitavo Mês se faziam com um punhado de sapecas. Quanta

coisa sabia a Velha! Desde as mezinhas para tirar o vento sujo até os pós

e exorcismos para afugentar o demônio.

Durante anos, viveu sem alteração, presa às labutas estrênuas da profis-

são. Os seus vinte anos, pareciam não poder abstrair-se das imundas
águas do porto, do seu cheiro característico e do lodo da vazante e mal

pisavam a terra, medrosos de encarar os estrangeiros do diabo. A Velha

morreu numa clara manhã de outono num grave acidente marítimo.

Acatou A-Chan fielmente os desejos da moribunda, fazendo-lhe digno

enterro. Vieram os bonzas para os ritos, prantearam as amigas e as

carpideiras e, por alguns dias, no pequeno mundo das tancareiras,

lastimou-se aquela morte estúpida. Depois tudo voltou ao curso normal

da vida. E a Velha lá ficou descansando, no cimo dum outeiro da ilha da

Lapa, no meio da sua tribo.

Alforriada há muito, herdou os bens da Velha, que soube prodigamente

compensar os seus méritos. Recolheu a herança sem alvoroço, com a

mesma humildade com que expunha o corpo às pancadas, e, seguindo as

tradições da patroa, continuou serenamente nas suas lides, agora

associada a A-Lin, sua amiga dileta. Ficou transida, quando a guerra

varou a cidade, mas logo reagiu porque era preciso trabalhar, se quisesse

sobreviver. Nunca o ganha-pão lhe foi tão espinhoso, a fome tão negra.

Com os japoneses insignificantes em redor, o negócio diminuiu, dias

havendo que nem um cobre auferiam. Endureceu-se-lhe o coração,

tornando-se-lhe indiferente o drama dos pobres que formigavam na

cidade, outrora risonha e feliz. Não a impressionava a tela fúnebre dos

míseros que morriam à beira da marginal, trágicos inocentes duma

sangreira que não podia compreender. Amancheia de arroz que tragava,


custava-lhe tantos sofrimentos, que não podia reparti-la com quem quer

que fosse.

Os seus dias teriam sido eternamente iguais se não sobreviesse um caso

fortuito, que iria modificar o minúsculo âmbito da sua vida.Num baço

entardecer de verão, ao singrar rente à canhoneira Macau, um marujo

gritou para ela. Pedia em chinês inédito que o transportasse a terra e não

foi difícil entendê-lo. Hesitou durante segundos, algo receosa desse

homem louro, estatura descomunal. A-Lin, no entanto, que se jactava de

conhecer muitos marinheiros, insinuou-lhe que acedesse ao pedido.

Nunca tomara contato com os soi kuan de quem a Velha costumava dizer

os podres. Via-os, amiúde, na marginal, nas lanchas e nos rebocadores,

nos cais de embarque. Sempre fugira desses diabos como de aventesmas,

duvidando de A-Lin, que os tinha na conta de bons e afáveis. E achava-se

agora insolitamente em presença dum deles, que se obstinava em servir-

se do seu tancar. O marinheiro continuava a gesticular com simpático

sorriso. Doeu-lhe uma recusa e timidamente convidou-o a embarcar.

Limitou-se o marinheiro durante algum tempo a rogar-lhe os préstimos. E

A-Chan não os negava, porque ele não só era liberal nas gorgetas, como

também se lhe dirigia com delicadeza, sem os impropérios de quem paga.

Mas uma noite foi mais longe, numa dessas noites límpidas em que o

luar jorra salpicos de prata no casario vetusto da cidade e no mar rumore-

jante. Veio melancólico e dorido e instalou-se no barquito, perturbando a


tancareira que se aprestava para o repouso. Não protestou A-Chan, afeita

aos modos daquele homem. Recolheu a prancha que ligava a embarcação

à terra, desamarrou as cordas e impeliu o tancar para o rio. Só então se

recordou de A-Lin que fora patuscar com umas amigas. O toldo de

madeira e rota não escondia ao marinheiro um bocado do céu, onde

piscavam as estrelas. Do rio elevavam-se tênues sonidos dum povo que

dormia. Marulhos de água nos cascos das lorchas e das sampanas. Pre-

gões tristes de vendilhão de iguarias. Vago carpir de violino e flauta

nativas, gorgeio de voz feminina a cantar no bairro de amor.

