A Dor Como Parâmetro Moral

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A percepção da dor como parâmetro de status moral em animais não humanos

Article  in  Conexão Ciência (Online) · January 2016


DOI: 10.24862/cco.v11i2.440

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4 authors, including:

Marta Fischer Andressa Luiza Cordeiro


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A percepção da dor como parâmetro de status moral

A percepção da dor como parâmetro de status moral em


animais não humanos

Pain perception as attribution of moral status in non-humans animals

Marta Luciane Fischer1, Rafael Falvo Librelato2, Andressa Luiza Cordeiro3 e Eliana
Rezende Adami1

1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná – Escola de Ciências da Vida – Programa de Pós-Graduação em
Bioética. Paraná, Curitiba, Brasil.
2
Pontifícia Universidade Católica do Paraná– Escola de Ciências da Vida – Programa de Pós-Graduação em
Filosofia. Paraná, Curitiba, Brasil.
3
Pontifícia Universidade Católica do Paraná– Escola de Ciências da Vida. Paraná, Curitiba, Brasil.Gerais,
Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

Resumo
Introdução: A dor pode ser desacreditada em animais-não-humanos desinente a inacessibilidade às
informações científicas, cultura e empatia. Objetivou-se contextualizar historicamente o conhecimento
da dor, investigar a existência de relação entre a afetividade e atribuição de senciência e refletir como
esses interveem nos parâmetros de atribuição moral. Metodologia: a contextualização dos eventos
históricos e a categorização da abordagem contemporânea da dor deram-se por meio de análise
bibliográfica, enquanto a concepção de pesquisadores, ativistas e comunidade foi acessada por meio de
questionário. Resultados: A percepção da dor, historicamente, esteve atrelada à aquisição de
conhecimento consolidado no modelo animal destituído de senciência, culminando
contemporaneamente na orientação para o aprimoramento de metodologias e técnicas subsidiárias do
desenvolvimento tecnocientífico e promotora de bem-estar-animal visando à efetividade do modelo
experimental. A análise do questionário atestou maior afinidade e atribuição moral aderida às escalas
hierárquicas taxonômicas, somada à desvinculação de mudanças de atitudes frente à comprovação da
senciência animal, reforçando a significância dos fatores socioculturais sobre os éticos na atribuição da
dor. Conclusão: A pesquisa assinala a relação entre informações e o status moral animal, demandando
investimento em educação, a fim de instrumentalizar o cidadão para tomada de decisão consciente.
Transcendendo, assim, aos princípios antropocêntricos/hierárquicos que não admitem não-humanos na
comunidade moral, bem como utilitaristas/senciocêntricos que incluem nesta apenas os seres-vivos
dotados de sistema-nervoso-complexo. Embora a senciência tenha apartado o homem da natureza, ora
não cabe na sociedade contemporânea que já reconhece essa propriedade nos demais seres-vivos, e
demanda novos paradigmas que legitime a aplicação do princípio da igual-consideração-de-interesses.
Palavras-Chave: Bem-estar-animal; Bioética; Ética-animal; Senciência

Autor correspondente:
Marta Luciane Fischer
Endereço: Rua Imaculada Conceição, 1115 – CEP 80215-901 Recebido em: 23/08/2016
Prado Velho, Curitiba, Paraná Revisado em: 09/09/2016
Aceito em: 15/09/2016
Telefone: +55 41 3271 1800
Publicado em: 07/12/2016
E-mail: : marta.fischer@pucpr.br

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Revista Conexão Ciência I Vol. 11 I Nº 2 I 2016
A percepção da dor como parâmetro de status moral

Abstract
Introduction: Pain can be discredited in nonhuman-animals due to inaccessibility of scientific
information, culture or empathy. We aimed to contextualize historically the knowledge of pain,
investigate the existence of relationship between affectivity and attribution of sentience in nonhuman-
animals and reflect how these influence in the parameters of moral assignment. Methodology: The
historical events context and contemporary categorization approach to pain was given by literature
analysis while the evaluation of researchers, activists and community conception was accessed through
a questionnaire. Results: The historic perception of pain was linked to acquiring consolidated
knowledge in the model of lack of sentience in animals, culminating contemporaneously in orientation
to the improvement of methodologies and techniques that support the techno-scientific development
and promotion of animal welfare aiming at the effectiveness of the experimental model. The analyses of
the questionnaire showed higher affinity and moral attribution given according to the hierarchical
taxonomic scales, plus the disassociation of changes in attitudes due to the proof of animal sentience,
showed the significance of sociocultural on the ethical factors in the allocation of pain. Conclusion:
The research points-out the relationship between information and the moral status, requiring
investment in education to equip the citizen to take conscious decision. Thus, transcending the
anthropocentric/hierarchical principles that do not admit non-human in the moral community, as well
utilitarian/senciocentrics including only beings endowed with system-nervous-complex. Although
sentience has separated man from nature, sometimes it does not fit in contemporary society, which
already recognizes this property in other life, demanding new paradigms that legitimizes the principle
of equal-account-of-interests.
Keywords; Bioethics; Ethics-animal; Sentience; Animal-welfare

