BOURDIEU, Pierre. A Produção Da Crença
BOURDIEU, Pierre. A Produção Da Crença
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A PRODUÇAO DA
CRENÇA
contribuição para uma economia
dos bens simbólicos
PIERRE BOURDIEU
APRODUÇAO
DA CRENÇA
contribuição para uma economia
dos bens simbólicos
Tradução
Guilherme João de Freitas Teixeira
o COSTUREIRO
E SUA GRIFE
contribuição para uma teoria
da magia
MODOS DE
DOMINAÇAO
Tradução
Maria da Graça Jacintho Senon
I
- 1
'vvww. editorazouk.com. br
f. 51. 3024.7554 e 3012.0057
-2006-
APRESENTAÇÃO
Não obstante, foi a partir da década de 80, com a publicação É preciso ressaltar que nas praticas disciplinares, nos
do livro Questões de SoâologÍa (1983) e do uso de duas coletâneas conteúdos dos currículos, nos ditados populares, na música ou nos
de artigos do autor (Miceli, 1974, Ortiz, 1983),3 esforço empreendido programas de televisão, valores culturais são transmitidos. Como
sobretudo por sociólogos, que Bourdieu passou a ser referência para instrumentos de comunicação e conhecimento, são responsáveis
análises sócio-culturais mais amplas. Indo além das discussões também pela transmissão de um consenso a respeito do mundo social.
A Produção da Cren~'a
pjerre Bourdieu
,
Buurdicu nos oferece aqui os instrumentos para estudar as maneiras consensos. Para ele, só mudaremos a realidade social na medida cIll
como os sentidos são mobilizados, nos auxilia a investigar como as que mudarmos a representação que temos dela. A ciência, como toda
instâncias educativas - a família, a escola e a mídia - estruturam prática educativa comprometida com a ordem democrática, deve servir
uma forma de percepção dos sujeitos e suas ideologias. para desvendar as estratégias ocultas de dominação.
Por exemplo, a partir do conceito de violência simbólica, Para finalizar este argumento, gostaria de apontar algumas
Bourdieu vai além da contribuição do pensamento clássico, questões a respeito da recepção dos discursos dominantes. Embora
reintroduzindo a análise sobre o caráter político das instâncias de seja possível apontar e analisar as características do processo de
socialização, produção e consagração cultural. Está aqui sem dúvida produção do campo de consagração dos bens simbólicos, compreender
a originalidade do conceito e sua importância ao explicitar as os mecanismos de apropriação das representações por ele veiculadas
articulações entre dominação cultural e dominação política. Segundo remete a uma discussão mais ampla. Remete para a complexidade de
o autor, a base por excelência do poder não deriva apenas da riqueza rc:ferências, conhecimentos e informações obtidos em outros espaços
material e cultural, mas da capacidade que estas têm em transformá- produtores de cultura pelos sujeitos sociais. Bourdieu, nestes textos,
lo em capital social e simbólico. Ou seja, põe em evidência um poder en focando a produção, nos fornece, em outros momentos, elememos
sutil, uma forma desconhecida e oculta de outras formas de poder, p~lra se pensa r a recepção di ferenciada das mensagens. li
responsável pela manutenção da ordem. Na forma de crédito, o capital /1 proclllÇJO di UCIJ,';I: cOf1rrÍblIÍção para lIma ecof1omÍa dos
simbólico é uma dádÍva atribuída àqueles que possuem legitimiebde he 'IJS siIllhej/icos, ensaio que d:i nome a esta coletânea, publicado em
para impor categorias do pensamento e, portanto, uma vis~lo (l\- 1977, ofere~ce uma análise crítica sobre o processo de criação,
mundo. Propriedade de poucos, o capital simbólico e o clpita\ suei:11 circulação e consagração dos bens culturais. Debruçando-se sobre 3
são recursos conquistados à custa de muito investinH'lllo, tempo, diversidade das categorias de percepção de críticos teatrais, a
dinheiro e disposição pessoal. diversidade dos estilos artísricos e/ou as diferentes estratégias de
Articulando com maestria métodos e técnicas de pesquisa comercialização editorial, Bourdieu explicita os conflitos internos
aparentemente antagônicos - a estatística, própria das investigações de cada espaço do social, a luta pela conquista de uma autoridade, as
macro-sociológicas, e a observação de campo, própria das pesquisas estratégias de legitimação das "verdades". Afirmando que o princípio
etnográficas - Bourdieu mostra aqui, como em vários outros da eficácia de todos os atos de consagração e legitimação está na
momentos, que para pensar o social é preciso ser um pouco artista,
energia acumulada na história de cada campo, ajuda-nos a politizar a
um pouco ousado e, sobretudo, muito subversor. Afinal, a sociologia
esfera dos bens simbólicos. Desmistificando o caráter sagrado da
é um esporte de combate. 5 É uma arma a favor do conhecimento, da
cultura, considera sua produção como resultado de um amplo
tomada de consciência e da transformação da ordem.
empreendimento de alquimia social, na qual colabora o conjunto
Saliento que, embora a análise sobre as instâncias de
dos agentes envolvidos no campo da produção e circulação, ou seja,
consagração da cultura leve a uma visão pessimista da dinâmica da
reprodução da dominação, seria interessante considerar que para artistas, escolas de pensamento, críticos, jornalistas, etc. Esse imenso
Bourdieu todo conhecimento é uma forma de subversão. As trabalho de promoção, divulgação e/ou publicidade produzido e
transformações políticas devem pressupor sempre urna subversão consumido por todos é o único capaz de anunCÍaro cn:ldor, consagrar
cognitiva, uma transformação da visão de mundo naturalizada pelos a autoridade da cdação. 7 Se não bastassem todas estas qualidades, é
..-1
Pierre BourdÍeu
,
possível acrescentar a atualidade deste ensaio. Ao desmascarar a magia desconhecimento e reconhecimento são reveladoras, pois aj udalll
_ das estratégias de produção de sentido das instâncias de consagração nos a apreender o caráter ilusório, manipulador e por fim ideológico
cultural- a escola e sobretudo agora a mídia -, a reflexão que ali se das estratégias desinteressadas. Para ele, o poder simbólico não é
encontra abre um espaço para a resistência aos produtos midiáticos. prerrogativa das sociedades pré-capitalistas; ao contrário, está
magia, escrito junto com Ivette Delsaut e publicado em 1975, é um Propõe então fazer uma sociologia das trocas simbólicas, a única
texto clássico e uma importante referência para o esclarecimento de capaz de apreender de maneira crítica, e na forma de denúncia, formas
dois conceitos fundamentais de sua obra: campo e capital simbólico. de dominação que não usam a força física e brutal. A objetivação e
Bastante preso ainda às discussões com os estruturalistas, e talvez institucionalização dos mecanismos de dominação, como o sistema
como uma resposta a eles, o texto apresenta a dinâmica de jurídico, o sistema de ensino e o aparelho de Estado, são para o
funcionamento de uma parte do espaço social - o campo da alta autor formas eufemizadas, desconhecidas e legítimas, de dominação.
costura -, as relações entre seus agentes, suas instâncias de Nestes ensaios, Bourdieu explora sobretudo o caráter
pertencimento, bem como suas tomadas de posição. É um texto que arbitrário e mágico das representações coletivas. Preocupado em
evidencia a correspondência entre posição social e disposições compreender a lógica de funcionamento das relações sociais, as formas
culturais. Em um segundo momento, tomando para a análise eSSl' de m;lnutenção das estruturas objetivas e subjetivas do social, torna-
objeto de estudo pouco científico, os autores propõem disclIt ir, ;lt raVl'S se um mestre da investig;lção das formas de sociabilidade dos grupos.
dos mecanismos de dominação simbólic;l da 1ll0d~l, a rorÇ~l da crença Na realidade, todos os ensaios dialogam entre si. Não
coletiva. A partir deste argumento a prodllç~lo da grife lima precisam ser lidos na ordem da apresentação. São, antes de tudo,
metáfora de outras mercadorias culturais, os autores denunciam o momentos em que o autor registra sua concepção das relações sociais,
exercício de uma violência simbólica, uma violência tênue e o jogo de forças e as oposições que estruturam a lógica das relações
desconhecida, que só existe na forma de dissimulação. O poder entre os grupós. Analisando distintos objetos, os ensaios
simbólico é um poder invisível que só pode ser exercido com a demonstram a validade da homologia ou da correspondência entre as
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos hierarquias do campo da cultura e do campo das classes sociais. Para
ou mesmo que o exercem. os que já conhecem Bourdieu, esta coletânea representa uma referência
Modos de dominaçãcf é um texto de início de carreira, em de uso prático de parte de seu corpo conceituaL Para os que ainda
não tiveram o prazer de sua leitura, estes ensaios certamente
que o autor reflete sobre a ambigüidade das relações pessoais e de
encantarão por sua perspicácia.
trabalho. Introdução a uma problemática cara a Bourdieu, trata
especificamente das relações arbitrárias do funcionamento das la
Maria da Graça]acintho Setton
formações sociais tradicionais ou capitalistas. Capital simbólico ou
fevereiro de 2002
poder simbólico são aqui apresentados como veículos desconhecidos
e desinteressados de acúmulo de riquezas e poder. As palavras
'rl
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,
•
Notas e Referências Bibliográficas f
(
1. Sociologia da Educação, disciplina clássica que analisa fatores extra-escolares no
desempenho e produtividade escolar, nesta época não fazia parte da grade curricular 4
dos cursos de Pedagogia.
2. Sobre a apropriação da obra de Bourdieu entre educadores, consultar CATANI,
Afrânio ec aI. Sociologia para educ.1dores, Rio de Janeiro, Quartel, 2001.
3. MICELI, Sergio (org.). A economia das uocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva,
1974 e ORTIZ, Renato (org). Pierre Bourdieu, Coleção Grandes Cientistas Sociais.
São Paulo, Ed. Ática, 1983.
4. A este respeito procurar o livro Poder simbólico, Bertrand Brasil/Difei Portugal,
1989 e A economia das uocas lingüÍscicas - o que /alar quer dizer. Edusp, 1996.
S. Referência a uma entrevista de Pierre Bourdieu concedida ao jornalista Pierre
Carles. A entrevista chegou a passar no circuito de cinema alternativo francês e
posteriormente foi lançada em vídeo com o nome La sociologie esc un sport de
combac, 2001.
6. A este respeito, consultar BOURDIEU, Pierre. Un an moyen: les usages sociaux APRODUÇAO
de la phowgraphie. Paris, Les Éditions de Minuit, 1968 e "A escola conservadora:
as desigualdades frente à escola e à cultura" In: Escriws de Educaç§o. São Paulo,
Vozes, 1998 (org. Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani).
DA CRENÇA
7. Ao utilizar palavras tais como, "anunciar", "criar" e "consagrar" es[()u chamando
atenção para o caráter mágico e arbitrário da crença com os quais flodcm se revestir
contribuição para uma economia
os discursos das "autoridades".
dos bens simbólicos l
s.É preciso esclarecer que existem dois textos do autor com o nome itfodos de
dominaç-;io. O primeiro foi publicado CUll10 capitulo, na primeira parte do livro Le
scns pratique, Les Éditions de 1vlinu;t, 1972; o segundo, publtcado na revista Aetes
de la Recherche en Sciences Sociales, em 1976, está sendo agora traduzido nesta
coletânea.
9. Ver Rocary C/ub: clubes de serviço ou clubes de capiral social e capital simbólico,
tese de doutoramento defendida na FFLCH-USp, 1996, em que trato especificamente
do processo de reconversão do capital econômico e capital culwral em capital social
e capital simbólico, a partir do estudo de uma prática de associativismo voluntário.
J O. Profa. Dra. da Faculdade de Educação da USP.
Piare Bourdieu
(
A Denegação da "Economia"
11 Produção da Crença
,
seriam as mais condenadas sem o menor dó, conlêm urna forma A denegação não é uma negação real do interesse
de racionalidade econômica (até mesmo, no sentido restrito) e, "econômico" que assombra continuamente as praticas mais
de modo algum, excluem seus autores dos ganhos, inclusive desÍnteressadas, nem uma simples dÍSsÍmulação dos aspectos
"econômicos", prometidos aos que se conformam à lei do mercantis da prática, como chegaram a acreditar os observadores
universo. Ou por outras palavras, ao lado da busca do lucro mais atentos. O empreendimento econômico denegado do
"econômico" que, ao transformar o comércio dos bens culturais marchand de quadros ou do editor, "banqueiros culturais" em quem
em um comércio semelhante aos outros, e não dos mais rentáveis a arte e os negócios se encontram praticamente - o que os predispõe
"economicamente" (como nos é lembrado pelos mais experientes, a desempenhar o papel de bodes expiatórios -, só pode ser bem-
ou seja, os mais desÍntercssados dos comerciantes de arte), se sucedido, até mesmo "economicamente", se não for orientado pelo
contenta em ajustar-se à demanda de uma clientela controle prático das leis de funcionamento do campo da produção
antecipadamente convertida, existe lugar para a acumulaçiio do e circulação dos bens culturais, ou seja, por uma combinação
capÍraJ sÍmbóJjco, como capital econômico ou político denegado, totalmente improvável - em todo caso, raramente bem-sucedida
irreconhecido e reconhecido - portanto, legítimo -, crédÍ{Q capaz , do realismo, que implica concessões mínimas às necessidades
de garantir, sob certas condições e sempre a prazo, ganhos "econômicas" denegadas e não negadas, com a convicção que as
"econômicos". Os produtores e vendedores de bens culturais, exclui.' !'elo fato da denegação da economia não ser um simples
empenhados em operações do tipo comercial, condenam-sl' a si disfarce ideológico, nem um completo repúdio do interesse
mesmos, e não somente de um ponto de vista ético ou eSll'lil:o, econômico, é que, por um lado, novos produtores que têm como
porque privam-se das possibilidades oferecidas aqul'ks qUl', !'(1I único capital sua convicção podc'm impor-se ao mercado,
saberem reconhecer as exigências específicas elo universo, ou, se reivindicando valores em nome dos quais os dominantes
quisermos, irreconhecer e fazer irreconhecer os inllTl'sses em acumularam seu capital simbólico e, por outro, somente aqueles
jogo em sua prática, utilizam os meios ele obter os ganhos do que, entre eles, sabem acomodar-se às obrigações "econômicas"
desinteresse. Em suma, quando o único capital útil, eficiente, é inscritas na economia da má-fé poderão colher plenamente os
o capital irreconhecido, reconhecido, legílimo, a que se dá o nome ganhos "econômicos" de seu capital simbólico.
de "prestígio" ou "autoridade", neste caso, o capital econômico
pressuposto, quase sempre, pelos empreendimentos culturais
Quem Cria o Criador?
só pode garantir os ganhos específicos produzidos pelo campo -
e, ao mesmo tempo, os ganhos "econômicos" que eles sempre
implicam - se vier a converter-se em capital simbólico: a única A ideologia carismática que se encontra na própria origem
acumulação legítima, tanto para o autor quanto para o crítico, da crença professada no valor da obra de arte, portanto, do próprio
tanto para o marchandde quadros quanto para o editor ou o diretor funcionamento do campo da produção e circulação dos bens
de teatro, consiste em adquirir um nome, um nome conhecido e culturais, constitui, sem dúvida, o principal obstáculo a uma ciência
reconhecido, capital de consagração que implica um poder de rigorosa da produção do valor de tais bens. Com efeito, é ela que
consagrar, além de objetos (é o efeito de grife ou de assinatura) orienta o olhar em direção ao produwr aparente - pintor,
ou pessoas (pela publicação, exposição, etc.), portanto, de dar compositor, escritor - em poucas palavras, em direção ao autor,
valor e obter benefícios desta operação. impedindo o questionamento a respeito do que autoriza o autor,
o
('(
P/erre Bourd/cu /1 Produç.-Jo d:? CrL'{]~~3 r(
,
do que dá a autoridade de que o autor se autoriza. Se é por demais padrinhos prestigiosos (ao lado dos autores de prefácios, críticos,
evidente que o preço de um quadro não é determinado pela adição etc.) que garantem os testemunhos obsequiosos de
dos elementos do custo de produção, matéria-prima, tempo de reconhecimento. Ainda mais evidente é o papel do marchand que,
trabalho do pintor, e se as obras de arte fornecem um exemplo realmente, deve apresentar o pintor e sua obra a grupos sociais
perfeito àqueles que pretendem refutar a teoria marxista do valor cada vez mais seletos (exposições coletivas e/ou individuais,
trabalho (que, aliás, atribui à produção artística um estatuto de coleções prestigiosas, museus) e introduzi-lo em locais raros e
exceção), é, talvez, porque se define mal a unidade de produção cobiçados. No entan to, a lei do universo que pretende que um
ou, o que dá no mesmo, o processo da produção. investimento será tanto mais produtivo, do ponto de vista
É possível formular a questão sob sua forma mais concreta simbólico, quanto menos for declarado, faz com que as ações de
(sob a qual, às vezes, ela se apresenta aos agentes): Quem será o valorização que, no mundo dos negócios, assumem a forma aberta
verdadeiro produtor do valor da obra: o pintor ou o marchand, o da publicidade, devem aqui eufemizar-se: o comerciante de arte
escritor ou o editor ou o diretor de teatro? A ideologia da criação, só pode servir sua "descoberta" se colocar a seu serviço toda a sua
que transforma o autor em princípio primeiro e último do valor da convicção que exclui as manobras vilmente comerdais, as
obra, dissimula que o comerciante de arte (marchand de quadros, manipulações e as pressões, em benefício das formas mais brandas
editor, etc.) é aquele que explora o trabalho do crÍador fazendo l' discretas das "relações públicas" (que, em si mesmas, são uma
comércio do sagrado e, inseparavelmente, aquele que, colocando- forma altamente eufemizada da publicidade), recepções, reuniões
o no mercado, pela exposição, publicação ou encenação, C()flsap-a mundanas, confidências feitas da forma mais criteriosa possível.'
o produto - caso contrário, este estaria votado a permanecer no
estado de recurso natural - que ele soube descobrir l' tanlo mais o Círculo da Crença
fortemente quanto ele mesmo é mais consagrado." O comerciante
de arte não é somente aquele que outorga à obra um valor
Mas, passando do criador ao descobrÍdor como criador do
comercial, colocando-a em relação com um certo mercado; não é
criador, limitamo-nos a deslocar a questão inicial; neste caso,
somente o representante, o empresário, que "defende, com se
restaria determinár de onde vem o poder de consagrar que é
diz, os autores que lhe agradam". Mas, é aquele que pode proclamar
reconhecido ao comerciante de arte. Ainda aqui, a resposta
o valor do autor que defende (cf. a ficção do catálogo ou do
carismática se oferece já pronta: os grandes marchands, os grandes
comunicado destinado à imprensa) e, sobretudo, "empenhar, como
editores, são "descobridores" inspirados que, guiados por sua paixão
se diz, seu prestígio" em seu favor, awando como "banqueiro
desinteressada e irrefletida por uma obra, "fizeram" o pintor ou o
simbólico" que oferece, como garantia, todo o capital simbólico
escritor, ou então, permitiram-lhe que ele se fizesse, amparando-
que acumulou (e, realmente, passível de ser perdido em caso de
o nos momentos difíceis, respaldados na fé que haviam colocado
erro).? Este investimento, cujos investimentos "econômicos"
nele, orientando-o com seus conselhos e livrando-o das
correlatos não passam em si mesmos de uma garantia, é o que preocupações materiais. 9 Se pretendermos evitar o recuo, sem fim,
leva o produtor a penetrar no ciclo da consagração. Penetra-se na na cadeia das causas, talvez seja preciso cessar de pensar na lógica,
literatura não como se professa em uma ordem religiosa, mas como favorecida por toda a tradição, do "primeiro começo" que,
se penetra em um clube seleto: o editor faz parte do número dos inevitavelmente, conduz à fé no criador. Não basta indicar, como
se faz habitualmente, que o "descobridor" nunca descobre nada além de identificarem subjetiva ou objetivamente uma parcela de
que já não tenha sido descoberto, pelo menos, por alguns, ou seja, seu valor com tais apropriações. Em suma, o que fãz as reputações
pintores já conhecidos por um reduzido número de pintores ou não é, como acreditam ingenuamente os Rastignacs* provincianos,
conhecedores, autores "apresentados" por outros autores (por a "influência" de fulano ou sicrano, esta ou aquela instituição,
exemplo, sabe-se que os manuscritos que serão publicados quase revista, publicação semanal, academia, cenáculo, marchand, editor,
nunca chegam diretamente, mas quase sempre por meio de nem sequer o conjunto do que, às vezes, se chama de
intermediários reconhecidos). Sua autoridade é, por si só, um valor "personalidades do mundo das artes e das letras", mas o campo
fiduciário só existente não só na relação com o campo da produção da produção como sistema das relações objetivas entre esses
em seu conjunto, ou seja, com os pintores ou escritores que fazem agentes ou instituições e espaço das lutas pelo monopólio do poder
parte de sua escuderia - "um editor, conforme dizia um deles, é de consagração em que, continuamente, se engendram o valor das
seu catálogo" - e com aqueles que estão fora e gostariam ou não de obras e a crença neste valor. lO
fazer parte dela, mas também na relação com os outros marchands
ou editores que manifestam mais ou menos claramente a cobiça Fé e Má-Fé
por seus autores e escritores, além de terem maior ou menor
capacidade para açambarcá-los; na relação com os críticos, que se
fiam em maior ou menor grau em seu julgamento, falam de seus o prinCipIO da eficácia de todos os atos de consagração
produtos com maior ou menor respeito; na relação com os clientes, não e outro senão o próprio campo, lugar da energia social
que têm uma percepção mais ou menos nítida de sua 111.1/'-.1 " acuIllulada, reproduzido com a ajuda dos agentes e instituições
depositam nele um maior ou menor grau de cOllri;lIl~-;I. FsL1 através das lutas pelas quais eles tentam apropriar-se dela,
autoridade não é outra coisa senão um cu:dito junto a UIll conjunlo empenhando o que haviam adquirido de tal energia nas lutas
de agentes que constituem re!:Jrôes tanIa mais preciosas quanto anteriores. O valor da obra de arte como tal - fundamento do valor
maior for o crédito de que eles próprios se beneficiam. É por demais de qualquer obra particular - e a crença que lhe serve de
evidente que os críticos colaboram também com o comerciante de fundamento se engendram nas incessantes e inumeráveis lutas
arte no trabalho de consagração que faz a reputação e - pelo menos, travadas com a finalidade de fundamentar o valor desta ou daquela
a prazo - o valor monetário das obras: ao "descobrirem" os "novos obra particular, ou seja, não só na concorrência entre agentes
talentos". eles orientam a escolha dos vendedores e compradores (autores, atores, escritores, críticos, encenadores, editores,
por seus escritos ou conselhos (eles são, muitas vezes, leitores ou marchands, etc), cujos interesses (no sentido mais amplo) estão
diretores de coleções nas editoras ou autores de prefácios, associados a bens culturais diferentes - teatro burguês ou teatro
contratados pelas galerias), por seus vereditos que, apesar de Ínte/eccual, pintura estabe/eáda e pintura de vanguarda, literatura
pretenderem ser puramente estéticos, são acompanhados por acadêmica e literatura avançada -, mas também nos conflitos entre
consideráveis efeitos econômicos (júris). Entre aqueles que fazem agentes que ocupam posições diferentes na produção dos produtos I'
a obra de arte, convém contar, por último, com os clientes que da mesma espécie - pintores e marchands, autores e editores, ,.
contribuem para fazer seu valor, apropriando-se dela materialmente
(os colecionadores) ou simbolicamente (espectadores, leitores), , PersollJgem concebida por Honoré de Balzac (1799-1850), cuja primeira aparição
acontece no romance O pai Goáot. tipo de oportunista elegante.
Pú"rre Bourdieu
f
escritores e críticos, etc.: com tais lutas que, apesar de nunca forma abertamente "econômica" - e apresenta todas as aparências
estabelecerem uma oposição clara entre "o comercial" e o "não- da transcendência, embora ela não seja senão o produto da censura
comercial", o desjnteresse e o ânjsmo, empenham quase sempre cruzada que pesa, quase de forma igual, sobre cada um daqueles
o reconhecimento dos valores últimos de desjnteresse através da que sobrecarregam todos os outros com seu peso.
denúncia dos comprometimentos mercantis ou das manobras
Um mecanismo semelhante acaba transformando o artista
calculistas do adversário, é a denegação da economia que é colocada
desconhecido, desprovido de crédito e credibilidade, em um artista
no próprio âmago do campo, na própria origem de seu
conhecido e reconhecido: a luta pela imposição da definição
funcionamento e mudança.
dominante da arte, ou seja, pela imposição de um estilo, encarnado
É assim que a dupla verdade da relação ambivalente entre por um produtor particular ou um grupo de produtores, faz da
o pintor e o marchand, ou entre o escritor e o editor, nunca se obra de arte um valor, transformando-a em uma aposta, no âmago
revela tão bem quanto nas crises em que se desvela a verdade do campo da produção e fora dele. Cada um poderá recusar a
objetiva de cada uma das posições e da relação entre elas, ao mesmo pretensão de seus adversários de estabelecerem uma distinção
tempo que se reafirmam os valores que se encontram na origem entre o que é arte e o que não o é, sem nunca questionarem, como
de seu encobrimento. Ninguém está mais bem colocado do que o tal, essa pretensão originária: em nome da convicção de que existe
marchand de arte para conhecer os interesses dos fabricantes de boa ou má pintura é que os concorrentes se excluem mutuamente
obras, as estratégias utilizadas por eles para defendê-las ou do campo da pintura, prodigalizando-lhe assim a aposta e o motor
dissimular as próprÍas estratégias. Se ele forma um anteparo sem o qual ele não poderia funcionar. E nada poderá dissimular
protetor entre o artista e o mercado, é também ele quem o liga ao melhor a colusão objetiva que se encontra na origem do valor
mercado e quem provoca, por sua própria existência, os propriamente artístico do que os antagonismos através dos quais
desvelamentos cruéis da verdade da prática artística: será que, ele se realiza.
para impor seus interesses, não lhe basta encerrar o artista em
suas declarações públicas de desjntcresse? Basta escutá-lo para
descobrir que - salvo algumas ilustres exceções, como que feitas
Sacrilégios Rituais
para fazer lembrar o ideal - os pintores e escritores são
fundamentalmente interesseiros, calculistas, obcecados pelo A estas análises, poder-se-iam opor as tentativas que se
dinheiro e dispostos a fazer seja lá o que for para serem bem- multiplicaram por volta da década de 60, sobretudo, no domínio
sucedidos. Quanto aos artistas, que nem sequer podem denunciar da pintura, para quebrar o círculo da crença, se não fosse por demais
a exploração de que são objeto sem confessarem suas motivações evidente que essas espécies de sacrilégios rituais, dessacralizações
interesseiras, são os que se encontram mais bem colocados para ainda sacralizantes que se limitam sempre a escandalizar os crentes,
descobrirem as estratégias dos comerciantes de arte, o sentido do estão votados a serem, por sua vez, sacralizados, e a fundarem
investimento rentável (economicamente) que orienta seus uma nova crença. Estamos pensando em Manzoni com suas linhas
investimentos estéticos e afetivos. Adversários cúmplices, os que dentro de caixas, suas conservas de "merda de artista", seus
fabricam as obras de arte e aqueles que as comercializam se referem, pedestais mágicos capazes de transformar em obra de arte as coisas
como se vê, à mesma lei que impõe a repressão de todas as colocadas em cima deles, ou sua assinatura escrita em pessoas
manifestações diretas do interesse pessoal - pelo menos, em sua vivas, convertidas assim em obras de arte; ou então, em Ben que
multiplica os "gestos" de provoc:1ção ou desdém, tais como a irreconhedmcnto coletivo, coletivamente produzido e mantido,
exposição de um pedaço de papelão coberto com a menção que se encontra na origem do poder do qual o mago se apropria:
"exemplar único" ou de uma tela com a inscrição "tela de 45 cm se é "impossível compreender a magia sem o grupo mágico" é
de comprimento". Paradoxalmente, nada é mais bem feito para porque o poder do mago, cuja assinatura ou grife miraculosa não é
mostrar a lógica do funcionamento do campo artístico do que o senão uma manifestação exemplar, é uma impostura bem
destino dessas tentativas - na aparência, radicais - de subversão: fundamentada, um abuso de poder legítimo, coletivamente
pelo fato de aplicarem ao ato de criação artística uma intenção de irreconhecido, portanto, reconhecido. O artista que, ao escrever
escárnio já anexada à tradição artística por Duchamp, elas são seu nome em um ready-ma de, produz um objeto, cujo preço de
imediatamente convertidas em "ações" artísticas, registradas como mercado não tem qualquer relação com seu custo de produção é
tais e, assim, consagradas pelas instâncias de celebração. A arte coletivamente incumbido da execução de um ato mágico que nada
não pode deixar manifestar-se livremente a verdade sobre a arte seria sem toda a tradição da qual seu gesto é o coroamento, sem o
sem a ocultar, fazendo desse desvelamento uma manifestação universo dos celebrantes e crentes que lhe dão sentido e valor por
artística. E é significativo, ao contrário, que todas as tentativas referência a essa tradição. É inútil procurar fora do campo, ou seja,
para colocar em questão o próprio campo da produção artística, a no sistema de relações objetivas que o constituem, nas lutas das
lógica de seu funcionamento e as funções que ele desempenha, quais ele constitui o lugar, e na forma específica de energia ou de
pelas vias altamente sublimadas e ambíguas do discurso ou ebs capital que nele se engendra, o princípio do poder "criador", essa
"ações" artísticas, como em Maciunas ou Flynt, sejam não menos espi'cie de Illana ou carisma inefável, celebrado pela tradição.
necessariamente votadas a serem condenadas, ati' mesmo, pelos Como se vi::, i, verdadeiro e, ao mesmo tempo, falso, dizer
guardiães mais heterodoxos da ortodoxia arlísliCl porquc', ;lO que o valor mercantil da obra de arte não tem qualquer relação
recusarem entrar no jogo e contestar a arte nas regras, ou seja, com seu custo de produção: verdadeiro, se levarmos em
artisticamente, seus autores questionam não uma forma de entrar consideração somente a fabricação do objeto material, da qual o
no jogo, mas o próprio jogo e a crença que lhe serve de único responsável é o artista; mas, falso, se entendermos a
fundamento, única transgressão inexpiável. produção da obra de arte como objeto sagrado e consagrado, produto
de um imenso empreendimento de alquimia sodal na qual colabora,
o Irreconhecimento Coletivo com a mesma convicção e com benefícios bastante desiguais, o
conjunto dos agentes envolvidos no campo da produção, ou seja,
tanto os artistas e os escritores obscuros quanto os mestres
A eficácia quase mágica da assinatura não é outra coisa consagrados, tamo os críticos e os editores quanto os autores, tanto
senão o poder, reconhecido a alguns, de mobilizar a energia os clientes entusiastas quanto os vendedores convencidos. Trata-
simbólica produzida pelo funcionamento de todo o campo, ou seja, se de contribuições, incluindo as mais obscuras, ignoradas pelo
a fé no jogo e lances produzidos pelo próprio jogo. Em matéria de materialismo parcial do economicismo; no entanto, basta levá-las ) ;
magia, como Mauss já havia observado com justeza, a questão não em consideração para verificar que a produção da obra de arte, ou I
é tanto saber quais são as propriedades específicas do mago, nem seja, do artista, não é uma exceção à lei da conservação da energia
I,
Plerre Bourdieu
Dominantes e Pretendentes diferentes. Ela estabelece-se sempre entre a produção restrita e a
grande produção (o comercial), ou seja, entre o primado atribuído à
Pelo fato de que os campos da produção de bens culturais produção e ao campo dos produtores ou, até mesmo, ao subcampo
são universos de crença que só podem funcionar na medida em dos produtores para produtores, e o primado atribuído à difusão, ao
que conseguem produzir, inseparavelmente, produtos e a público, à venda, ao sucesso avaliado pela tiragem; ou ainda, entre
necessidade desses produtos por meio de práticas que são a o sucesso diferido e duradouro dos clássicos e o sucesso imediato e
denegação das práticas habituais da "economia", as lutas que se temporário dos best-sellers, ou, por último, entre uma produção
desenrolam aí são conflitos decisivos que comprometem que, fundada na denegação da "economia" e do lucro (portanto, da
completamente a relação com a "economia": aqueles que acreditam tiragem, etc.), ignora ou desafia as expectativas do público
nisso e que, tendo como único capital sua fé nos princípios da constituído e não pode ter outra demanda senão aquela que ela
economia da má-fé, pregam o retorno às fontes, a renúncia absoluta mesma produz, embora a prazo, e uma produção que garante seu
e intransigente dos começos, englobam na mesma condenação sucesso e o lucro correlato, ajustando-se a uma demanda
tanto os vendilhões do templo que introduzem determinadas preexistente. As características do empreendimento comercial e as
pratIcas e interesses comeráais no terreno da fé e do sagrado, caracleríslicas do empreendimento cultural, como relação mais ou
quanto os fariseus que tiram benefícios temporais do capital de menos dencgada ao empreendimento comercial, são indissociáveis.