Alguma coisa varreu a alma do marinheiro, que viera melancólico e

dorido. Quedou-se a olhar para A-Chan que lhe sentia a presença

descomunal. Assomou-lhe então, uma sede de consolação da obscura e

desprezível tancareira que, acima de tudo, era uma mulher. Chape-chape

de remos, o vulto de A-Chan de encontro ao céu estrelado, o marinheiro

triste no escuro da embarcação... Perto da canhoneira, ergueu-se e

ordenou-lhe que se afastasse para o mar. Atancareira mirou-o confusa,

enquanto uma sensação tépida lhe invadia o corpo. Não murmurou uma

palavra, mas obedeceu. O tancar fez-se rumo ao largo e sumiu-se no pó

branco do luar. Noite mágica de verão... Noite de Macau...

II

Quando regressaram, ia a madrugada no fim. Algures crocitavam galos.

Acidade modorrava na serenidade dum estio azul. Ainda era cedo para a
largada dos juncos. Os contornos serpeantes da Lapa eram agora mais

nítidos, à luz das estrelas moribundas. O marujo penetrou na sua vida sem

alvoroço, naturalmente. Batizou-o de Cou-Lou - Homem Alto - sem que

todavia se lhe endereçasse deste modo. Aprincípio, as companheiras

reprovaram o procedimento, abanando a cabeça em murmurações. Por

fim habituaram-se a considerá-lo como seu homem. Era bem certo que

não poderia viver eternamente só. Aliás nada haveria de mais banal do

que descobrir um marinheiro ligado a uma tancareira. Não valia a pena,

portanto, barafustar. Assim todas as vezes que surgia à noite, junto do

tancar, A-Lin saltava para as embarcações fronteiras e deixava a amiga

sozinha, imperturbável.

Não lhe dedicava o marinheiro todas as horas de folga. Havia mesmo

dias que não lhe via a cara. Mas não passava uma semana que não a

tomasse nos braços e lhe fizesse esquecer o rio. Não exigia A-Chan mais

do que isto, contente de se sentir preferida e acarinhada. Não conhecera

senão aquele homem e ninguém lhe acordara sensações tão inebriantes.

Entregara-lhe o corpo com tanta docilidade e submissão, como quando a

Velha o punha roxo de vergastadas. Não lhe podia fugir nem chegava a

esboçar a mais leve resistência, embora soubesse que não devia acolhê-lo

tão abertamente.

Decerto possuía mais mulheres. Todos os homens possuíam, quanto

mais um marinheiro. Não a acidulava, porém, o ciúme porque se criara na


lógica do concubinato e da bigamia. Tudo lhe era natural. No fundo, até

se orgulhava de pertencer ao número daquelas que partilhavam do seu

amor. Manuel devassara mundos, estivera nos cruzeiros de África,

familiarizara-se com os trópicos e calmarias, sequioso de aventura e da

paixão do mar. Abordara a Macau, transferido para a marinha privativa da

província e, durante anos se deixara seduzir pelos exotismos e sortilégios

do burgo macaense. Já dava por finda a comissão, quando a guerra

estalou com todo o seu cortejo de horrores.