Introdução
A dor é um processo mental subjetivo
atitudes3,4. Segundo Bateson5, a empatia e o
condicionado aos parâmetros emocionais,
posicionamento ético não devem ser considerados
motivacionais e psicológicos, com propósito
critérios relevantes para avaliar a dor; é fundamental
homeostático e adaptativo e com a finalidade de
utilizar critérios técnicos. Contudo, o estudo sobre a
sinalizar um risco real ou em potencial. A
percepção da dor e senciência justifica-se pela
compreensão da dor sofreu marcantes transformações
importância do tratamento do assunto na esfera da
ao longo da história em função de aspectos culturais e
ética animal. A pergunta norteadora deste estudo
pela ampliação do conhecimento. A repulsa à
versa sobre como a dor tem sido abordada
sensação de qualquer tipo de dor a torna um forte
cientificamente e se há relação entre o acesso ao
parâmetro para atribuição de compaixão e
conhecimento e à atribuição de senciência em
consideração moral ao indivíduo com dor. Logo,
animais-não-humanos e o balizamento desta na
partindo-se da premissa que a percepção da dor no
atribuição do status moral. Pressupõe-se que tal
animal-não-humano está inserida em contextos
percepção esteja relacionada ao grau de
biopsicossociais específicos, é esperado que
conhecimento sobre a história natural e convivência
princípios éticos inerentes na consolidação de
com os animais. Dessa forma, objetivou-se
diferentes segmentos sociais direcione a tomada de
contextualizar o conhecimento científico com relação
decisões de como e quando usar os animais para
à dor bem como da relação entre a percepção da dor e
satisfação das necessidades humanas. Assim,
atribuição do status moral nos animais-não-humanos,
acredita-se que a inacessibilidade às informações
além de investigar a existência de diferenças na
científicas associadas às crenças culturais e
atribuição da senciência animal entre pesquisadores,
mecanismos de empatia podem ser condicionantes
ativistas e comunidade.
para a determinação das condutas direcionadas aos
animais-não-humanos1.
Mesmo no meio acadêmico existem Metodologia
divergências sobre o sofrimento dos animais;
O presente estudo foi dividido em três seções,
enquanto muitos repulsam-no, outros julgam ser “um
na primeira, visou-se à contextualização dos eventos
mal necessário”2. Embora já se reconheça
históricos a respeito da compreensão da dor e da
cientificamente que os animais possam sentir dor,
senciência a fim de alicerçar a categorização da
existe incongruências entre a percepção e as
abordagem científica contemporânea. Por fim,
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A percepção da dor como parâmetro de status moral

avaliou-se quantitativamente a concepção de nervoso, o qual se originou remotamente na história