consagração acumulado mediante a submissão exemplar às As difercnças na relação com a "economia" e com o público formam
exigências do campo. É assim que a lei fundamental do campo se urna só coisa com as diferenças oficialmente reconhecidas e
encontra, incessantemente, lembrada e reafirmada pelos novos idenlificadas pelas taxinomias vigentes no campo: assim, a oposição
pretendentes que têm o maior interesse pela dcncgação do entre a arte "verdadeira" e a arte comercial abrange a oposição entre
in teresse. os simples empresários que procuram o lucro econômico imediato
e os empresários culturais que lutam para acumular um lucro
A oposição entre o comercial e o "não comercial" encontra-
propriamente cultural, nem que fosse mediante à renúncia
se por toda parte: ela é o princípio gerador da maior parte dos
provisória ao lucro econômico; quanto à oposição que é estabelecida
julgamentos que, em matéria de teatro, cinema, pintura, literatura,
por estes últimos entre a arte consagrada e a arte de vanguarda ou,
pretendem estabelecer a fronteira entre o que é arte e o que não o
se quisermos, entre ortodoxia e heresia, ela faz a distinção entre
é, ou seja, praticamente entre a arte burguesa e a arte intelectual,
aqueles que dominam o campo da produção e o mercado pelo capital
entre a arte tradjeional e a arte de vanguarda, entre a rive droite e a
econômico e simbólico que eles haviam conseguido acumular no
rive gauche* .12 Se esta oposição pode ter um conteúdo
decorrer das lutas anteriores, graças à uma combinação
substancialmente desigual e designar realidades bastante diferentes
particularmente bem-sucedida das capacidades contraditórias
segundo os campos, no entanto, permanece estruturalmente
especificamente exigidas pela lei do campo, e os novos pretendentes
invariante em campos diferentes e, no mesmo campo, em momentos
que não podem, nem pretendem ter clientes diferentes dos de
seus concorrentes, ou seja, produtores estabelecidos, cujo crédito
• Rive droite, rive gauche (literalmente: "margem direita", "margem esquerda"), fica ameaçado ao adotarem a prática de impor produtos novos ou
entenda-se do rio Sena ao atravessar Paris: a rive gauche é considerada o centro
cultural da cidade. recém-chegados com quem rivalizam em busca de novidade.
mercado através de estratégias de subversão que não poderão etc.), das obras e das próprias empresas teatrais.
prodigalizar, a prazo, os ganhos denegados a não ser com a condição É, com efeito, simultaneamente sob todos esses aspectos
de derrubarem a hierarquia do campo sem contrariarem os que o "teatro de pesquisa" se opõe ao "teatro de bulevar": por
princípios que lhe servem de fundamento. Assim, são condenados um lado, os grandes teatros subvencionados (Odéofl, Théâtre de
a promoverem revoluções parciais que deslocam as censuras e i'Esr p:zrisicn, Théâtre NatÍonaJ PopuJilÍre) e os poucos pequenos
transgridem as convenções, mas em nome dos próprios princípios teatros da rive g:llIche ( VÍeux CoJombier, !vfofltpamasse, Gaston
Pierre Bourdieu
,
Baty, etc.),13 empresas que, do ponto de vista econômico e
cultural, correm riscos, sempre ameaçadas de falência, e que
propõem, a preços relativamente reduzidos, espetáculos em
ruptura com as convenções (no conteúdo e/ou na encenação) e
destinados a um público jovem e Íntelectual (estudantes,
intelectuais, professores); por outro lado, os teatros burgueses
(ou seja, por ordem de saturação crescente em propriedades
pertinentes: Cymnase, Théâtre de ParÍs, AnwÍne,
Ambassadeurs, AmbÍgu, MÍChodÍf~re, VarÍétés) , empresas ;lUl;lPOW
'n
Pierre Bourdieu .4 Produção da Crença M
f
'i
A Produção da Crença
,
RÍve droÍte e rÍve gauche No caso dos teatros e galerias, é que a distribuição no
espaço se aproxima de forma mais visível da distribuição no campo;
à semelhança dos editores, todos concentrados na Tive gauche
o fato de que as posições e as oposições constitutivas (com oposições, porém, entre o 6" bairro, mais inre1ecrual, e o 5°,
dos diferentes campos se manifestam, muitas vezes, no espaço, mais escolar), os órgãos de imprensa escapam à polarização pelo
não nos deve induzir ao erro: o espaço físico não passa do suporte fato de sua concentração no mesmo bairro (Bonne Nouvel1e), mas
vazio das propriedades sociais dos agentes e instituições que, observa-se que aqueles que estão implantados fora dessa zona
estando distribuídos por essa superfície, transformam-na em um não se distribuem ao acaso: é assim que no 16" e 8° bairros se
espaço social, socialmente hierarquizado: em uma sociedade encontram, sobretudo, os semanários especializados em economia
dividida em classes, qualquer distribuição particular no espaço (L'Expansion, Les Échos) ou jornais de direita, enquanto nos
encontra-se socialmente qualificada por sua relação com a bairros periféricos do norte de Paris encontram-se, de preferência,
distribuição no espaço das classes e frações de classe, assim como órgãos de imprensa de esquerda ou extrema-esquerda (Sécollrs
de suas propriedades, terras, casas, etc. (o espaço social). Pelo ROllge, La Pensée, NOllvelle Revlle Socialisre, etc.) e, na Tive
fato de que a distribuição dos agentes e instituições ligados às gallchc, os semanários e revistas inrelecruais. Quanto às lojas de
diferentes posições constitutivas de um campo particular não é luxo, estas concentram-se em uma área bastante restrita em torno
aleatória, os ocupantes das posições dominantes nos diferentes da rue dll [/llbOllrg Sainr-Honoré, que reagrupa todas as instituições
campos que tendem a orientar-se em direção a posições que ocupam a posição dominante em seus respectivos campos
dominantes (ou seja, ocupadas pelos dominantes) do espaço (unicamente na rue dll [wbollrg Sainr-HoJloré, é possível recensear
social, as distribuições espaciais dos diferentes campos tendem 9 estabelecimentos de alta costura, 19 salões de cabeleireiro de
a sobrepor-se, como é o caso em Paris com a oposição, válida alto nível, 19 alfaiatarias e camiseiros, 37 institutos de beleza, 14
praticamente para todos os campos (com exceção das editoras, lojas de peles, 15 lojas de botas, 11 selarias e marroquinarias, 9
reagrupadas na úve gauche), entre a úve droirc e a riVe' g.wchc. joalharias e ourivesarias, 28 antiquários, 25 galerias e marchands
Estaríamos impedidos de compreender as propriedades mais de quadros, 17 decoradores, 13 artistas, 3 escolas de estética, 5
específicas da concentração no espaço das lojas de luxo (a me editores de luxo e de publicidade, 2 lojas de aluguel de material
du fallbourg Sainr-Honoré e a me Royalc ou, em Nova York, de recepção, um banquete,iro, 2 salas de concerto, 2 escolas e
Madison Avenue e Fjfrh Avenue) , se não observássemos, por clubes de equitação, etc.). E, portanto, somente na relação com o
um lado, que as diferentes classes de agentes e instituições que conjunto dos estabelecimentos de cada uma das categorias de
as constituem (por exemplo, os antiquários ou as galerias) comércio que se pode compreender a simbólica da distinção que,
ocupam posições homólogas em campos diferentes e, por outro, especificamente, caracteriza tais instituições: referência à unicidade
que o mercado com base local constituído pelo reagrupamento ou exclusividade da criação ("criador", "criador exclusivo", etc.) ,
dessas instituições oferece o conjunto dos bens (no caso muitas vezes, marcada pela evocação analógica da obra de arte ou
particular, o conjunto dos símbolos distintivos da classe) do criador artístico, afetação gráfica das tabuletas, invocação da
correspondentes a um sistema de preferências. Em suma, a tradição (letras góticas, data da fundação da casa, "de pai para
representação cartográfica da distribuição no espaço de uma classe filho", etc.), nomes nobres, uso de palavras e expressões inglesas,
de agentes e instituições constitui uma técnica de objetivação tais como a inversão (o francês desempenhando o mesmo papel
bastante poderosa com a condição de que se saiba ler na planta em Nova York), emprego de parelhas nobres, muitas vezes,
(da página 37) a relação construída entre a estrutura do sistema tomadas de empréstimo ao inglês - hair-dresser ou salão de
das posições constitutivas do espaço de um campo e a estrutura cabeleireiro de alto nível (para dizer, salão de cabeleireiro); corte
do espaço social, por sua vez, definido pela relação entre bens sryling ou alta costura; shirrmarker (para dizer camiseira);
distribuídos no espaço e agentes definidos por capacidades fabricante de botas; galeria (para dizer antiquário); butique (para
desiguais de apropriação de tais bens. ' dizer loja); decorador (para dizer comerciante de móveis), etc.
00
M pjerre Bourdjeu A Produção da Crença
,
Jogo de Espelhos que seja a fala, a cortina preta da boca de cena e o andaime ajudam
a criar o clima"25). Em suma, autores, peças, ailrmações, palavras
que são e pretendem ser "corajosamente leves", joviais, alegres,
Esta estrutura não data de hoje: quando Françoise Dorin, vivas, sem problemas, como-na-vida, por oposição a "pensativas",
em Le Tournant*, um dos grandes sucessos do teatro de bulevar, ou seja, tristes, enfadonhas, com problemas e obscuras. "Nossa
coloca um autor de vanguarda nas situações mais típicas do bunda era alegre, enquanto a deles era pensativa".26 Oposição
vaudeville**, ela limita-se a encontrar - as mesmas causas incontornável já que estabelece a separação entre intelectuais e
produzindo os mesmos efeitos - as estratégias que, desde 1836, burgueses, inclusive nos próprios interesses que, da forma mais
Scribe utilizava, em La Camaraderie***, contra Delacroix, Hugo e manifesta, têm em comum. Todos os contrastes que Françoise Dorin
Berlioz: com efeito, para tranqüilizar o bom público contra as e os críticos burgueses acionam em seus julgamentos sobre o teatro
audácias e extravagâncias dos românticos, ele denunciava Oscar (sob a forma de oposições entre a "cortina preta da boca de cena"
Rigaut, célebre por sua poesia fúnebre, como um bonacheirão, em e o "belo cenário", "as paredes bem iluminadas, bem decoradas",
suma, um homem como os outros, sem nenhuma condição para assim como "os comediantes bem limpos, bem vestidos") e, de
apelidar os burgueses de épiciers****Y forma mais geral, em toda a sua visão do mundo, encontram-se
Espécie de teste sociológico, a peça de Françoise Dorin, condensados na oposição entre a "vida sombria"* e a "vida
que encena a tentativa de um autor de bulf'var para se converter prazerosa"; aliás, veremos que tal visão encontra seu fundamento
em autor de vanguarda, permite observar de que maneira a oposição em duas maneiras bastante diferentes de denegar o mundo
- que estrutura todo o espaço da produção cultural- funciona nas s()ci.li. 2~'
mentes, sob a forma de sistemas de classificação e de categorias Seríamos tentados a imputar, às regras da caricatura cômica,
de percepção, e, ao mesmo tempo, na oiJjetiviciac!c, através dos a grosseria das oposiçôes utili=adas e a transparente ingenuidade
mecanismos que produzem as oposições complementares entre das estratéaias
b
acionadas, se n5.o encontrássemos no decorrer das
os autores e seus teatros, entre os críticos e seus jornais. É possívc1 páginas o equivalente no discurso mais comum dos críticos bem-
extrair da própria peça os retratos contrastantes dos dois teatros: educados: assim, tendo sido obrigado, excepcionalmente, a elogiar
por um lado, a clareza l ' e a habilidade técnica,19 a alegria, a leveza 2ü um grupo teatral de vanguarda (Théâtre de l'Est parisien), Jean-
e a desenvoltura,21 qualidades "bem francesas"; por outro, a Jacques Gautier mobiliza o conjunto das oposições que organizam
"pretensão camuflada sob um despojamento ostensivo",22 "o blefe a peça de Françoise Dorin: "É raro que um espetáculo montado
da apresentação",23 a seriedade, a ausência de humor e a falsa por um jovem animador, que trabalha em um centro cultural,
gravidade,H a tristeza do discurso e dos cenários ("por melhor tenha este frescor, esta jovialidade. É raro ver alguém no início
de sua carreira deixar a linha fúnebre para se dirigir
deliberadamente em direção à alegria. De costume, o bom gosto
* DOR[N, F. Le Toumant [A virada), Paris, Jul!iard, 1973.
e o zelo servem um ideal que pranteia e chafurda no miserabilismo,
** Comédia ligeira e divertida, de enredo fértil em Intrigas e maquinações, que
combina pantomima, dança e/ou canções. caro à esquerda de luxo. Aqui, pelo contrário, tudo é acionado
*** Litera[mente, "sociedade de elogio mútuo". Eugêne Scribe (179[-1861), autor
teatral francês, membro da Academia Francesa; seus vaudevilles são Inspirados
nos conflitos sociais e morais da burguesia de seu tempo.
* No ori~inal v/e en no/r, literalmente, "vida no breu"; assinale-se que a cortina da
**** Literalmente, "comerciantes de especIarias" e, por extensão, proprietários de
Doca de ~ena 'é noir, ou seja, preta. Ainda vale referir a frase seguInte: "vie en rose',
mercearIa; em sentido pejorativo, trata-se de pessoas com espírito acanhado, cujas
idéIas não se elevam acima de seu negócio. literalmente, "vida cor-de-rosa".
o -t
P/CITe !3ourdieu I
,
para homenagear a alegria de viver e engendrar o bom humor".2R detesta no "teatro de H.L.M. *" (Maurice Rapin fala de "Tartllffe
A seqüência do artigo permite constituir a série completa das de H.L.M."), bom para pequeno-burgueses do subúrbio (a peça
palavras-chave da estética "burguesa": jovialidade, alegria de viver, de Vancovitz - sÍc - ou seja, o autor de vanguarda caricaturado por
bom humor, assim como, verve, animação, vivacidade, Françoise Dorin, representava-se "em um galpão do Sudoeste
engenhosidade ("espirituoso"), movimen to ("movimentado"), parisiense"3l) é a pretensão (estigmatizada também por Françoise
ousadia, harmonia ("figurinos de linha harmoniosa"), cores ("cores Dorin e Jean-Jacques Gautier), palavra-mestra do menosprezo
bem escolhidas"), sentido do equilíbrio, ausência de pretensão, burguês em relação à "lentidão crispada" e "penosa afetação" da
naturalidade, delicadeza, honestidade, graça, destreza, inteligência, profundidade ou originalidade, diametralmente opostas à
tato, vida, riso. Foi necessário à ComédÍe françaÍse um Cyrano de naturalidade e discrição de uma arte confiante de seus meios e
Bergerac para que a axiomática do gosto burguês pudesse exprimir- fins. 32
se sem segundas intenções: "admirável técnica", "engraçado", Colocados diante de um objeto tão claramente organizado
"alegre", "encanto das palavras", "festa para os olhos, ouvidos e segundo a oposição canônica, os críticos - por sua vez, distribuídos
coração", "jubilação", "enxurrada de invenções e achados", "pedaço no espaço da imprensa, segundo a estrutura que se encontra na
de alegria", "fastuosos acordos", "elegância cintilante", "ação origem do objeto classificado e do sistema de classificação que
dinâmica", "ardor", "pureza", "frescor", "brilhante encenação", eles aplicam - reproduzem, no espaço dos julgamentos pelos quais
"alegria e equilíbrio dos fastuosos cenários e adoráveis figurinos". eles o classificam e se classificam, o espaço no qual eles próprios
E como seria possível deixar de citar o hino final ao ideal realizado são classificados (círculo perfeito do qual só é possível sair,
do teatro burguês: "Trata-se de um festim de altivez, uma exibição objetivando-o). Dito por outras palavras, os diferentes julgamentos
de talento, um festival de ardor, um balé de flamas romanescas,
proferidos sobre Le Toumant variam, em seu conteúdo e forma.
um jato contínuo de alegria e fantasia, um fogo de artifício de
segundo o órgão de imprensa no qual eles se exprimem, ou seja,
sagacidade, um arco-íris de bom gosto, um leque de verve, uma
desde a maior distância do crítico e de seu público ao mundo
fanfarra de cores, um encantamento lírico, um terno milagre em
intelectual até a major distância à peça de Françoise Dorin e a seu
que caracola e vibra a boa disposição da juventude de todos os
público burguês e a menor distância ao mundo intelectual. 33
tempos"?29
As mesmas categorias de percepção e apreciação, embora
conduzindo a um veredicto negativo, estão em ação em um artigo - o Jogo da Homologia
escrito por outro crítico, Maurice Rapin, do mesmo jornal
cotidiano - sobre o Tartllffe, encenado por Planchon: "É difícil As insensíveis evoluções do sentido e do estilo que, de
mostrar, em um só espetáculo, um grau mais elevado de pretensão, L'Aurore a Le FÍgaro e de Le FÍgaro a L'Express, conduzem ao
mau gosto e incompetência. Pretender ser original a qualquer preço discurso neutro do Le Monde e, daí, ao silêncio (eloqüente) de Le
é uma tentação perigosa. Ao fazer tal exercício às custas de Marlowe Nouvel Observateur, só se compreendem verdadeiramente se
ou Brecht, trata-se ainda assim de um inconveniente sem
gravidade; no entanto, quando a vítima é MQliere, não seria possível * Sigla de Habjtatjon a Loyer Moderé, literalmente, "habitação com aluguel
moderado": organismo público destinado a ajudar as famílias de baixa renda a
esperar a menor indulgência".30 Tudo o que a estética burguesa encontrar uma moradia.
(;
o
de instrução dos leitores (que constitui - aqui, como alhures - um u
fundo, a oposiç§o dos dois rc:a[TOS, e a das duas concepções dI vida um movimento circular: Françoise Dorin expõe intencionalmente os
po/írica e da vida pril'ada subfacenre. O diálogo brilhanre, replew de clichês do Bulevar, questionados por Philippe que, com sua voz, se pemlite
palavras apropriadas e fórmulas, apresenta, muitas vezes, sarcasmos fazer uma veemente crítica da burguesia. No segundo patamar, ela
vingadores. Mas, Romain não é uma caricatura, aliás, é muito menos confronta seu discurso com o de um autor jovem, criticando-o com o
imbecil do que a média dos profissionais de vanguarda. Philippe mesmo tipo de veemência. Por último, a trajetória reconduz a arma para
desempenha o melhorpapel porque se encontra em seu terreno. A autora o palco do bulevar, as vaidades do mecanismo são desmascaradas pelos
de 'Comme au théâtre' [Como no teatro] pretende insinuar, de forma procedimentos do teatro tradicional que, por conseqüência, nada
amável, que é no Bulevar que falamos, nos movimentamos 'como na perderam de seu valor. Philippe pode declarar-se um autor 'corajosamente
vida'; ora, isso é verdade, embora seja questão de uma verdade parcial e leve', imaginando 'personagens que falam como todo o mundo'; ele
não somente porque se trata de uma verdade de c1asse",)S Aqui, a pode reivindicar uma arte 'sem fronteiras', portanto, apolítica, A
aprovação, que não deixa de ser total, já aparece matizada demonstração é, no entanto, totalmente falseada pelo modelo de autor
pelo recurso sistemático a formulações ambíguas do próprio de vanguarda escolhido por Françoise Dorin. Vankovicz é um epígono
ponto de vista das oposições em jogo: "Eis algo que deverá de Margllerite Duras, existencialista retardado, vagamente militante; é
obter imediatamente sucesso", "uma inteligência libertina, l'X.lt;'~la(bll1ente caricatural, como o teatro denunciado na peça (11. cortina
um perfeito domínio dos cordelinhos do ofício", "Philippl' pn'la d.l boca de cena e o andaime ajudam a crúr o clima" ou este título
desempenha o melhor papel", são outras tantas fórmuLls dl' peç.!: 'Vous prl'l1drez biel1l1n peu d'infini dans votre café, monsieur
Karsov' [Senhor Karsov, com certeza, vai aceitar um pouco de infinito
que podem ser entendidas como pejorativas. E aClll1lece
em seu café]). O público jubila com essa pintura irrisória do teatro
mesmo que a gente possa sUSpeiLlr, atLlvl's da i/c'llc'c':.I(.io,
moderno; sente-se provocado de forma agradável pela crítica contra a
um pouco da outra verdade ("Somente os pedantes
burguesia na medida em que esta retoma vigor às custas de uma vítima
ranzinzas discutirJo, no [lindo ... ") ou, até mesmo, da
execrada que recebe dela o golpe de misericórdia (...). Na medida em que
verdade sem mais, embora dupLimente neutralizada, pela
reflete o estado do teatro burguês e deixa à vista seus sistemas de defesa,
ambigüidade e peLi del1egação ("e não somente porque se
o texto de Le Toumanrpode ser considerado como uma obra importanre.
trata de uma verdade cle classe"),
São raras as peças que deixam filtrar tanta inquietação em relação a uma
Por sua vez, o jornal Le Monde oferece um perfeito ameaça 'exterior' e conseguem neurralizá-la com tamanha tenacidade
exemplo de discurso ostensivamente neutro, não tomanclo
inconsCÍente".39
partido, como dizem os comentaristas esportivos, por nenhuma
A ambigüidade já cultivada por Robert Kanters atinge, aqui,
das duas posições opostas, ou seja, o discurso abertamente
político de L'Aurore e o silêncio desdenhoso de Le Nouve! seu ápice: o argumento é "simples ou simplista", à escolha do
Observateur. lêitor; a peça desdobra-se, oferecendo ainda duas obras à escolha,
"O argumento simples ou simplista complica-se por uma formulação ou seja, "uma crítica veemente", embora "neutralizável", contra a
porparamares bastante sutil, como se houvesse sobreposição de duas burguesia e uma defesa da arte apolítica, A quem tivesse a
peças: uma, escrita por Françoise Dorin, autora convencional; e outra ingenuidade de perguntar se o crítico é "a favor ou contra", se ele
inventada por Philippe Roussel que tenta pegar le toumanr ['a virada'] julga a peça "boa ou ruim", poderia receber duas respostas: em
em direção ao teatro moderno, Esse jogo descreve, como um bumerangue, rrimeiro lugar, um esclarecimento do "informador objetivo" que,
Píerre R()[/u/icu
por amor à verdade, deve lembrar que o autor de vanguarda risadas, quando é necessário, nas mais conformistas situações em que
representado é "exageradamente caricatural" e que o "público opera o espírito de racionalista bonachão. A conivência é perfeita e os
jubila" (mas sem que se possa saber de que modo o crítico se situa atores são cúmplices. Trata-se de uma peça que poderia ter sido escrita há
em relação a tal público, portanto, que sentido tem essa jubilação); dez, vinte ou trinta anos".41
em seguida, no termo de uma série de julgamentos ambíguos, em
virtude de prudências, matizes e atenuações universitárias ("na "Françoise Dorin é uma grande malvada. Uma neurralizadora de
medida em que ... ", "pode ser considerado como... "), a afirmação primeira ordem duplicada de uma afetação fora do comum. Sua peça,
de que Le Toumant é uma "obra importante", mas - que fique Le Toum.wt, é uma excelente comédia de Bulevar, cujas molas essenciais
bem claro - como documento sobre a crise de civilização são a má-fé e a demagogia. A senhora pretende comprovar que o teatro
contemporânea, à semelhança do que, sem dúvida, poderia ser de vanguarda não passa de comida para gatos. Para fazer tal
dito em ScÍences PO*.40 demonstração, ela pega cordelinhos bem grossos e - inútil de dizer-
Apesar de, por si só, o silêncio de Le Nouvel Observatellr lhes - basta à escritora dar um nó para que o público morra de riso e
significar, sem dúvida, alguma coisa, podemos ter uma idéia grite: mais um, ma's um l A autora, que não esperava outra coisa, acaba
relação a esse texto ao lermos a crítica, publicada nessa revista com o nollll' de VaI1Kovicz - será necessário explicar? -, confrontado a
situaçôl's ridícuLls, desconfortáveis e bem pouco honestas, para
sobre a peça de Félicien Marceau, La prellve par qll,/f['(', ou ;1 crítica
comprovar que esóc homenzinho não é menos interesseiro, tampouco
sobre Le TOllmant que Philippe Tesson, na época Chl'!l' dl' i'('d,lÇ';-l(}
menos burguês, ào que vocês e eu próprio. Que bom senso, Madame
de Combar, escreveu para Lc Cal/arei cllcÍJ;/II/(;' ':
Dorin, que lucidez e que franqueza! A senhora, pelo menos, tem a
"Não acho que seja necessário designar por teatro as rL'uIliôL'S lllundanas
coragem de exprimir suas opiniões, aliás, opiniões muito saudáveis e
de comerciantes e Ilwlheres de negócios no decorrer das quais um ator
bem típicas dos fr anceses". 42
célebre e rodeado por pessoas bem-educadas recita o texto laboriosamente
" '
•
consegue funcionar respaldado na conivência total emre o autor e cinismo calculista - por exemplo, a busca do sucesso a qualquer
os espectadores (eis a razão pela qual a correspondência entre as preço, inclusive pelo uso da provocação e escândalo, argumento
categorias de teatros e as divisões da classe dominante é, neste preferencialmente da rÍvc droite; ou pelo servilismo interesseiro
ponto, tão estreita e visível) constitui a melhor demonstração de com o tópico, de preferência, da rive gauche, do "criado da
que o sentido e o valor das palavras (e, sobretudo, "palavras burguesia". De fato, as objetivações parCÍais da polêmica
apropriadas") dependem do mercado em que são colocadas; de interesseira (da qual dependem quase todos os trabalhos
que as mesmas frases podem receber sentidos opostos quando se dedicados aos intelectuais) deixam escapar o essencial ao
dirigem a grupos animados por pressupostos antagonistas. Ao descrever como o produto de uma premeditação consciente o
apresentar diante de um público de bulevar as desventuras de um que é, de fato, o produto do encontro quase miraculoso entre
autor de vanguarda, Françoise Dorin limita-se a explorar a lógica dois sistemas de interesses (que podem coexistir na pessoa do
estrutural do campo da classe dominante; assim, ela volta contra o escritor burguês) ou, mais exatamente, da homologia estrutural
teatro de vanguarda a arma preferencialmente utilizada por este e funcional entre a posição de determinado escritor ou artista
contra a tagarelice "burguesa" e contra o "teatro burguês" que no campo da produção e a posição de seu público no campo das
reproduz seus truísmos e clichês (estamos pensando em Ionesco
classes e das frações de classe. Os pretensos "escritores de
ao descrever a CantatrÍce chauve ou jacques como "uma espécie
serviço" têm excelentes razões para pensar e professar que,
de paródia ou caricatura do teatro de bulevar, um teatro de bulevar
propriamente falando, não servem a ninguém: objetivamente,
que se decompõe e se torna louco"): ao quebrar a relação de sil11bi()sc
eles só estão a serviço porque servem, com toda a sinceridade e
ética e estética que une o discurso intelectual a seu público, ela o
transforma em uma seqüência de a{jrIlJ:Jç"ÔL'S d, 'SC.I hid.ls q Ul' pleno irreconhecimento de causa, seus próprios interesses, ou
chocam ou provocam o riso porque não são prollllllciad;ls no [ligar seja, interesses específicos, altamente sublimados e
e diante do público convenientes, ou seja, no sentido verdadeiro, eufemizados, tais como o interesse por urna forma de teatro ou
uma paródia, discurso que só pode instaurar com seu público a de filosofia que está logicamente associado a uma certa posição
cumplicidade imediata do riso porque soube obter dele - se é que em um certo campo e que (salvo nos períodos de crise) é bem
de antemão já não tinha essa certeza - a revocação dos pressupostoS feito para ocultar, aos próprios olhos de seus defensores, as
do discurso parodiado. implicações políticas nele contidas. A lógica das homologias faz
com que as práticas e as obras dos agentes de um campo da
produçãO, especializado e relativamente autônomo, sejam
Os Fundamentos da Conivência
necessariamente sobredetermínadas; faz com que as funções
desempenhadas por elas nas lutas internas se dupliquem
Convém abstermo-nos de aceitar como explicação inevi tavelmen te de funções externas, as que elas recebem nas
suficiente a relação, termo a termo, entre o discurso dos críticos lutas simbólicas entre as frações da classe dominante e - pelo
e as propriedades de seu público: se a representação polêmica menos, a prazo - entre as classesY O serviço prestado pelos
elaborada por cada um dos dois campos a respeito de seus críticos a seu público é tanto mais precioso na medida em que
adversários reserva tal lugar a esse modo de explicação é porque a homologia entre sua posição no campo intelectual e a posição
permite desqualificar, por referência à lei fundamental do campo, ele seu público no campo da classe dominante é o fundamento
as escolhas estéticas ou éticas ao descobrir, em sua origem, o ele urna conivência objetiva (fundada nos mesmos princípios
simbólica) só é possível - e se realiza - no caso de um acordo (tributo devido à divulgação). É esse domínio prático que permite
perfeito, imediato, entre as expectativas inscritas na posição sentir e pressentir, fore? de qualquer cinismo calculista, "o que há
ocupada (em um universo menos consagrado, dir-se-ia, "a a fazer" e onde fazê-lo e a maneira como e com quem -
definição do posto") e as disposições do ocupante. Não podemos considerando tudo o que foi feito, tlldo o que se faz, todos aqueles
compreender o ajustamento das disposições às posições (que que o fazem e onde o fazem. 52 A escolha de um lugar de
serve de fundamento, por exemplo, ao ajustamento do jornalista publicação, editor, revista, galeria, jornal, só é tão importante
ao jornal e, ao mesmo tempo, ao público desse jornal, ou o porque, a cada autor, a cada forma da produção e do produto,
ajustamento dos leitores ao jornal e, ao mesmo tempo, ao corresponde um lugar natural no campo da produção; além disso,
jornalista) se ignorarmos o fato de que as estruturas objetivas do os produtores ou os produtos que não estão no devido lugar,
campo da produção estão na origem das categorias de percepção mas, como se diz, "deslocados", estão mais ou menos condenados
e apreciação que estruturam a percepção e a apreciação de seus ao fracasso: todas as homologias que garantem um público
produtos. É, assim, que pares antitéticos de pessoas (todos os ajustado, críticos compreensivos, etc., àquele que encontrou seu
mestres influentes) ou de institllições, jornais (Le Fig:no/ rI' lugar na estrutura funcionam, pelo contrário, contra aquele que
iVouvel Observateur ou, em outra escala, por referência a outro se desviou de seu lugar natural. Do mesmo modo que os editores
contexto prático, Le Nouvel Observac('ur/ L'HulIl,lIliu;', etc), de vanguarda e os produtores de besc-sellers estão de acordo
teatros (Rive droice/Rive gauche, privados/subvencionados, etc.), para afirmar que, inevitavelmente, haveriam de se dirigir para o
galerias, editoras, revistas, costureiros, podem funcionar como fracasso se se aventurassem a publicar obras objetivamente
esquemas classificatórios que só existem e são significativos em destinadas ao pólo oposto do espaço da edição - best-selJers na
suas relações mútuas, além de permitirem a identificação dos editora de Lindon, nouveau roman na editora de Laffont - assim
interlocutores e de se situarem com precisão. Como se vê melhor também, segundo á lei que pretende que não se prega senão a
do que alhures, no caso da pintura de vanguarda, somente o convertidos, um crítico só pode exercer ÍnfluênCÍa sobre seus
domínio prático dessas referências, espécie de sentido de leitores na medida em que estes lhe atribuem tal poder porque
orientação social, permite a movimentação em um espaço estão estruturalmente afinados com ele em sua visão do mundo
hierarquizado em que os deslocamentos contêm sempre a ameaça social, suas preferências e todo o seu habÍtus. Jean-Jacques
de uma desclassificação, em que os lugares, galerias, teatros, Gautier descreve muito bem essa afinidade eletiva que une o
editoras, fazem toda a diferença (por exemplo, entre a pornografia jornalista a seu jornal e, através dele, a seu público. Um bom
comercial e o erocismo de qualidade) porque, através deles, um diretor de Le Figaro, que se escolheu a si mesmo e foi escolhido
segundo os mesmos mecanismos, escolhe um crítico literário
p:ua Le Figaro baseado nestes critérios: "possui o tom que convém
* Jornal cotidiano, fundado em 1904, por Jean Jaures, líder do socialismo francês; para se dirigir aos leitores do jornal"; sem ter feÍro de propósito,
depois do congresso de Tours, em 1920, tornou-se o órgão de imprensa do Partido
Comunista. "fala naturalmente a língua de Le FÍgaro"; e haveria de ser "o
P/erre Bourd/cu
leitor-tipo" desse jornal. "Se amanhã, em Le Figam, eu começar censurados, portanto, eufemizados, que são assim produzidos por
a falar a linguagem da revista Les Temps Modemes, por exemplo, referência a fins puros e puramente internos, estejam sempre
ou da SdÍntes Chapelles des Lettres, deixarei de ser predispostos a desempenhar, por acréscimo, funções externas, o
compreendido e lido, portanto, escutado, porque estarei apoiado que acontece de uma forma tanto mais eficaz porque eles as ignoram
em certo número de noções ou argumentos que constituem e porque seu ajustamento à demanda não é o produto de uma
motivo de escárnio para o leitor."53 A cada posição corresponde busca consciente, mas o resultado de uma correspondência
um certo número de pressupostos, uma doxa, e a homologia das estrutural.
posições ocupadas pelos produtores e seus clientes é a condição
dessa cumplicidade que é tanto mais fortemente exigida quanto,
Tempo Longo e Tempo Curto
à semelhança do que se passa no teatro, o que se encontra
engajado for mais essencial e estiver mais próximo dos
investimentos decisivos. Pelo fato de que o domínio prático das É: ainda nas características dos bens culturais, e do
leis do campo orienta as escolhas pelas quais não só os indivíduos mcrcado onde são oferecidos, que reside o princípio
se agregam a grupos, mas também os grupos cooptam indivíduos, fundamcntal das diferenças entre os empreendimentos
é que se realiza com tanta freqüência o acordo miraculoso entre CUlllcrcu/s e os empreendimentos culturaÍs. Um
as estruturas objetivas e as estruturas incorpoLlcbs que permitc empreendimento encontra-se tanto mais próximo do pólo
aos produtores de bens culturais a produl,':ll), com lOlb a liberebdc comercial (ou, inversamente, mais afastado do pólo cultura!),
e sinceridade, de discursos objetivamcntc necessários e quanto mais direta ou cOD1pletamente os produtos oferecidos
esta produção inteiramente voltada para o futuro pressupõe Crescimento comparado das vendas de três obras
investimentos de elevado risco que tendem a constituir estoques publicadas por ÉditÍons de Minuit
de produtos em relação aos quais não se pode saber se voltarão
ao estado de objetos materiais (avaliados como tais, ou seja, Número acumulado
por exemplo, ao peso do papel) ou se terão acesso ao estado de dos exemplares vendidos
14.298 exemplares) a um volume acumulado de vendas de 64.897 '" '" '" '" '" '" '" '" '" '" '" '"
~ ~ ~ ~
'"
exemplares. Fonte: Éditions de Minuit.