O mar era então a sua idéia obsediante. A África, a Índia, o Extremo

Oriente, tudo palmilhara, mas nenhuma terra o atraíra, a ponto de nela

assentar arraiais para sempre. Nem o berço natal, a aldeia ribeirinha,

debruçada sobre o estupendo Atlântico, conseguira prendê-lo. Mas agora

queria vê-la antes de se embrenhar outra vez nos riscos e nas fainas do

mar. E à irmã também que desaparecera do lar e só depois de tantos anos

lhe solicitara uma reconciliação. Enegreceram-lhe o espírito dolorosas

crises de nostalgia, amargando-lhe a situação de encarcerado, quando

toda a sua alma pedia o oceano. Os amigos estranhavam que não

soubesse jugular as melancolias nem pudesse adaptar-se à crua realidade

da guerra. Nada lhe sabia bem naquelas horas conturbadas - os colegas, a

rotina do serviço, a cidade com os seus prazeres. Isolava-se,

ensimesmado, preferindo a solidão dos pontos recatados. Gostava,

sobretudo, de admirar os crepúsculos da Penha, de admirar o sol a


esconder-se por trás da Lapa imponente. Assistia, empolgado, ao regresso

lento e cansado dos juncos, atulhados de peixe saltitante. Enternecia-o o

ramalhar dos pinheiros da Guia que lhe blandiciavam recordações. O

Mirante de D. Maria, onde os seus olhos furavam o mar até o horizonte e

acarinhavam as Nove Ilhas, sentinelas verdes que guardavam os

caminhos marítimos. O Jardim de Camões, as suas frondes sussurrantes.

Passava tardes inteiras na curva do Bom Parto, junto à barraca do

pescador, a presenciar a recolha das redes, onde prateavam mugens e

tainhas. Ou nas verduras do Campal em brincadeira com a petizada do

Tap-Seac, sob o olhar vigilante das criadas. Estrada de Cacilhas,

Montanha Russa, Ilha Verde. Recantos da Cidade do Santo Nome de

Deus, a cujo silêncio e beleza ia rogar sossego para os seus pesares.

Confrangia-lha realizar que não fazia justiça àquele bendito solo ma-

caense que tão hospitaleiramente o recebera e lhe proporcionara alguns

dos melhores anos da sua vida. Mas que culpa tinha ele de se sentir

dominado pelo mar - a sua eterna sereia?

Reagia bastas vezes e, então, deambulava pelas artérias concorridas e

barulhentas. Freqüentava os cabarets, os serões dos centros dos

refugiados e perdia-se nas vielas de amor. Eram dias em que a sua alma

se emporcalhava, em que os mais belos sentimentos se lhe embotavam.

III

Quando A-Chan pisou o seu destino, não a tratou melhor nem pior que
as outras de quem ia buscar um pouco de lenitivo para os seus desgostos.

Não a considerou mais que um objeto de prazer de quem se podia apartar

com indiferença. Mas cedo lobrigou que a tancareira possuía um dom ma-

ravilhoso, que lhe fazia bem sentir-se ao pé dela. Não que fosse bonita,

não. Era feia, rosto macerado e trigueiro, uma resignação estampada de

quem conhecia o ferrete do sofrimento. Olhos oblíquos, dois traços

miúdos, um nariz chato, grosseiro. Horrenda, não, simplesmente feia.

Mas que terna expressão de escrava submissa.

Nas suas andanças pelo mundo, familiarizara-se com mulheres de várias

raças e sabia por que preço se amava uma prostituta ao longo de todo esse

Oriente prodigioso. Mas A-Chan não lhe dava a sensação dum alcoice,

porque havia nela qualquer coisa de meigo, de suave, de muito

comovente. E ele era um sentimental. Saturara-se do ambiente deletério

das hospedarias, onde a miséria era mais profunda. Não podia suportar os

sorrisos estereotipados das flores dos bairros de amor, as suas carícias

automáticas, a desgraça imensa da guerra. Não, porque esta não era só a

metralha e o sangue. Era também a fome daqueles milhares de seres que

diariamente morriam nas arcadas frias da cidade, a doença que ruía sobre

os miseráveis sem guarida, o meretrício desenfreado - moças e crianças

mercadejadas por pais famintos.