senciência animal por diferentes segmentos sociais. evolutiva dos animais, com os Cnidaria e
A contextualização histórica da dor e senciência Platyhelminthes7. Contudo, organismos
de animais-não-humanos se deu por meio de um estruturalmente simples como poríferos, plantas e
levantamento qualitativo e cronológico das principais protozoários já possuem capacidade de discernir entre
descobertas científicas. Os conhecimentos veiculados estímulos aversivos e atrativos por meio da
cientificamente no século XXI a respeito da dor modificação do potencial de membrana8,9. A
foram categorizados em 75 textos científicos percepção da dor é considerada como um processo
publicados entre 2001 e 2013, recuperados através do mental requerendo elementos neurológicos
Portal Capes periódicos associando os termos apropriados, cuja crescente complexidade aprimorou
“animal pain”, “animal sentience” e “animal a consciência7 conectando-a à emoções, sentimentos
emotions” com “invertebrates”, “fish”, “amphibians”, e autoconsciência, comprovadamente funcionais em
“reptiles”, “birds” e “mammals”. Para tal, as aves e mamíferos9.
informações foram categorizadas de acordo com os A consciência humana é fruto de um processo
mecanismos relacionados à dor tais como: presença evolutivo, provavelmente relacionado com a seleção
de nociceptores, produção de opiáceos endógenos, sexual, culminante em processos mentais sofisticados
neurotransmissores, reação aos analgésicos e promotores da conceituação do mundo, mesmo que
comportamento relacionado ao estresse e dor. ainda, a maior parte dos comportamentos sejam
A avaliação da concepção da dor animal foi direcionados pela mente inconsciente8,9. Dentre as
realizada por meio de um instrumento próprio significações promovidas pela mente humana,
elaborado e validado para a presente pesquisa, destaca-se a dor, pois nos 600 milhões de anos
disponibilizado eletronicamente voltado para três anteriores ao surgimento da humanidade, todos os
grupos sociais determinados visando a testar a animais buscavam garantir a sua sobrevivência
hipótese de existência de relação entre atribuição de evitando a dor, desconforto e perigo 8. Assim, desde
senciência da dor, conhecimento acadêmico e os primórdios das civilizações, o ser humano já se
empatia. Dessa forma, os grupos foram: a) preocupava em diferenciar a dor aguda da dor
pesquisadores que trabalham ou trabalharam com crônica. A primeira era associada aos traumatismos
animais; b) ativistas ou simpatizantes participantes de resultantes da existência física, enquanto para
entidades ou movimentos pró-animal; c) segunda era atribuído um caráter espiritual10. A
representantes da sociedade civil que possuem ou não incompreensão dos processos fisiológicos levou aos
contato com animais, mas não se enquadram nas duas egípcios e babilônios considerarem a dor como
categorias anteriores, cumprindo a função de grupo punição dos deuses, porém já esboçavam tentativas
controle para a hipótese testada. A amostra foi de associá-la à órgãos como coração e vasos
composta por 50 indivíduos de cada grupo. O sanguíneos. Na mesma época, chineses
instrumento de preenchimento on line foi composto relacionavam-na com o desequilíbrio das energias
por 20 perguntas, 19 fechadas e uma aberta: seis de Yin e Yang e tratavam-na com acupuntura,
caracterização do participante, quatro para opinião a moxibustão, exercícios físicos e dietas10.
respeito da ocorrência de dor em animais; quatro para A abordagem científica pela medicina iniciou-se
avaliação da constatação da existência de emoções e durante a civilização grega, marcada pela busca da
senciência e, por fim, seis referentes ao amenização da dor pela administração de analgésicos
posicionamento do entrevistado quanto ao bem-estar derivados de plantas, banhos e eletroterapia por
animal mensuradas através da escala likert de 1 a 9. peixes. A dor foi estudada por Sócrates (470-
O estudo teve aprovação pelo Comitê de Ética em 399a.C.), Platão (427-348a.C.) e Aristóteles (384-
Pesquisa da PUCPR (n.176.254). 322a.C.), este considerava-a como resultado de
Os dados de frequência foram analisados produtos dos tecidos lesados conduzidos pelo sangue
através do teste do qui-quadrado considerando como até o coração10. Apesar de Alemaeon (550-312a.C.),
hipótese nula a existência de homogeneidade entre as discípulo de Pitágoras (566-497a.C.), ter definido a
vaiáveis comparadas. Já os dados de média foram dor como processamento da sensação nociceptiva
comparados entre os segmentos sociais por meio dos desvinculada do coração e atrelada ao cérebro e
testes não paramétricos Kruskall-Wallis, Mann- nervos, a correlação entre o sistema nervoso
Whiteney e Kolmogorov-Smirnov, considerando-se a periférico e a veiculação de informações nociceptivas
significância de 0,5%. do ambiente para o encéfalo se consolidou com
Descartes (1596-1560 d.C.). Essa compreensão
subsidiou a visão mecanicista dos animais e
Resultados incentivou a vivissecção para validação dos métodos
científicos11. Claude Bernard (1813-1878)
Aspectos históricos da concepção da dor disseminou a pesquisa experimental como modelo
A dor como processo sensitivo é vital para animal para a compreensão da fisiologia humana, por
organismos que devem mover-se para prover-se5,6, meio da simulação de injúrias físicas e químicas11.
logo, é associada mais estreitamente ao sistema Durante os séculos subsequentes, os estudos