Pierre ROllrdiell
os produtores tendem sempre a desvjar em seu benefício a confirmadas por diferenças, também decisivas, na relação com a
autoridade de que dispõem, portanto, a impor como única legítima "economia" que separam, entre as empresas de fundação recente e
sua variante própria da visão dominante do mundo. No entanto, a de pequeno porte, as pequenas editoras comerciajs, muitas vezes,
contestação das hierarquias artísticas instituídas e o deslocamento destinadas a um rápido crescimento, tais como La três, simples
herético dos limites socialmente admitidos entre o que merece ser Laffont no início, ou Orban, Authjer, Menges/o e as pequenas
conservado, admirado e transmitido, por um lado, e, por outro, o editoras de vanguarda, muitas vezes, votadas a um rápido
que não tem tal merecimento, só poderá exercer um efeito desaparecimento (Gafjfée, France AdeJe, Enrente, Phébus) , do
propriamente artístico de subversão se reconhecer tacitamente o mesmo modo que, na outra ponta do espectro, tais diferenças
fato e a legitimidade dessa delimitação, ao transformar o estabelecem uma distinção entre as grandes edjtoras e as enormes
deslocamento de tais limites em um ato artístico e ao reivindicar, e&toras, entre o grande editor consagrado como Gallimard e o imenso
assim, para o artista o monopólio da transgressão legítima dos limites "marchand de livros" como Nielsen.
entre sagrado e profano, portanto, das revoluções dos sistemas Sem entrarmos em uma análise sistemática do campo das
artísticos de classificação. galerias que, pelo fato da homologia com o campo da atividade
O campo da produção cultural é o terreno por excelência editorial, cairia em repetições desnecessárias, podemos observar
do enfrentamento entre as frações dominantes da classe dominante somente que, ainda aqui, as diferenças que separam as galerias
- que combatem aí, às vezes, pessoalmente e, quase sempre, por segundo sua antigüidade (e notoriedade), portanto, segundo o
intermédio dos produtores orientados para a defesa de suas id6a5 grau de consagração e o valor mercamil das obras que possuem,
e para a satisfação de suas prefêrêndas - e as frações dominacL1s que são confirmadas por diferenças na relação com a "economia".
estão totalmente envolvidas neste combate.';" Por mcio dcsse Desprovidas de escudeáa própria, as galeáas de venda (por
conflito, consuma-se, em um único e mesmo campo, a integração exemplo, Beaubourg) expõem, de maneira relativamente eclética,
dos diferentes subcampos socialmente especializados, mercados pintores de épocas, escolas e idades bastante diferentes (tanto
particulares completamente separados no espaço social e, até abstratos, quanto pós-surrealistas, alguns hiperrealistas europeus,
mesmo, geográfico, em que as diferentes frações da classe dominante novos realistas), ou seja, obras que, tendo sido produzidas em
podem encontrar produtos ajustados a seu gosto, tanto em matéria número reduzido (em razão de sua canonização mais avançada ou
de teatro, como em matéria de pintura, costura ou decoração. de suas disponibilidades decoraúvas) podem encontrar
A visão polêmka que, na mesma condenação, engloba todas compradores além dos colecionadores profissionais e semi-
as empresas poderosas do ponto de vista econômico ignora a distinção profissionais (entre os "executivos ainda jovens, ricos, elegantes
entre as empresas que, ricas somente de capital econômico, tratam e ociosos" e os "industriais da moda", como afirma um informante);
os bens culturais - livros, espetáculos ou quadros - como produtos assim, elas estão em condições de idemificar e atrair uma fração
comuns, ou seja, como uma fonte de lucro imediato, e as empresas dos pintores de vanguarda já reputados, oferecendo-lhes uma forma
que tiram benefício econômico, às vezes, muito importante, do capital de consagração um tanto comprometedora, ou seja, um mercado
cultural acumulado por elas, na origem, por estratégias fundadas na em que os preços são muito mais elevados do que nas galerias de
denegação da "economia". As diferenças no tamanho da empresa, vanguarda. 7I Pelo contrário, as galerias que, à semelhança de
avaliada pelo faturamento ou pelo númerú de empregados, são Sonnabenc/, Denise René ou Durand-Ruel, marcam datas da história
pjerre Bourdú:u
é evidente que o desaparecimento do fundador não basta para
As galerias e seus pintores
explicá-lo, embora possa acelerá-lo.
As diferenças que separam as pequenas empresas de Data de nascimento
vanguarda das grandes empresas e grandes edÍtoras se sobrepõem antes de 1900 1900-1909 1910-1919 1920-1929 1930-1939 1940 e depois
àquelas que podem ser estabelecidas, em relação aos produtos, entre
o novo, provisoriamente desprovido de valor "econômico", o velho,
definitivamente desvalorizado, e o antigo ou o clássko, dotado de Galeria Son nabend
aos pintores de sua idade (biológica) que expõem nas galerias de I Galeria IDenise René
L
rÍve droÍte, quanto aos pintores muito mais idosos ou já falecidos
que são expostos em tais galerias: separados uns dos outros pela I~ ~
111116
11--1 lTTT1--.
Ídade artÍstÍca que se avalia também em gerações, ou seja, em I
revoluções artísticas, eles têm em comum, com os primeiros, apenas
,------ I I
a idade biológica e, com os segundos, a quem se opõem, o fato de Gale ia Drouant
~
já associados à sua obra).
Se considerarmos a pirâmide das idades do conjunto dos lr-n-r1 h:rr I
pintores retidos75 por diferentes galerias, observamos, em primeiro [[]]] Número global de catálogos a Número global de artigos
D Número global de livros D Número total de pintores da faL'Ca etária
I
Para o artista de vanguarda que considera a idade artística como a esses pintores têm, quase sempre, como principal ponto de
medida da idade, o artista burguês é velho, seja qual for sua idade sustentação na vida artística parisiense o fato de fazerem parte
biológica, como é velho o gosto burguês por suas obras. No entanto, dessa Galeria que descobriu um grande número deles; em suas
I
a própria idade artística, que se denuncia através da forma de arte dependências, vários fizeram suas primeiras exposições e/ou foram
praticada, é uma dimensão de uma verdadeira maneira de viver a lançados pelo Prix Drouant destinado à pintura jovem. Tendo
j Vida de artÍsta e, em particular, a denegação da "economia" e dos
comprometimentos temporais que a define de modo específico.
passado, sem dúvida, com mais freqüência do que os pintores de
vanguarda, pelas Escolas de Belas Artes (cerca de 1/3 estudaram
I '-C
t'-- Pierre BOllrdiell /1 !)rodll~-jo d:z CrCf)l:'
t'--
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consideram-se, naturalmente, alunos deste ou daquele pintor e "Nascido em 1909. Pintor de paisagens e rerratos. Executou o retrara de
praticam uma arte acadêmica em seu estilo (quase sempre, pós- S. S.]oão XXIll, assim como os das celebridades de nossa época (Cécile
impressionista), em seus temas (maánas, retratos, alegoáas, SoreI, Mauriac, etc.) apresentados na Galerie Drollant, em 1957 e 1959.
cenas campestres, nus, paÍsagens de Pro vence, etc.) e em Laureado do Pá, des Peinrres Témoins de leur Temps. Participa dos
determinadas oportunidades (cenários de teatro, ilustrações de Grands Salons, dos quais é um dos organizadores. Participado Salon de
Pansorganizado pela Galerie Drouant, em Tóquio, em 1961. Suas telas
livros de luxo, etc.) que, muitas vezes, lhes garante uma
figuram em numerosos museus da França e coleções do mundo inteiro."
verdadeira carreira, balizada por diversas recompensas e
promoções, tais como prêmios e medalhas (66 laureados em um "Nascido em 1907. Começou por expomo Sa/on d'Auromne. Sua primeira
viagem na Espanha deixou-lhe marcas bastantes fortes; além disso, o
total de 133), e coroada pelo acesso a posições de poder nas
Premier Grand Prix de Rome (1930) acabou detenninando sua longa
instâncias de consagração e legitimação (um grande número deles
estada na Itália. Sua obra está associada, sobretudo, aos países
são sócios, presidentes ou membros do comitê dos grandes salons
mediterrâneos: Espanha, Irália, Provence. Aurar de ilustrações para livros
tradicionais) ou nas instâncias da reprodução e legitimação
de luxo, assim como de cenários para teatro. Membro do Institut de
(diretor de École des Beaux-Arts na Província; professores em
France. Exposições em Paris, Londres, Nova York, Genebra, Nice,
Paris, na École des Beaux-Arts ou Arts DécoratÍfs, consen-ador Bordeaux, Madri. Obras em numerosos museus de arte moderna e
de museu, etc.). Dois exemplos: coleções panicuLnes na França e no exterior. Oficial da Légion
"Nascido em 23 de maio de 1914, em Paris. Freq üen ra a Eco/,' des d'!JOllllt'IIl:" ;.
Beaux-Arts. Exposições individuais em Nova York e Paris. Faz as
ilustrações de duas obras. Participa dos (;rallds Sa/OllS de' P.llis. Falsificações ou fósseis?
Prêmio de desenho no Concollrs Généra/rJe 1932. 1vkcLJlh:llk PUla Reproduções do Catálogo da C:tlérie Drou;]m, 1967
Pierre Bourdieu x
A mesma observância das regras estabelecidas verifica-se o espaço dos escritores
entre os escritores. É assim que os intelectuais que têm obtido
sucesso intelectual (ou seja, o conjunto dos autores mencionados,
no período de 1972 a 1975, na "seleção" de La Quinzaine littéraire)
são mais jovens do que os autores de best-seJIers (ou seja, o conjunto
dos autores mencionados, no período de 1972 a 1974, no ranking
semanal de L'Express) e, sobretudo, são laureados com menos
freqüência pelos júris literários (31 % contra 63%) e, especialmente,
pelos júris mais "comprometedores" no entender dos intelectuais,
assim como menos freqüentemente reconhecidos com
condecorações (22% contra 44%). Enquanto os best-sellers são
editados, sobretudo, por grandes editoras - Grasset, Flammarion,
Laffont e Stock - especializadas nas obras de venda rápida, os autores
que têm obtido sucesso intelectual são publicados, em número
superior a 50%, por três editores - Gallimard, Le Seuil e ÉditioIls fl
01
cc Pierre Bourdieu
/1 {'rodllí"/i1J d:z Crc'JJç:z
,
universitários, tais como Jean-François Revel, Max Gallo, Georges 16"), encontram-se, em sua maioria, nos bairros da região Sul de
Belmont, percorreram o caminho inverso. Em literatura, resta pouco Paris (14°, 13", 12°, 5°) e, sobretudo no subúrbio (Sul e no setor
espaço para a vida de reclusão". Btl A essa categoria de escritores, menos chÍque do subúrbio Oeste). Apesar de serem, sem dúvida,
muito típica das editoras comerCÍaÍs, seria necessário acrescentar os mais dispersos, os autores da editora Laffont são localizados, ao
os autores de testemunhos que escrevem por encomenda e, às vezes, mesmo tempo, no 16° e subúrbio Oeste cllÍque (e, embora mais
com a assistência de um jornalista-escritor. 81 raramente do que os membros das academias, também no 6°) e nos
Conseqüência das análises propostas mais acima a respeito bulevares ou bairros excêntricos, habitados também pelos intelectuais
da distribuição dos teatros no espaço, o valor social da residência (14°, 15°); oposições que, segundo parece, correspondem a
privada só se define por referência às características sociais do subpopulações, atual ou potencialmente, distintas, ou seja, as dos
bairro onde ela se situa e das características sociais da população escritores em via de consagração e a dos jornalistas escritores. 33
dos moradores (efeito de clube), assim como das características
sociais dos lugares públicos, profissionais, Bolsa de Valores, Clássicos ou Desclassificados
escritórios de empresas, escolas, locais elegantes onde convém
ser visto, teatros, hipódromos, galerias, calçadões. Sem dúvida, o
valor social dos diferentes bairros depende também da É claro que o primado atribuído pelo campo da produção
representação que os agentes têm do espaço social; por sua vez, cultural à juventude remete, lima vez mais, à relação de denegação
tal representação depende não só de sua posição na classe dll poder e da "economia" que está em sua origem: se, por seus
dominante, mas igualmente de sua trajetória snci~ll. Para atributos associados à indumentária e por toda sua heXÍS' corporal,
compreender a distribuição no espaço de UIlLl 11()11l1Ia~·~jll de os ÍnreieclUais e os artistas tendem sempre a colocar-se do lado da
escritores, é necessário fazer in tervir, além dn p~ll rimul1 iu e dus juventude é porque, tanto nas representações quanto na realidade,
recursos financeiros, todas as disposições que se exprimem também a oposição entre jovens e velhos é homóloga da oposição entre o
no próprio estilo da obra, assim cornu a maneira panicular de poder e a seriedade burgueses, por um lado, e, por outro, a
realizar a condição do escritor: por exemplo, a preocupação de sê- indiferença ao poder ou ao dinheiro, assim como a recusa Íntelectual
lo que pressupõe que se possa tirar partido continuamente dos do espírito de seriedade, oposição que a representação burguesa -
encontros, ao mesmo tempo, fortuitos e previsíveis, garantidos que avalia a idade pelo poder e pela relação correlata ao poder -
pela freqüentação dos lugares bem freqüentados. A proximidade retoma por sua conta quando identifica o Íntelectual com o jovem
no espaço físico permite que a proximidade no espaço social blllgllês em nome do estatuto comum a ambos de dominanres-
produza todos os seus efeitos ao facilitar e favorecer a acumulação dominados, provisoriamente afastados do dinheiro e do poder. 8-l
de capital social (relações, ligações ... ). No entanto, o privilégio consentido à juventude e aos
Os membros das academias moram quase todos nos bairros valores de mudança e originalidade aos quais ela está associada só
mais tipicamente burgueses (8°, 16°, 7° e 6° -- e, precisamente, no poderá ser compreendido cabalmente a partir da relação dos artÍstas
Faubourg SaÍnt-CermaÍn: ruas de Varenne, Bonaparte, du B:1L~ de com os burgueses, ele exprime também a lei específica da mudança
Picrrc BOllrdicll
a exposição 'Jeune peinture abstraite' Uovem pintura abstrata] Qaneiro
do campo da produção, a saber: a dialética da distinção que vota as
de 1946). Para mim, começava o tempo co combate. Em primeiro
instituições, escolas, obras e artistas - que, inevitavelmente, estão
lugar, até 1950, para impor a abstração em seu conjunto, dermbar as
associados a determinado momento da história da arte, que fizeram
época ou ganharam notoriedade - a caírem no passado, tornarem- posições tradiâonaisda pintura figurativa qL:e, na época - apesar de ser
se clássicos ou desclassificados, serem lançados para fora da história um aspecto não sufiâentemente lembrado heje em dia - era amplamente
majoritária. Em seguida, em 1954, ocorreu o maremoto informal:
ou "passarem à história", ao eterno presente da cultura em que as
assistiu-se à geração espontânea de grande quantidade de artistas que
mais incompatíveis tendências e escolas "em atividade" podem
se deixavam atolar complacentemente na m2téria. A galeria que, desde
coexistir pacificamente por terem sido canonizadas, academizadas,
1948, combatia em favor da abstração, recusou a paixonite geral e
neutralizadas.
Jjmitou-sea uma escolha estrita, a saber: o aestrato construtivo oriundo
o envelhecimento advém também às empresas e autores das grandes revoluções plásticas do início do século e, atualmente,
quando umas e outros permanecem apegados (ativa ou desenvolvido por novos pesquisadores. Arte nobre, austera, que afinna
passivamente) a modos de produção que, sobretudo se haviam continuamente toda a sua vitalidade. Por que motivo, aos poucos,
feito época, estão inevitavelmente datados; quando se confinam acabei por dcknder exclusivamente a arte cc'nstmÍda? Se procuro tais
em esquemas de percepção ou apreciação que, sobretudo, ao se razões em mim mesma é porque, segundo rr,e parece, nenhuma outra
converterem em normas transcendentes e eternas, impedem de consegue exprimir melhor a conquista do artista em um mundo
perceber e aceitar a novidade. É assim que o marchznd ou o editor amcapdo de decomposição, um mundo em perpétua gestação. Em
descobridor pode deixar-se confinar no conceito insl ifllc/o/l.J!ic./(!o uma obra de Herbin, Vasarely, não há lugar pra forças obsCllras, para
(tal como nouveau roman ou "nova pintura americana") que ele o atolamento, o mórbido. Esta arte traduz. com toda a evidência, o
próprio ajudou a produzir, na definição social em relação à qual controle toral do criador. Uma hélice, um espigão, uma escultura de
terão de se posicionar os críticos, os leitores e também os autores Schoffer, um quadro de Monensen ou de Mondrian: eis outras tantas
obras que me inspiram confiança; pode-se ler nelas, de fonna obcecante,
mais jovens que se contentam em acionar os esquemas produzidos
a dominação da razão humana, o triunfo do homem sobre o caos. Eis,
pela geração dos descobridores e que, por este motivo, tendem a
para mim, o papel da arte. A emoção encontra aí seu pleno deleite".'"
confinar a editora em sua imagem:
Por ser revelador dos princípios de funcionamento do
"Eu pretendia algo de novo, afastar-me das veredas já trilhadas. Eis a
campo, este texto mereceria ser comentado linha por linha. Com
razão pela qual, escreve Denise René, minha primeira exposição foi
efeito, mostra de que maneira a decisão que se encontra na origem
consagrada a Vasarely: tratava-se de um pesquisador. Em seguida, em das escolhas iniciais, ou seja, o gosto pelas construções "estritas"
1945, expus Atlan porque ele era também insóJjto, djferente, novo. e "austeras", implica recusas inevitáveis; de que maneira, ao serem-
Certo dia, cinco desconhecidos - Hartung, Deyrolle, Dewasne, lhe aplicadas as categorias de percepção e aprêciação que tornaram
Schneider, Marie Raymond - vieram apresentar-me suas telas. Em uma possível a "descoberta" da novidade, qualquer novidade nova é
piscadela, diante dessas obras estrÍtas, austeras, tive a impressão de rejeitada do lado do informe e do caos; finalmente, de que maneira
a lembrança dos combates travados para impor cânones
que minha via estava traçada; havia aí bastante dinamÍ[e para provocar
considerados, em outro tempo, heréticos, legitima o fechamento
a paixão e colocarem questão os proble~as artísticos. Organizei, então,
à contestação herética do que se tornou uma nova ortodoxia.
Pú!rrc Bourdieu
ao presente dos outros, só existe praticamente na própúa luta que distâncias entre os estilos ou os estilos de vida é,
sÍncronÍza tempos discordantes (é assim que, como será inquestionavelmente, em termos de tempo.88
demonstrado alhures, um dos principais efeitos das grandes crises
históricas, dos acontecimentos que fazem época, consiste em
sincronizar os tempos dos campos definidos por durações A temporalidade do campo da produção artística
estruturais específicas); no entanto, a luta que produz a
contemporaneidade como confronto de tempos diferentes só
geração /
poderá ser travada porque os agentes e os grupos que ela opõe não -artÍstica- / /
estão presentes no mesmo presente. Basta pensarmos em um --_ f---- -,1/ _
campo particular (pintura, literatura ou teatro) para verificarmos / A2
'b-/ /
~'b-~/_~///
que os agentes e as instituições que se enfrentam nesse campo -
pelo menos, objetivamente, através da concorrência ou do conflito _ _ _ e- _ _ _
- estão separados pelo tempo e sob a relação do tempo: uns, que J"/ AI/AI
que eles reconhecem e por quem são reconhecidos (além dos outros
produtores de vanguarda), portanto, não têm público a não ser no
futuro; os outros, que são chamados comumente os conservadores,
não reconhecem seus contemporâneos a não ser no passado (as
linhas pontilhadas horizontais do diagrama ao lado mostram essas
contemporaneidades ocultas) Y O movimento temporal produzido
pela aparição de um grupo capaz de fazer época ao impor uma
posição avançada traduz-se pela translação da estrutura do campo
do presente, ou seja, das posições temporalmente hierarquizadas
que se opõem em determinado campo (por exemplo, pop art, arte
cinética e arte figurativa); assim, cada uma das posições encontra-
tI t2 t3
se defasada de uma fila na hierarquia temporal que, ao mesmo
tempo, é uma hierarquia social (as diagonais pontilhadas reúnem
as posições estruturalmente equivalentes - por exemplo, a
vanguarda - em campos de épocas diferentes). Em cada instante,
a vanguarda está separada por uma geração artística (entendida Além de dominarem o campo da produção, os autores
como a diferença entre dois modos de produção artística) da consagrados dominam também o mercado; não são somente os
vanguarda consagrada que, por sua vez, está separada por outra mais caros ou os mais rentáveis, mas também os mais legíveis e os
geração artística da vanguarda já consagrada no momento de sua mais aceitáveis porque, no termo de um processo mais ou menos
entrada no campo. É o que faz com que, tanto no espaço do campo longo de familiarização, associado ou não a uma aprendizagem
artístico, quanto no espaço social, a melhor forma de medir as específica, acabaram por se banalizar. O mesmo é dizer que, por
o
.0'. pjerrc Bourdjcu
,
seu intermédio, as estrateglas dirigidas contra sua dominação observa Marcel Duchamp, os retornos a estilos passados nunca
atingem sempre, por acréscimo, os consumidores distinguidos de tenham sido tão freqüentes quanto no decorrer destes tempos de
seus produtos distintivos. Impor ao mercado, em determinado pesquisa exasperada de originalidade:
momento, um novo produtor, um novo produto e um novo sistema "A característica do século que termina consiste em ser como um duplo
de preferências, é fazer deslizar para o passado o conjunto dos barrcl/cdgun: Kandinsky, Kupka inventaram a abstração. Em seguida, a
produtores, dos produtos e dos sistemas de preferências abstração morreu. Ninguém mais falaria no assunto. Trinta e cinco anos
hierarquizados sob a relação do grau de legitimidade adquirida. O depois, eb ressurgiu com os expressionistas abstratos americanos. Pode-
movimento pelo qual o campo da produção se temporaliza define se dizer que o cubismo voltou a aparecer sob urna forma empobrecida
também a temporalidade da preferência. Pelo fato de que as com a Éco/c de Palisposterior à grande guerra. Da mesma forma, o Dada
diferentes posições do espaço hierarquizado do campo da produção ressurgiu. Dupla chama, segundo fôlego. Trata-se de um fenômeno
(que são identificáveis, indiferentemente, por nomes de próprio ao século. Isso não existia no século XVIII ou XIX. Após o
instituições, galerias, editoras, teatros ou por nomes de artistas RonnntislTlo, apareceu Courbet. E o Romantismo nunca mais voltou.
ou escolas) são, ao mesmo tempo, preferências socialmente Nem sl'quer os pré-rafaelitas poderão ser considerados uma nova moagem
hierarquizadas, qualquer transformação da estrutura do campo dos rtllll:inrims".'c,
acarreta a translação da estrutura das preferências, ou seja, do Ik LiIO, esses retornos SJO sempre aparentes já que estão
sistema das distinções simbólicas entre os grupos: as o[1osiçóes sl'p;n;ll!os do qlll' l'lIContram pela referência negativa a alguma
homólogas daquelas que se estabelecem atualmente enlrl' () ~',(),IO coisa que, por sua vez, era a negação (da negação da negação, etc.)
dos artistas de vanguarda, o gosto dos jr]tc/ccru:lis, o gosto hIJl:~I!(:s do que encontram (quando n.1O é, simplesmente, pela intenção
avançado e o gosto burguês provinciano, além de l'llcorll Llrl'nl de pastiche, de paródia que pressupõe toda a história
seus meios de expressão nos mercados simbolizados IlL'ias galerias intermediária)."O No campo artístico, no atual estágio de sua
Sonnabend, Denise Ren(.; ou Dur<lllel-Ruel, tui:lIll conseguido história, não há lugar para os ingênuos; além disso, todos os atos,
exprimir-se de forma tão eficaz em 1945, em um espaço em que a todos os gestos, todas as manifestações, são, como afirma
vanguarda era representada por Dcnisc Rcm; ou, em 1875, quando perfeitamente um pintor, "uma espécie de piscadela, no interior
esta posição avançada era mantida por Durand-Ruef. de determinado ambiente*":91 essas piscadelas, referências
Esse modelo impõe-se, atualmente, com uma clareza silenciosas e ocultas a outros artistas, presentes ou passados,
particular porque, em virtude da unificação quase perfeita do campo afirmam nos e pelos jogos da distinção uma cumplicidade que
artístico com sua história, cada ato artístico que faz época ao exclui o profano, sempre votado a deixar escapar o essencial, ou
introduzir uma posição nova no campo desloca a série inteira dos seja, precisamente as inter-relações e as interações das quais a
atos artísticos anteriores. Pelo fato de que toda a série dos golpes obra não passa do vestígio silencioso. Nunca a própria estrutura
pertinentes está presente praticamente no último, à semelhança elo campo esteve praticamente tão presente em caela ato de
dos cinco algarismos já discados no aparelho telefônico estão produção.
presentes no sexto, um ato estético é irredutível a qualquer outro
ato situado em outra fila na série; aliás, a própria série tende para
. No urigirl<l!. [niliell.
a unicidade e a irreversibilidade. Assim, se explica que, conforme
I Pierre Bourdieu
o paradoxo de Bem, o artista:
será que a arte pode dizer a verdade da arte?
das obras (reproduções, catálogos, revistas de arte, museus que da ohra dé ar té. 'li'atava-se de uma fantasia. Eu nem a chamava de 'obra de
expõem as obras mais modernas, etc.), o aumento do pessoal :lIll". Eu pl,·téndia acahar com a vontade de criar obras de arte. Por que
111' ltivo :1, obus dewlll Sl'r estáticas? A coisa - a roda de bicicleta - existia
dedicado, em tempo completo ou parcial, à celebraçJo da obra lk
arte, a intensificação da circulação das obras c dos artistas, mIl] as antes d:1 ide'ia. Sem intenção dé colocar isso em e\'idéncia, nem querer
grandes exposições internacionais e a multiplicWl() d;lS i,,;l!ITi;lS mll1 dizer': 'Fui l'U quem fiz isso e, antes de mim, ninguém ainda havia feito
múltiplas sucursais em diversos países, ele., tlldo cOlltribui para tal coisa'. Aliás, os originais nunca chegaram a ser vendidos.
favorecer a instauração de uma rel:1ç:1o sem pl'l'cedl'fltes, análoga - E o livro de geometria exposto às intempéries 7 Será que se pode dizer
àquela que conhecem as grandes tradições esotéricas, entre o corpo que havia a idéia de integrar o tempo no espaço? Ao brincar com a
dos intérpretes e a obra de arte. Dl' modo que será necessário tornar- expressão 'geometria no espaço' e com a palavra 'tempo', chuva ou sol,
se cego para não enxergar que o discurso sobre a obra não é um quem viria transformar o livro 7
simples acompanhamento, destinado a favorecer sua apreensão e - Nada disso... do mesmo modo que não havia a idéia de integrar o
apreciação, mas um momento da produção da obra, de seu sentido movimento na escultura. Isso não passava de uma forma de humor.
e de seu valor. No entanto, bastará citar, uma vez mais, Mareei Apenas humor e só humor, Para denegrir a seriedade de um livro de
Duchamp: princípios" .
"- Para voltar a seus ready-made, eu julgava que R. Mua, assinatura da Nesse depoimento, apreende-se, diretamente desvelada,
Fountain, era o nome do fabricante. Mas, em um artigo de Rosalind a injeção de sentido e valor operado pelo comentário e o comentário
Krauss, li o seguinte: 'R. ivlutr, apun on the German, Armur, orpovert;!. elo comentário - para o qual, por sua vez, contribuirá o
Com o título 'Pobreza', o sentido da Fountain teria sido totalmente desvelamento, ao mesmo tempo, ingênuo e libertino, da falsidade
diferente. elo comentário. A ideologia da obra de arte inesgotável, ou da leitura
- Rosalind Krauss A moça ruiva? Isso não é verdade. Pode desmentir.
7 como re-criação, dissimula, pelo quase desvelamento que, muitas
Muttvem de Alott Works, nome de uma grande empresa de louça sanitária. veZL:S, SL: observa nas coisas da fé, que a obra é bem feita não duas
Pierre Bourdicu
grance editor comercial e do pequeno editor de vanguarda: "Um ediwr, com uma
vezes, mas cem, mil vezes, por todos aqueles que se interessam
equipe e despesas fixas reduzidas, pode viver plenamente impondo sua
por isso e encontram um benefício material ou simbólico em lê-la, personalidade. Isso exige dele uma disciplina bastante estrita porque se encontra
classificá-la, decifrá-la, comentá-la, reproduzi-la, criticá-la, combatê- imprensado entre o equilíbrio fin:lnceiro a ser assumido e a tentação do crescimento.
Admiro profundamente Jérôme Lindon, diretor das Édi[jons de Minuit, por ter
la, conhecê-la, possuí-la. O enriquecimento acompanha o conseguido manter esse difícil equilíbrio ao longo de sua v'ida de editor. Soube
envelhecimento quando a obra chega a entrar no jogo, quando se fazer prevalecer o que ele amava e nada mais do que isso, sem se deixar distrair no
decorrer do tempo. Temos necessidade de editores como ele para que surja o novo
torna um desafio e, assim, incorpora uma parcela da energia romance, mas também é preciso editores como eu para refletir as facetas da vida e
produzida pela luta da qual é o objeto. A luta, que remete a obra da criação" (LAFFONT, R. Editeur, Paris, Laffont, 1974. p. 291-292). "Era a época
da guerra da Argélia e posso di:er que, durante três anos, vi\'i como um militante
para o passado, é também o que lhe garante uma forma de do EL.N. [NT: Sigla de Front de Libération Nationale (Frente de Libertação
sobrevivência: arrancando-a ao estado de letra morta, de simples Nacional), movimento argelino que assumiu a insurreição dos nacionalistas
durante a Guerra da Argélia (1954-1962). cf. Le Petit Larousse illusué, Paris,
coisa do mundo votada às leis comuns do envelhecimento, ela
2000], ao mesmo tempo que me rornei editor. Como diretor de Editions de Minuit,
garante-lhe, no mínimo, a eternidade triste do debate acadêmico. 92 Jérôme Lindon - que, para mim, nunca deixou de ser um exemplo - denunciava as
torturas" (MASPERO, F. "Maspero entre tous les feux" in Le Nouvel Observateur,
17 de setembro de 1973).
6. Esta análise que, prioritariamente, se aplica às obras novas de autores
deswnh('cidos é válida tarnbl'lT1 para as obras irreconhecidas ou desclassificadas e,
Notas e Referências Bibliográficas alé l'll'SIl1<l, [-/.íssí[':I,,", que 1"J,1cm sempre ser objeto de "redescobertas",
"rL"lj''''SL'IlLlÇ'-'('S'' e "rc!eituras" (dai, o grande número de produções filosóficas,
lr[l'r:íri:ls, teatrais incl:lssilicáveis. cujo paradigma é a encenação vanguardista dos
L "La production de la croyance: contribution à une l'cononlil' dl's hil'ns
[('Xl[" tradici"llais).
symboliques" in Acres de la recherche en sciefl,-e,," socialc,,", n" U. revnei,,) d,'
1977. p. 3-43. Tradução de Guilherme João de Freitas T('ixeiLl. rl'vis,-l() 11","i,';1 li<' 7. NclU é um acaso se o papel de caução que incumbe ao marchand de arte é,
Maria da Graça Jacintho Setton. parri..:ularmente, visivel no domínio da pintura em que o investimento "econômico"
do cO:11prador (o colecionador) é, incomparavelmente, mais importante do que em
2. P.D.G. (Presidente Diretor-Geral) ,LI FdiloLI /'/('ss,',," d,' /1 !'il,'
matéria de literatura ou, até mesmo, de teatro. RaJ'mond 1vloulin observa que "o
3. Proprietário de é~fitions N. lallilfli. contrato assinado com uma galeria importante tem valor comerciai" e que o
4. Daqui em diante, :lS aspas indicucll) que SL' [rala de "economia" no sentido marchmd é, para os amadores, o "fiador da qualidade das obras" (MOCLlN, R. Le
restrito de economicismo. Marcf:é de la peinture en France, Paris, Ed. de Minuit, 1967. p. 329).