A-Chan trazia-lhe paz na sua desinteressada dedicação. Chocava-o

aquela submissão de fêmea amorosa que nada pedia. Uma calada devoção
que o enternecia. Gostava de ficar ao pé dela a seguir a marcha rutilante

das estrelas, a paisagem noturna de Macau, o casario da Penha e o da

Barra diluídos em sonho no fundo azul da noite. Era feia, ignorante,

açulada pela canga do rio. Mas os olhos orientais não escondiam uma

imensa ternura pelo marinheiro saudoso do mar. Sensibilizava-o a

maneira como lhe sorria, como lhe oferecia a tigela de chá ou como lhe

passava os dedos calosos e ásperos pelos seus cabelos louros de europeu,

num requinte de familiaridade. Falavam pouco, entendiam-se mais por

gestos que por palavras. Mas que refartantes os silêncios em que ela se

apagava num canto do tancar para não lhe perturbar as meditações.

Aguerra prosseguia infindável, mas à medida que os meses rolavam, o

declínio do Japão era evidente. AMacau chegaram interruptamente os

párias e os deserdados da sorte que vinham pedir hospitalidade e

segurança. A indigência dos refugiados de todos os lugarejos da China

sofredora contrastava com a opulência dos novos ricos e dos japoneses

que traficavam impunes à sombra duma bandeira neutral.

Nas noites claras e luarentas, sobrevoavam a Cidade do Santo Nome de

Deus aviões americanos, que iam espalhar destruição nos pontos

estratégicos do interior. Roncos sinistros que angustiavam os indefesos

lares macaenses e traziam à boca preces de corações alanceados.

Compunha-se o peito do marujo ao escutar aqueles sons cavos. Amorte

rondava perto na sua fereza de colher mais vítimas. Bastava um daqueles


aparelhos para reduzir a cidade a um montão de escombros. E ele não

queria perecer, agora que o fim não podia estar longe.

A-Chan também se arrepiava de pavor, mas incidia o medo na sua frágil

embarcação, três tábuas a flutuar nas águas lodosas, que eram o seu

ganha-pão. Sim, havia quem sofresse. O rio e a guerra não lhe

regateavam trágicos painéis. Mas, acima das lágrimas e dos clamores dos

outros estava o seu tancar, o seu sustento. Então abraçavam-se um ao

outro desesperadamente, ele aflito pela morte que pairava no ar, ela, pela

integridade do seu tancar, como se naquele desvairado amplexo

estivessem a salvação e a tranqüilidade num mundo em delírio. E foi

numa dessas noites em que o silêncio se quebrava com a trepidação irada

dos aviões que ela descobriu a insofismável nova. Ia ter uma criança, um

filho desse homem louro, de olhos azuis, que tão suavemente a tratava.

Qualquer coisa de inédito, de estupendo nasceu nela, um sentimento

indefinido e ao mesmo tempo embriagador. Mas calou-se, aguilhoada por

súbito pudor e infantil receio de que ele se zangasse por não ter sabido

evitar a maternidade.

IV

Poucas semanas depois, não voltou a aparecer o marinheiro. Na noite

em que o aguardava, ficou desperta até aos primeiros alvores da manhã.

Apertou-se-lhe o coração, apreensiva, mas desculpou-o. Nas noites

seguintes esperou-o em vão. O Cou-Lou sumira-se, inexplicavelmente.


Invadiu a sua alma negro desânimo. Implorou aos deuses, bateu cabeça

no pagode, acendeu pivetes, consultou a bruxa. Tênues momentos de

revolta que mal afloravam à expressão do seu rosto esmaecido. Estava-

lhe porém, nas veias o fatalismo da raça e, com ele, a sujeição milenária

da mulher chinesa aos caprichos do seu homem e senhor. Se o Cou-Lou

não vinha era porque outra o enfeitiçara. Não havia que lutar, perante os

desígnios dos deuses. Iludiu as lágrimas rebeldes e sustentou a ironia das

companheiras com a sua passividade habitual.