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promoveram um estrondoso progresso assistido pelas constatação da senciência animal é a reflexão moral
descobertas anatômicas e fisiológicas do sistema sobre se é correto ou não promover sofrimento a
nervoso, firmando, assim, os conceitos de esses animais. Os critérios de atribuição moral podem
especificidade funcional das vias sensitivas do basear-se em uma abordagem deontológica, prezando
sistema nervoso. Denominada como "doutrina das o valor intrínseco da vida, ou utilitarista, avaliando o
energias específicas” por Müller, em 1826, permitiu a custo/benefício23. Consequentemente, estabeleceu-se
consolidação da relação entre diferentes tipos a ciência do bem-estar-animal, relacionando o grau
terminações nervosas e sensações especificas11. Essa de bem-estar-animal aos processos adaptativos no
hipótese foi comprovada, a parir do final do século qual aspectos de saúde, estresse e emoções se
passado, preconizando a existência de mecanismos constituem em mecanismos biológicos direcionados
capazes de refinar a discriminação dos estímulos, para resolver problemas; de forma que mais alto será
legitimando a explicação da correlação entre a o grau quanto maiores forem as chances do animal
percepção da dor e fatores subjetivos, relacionados à resolver seus desafios naturais de sobrevivência.
processos psicológicos e influências ambientais12. Contudo, o grau de bem-estar dos animais mantidos
Nas últimas décadas, aprimorou-se a cativos é difícil de ser mensurado e demanda o
compreensão dos mecanismos envolvidos na desenvolvimento de técnicas de avaliação23.
percepção da dor em humanos destacando-se As atitudes das pessoas com relação aos animais
propostas e validação de instrumentos para a variam de acordo ao papel que lhe é atribuído,
mensuração da sensação, constituídos por escalas, podendo ser categorizados de acordo com a sua
questionários e descritores. Contemporaneamente, utilidade, sensibilidade, adorabilidade, periculosidade
têm sido desenvolvidos estudos baseados na história e importância24. Características da personalidade,
individual, considerando a avaliação psicológica, o gênero, idade, nacionalidade, envolvimento em
adoecimento, o sofrimento, o significado, o convívio movimentos pró-animal e ideologia ética também são
com a dor e os estados emocionais10, associando a condicionantes para atribuição de maior ou menor
espiritualidade no controle da dor13. Para animais, valor aos animais2,24-27. Pesquisas visando à avaliação
pesquisadores têm investido na elaboração de escalas de dor em animais são frequentes17,18, assim como a
de expressões faciais para identificação de dores caracterização da percepção da sociedade2,4,27,29.
específicas em roedores14, associando-a a softwares, Consequentemente, estudos sobre a capacidade de os
visando a refinar o diagnóstico15. animais serem sencientes têm aumentado nas últimas
Aspectos históricos da concepção da Senciência décadas22,23,30. Embora essa propriedade seja
em animais-não-humanos comumente atribuída aos vertebrados superiores
como aves e mamíferos, vem sendo identificada em
A atribuição da capacidade de animais-não- animais como répteis, peixes, invertebrados17,18 e até
humanos em sentir dor é comumente condicionada à em plantas2331-32, ampliando o debate ético e
presença de estruturas análogas aos humanos16,17. direcionando as ações humanas apoiadas pela
Muitos cientistas diferenciam a capacidade de sentir legislação e sociedade.
dor das respostas decorrentes de receptores
nociceptivos. Considerando que a ativação destes A abordagem contemporânea da dor
desencadeia resposta reflexa e inconsciente visando à Os estudos realizados a partir do século XXI,
proteção imediata, enquanto a sensação da dor se referentes a um conjunto de dados recuperados pelo
associaria às experiências conscientes17,18. portal da CAPES, sobre a dor animal detiveram
A atribuição de emoções e sentimentos aos principalmente viés científico (47,5%), quando
animais se consolidou com a teoria da evolução de comparado às pesquisas que envolviam produção
Darwin que associou o homem às demais espécies animal (37,5%) e pesquisas direcionadas para clínica
por meio de um processo evolutivo, cujas diferenças veterinária (12%) (χ2 (3)=13,3;P<0,01), estiveram
são em ordem quantitativa, e não qualitativa19,20. atrelados à espécies utilizadas em pesquisa
Atualmente, a ciência já reconhece a senciência em experimental (47,4%) quando confrontada a com
muitas espécies21,22, associando os processos produção (34%) e companhia (18,6%)(χ2(3)=12,1;
cognitivos às mudanças fisiológicas, P<0,01), constituindo-se predominantemente por
comportamentais e expressão de sentimentos Chordata (74,6%) em detrimento de Arthropoda
positivos e negativos. Assim, a senciência se (12,9%), Mollusca (8,4%) e grupos menores (4,2%)
relaciona às habilidades para perceber e responder compostos por Ciliophora, Cnidaria, Ctenophora,
aos estímulos externos, através da capacidade de Platyhelminthes, Nematoda, Annelida e
avaliar ações dos outros em relação a si próprio e a Echinodermata (χ2(3)=442,4;P<0,01) Destacou-se a
terceiros, relembrar ações e consequências, estimar abordagem de temas como bem-estar-animal (36%),
riscos, possuir alguns sentimentos e algum grau de estudos da dor (32%), desenvolvimento de fármacos
consciência23. A principal consequência da (21,3%) e etologia (10,7%) e aumento significativo
de publicações nas últimas décadas (FIGURA 1).

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180 Dor
Emoção
160
Senciência
140 Consciência
No. absoluto de textos recuperados

120

100

80

60

40

20

0
1980

1985

1986

1992

1993

1998

1999

2000

2005

2006

2012

2013
1981

1982

1983

1984

1987

1988

1989

1990

1991

1994

1995

1996

1997

2001

2002

2003

2004

2007

2008

2009

2010

2011
FIGURA 1: Artigos científicos sobre dor, emoção, senciência e consciência em animais-não-humanos veiculados
de1980 a 2013.