5. O grande editor, à semelhança do grande marchand, associa a prudência 8. É evidente que, segundo a posição ocupada no campo da produção, as ações de
"econômica" (muitas vezes, é escarnecido por sua gestão de "pai de família") à valorização podem variar desde o recurso aberto às técnicas publicitárias (publicidade
audácia intelectual, distinguindo-se assim daqueles que se condenam, pelo menos. na imprensa, catálogos, etc) e às pressões econômicas e simbólicas (por exemplo,
"economicamente", porque empenham a mesma audácia ou a mesma desenvoltura sobre os júris que distribuem os prêmios ou sobre os críticos) até a recusa altaneira
no negócio comercial e no empreendimento intelectual (sem falar daqueles que e um tanto ostensiva de qualquer concessão a uma época que pode ser, afinal de
combinam a imprudência econômica com a prudência artística: "Um erro em contas, a forma suprema da imposição de valor (acessível somente a alguns).
relação ao preço de custo ou à tiragem poderá desencadear uma verdadeira catástrofe, 9. A representação ideológica transfigura funções reais: o editor ou o marchand,
ainda que as vendas sejam excelentes, Quando Jean-Jacques Pauvert iniciou a que consagra o essencial de seu tempo a essa atividade, é o único que tem a
reimpressão do Líttré [NT: Trata-se do mOnLlmental Dicionário da língua fi-ancesa possibilidade de organizar e racionalizar a difusão da obra que - sobretudo, talvez,
(4 volumes e I suplemento; 1863-1873), dirigido por Émile Littré (1801-1881), para a pintura - é um empreendimento considerável, pressupondo informação
lexicógrafo francês e membro da Academia Francesa. cf. Pequeno Dicionário (em relação aos locais de exposição in[eressantes, sobretudo, no exterior) e recursos
Enciclopédico, Koogan Larousse, Rio de Janeiro, Editora Larousse do Brasil Ltda., materiais. Mas sobretudo, ele é o único que, atuando como intermediário e écran,
1987], o negócio anunciava-se bem auspicioso em razão do número inesperado de pode permitir que o produtor mantenha uma representação carismática, ou seja,
subscritores, Mas, no lançamento, tornou-se claro que um erro de estimativa do inspirada e "desinteressada", de sua pessoa e de sua atividade, evitando-lhe o
preço de custo significava a perda de quinze francos por exemplar. O editor foi contato com o mercado e dispensando-o das tarefas, ao mesmo tempo, ridículas,
obrigado a ceder a operação a um confrade." (DEMORY, B. "Le livre à l'àge de desmoralizantes e ineficazes (pelo menos, do ponto de vista simbólico), associadas
l'industrie" in L'Expansion, outubro de 1970. p. J lO). Deste modo, compreende- à valorização de sua obra. (É pro'.-ável que o oficio de escritor ou pintor, assim como
se melhor que Jérôme Lindon possa congraçar os sufrágios, ao mesmo tempo, do as representações correlatas, fossem toralmente diferentes se os produtores tivessem
dirl't;llnentc, em suas condições de existência, das sanções do mercado ou de clur11inantes da classe dOlllinallte" LjlLllhlt) () I ('j"JllO (', til ill :.11 11) (( 11111) '.1111',I.lllll\-11
instúncias que se limitam a conhecer e a reconhecer tais sanções, como as editoras ou quando é adjetivo "estrururalmenre associa,!o :1 1:\1', 1['[1"'''''' 1',1[ ',I[ [ I":
"comerciais"). "intelectual" funciona da mesma forma para "(r:lç,')e, c1"[lli[\.ld,\., d,[ (\.[".".
10. Aqueles que, a estas análises, não deixarão de opor a representação irênica das dominante".
relações "confraternais" entre produtores, conviria lembrar todas as formas de 15. O estudo da distribuição da clienteiJ entre os diferentes teatro, CO[II'I1l1.1 l'sl:1.'
concorrência desleal, das quais o plágio (mais ou menos habilmeme dissimulado) an.ilises: em uma extremidade, o TEp, que recruta perto da metade de' sua cli,'!l(e!:l
não passa da mais conhecida e visível; ou, ainda, a violência - totalmente simbólica, nas fraçoes dominadas da classe dominante, compartilll3 seu público com os
é claro - das agressões pelas quais os produtores visam des3.ueditar seus ourros teatros jmeleetuais (TNP, Odéon, Vi'cux ColombiN, Athénéc); !la outra
concorrentes (não se pode deixar de mencionar a história recente da pintura que extremidade, os teatros de bulevar (Anwine, v:zriétés) , cujo pLlblico é com rosto
fornece inumeráveis exemplos - um dos mais típicos, para citar apenas pessoas já quase 50% por diretores e executivos classe A e por suas esposas; entre os dois, a
falecidas, foi a relação entre Yves Klein e Piero Manzoni). Comédie frafll,:aise e o Atelier "fazem troca" de espectadores com todas as outras
11. Estas análises prolongam, especificando-as, aquelas que haviam sido propostas, salas de teatro.
não só a respeito da alta costura em que as implicações econômicas e, ao mesmo 16. Uma an:ilise mais fina revelaria um certo número de oposições (sob os diferentes
tempo, as estratégias de denegação são muito mais chamativas (cf. BOURDIEU, aspectos considerados mais acima), no ãmago do teatro de vanguarliJ ou, até
P. e DESAULT, Y. "Le couturier et sa griffe: contribution à une théorie de la magie" mesmo, do teatro de bulevar. É assim que uma leitura atenta das estatísticas de
in Aetes de la recherche en sciences sociales, n" 1, janeiro de 1975. p. 7-36), mas freqüência sugere que é possível opor um teatro burguês "chique" (Th~;úrc de
também a propósiLO da filosofia; neste caso, a ênfase é colocada na contribuição P'lris, Ambassadellrs, que apresentam obras - Commenr réussir en aff:úres et
dada pelos intérpretes e comentaristas ao reconhecimento como re- Pnoto-finish, de P Ustinov, elogiadas por Le Figaro de 12/02/1964 e 06/01/1964
irreconhecimento da obra (cf. BOURDIEU, P 'Tontologie politique de Martin - e até mesmo, em relação ao primeiro teatro mencionado, por Le NOllvcl
Heidegger" in Aaes de la recherche en sciences sociales, n° 5-6, novembro de Observatellr de 05/03/1964) que acolhe um público de burgueses cultos, em sua
1975. p, 109-156). Em vez de aplicar a novos campos o conhecimento das maioria, parisienses, e assíduos freqüentadores do teatro, e um teatro burguês, de
: propriedades gerais dos campos que, evemualmente, pudessem ter sido estabelecilbs préferência, "grande público", que apresenta espetáculos "parisienses" (Michodierc
alhures, aqui, trata-se de tentar elevar, a um n/vel maior de e:pliciraç';io é gcncralid:uic, - La prclIve par qU:ltrc, de Félicien Marceau; Antoine - Mar}; Alar}; Variétés - Un
as leis invarhlJ1tes do funcionamento e mudança dos camp,Js dé luta rclo conFronto h(l,~,'IllC comblé, de J. Deva!), criticados com violência (o primeiro por Le Nouvd
de vários campos (pintura, teatro, literatura, jornalismo) em que, por razões que O.~-'cna{Clir de 12/02/1964; e os outros dois pc'r Lc Fljpro de 26/09/1963 e 28/
podem referir-se, seja à natureza dos dados dis[1oníveis, seja a propriedades 12/1964) e acolhe um público mais provinciano, menos habituado a freqüentar o
específicas, as diferentes leis não se manifestarTI com a rnesrna clareza. Esta tent3.tiva teatro e mais pequeno-burguês (os executivos da classe média e, sobretudo, os
opoe-se tanto ao formalismo teoreticista que é seu próprio objeto, quanlü ao artesãos e comerciantes são os mais representados), Apesar de não ser possível
empirismo idiográfico, votado à acumulação escolástica de proposições refutáveis. verificar estatisticamente (à semelhança do que já foi tentado em relação à pintura
12. Entre uma infinidade de afirmaçoes, eis alguns exemplos: "Conheço um e à literatura), tudo parece indicar que os autores e os arores dessas diferentes
pintor com qualid?de no que diz respeito ao ofício, matéria, etc., mas o que faz é, categorias de teatros se opõem sempre segundo os mesmos princípios. Assim, em
para mim, totalmente comercial; ele mantém uma fabricação, como se fizesse 1972, as grandes vedetés das peças que fazem sucesso nos teatros de bulevar
pãezinhos (".). Quando os artistas se tornam muilü conhecidos, quase sempre, (quase sempre pagas também com uma porcentagem da receita) poderiam ganhar
têm tendência a se deixarem arrastar pela fabricação em série" (trecho de entrevista até 2.000 francos por noite, e os atores conhecidos de 300 a 500 francos por
de um diretor de galeria). Muitas vezes, a única garantia de convicção oferecida representação; enquanto isso, os atores da Comédie française (sócios, sócios
pelo vanguardismo é sua indiferença pelo dinheiro e seu espírito de contestação: honorários e pensionistas), menos bem pagos por representação do que os artistas-
"Para ele, o dinheiro não conta: além, até mesmo, do ser;iço púbiico, ele concebe estrela dos [eatros privados, beneficiam-se de um salário mensal fixo ao quai se
a cultura como um instrumento de contestação" (BAECQUE, A. de. "Faillite au acrescentam complementos para cada representação e, em relação aos sócios, uma
théàtre" in L'EJ<pansion, dezembro de 1968). parcela do lucro anual que varia segundo a antigüidade. Por sua vez, os atores das
pequenas salas da rive gauche estão votados à instabilidade do emprego e a
J 3. Para permanecermos dentro dos limites da informação disponível (fornecida
remunerações extremamente reduzidas.
pela belíssima pesquisa feita ror GUETTA, Pierre. Le Théàtre et son publlC,
mimeografado, Paris, Ministêre des affaires culturelles, 1966, 2 vaIs.), cItamos 17. cf. DESCOTES, M. Le Public de thédtre et son histoire, Paris, PU.F., 1964. p.
apenas os teatros levados em consideração por esse estudo, Em 43 teatros parisienses 298. Esse gênero de caricatura não seria tão freqüente nas próprias obras teatrais
(excluindo os subvencionados), recenseados em 1975 nos jornais especializados, (estamos pensando, por exemplo, na paródia do nouveall roman em Haute-fidélité
29 (ou seja, 2/3) oferecem espetáculos que têm a ver claramente com o teatro de de ~,lichel Perrin, 1963) e, ainda mais, nos escritos dos críticos, se os autores burgueses
bulevar; 8 apresentam obras clássicas ou neutras (no sentido de "não marcadas") não tivessem a certeza de encontrar a cumplicidade do pLlblico burguês quando, ao
e 6, situados na rive gauche, arresentam obras que podem ser consideradas como acenarem suas contas com os autores de vanguarda, eles trazem seu reforço intelectual
pertencentes ao teatro intelectual. aos burgueses que se sentem desafiados ou condenados pelo teatro jnteleetua!
c>
pjerre BOllrdieu A Produç/io da Crença
18. DORlN, F op. cit. p. 47 34. A análise da dis:ribuição de clientela confirma que Fr:1l1L-e-Soir se encontra
19. lbid. p. 158 bastante próximo de L'Aurore; que Le Figaro e L'Express estão a urna distância
20. Ibid. p. 79, 101 quase igual de todos os outros (Le Figaro inclinando-se, de preferência, para
France-Soir, enquanto L'Express se volta para Le Nouvel Observateur); e que,
21. Ibid. p. 10 1 finalmente, Le Monde e Le Nouvel Observatellr formam um último conjunto.
22. Ibid. p. 67 35. Os executivos do setor privado, engenheiros e prOfIssionais liberais distinguem-
23. lbid. p. 68 se por uma taxa média de leitura global e por uma taxa de leitura de Le Monde
24. Ibid. p. 80, 85 nitidamente mais elevada do que os comerciantes e os industriais (os primeiros
permanecem mais próximos dos industriais pelo peso das leituras de baixo nível -
25. [bid. p. 27 e 67
France-Soir, L'Aurore - no conjunto de suas leituras, e, também, por uma forte
26. Ibid. p. 36 taxa de leitura dos órgãos de informação econõmica, tais como Les Echos,
27. Para fornecer uma idéia do poder e pregnância de tais taxinomias, vejamos um lnformation, Entreprise; enquanto os últimos aproximam-se dos professores por
só exemplo: sabe-se pela pesquisa estatística sobre os gostos de classe que as sua taxa de leitura de Le NOllvel Observatellr).
preferências dos intelectuais e dos burgueses podem organizar-se em torno da 36. GUILLEM[NAUD, Gilbert. in L'Allrore de 12 de janeiro de 1973.
oposição entre Goya e Renoír; ora, tendo sído levado a descrever os destinos
37. GAUTIER, Jean-Jacques. in Le Figaro de 12 de janeiro de 1973.
contrastantes de duas filhas de zelador de prédio - uma, votada a 'casar-se na área
de serviço', enquanto a outra se tornou proprietáría de um 'sétimo andar com 38. KANTERS, Robe~;. in L'Express de 15-21 janeiro de 1973.
terraço' -, Françoise Oorin compara a prímeira a um Goya e a segunda a um Renoir 39. OANOREL, Louis. in Le Monde de 13 de janeiro de 1973.
(cf. OORIN, F. Le Toumant, op. cit. p. 115). 40. Essa arte da conciliação e do compromisso alcança a virtuosidade da arte pela
28. In Le Figaro de 27 de março de 1964. arte com o jormlisla ~e La Cmi.\", cuja aprovação incondicional é acompanhada por
29. [n Le FÍgaro de 15 de fevereiro de 1964. CllllsideraçJo 1:10 sut:':m'tl[c articubda, por litotes em duplas-negações, por matizes
l'ltl resl'I"vas l' Cllrr,'·:ClCS a si mesmo, que a conciliatio opposirorllm final, tão
30. [n Le Figaro de 1[ de março de 1964.
ill!:l'lll[;lllll'lllt: jl'SUí;:,"l "fUlldo e forma", segundo ele -, parece quase evidente:
31. [bid. p. 27 "ri' /i'urn,lllr, Clltlhl Fi disse, parece-me urna obra admirável, considerando seu
32. Jean Outourd que, durante muito tempo, foi crilico dl' /-I,/II,,'-SOl!; l.iLI "illli.t l'Ulld" L' furllLl. CllL'.~m que se diga que ela irá enraivecer um bom número de
com mais clareza: "Procurar em janeiro, :ls oilo horas da Illlil", "11"vi's ,L" vi"I:ls espectadores. Pusici,;,;ndo, por acaso, ao lado de um supporrer incondicional da
cobertas de neve, a j\[:ziSOfl de I:i Cu/une de Nallll'rll', C()UIIll'UVl', ,\ulll'lviliIL'rs, vanguarda, percebi ~crante toda a representação sua cólera enrustida. Nem por
Boulognc, trata-se de urna tristeza sem noml'. lillllo Illais LJue, de alllelll:!o, salwmos isso tiro a conclusão:e que Françoise Oorin foi injusta em relação a certas pesquisas
o que nos espera: n:!o uma festa, um espetáculo charmoso representado por respeitáveis - até r;-,esmo se estas são, muitas ve=es, enfadonhas - do teatro
pessoas sagazes, mas exatamente o contrário, a saber: algum lLlgubre patronato contemporâneo (...). E se a conclusão da peça - tal alusão é leve - comemora o
[ai co, urna peça simploriamente progressista, gaguejada por amadores, um público triunfo do 'Bulevar' - embora de um bulevar em si mesmo de vanguarda - é
de pequeno-burgueses e comunistas do pedaço, escutando com boa vontade, mas porque, precisameme, um mestre como Anouilh já se havia colocado, há muito
pouco descontraído no entreato" (OUTOURO, J. Le Paradoxe du critique, Paris, tempo, como guia r:1 encruzilhada desses dois caminhos" (VIGNERON, Jean. in
Flammarion, 1971. p, 17). (A estatística fornece uma base objetiva à relação, La Croixde 2l de j,,--,eiro de 1973).
percebida pela polêmica burguesa, entre teatro de vanguarda - ou seja, do subúrbio 41. P[ERRET, M. in Lr: Nouvel Observateur de 12 de fevereiro de 1964, a propósito
ou da rive gauche - e público pequeno-burguês e suburbano - i. e., de esquerda e de La preuve par qL',,:re de Félicien Marceau.
da n've gauche: os operários, contramestres e agentes técnicos - que represencam
42. TESSON, PhiliF~e. in Le Canard enchainé de 17 de março de 1973.
4% somente do público dos teatros em seu conjunto -, os empregados e os
executivos da classe média; por último, os professores não se distribuem ao acaso 43. A lógica do fun:'onamento dos campos da produção de bens culturais como
entre os diferentes teatros) Mesma intenção, guiada unicamente pela intuição campos de luta que ;'avorecem as estratégias de distinção faz com que os produtos
social, entre aqueles que entendem lembrar que, se os museus são acessíveis aos de seu funcionamer::o, quer se trate da criação de moda ou de romances, estejam
professores, somente as pessoas "chiques" freqüentam as galerias. predispostos a funcionar diferencia/mente, como instrumentos de distinção, em
primeiro lugar, entre as frações, e, em seguida, entre as classes.
33. Não se compra um jornal, mas um princípio gerador de tomadas de posição
definido por uma certa posição distintiva em um campo de princípios geradores 44, Podemos dar cré:ito aos críticos mais reputados por sua conformidade com as
institucionalizados de tomadas de posição: e pode-se afirmar que um leitor irá expectativas de se',: público quando eles garantem que, além de nunca se
sentir-se tanto mais completa e adequadamente identificado quanto mais perfeita identificarem com 2 opinião de seus leitores, muitas vezes, chegam a combatê-la.
for a homologia entre a posição de seu jornal no campo dos órgãos de imprensa e Assim, Jean-Jacques Gautier (GAUT1ER, J,-J, Théàrre d'alljourd'hui, Paris, Julliard,
a posição que ele próprio ocupa no campo das classes (ou das frações de classe), 1972. p. 25-26) af'~:na com justeza que o princípio da eficácia de suas críticas
fundamento do princípio gerador de suas opiniões. reside não em um a~~lStamento demagógico ao público, mas em um acordo objetivo
<')
o
Pierre BourdÍeu A Produç:io da Crc'-;ca
1
V)
o
/1 Prodll,',10 da Crença
Pi('rrc Bnllrdi(~u
com rodas as estratégias editoriais que permitem explorar um acervo: reedições, é determinante da mídia, particularmente, da televisão e rádio, na promoção dc Ulll
claro, mas igualmente a publicação de livros em formaro de bolso (por exemplo, na livro": "A personalidade e a elocução natural do autor constituem um elemento de
editora Callimard, a coleção Folio) , peso na escolha dessa mídia e, portanto, na expectativa do público. Neste domínio,
58. Apesar de ser impossível pretender ignorar o efdto do l'urta-cor que tende a os autores estrangeiros, com exceção de alguns monstros sagrados, são
produzir em todo campo o fato de que as diferentes estruturações possív'eis (aqui, naturalmente desfavorecidos" (Vient de paraftre, Boletim de informação das
por exemplo, segundo a antigüidade, tamanho, grau de vanguardismo Folítico e / Éditions Roben Lal'font, n° 167, janeiro de 1977).
ou estético, etc.) nunca coincidem perfeitamente, ocorre que se pode, sem dúvida, 62. Ainda aqui, existe convergência entre lógica cultural e lógica "econômica":
considerar o peso relativo dos empreendimentos a longo prazo e a curtO pra=o como é demonstrado pelo que se passou com as Éditions du Favois, um prêmio
como o princípio dominante de estruturação do campo: sob esse aspecto. é pOSSllel literário pode ser catastrófico, de um ponto de vista estritamente "econômico",
observar a oposição entre as pequenas editoras de vanguarda - Pauverr, Maspero, para uma pequena editora que está iniciando sua atividade e, de repente, é obrigada
Minuir (às quais poderíamos acrescentar Bourgois, se este não ocupasse uma a enfrentar os enormes investimentos exigidos pela reimpressão e difusão, em
posição ambígua, tanto no plano cultural, quanto no plano econômico pelo faro grande número, do livro premiado.
de sua ligação a Presses de la Cite) - e as grandes editoras, tais como Lal'l'o[]r, 63. Isso é visível de maneira particularmente clara em matéria de teatro: o mercado
Presses de la Ciré, Hacheue. Por sua vez, as posições intermediárias são ocupadas dos clássicos ("as matinês clássicas" propostas pela Comédie française) obedece a
por ediroras, tais como Flammarion (na qual se encontram, lado a lado, coleçôes leis bem particulares pelo fato de sua dependência em relação ao sistema de ensino.
de pesquisa e publicações coletivas por encomenda); Albin Michel, Ca/man-Lé:r,
64. A mesma oposição se obsct\'a em todos os campos. E André de Baecque
antigas editoras de tradição, mantidas por herdeiros que, em seu patrimônio,
descreve, assim, a oposição que, em sua opinião, caracteriza o campo do teatro,
encontram uma força e um freio; e, sobretudo, Crasser, antiga grande editora,
entre os "homens de negócios" e os "militantes": "Os animadores de teatro são
atualmente englobada no império Hacheue; além de Callimard, antiga editora de
pcssoas de toda a espécie. Têm em comum o seguinte: em cada criação, arriscam
vanguarda, tendo alcançado na atualidade o apogeu da consagração, que reúne u:n
qUZlse sempre um importante investimcnto de dinheiro e talento em um mercado
empreendimento voltado para a gestão do acervo e outros empreendimentos a
imprevisível. M:I, a sernelh:lIlça tiLa por aí: suas motivações são extraídas de todas
longo prazo (cuja possibilidade de existência se deve à acumulação de um capil.11
as ideologias. !':rr:l llns, o teatro ê uma especulação semelhante às outras, mais
cultural, ou seja, o Chemin, Bibliotheque des sciences humaincs). Quanto ao
I'itorescl talvez, lIlas a sl'lviço da mesma estratégia fria em que se misturam
subcampo das editoras voltadas, preferencialmente, para a produção a l'"lgo I":CO
tornadas de opçôes, riscos calcui:ldos, finais de meses difíceis, exclusividades
- portanto, para o público intelectual -, ele se polariza em tlm\ll d:l 0l" hi(lo. 1,,)1
lH'gociacia" :15 vezes, acima das fronteiras. Para outros, traca-se do veiculo de uma
um lado, entre l\faspero e /Vlinllit (que representa a v,lllgll:lr<i:1 ,'lll vi.1 ,i,'
mensagem, ou o instrumento de uma missão. Às vezes, um militante chega
consagração) e, por outro, Callim:ud, situad:l eIll I,osiçáo d"ulill:lllt", I,' ."·lIil. ':li"
mesmo a fazer bons negócios ... " (BAECQUE, A. de. op. cit.)
representa o lugar neutro do campo (à seulelir:lrlça de (;,i/ilm.lld, cujos autor,·s.
como v'eremos, estão representados n:l lista dos besl-sel/crs e. igualnll'!ltc, !la ii'éa 65. Sem chegar ao ponto de transformar o fracasso em uma garantia de qualidade
dos best-sel/ers intelectuais, constitui o lugar neutro do campo em seu conjunto). como pretende a visão polêmica do escritor burguê,~ "Agora, para ser bem-sucedido,
O domínio prático desta estrutura que orienta também, por exemplo, os fundadores é necessário sofrer fracasssos. O fracasso inspira confiança, enquanto o sucesso
de um órgão de imprensa quando eles sentem que "existe um lugar a ser ocupado" parece suspeito" (DORIN, F. op. cit. p. 46).
ou "visam os segmentos de mercado deixados vagos" pelos meios de expressão 66. Todas as citações são extraídas de uma entrevista concedida por Sven Nielsen,
existentes, exprime-se na visão rigorosamente topológica do jovem editor, De!orme, P.D.G. da editora Presses de la Ciré, in PRIOURET, R. La Fr,wce et le management,
fundador da editora Éditions Calilée, que tenta encontrar seu lugar "entre as Paris, Denoel, 1968. p. 268-292.
Éditions de Minuit, Maspero e Le Seui/' (afirmações relatadas por JOSSIN, J. in 67. Este texto de Jérôme Lindon sobre Samuel Beckett, dado à estampa in Cahiers
L'Express, 30 de agosto - 5 de setembro de 1976). de l'Heme, em 1976, foi escrito originalmente para uma coletânea em homenagem
59. É bem conhecido no "meio" [No original, milieu] que o diretor de uma Cas ao dramaturgo, publicada por John Calder, em inglês, por ocasião da atribuição do
maiores editoras francesas não lê, praticamente, nenhum dos manuscritos que prêmio Nobel, em 1969.
publica; além disso, passa seu tempo em tarefas de pura gestão (reuniões do comitê
68. "Ai de mim! Limito-me a reproduzir, concertando, adaptando, o que vejo e
de fabricação, encontro com os advogados, com os diretores das filiais, etc.).
ouço. Que falta de sorte I O que vejo é sempre lindo, o que ouço é. quase sempre,
60. De fato, seus atos profissionais são atos intelectuais análogos à assinatura de divertido. Vivo no meio do luxo e da espuma de champagne" (DüRIN, F. op. cit.
manifestos literários ou políticos, ou de petições (com, em suplemento, alguns p. 27). Não há necessidade de evocar a pintura de reprodução, encarnada atualmente
riscos - basta pensar, por exemplo, na publicação de La question) que lhe rendem pelos impressionistas, que, segundo se sabe, fornecem todos os best-sellers (exceto
as gratificações habituais dos intelectuais (prestígio intelectual, entrevistas, debates a Monalisa) aos editores especializados na reprodução de obras de arte: Renoir (La
radiofônicos, etc.). jeunc filie aux t?eurs, Le Moulin de la Calette); Van Gogh (L'église d'Auvers);
61. Robert Laffont reconhece essa dependência quando, para explicar a diminuição 1\\onet (Les coguelicots); Degas (La répétition d'un ballet); Gauguin (Les
do número de traduções relativamente às obras originais, invoca, além do aumenco paysannes) - informaçôes obtidas junto à Canerie do Louvre, em 1973. Em relação
da soma dos adiantamentos devidos aos direitos de tradução, "a inf1uência aos livros, igualmente, estamos pensando na imensa produção de biografias,
ç
Pierre Boure/ieu il ProduçJo da Crença
1
memórias, testemunhos que, de Laffom a Lartes, de Nje!sen a Orban, oferecem os pontos de venda a locais, por sua vez, escolhidos por sua raridade: lojas dos
aos leitores burgueses uma "vivência" alternativa (por exemplo, na editora La/fone, costureiros de grande prestígio, perfumarias dos bairros chiques, aeroportos).
a coleção vécu ["vivência"] - com "memórias" de Mme Emile Pollack ou i\lme Como o envelhecimento é, aqui, sinônimo de vulgarização, as antigas grandes
Maurice Rheims, do juiz Batigne ou de Marcel Bleusteín-B1anchet - ou Un homme marcas (Coty, Lancôme, Worth, Mo!yneux, BOllrjojs, etc) fazem uma segunda
e[ son méúer ["Um homem e seu ofício"]). carreira no mercado popular.
69. Tanto na literacura como alhures, os produtores em tempo completo (e, a 75. Estamos bem cientes do que pode haver de arbitrário em caracterizar uma
forúoá, os produtores para produtores) estão longe de possuir o monopólio da galeria pelas pinturas que ela detém - o que conduz a assimilar os pintores que ela
produção: em 100 pessoas mencionadas no Who's Who que produziram obras fez e segUT.1 com aqueles dos quais ela possui somente algumas obras sem ter seu
literárias, um nllmero superior a um terço é não-profissional (14% de industriais, monopólio. O peso relativo dessas duas categorias de pintores é, aliás, muito
11 % de funcionários de escalão superior, 7% de médicos, etc) e a parcela dos variável segundo as galerias e, sem dúvida, permitiria estabelecer uma distinção,
produtores em tempo parcial é ainda maior no domínio dos escritos políticos fora de qualquer julgamento de valor, entre galerias de venda e galerias de escola.
(43%) e de cultura geral (48%). 76. Tudo leva a supor que a clientela das galerias apresenta características homólogas
70. Entre esses últimos, ainda poderíamos distinguir, por um lado, aqueles que às dos pintores que elas expõem: as galerias de vanguarda, tais como Temp!on,
chegaram à atividade editorial com um projeto propriamente comerdal - tais como Sonnabend e Lambert (duas das quais situadas na r/ve gauche) que expõem a
Jean-Claude Lattes que, tendo começado por ser assessor de imprensa na editora extremidade avançada da vanguarda, ou seja, dos pintores jovens, cuja notoriedade
Laffom, pensou seu projeto, na origem, como uma coleção (Édlúon spéda!e) da não vai além do círculo dos pintores e críticos profissionais, só vendem a um bem
editora onde trabalhava, ou como Olivier Orban (aliás, ambos apostam, de saída, reduzido número de colecionadores profissionais, em sua maior parte estrangeiros,
nas narrativas por encomenda) - e, por outro, aqueles que, depois de diversas e recrutem seu público entre os pintores e jntelectuajs que lhes servem de
tentativas mal-sucedidas, se contentaram com projetos "alimentares", tais corno companheiros de estrada, críticos de vanguarda e professores universitários
Guy Authier ou Jean-Paul Mengês. mar[,illals. As galeria' da rive drojee têm, sem dúvida, dois públicos, correspondentes
71. A mesma lógica faz com que o editor-descobridor esteja sempre ameaçado d.' ,\s duas categoriclS de produtos que elas oferecem: por um lado, grandes
ver suas "descobertas" desviadas por editores mais bem instaladns nll Iluis ".,kcionadorcs muito al'ortullados, únicos a terem condições de comprar as obras
consagrados, que oferecem seu nome, notoriedade e intluênci:l snhr., "" jlJlis d.' dos piJll<lfcS mais cunsagrados do século XIX; e, do outro, burgueses menos
prêmios literários, além da publicidade e direitos de autor mais l'i,'\·".itlS afortun'ldos e mel1l)S cultos, médicos e industriais da provincia, que ficam
plenamcnce satisfeitos com a maneira canônica e a temática convencional dos
72. Por oposição à galeria Sonnabend, que congrega piJl!"res j"V"liS (" Imis \l'ilIn pintores acadêmicos, sobrewdo, quando estão acompanhadas pela "garantia preço
tem 50 anos), embora já relativamente reconhecidns, L' :\ g:lkri:l /!IlUlltl-fillt'1 que
e qualidade", segundo a expressão utilizada pelo catálogo da Galeria Drouant,
expõe somente pintores célebres e já falecidos, a g,ril'lia Ih'lIis,' Rt'lIé - que se oferecida pelas grandes galerias tradicionais.
mantém neste ponto particular do espaço-tempo do campo aní,tico em que os
lucros, normalmente exclusivos, da vanguarda e Ih consagração chegam, durante 77. É evidente que, como já foi demonstrado alhures, a "escolha" entre os
um instante, a se adicionar - acumuh um conjunto de pintores já fortemente investimentos de risco, segundo a exigência da economia da denegação, e as
consagrados (abstratos) e um grupo de vanguarda ou de vanguarda anterior (arte aplicações seguras das carreiras temporais (por exemplo entre artista e anista-
cinética), como se tivesse conseguido escapar, durante um lapso de tempo, à professor de desenho ou-entre escritor e escritor-professor) não é independente da
dialética da distinção que arrasta as escolas para o passado. orígem social e da propensão para enfrentar os riscos que esta induz de uma forma
mais ou menos fácil, em conformidade com a confiança inspirada por ela.
73. A oposição estabelecida pela análise entre as duas economias não implica
nenhum julgamento de valor, embora ela nunca se exprima nas lutas comuns da 78. cf Pelntres t7gurat/fs coneemporajns, Paris, Galerie Drouant, 4' trimestre de
vida artística, a não ser sob a forma de julgamentos de valor; além disso, apesar de 1967.
todos os esforços de distanciamento e objetivação, ela corre o risco de ser lida 79. LAFFONT, R. oI'. cit. p. 302
através das viseiras da polêmica. Como já foi demonstrado alhures, as categorias de 80. Ibid. p. 216
percepção e apreciação (por exemplo, obscuro/claro ou fácil, profundo/superficial,
81. Menos de 5% dos jnte!eauais que têm obúdo sucesso jnte!eaua! se encontram
originallbanal, etc) que funcionam no terreno da arte são oposições de apliC<J"çâo
também no conjumo dos autores de best-se/lers (e todos eles são autores altamente
quase universal fundadas - em última análise, por intermédio da oposição entre
consagrados, tais como Sartre, Simone de Beauvoir, Soljenitsync, etc).
raridade e divulgação, vulgarização, vulgaridade, entre unicidade e multiplicidade,
entre qualidade e quantidade - na oposição, propriamente social, entre a eljte e as 82. No caso dos autores de Jv[jnujt ou de LatTont, trata-se da fração (respectivamente,
massas, entre os produtos de e/lte (ou de qua/ldade) e os produros de massa. os 4/5 e 1/2) que indicou o endereço.
74. Este efeito é perfeitamente visível na alta costura ou na perfumaria em que as 83. Um dos traços distintivos dos membros da Académie Concourt consiste em
empresas consagradas só podem manter-se durante várias gerações (corno Caron sua elevada taxa de provinciais (quase 50% contra menos de 115 de membros da
ou Chanel e, sobretudo, Guerlain) mediante uma política que visa perpetuar 1L'3dc'rnie lraf]~-ajse e autores da editora La!làne, e 1/3 de autores de Édjúons de
artificialmente a raridade do produto (os "contratos de concessão exclusiva" limitam Miflulr). Os que moram em Paris, estão distribuidos pelos bairros onde residem os
membros das academias.