Mas restava-lhe uma consolação mais sublime do que os singelos pre-

sentes que lhe ofertara - um pente, pulseiras de jade barato, meia-dúzia de

lenços, uma peça de pano preto para a cabaia. Restava-lhe o filho, a única

grande recordação do marinheiro louro, de olhos azuis.

A gravidez não a prescindia de trabalhar. Isto era bom para as esposas

dos nababos da cidade. Para a gente do rio, só havia descanso na morte. O

seu tancar ia e vinha no transporte de passageiros, mercadorias e alfaias.

Durante esses meses todos, nunca A-Lin lhe surpreendera o mais leve

queixume, embora avaliasse a extensão dos seus padecimentos. Nasceu-

lhe uma menina, em certo entardecer borrascoso e frio de inverno.

Fatigara-se, ao levar passageiros à Lapa, e as dores que a cruciavam horas

antes culminaram com o esforço dispendido nos remos. No meio da

chuva e das correntes do rio alteroso, que ensopavam a pobre

embarcação, uma criança veio ao mundo. A-Lin não conseguiu prestar


auxílio algum, a tratos com o governo do tancar. A mãe conduzira,

sozinha, a cruz da maternidade. Quando, porém, se ouviram os primeiros

vagidos não fez mais que agradecer aos deuses por lhe terem

proporcionado tamanha felicidade, esquecida de todos os infortúnios.

O ausente vivia longe, desterrado em Coloane, a convalescer-se dumas

balas que o puseram às portas da morte. Ação de bandidos que assaltaram

o palacete dum negociante rico, lá para os lados da Flora.

Manuel, dando rebate, ficara prostado, seriamente ferido. Dois meses

permanecera no hospital, a vida por um fio. Interessara-se a imprensa

local pela saúde do arrojado mocetão, mas o drama não descera até ao rio

por ser um fato vulgar naqueles dias turbulentos e cruéis. Triunfou a sua

vigorosa compleição, mas as feridas deixaram-no combalido. Aconselho

dos médicos partiu para Coloane a fim de se retemperar. Olvidou

completamente A-Chan, o mundo, a guerra, para se concentrar na sua

própria saúde.

Amedrontava-o a idéia insidiosa de morrer, agora que o termo da con-

flagração estava mesmo à vista.

Havia maior certeza de paz, quando regressou à Cidade do Santo Nome

de Deus. Adesintegração da Alemanha não merecia dúvidas e os aviões

americanos eram mais numerosos sobre os telhados da terra macaense.

Vinha forte e animado, mas não procurou logo a chinesa. Só quando as


aeronaves bombardearam o solo neutral e semearam morte no Porto

Interior, se lembrou dela. E uma noite, pressuroso, dirigiu-se à marginal.

Espreitou o sítio do costume, errou pela margem, retornou ao mesmo

local, estugando o passo. Divisou, então, o barquinho que uma chama

bruxuleante alumiava. Aproximou-se algo envergonhado da sua longa

ausência. Distinguiu, nitidamente, o perfil da tancareira, curvado para as

águas quietas. Acercando-se da prancha, bradou: - A-Chan! A mulher

empertigou-se, surpresa, volvendo-se toda para ele. Depois, com ligeiro

menear de cabeça, murmurou: - Boa-noite.

Sorria-lhe. Aboca feia abria-se num acolhimento enternecedor como se

nada tivesse acontecido. Sem uma admoestação, o mais pequeno azedu-

me, que lhe fizesse recordar todos esses meses de afastamento.

Pulou para a embarcação e atancareira, sem mais palavra recolheu a

prancha, desligou as amarras. E o tancar deslizou na noite negra e úmida.

Não falaram durante muito tempo. Ele, comovido, a gozar aquela

serenidade tão difícil de haurir nesses trágicos dias. Ela, confusamente

feliz, um mundo a entrechocar-se no âmago do coração. Mas ambos

pareciam indiferentes. Ele, a reprimir uma vontade incontida de chorar.

Ela, sempre oriental, a esconder os mais exaltados sentimentos num rosto

imóvel, quase impassível.