A descrição objetiva da dor foi direcionada Concepção social da dor e atribuição do status
predominantemente para cordados (90,1%), contudo moral a animais não-humanos
estudos inovadores têm abordado artrópodes (8,1%) e Os ativistas possuíam mais animais de
moluscos (1,8%), confirmando as expectativas da estimação (94%) do que os pesquisadores (62%) e a
existência da senciência. Os parâmetros de comunidade (68%), porém os três grupos afirmaram
diagnóstico da dor se encontram todavia atrelados à gostar mais de animais domésticos, de fazenda e
avaliação de alteração comportamental (37,6%; silvestres do que de répteis, anfíbios e invertebrados.
χ2(3)=32,5;P<0,01), porém está se aproximando em A comunidade destacou-se por gostar menos dos
termos numéricos da avaliação da presença de animais em todas as categorias (TABELA 1). A
nociceptores (31,8%) e alterações fisiológicas totalidade dos entrevistados acreditaram ser possível
(32,4%), é, ainda, incipiente a verificação da reconhecer existência de dor nos animais, porém a
presença precursores e receptores opióides endógenos maioria considera que apenas animais domésticos, de
(8,8%). produção e silvestres são sencientes. A percepção da
Estudos sobre analgesia têm sido conduzidos dor em répteis, peixes e invertebrados é mais
em cordatos (72,2%), artrópodes (12,7%) e moluscos evidente em pesquisadores (TABELA 1). Os três
(11,9%), visando, principalmente, à comprovação da grupos sociais avaliados indicaram perceber a dor,
eficácia de fármacos (83,7%); apenas 11,3% das principalmente por meio da vocalização,
pesquisas veicularam a ausência de efeitos e 3,4% se agressividade, respiração, agitação. A apatia e a
referiram aos efeitos colaterais ou como depressão foram menos referidas, principalmente
inconclusivos. Dentre os fármacos testados, pelos ativistas.
destacam-se os anestésicos ansiolíticos e adjuvantes As emoções foram atribuídas a todos os animais
(40,2%), opióides (40,9%), anti-inflamatórios (9,8%) por 70% dos ativistas (nenhum:2%, alguns:10%,
e hormônios, eletromagnetismo e outras substâncias exclui invertebrados:18%), 52% dos pesquisadores
químicas (9,1%). Como parâmetros de avaliação (alguns:20%, exclui invertebrados:30%) e 46% da
consideraram-se alterações fisiológicas (substâncias comunidade (nenhum:2%, alguns:28%, exclui
químicas: 30,9%; cardiorrespiratório:28,2%, invertebrados:26%), enquanto a consciência presente
neuronal:19,1%, metabólico/imunológico:15,5%) e em todos os animais foi considerada por 80% dos
comportamentais (atividades motoras:48,8%, ativistas (alguns:6%, exclui invertebrados:14%),70%
aprendizagem:11,6%, exploração:7,5%, da comunidade (nenhum:2%, alguns:6%, exclui
manutenção:10,4% e vocalização:5,8%, invertebrados:22%) e 60% dos pesquisadores
comportamento agonístico:8,9% e afiliativo:5,1%). (nenhum:20%; alguns:10%, exclui
invertebrados:22%). Os entrevistados (ativistas:88%,

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pesquisadores:92% e comunidade:66%) atestaram da existência da consciência nos animais. Todos os


que deva haver cuidado em não ocasionar dor em entrevistados atribuíram alta valoração para as cinco
qualquer animal defendendo a existência de uma liberdades; apenas a liberdade do desconforto e de
postura ética com todos os animais (ativistas:96%, medo e tristeza menos valorizada pela comunidade.
pesquisadores:100%, comunidade:88%). Apenas A atribuição de emoções consideradas mais
10% dos ativistas e 2% da comunidade disseram não complexas, tais como gratidão, carinho, alegria,
conhecer a terminologia bem-estar-animal; mais da desânimo, tristeza, frustração e nojo/repugnância
metade dos entrevistados (ativistas:60%, foram direcionadas, principalmente para animais
pesquisadores:66% e comunidade:58%) não como anfíbios, répteis, peixes e invertebrados,
condicionaram sua conduta à comprovação científica principalmente pelo grupo comunidade (FIGURA 2).

TABELA 1: Atribuição de afetividade, consciência e dor nos animais por ativistas, pesquisadores e comunidade.
Anfíbios
Domésticos Fazenda Silvestres Peixes Invertebrados
e répteis
O quanto gosta
Ativistas
Pesquisadores
Comunidade * * * * *
Sensação da dor
Ativistas
Pesquisadores *
Comunidade
Consciência da dor
Ativistas
Pesquisadores
Comunidade
As barras horizontais representam a atribuição de pontuação de 1 a 9 por ativistas, pesquisadores e comunidade para o quanto
gostavam de animais domésticos, de fazenda, silvestres, anfíbios/répteis, peixes e invertebrados e quanto eles acreditavam que eles
eram capazes de sentir dor e ter consciência da mesma. As diferentes tonalidades indicam a média de valor atribuído, a negra ( )
refere-se à valores incluídos no intervalo de 8 a 9; a cinza escura ( ) de7 a 7,9; a cinza médio ( ) de 6 a 6,9; a cinza claro ( )
de 5 a 5,9; e a branca ( ) intervalos menores que 5. Os valores relativos a cada categoria foram comparados entre os três
segmentos sociais pelo teste de Mann-Whitney. As médias significativamente diferentes (P<0,05) estão acompanhadas de asterisco.

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10,0 Mamíferos a/A


Valor médio atribuído pelos Ativistas 9,0
8,0
Aves a/A
7,0 Répteis b/A
6,0
5,0 Anfíbios b/A
4,0 Peixes b/A
3,0
2,0 Invertebrados c /A
1,0
0,0
Valor médio atribuído pela Comunidade

10,0 Mamíferos a /A
9,0
8,0 Aves b/A
7,0
Répteis c /B
6,0
5,0 Anfíbios d/B
4,0
3,0 Peixes d/B
2,0
1,0 Invertebrados e/B
0,0
Valor médio atribuído pelos Pesquisadores

10,0
Mamíferos a / A
9,0
8,0 Aves b/A
7,0
6,0 Répteis c/ C
5,0
Anfíbios cd/A
4,0
3,0 Peixes d/A
2,0
1,0 Invertebrados e/B
0,0
Medo

Tensão
Interesse

Carinho

Irritação
Ansiedade
Satisfação

Tristeza
Alegria

Solidão

N\R
Gratidão

Frustração

Desânimo

FIGURA 2: Nível de valoração de emoções para cada categoria animal por parte dos grupos sociais. Os valores foram
comparados pelo teste Kolmogorov-Smirnov; as curvas significativamente diferentes são representadas por letras
distintas. Minúsculas representam a comparação das curvas de cada táxon em cada segmento social e maiúsculas entre
os segmentos sociais.