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84. Podemos, assim, formular a hipótese de que o acesso aos indícios sociais da Porque já não está na moda; porque está associada ao conceitual de dois ou três
idade madura - que é, ao mesmo tempo, condição e efeito do acesso às posições de anos atrás". "- Quem é que poderia dizer o seguinte: quando observo um quadro,
poder - e o abandono das práticas associadas à irresponsabilidade adolescente (das não me interesso pelo que ele representa? - Atualmente, corresponde ao gênero de
quais fazem parte as práticas culturais - ou, até mesmo, politicas - "vanguardistas") pessoas pouco cultas em arte; trata-se de uma declaração típica de quem não tem
devem ser cada vez mais precoces quando passamos dos artistas para os professores, nenhuma idéia a respeito da arte. Há vinte anos, nem sei mesmo se há vinte anos,
destes para os profissionais líberais e destes para os patrões; ou, se quisermos, será que os pintores abstratos teriam proferido tal afirmação? Não creio. Trata-se
podemos formular a hipótese de que os membros da mesma faixa etária biológica exatamente do tipo que é ignorante e afirma: não sou um imbecil, o que conta é
- por exemplo, o conjunto dos alunos das Grandes écoles [NT: Instituições de que isso é lindo" (Pintor de vanguarda, 35 anos).
ensino superior, independentes do sistema universitário, que recrutam por 89. Entrevista reproduzida in VH 101, 3, outono de 1970. p_ 55-61.
concurso e se destinam a formar as elites intelectuais e dirigentes da nação.] - têm 90. É a razão pela qual seria ingênuo pensar que a relação entre a antigüidade e o
diferentes idades sociais, marcadas por diferentes atributos e condutas simbólicos, grau de acessibilidade das obras desaparece no caso em que a lógica da distinção
em função do futuro objetivo ao qual são destinados: o estudante da École des indu: um retorno (mantendo um certo distanciamento) a um modo antigo de
Beaux-Arcs tem o dever de ser mais jovem do que o normalien [NT: Estudante de expressão (como atualmente se passa com o neodadaísmo, o novo realismo ou o
uma Escola Normal que forma os professores para o ensino fundamental ou hiper-realismo) .
superior.] que, por sua vez, deverá ser mais jovem do que o estudante da École
91. Este jogo de piscadelas, que deve ser representado de forma rápida e com muita
poly[ecfJnique ou da ENA [NT: Sigla de École narionale d'administrarion:
naturalidade, exclui, de maneira ainda mais impiedosa, o fr3cassado que executa
estabelecimento público que recruta por concurso e se destina a formar os executivos
um gênero de golpes semelhante ao dos outros, mas em contratempo - em geral,
do escalão superior da administração pública na França. Por sua vez, a École
tarde demais -, e cai em todas as armadilhas, engraçadinho desastrado votado a
polytec.hnique reagrupa várias faculdades na área das ciências exatas.] De acordo
serviê'J da valorização daqueles que, apesar dele ou sem que o saiba, o consideram
com a nlesma lógica, seria necessário analisar a relação entre os sexos no interior
(OII1['.hlre, a llll'llOS que, compreendendo finalmente a regra do jogo, ele venha a
da fração dominante da classe dominante e, de forma mais precisa, OS el'ciloS na
Ir:\llsl'>rrll:Il' SI'11 ,'SI:llulo de fracassado em escolha e torne o fracasso sistemático
divisão do trabalho (particularmente, em matéria de cultura c dl' arte) d,] I'0si\-:ío
,'lU IlIn 11,11/1'<1" :lrtis!i,-o, (A prop,')sito de um pintor que ilusua perfeitamente esta
de dominante-dominado que incumbe às mulheres da bll'l;lIcsicl e qlll' :IS :1I"o,ill!.1
tr:]j,,[,"ria, uln llLltro alirrna de maneira admirável: "Antes, ele não passava de um
relaúvamente dos jovens burglleses e in [t'i'_'c"tIl,JiS, l'redisl'0IHlo:ls :1 IIIII 11;\[",/
I'illl,'r ruim que desejava ser bem-sucedido; agora, executa um trabalho a partir de
mediador entre as frações domin;)n[e c dOfllirl.ld,1 (:di'ls, 1'11",1 dl''''llll'l'ldl:ld"
um f'intor ruim que deseja ser bem-sucedido. Então, tudo bem".)
permanentemente por elas, em particIILlr, :11 r:Iv,'s dos s.i/O/ls)
92. Seria necess:irio mostrar o que a economia da obra de arte corno caso limite, em
85. RENÉ, Denise. Apresentação in CI!.I!I),t;IIC dll !<'I ,~:I!O/l illrcm.uiuna! dcs
que é possível observar com mais clareza os mecanismos de denegação e seus
Galeries pi!otes, Lausanne, MIIs"e CIll!o!l:d des Ik:lllx-Arts, 1'!li3. p. 150.
efeitos (e não corno exceção às leis da economia), traz à compreensão das práticas
86. A crítica universitária dedica-se a discussões sem fim sobre a compreensão e econômicas habituais em que se impõe também, com maior ou menor força
extensão desses falsos conceitos que, na maior parte das vezes, não passam de (como é testemunhado pelo recurso a um conjunto de agentes simbólicos), a
nomes que identificam conjuntos práticos, tais como os pintores agrupados em necessidade de dissimular a verdade nua e crua da transação.
uma exposição marcante ou em urna galeria consagrada, ou os escritores publicados
na mesma editora (e que não valem nem mais nem menos do que as associações
cômodas do tipo "Denise René é a arte abstrata geométrica", "Alexandre lolas é
Max Ernst", ou, ao lado dos pintores, "Arman e suas lixeiras" ou "Christo e suas
embalagens"). E quantos conceitos da crítica literária ou pictural não passam de
uma designação "erudita" de semelhantes conjuntos práticos (por exemplo,
"literatura objetaI" em vez de "nouveau roman" e este em vez de "conjunto dos
romancistas editados por Éditions de Minuir")?
87. Tal é o fundamento da homologia entre a oposição que se estabelece no campo
entre a vanguarda e a retaguarda, por um lado, e, por outro, a oposição entre as
frações da classe dominante: enquanto a apropriação das obras de vanguarda exige
um grau mais elevado de capital cultural do que de capital econômico e, portanto,
oferece-se de preferência às frações dominadas, a apropriação das obras consagradas
exige uma sorna mais elevada de capital econômico do que de capital cultural e,
portanto, é mais acessível (sempre relativamente) às frações dominantes,
88. Os gostos podem ser "datados", por referência ào que era o gosto de vanguarda
nas diferentes épocas: "- A fotografia está ultrapassada. - Por que motivo? -
Pif'rre }JollrdiclI
•
o COSTUREIRO
E SUA GRIFE
contribuição para uma teoria
da magia!
A Direita c a Esquerda
ou seja, rue Bonaparte e rue du Cherche-Midi. 4 Em um pólo, a de seu faturamento, o preço dos objetos oferecidos e o número de
austeridade no luxo e a elegância sóbria, a grande classe, que convêm provas, a intensidade das cores e, hoje, o espaço reservado às calças
ao capitalista da velha cepa - como disse Marx - e, mais nas coleções. As posições na estrutura da distribuição do capital
precisamente, às mulheres com idade canônica das frações mais específico se exprimem nas estratégias tanto estéticas, quanto
elevadas e estabelecidas, há mais tempo, na alta burguesia; no outro, comerciais. Para alguns, as estratégias de conservação que visam
as audácias um tanto agressivas e espalhafatosas de uma arte dita manter intacto o capital acumulado (o renome da qualidade) contra
de pesquisa que, pela lei da concorrência - isto é, a dialética da os efeitos da translação do campo e cujo sucesso depende,
distinção -, pode ser levada a proclamar o ódio à perfeição e a evidentemente, da importância do capital possuído e também da
necessidade do mau gosto, por um desses exageros de artistas que aptidão de seus detentores, fundadores e, sobretudo, herdeiros,
convêm a tal posição. Por um lado, a preocupação em conservar e em gerir racionalmente a reconversão, sempre arriscada, do capital
explorar uma clientela restrita e antiga que só se conquista pela simbólico em capital econômico. Para outros, as estratégias de
tradição; por outro, a esperança de converter novos clientes, através subversão, que tendem a desacreditar os detentores do mais sólido
de uma arte que pretende estar "ao alcance das massas" - isto é, e capital de legitimidade, a remetê-los ao clássico e, em seguida, ao
ninguém poderá se enganar neste caso, ao alcance das novas frações desc1.lssificado, colocando em questão (pelo menos, objetivamente)
da burguesia ou, o que vem a ser quase o mesmo, que prelL'IH!c ser slIas normas este,ticas c apropriando-se de sua clientela presente
cultural e economicamente acessível aos jovens das [[;1(:(')CS ;lnl it~;lS, 011, ,'m todo caso, fUlura, por meio ele estratégias comerciais que
O fato de a ideologia populista ele abCrlu ra :IS 1I1.! ,','.IS S(,' ('11" )II[ r.lI poderiam ser uti lizadas pelas maisons tradicionais, sem
ILlO
em um campo, onde o esquecimento d;lS Clllllli'Jll's d,' ;1,','SSl) ;lOS comprometerem sua imagem ele prestígio e exclusividade.
bens oferecidos é mais elifícil qlle alhures, ll'\HiL' a sugerir que cla Entre todos os campos de produção ele bens de luxo, a alta
deva ser sempre compreendida como uma estratégia nos conflitos costura é aquele que deixa transparecer mais claramente um dos
internos de um campo: os ocupantes de urna posição dominada em princípios de divisão da classe dirigente - ou seja, o que estabelece
um campo especializado podem tcr interesse, em certas conjunturas, oposição entre difetentes faixas etárias, indissociavelmente
em utilizar a homologia estrutural entre as oposições internas de caracterizadas como classes endinheiradas e detentoras de poder -
um campo e a última oposição entre as classes para apresentar a , além de introduzir no campo da moda certas divisões secundárias.
procura por urna clientela, no sentido econômico ou político do Segundo uma série de equivalências que se encontram em todos os
termo (aqui, a das frações dominadas do subcampo dirigente da dominios, jovem se opõe a mais idoso, como pobre se opõe a rico,
classe dominante, nova burguesia e os jovens da antiga burguesia), mas também como moderno se opõe a tradicional ou como aberto,
sob a aparência arrogantemente democrática de abertura às massas, antenado politicamente, se opõe a conservador e tradicionalista, e,
denominação eufemística e imprecisa atribuída às classes dominadas. finalmente, no domínio do gosto e da cultura, como intelectual se
Entre o pólo dominante e o pólo dominado, entre o luxo opõe a burguês. Assim, à semelhança das grandes maisons de costura
austero da ortodoxia e o ascetismo ostensivo da heresia, os ou dos salões de cabeleireiros de grande prestígio, os próprios
diferentes costureiros se distribuem segundo uma ordem que comerciantes de peles possuem quase sempre uma loja destinada
permanece praticamente invariável, quando lhes aplicamos aos jovens que se distingue por praticar preços mais baixos ou mais
critérios tão diferentes como antigüidade da maison e a importância jovem~ como se diz, às vezes, nesse meio. A lógica do campo deixa
claro o princípio de todas as equivalências, ou seja, a identificação o gosto burguês contra o qual se coloca. Isto significa que, uma vez
entre idade e dinheiro. De fato, a loja - destinada aos jovens - de mais, as faixas etárias constituem, à semelhança de qualquer sistema
uma maison situada no pólo dominante apresenta quase todas as de classificação, fatores de disputa simbólica entre as classes ou,
características das lojas situadas no pólo dominado desse campo: pelo menos, como vemos aqui, entre as camadas de classe que, de
desde os espelhos e araras de alumínio até vendedoras forma bastante desigual, têm interesse no triunfo dos valores
freqüentemente de shorr, tudo na maison de Miss Dior, como nas freqüentemente associados à juventude e à velhice.
de Ted Lapidus ou Paco Rabanne, tende a mostrar que se pode ser
No campo da moda, como em todos os outros campos, são
"tradicional e, ao mesmo tempo, moderna, em suma, burguesa e
os recém-chegados que, à semelhança do que ocorre no boxe com
estar na moda", como afirma, sem ironia, um panegirista. 5
o desafiante, fazem o jogo. Os dominantes agem sem riscos: não
Segundo esta lógica, um burguês pobre, isto é, um
têm necessidade de recorrer a estratégias de blefe ou enaltecimento
últelectual, seja qual for sua idade biológica, eqüivale a um jovem
que são outras tantas maneiras de confessar sua fraqueza. "No estilo
burguês: aliás, eles têm muitas coisas em comum, audácias na
indumentária, hoje, cabelos longos, gostos fantasistas, idéias clássico - diz um decorador -, é relativamente fácil criar o belo,
políticas simbolicamente avançadas e, origem de tudo isso na enquanto o estilo de vanguarda é muito mais exigente."ô Essa é
opinião do burguês, a falta relativa de dinheiro. Os jovens assim uma lei geral das relações entre os dominantes e os pretendentes.
definidos - isto é, grosso modo, o conjunto dos dominantes A nelo ser que mude radicalmente o terreno - o que, por definição,
dominados -, não conseguem negar a hierarquia do dinheiro e da não ocorre com ele - o pretendente empenha-se a parecer
idade a não ser constituindo, de forma decisória, outras formas, pretensiosa. de fato, tendo que mostrar e demonstrar a legitimidade
menos custosas, da vida de luxo. Mediante UIll considerável de suas pretensões, tendo que prestar provas porque não possui
investimento de tempo e de capital cultural, os artistas (e, em todas as credenciais exigidas, "ele exagera", como se diz,
menor grau, os intelectuais) podem se apropriar por um bom preço
denunciando-se, perante aqueles que só precisam ser o que são
- isto é, antes que tais formas sejam consagradas, portanto,
para serem como convêm, pelo próprio excesso de sua
valorizadas do ponto de vista simbólico e, no fim, econômico, por
conformidade ou de seus esforços no sentido da conformidade.
essa apropriação - de todos os bens da vanguarda, cafés ou
restaurantes populares, objetos antigos e, sobretudo, obras de arte, Isso pode ser a hipercorreção da linguagem pequeno-burguesa ou
espontâneas (as que encontramos no mercado das pulgas) ou o brilho demasiado acentuado do intelectual da primeira geração e
produzidas por profissionais, oferecendo assim aos produtores de a obstinação fascinada e, de antemão, vencida com que procura
vanguarda uma fração de sua clientela em curto prazo. O estilo de ocupar os terrenos em que não se sente tão à vontade - tais como,
vida de artista que transfigura a pobreza em distinção e refinamento a arte e a literatura -, ou ainda as referências pedantes aos autores
encerra a negação do esrilo de vida burguês, desvalorizado por sua canônicos que denunciam o autodidata (absoluto ou relativo) em
própria venalidade; e o gosto de artista que transforma em obra de suma, as audácias que submetem o novo-rico à acusação de mau
arte tudo o que toca - nem que se trate, como ocorre nos dias de gosto, pretensão, vulgaridade ou, simplesmente, de arrivismo ou
hoje, de simples dejetos -, remete ao passado, ao ultrapassado, ao
avidez, erro particularmente imperdoável em um universo que
démodé, ao velho (que não é o antigo), com seus aws de violência,
professa o desprendimento.
o
N ('I
Pierre Bourdieu
moda prêt-à-porter, é porque pretendia ser o primeiro. Sim, eu
produto de um laboratório destinado a algumas cobaias, mas trabalhar
fundei o T.N.P.* da costura. Fui muito criticado no início, claro!"13
com material movediço feito para viver em pessoas de verdade... e aí viver
bem, ou sej a, viver melhor. Courreges (em seu prospecto a respeito de sua coleção de
- Viver melhor? 1970): "construção, nitidez, poesia, novidade". "Protótipo (nome
- Sim, sem essa vulgaridade que é o que há de mais bobo e mais feio. do departamento de criação e de prestígio destinado a uma clientela
- Isso existe? privilegiada): da elegância, do novo, do futuro, de classe". "Costura
- Por toda parte, exceto quando se trata do verdadeiro luxo. "10 do Futuro: do presente, da lógica, da sabedoria, do funcional."
"Hipérbole: da juventude, da fantasia, da liberdade, do sonho
"O que me apaixona é vestir as mulheres para embelezá-Ias. (É, aliás, o realizado. "
que, de forma bastante explícita, elas me pedem para eu fazer l ) . O que Ungaro: "o último dos grandes costureiros", instalado em
me obriga, automaticamente, a rejeitar de propor-lhes qualquer bizarrice "um espaço ultra-moderno" que ele considera como seu "laboratório
que corra o risco de tornar-se um disfarce. Existem audácias, exageros. de estudos", "aberto a novos horizontes" e introduz a "superposição
que podem ser divertidos, alegres, engraçados, mas, mesmo assim, de estampas".
gratuitos. Estou querendo dizer que tudo isso não acrescenta nada. C·.)
Féraud: "a última idéia C..) se chama 'Féraud na rua',
Pessoalmente, desconsidero os efeitos de surpresa ou de choque. A
uma nova rede de lojas que sua filha dirigirá, cujo maior
elegância não é o choque, mas o refinamento." II
departamento se situará, evidentemente, na rive gauche". (Elle,
Essa linguagem - a da ~Hle qlle se reS[1L'ila L' rL'SI1l'ila SL'll j de janeiro de 1972).
público -, está muito próxima daquela de lIm 1l1,lrciJ.llld de
Ted Lapidus (publicidade): "Quando vejo minhas roupas
quadros que, no campo das galerias, ocupa lima posição homóloga:
na rua, sei que venci. A Costura é como a canção: o êxito é estar
por exemplo, A. Drouant quando denuncia as "falsificações" e
sendo cantarolada por todo mundo (... ). Um costureiro não veste
outros "métodos imaginados pelos falsos artistas para enganar",
clientes, mas subjetividades: as inquietações, ternuras, ansiedades
ou seja, "os efeitos de emoção viva e súbita" e, sobretudo, "a
de uma massa de homens e mulheres. A alta costura é um
excitação da curiosidade" que "consiste em provocar a surpresa,
laboratório, o 'Le Mans**da indumentária': fazemos pesquisas,
de maneira a absorver o espírito e mascarar a falta da verdadeira
ensaios (...). É a prova da rua".
arte. Tudo isso é combinado de maneira que se deva adivinhar o
sentido, à semelhança do que ocorre com as charadas: fica-se Com os estilistas, o discurso toma voluntariamente um ar
intrigado... é uma forma de se distrair, parece difícil, até mesmo, de esquerda:
genial..."12
01
ri
P/erre Rourdieu o Costureiro e Sua Grife
,
pretendentes opõem o sacrifício absoluto à arte e às audácias
Christiane Bailly: "Em uma mulher, não me interesso por
desinteressadas da afetação, granjeando assim, pouco a pouco, os
sua idade, mas por seu grau de liberdade".
serviços de uma parte do aparelho de celebração.
"Aos 16 anos, ela fazia suas próprias roupas, contra a corrente da alta
"(...) Sou simplesmente um catalisador e capto o que está no anlbiente.
costura, rebelando-se contra a rigidez, as aplicações, o 'belo promovido'
Há, naturalmente, um toque pessoal naquilo que faço, mas empreendo
por Dior, contra tudo o que afoga, torna a mulher deselegante e a coloca
mudanças freqüenremenre- aliás, isso corresponde à minha vontade:
em uma redoma." (Elle, 15 de abril de 1974)
não me interessa, como alguns (necessariamente com menos êxito),
E esse campo que tem sua direita e sua esquerda, seus 'repetir-me'. Não tenho problemas de marca, não procuro promover uma
conservadores e seus revolucionários, tem também seu centro, grife e pouco me importa não ser conhecido pelo grande público (...).
seu lugar neutro, representado aqui por Saint-Laurent que atrai Confecciono um grande número de modelos para filmes. Vesti Mia
para si os elogios unânimes por meio de uma arte que une, de Farrow, Girardot, Stéphane Audran (...). Do mesmo modo que eu
acordo com uma hábil dosagem, as qualidades polares (clássica, detestaria vestir uma 'fulana de tal: tenho prazer em vestir uma atriz,
sutil, harmoniosa, sóbria, delicada, discreta, equilibrada, bonita, un1a cantora."iti
fina, feminina, moderna, adaptável a todos os estilos de mulher);
Os recém-chegados reintroduzem, incessantemente, no
que recupera as inovações espalhafatosas dos outros para
campo UlIl ardor e um rigorismo de reformistas. Eles podem
transformá-las em audácias aceitáveis ("ele lança as calças em
Illl'SflIO assumir ares de revolucionários no momento em que
larga escala que, no fundo, não haviam obtido êxito com Courrl'gl'S
por ser um pouco complicado"); que transforma as revlJllas lL! suas disposições ele quase artistas de origem burguesa encontram
vanguarda em liberdades legítimas, à IlLlIll'iLl dt' /i' Mllf}(/l' qUl' um reforço na necessidade de perseguir uma clientela tentada a
publica Asterix em histórias em quadrinhos C',,: t·1e o /i/Je'rfy, os denunciar o contrato tácito de delegação que confere aos
hlts, que é uma saia maravilhosa, o hlazc{"); e que nJO hesita costureiros o monopólio da "criação" (ela própria usa roupas
em declarar: "É preciso vir para a rua" .11 E podemos deixar a inspiradas na moda vigente entre 1920 e 1960). É a concorrência
última palavra à revista Le NOl/vc/ Obscrvarcl/r, que conhece o dos pretendentes qu~, continuamente, impele os dominantes a
assunto: "O responsável por essa abertura à esquerda é, um respeito relativo pelos valores oficiais do campo, exatamente
precisamente, um antigo grande costureiro, ou seja, Yves Saint- aqueles em nome dos quais se exerce sua autoridade específica;
Laurent".15 é através dela que se exerce o controle do campo sobre o uso de
Mas, os pretendentes não estão sem recursos; podem poderes demiúrgicos fornecidos por ele. E as profissões de virtude
acumular capital de autoridade específico ao levarem a sério os às quais os historiógrafos gostam de se referir ("O que fiz de
valores e as virtudes exaltados pela representação oficial da mais difícil na minha vida - dizia Chanel -, foi minha recusa em
atividade legítima e ao oporem a fé intransigente do convertido ao ganhar dinheiro"; "Pierre Balmain é um dos numerosos
fervor de instituição característico dos guardiães da ortodoxia. Às costureiros que só aceitaram explorar comercialmente a respectiva
concessões dos dominantes, que pactuam com sua época e grife por amor à profissão.") representam a única maneira
negociam o capital simbólico que acumularam em ganhos temporais, impecável de obedecer à necessidade do campo, como é
econômicos e políticos (condecorações, academias, etc.), os testemunhado por esta declaração em que Courreges invoca,
Pierre Bourdieu
o Costureiro e Sua Grife
simultaneamente, os imperativos categóricos do amor pela arte Estilo e estilo de vida
e os imperativos hipotéticos da gestão econômica racional: "Só A decoração da moradia dos costureiros de grande prestígio
, ,-
o
M
Pierre Bourdieu o CostureÍro e Sua Grife
,
•
A oposição entre vazio e pleno, passado acumulado e
tábula rasa, ostentação do luxo e exibição do despojamento, é
um dos princípios a partir dos quais se engendram inúmeras
distinções que estabelecem a separação entre os estilos e os
As breves anotações sobre a decoração dos
estilos de vida da antiga burguesia e os da nova, assim como os
apartamentos de alguns costureiros de grande prestígio
de seus costureiros.
manifestam um verdadeiro sistema de oposições que, em sua
ordem, reproduz o sistema das posições ocupadas por eles no Seguindo a preferência da moda pelo estilo tradicional
campo da alta costura. mais castiço, a decoração do apartamento de Givenchy combina
sistematicamente o mais clássico da vanguarda com os quadros
Os dois extremos - Balmain, o sobrevivente; e Hechter,
de Vasarely ou os móveis de Knoll, as reinterpretações
o pretendente - opõem-se praticamente em todos os aspectos.
modernas de temas ou motivos clássicos com a cama de dossel
Por um lado, a elegânâa e a opulênâa, o luxo ascético que
em renda de linho branco e as obras antigas, seda chinesa ou
define a burguesia tradicional: o centro e o símbolo deste
ícone grego.
universo é o salão, ao mesmo tempo, lugar de recepção
destinado à conversação - cujo estilo e tom são definidos pela N:lo obstante as aparências, ele opõe-se bem menos ao
própria qaalidade da decoração e dos assentos, austeras "estilo cLíssico e afetado" de Balmain do que ao moderno barroco
poltronas Luís XV - e peças de exibição, ou seja, os trofl'Us til' Cardin, cuj:1 ambição artística se exprime ou se traduz não só
culturais do proprietário, móveis e outros objetos an tigos, tudo l'ln Sl1:1 preferência (compartilhada com Daniel Hechter e com
perfeitamente legítimo: desde as estatuetas chinesas da l'pOC1 inltllll'l'os "artistas líricos" - por exemplo, Aznavour - e artistas
T'ang até os quadros dos mestres menores franceses ti,) s.:'culo de cinema) por este tipo de Acapulco doméstico, o "jardim de
XIX. Mesmo classicismo, mesmo ascetismo afetado l' opulento inverno", ou pelas coleções de "caixas", mas também em sua
em sua indumentária (colete, lenço de enfeite quase invisível, indumentária que pretende evocar a sobrecasaca acinturada do
etc.). artista romântico. Quanto a Courreges, seu apartamento
manifesta - inclusive, no quarto de dormir, banheiro ou cozinha,
Na outra extremidade do espectro, o desleixo rebuscado
espaços igualmente dignos em seu entendimento de serem
do modelista que posa praticamente deitado no chão e rodeado
oferecidos ao olhar do visitante -, sua vontade revolucionária de
pela mulher e filhos (e não, sozinho e em pé), com uma
fazer tábula rasa ("ele arrasa com tudo") e, por si, ex nÍhÍlo,
desenvoltura afetada - à semelhança de sua indumentária de
repensar tudo: a distribuição no espaço das funções e formas,
estudante afortunado, gola rolê, colete de tricô, etc. Tipo de
assim como os materiais, as cores, em função dos únicos
ateliê de artista, aberto para o exterior por uma vasta baia
imperativos que são o conforto e a eficácia, além de uma "filosofia"
envidraçada e sem móveis, ambiente no qual as almofadas e as
sistemática da existência que se exprime também em suas
peles servem de assento, tendo como única decoração as plantas
escolhas de costureiro ou em sua indumentária - calças e botas
e um quadro da vanguarda anterior, esta decoração de decorador
brancas, blusão turquesa, boné com longa viseira vermelho
impõe as discussões metafísico-políticas entre "companheiros"
brilhante.
sobre a pintura da vanguarda, o cinema ou a poluição, tão
imperativamente quanto o salão azul e ouro de Balmain remetia
à discreta conversação entre pessoas distintas e conhecedoras
de arte e literatura,
o -<c
os cdadores que conseguiram uma marca distintiva sem chegarem ""'
A translação que afeta todo o campo é a resultante de Este mecanismo tende, como se vê, a assegurar a mudança
estratégias antagonistas e não deve ser descrita ou compreendida dentro da continuidade: de fato, tudo se passa como se a posse de
como um simples processo mecânico: isto se vê claramente no um capital que só pode ser conquistado na relação com as maisons
movimento pelo qual alguns costureiros não cessam de abandonar antigas constituísse a própria condição das rupturas bem-
maisons antigas a fim de fundarem suas próprias empresas, sucedidas. Os recém-chegados são, na maior parte das vezes,
desertores das maisons estabelecidas que devem seu capital inicial
escapando assim do declínio coletivo por um movimento individual,
de autoridade específica à sua passagem anterior por uma grande
na contramão do movimento que afeta a empresa e o campo em
maison (sempre lembrada em suas biografias).
seu conjunto.
Em razão do seu modo de aquisição específica e de sua
Como mostra o diagrama (pág. 135) no qual as flechas
própria natureza, esse capital que, em sua essência, consiste na
(acompanhadas, quando necessário, pelo nome da pessoa em
familiaridade com certo meio e na qualidade conferida pelo fato
de pertencer a ele, não pode contrariar a crença carismática da ou seja, um espaço de trinta anos necessário para que as maisons
autocriação do criador. Assim, a propósito de Lison Bonfils - ex- mais consagradas cheguem a seu apogeu - é porque, sem dúvida, a
manequim de Dior e ex-redatora de moda da revista EllE, ligada, moda, à semelhança da canção, da fotografia, do romance popular e
entre outros costureiros, a Paco Rabanne - pode-se escrever: "Ela de todas as "artes médias", situa-se no tempo de curta duração dos
tem o estilo no sangue" (Elle, 15 de abril de 1974). Ou, a propósito bens simbólicos perecíveis e porque ela só pode exercer um efeito
de outra estilista, Emmanuelle Khanh, ex-manequim de de distinção servindo-se, sistematicamente, das diferenças
Balenciaga, ligada a Courrêges que, em 1957, desenhou seu vestido temporais, portanto, da mudança.
de casamento - ela casou-se com Quasar - quando o costureiro
A homologia - que aproxima as práticas e os discursos de
ainda estava na maison Balenciaga; a Paco Rabanne, fornecedor de
acessórios para Balenciaga e que criou os acessórios para sua agentes que ocupam posições homólogas em campos diferentes -
primeira coleção; a Givenchy e Philippe Venet: "Ela foi manequim não exclui as diferenças associadas à posição que os diferentes
na maison Balenciaga, mas a alta costura não a fascinava; preferiu campos, enquanto tais, ocupam na hierarquia da legitimidade. Basta
fazer roupas com a ajuda dos empregados e, sem que o tivesse que um costureiro recém-chegado ao cume da hierarquia de seu
previsto, criou o tailleur do futuro, maleável, leve, sem tela nem campo tente transferir seu capital para um campo artístico, como
enfeites" (Elle, 15 de abri de 1974). fl'z Cmlin CDll1 seLI 1'Sp.1,-O, para que o campo de categoria superior
Si' 1110hilize para fazer lembrar as hierarquias. Aos ataques dos
Tudo parece indicar que este capital inicial scrá tanto lIlais
l'sl1L'cialislas das artes legítimas, Cardin só tem a opor a reafirmação
importante, quanto mais elevada for a posição ocupada pl'io rl'cl'lIl-
de SLIa autoridade espccífica de costureiro: "Melhor do que
chegado em uma maison de maior prestígio: assim, Cmlill c S:lillt
Laurent, os dois principais concorrentes atuais di' J)im, pa~;s:lI<lIl1 ningLIl'm, SOLI capaz ck distinguir a feiúra da beleza e não admito
por esta maison. Sem dúvida, paradoxalmcnte, o (apitai de .1lI/uIidzd1' que pessoas incultas manifestem tal pretensão. Conheço o mundo
e de rElações (pelo menos, tanto quanto de coll/pc/àzo;z) , adquirido inteiro. Através de minha atividade, tive a oportunidade de ver o
ao freqüentar as Ill.1isOIlS antigas, coloca o costureiro de vanguarda que se fazia de melhor em todo lugar e fiz por Paris o que ninguém
ao abrigo da condenação radical de que seria passível por suas ainda tinha ousado c;u conseguido fazer". E o crítico de arte que
audácias heréticas. Isso é verdadeiro Em qualquer campo. Basta cita estas declarações contenta-se em recusar esta transferência
lembrar a história particularmente típica do memorando de Lord ilegítima de capital: "Eis uma forma de mostrar audácia em um
Rayleigh: um artigo sobre certos paradoxos da eletrodinâmica que, domínio em que a humildade deveria sempre prevalecer.
sem o nome do autor, ele tinha enviado à British Association foi Certamente, todo o mundo fica tranqüilizado pelo fato de que a
inicialmente rejeitado; em seguida, ao ser conhecido o nome do dançarina do sr. Cardin seja uma prostituta, em vez de um iate
autor, foi aceito com abundantes desculpas. 19 Sem dúvida, algo de privado, mas o argumento acaba por se desgastar. Estamos à espera
semelhante se passa no campo religioso no qual não se pode, contudo, de qualidade e não de presunção" .20
invocar os imperativos da acumulação: o profeta, como assinalou
As referências às artes nobres e legítimas - pintura,
Max Weber, sai freqüentemente da corporação dos sacerdotes, da
escultura, literatura - que fornecem a maior parte de suas metáforas
qual ele faz parte desde seu nascimento ou por formação.
prestigiosas à descrição das roupas e um grande número de seus
Se a relação entre o grau de consagração e de antigüidade só temas à evocação da vida aristocrática que, se presume, é
se mantém dentro de limites temporais relativamente reduzidos - simbolizada por elas, constituem outras tantas homenagens que a
o
Pierre Bourdicu o Cos{lJrciro e Sua Grile
"arte menor" presta às artes maiores. Do mesmo modo, a tendência any allegiance to the cult of the classics".n Críação sazonal de
dos antiquários de grande prestígio para usurparem a denominação produtos de estação, a atividade do costureiro é o oposto exato da
de galeria é uma forma de reconhecer a hierarquia que, no comércio atividade do escritor ou do artista legítimo na medida em que ele
dos objetos de arte, se estabelece entre as anúgüMades - produzidas não poderá esperar ter acesso a uma consagração duradoura (ou
por artesãos e vendidas por antiquários - e as obras de arte, únÍcas definitiva) a não ser que saiba rejeitar os lucros e os sucessos
e ÍnsubsútuÍveú, produzidas por artistas e vendidas em galerias: imediatos - porém, temporários - da moda: a lei da distinção que,
o mesmo se passa também com o desvelo manifestado pelos neste universo, se afirma abertamente, toma a forma de uma ruptura
costureiros ao afirmarem sua participação na arte ou, na falta desta, obrÍgatórÍa, efetuada com data fixa, a partir dos cânones do ano
no mundo artístico (as brochuras de Saint-Laurent limitam-se an terior. 23 Os próprios revolucÍonáríos não podem escapar da lei
praticamente a falar de suas criações para o teatro), com a comum que reenvia a últÍma moda ao démodé e condena o crÍador
assistência de todo o aparelho de celebração (especialistas em a se renovar. assim, o privilégio dos costureiros de maior prestígio
relações públicas, jornalistas de moda, etc.). - por exemplo, Chanel - consiste em fazer parar, durante um
momento, o tempo da moda, forma suprema de distinção. Pelo
"O esplendor da alta costura faz-se sentir de várias maneiras... Tome, por
fato de que o valor material e simbólico dos bens da moda é
exemplo, Sauguet ou Auric que criaram balés, cujos figurinos foram,
constituído essencialmente (se deixarmos de lado as diferenças
freqüentemente, concebidos por costureiros. Você tem um moço muito
seculI(\;írias entre os costureiros) sobre a dÍsúnç"lo temporal entre
famoso que faz figurinos para teatro e balés, sobretudo, para os hd{'s de
a moda e o d(;fl}od(;, tal valor é inexoravelmente destinado a
Monte Carla. que é André Lav~lsseur. ex-coIJbor:lc!or llLo (:hrisliJIlI )illL
declinar com o tempo, sem poder contar com a subida da cotação
Yves Saillt-Laurent é Ulll excl'!t'lltl' dl"l'llhisra dl'ligurillus p.lIJ Il';llro,
que assegura a certos objetos técnicos sua rcconversão post mortem
entre outros, para a revista de ZizijeJl1lllJrie 110 Casillo de Paris. É uma
em objetos simbólicos.
dimensão que vai bast,mtl.' além de um vestido, enquanto roupa. Cocteau
desempenhou também um papel muito importante."2!