De repente, alguma coisa se agitou perto dele. Ergueu-se alarmado, e,

entre panos velhos e andrajosos, descortinou o indiscreto que lhe cortava


o fio das meditações. Ficou aniquilado ao tocar na criança que se

esperneava ao frio. Um ser minúsculo, ralos cabelos alourados, tez quase

branca, olhos claros, a denunciar ascendência européia.

Os remos vibravam, com ritmo singular, na placidez da noite. Achinesa

parecia alheia ao drama que se desenrolava perto. Mas os olhos não se

despregavam do enorme dorso do marinheiro e compreendiam quão petri-

ficado ele estava. Acriança soltou um vagido, mais outros.

Atabalhoadamente, Manuel enfaixou-a, apertou-a contra o peito,

ciciando: - Minha filha, minha pequenina. A-Chan entendeu o apelo da

criança. Largou os remos e pediu brandamente ao marinheiro que a

substituísse. - O nome? - Mei Lai.

O tancar vogou, por segundos, à deriva, porque o marinheiro senti-

mental se especara na adoração da filha que sugava o peito sazonado da

mãe, com abençoada sofreguidão. Acordou nele a paternidade, um amor

profundo pela inocente. Experimentado nos perigos que rodeavam o

tancar, pensou logo em afastá-la do rio e, ao cabo de duas semanas

desencantou uma casa na Praia do Manduco. Não defrontou qualquer

oposição da mãe, que detestava a terra, onde a vida lhe fora tão agreste.

Submetera-se A-Chan, porque não lhe estava nos hábitos contrariá-lo e,

mormente, quando lhe patenteava maior afeição. Confiou o barquinho aos

cuidados de A-Lin e, docilmente internou-se na cidade.

Foram os mais aliciantes meses que juntos viveram. Até ali, A-Chan
não era mais do que uma simples ligação de marinheiro. Agora era a mãe

da sua filhinha. Continuavam a falar pouco, isolados em mundos opostos.

Entre eles, porém, existia a doce presença de Mei Lai. O que ambos não

conseguiam dar um ao outro, prodigalizavam-no à criança. E como eram

felizes! Atancareira soltava francas gargalhadas, sem rebuço, quando

brincava com ela. E Manuel transmudava-se num gaiato, que passava

horas sem fim a distraí-la.

A guerra terminava, no entanto. Rendida a Alemanha, esfacelava-se o

Império do Sol Nascente. Ao observar A-Chan nas suas lides domésticas

uma tribulação se apoderava dele. Sabia que não podia ficar para sempre

ao pé da tancareira, porque o seu destino era o mar. Não lhe tinha amor

porque isso só podia florir com a comunhão absoluta das almas. Mas

votava por ela uma estima que jamais tivera por alguém. Os colegas

chasqueavam dele, do seu "gosto degenerado". Não atinavam como

pudesse viver junto daquela criatura feia. Mas era verdade. Pesava-lhe

abandoná-la, agora que a via tão venturosa, protegida da crueldade do rio.

Aliás, fora a única mulher que lhe insuflara a sensação de possuir um lar.

E não se enganava. Nunca A-Chan bendisse tanto a vida como naqueles

meses. Aterra mostrara-lhe a sua feição benigna. Não era uma desprezada

mui-tchai que ali estava. Era uma senhora que governava a sua casa, com

o devido respeito da vizinhança. Orgulhava-se da Mei-Lai, como se

tivesse dado à luz um rapaz. E nunca o seu amor pelo marujo louro, de
olhos azuis, fora tão grande, tão mimoso. Sim, a guerra estava no fim. Ele

dera-lhe a perceber, desde o começo que, depois da tempestade faria

rumo ao longínquo País das Uvas. Mas esperava que ele não partisse,

agora que tinham uma filha. E, acalentada por tal esperança, vivia

indiferente a tudo que não fosse o lar.