Discussão
além do óbvio condicionamento à praticidade
A contextualização histórica da dor evidenciou vinculada ao domínio da técnica de criação e
o mérito do modelo animal na compreensão em manejo, está atrelada ao fato de propiciarem um
humanos, porém, mesmo diante da legitimação das substrato orgânico complexo o suficiente para
comprovações de eficiência de fármacos anestésicos condução de estudos bioquímicos e
e analgésicos em animais, a aquiescência da neurofisiológicos.
senciência tem sido protelada pelo meio acadêmico.
Contemporaneamente, o predomínio de publicações A alteração comportamental, todavia, é
com a abordagem científica da dor, com animais de utilizada como principal parâmetro para a avaliação
laboratório, principalmente cordados, reflete o foco da dor, uma vez que reflexos, respostas e expressões
dos estudos, ainda orientados para o aprimoramento motoras se constituem de estados aparentemente
de metodologias e técnicas que subsidiem o legítimos de perceber a reação do animal23. Há uma
desenvolvimento tecnocientífico, consagrando-se os demanda para o desenvolvimento de pesquisas que
estudos de bem-estar-animal com a manutenção da embasem protocolos e escalas de dor confiáveis e
homeostase do modelo experimental e, acessíveis associando expressão física aos estímulos
consequentemente, visando aos interesses aversivos14,15. Contudo, as vulnerabilidades desses
humanos33. A preferência por determinadas espécies, parâmetros foram ressaltadas por Coleman29 pelo

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fato dos animais expressarem a dor de diferentes de percepção da comunidade, os quais somados aos
maneiras, tal como predadores de presas, e pelo fato conhecimentos científicos devem estar envolvidos
do grau de bem-estar ser condicionado ao contexto em ações educativas29.
em que o animal está inserido, bem como as
variáveis individuais e subjetivas do observador, tais Apesar dos resultados do presente estudo terem
como nível de atenção, ansiedade, sugestão, demonstrado que os três grupos analisados
experiência prévia, hábito alimentar, local de acreditam que todos os animais sentem e são
moradia e área de atuação e formação3,24. conscientes da dor evidenciou-se contradição quanto
O uso de analgésicos e anestésicos é um modo à atribuição de valores à capacidade de cada grupo
prático para avaliação da capacidade dos animais em animal sentir e possuir consciência. Os animais
sentir dor, contudo podem deter apenas efeito categorizados mais próximos ao homem como os
sedativo28. O medicamento usado depende se a dor é domésticos, de fazenda e silvestres, compostos
aguda ou crônica e da capacidade da espécie em principalmente por mamíferos, fundamenta o
responder ao medicamento, inclusive, alguns estudos predomínio da ética antropocêntrica e
têm evidenciado que a resposta pode variar com senciocêntrica6. Provavelmente, o desconhecimento
sexo e período reprodutivo em roedores34. a respeito da neurofisiologia da dor animal também
Considerando que um dos objetivos da promoção do colabora para que pesquisadores e ativistas atribuam
bem-estar envolve a supressão da dor, torna-se menor senciência aos outros animais. Segundo
crucial a detecção e o tratamento, justificando a Phillips e McCulloch2, estudantes de diversas
condução de estudos e desenvolvimento de nacionalidades atribuem maior aceitação ao uso
tecnologias18. científico de animais menos familiares. Fato que
reflete no presente estudo na menor atribuição
A concepção social obtida pela presente sensitiva aos invertebrados. Ressalva-se, igualmente,
pesquisa refere-se a uma amostra específica de um a importância de crenças socioculturais,
público que transita pelo meio digital e que detém especialmente influentes na atribuição de emoções
acesso a informações além da promovida pela sua consideradas mais complexas, tais como gratidão,
área de atuação profissional e ideológica plausíveis carinho, alegria, desânimo, tristeza, frustração e
de gerarem concepções próprias e dispares do nojo/repugnância, para animais tidos como
mesmo segmento social inserido em outro contexto. inferiores, tais como anfíbios, répteis, peixes e
Nesse cenário, a relação entre a maior afinidade por invertebrados, principalmente pelo grupo
animais e tutela referida pelos ativistas corrobora comunidade2. O fato da atribuição de emoções ter
com os resultados de Taylor e Signal35 com sido menor do que a consciência e senciência por
estudantes australianos, cujo maior contato com pesquisadores e comunidade remete à conservadora
animais domésticos e o contexto sociocultural prática de repúdio ao antropomorfismo, herança da
limitou a esfera de atribuição moral levando-os a escola mecanicista liderada por Descartes33 e reforça
perceber animais como anfíbios, répteis e a ideia de que a empatia pode ser um balizador na
invertebrados como nocivos, repugnantes ou atribuição das emoções. Contudo, estão bem
transmissores de doenças2. Os dados do presente avançados os estudos que condicionam às emoções,
estudo corroboram com Herzog e Golden25 os quais assim como à dor, papel funcional e fundamental
não encontram relação entre posicionamento moral e para a sobrevivência dos organismos direcionando
ativismo social, e com Signal e Taylor27 que os comportamentos para resolução de questões
registraram que pessoas envolvidas na proteção específicas, assim como a associação entre emoção e
animal possuem empatia maior do que a sensação dolorosa35.
comunidade. Os animais menos empáticos
despertaram maior afinidade pelos pesquisadores, O fato dos três grupos sociais avaliados
provavelmente devido ao conhecimento científico, dissociarem a apatia e a depressão da dor e
subsidiando a hipótese de que a informação tem um sofrimento, também remente o desvínculo com
contexto importante no direcionamento de atitudes ambientes desestimulantes e situações sociais
éticas24. Embora Coleman29 tenha percebido que a negativas36, mesmo diante da alta valoração para as
comunidade australiana considere o bem-estar cinco liberdades. Os grupos também se igualaram
importante, seus sentimentos não refletem na com relação à valoração das emoções, refletindo
atribuição de dor, justamente pelo desconhecimento. nitidamente a hierarquia taxonômica, sendo as
Dessa forma, é possível inferir que a afinidade aos menores pontuações em invertebrados em
animais pode ser adaptada culturalmente, levando a pesquisadores e comunidade, corroborando com a
crer que maior acesso às informações sobre a ideia de que valores culturalmente estabelecidos
história natural pode influenciar nas condutas a eles possuem impacto na moralidade e no processo de
dispensadas, justificando-se estudos de diagnóstico julgamento25.