E, na seqüência da entrevista, essa jornalista de moda
declara: "Eu me lembro quando Dior apresentou sua linha reta, a
linha H fomos procurar figurinos de Clouet em livros de trajes
valor
para mostrar este lado muito reto ... " de troca novo
À semelhança do autor de romances policiais a respeito
do qual nada nos autoriza a pensar que, um dia, possa ser
considerado um clássÍco, o costureiro participa de uma arte que
ocupa um lugar inferior na hierarquia da legitimidade artística;
fora de uso
ora, em sua prática, ele não pode deixar de levar em consideração velho
a imagem social do futuro de seu produto: "The stories in this o tempo
book certainly had no thought of being able to please anyone ten
years after they were written. The mYó'tery story is a kind of writing
that need not dwell in the shadow of the past and owes little if 1. Objeto técnico (imóvel, móvel, máquina, eletrodoméstico)
do valor distintivo do produto. É disso que freqüentemente se grupo a esse bem, pelo grupo que ocupa uma posição
esquecem os informantes que ligam diretamente a reestruturação imediatamente superior.
do mercado da moda à transformação dos circuitos de circulação
Os ciclos colocados em evidência, de forma científica, por
da informação (por exemplo, com a difusão das apresentações de
Kroeber 25 podem ser observados, na história da moda, porque o
moda na televisão):
retorno de um tema ou de uma forma só é possível quando a série
"Na década de 50, as maúons de costura tinham sofás para as boas
das reutilizações secundárias do desclassificado para fins de
clientes e revistas de maior vendagem. Comentava-se que alguns
classificação - bem descrito, embora mal analisado, através da
proprietários de revistas mais populares - do tipo E!!ee Marie C!aire-,
imagem ingenuamente emanista do trickle dowd 6 - chegou a seu
compraram revistas de prestígio para terem direito a um lugar nesses
termo, isto é, até a divulgação completa do que, na origem, era
sofás. Certamente, isso é um exagero, mas talvez faça algum sentido.
extremamente distintivo, e também porque o universo das
Lembre-se que, antes da televisão, as bancas de jornais esperavam com
variações - que são suscetíveis de serem percebidas e aceitas por
impaciência a publicação das revistas, um mês depois da apresentação
um grande público e caracterizam as "revoluções" estilísticas - é
das coleções de costura porque se tratava de uma exclusividade mundial:
muito limitado (mais longo ou mais curto, mais flexível ou mais
nos jornais cotidianos, não era publicado nenhum esboço de tendências,
estruturado, etc.).
nenhum desenho; só depois de um mês é que se tinha o direito de
divulgar os novos modelos para que os compradores estrangeiros Exemplo de tal retorno: hoje, os decoradores renunciam a
profissionais, americanos e europeus, tivessem tempo de receber essas todas as inovações que haviam introduzido nas lojas de vanguarda
novas coleções (...). Em julho de 1962, com 7U.,./.Ir, isso conll'\'OU a da rive gauchc com urna unanimidade semelhante à que tinham
mudar porque os costureiros quiseram panicil':ll' do l'riull'i \O siIolV que manifestado pua impô-las, encontrando, assim, em uma dupla
foi transmitido via satélite. Em seguida, eks j,í /üo puderam voltar atr:ls meia-volta (à esquerda), a sobriedade discreta das lojas do passado:
(, ..). Hoje, a vendagem de revistas é pouco significativa,"! I "Hoje, o barulho foi banido dos lugares elegantes: isso lembra o
A degradação no tempo do valor comercial dos bens da shopping-cenrer'Y "O paetê, o ferro-velho acabaram e, hoje,
moda (com o mecanismo das liquidações e dos submercados) preconiza-se o uso de cores nítidas e tapetes espessos."28
corresponde à sua difusão, à sua divulgação, isto é, à deterioração Estes retornos nada têm em comum com a subida de
de seu poder de distinção. Os costureiros consideram cotação que se observa quando objetos técnicos fora de uso, atlas,
explicitamente estes efeitos em suas criações. "(Utilizo) todas as
mesas de café ou telefone de funil, se transformam em bens
minhas cores habituais, a não ser que eu tenha sido negativamente
simbólicos, no fim de um prazo mais ou menos longo, durante o
influenciada por aquilo que foi visto demais no ano anterior"
qual sua identidade social permanece, de algum modo,
(Christiane Bailly). Mas, dado que o valor distintivo de um produto
indeterminada: o intervalo de tempo que separa o objeto técnico
é, por definição, relaciona!, isto é, relativo à estrutura do campo
ou simbólico desusado do objeto antigo, percebido sinceramente
na qual ele se define, o poder de distinção de um bem da moda
como um banira objeto e intrinsecamente digno de ser procurado,
pode continuar a ser exercido a serviço de um grupo que ocupa
é a marca visí';el do trabalho coletivo de transfiguração que se
determinada posição na estrutura social - e, ao mesmo tempo, na
descreve como "mudança de gosto". Quanto mais se avança no
estrutura da distribuição desse bem - mesmo que ele não seja
mais exercido, em virtude precisamente do acesso de um novo tempo, menor é o risco de que o gosto pelo objeto considerado
apareça como uma preferência ingênua, do primeiro grau,
Pierre Bourdieu
,
desvalorizada pela qualidade social daqueles que a experimentam. ter sucesso uma vez que se constitui o aparelho de consagração e
Isso quer dizer que os primeiros responsáveis pela rec1assificaçilo de celebração capaz de produzir e manter o produto e a necessidade
dos objetos desclassificados - empreendimento produtivo do ponto deste produto. Os "valores duradouros" são os que podem colocar,
de vista econômico e simbólico, do qual a reabilitação de gêneros a seu serviço, instituições capazes de lhes assegurar, de forma
populares, vulgares ou vulgarizados é um caso particular -, devem duradoura, um mercado - econômico e/ou simbólico -, isto é,
deter um capital de autoridade estética de tal forma que sua escolha capazes de produzir a concorrência para a apropriação material ou
não possa parecer, em momento algum, como uma falta de gosto: simbólica e, ao mesmo tempo, a raridade da apropriação com todos
é lógico que essa transgressão inicial é perpetrada pelos artistas os lucros materiais e simbólicos que ela assegura.
ou intelectuais de vanguarda (os primeiros a exaltar, hoje, o kÍtsch) É significativo que o progresso de uma prática ou de um
que encontram na recusa de reconhecer as normas da conveniência bem em direção à legitimidade e à constituição de um aparelho de
estética em vigor uma forma cômoda de lembrar que eles são a entesouramento se atraiam e se reforcem mutuamente. A
fonte de toda a legitimidade estética. Entre as estratégias referência ao passado do gênero e a referência aos outros produtores
empregadas para evitar o envolvimento com gostos contemporâneos são dois indícios práticos da constituição de um
"comprometedores", a mais comum consiste em dissipar todo campo: à medida que o wes{em entra na história, a história do
equívoco pela associação de objetos, cujo status ainda permanece w('s(('["[} entra no lVes(crn de modo que, às ve:es, tais situações
indeterminado ou incerto, a outros que, sem sombra de dúvida, ll,lU passam de jogos letraelos de referências históricas. É evidente
são incompatíveis com uma adesão vulgar a !:lis objetos: l', por qUl' o sistema escolar desempenha um papel capital neste processo,
exemplo, em filosofia, a comhina\-:l,) dL' I\l:trx c()m I kidd,'gn L"11 seja porque assegura ao mercado das artes canônicas um apoio
determinada época; de Marx COII1 Freud revisto por Lacan, em artificial, produzindo consumidores antecipadamente convertidos,
outra; e, em decoraç:l0, a associaç:l0 dL' um objeto ki(sch a uma ao mesmo tempo que oferece um mercado à competência cultural
cômoda Luis XV ou a uma pintura de vanguarda, etc. nestas matérias, seja porque fornece às artes, em via de canonização,
Mas, com exceção das declarações eruditas e doutamente a assistência benévola (mas interesseira) daqueles que, por excesso
distanciadoras do cinéfilo ou do especialista do romance policial, a ou por falta de capital escolar, se satisfazem com os investimentos
melhor garantia é, evidentemente, uma grande autoridade arriscados (romance policial, ficção científica, cinema, história em
intelectual ou artística. O acesso do cinema de horror ou da ficção quadrinhos, etc.).
científica e de tantos outros objetos simbólicos de simples consumo
ao status de objetos de análise ou a transmutação de objetos
A Antinomia da Sucessão
técnicos desusados ou de objetos simbólicos démodés em
"antigüidades", objetos antigos que merecem ser conservados e
admirados, é uma operação social extremamente análoga à que os Mais importantes, talvez, do que as condições impostas aos
artistas realizaram com o ready made: a continuidade do objeto recém -chegados, são as dificuldades inerentes à perpetuação da
material mascara que a subida de cotação é um processo social empresa após a morte do fundador, dificuldades essas que
I
submetido a leis e riscos semelhantes aos da produção de uma manifestam a especificidade do campo da moda. A morte do criador,
obra de arte. Nos dois casos, a operação de alquimia social só pode que já tem levado muitas maisons, mesmo entre as maiores, a
cunhado de Jean Patou; Robert Ricci, t1lho de Nina Ricci) ou um Neste aspecto é que a comparação com as estratégias que
-01 simples executivo remunerado Qacques Rouet na maÍson Christian são utilizadas em outros campos para assegurar a perpetuação de
Cf) ! Dior) - a quem incumbe a responsabilidade da gestão econômica; um pockr carismático pode produzir todos os seus efeitos. A partir
(J I
W por outro, o responsável pela cúação, título que reúne em uma dl' um fundo constituído por homologias, destacam-se as diferenças
magnítlca aliança de palavras o vocabulário da burocracia racional, que conduzem diretamente à especificidade de cada campo, ao
u i isto é, da delegação, e do carisma que encont ra l'lll si Sl'U próprio mesmo tempo que elas permitem fornecer a plena força heurística
fundamento. 3o Este criador substituto, espl'cic tIL' vigúrio do gl'nio, à questão dos invariantes: o mais significativo é que se possa aceitar,
deve - como seu título indica - enfrentar as exigl'ncias antitéticas aqui, o princípio da substituição do cúador - coisa impensável no
de uma posição contraditória. campo artístico no qual pretende-se perpetuar a mensagem, mas
Os "responsáveis pela criação" têm sempre, como mostra não substituir aquele que a produziu. Se o campo intelectual recusa
o esquema (pág. 135), um itinerário complicado e retrógrado o princípio da substituição, sem dúvida, porque o empreendimento
(diferentemente dos fundadores de maison): assim, Marc Bohan, se reduz ao próprio escritor, a preocupação de perpetuar - não
oriundo da maison Piguet, volta a maisons mais antigas, como propriamente a pequena empresa de produção artesanal, mas, pelo
Molyneux e Patou, antes de entrar na maison Dior, em 1958; o menos, o capital que ela acabou constituindo e do qual participam
mesmo acontece com Gérard Pipart, estilista que entra na maison os "descendentes legítimos" (família, colaboradores, discípulos) -,
Ricci, em 1962, com Michel Goma que ingressa na maison Patou, inspira todo tipo de estratégias, desde a publicação de obras
ou com Jean-François Crahay na maison Lanvin. póstumas até a criação de associações culturais ("Os Amigos
de ... "). O campo científico ignora a antinomia da perpetuação do
Estas eXlgencias podem se revelar, no limite,
carisma porque o método - teria sido ele inventado ou aperfeiçoado
insustentáveis, quando o cíÍador deve cíÍar, isto é, afirmar a
unicidade insubstituível de seu estilo e, ao mesmo tempo, entrar por uma única pessoa? - torna-se um instrumento coletivo capaz
na unicidade não menos insubstituívei d? cúador, por detlnição, de funcionar independentemente daquele que o produziu. No caso
insubstituível, mas que ele tem o encargo de substituir: ela alta costura, a questão se coloca em termos bastante originais
o 'n
'n
pjen-e Bourdi'eu o ({,SWl'ciro e Sua Go/e
,
porque todo o aparelho de produção e circulação está orientado contradição que faz surgir Ramon Esparza, sucessor de Gaston
especificamente, não para a fabricação de objetos materiais, mas - Berthelot à sucessão de Chanel, quando ele exige plenos poderes
como mostra perfeitamente a estratégia dos costureiros que "incluindo o de falar quando tiver vontade". Falar, isto é, existir
vendem suas criações (sob a forma de licença) sem que eles como pessoa e obter os meios para se tornar uma personagem
mesmos produzam objetos -, para a produção do poder quase com uma marca, palavras, manias, em suma, tudo o que
mágico, atribuído a um homem singular, de produzir objetos que compunha Chanel, o carisma de Chanel, e que nos força a
são raros pelo simples fato de que ele os produz, ou melhor ainda, formular a pergunta: Como será possível substituir Chanel?
de conferir a rarÍdade pela simples imposição da grife, como ato Exatamente o que os jornalistas, que haviam contribuído para a
simbólico de marcação, a quaisquer objetos, inclusive, não fabricados produção da crença coletiva, descrevem retrospectivamente com
por ele. um objetivismo redutor:
A questão - "Como será possível substituir Chanel?" - "Privado de sua vedete, o cenário perdeu toda sua magia. No fundo,
deverá ser entendida assim: como continuar produzindo Chanel todo este verniz preto e ouro era um pouco sinistro, e essas corças de
- objeto simbólico, marcado com o signo da raridade pela bronze ~ dignas de figurarem nas salas do museu Petit Palais -
assinatura - sem a presença física de Chanel - indivíduo representavam justamente o notável pesar da felicidade de ter cachorros.
biológico, único habilitado a assinar Chanel nos produtos Mas, Chanel detestava cachorros. Trancamos a porta e, à nossa frente,
Chanel. Como confeccionar produtos Chanel que não sejam a célebre escadaria de espelhos. Era aí, GalcrÍa dos Espelhos e Sala do
cópias nem falsificações, como se diz na pintura' O problellLl Jiono, que Chanel - multiplicada por cem, sentada em um degrau,
existe porque pretende-se fazer sem Chancl aquilo que somellll' com a cabeça coberta pelo seu eterno chapéu de palha -, controlava,
iVJademcJÍselle estava autorÍzada a fazer, isto l', prudutos ClJanel: nos dias de apresentação das coleções, as ausências e abstenções. A
não um simples trabalho de substituto, capaz de reproduzir seus pés, espalhados pelo tapete bege - p gasto-, os fiéis em uniforme
produtos de acordo com os cânolles criados pelo crÍado r, mas de gala - cwccdscreme e botões dourados ~ aplaudiam com vigor (...).
uma operação quase mágica, manifestada pela assinatura que, Mademoiselle, enclausurada há vinte anos em um monólogo, do qual
por definição, só pode ser operada na primeira pessoa. Fazer explodiam na superfície, em forma de bolhas, vitupérios e fórmulas
apelo a outro crÍador para salvar o capital é, de qualquer modo, mordazes, enquanto desliz sub-repticiamente o lento fluxo de
expor-se a perdê-lo: que ele afirme, como se diz, sua lembranças. Mademoiselle não SupOltavaas interrupções (...). A religião
personalidade ou se submeta, nestes dois casos, o que se perde do pequeno cailleur. Com seus ritos: mangas cortadas por três vezes,
é o direito à assinatura criadora. O criador substituto só poderá rcsouras sacrificadoras, estréias banhadas em lágrimas. Seus milagres:
desempenhar sua função de criador de raridade e valor se vier a pela primeira vez, foi possível usar um terno dez anos seguidos sem ter
se conceber como criador de raridade e valor, isto é, dotado de ficado démodé, pois Chane!, que ditava a moda, decidira parar o tempo.
valor como pessoa - e não somente como substituto ou delegado. E um evangelho: 'É preciso sempre... Detesto as mulheres que .. .',
Mas, ao fazê-lo, ele renuncia ao capital que está associado a etc."32
pjerre BourdJ"eu
o Costureiro e Sua Grjfe
Fui contratado pela empresa Chanel para fazer funcionar a majson A Imposição de Valor
- de um papei".33
e não para retomar a representaçao
É a raridade do produtor (isto é, a raridade da posição
Deve-se evitar ver nessas análises uma forma de restaurar,
que ele ocupa em seu campo) que faz a raridade do produto.
com outras palavras, a fé no poder carismático do criador. este
Como explicar, a não ser pela fé na magia da assinatura, a
limita-se a mobilizar, em graus e por estratégias diferentes, a
diferença ontológica - comprovada do ponto de vista econômico
energia da transmutação simbólica (isto é, a autoridade ou a
- entre a répJjca assinada pelo próprio mestre (este múltiplo
legitimidade específica) que é imanente à totalidade do campo
antecipado) e a cópia ou a falsificação? Já é conhecido o efeito
porque este a produz e a reproduz por meio de sua própria
que uma simples troca de atribuição pode exercer sobre o valor
estrutura e de seu próprio funcionamento. Toda teoria econômica
econômico e simbólico de um quadro. O mesmo é dizer, de da produção de bens simbólicos que leva em conta apenas os
passagem, que o poder de transmutação não pertence somente custos de fabricação dos objetos considerados em sua
ao produtor das obras (e que este não o obtém por si mesmo): materialidade é falsa. O que é válido para uma Eau de Coiogne
o campo intelectual e o campo artístico constituem o espaço de do MOlloprix' l1JO o l' elll relação a um perfume de Chanel: mesmo
lutas incessantes a propósito das obras do presente e do passado que este seja simplesmente uma Eau de Coiogne do Monoprix,
que enfrentam, ao mesmo tempo, o desafio da reviravolta da à qual lenha sido colada a grife de Chane!. Produzir um perfume
hierarquia dos produtores correspondentes e a alta das "açües que traz esta grife é fabricar ou selecionar um produto fabricado,
culturais" daqueles que investiram (no duplo sel1tido) em suas mas é também produzir as condições da eficácia da grife que,
obras. sem nada modificar à natureza material do produto, transmuta-o
As estrateglas de comercialização da griFe SJO a melhor em um bem de luxo, transformando ao mesmo tempo seu valor
econômico e simbólico.
demonstração do quanto é inútil procurar apenas na raridade
do objeto simbólico, em sua unicidade, o princípio do valor deste "Mediante uma taxa de utilização, o fabricante faz uso da grife e da
objeto que, fundamentalmente, reside na raridade do produtor. publicidade indireta difundida em tomo do nome. Este sistema permite
É produzindo a raridade do produtor que o campo de produção vender um pouco de tudo: sonhos, talvez, ilusões, além de produtos
simbólico produz a raridade do produto: o poder mágico do nos quais a parcela de criação é mais ou menos importante. É evidente
crjador é o capital de autoridade associado a uma posição que que, ao colocar sua grife em meias, o investimento real de Dior é
não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, mínimo: o que se paga é seu nome. Pelo contrário, em seu setor de
ou melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu peles prêt-à-porter, por exemplo, o estúdio de criação aperfeiçoou
carisma, além de ser garantido por sua assinatura. O que faz determinados modelos e procedeu à seleção das peles. Além da grife,
com que os produtos sejam Dior, não é o indivíduo biológico estes produtos são portadores de um certo estilo e de uma real qualidade
técnica. Qual será o investimento criativo no perfume de um costureiro
Dior, nem a majson Dior, mas o capital da majson Dior que age
sob as características de um indivíduo singular que só pode ser
Dior.
, Rede de supermercados de grande apelo popular, reconhecida por praticar preços
baixos.
'n
pjerre Bourdjeu o Costureüo e Sua GnIe 'n
,
lo com sua assinatura: a diferença é que ele atua de maneira mais
de grande prestígio? Nenhum. seniío, talvez, a forma do vidro e a
vistosa porque a estrutura específica da divisão do trabalho lhe
embalagem. O resto foi feito por especialistas da indústria de perfumes."
proporciona tal possibilidade; além disso, exprime-se de maneira
(Dépêche-Mode, março de 1974) "Um terno Pierre Cardin, por
exemplo, custará 20% a mais, no mínimo, do que um terno idêntico
mais aberta porque a menor legitimidade de sua arte o intimida a
fabricado nos mesmos ate}jers, com os mesmos tecidos, mas sem a responder a questões tornadas impensáveis pela mais elevada
pequena grife que muda tudo" (Entrevista com jornalista de moda, legitimidade da pintura: "Eu não sou um comerciante - dizia
Esterel. Minha função é criar e fazer com que se fale sobre minhas
abril de 1974).
criações".
A operação de produção de bens é, neste caso, uma
operação de transubstanciação simbójjca, irredutível a uma Entre as estratégias que se oferecem aos costureiros (cf. o
transformação material. A ideologia carismática da criação é um diagrama que apresenta a relação entre o número de empregados
erro bem fundamentado, como a religião, segundo Durkheim. O e o faturamento), a mais conforme à lógica da economia específica
costureiro adota um procedimento semelhante ao do pintor que do campo da moda é - pelo menos, a curto prazo -, a escolhida
transforma um objeto qualquer em obra de arte pelo fato de marcá- pela maior parte dos inovadores (com exceção de Courreges,
deliberadamente orientado para a empresa integrada) que consiste
eln criar []()[)}('- pelas relações públicas - e vendê-lo. "Na maison
h"raud, a l'lllprl'Sa funciona como um verdadeiro estúdio de criação
COURREGES ()IOI( L' Ulll escritório de relações públicas." (Dépéche-Mode, março de
2000
,--------1' 1974) ";\ grife Cardin é vendida em produtos cada vez mais
I / I diversificados já que estes têm a ver com a estética industrial."
I I (Dépêche-Mode, março de 1974) Cardin cria pratos para as fábricas
I I de porcelana de Limoges, desenha o interior de carros para a
I I General kJocors, produz discos e financia o Espaço Cardin. A
I / I
I / situação da empresa de Courreges que, abalada continuamente
<>
"O
2
'-'
E
500 !- -;1/ LANVIN i por problemas financeiros, funciona de algum modo por
movimentos bruscos (depois do súbito crescimento de 1965,
~V\I4 :
." precedido de quatro anos difíceis, ela passou por um novo período
'" I ele dificuldades na primavera de 1969, retomando fôlego em 1970
~ 7" - - +- - ---. CARDIN com o lançamento da linha Hipérbole e, em 1971, com a produção
100 7Mv/ I
--=- --.EEBbw;? - ~
I I
LAP/DUS
de acessórios), parece confirmar, ao contrário, que - pelo menos,
nas empresas ascendentes -, a estratégia mais adequada à lógica
100 200 600 específica do campo consiste em reduzir a produção ao seu aspecto
taturamento em milhões de francos sÍm bólico. 34
A estratégia de Cardin, Féraud ou Lapidus que, por meio
A relação entre o faturamento e o tamanho das empresas de licenças cedem a empresas a responsabilidade pela fabricação e
de alta costura (Fonte: Dépêche-Mode)
00
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Pierre Bourdieu o Costureiro e Sua GriFe
1
•
moda. A gáfe, simples "palavra colada sobre um produto"\:' é, sem origem comercial de nosso imaginário coletivo (submetido, por
dúvida, com a assinatura do pintor consagrado, uma das palavras toda parte, à moda, bem para além do vestuário) não pode,
mais poderosas, do ponto de vista econômico e simbólico, entre portanto, ser mistéáo para ninguém".4ü A denúncia prejudicial
as que, hoje, têm cotação. Mas, do mesmo modo que o poder da dos mecanismos, sem charme nem mistério, da .produção e
assinatura do pintor não se encontra na assinatura, assim também circulação dos bens e discursos da moda, permite reenviar sua
o poder da gáfe não está na gáfe: nem se encontra sequer no análise a ciências ancilares, como a economia e a sociologia
conjunto dos discursos que celebram a crÍação, o criador e suas ("Como não há intenção de estabelecer, aqui, uma sociologia da
criações, contribuindo de forma tanto mais eficaz para a valorização Moda, estas indicações são puramente aproximativas: no
dos produtos elogiados, quanto maior é a impressão suscitada de entanto, não haveria nenhuma dificuldade de método em definir
que se limitam a constatar tal valor quando, afinal, estão sociologicamente o nível de cada publicação sobre a moda"41).
empenhados em produzi-lo. Podemos, então, dedicarmo-nos, sem o mínimo risco de
equívoco, a uma análise rigorosamente interna que se faz a partir
Descartando, de saída, em nome do direito à
de um engraçado trocadilho como uma "economia do sistema
autonomização metodológica, a questão da função do discurso
da moda".!! E Roland Barthes tem toda razão ao lembrar que a
da moda no processo de produção dos bens da moda, a "leitura"
"ll1ctalinguagem" do analista é, por si só, passível de uma análise
semiológica 3b está condenada a oscilar entre o formalismo de
e, assim, inclefinidamente:!1 não tendo constituído seu objeto
urna transposição forçada dos modelos lingüísticos L' o
em sua verdade, isto é, em sua função de celebração, o analista
intuicionismo de análises quase fenomenológicas q li L' SC IiIlli [;1111
a reproduzir, sob outras formas, as rl'I1fl'SCII(,IlJll'S ILl1 i\'.lS (IH)r do discurso sobre a moda limita-se a trazer uma contribuição
suplementar ao discurso de celebração da moda que - à
exemplo, sobre a "lei da moda" e sohl'l' as reLl~-LiL'S da 1l1Oda
com o t empo J7). Quando o Vl'lI dos sigilOS deixa transparecer a semelhança da crítica literária, da qual ele só se distingue pela
menor legitimidade de seu objeto - participa do culto dos bens
evidência da ação dos agentes cncarregados da produção e
de luxo e, por isso mesmo, da produção de seu valor
circulação dos bens da moda, livramo-nos da questão sobre suas
funções, remetendo-as à economia: "Por que a Moda é tão profusa
indissociavelmente econômico e simbólico.
ao abordar o vestuário? Por que, entre o objeto e seu usuário, Uma análise do tipo austiniano teria, pelo menos, o mérito
interpõe-se tal superabundância de palavras (sem contar com de subordinar a questão das propriedades retóricas do discurso à
as imagens), tal rede de sentidos? A razão é, como todos sabem, questão de sua eficácia.HNo entanto, a enumeração positivista
de ordem econômica";33 "Por trás dessa Lei, existe uma instância das formas que devem ser respeitadas para que se opere a magia
exterior à Moda: trata-se do fashion-group e suas razões da palavra - o agente certo, o momento certo, a maneira certa, o
econômicas, mas permanecemos aqui no nível de uma análise lugar certo, etc. - dissimula que o princípio da eficácia da operação
imanente do sistema". 39 As razões da análise imanente ritual não deve ser procurado no formalismo mágico, isto é, no
conduzem assim a liquidar, de saída, a própria questão da razão próprio ri tua!, mas nas condições sociais que produzem a fé no
específica do sistema de produção dos bens da moda que contém ritual (de que o formalismo é apenas um aspecto de menor
a verdade do sistema da moda, isto é, do discurso da moda: "A importância) .
produção e circulação deste produto, possam ter em fazer circular da "qualidade francesa" e do "empreendimento de interesse geral"
tal produto, celebrá-lo e, assim, apropriar-se dele simbolicamente, de que é o animador.
além de desvalorizar 05 produtos concorrentes, isto é, celebrados Vê-se, de passagem, que é no aparelho da celebração que
por concorrentes, e assim por diante. Prefácios e introduções, reside o próprio princípio da estrutura e, inseparavelmente da
estudos e comentários, leituras e críticas, debates sobre a crítica e função, do discurso de celebração, do qual o discurso a respeito da
lutas pela leitura, todas estas estratégias altamente eufemizadas, moda, a publicidade ou a crítica literária são outros tantos casos
que visam a imposição do valor de um produto particular, são outras particulares, separados apenas pelo grau de dissimulação da função.
tantas contribuições para a constituição do valor genérico de uma Todas essas formas de discurso têm em comum o fato de descrever
classe particular de produtos ou, o que resulta no mesmo, para a e, ao mesmo tempo, prescrever, de prescrever sob a aparência de
produção de um mercado favorável a estes produtos. descrever, enunciar prescrições que tomam a forma da descrição
Eis um exemplo, encontrado ao acaso, no qual se vê bem, ("a moda estará - ou está - na...; observa-se a reaparição de...; a
em razão da natureza do produto e das estratégias - ainda um moda de X se afirma"). Esses exemplos, tomados de empréstimo
pouco grosseiras, embora representem, sem dúvida, um ápice das a Roland Banhes, tornam-se ainda mais compreensíveis a partir
relações públicas -, a forma específica da divisão do trabalho de cio comellLírio cll'ste autor: "A sabecloria da moda implica uma
celebração: "Com prefácio de André Chastel, o livro L'lnIÍllIÍ((; c/li cOllfuSJO audaciosa entre passaclo e futuro, entre o que foi decidido
l' o qUl' iLí ocorrcr: registra-se uma moda no preciso momento em
parfiIm, de Odile Moreno, René Bourdon e Edmoncl Roudnitsk:1,
é um trabalho de equipe, cujos primeiros eienll'ntos foram coligidos que esta é anunciada, no preciso momento em que é prescrita".51
para o relatório final do curso universiLírio liL- Odill' Morl'IH). Rcnl' Assim, o discurso sobre a moda realiza perfeitamente a forma da
Bourdon exerce imporrantes fllll(;()l'S em lima das mais enunciação pêrfoflnariva, como diz Austin, que designa desse modo
conceituadas perfumarias francesas; Edmond Roudnitska é a inseparabilidade entre a especificidade estilística deste discurso
'compositor' de perfumes"."" Se acrescelltarmos que essa obra - e seus efeitos sociais. A alquimia social só obtém pleno sucesso
cujo preço de capa varia de 38 francos, em edição popular, a 120 porque a verdade do sistema escapa àqueles que participam de
francos, em edição de luxo - está predisposta a desempenhar o seu funcionamentõ, portanto, da produção da energia social
papel de "presente de negócios" e que o artigo que lhe foi mobilizada pela enunciação performativa: pelo fato de ser
consagrado no cotidiano Le lv/onde encontra-se ao lado do anúncio impossível que um dos agentes que contribuem para o
~ funcionamento do campo possa apreender este campo enquanto
de uma Eau de Guer!ain, apreendemos a "forma elementar" de
tal e, ao mesmo tempo, apreender o fundamento real dos poderes
II
um empreendimento necessariamente coletivo de celebração: um
trabalho" universitário" para produzir o efeito de neutralização para cuja produção fornece sua contribuição ou são utilizados por
acadêmica; um professor do ColJege de France, sumo sacerdote ele, o sistema e os efeitos do sistema nunca se mostram em sua
I verdacle - nem que seja de maneira aparentemente mais cínica -
da celebração do culto da arte legítima, para produzir o efeito de
I, canonização acadêmica e de neutralização estética; e, ainda, o mesmo para aqueles que dele se beneficiam mais diretamente; é
;! "compositor" (as aspas estão no original) de perfumes para a caução o sistema como tal que, por estar destinado a uma apreensão parcial,
I de desinteresse artístico que somente o criador pode fornecer à
produz o desconhecimento da verdade do sistema e de seus efeitos.