Quando o Japão se rendeu, a notícia rebolou estrondosamente pela cida-

de no meio de foguetes e panchões. Mas as novas penetraram com

relutância na casa do marinheiro. Durante dias, examinou sorrateiramente

as atitudes do Cou-Lou, mas acabou por se tranqüilizar, perante os seus

modos habituais. Mal sonhava que ele recalcava uma surda tristeza. Com

pena dela, pedira para ficar mais alguns meses, dominando a sua própria

ânsia do mar, mas o requerimento fora-lhe indeferido. Devia partir no

primeiro transporte que chegasse a Macau.

Tornou-se-lhe obsidiante o problema da filha. Não tinha coragem de

renunciá-la. Que futuro lhe reservaria a tancareira? Cresceria no ambiente

soturno do porto, acompanharia a mãe nos espinhos do ofício, maltratada

pelo mundo e pela fome que é o estigma de todas as camadas

paupérrimas da China. E depois, Mei-Lai não tinha feições puras de

oriental. Só por si denunciava uma pecaminosa ligação com o europeu.

Nunca vira mestiças a trabalhar no rio. Para outros caminhos as levara o

destino. Para os bordéis, para as hospedarias das vielas do amor. Em toda

a parte, onde nasciam rebentos clandestinos de europeus, a prostituição


lucrava. Não, não podia abandoná-la. E pensou na irmã redimida, que

distante acenava por ele. Decerto albergaria a sobrinha e educá-la-ia com

desvelo. Mas era doloroso arrebatá-la da mãe. E neste dilema se debatia a

sua alma inquieta.

As semanas corriam vertiginosas, despreocupadas para A-Chan, mas ta-

citurnas para o marinheiro sentimental. Resolveu-se, porém, numa noite

de insônia, quando a companheira embalava a criança que se achava

febril. E não se descurou nos dias seguintes, enquanto não obteve uma

passagem para ela.

Um dia, porém, A-Chan despertou. O desaparecimento de certas peças

de roupa, a tristeza macambúzia do Cou-Lou, fúteis pormenores da vida

quotidiana, indicaram-lhe que se preparava algo de lancinante para ela. A

verdade só veio à luz nas vésperas da chegada do fatídico paquete.

Manuel trouxe consigo um intérprete que fluente nas duas línguas, po-

deria explicar melhor a A-Chan. Recebeu-os retraída, com

pressentimentos de desgraça. O intérprete, advinhando o melindre da

situação, exprimiu-se arrastadamente. Quando ficaram sós, fixou-o de

frente. Tinha as faces terrosas, uma expressão de infinito desespero. O

marinheiro, agarrado a Mei-Lai que traquinava, não suportou aquele olhar

e tartamudeou desculpas que não soube completar. Não deu palavra e

encaminhou-se a cambalear para a cozinha. Mas quando o chamou para

jantar, a voz tinha a mesma suavidade de sempre.


Nunca mais lhe viu a sombra dum sorriso. Não se opôs aos preparativos

do enxoval da criança e foi ela própria quem o entrouxou com a sua

atávica resignação. Mantinha o rosto inexpressivo, quando estava ao pé

do marinheiro. Adissimulação porém era inútil porque ele a conhecia bem

e lia-lhe os pensamentos.

Que existência lhe guardava o porvir? O rio, o eterno e inalterável rio a

exigir-lhe as forças até o alento final. O tancar, os remos, o vaivém na

superfície barrenta do porto. Dias incertos, privações. A velhice insegura,

a perene escravatura do ofício. Sim, ele tinha razão. Se a filha ficasse, que

seria do seu futuro? Ela podia sofrer porque fora criada no sofrimento,

vendida pelos pais a mãos empedernidas. Mas nunca a Mei-Lai, que era

tão bonita e se parecia tanto com o marinheiro de olhos azuis.

No dia da abalada, deixou-a quando fulgiu a primeira chapada de sol.

Não devia retornar ao lar. Iria mais tarde juntar-se a ela, no tancar, até à

hora da partida. Osculou-lhe a testa e mansamente apressou-se. A-Chan

viu-o vestir-se, andar dum lado para outro, fechar a porta da casa.