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A demanda pela ética no uso de animais tem ambiental e animal. O primeiro passo foi a exigência
aumentado nas sociedades contemporâneas, mas legal da constituição das comissões de éticas que
ainda é nítida a exclusão deliberada de consideração fiscalizassem as pesquisas e aulas práticas
moral para os invertebrados. Posicionamento que envolvendo animais com o comprometimento de
conflita com a opinião geral do grupo comunidade aplicação dos princípios dos 3Rs: redução,
de que todos os animais devem receber tratamento refinamento e substituição43. A legislação
digno. Resultado esse que corrobora com estudos consolidada na América do Norte e Europa, na
conduzidos em diferentes países, sustentando que década de 1980, e no Brasil, a partir de 2008 com a
similaridades físicas e psicológicas percebidas nos Lei nº 11.79444 visavam ao refinamento dos métodos
animais influenciam as atitudes a eles e procedimentos e normatizavam a manutenção do
relacionadas2,24,37. O fato de apenas metade dos bem-estar dos animais durante a criação,
entrevistados responderem que não mudariam suas manipulação, experimentação e finalização;
atitudes para com os animais, caso a ciência exigiram que seja evitado ao máximo qualquer tipo
comprovasse definitivamente sua capacidade de desconforto físico ou mental. Contudo, considera-
senciente, reforça que os fatores socioculturais são se que a expressão da dor, como experiência
mais importantes do que a ética na atribuição da sensorial e emocional desagradável associada à uma
dor5. lesão real ou potencial, pode ser sutil. Logo, o
A fundamentação ética e legal da atribuição da reconhecimento da dor demanda qualificação
dor mesmo de profissionais experimentes. A resolução
alerta que há algumas expressões, posturas corporais
A consciência da dor física e mental tem se e respostas comportamentais e fisiológicas que
constituído do principal critério de fundamentação podem indicar dor.
das éticas animalistas30. Contudo, à parte de sua
ampla argumentação desde a Era Clássica, a O Conselho Nacional de Controle de
implementação se deu com a ética Utilitarista de Experimentação Animal promulgou duas resoluções
Bentham (1848-1832)38 e Singer39, para os quais o normativas referentes à Lei nº11.794, estabelecendo
princípio da igual consideração de interesses deve diretrizes para o cuidado e utilização de animais para
ser critério moral essencial, pois se um ser sofre, não fins científicos e didáticos e para eutanásia44. Ambos
pode haver qualquer justificativa moral para deixar documentos consideram a avaliação dos níveis de
de levar em conta esse sofrimento. Contudo, dor e distresse como critérios balizadores das
filósofos como Regan40 e Francione41 ressalvam que decisões envolvendo o uso do animal. Estas devem
a aplicação do princípio sencioncêntrico pela ética estar presentes no planejamento do projeto; no
utilitarista resulta na atribuição do status moral acompanhamento através de registros
conforme o grau de consciência; apenas os seres comportamentais detalhados; nas intervenções, caso
humanos estariam aptos a possuírem interesse não animal demonstre dor e sejam necessários desfechos
apenas em sofrer, mas também em viver, pois e intervenções imediatas; e na finalização da vida. A
apresentam capacidade de planejar o futuro e de eutanásia é definida como modo humanitário
atribuir valor e expectativa à sua existência. Dessa confiável, irreversível e compatível para situações
forma, ao contrário do movimento libertacionista, os que visem ao bem-estar dos animais, como em caso
utilitaristas endossam o uso de animais como de dor ou sofrimento que não podem ser mitigados
recursos para os humanos, desde que não sejam ou em experimentos científicos. A lei tem como
expostos ao sofrimento. princípio que a dor é reconhecida a partir de um
estímulo nociceptivo, demandando para tal a
O ponto de partida contemporâneo da aplicação funcionalidade do córtex cerebral e estruturas
da ética animal foi a denúncia de Harrison42 subcorticais, logo indicando o uso de fármacos que
advindas do sistema de criação animal instituído no inibam a consciência da dor. Considerando que a dor
pós-guerra que visava ao aumento de produção com e o distresse não são aliviados facilmente, orienta-se
a diminuição dos custos, culminando na constituição que se considere o princípio da similaridade, ou seja,
do comitê Brambell e na instituição das cinco que os animais sentem dor de forma similar aos
liberdades33. Porém, a legislação beneficiou os humanos, sendo a frequência da observação
animais utilizados na experimentação e no meio relacionada com o grau de invasibilidade do
acadêmico, provavelmente em decorrência das experimento.
normatizações direcionadas para pesquisa com
humanos questionadas pela bioética devido aos
excessos cometidos em nome do desenvolvimento Conclusão
tecnocientífico33. Concomitantemente, surgiram os A congregação dos aspectos históricos e
movimentos ambientalistas e a consolidação da ética contemporâneos da dor pelo meio acadêmico,