I É assim que - mesmo para aqueles que contribuem mais
! defesa, um pouco vistosa, do Presidente Diretor Geral em favor
i
f Pierre Bourdieu o Cosllirt'iro c' Sua Grilé
!
diretamente para sua realização: costureiros ou jornalistas de moda,
continuamente as frações da classe dominante nunca ameaça de
artistas e críticos, mistificadores mistificados - a imposição arbitrária
verdade tal dominação, Assim, a luta pelo monopólio da
de valor pode assumir a aparência de uma constatação do valor: o
legitimidade que habita o campo de produção dos bens simbólicos
discurso performativo dos jornalistas de moda é a manifestação
contribui para o fortalecimento da legitimidade em nome da qual
mais perfeita da lógica de um sistema de produção que, para
ela é conduzida: a ortodoxia necessita da heresia porque a oposição
produzir o valor de seu produto, deve produzir, entre os próprios
entre uma e outra implica o reconhecimento do interesse que
produtores, o desconhecimento dos mecanismos de produção.
está em jogo, reconhecimento desconhecido - isto é, afirmado e,
Depois da Revolução Francesa, observa Marx, os aristocratas ao mesmo tempo, negado na própria oposição - que exclui a
- cujo capital incorporado consistia em uma arte de viver, daí em possibilidade de um verdadeiro agnosticismo. Os conflitos
diante, desprovido de mercado - tornaram-se os donos da dança decisivos sobre a leitura legítima de Racine, Heidegger ou Marx
na Europa. É o campo artístico e o mercado atual e potencial que excluem a questão da legitimidade de tais conflitos, ao mesmo
ele produz pela imposição da crença em sua própria legitimidade tempo que a questão, verdadeiramente incongruente, das
e no valor decisivo de seu produto, que transforma o artista em condições sociais que devem ser satisfeitas para que eles sejam
detentor legítimo do monopólio das operações de possíveis. Essas lutas, aparentemente implacáveis, salvaguardam
transubstanciação. A crise do mercado dos bens simbólicos toma a o essencial, nem que seja pela convicção com que nelas se engajam
forma de uma crise de confiança ou, se quisermos, ele crença: no os protagonistas e que l' orientada para se impor a comparsas,
caso da moda, como no caso da igreja ou da universidade, fala·sl' antecipadamente, convertidos pelo próprio funcionamento do
em crise quando deixam de funcionar os Illl'CllliSII1()S ljue campo em que estão aplicados, quase sempre, todos os seus
produziam a crença reprodutiva do sistema; ou, () que Vl'Ill a ser o interesses: elas excluem este tipo de agnosticismo específico que
mesmo, quando os interesses dos agentes de quem depende o
é a condição de uma apreensão objetiva da luta que, por sua vez, é
funcionamento do sistema já não estão salvaguardados - portanto,
anterior a toda ciência objetiva de seu desafio. A heresia garante
reproduzidos - pelo funcionamento do sistema.
também a fé: a leitura herética e a leitura ortodoxa de Racine
A competição pelo lance específico, enquanto propriedade formam um par e, delimitando de antemão o universo das leituras
bastante generalizada dos campos, dissimula o conluio objetivo possíveis, excluem, por este efeito de fechamento, a possibilidade
em relação aos próprios princípios do jogo. Assim, como observa da crítica sociológica da crítica e da literatura que é a condição de
Albert Hirschman, a concorrência entre marcas tende a assegurar uma verdadeira ciência da literatura. Tais pares de posições
uma forma de estabilidade pela mudança: as vítimas de uma marca epistemológicas, antagoTIlcos e complementares, que
(por exemplo, aqueles que compraram "alfinetes" - lemons) correspondem a oposições sociais entre adversários cúmplices, são
passam para o concorrente à procura de produtos inexistentes ou observados em todos os campos; e, em todos os casos, o
impossíveis e, assim, são desviados do protesto contra a empresa conhecimento aprofundado daquilo que constitui o fator das lutas
responsável pelo produto e, a fortÍori, contra o sistema de produção. que neles se desenrolam, tem por condição de possibilidade a
A concorrência entre partidos políticos ou sindicatos, falsamente crítica sociológica entendida - pela generalização do emprego
opostos, tende a exercer um efeito análogo de desvÍo da energia kantiano da palavra crítica - como o conhecimento aprofundado
revolucionária. 52 Do mesmo modo, sabe-se que a luta que opõe das condições sociais de possibilidade deste jogo particular e, ao
pjerre Bourdieu
o Coswreiro e Sua Grife
,
mesmo tempo, o conhecimento aprofundado dos limites que responsável pela fabricação material, esquecendo-se de levar em
implica o engajamento necessariamente ingênuo neste jogo. A consideração o trabalho da consagração. Segue-se que, à semelhança
participação nos interesses que são constitutivos do pertencimento da atividade de produção, o aparelho de produção não deve ser
ao campo (porque este os pressupõe e os produz por seu próprio reduzido ao aspecto que é diretamente responsável pela fabricação
funcionamento, durante todo o tempo em que estiver em condição do objeto material. Assim, por exemplo, nada seria mais ingênuo
de se reproduzir) implica a aceitação de um conjunto de que reduzir o tempo de trabalho dos produtores ao tempo que
pressupostos e postulados aceitos como evidentes que constituem dedicam expressamente à produção dos objetos. A parcela relativa
a condição inconteste das discussões e o limite insuperável dos ao trabalho da consagração não cessou de crescer à medida que o
conflitos. É por isso que o conflito entre ortodoxia e heterodoxia, campo artístico ganhava autonomia e se constituía à imagem social
que confere ao campo sua estrutura e sua história, nunca atinge, do artista: a vida do artista, a orelha cortada de Van Gogh e o
por definição, o terreno originário da dOXd, a crença primordial, suicídio de Modigliani fazem parte da obra destes pintores, do
cuja intensidade é proporcional ao interesse manifestado pelos mesmo modo que suas telas, que lhes ficam devendo uma parcela
agentes em relação ao funcionamento do campo. de seu valor. Ninguém teria a idéia de reduzir a produção do profeta
às sentenças e parábolas que professou, deixando de lado as
ac!versidJ.des que superou e os milagres que realizou. E, sob pena
o Ciclo da Consagração
de se aUlücondenarem, os pintores de vanguarda devem saber
que S;!O nbrigJ.dos J. agir, continuamente, como seus próprios
A especificidade do cJ.mpo d;l prudu~·,lo siJIJ!)(')li,"a !"L'sulta emprl's;Írios, freqiienlanc!o os críticos, os diretores de galerias e,
da dupla natureza dos bens simbólicos e d;l pr(')pri,l produ~·ão sobretudo, 05 orgzlllizadores dJ.s grJ.ndes exposições internacionais,
simbólica, que não se reduz a um ato de fabricaçáo malerial, mas vendendo em todos os instantes seu discurso e seu comportamento
comporta necessariamente um conjunto de operações que tendem de artista, tanto a seus concorrentes, quanto aos negociantes e
a assegurar a promoção ontológica e a transubstanciação do produto potenciais compradores.
das operações de fabricação material. Os artistas - sobretudo, depois
De marreira geral, porém, os circuitos de produção e
de Duchamp - não cessaram de afirmar, arbitrariamente, como
circulação material são inseparavelmente ciclos de consagração que,
que para provar os limites, o arbitrário de seu poder mágico, capaz
além disso, produzem legitimidade, isto é, objetos sagrados e, ao
de converter um objeto qualquer em obra de arte na ausência de mesmo tempo, consumidores converúdos, dispostos a abordá-los
qualquer transformação material, capaz mesmo de constituir em como tais e pagar o preço, material ou simbólico, necessário para
obra de arte a recusa da arte. Este aspecto da produção artística,
deles se apropriaremY Verdadeira exploração dos limites do
manifestado publicamente não só por suas transgressões possível, as pesquisas pictóricas de vanguarda permitem apreender
aparentemente mais radicais, mas também pelos limites impostos o duplo sistema de imposições intransponíveis resultantes da
a seus sacrílegos rituais (tal como sua submissão ao rito da dualidade da obra de arte - objeto físico e objeto sagrado -,
assinatura) escapa tanto à ideologia carismática - que considera o investido de valor simbólico e econômico. A rápida decadência de
crÍador como princípio último de sua câaçâo -, quanto à análise todas as tendências de pesquisa de vanguarda que tendiam a
ingenuamente redutora de um materialismo parcial que ameaçar a integridade física da obra de arte - tais como, a bodyarl,
relacionaria diretamente o valor da obra de arte ao trabalho do
Pierre Bourdieu
o Costureiro e Sua Grife
If
a exposição de objetos friáveis ou perecíveis e todas as formas de legitimiação só pode ser operada por procuração e, dessa maneira,
ação que só podem ser fixadas, de maneira duradoura, sob a forma nunca se é tão mal servido quanto por si próprio: o primeiro
de fotos - ao mesmo tempo que os limites dentro dos quais se interessado, como se diz, é certamente o menos indicado para
mantêm as audácias destruidoras ou críticas (as obras mais levar a desconhecer o interesse que ele próprio tem por sua
contestadoras da pintura são assinadas com os nomes de pintores, celebração (daí, vimos, os limites da eficácia da publicidade). Nos
expostas em galerias de pintura, elogiadas pelas revistas de arte, campos em que a censura do interesse material ou simbólico é
etc.; todos os pintores possuem um inventário de suas obras, etc.) muito forte, como o campo intelectual, todo tipo de estratégia
mostram que a obra de arte, sob pena de negar-se como tal ou, o pode ser colocado em prática para escapar às sanções que atingem
que resulta no mesmo, deixar de ser vendável, deve ser duradoura, a autocelebração: desde a troca direta de elogios (citações, relatórios,
transportável, suscetível de ser exposta (de preferência, em um etc.) - cujo rendimento simbólico é tanto maior, quanto menos
domicílio privado) inventariada (o que não quer dizer aparente é a relação entre os parceiros e quanto mais longo for o
necessariamente única, mas consagrada pelo reconhecimento do intervalo que separa a prestação e a contraprestação simbólicas -
campo - em oposição às falsificações) e, por fim, atribuída a um até a celebração de um alter ego já célebre, auto-elogio através de
artista particular, isto é, assinada. Dito de outra forma, ela deve um terceiro só acessível a autores suficientemente consagrados
possuir todas as propriedades que, de uma forma duradoura, a para serem considerados dignos de consagrar, servindo-se da
tornem disponível para a circulação inseparavelmente físicl, identificação com o autor famoso que faz parte da definição do
econômica e simbólica na qual se produz e se reproduz seu valor discurso da celebraçáo.
sagrado e, portanto, seu valor econômico. Mas isso qlll'r dizer, ell1
Constituir um capital simbólico de legitimidade suscetível
compensação, que seu valor l' :1dquirido de SU;I rl'la~':lo com o
de ser, por sua vez, transferido para objetos ou pessoas é estar em
aparelho encarregado de assegurar a circulação produtora de
condições de (pela posição) não só fazer funcionar, em seu proveito,
legitimidade.
os ciclos da consagração cada vez mais longos, portanto, cada vez
Os ciclos de consagração, lugares de uma circulação circular mais independentes das relações diretas de interesse compartilhado,
de moeda falsa, nos quais se engendra a mais-valia simbólica, mas também apropriar-se assim de uma parcela cada vez maior do
apresentam propriedades invariantes: obedecem sempre à lei produto do trabalho da consagração que se consuma em determinado
fundamental que estabelece que o desconhecimento do arbitrário campo. As páginas consagradas aos diferentes costureiros nas
da imposição de valor - portanto, o reconhecimento da legitimidade publicações semanais e nas revistas especializadas, ou as obras,
- é tanto mais completo, quanto mais longo for o ciclo da artigos, citações e referências consagradas aos diferentes autores de
consagração e quanto mais importante, por conseqüência, a energia um mesmo campo, não são somente um Índfâo de sua posição na
social (suscetível de ser avaliada por tempo de trabalho ou por distribuição do capital específico, mas representam concretamente
dinheiro) consumida na circulação. O ciclo, reduzido ao extremo, a parcela do lucro simbólico (e, correlativamente, material) que eles
da autocelebração (cujo paradigma é a sagração de Napoleão em estão em condições de obter da produção do campo em seu conjunto.
seu gesto de autocoroamento) produz um rendimento da A enorme mais-valia proporcionada pela operação de marcação nada
consagração muito fraco para um dispêndio de energia social tem de mágico e não constitui uma exceção à lei da conservação do
igualmente fraco (e uma ligeira perda de informação). A
capital.
Pierre BOllrdi('{f
o Coswreiro e Sua Grile
-,
•
a ap:.uição de um novo estilo de vida burguês e, mais precisamenre, rodeada, o costureiro fazia parte, ex oflicio, por profissão, do TOll/-
um novo ethos, particularmente manifesto em tudo o que Paris*, no qual recrutava sua clientela e, para o exercício de sua
concerne à relação com o corpo) definem-se por uma trajetória profissão, devia participar da vida parisiense para cuja existência
atípica, portanto, por uma relação específica enrre esta trajetória fornecia sua contribuição, oferecendo-lhe, com suas apresentações
(e o habitus correlativo) e sua posição que os predispõe a sentir, da moda, uma de suas cerimônias exclusivas (que são, fato notável,
pressenrir e exprimir uma demanda social ainda à procura de seu sempre estréias) e um de seus emblemas distintivos. 57 Esse papel
modo de expressão legítimo. Assim, Courreges, que se distingue que nada tinha a ver com seu habitus - e, mais precisamente, sua
dos costureiros mais antigos e mais clássicos - tais como, Balmain hexis corporal, seu estilo de vida, seu sotaque, suas maneiras,
ou Givenchy -, por sua origem social (popular) e, ao mesmo tempo, seus gostos - foi substituído por Courrêges (como por Vngaro
por seus estudos (ciências) é o primeiro a ter rompido com a que, durante algum tempo, foi seu sócio) por um outro, também
definição tradicional do papel que a sociedade atribuía, sobretudo
sistemático, a saber: o do criador-gerente de produtos de luxo
antes da guerra, ao costureiro.
para mulheres (de) gerentes. Empenhado em oferecer pelo melhor
Para se ater às características sociologicamente pertinentes, preço (graças a uma gestão racional) produtos de seu gosto, isto é,
os costureiros tradicionais têm em comum: "modernos" e "dinâmicos" (eis dois traços distintivos de seu
- serem oriundos das frações dominantes da burguesi:l, d i seu rso), "lógicos" e "funcionais", "esportivos" e "livres", ele só
freqüentemente, da província (Christian Dior é filho de um grande podi:l ter sucesso junto à nOV:l burguesia "moderna e dinâmica",
industrial normando; Balmain, filho de um negociante da Sahl'lia; da qual estava bem próximo por seu habitus - portanto, por seu
e Givenchy, filho de um administrador de Socit'/(:s clt' l'Oisd; gustu de gerente autodidata.
0-
- terem seguido as fileiras escolares que, normalmente, Alguns excertos de entrevistas serão suficientes para
conduzem às classes dominantes (Fath fez estágio em uma escola mostrar a espécie de harmonia preestabelecida entre o habitus do
comercial; Dior, depois dos estudos em janson-de-SaiJJy, fez criador e a posição que ele ocupa no campo, isto é, a função que
Sciences PoJitiques) ou às profissões artísticas, freqüentemente, lhe foi objetivam,ente atribuída, embora ele a tenha,
mais próximas das classes dominantes (Balmain e Givenchy fizeram aparentemente, produzido. Em primeiro lugar, os traços da
cursos de arquitetura na Ecole de Beaux-Arts); trajetória e a relação com o meio:
- terem pretendido, durante algum tempo, seguir carreiras "- Você nasceu em Béarn e conservou o sotaque da região. Existe um
artísticas (Fath deu "os primeiros passos, sem seqüência, no pouco de esnobismo neste aspecto..."
cinema e no teatro"; Dior começa como diretor de galeria; Cardin, - Não, vou lhe explicar. .. Fiquei durante dez anos com Balenciaga que
que gostaria de ter sido ator, e Saint-Laurent afirmam que devem me dizia: André, é formidável, você se vira em todos os domínios, você
a Cocteau e a Christian Bérard o fato de terem sido apresentados tem um jeitão, saca rápido seu trabalho, tudo isso, você é elegante nos
a Christian Dior). salões... mas existe uma coisa que não dá, é seu sotaque. Bom, então eu
disse-lhe: O que de\'o fazer? Você deve tomar aulas de àicção... Então,
Da mesma forma que toda a coorte de servidores de luxo e
de parodiantes, atores de cinema e autores de peças de bulevar,
romancistas de sucesso e pintores na moda, de que a burguesia é • O conjunto das personalidades mais destacadas da sociedade parisiense.
seis meses depois, voltou-se para mim: 'Muito bem, André, você mudou
costura que lhes ofereça a liberdade de manifestar a certeza de 5('11
seu sotaque, está perfeito...' Então, repliquei: 'ah, sim, com certeza,
gosto e, simultaneamente, a ocasião de distinguir-se daquelas (jlll',
estou estudando direitinho, vou à aula duas vezes por semana...' Ele
por não saber "descobrir" o "pequeno detalhe que muda tudo", se
sempre acreditou nisso, mas a verdade é que eu nunca tomei aula. E,
contentam em ir atrás e copiar. E aquelas que, hoje, vestem roupas
além disso, é impossível deixar esse sotaque: passo três vezes por semana
no boteco, jogando pelota com meus bascos-beamenses C..) ou então, usadas, limitam-se a seguir até o fim esta lógica, contestando o
fico algum tempo, no domingo, com meus amigos do Racing, o time de
contrato tácito de delegação do poder de legislar em matéria de
rugby. .. são todos meridionais, então falar de sotaque é tarde demais; moda que atribuía ao costureiro o monopólio da crÍação.
quer saber uma coisa, eu não estou nem aí a. Chancel, Radioscopie, O acesso das mulheres oriundas da burguesia ao ensino
entrevista com Courreges). superior e, para uma fração delas, a uma classe de profissões
- À noite, quando acabo de fazer ginástica ou jogar pelota, o blá-blá-blá superiores - freqüentemente, de criação recente, tais como as
a partir das dez horas e... você nem imagina o que... ocupações de apresentação e representação - é uma das mediações
- O blá-blá-blá, jantar em restaurantes... através das quais os efeitos das transformações recentes da classe
- Não entro nessa... o besteirol que a gente tem de suportar l Enfim, eu dominante se fazem sentir, mais diretamente, no campo da alta
não critico, mas não consigo agüentar isso, não é possível.">K costura. É evidente que a mudança das disposições com relação
à moda que foi descrita, aqui, constitui uma dimensão da
Esse estilo de vida solto convém a uma burgucsia que
transformação mais generalizada do habÍws que se manifesta em
pretende manifestar pela simplicidade um tanto ostensiva de suas
todas as dimensões da existência: por exemplo, observa-se sem
maneiras que está suficientementc segura de sua própria
dificuldade que a propensão a contestar o monopólio do costureiro
legitimidade para não precisar exibir os ell1blelll:ls de sua
participa de uma lógica semelhante à da propensão a contestar o
autoridade, nem que se trate do luxo sóbrio e já fortemente
monopólio dos professores - e, em particular, dos professores do
eufemizado da antiga burguesia, preocupada em se distinguir do
ensino primário e de seus métodos pedagógicos, isto é, de seu
consumo ostensÍvo dos novos-ricos. Essa autoconfiança, que se
ethos. Essa recusa da delegação incondicional é o equivalente
manifesta em todos os aspectos da prática e, em particular, no uso
exato do que se observa, na política, nas relações entre os
da língua que combina a facilidade extrema e a indiferença com a
intelectuais e os partidos; em oposição às classes populares que
estrita correção, é característica de um grupo que deve sua posição
- condenadas, quase sempre, à fides ÍmpJjâta - não têm discurso
dominante não tanto à herança tal como esta é socialmente definida,
sobre o conjunto dos problemas oficialmente considerados como
mas às suas próprias aquisições, não tanto ao capital econômico,
políticos, senão por procuração, isto é, pela auto-entrega a um
mas ao capital cultural, capital incorporado, de cuja transmissão e
partido e a seus porta-vozes, os intelectuais, pequenos produtores
utilização, segundo parece, se incumbe sobretudo a natureza e
privados de ideologias, continuam tendo repugnância em delegar
não a sociedade. 59 As mulheres pertencentes, pelo casamento el
a outros intelectuais - isto é, a concorrentes - o poder de exprimi-
ou por sua profissão, a este novo segmento de "assalariados
las: assim, estão fadados à lógica da seita, dos conflitos decisivos
burgueses", executivos de empresas públicas ou privadas que se
e das cisões estrepitosas, quando não se sentem forçados a fazer
gabam de ter "mais bom gosto do que dinheiro" (segundo uma
renúncias de tal modo radicais que correm o risco de não serem
manchete da revista jardÍn des Modes) , pedem somente à alta
duradouras.
Pierre Bourc!ieu
o CosfUreir,1 e Sua CriFe
,
•
Mas, o novo estilo do vestuário corresponde, também, a todas as marcas de distinção, aquela que apresenta a melhor
outras expectativas: não se trata somente de liberar o corpo dos aparência do dom da natureza refere-se ao corpo em conformidade
entraves e das falsas aparências de uma roupa bem feita, destinada com os cânones elaborados e impostos pelo conluio inconsciente
em prioridade às ocasiões extra-ordinárias da vida mundana, mas dos produtores de bens e serviços necessários à sua produção: o
de adaptar o vestuário às exigências da existência cotidiana da corpo legítimo, corpo cultivado por exercícios específicos que
nova burguesia, as da vida profissional que está longe de excluir, exigem tempo, equipamentos custosos, disciplina rigorosa, corpo
sobretudo nas novas profissões de apresentação, as funções esbelto, musculoso, bronzeado em todas as estações e livre dos
tradicionais de representação social, ou as do esporte que - como estigmas do envelhecimento; encontra-se, então, predisposto, com
é afirmado pela oposição entre os termos estar bem vestido, esporte todas as outras espécies de capital incorporado, a receber um lugar
de predileção na simbólica do poder de uma fração de classe que
e prático -, se opõe tanto ao trabalho, quanto ao puro e simples
deseja atribuir sua posição dominante, exclusivamente, à excelência
consumo ostensivo de tempo e dinheiro.
de sua natureza.
Todos os costureiros sentiram essa transformação da
As transformações da relação entre a alta costura
demanda e a exprimem à saciedade:
propriamente dita e o campo da produção dos bens, que
"Os costureiros de hoje já não devem reservar suas criaçoes a algumas desempenha a mesma função técnica em níveis inferiores de
mulheres privilegiadas. Aliás, será que a vida que as mulhnes kvav:ull raridade social, exprimem também, sem dúvida, uma
antigamente era realmente interessante. eu diria. insl'ir;ldo[;l pal'a os transrormaç:1o profunda da relação entre a burguesia e as outras
costureiroQ No presente," a VilL! de ludo o nlulllio, l'111 ludus u.s di:ls, cLlsses ou, pelo menos, a pequena burguesia. Como todo aparelho
que nos ap;lixona (.. ) 1'.I:iSOU o Il'lllj10 L'lll que os (oslurl'irus só de produção de instrumentos de distinção, isto é, mais
conseguiam sobressair atrav"s da criação ck modelos reservados a uma exatamente, de objetos que podem desempenhar, além de sua
clientela de mulheres ricas (...). Quero dirigir-me às jovens, àquelas que função técnica, uma função social de expressão e legitimação das
levam, pela força das coisas e pelo ritmo da vida cotidi,ma, uma existência diferenças sociais, o campo da alta costura é parte integrante de
mais esportiva e, ao mesmo tempo, mais descontraída. Quero que minha um campo de produção mais ampla. A distinção, ou melhor ainda,
loja esteja mais acessível e que os produtos à venda não sejam caros a classe, manifestação legítima, ou seja, transfigurada e
demais. É preciso ajustar preços de modo que não afugentem as desconhecida como tal, da classe social, só existe pela pretensão,
estudantes".60 pelo reconhecimento da distinção que se afirma no próprio esforço
para apropriar-se dele, nem que seja sob a forma da cópia. A
De forma mais sutil, o que é pedido ao vestuano não é
moda oferece uma ocasião privilegiada para construir um modelo
tanto levar o corpo a sofrer uma espécie de correção culwral, mas
válido para todos os consumos simbólicos, como está bem
sim dar valor à sua aparência natural: essa exaltação, altamente
demonstrado neste texto de Nietzsche:
cultural, do corpo natural supõe que o próprio corpo e não mais os
símbolos sociais da riqueza e da autoridade - que, segundo a "Você tinha o costume de dizer que ninguém aspiraria à cultura se
demonstração de Kantorovicz,61 dotavam os reis Ce todos os soubesse até que ponto o número de homens verdadeiramente cultos é,
grandes) de um segundo corpo, capaz de sobreviver ao corpo mortal afinal de contas - e só pode ser -, incrivelmente reduzido; e que,
- torna-se o suporte da distinção social e, ao mesmo tempo, o entreranto, este pequeno número de homens verdadeiramente cultos
objeto privilegiado do trabalho de transfiguração cultural. Entre só seria possível se uma grande massa, decidida profundamente contra
o
00
Pierre Bourdieu o Costureiro e Sua GriFe
sua natureza e unicamente por ilusões sedutoras, se entregasse à cultura; mercado da vlllgarÍzaçáo, corresponde, do lado das disposições,
portanto, que nada deveria ser revelado publicamente desta ridícula à relação entre a distinção e a pretensão, disposições antagônicas
desproporção entre o número de homens verdadeiramente cultos e o e complementares, burguesia e pequena burguesia, que são, ao
enorme aparelho da cultura; que o verdadeiro segredo da cultura é o mesmo tempo, a condição e o produto do funcionamento de cada
seguinte: inúmeros homens lutam para adquirir cultura, estão a serviço um dos campos e dos efeitos produzidos pela sua coexistência.
da cultura, aparentemente em seu próprio interesse, mas no fundo É a pretensão dos excluídos, essa forma suprema de
somente para permitir a existência de um pequeno número" .62 reconhecimento que, ao contribuir para sustentar continuamente
O paralelismo estabelecido entre cultura e moda não é a tensão do mercado dos bens simbólicos (isto é, o funcionamento
gratuito. Através da denuncia elitista da busca vulgar de cultura, do campo do qual ela é também produto), contribui para produzir
Nietzsche mostra perfeitamente que a alta cultura e a baixa cultura e reproduzir as propriedades distintivas que conferem aos
- como, aliás, a alta costura e a costura, os salões de cabeleireiros detentores destas ações sua raridade aparentemente mais
de grande prestígio e o simples salão de cabeleireiro, e assim por intrínseca. E é a distinção dos dominantes, diferença arbitrária e
diante - só existem uma para a outra e que é sua relação ou, melhor desconhecida - portanto, reconhecida como necessária -, que
ainda, a colaboração objetiva de seus aparelhos de produção inspira a busca da conformidade e, paralelamente, fornece sua
respectivos que produz o reconhecimento da legitimidade da clientela às instituições, oferecendo substitutos ou cópias dos
cultura, isto é, a necessidade cultural. bens ou serviços 311lt;nÚcos.
Assim, por exemplo, a oposição por demais evidente que, A imposição da legitimidade é a forma acabada da violência
no domínio do mobiliário e dos objetos antigos, se l'stabelcCl' simbólica, violência atenuada, que só pode ser exercida com a
entre o comércio de luxo dos antiquários e decoradores do cumplicidade de suas vítimas e que, assim, pode dar à imposição
Faubourg SaÍnt Honoré e o comércio de semiluxo do F311bollrg arbitrária de necessidades arbitrárias a aparência de uma ação
SaÍIlt AntOlne não deve dissimular que se trata de dois mercados libertadora, invocada a partir do mais íntimo daqueles que a
hierarquizados em relação aos mesmos valores. 63 A sofrem. Todas as ações direcionadas à generalização do
complementaridade na oposição se vê, por exemplo, no fato de conhecimento e do reconhecimento da arte de viver dominante
que os efeitos e os valores que as instituições dominantes podem (ou a legitimá-la pelo simples fato de difundi-la, tal como o
contentar-se em afirmar e produzir pela sua própria existência sistema de ensino), em suma, à transformação do ethos da classe
ou por uma retórica da lítotes, de understatement e da alusão dominante em uma ética universal, tendem, dessa maneira, a
(por exemplo, na referência à arte) se mafll'festam de maneira produzir a pretensão, como necessidade que preexiste aos meios
visível tanto no discurso que acompanha os produtos das (econômicos e culturais) de satisfazer-se adequadamente,
instituições dominadas, quanto nesses próprios produtos - editando assim o sistema de práticas necessárias para que o
ficando, dessa forma, expostos à acusação de "vulgarÍdade" (como consumo siga a produção.6"! Para a nova burguesia, basta fazer-se
busca do efeito): "Os móveis de Claude Deco (loja do Faubollrg conhecer e reconhecer, fazer-se ver e autovalorizar-se (eis o que
SaÍnt AntoÍne) têm um 'não sei o quê' que é a alma da elegância é instigado pelas revistas femininas e pelas publicações semanais
e da distinção". A relação que se estabelece do lado das estruturas destinadas aos executivos jovens, ricos, elegantes e ociosos, aliás,
entre o campo da produção dos bens ce luxo e o campo da produzidos por ela e nos quais ela se produz) para produzir o
produção da cópia, entre o mercado da cultura alltêntÍCa e o
M
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o Costureiro e Sua GriFe
Pierre Bourdieu
•
mercado dos objetos-cópias ou de segunda mão: demanda
inesgotável já que as necessidades dominadas que a constituem burguesas liberadas procuram se livrar pela psicanálise ou expressão
devem se redefinir, indefinidamente, em relação a uma distinção corporal. A vergonha corporal e qualquer outra espécie de vergonha
que se define negativamente em relação a elas. cultural - aquela resultante de um sotaque, de um falar ou gosto _
encontram-se, com efeito, entre as formas mais insidiosas da
Nota-se a contribuição que certas atividades tão estranhas
dominação porque levam a viver, segundo o modelo do pecado
à política em sua definição restrita, quanto a dos costureiros,
publicitários, higienistas, médicos, jornalistas dos periódicos original e da indignidade essencial, certas diferenças que, mesmo
femininos, etc., fornecem para a manutenção da ordem simbólica. em relação às mais naturais na aparência, tais como as que têm a
Assim, o conluio inconsciente dos médicos e nutricionistas (com ver com o corpo, são o produto de condicionamentos sociais,
suas tabelas de "relação de peso com altura no homem normal"), a portanto, da condição econômica e social.
dos costureiros que conferem universalidade às medidas dos A nova ordem social reconhece a legitimidade de todas as
manequins, a dos publicitários que encontram nos novos usos
satisfações e oferece todas as satisfações legítimas, embora a longo
obrigatórios dos corpos, importados e impostos pelas férias, ocasião
prazo e a crédito - por exemplo, o crédito escolar e a crença no
de inúmeras chamadas à ordem ("fiscalize seu peso... "), contribui
futuro por meio da escola - ou a curto prazo com desconto - todas
para produzir e impor como legítimo, isto é, como evidente, uma
as formas de cópia, falsos carros de luxo e viagens de falso luxo: as
nova imagem do corpo, a saber: a que a nova burguesia da sauna,
"expectativas frustradas" necessariamente criadas pela defasagem
da sala de ginástica e do esqui descobriu por si mesma. O mesmo
poderia ser dito a respeito da representação das satisfações entre a imposição de necessidades legítimas e a atribuição dos
legítimas (sexuais, entre outras) que se tem direito de esperar do meios para satisfazê-las - e que, sem dúvida, produzem efeitos
corpo. Esta imposição de práticas legítimas tende por si a produzir econômicos permitindo obter, direta ou indiretamente (por
a mesma quantidade de necessidades e expectativas, de intermédio do crédito) um sobretrabalho - não ameaçam necessária
insatisfações ou, como se diz, de "complexos" (outro produto da e automaticamente a sobrevivência do sistema; essa diferença
difusão legitimadora operada pelos periódicos femininos) em todos estrutural encontra-sé na origem da reprodução por translação que
aqueles, cujo habiws corporal não é o produto das mesmas assegura a permanência da estrutura das posições através da
condições econômicas e sociais que o habiws assim legitimado. transformação permanente da "natureza" das condições. Ainda aqui,
Além de oferecer um mercado a todos os produtores de meios não nos deixemos iludir pela imagem mecânica da translação: a
destinados a preencher a separação entre o ser e o dever-ser, desde dialética da distinção e da pretensão é o princípio desta espécie
os conselheiros conjugais até os vendedores de pílulas para de corrida de perseguição entre as classes que implica o
emagrecer e de produtos dietéticos, esta nova alienação que é a reconhecimento dos mesmos objetivos; ela é o motor desta
criação (sem itálico) da alquimia social encerra o princípio de um concorrência que não é senão a forma atenuada, contínua e
descontentamento e de um profundo mal-estar de natureza interminável da luta de classes.
completamente diferentes daqueles dos quais os costureiros
estavam empenhados em liberar suas clientes, ou dos quais as
Setembro de 1974
2. MAUSS, Marcel. "Esboço de uma teoria geral da magia" in SOCÍologÍa e 15. Le Nouvel Observateur, 18 de outubro de 1971.
AntropologÍa. São Paulo, Ed. Pedagógica e Universitária/Edusp, 1974. 16. LAGERFELD, Kar!. Dépéche-Mode, julho/agosto de 1972.
3. Uma oposição análoga se encontra no campo da haute coiffure (salões de 17. "17 couturiers: leurs structures économiques" in Dépéche-J,!ode, na 683, março de
cabeleireiros de grande prestígio), entre Carita e Alexandre, em que predomina a 1974.
elegância de um estilo um tanto austero, por um lado, e, por outro, Jean-Louis 18. Entrevista com uma jornalista de moda, março de 1974.
David que pretende oferecer, "sem distinção de classes", seus penteados
"audaciosos". 19. KUHN, T. The Structure of SCÍentÍ!ic RevolutÍons, Chicago, The University of
Chicago Press, 1962. p. 152
4. Aqui, à semelhança do que se passa em relação a teatros, galerias ou cinemas, a
rive gauche nem sempre tem um sentido geográfico: assim, em Paris, Saint- 20. D'ELME, Patrick. "Cardin n'est-il qu'une grilfe J " in La Galeâe, outubro de 1971. p. 66-
67
Laurent possui três lojas na rive gauche (margem esquerda do rio Se na) - uma, na
rue de Tournon (6 bairro); a segunda, na avenue Victor Hugo (16 bairro); e a
Q 0 21. Mar,'o de 1974.
terceira, na rue du Faubourg Saint-Honoré (8° bairro). Ocorre que, em oposiçao :ls 22. CHi\NDLER, R. f'ear/s :Ire a Nuisance, Harmondsworth, Penguin Books,
maisons tradicionais, estabelecidas nos santuários da rivc dmire (margem direita), 1973, "Introdllction". p. 9.
a maior parte dos costureiros de vanguarda e a totalidade dos eSli/isr.h (lll il/()d,'/isl./S
23. /\ maior parte da prodllçao de romances e ensaios obedecem ao ritmo sazonal
têm sua matriz ou boutiques na rivc g:luche.
da n'I1u"à' /irt'rári:l [retomada das atividades após interrupção], com suas conferências
5. SCHROEDER, S. e MATIGNON, J. re Goúr dll lllxe, Paris, Balland, 1972. Ü de iinprensa, seus prêmios, etc., e têm um ciclo que não é diferente daquele dos
mesmo discurso, produto da mesma oposiçáo, se encontra em DORlN, Françoise. artigos de moda (embora as instâncias de legitimação de curta duração, como as
Le tournant, Paris, Julliard, 1973. p. 24: "Existem aqueles que podemos denominar, academias, possam prolongar ligeiramente a existência de seus produtos). A parcela
se você quiser, passadisr<1s, conservadores, que decidiram, de uma vez por todas, da produção de ciclo longo e de ciclo curto na produção total de um autor ou de um
que o mundo atual estaria completamente louco, que passam pela vida com uma editor é, sem dúvida, um dos melhores indicadores de sua posição sincrônica e
venda nos olhos e ceras Quiés nos ouvidos (... ). Os outros são aqueles que diacrônica no campo da produção literária.
pegaram o trem quando ele partiu: vivem a vida no presente, adotaram as novas 24. Entrevista com jornalista de moda, julho de 1974.
idéias, lêem Clavel e Marcuse, se interessam pelas novas formas de expressão
25. KROEBER, A. "On the principie of order in civilization as exemplified by
corporal, vão aos teatros da periferia, acompanham a evolução das l'v!aisons de la
changes of fashion" in AmerÍcan Anthropologist, 21, 1919. p. 235-263
culture [NT: Instituições criadas, a partir de 1963, sob a inspiração de André
lvlalraux, então !ylinistro da Cultura da França; em seu espaço, são apresentadas 26. cf. BARBER, B. e LYLE, S. Lobe!. "Fashion in women's clothes and the
todas as espécies de manifestações artísticas], gostam da música dodecafônica e da American social system" in SoCÍal Forces, 31, 1952. p. 124-131; BERGLER, E.
escultura contemporânea, em suma, estão no mesmo plano dos jovens". Fashion and the UnconsCÍous, Nova York, 1953.