Compreendeu, então, que alguma coisa lhe morria por dentro e se es-

facelava para sempre.

Avermelhavam-se os contornos da Lapa com o rubor do ocaso, quando

apareceu diante do barquinho. Ainda lhe restavam umas horas à frente,

antes que saísse a última lancha. Atancareira cozinhara um jantar

delicioso, vestira a melhor cabaia - presente singelo do marinheiro


sentimental. E na trança morena brilhava o pente cravejado de pedras

falsas, lembrança cúmplice duma noite de amor. Acolheu-o com a ternura

habitual de que ele tanto gostava. E mais uma vez o tancar singrou para o

largo com o familiar chape-chape de remos.

Fazia frio, porque estavam no inverno. Mas ninguém o sentiu nem a ga-

rota que gatinhava no ínfimo espaço da embarcação. Os pais,

ensimesmados, incidiam sobre ela as suas atenções, sem conseguirem

trocar entre si o mais ligeiro pensamento que fosse. Juncos e lorchas

passavam perto. Uma vedeta agitou as águas sonolentas, mas o tancar

fugiu à inoportuna aproximação. Queimavam panchões na margem.

Odores de peixe salgado aturdiam o perfil dum barco de carreira de Hong

Kong, na Rada. Afortaleza de S. Tiago da Barra amadornava nas sombras

da noite que caía. AIlha Verde, ao longe, dormitava entre diáfanos mantos

de verdura. O Sequião, atrás, muito sujo, a perder-se nos extensos

arrozais da China. Apaisagem de Macau enchia-lhe os olhos de inéditas

facetas, que só agora adregara de descobrir. E admirou-se de estar a

limpar subitamente as faces orvalhadas.

Jantou sem apetite, só para agradar à companheira que se empenhara

em oferecer-lhe opípara refeição. Dilacerava-o a sua mansidão usual.

Preferia que ela gritasse toda a sua revolta do que guardar no fundo da

sua alma estranha de oriental, uma dor incomensurável. Estava pálida,

imensamente abatida. Mas procedia como se estivesse em dias mais


ledos.

Quando bateram as nove de qualquer relógio da cidade, soergueu-se da

esteira, onde se deitara para mitigar a comoção. A-Chan, que amamentava

a criança, estremeceu. - Vamos. Ela assentiu resignada, aconchegando

mais a si o ente querido de quem se ia separar. Manuel pegou nos remos e

guiou o tancar para o porto, para os cais de embarque, onde resfolegava a

lancha dos passageiros.

Então, nesse momento, sem disfarces, romperam soluços do peito da

tancareira. Espaçados, pungentes, envergonhados. Manuel quis-lhe pedir

que os contivesse, mas estrangulara-se-lhe a voz. E sentiu que perdia

qualquer coisa de inestimável que jamais poderia ser substituída. Remou

com mais vigor na penosa necessidade de escapar àquela cena. O inverno

soprava da China uns resquícios do seu vento gelado. Mas, de novo,

ninguém deu por ele. E os soluços continuavam. Espaçados, pungentes,

envergonhados.

O marinheiro não subiu imediatamente para a lancha. Já soara o se-

gundo apito para a largada. Ficaram a olhar para a filha adormecida,

ambos lutando para balbuciar algumas palavras. Ela feia, sucumbida, a

conter em vão os soluços, para implorar que voltasse para tirá-la do rio

que era a sua prisão. Ele, para inutilmente prometer os mais impossíveis

compromissos, e rogar-lhe que fosse boa rapariga.


Quando o apito estrugiu mais uma vez, Manuel estendeu os braços para

a tancareira humilde. A-Chan mirou-o num instante e depois, suavemente,

entregou-lhe a filha pequenina, murmurando numa derradeira solicitude

maternal. - Cuidadinho... cuidadinho...

(Escrito em Coimbra, em Fevereiro de 1950, com saudades de Macau.)

Henrique de Senna Fernandes

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