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A percepção da dor como parâmetro de status moral

somado à concepção de diferentes grupos sociais a humano. As novas demandas sociais, tendem para a
respeito da senciência dos animais não humanos adoção de uma postura ética biocêntrica,
permitiu traçar um panorama da relação entre a considerando que qualquer ser vivo que busca seu
atribuição da dor e o status moral salientando que, próprio bem tem o direito a existir e deve ser
mesmo diante de uma evidente demanda por merecedor de consideração e respeito, uma vez que
mudanças de paradigmas na relação com os animais, toda espécie que se move para prover-se é
ainda se revela a um viés antropocêntrico, utilitarista constituída de uma forma específica de senciência.
sensiocêntrico e, obviamente, especista na relação Deve-se refletir que, embora a capacidade de sentir
com os animais. Partindo da premissa de que o tenha sido um parâmetro usado para isolar o homem
homem não é capaz de acessar com certeza a dor, dos demais seres vivos na atribuição moral, não cabe
mesmo em outro ser humano, pois trata-se de um na realidade contemporânea que já reconhece essa
estado de consciência que só pode ser inferido, propriedade nos demais seres vivos, sendo então
questiona-se se é justificável admitir que outros necessária a mudança de paradigmas quanto a
seres vivos sentem dor. A relação entre o grau da valoração destes e aplicar com legitimidade o
consciência e o sofrimento animal pode gerar duas princípio da igual consideração de interesses.
interpretações antagônicas e carentes de
comprovação. Na primeira considera-se que animais
com consciência maior sofrem mais, pois podem Declaração de conflitos de interesses
antecipar o sofrimento. A visão contrária pontua que Os autores do artigo afirmam que não houve
animais com menor grau de consciência são mais nenhuma situação de conflito de interesse, tais como
susceptíveis, uma vez que sua menor capacidade de propostas de financiamento, emissão de pareceres,
compreensão, ponderação e interconexões com promoções ou participação em comitês consultivos
experiências prévias pode levá-los a interpretar cada ou diretivos, entre outras, que pudessem influenciar
acontecimento atípico como fatal40. Porém, as no desenvolvimento do trabalho.
diretrizes legais brasileiras consideram somente os
animais vertebrados como merecedores de
normatização e cuidados, mesmo sabendo-se que a Agradecimentos
consciência fenomenal é graduada e que estudos A todos aqueles que responderam ao
atuais subsidiam a existência de comportamento questionário desta pesquisa.
autônomos e complexos também em invertebrados e
até mesmo em plantas. Logo, a ideia de que a
ausência de evidência não é evidência de ausência, Referências
demanda a aplicação do princípio do benefício da 1. HAIDT, J.; KOLLER, S.H., DIAS, M.G. Affect, culture,
dúvida e inclusão a todos os animais na and morality, or is it wrong to eat your dog? J Pers Soc
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relação ao uso de animais deve ultrapassar os 2. PHILLIPS, C.J.C.; McCULLOCH, S. Student attitudes
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princípios estruturais da formação de grupos sociais, Educ., v.40, n.1, p.17-24, 2005
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comunidade moral, assim como os princípios Antropocêntrico-Especista entre Professores e Estudantes
utilitaristas-senciocêntricos que incluem na de Ciências Biológicas da UNIFAL-MG. Alexandria. v.1,
comunidade moral apenas os seres vivos dotados de n.3, p.3-28, 2008
sistema nervoso complexo. O presente estudo 5. BATESON, P. Assessment of pain in animals. Anim
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