A Tancareira
A Tancareira
A Tancareira
Lembrava-se confu-
até desembocar no rio pela mão da Velha que a comprara a uma opulenta
pois nesses tempos não se adquiria uma mui-chai por preço tão
comezinho. Mas para A-Chan aquela transação foi como uma dádiva dos
ramente o tancar nos errores pelo rio, escapulia-se das correntes e da vizi-
Não era despreocupada a vida do rio. A luta pela tigela de arroz exsu-
sorte. Nas noites serenas, costumava acocorar-se na rua marginal para es-
o tempo em que a vida do rio era mais fácil, quando as festas do Ano
coisa sabia a Velha! Desde as mezinhas para tirar o vento sujo até os pós
são. Os seus vinte anos, pareciam não poder abstrair-se das imundas
águas do porto, do seu cheiro característico e do lodo da vazante e mal
varou a cidade, mas logo reagiu porque era preciso trabalhar, se quisesse
sobreviver. Nunca o ganha-pão lhe foi tão espinhoso, a fome tão negra.
que fosse.
gritou para ela. Pedia em chinês inédito que o transportasse a terra e não
Nunca tomara contato com os soi kuan de quem a Velha costumava dizer
A-Chan não os negava, porque ele não só era liberal nas gorgetas, como
Mas uma noite foi mais longe, numa dessas noites límpidas em que o
dormia. Marulhos de água nos cascos das lorchas e das sampanas. Pre-
enquanto uma sensação tépida lhe invadia o corpo. Não murmurou uma
II
Acidade modorrava na serenidade dum estio azul. Ainda era cedo para a
largada dos juncos. Os contornos serpeantes da Lapa eram agora mais
nítidos, à luz das estrelas moribundas. O marujo penetrou na sua vida sem
fim habituaram-se a considerá-lo como seu homem. Era bem certo que
não poderia viver eternamente só. Aliás nada haveria de mais banal do
sozinha, imperturbável.
dias que não lhe via a cara. Mas não passava uma semana que não a
tomasse nos braços e lhe fizesse esquecer o rio. Não exigia A-Chan mais
Velha o punha roxo de vergastadas. Não lhe podia fugir nem chegava a
esboçar a mais leve resistência, embora soubesse que não devia acolhê-lo
tão abertamente.
queria vê-la antes de se embrenhar outra vez nos riscos e nas fainas do
Confrangia-lha realizar que não fazia justiça àquele bendito solo ma-
dos melhores anos da sua vida. Mas que culpa tinha ele de se sentir
refugiados e perdia-se nas vielas de amor. Eram dias em que a sua alma
III
Quando A-Chan pisou o seu destino, não a tratou melhor nem pior que
as outras de quem ia buscar um pouco de lenitivo para os seus desgostos.
com indiferença. Mas cedo lobrigou que a tancareira possuía um dom ma-
ravilhoso, que lhe fazia bem sentir-se ao pé dela. Não que fosse bonita,
raças e sabia por que preço se amava uma prostituta ao longo de todo esse
Oriente prodigioso. Mas A-Chan não lhe dava a sensação dum alcoice,
das hospedarias, onde a miséria era mais profunda. Não podia suportar os
diariamente morriam nas arcadas frias da cidade, a doença que ruía sobre
aquela submissão de fêmea amorosa que nada pedia. Uma calada devoção
que o enternecia. Gostava de ficar ao pé dela a seguir a marcha rutilante
açulada pela canga do rio. Mas os olhos orientais não escondiam uma
maneira como lhe sorria, como lhe oferecia a tigela de chá ou como lhe
gestos que por palavras. Mas que refartantes os silêncios em que ela se
embarcação, três tábuas a flutuar nas águas lodosas, que eram o seu
regateavam trágicos painéis. Mas, acima das lágrimas e dos clamores dos
outro desesperadamente, ele aflito pela morte que pairava no ar, ela, pela
dos aviões que ela descobriu a insofismável nova. Ia ter uma criança, um
filho desse homem louro, de olhos azuis, que tão suavemente a tratava.
súbito pudor e infantil receio de que ele se zangasse por não ter sabido
evitar a maternidade.
IV
lhe porém, nas veias o fatalismo da raça e, com ele, a sujeição milenária
não vinha era porque outra o enfeitiçara. Não havia que lutar, perante os
lenços, uma peça de pano preto para a cabaia. Restava-lhe o filho, a única
Durante esses meses todos, nunca A-Lin lhe surpreendera o mais leve
vagidos não fez mais que agradecer aos deuses por lhe terem
local pela saúde do arrojado mocetão, mas o drama não descera até ao rio
por ser um fato vulgar naqueles dias turbulentos e cruéis. Triunfou a sua
própria saúde.
oposição da mãe, que detestava a terra, onde a vida lhe fora tão agreste.
Foram os mais aliciantes meses que juntos viveram. Até ali, A-Chan
não era mais do que uma simples ligação de marinheiro. Agora era a mãe
Entre eles, porém, existia a doce presença de Mei Lai. O que ambos não
uma tribulação se apoderava dele. Sabia que não podia ficar para sempre
ao pé da tancareira, porque o seu destino era o mar. Não lhe tinha amor
porque isso só podia florir com a comunhão absoluta das almas. Mas
votava por ela uma estima que jamais tivera por alguém. Os colegas
pudesse viver junto daquela criatura feia. Mas era verdade. Pesava-lhe
Aliás, fora a única mulher que lhe insuflara a sensação de possuir um lar.
meses. Aterra mostrara-lhe a sua feição benigna. Não era uma desprezada
mui-tchai que ali estava. Era uma senhora que governava a sua casa, com
tivesse dado à luz um rapaz. E nunca o seu amor pelo marujo louro, de
olhos azuis, fora tão grande, tão mimoso. Sim, a guerra estava no fim. Ele
rumo ao longínquo País das Uvas. Mas esperava que ele não partisse,
agora que tinham uma filha. E, acalentada por tal esperança, vivia
modos habituais. Mal sonhava que ele recalcava uma surda tristeza. Com
pena dela, pedira para ficar mais alguns meses, dominando a sua própria
febril. E não se descurou nos dias seguintes, enquanto não obteve uma
Manuel trouxe consigo um intérprete que fluente nas duas línguas, po-
e lia-lhe os pensamentos.
a perene escravatura do ofício. Sim, ele tinha razão. Se a filha ficasse, que
seria do seu futuro? Ela podia sofrer porque fora criada no sofrimento,
vendida pelos pais a mãos empedernidas. Mas nunca a Mei-Lai, que era
Não devia retornar ao lar. Iria mais tarde juntar-se a ela, no tancar, até à
viu-o vestir-se, andar dum lado para outro, fechar a porta da casa.
Compreendeu, então, que alguma coisa lhe morria por dentro e se es-
habitual de que ele tanto gostava. E mais uma vez o tancar singrou para o
Fazia frio, porque estavam no inverno. Mas ninguém o sentiu nem a ga-
da noite que caía. AIlha Verde, ao longe, dormitava entre diáfanos mantos
Preferia que ela gritasse toda a sua revolta do que guardar no fundo da
envergonhados.
conter em vão os soluços, para implorar que voltasse para tirá-la do rio
que era a sua prisão. Ele, para inutilmente prometer os mais impossíveis