6. TALERON, Y. Dépêche-Mode, janeiro de 1973. 27. TURPIN, J. C. Dépéche-Mode, dezembro-janeiro de 1973.
28. TARELON, Y. ibid.
7. Exemplo típico da estratégia do dominante, cujo equivalente é possível encontrar
em todos os campos: pegar na palavra dos dominados para opô-los a seus próprios 29. Courréges é aquele que exprime e assume, com maior convicção, a idéia da
princípios ou tentar vencê-los em seu próprio terreno, "ultrapassá-los pela esquerda". empresa total: "Um produto é uma criação, mas também uma técnica e o valor
agregado. É um todo. Ora, para ser totalmente responsável por um produto, é
8. Analisaremos mais adiante, ao abordarmos o caso de Courréges, outro exemplo
preciso controlar os instrumentos de fabricação; tornei-me gerente para ser dono
destas harmonias preestabelecidas, fundadas na homologia entre o campo da
do meu produto".
produção e o campo do consumo de bens de luxo (o campo da classe dominante)
que constituem realizações paradigmáticas da relaçãlJ que se estabelece entre o 30. Esta estrutura organizacional nada tem em comum (a não ser o fato, capital, da
Pierre Bourdieu
o Costureiro e Sua Grife
If
.~f()d()s de [Jominaçâu
antiga, não são os recursos, mas os meios institucjtlIl:li·; .1<-
Efeitos da Objetivação
"suplantar os limites dos recursos individuais", mobilizando os
capitais privados, isto é, toda a organização da produção e do
Paradoxalmente, a existência de campos relativamente funcionamento da produção, e especialmente os instrumentos de
autônomos, funcionando segundo mecanismos rigorosos e capazes crédito. 3 Esta análise é válida, a forúori, em relação à Cabília antiga,
de impor aos agentes sua necessidade, faz com que os detentores que nem dispunha dos mais rudimentares instrumentos de uma
dos meios de controlar esses mecanismos e de se apropriar dos instituição econômica. As terras eram, de fato, quase totalmente
lucros materiais e/ou simbólicos produzidos pelo seu excluídas da circulação - mesmo se, servindo às vezes de garantia,
funcionamento possam fazer a economÍa das estratégias orientadas elas corressem o risco de passar de um grupo para outro. Os
expressamente (o que não quer dizer, antes pelo contrário, de mercados da aldeia ou da tribo ficavam isolados e, de modo algum,
maneira manifesta) e diretamente (isto é, sem passar pela podiam se integrar em um mecanismo único. A oposição
mediação dos mecanismos) para a dominação das pessoas. Trata- estabelecida pela moral tradicional, encarnada pelo bu nÍya, entre
se bem de uma economia, porque as estratégias que visam instaurar a "malícia sacrílega" de praxe nas transações do mercado e a boa fé
ou manter relações duradouras de dependência de pessoa a pessoa conveniente às trocas entre parentes e familiares 4 - e que era
são, quase sempre, extremamente custosas em bens materiais marcZlcia pela distinção espacial entre o lugar de residência, a aldeia
(como o potlatch* ou as ações beneficentes), em serviços ou, l' o lugar das transações, ou seja, o mercado - não deve dissimular
simplesmente, em tempo: eis o que, por um paradoxo constitutivo a oposição entre o pequeno mercado local que, como diz Polanyi,
deste modo de dominação, faz com que, alC'1ll do meio destruir o fica "imerso nas relações sociais" (embedded Ín soCÍal reJaúonshÍps)
ftm, as ações necessárias para assesurar a perpelu;lç;lO do poder e o mercado quando este se tornou "o modo dominante de
contribuam para sua fragilidade.' transação" (the domÍnant transactÍonal mode).s
O poder econômico não reside na riqueza, mas na relação As estratégias baseadas na honra não são banidas do
entre a riqueza e um campo de relações econômicas, cuja mercado: se alguém pode vangloriar-se desta ou daquela manobra
constituição é inseparável do desenvolvimento de um corpo de bem-sucedida à 'custa de um estrangeiro, pode também se orgulhar
agentes especializados, dotados de interesses específicos; é nesta de ter efetuado uma compra a um preço exorbitante, por motivo
relação que a riqueza se encontra constituída, como capital - isto de honra, para "mostrar que podia fazê-lo" ou, ainda, ter conseguido
é, enquanto instrumento de apropriação de um equipamento concluir um negócio sem desembolsar um centavo, mobilizando
institucional e de mecanismos indispensáveis ao funcionamento um certo número de fiadores, ou, melhor ainda, em nome do
deste campo e, ao mesmo tempo, dos lucros que ele prodigaliza. crédÍto e do capital de confiança, decorrente de uma reputação
Assim, Moses Finley mostra bem que o que fazia falta à economia tanto de honra, quanto de riqueza. Os homens a respeito de quem
se pode afirmar que são "capazes de voltar com todo o mercado,
mesmo se saem de casa com os bolsos vazios" estão predispostos
• Trata-se de uma luta de generosidade pela riqueza. praticada pelos_ ín~ios kwahlltl
(NO do Canadá, em frente à ilha Vancouver): o mais generoso nao e aque.le que a desempenhar o papel de fiadores - seja em favor do vendedor
doa mais riquezas do que seu rival, mas quem consegue dllapld~r ou destrUIr suas
próprias riquezas para mostrar que não se e,ncontra em sltuaçao de neces~ldade. que garante, diante deles, a qualidade do animal, seja pelo
Cf. MARTINS, Paulo Henrique (org.). A dad{va entre os modernos. Petropolls, comprador que, ao não pagar à vista, compromete-se a quitar
Editora Vozes, 2002.
Modos de Dall/lI1açelo
pjerre BOllrdieu
,
pontualmente sua dívida. 6 A confiança de que usufruem e as pequeno mercado tribal ou dos grandes mercados regionais,
relações que podem mobilizar permitem-lhes não só "ir ao mercado representa um modo de transação intermediário entre dois
tendo como única moeda seu rosto, seu nome, sua honra", isto é, extremos, jamais completamente realizados: de um lado, as trocas
as únicas coisas que, neste universo, podem substituir a moeda, do universo familiar, fundadas na confiança e boa fé permitidas
mas também "apostar (no sentido de empenhar-se) mesmo sem pelo fato de que dispomos de uma informação quase total sobre os
possuírem bens". Além da riqueza e da solvência, são levadas em produtos trocados e sobre as estratégias do vendedor, além de
consideração as qualidades associadas estrÍtamente à pessoa a que a relação entre os responsáveis pela troca preexiste e deve
respeito das quais se diz que "não podem ser emprestadas nem sobreviver a tal operação; do outro, as estratégias racionais do self-
tomadas por empréstimo". De fato, mesmo no mercado, a regulatÍng market tornadas possíveis pela padronização dos
informação mútua é suficientemente grande para que a margem produtos e pela necessidade quase mecânica dos processos. O
deixada ao embuste, à trapaça e, sobretudo, ao blefe, continue suq deixou de propor a informação tradicional e ainda não oferece
sendo bastante reduzida. Se, porventura, "aquele que não foi criado as condições da informação racional: eis a razão pela qual todas as
para o mercado" vier a "arriscar-se", será rapidamente chamado à estratégias dos camponeses visam limitar a insegurança que é
ordem. "O mercado, diz-se, julgará": aliás, este designa não as correlativa da imprevisibilidade, transformando as relações
leis do mercado que, em qualquer outro universo, sancionam os impcssoais, sem passado nem futuro, da transação comercial em
empreendimentos imprudentes, mas o julgamento coletivo q Ul' relaçi)cs duradouras de reciprocidade pelo recurso a fiadores,
se forma e se manifesta sobre o mercado. Uma pessoa (, ou IL-IO leSll'nlunhas e mediadores; deste modo, entre os contratantes, é
"homem de negócios'" (argaz nasuq) , julgamento lotai sllbre o possível instaurar ou restaurar o equivalente funcional de uma
homem total que, à semelhança do que acoJlleCl' ('111 Illlb sOl'il'll.Jde rede tradicional de relações.
relativamente aos julgamentos destc tipo, implica UIl valores Da mesma forma que a riqueza econômica só pode funcionar
últimos, contidos nas taxinotllias míticas. A quem pretenda como capital na relação com um aparelho econômico, assim também
ultrapassar os limites de sua "naluraa" de "homem caseiro" (argaz a competência cultural, sob todas as suas formas, só se constitui
ukhamÍs), é dirigido o seguinte comentário: "Já que você não passa enquanto capital cuftural nas relações objetivas que se estabelecem
de um homem do canto da lareira (thakwath, ou seja, o pequeno entre o sistema econômico de produção e o sistema de produção
nicho escavado no muro da casa que serve para esconder os dos produtores (constituído, por sua vez, pela relação entre o
minúsculos objetos, tipicamente femininos, que não devem ser sistema escolar e a família). As sociedades desprovidas de escrita
exibidos em público: colheres, retalhos de tecido, instrumentos - circunstância que permite conservar e acumular, sob uma forma
de tecer, etc), então permaneça desse jeito". objetivada, os recursos culturais herdados do passado - e do sistema
A dualidade entre aldeia e mercado é, sem dúvida, uma de ensino que dota os agentes de atitudes e disposições
forma de manter, fora do universo das relações de reciprocidade, indispensáveis para terem a possibilidade de se reapropriarem
as disposições calculistas suscetíveis de serem instauradas pelas simbolicamente deles só podem conservar seus recursos culturais
trocas impessoais do mercado. De fato, o suq, quer se trate do no estado Íncorporado: 7 na seqüência, elas não podem assegurar a
perpetuação dos recursos culturais destinados a desaparecer ao
mesmo tempo em que os agentes seus portadores, senão mediante
, No original, homme de marché, literalmente, "homem de mercado".
• da sociedade - religião, filosofia, arte, ciência -, através da estabelecer diretamente entre pessoas, mas instauram-se, na
Modos de Dominação
simbólica, à ação do conjunto dos mecanismos que permitem fazer Formas Elementares da Dominação
a economia da reafirmação contínua das relações de força pelo uso
declarado da força.
Era preciso, no mínimo, esboçar esta análise da dupla
O efeito de legitimação da ordem estabelecida não incumbe
eficácia dos mecanismos objetivos - que contribuem, não somente
somente, conforme se vê, aos mecanismos tradicionalmente
para a instauração de relações duradouras de dominação, mas
considerados como pertencentes à ordem da ideologia, como o
também para a dissimulação de tais relações - para compreender
direito. O sistema de produção dos bens simbólicos ou o sistema
inteiramente a diferença radical que existe entre os modos de
de produção dos produtores desempenham, também - isto é, pela
dominação e as estratégias políticas de conservação características
lógica mesma de seu funcionamento - funções ideológicas pelo fato
de formações sociais, cuja energia social acumulada está objetivada,
de que se mantêm escondidos os mecanismos pelos quais eles
de forma desigual, em mecanismos. De um lado, determinadas
contribuem para a reprodução da ordem social e para a permanência
relações sociais que, não tendo em si mesmas o princípio de sua
das relações de dominação. Não é tanto através das ideologias
reprodução, só podem subsistir mediante uma verdadeira criação
produzidas ou inculcadas pelo sistema de ensino (como poderiam
contínua; de outro, um mundo social que, contendo em si mesmo
fazer-noS crer aqueles que falam de "aparelho ideológico") que tal
o princípio de sua própria subsistência, dispensa os agentes deste
C) sistema contribui para fornecer à classe dominante uma "teodicéia
Cf) de seu próprio privilégio", como disse Max Wcbcr, mas l" sobrl'ludo, Iraldho incessante e indefinido de instauração ou restauração das
através da justificação prática da ordem estabelecieb que 1;11 siSll'ma reLlçôes sociais. Esta oposiç:io encontra sua expressão na história
instaura quando dissimula sob a relaç:io patente, gar:llllid,1 ['ur ele, Oll pré-hislória do pensamento social. "Para encontrar o fundamento
entre diplomas e cargos, a rebç:lo qlle ele- n~t:islu SIIIi-I"<'1llici.!!llc'IlIt', natural do ser social" corno diz Durkheim, IJ foi preciso romper
sob a aparC'ncia de igualclaek tlJrln:l!, ellln' os diplomas obtidos e o com a propensão de apreender o mundo social como se estivesse
capital ctlltural herdado, ou seja, através da legitimação que fornece fundado no arbitrário das vontades individuais ou, como Hobbes,
assim à transmissão desta forma de herança. Os efeitos ideológicos no arbitrário de uma vontade soberana: "Para Hobbes, escreve
mais óbvios são aqueles que, para se exercerem, não precisam de Durkheim, é um ato. de vontade que dá origem à ordem social e é
L
palavras, mas do silêncio cúmplice. O mesmo é dizer, de passagem, um ato de vontade renovado perpetuamente que a sustenta" .14 E
í
que toda análise das ideologias, no sentido restrito do discurso de tudo parece indicar que a ruptura com esta visão artificial que é a I
legitimação, que não comporte uma análise dos mecanismos condição de apreensão científica não poderia ser operada antes
II
institucionais correspondentes, se expõe a ser apenas uma que fossem constituídos, na realidade, os mecanismos objetivos,
contribuiÇão suplementar para a eficácia de tais ideologias: é o caso tais como o seJ~reguJatÍng marker que, conforme observa Polanyi,
de todas as análises internas (semiológicas) das ideologias políticas, estava bem estabelecido para impor a crença no determinismo. I
escolares, religiosas ou artísticas que esquecem que a função política Mas, a realidade social preparava uma última peça à ciência: a
dessas ideologias pode reduzir-se, em certos casos, ao efei to de
deslocamento e desvio, de dissimulação e legitimação, produzido
por tais análises ao reproduzirem, por falta ou omissão, em seus
existência de mecanismos capazes de assegurar a reprodução da
ordem política fora de toda intervenção expressa autoriza a
reconhecer como políticas apenas aquelas práticas orientadas em
It
i
silêncios - voluntária ou involuntariamente, cúmplices -, os efeitos direção à aquisição ou conservação do poder que, tacitamente,
dos meca.nismos objetivos.1 2 excluem da competição legítima pelo poder o controle dos
C)
o ,\/odos de f)olJlinuçôu
C)
Pierre Bourdieu N
'"
mecanismos de reprodução. É assim que, tendo como objeto É assim que uma relação social tão próxima, na aparência,
principal - o que, hoje, chamamos "ciência política" -, a esfera da de uma simples relação entre o capital e o trabalho como aquela
política legítima, a ciência social retomou, há muito tempo, por que une o fazendeiro' a seu khammes (espécie de meeiro que não
sua conta, o objeto pré-construído que lhe era imposto pela recebe senão uma parcela muito reduzida da colheita, em geral,
realidade. um quinto, com variantes locais) só poderá manter-se pelo
Quanto mais a reprodução das relações de dominação exercício da violência material ou simbólica diretamente aplicado
estiver dependente de mecanismos objetivos, que servem aos à própria pessoa com quem se pretende estabelecer um vínculo.
dominantes sem que estes tenham necessidade de se servir de O fazendeiro pode segurar seu khammes por uma dívida que o
tais mecanismos, tanto mais indiretas - e, se podemos dizer, pressiona a renovar seu contrato enquanto não encontrar um novo
impessoais - serão as estratégias objetivamente orientadas em fazendeiro que aceite quitar o montante de sua dívida ao antigo
direção à reprodução: escolhendo a melhor aplicação para seu empregador, isto é, indefinidamente. Ele pode também recorrer a
dinheiro ou o melhor estabelecimento secundário para o filho e medidas brutais, tal como a apropriação da totalidade da colheita
evitando demonstrar liberalidade, cortesia ou gentileza à para cobrir o montante de seus adiantamentos. Mas cada relação
faxineira (ou a qualquer outro "subordinado") é que o detentor particular é o produto de estratégias complexas, cuja eficácia
de capital econômico ou cultural assegura a perpetuação da depende não só da força material e simbólica das partes envolvidas,
relação de dominação que o une objetivamente à sua faxineira mas tambl~1l1 de sua habilidade em mobilizar o grupo, suscitando
e, até mesmo, aos descendentes desta. "do (Olllr:írio, enquanto a comiseração ou a indignação. A relação de dominação não vale
não for constituído o sisteIl1:1 dos 1l1l'ClIliSlllOS que, por sell somente pelos ganhos materiais que ela proporciona: inúmeros
próprio rnovlrncrHo (aí)Ô tu 3 U!Ofll.'!lU, COlHO dizial11 os gregos), fazendeiros, pouco mais ricos que seus khammes teriam interesse
venham a assegurar a reprodução da ordem estabelecida, não em cultivar suas próprias terras; acontece que, ao procederem
bastará que os dominantes deixem funCÍonar displicentemente assim, privar-se-iam do prestígio prodigalizado pela posse de uma
o sistema dominado por eles para que se exerça de forma "clientela". Mas aquele que pretende ser tratado como maftre deve
duradoura sua dominação; pelo contrário, terão necessidade de manifestar as virtúdes que convêm a seu status, a começar pela
trabalhar de forma direta, cotidiana e pessoal para produzirem generosidade e pela dignidade nas relações com seus "clientes".
e reproduzirem as condições sempre incertas da dominação. O pacto que une o fazendeiro a seu khammes é um acordo de
Não podendo se contentar em se apropriarem dos ganhos de homem a homem que se limita a esta garantia: a fidelidade exigida
uma máquina social ainda incapaz de encontrar em si mesma o pela honra. Nada de disciplina abstrata, de contrato rigoroso ou
poder de se perpetuar, eles estão condenados às formas sanções precisas. Mas, espera-se dos grandes que eles se mostrem
elementares da dominação, isto é, à dominação direta de uma dignos de seu status, protegendo material e simbolicamente
pessoa sobre outra, cujo limite é a apropriação pessoal, isto é, a aqueles que estão sob sua dependência.
escravidão; não poderão apropriar-se do trabalho, dos serviços,
dos bens, das honras, do respeito pelos outros sem os ganharem * No ~riginal.ma/tre. Em francês, este termo pode significar: o "senhor", em
opo~lçao .ao "escravo':: o "amo": em oposição ao "criado"; o "mestre", em oposição
pessoalmente, sem se apegarem a eles, enfim, sem criarem um
ao . d!sclpulo/aluno - acepçoes em que se encontra, de forma subjacente, a
vínculo pessoal, de pessoa a pessoa. poslçao de superioridade. Nesta tradução, além de "amo", optamos pelo termo
"fazendeiro" - considerando o contexto.
<"I
o
<"I P/erre Bourdieu ;\fodos de Dominaç!io
,
•
Ainda aí, tudo é questão de estratégia e as relações Assim, neste sistema, existem apenas duas maneiras
•
encantadas do pacto de honra só são freqüentes porque, nesta
economia, as estratégias de violência simbólica são, quase
sempre, mais econômicas que a pura violência econômica (no
que, afinal de contas, formam uma só - de segurar alguém de
forma duradoura: a dádiva ou a divida, as obrigações abertamente
econômicas da dívida ou as obrigações morais e afetivas criadas e
,•
sentido restrito). De fato, considerando a falta de um verdadeiro mantidas pela troca; enfim, a violência aberta (física ou econômica)
mercado do trabalho e a raridade (portanto, a carestia) do dinheiro, ou a violência simbólica corno vÍolênCÍa censurada e eufemÍzada,
o fazendeiro só consegue servir melhor seus interesses, tecendo isto é, irreconhecível e reconhecida. É preciso saber perceber
dia após dia, mediante cuidados e atenções incessantes, laços urna relação inteligível - e não uma contradição - entre estas
tanto éticos e afetivos, quanto econômicos que o unem de forma duas formas de violência que coexistem na mesma formação social
duradoura a seu khammes: freqüentemente, é ele que, para e, às vezes, na mesma relaçãoY pelo fato de que a dominação só
mantê-lo ligado a si, organiza o casamento de seu khammes (ou pode ser exercida sob sua forma elementar, isto é, de pessoa a
do filho deste) e o instala, com a família, em sua própria casa: as pessoa, é que ela não pode consumar-se abertamente e deve se
crianças, criadas juntas na comunidade de bens (rebanho, campos, dissimular sob o véu das relações encantadas das quais as relações
etc), só tardiamente tomam conhecimento de sua condição. Não entre parentes fornecem o modelo oficial, em suma, tornar-se
é raro que um dos filhos do khammes vá trabalhar na cidade desconhecida * para vir a ser reconhecida. J6 Se a economia pré-
como operário assalariado, ao mesmo tempo em que um dos filhos capitalista é o lugar por excelência da violência simbólica é porque
do proprietário a quem entrega, à semelhança do que se passa as relações de dominação só podem ser instauradas, mantidas ou
com o filho, suas economias. Enfim, o fazendeiro só pode obter restauradas nesse espaço mediante estratégias que, estando
do khammes uma dedicação duradoura a seus interesses 11:1
expressamente orientadas para o estabelecimento de relações
medida em que o assoá1 completamente a tais interesses, a ponto
de dependência pessoal, devem travesti r-se, transfigurar-se, em
de ocultar, negando-a simbolicamente em todos os seus
uma palavra, eufemÍzar-se, sob pena de se destruírem, traindo
comportamentos, a dissimetria da relação que o une ao
abertamente sua verdade. Por isso, as censuras impostas à
empregado. O khammes é aquele a quem se confia seus bens,
manifestação aberta da violência - em particular, sob a forma
sua casa, sua honra (corno lembra a fórmula: "Conto com você,
brutalmente econômica - pela lógica característica de uma
sócio; quanto a mim, vou me associar", utilizada pelo fazendeiro
economia em que os interesses só podem ser satisfeitos sob a
ao deixar sua casa para trabalhar na cidade ou na França). É aquele
condição de se dissimularem nas e pelas estratégias que visam
que "trata a terra como proprietário" porque nada na conduta de
satisfazê-los. li Portanto, convém evitar ver uma contradição no
seu amo o impede de reconhecer seus direitos sobre a terra que
ele trabalha: e não é raro escutar um khammes invocar, muito
tempo depois de ter deixado seu mairre, o suor derramado para
* No original, méconnaitre, cujo significado é "recusar(-se) a admitir". No texto,
colher frutos ou penetrar na propriedade. E da mesma forma que ainda são encontráveis os vocábulos méconnu/ e, méconnaissable e
ele nunca se sente inteiramente livre de suas obrigações para méconnaissance; nesta tradução, foram adoDdos os termos "desconhecer",
"desconhecido/a", "desconhecimento" - além de "incognoscivel" correspondeme
com o antigo amo, assim também pode criticá-lo, depois do que a mécunnaissable - tendo em vista a uniformiza.;ão com a terminologia já utilizada
em outros textos traduzidos de P Bourdieu (por exemplo, Poder simbólico,
ele chama de "reviravolta": neste caso, a "covardia" consiste em Portugal-Brasil. Bertrand-Difel, 1989; e A economia das trocas Jingü/sticas, São
abandonar aquele que ele havia "adotado". Paulo, Edusp, 1996).
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Pierre Bourdieu Mudos d~ [)onllnaçâo
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~ o=c:o..,,""="",aao!'Jll.e _
fato de que a violência simbólica é tanto mais presente quanto em uma palavra, presta homenagem a moral da honra, impõe-se
18
mais mascarada. Por não dispor da violência implacável e oculta como o modo de dominação mais econômico por ser mais
dos mecanismos objetivos que levam os dominantes a se adaptado à economia do sistema.
contentarem com estratégias - quase sempre, puramente Sempre que for impossível praticá-la de maneira direta e
negativas - de reprodução, esta economia tem recorrido brutal, a exploração do homem pelo homem irá assumir a forma
simultaneamente a formas de dominação que, do ponto de vista de exploração branda e larvada. É tão falso identificar esta
do observador contemporâneo, podem parecer, ao mesmo tempo, economia essencialmente dupla à sua verdade oficial
mais brutais, mais primitivas, mais bárbaras ou mais brandas, (generosidade, ajuda mútua, etc.), isto é, à forma que deve tomar
mais humanas, mais respeitosas à pessoa. 19 Esta dualidade da a exploração para se realizar, quanto reduzi-la à sua verdade
violência aberta, física ou econômica, e da violência simbólica objetiva, ao considerar a ajuda mútua como uma corvéia, o
mais refinada, encontra-se em todas as instituições características khammes como um tipo de escravo, e assim por diante. O dom,
desta economia e no próprio âmago de cada relação social: ela a generosidade, a distribuição ostentatória - cujo limite é o
está presente tanto na dívida, quanto na dádiva que, apesar de potlatch - são operações de alquimia social que, por um lado,
sua oposição aparente, têm em comum o poder de servir de podem ser observadas todas as vezes que a ação direta da violência
fundamento tanto à dependência e, até mesmo, à servidão, quanto aberta, física ou econômica, está negativamente sancionada e,
à solidariedade, segundo as estratégias adotadas por elas. Esta por outro, tendem a assegurar a transmutação do capital
ambigüidade essencial de todas as instituições, consideradas econômico em capital simbólico. O desperdício de dinheiro,
tendencialmente pelas taxinomias modernas como eCOlllJlllicas, energia, tempo e engenhosidade, é o princípio mesmo da eficácia
testemunha que as estratégias opostas que, à semelhança do que da alquimia social pela qual a relação interesseira se transmuta
se passa na relação entre o fazendeiro e seu khammes, podem em relação desinteressada, gratuita, a dominação declarada em
coexistir, são meios substitllÍveis de desempenhar a mesma dominação desconhecida e reconhecida, isto é, em autoridade
função; neste caso, a "escolha" entre a violência aberta e a violência legítima. O que está em ação é simplesmente o trabalho, o tempo,
branda e invisível depende do estado das relações de força entre o cuidado, a atenção, o conhecimento dos usos que terão de ser
as duas partes, assim como da integração e integridade ética do prodigalizados para produzir um presente pessoal, irredutível a
grupo que arbitra. Assim, a violência aberta, a do agiota ou do seu equivalente em dinheiro, um dom que vale pela maneira de
fazendeiro sem compaixão, continuará esbarrando na reprovação ser doado. Trata-se da despesa aparentemente gratuita não
coletiva 2°e correndo o risco de suscitar, seja uma resposta somente de bens ou dinheiro, mas de coisas que são ainda mais
violenta, seja a fuga da vítima, isto é, nos dois casos - por falta pessoais, portanto, mais preciosas; com efeito, como dizem os
de qualquer recurso - o aniquilamento da própria relação que, naturais da Cabília, elas não podem" ser empres tadas, nem
em princípio, deveria ser explorada; por sua vez, a violência tomadas de empréstimo", como o tempo - o que é preciso ter
simbólica, violência branda, invisível, desconhecida como tal, para fazer coisas "que a gente não esquece" porque são feitas
tanto escolhida quanto suportada, a da confiança, da obrigação, como e quando é conveniente, atenções, gestos, gentilezas. 21 A
da fidelidade pessoal, da hospitalidade, da dádiva, da dívida, do violência branda exige daquele que a exerce o cumprimento de
reconhecimento, da compaixão, de todas as virtudes às quais, seus deveres. A autoridade, carisma, graça - ou, para os naturais
co
Pierre Bourdicu
Alodos de f)o/ll/l1açiio C',
---r'
•
da Cabília, sarr - é sempre percebida como uma propriedade da implica sempre dificuldade e, às vezes, perigo; são eles que, eIlI
pessoa: a !ides, como lembra Benveniste, não é a "confiança", todas as situações propícias a criar conflitos entre os clãs (por
mas a "qualidade própria de um ser que atrai para ele a confiança exemplo, em caso de crime) se reúnem em assembléia, com o
e se exerce, sob a forma de autoridade protetora, sobre quem se marabuto, para reconciliar os antagonistas: incumbe-lhes a tarefa
fia nele"Y A ilusão que coloca no objeto o princípio dos de proteger os interesses dos pobres e dos clientes, ofertando-
sentimentos responsáveis por sua representação do objeto não é lhes dons por ocasião das coletas tradicionais (por exemplo, no
inteiramente ilusória. De fato, "a graça" que reconhece a gratidão momento da thimechret) e enviando-lhes alimentos por ocasião
é, como lembra Hobbes, o reconhecimento por uma antecedant das festas, prestar ajuda às viúvas, assegurar o casamento das órfãs,
grace. etc.
A dominação branda é muito mais custosa para aquele que Em suma, por não ter a garantia de uma delegação
a exerce - e não somente do ponto de vista econômico. Os encargos oficialmente declarada e institucionalmente garantida, a autoridade
- tais como, o de tamen, "responsável" ou "fiador" que representava pessoal só pode perpetuar-se de forma duradoura através de ações
seu grupo (thakharrubth ou adhnun) nas reuniões da assembléia que, praticamente, a reafirmam por sua conformidade com os valores
dos homens e em todas as circunstâncias solenes (recebendo, por reconhecidos pelo grupo2J O mesmo é dizer que, em tal sistema,
exemplo, o quinhão de seu grupo por ocasião da thilllcchrc/) - os "grandes" têm menos possibilidade do que qualquer outra
não eram disputadas nem desejadas. Além disso, não era raro que pessoa de tomar certas liberdades com relação às normas oficiais e
as personagens mais influentes e mais importantes do grupo devem pagar seu suplemento de valor com um acréscimo de
recusassem esta função ou pedissern rapiclamentl' para serem conformidade aos valores do grupo que é o princípio de todo valor
substituídas: as tarefas de representaç~lo e mediação de que o /;)lllCIl simbólico. De fato, enquanto não forem constituídos os mecanismos
estava incumbido exigiam, com efeito, Illuito tempo e muito institucionalizados que permitem concentrar nas mãos de um
sacrifício. Aqueles a quem o grupo atribui o nome de "sábios" ou agente singular (chefe de partido ou delegado sindical,
"grandes" e que, inclusive, na falta de todo mandato oficial, administrador de sociedade, membro de uma academia, etc.) a
encontram-se investidos de um tipo de delegação tácita da totalidade do capital que funda a existência do grupo e de lhe
autoridade do grupo, consideram como seu dever (exprimindo, delegar o poder de exercer sobre este capital coletivamente
deste modo, a obrigação para com eles mesmos o que implica uma possuído pelo conjunto dos "acionistas", um poder sem relação
elevada idéia a respeito de si mesmos) chamar continuamente a estrita com sua própria contribuição, cada agente participa do
atenção do grupo para os valores que este reconhece oficialmente, capital coletivo, simbolizado pelo nome da família ou da linhagem,
tanto por sua conduta exemplar como por suas intervenções mas na proporção direta de sua contribuição, isto é, na medida
expressas: são eles que, ao verem duas mulheres de seu grupo exata em que suas ações, suas palavras e sua pessoa prestam
em via de brigarem, devem separá-las, até mesmo, espancá-las homenagem ao grupO.2~ Este sistema é feito de tal forma que os
(caso se trate de viúvas ou se os homens que são responsáveis por dominantes se interessem pela virtude: eles só podem acumular
elas estejam desprovidos de autoridade) ou infligir-lhes um poder político cumprindo seus deveres e não somente
castigo; são eles que, em caso de conflito grave entre membros de redistribuindo seu dinheiro e bens; eles devem ter as virtudes de
seu clã, devem fazer lembrar o bom senso aos envolvidos, o que seu poder, já que seu poder só poderá apoiar-se na vinude.
00 c-
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C'l Pierre Bourdieu Modos de DOllllllaçi'io 0'
Formalidades e Denegação do Interesse doarmos (uma dádiva que não é restituída cria um vínculo
duradouro, uma obrigação, limitando a liberdade do devedor que
Parece que as condutas generosas, das quais o potlatch está condenado a uma atitude pacífica, cooperativa, prudente);
(um dos curiosa para antropólogos) é apenas um caso limite, porque, na falta de qualquer garantia jurídica e de toda força de
deixam na incerteza, por um lapso de tempo, a lei universal do coerção externa, uma das únicas maneiras de "segurar alguém" de
interesse - toma lá, dá cá; nada se dá por nada - e instauram forma duradoura consiste em fãzer durar uma relação assimétrica,
relações que contêm em si seu próprio fim: falar por falar - e não tal como a dívida; porque a única posse reconhecida, legítima, é
para dizer alguma coisa -, dar por dar, e assim sucessivamente. De aquela de que nos assenhoreamos ao nos desapossarmos dela, isto
fato, estas negações do interesse nunca são mais do que denegações é, a obrigação, o reconhecimento, o prestígio ou a fidelidade pessoal.
práticas. à maneira da Verneinung de Freud - discurso que só diz A riqueza, base derradeira do poder, só poderá e..xercer um
o que diz sob uma forma que tende a mostrar que ele não o diz -, poder - e um poder duradouro - sob as espécies do capital simbólico;
elas satisfazem o interesse sob uma forma (desinteressada) que em outras palavras, o capital econômico poderá ser acumulado apenas
tende a mostrar que elas não o satisfazem. Sabemos que "a maneira sob as espécies do capital simbólico, forma transformada, isto é,
de dar vale mais do que o que se dá"; que o que separa o dom do incognoscível - portanto, suscetível de ser oficialmente reconhecida
simples "toma lá, dá cá" é o trabalho necessário para utilizar -, pelas outras espécies de capital. O chefe é exatamente, como diz
formalidades, para transformar a maneira de agir e as formas Malinowski, "um banqueiro tribal" que se limita a acumular
exteriores da ação na denegação prática do con teúdo da ;1(,-;]0 e, mantimentos para poder distribuí-los e, assim, entesourar um capital
assim, transmutar simbolicamente a troca intl'fl'ssl'ira (lU a simples de obrigação e dívidas que serão quitadas sob a forma de
relação de força em uma relação efetuada "por pura formalidade" e homenagens, respeito, fidelidade e, em caso eventual, de trabalho
"conforme as regras estabelecidas", isto l', por respeito puro e e serviços, bases possíveis de uma nova acumulação de bens
desinteressado dos usos e convenções reconhecidos pelo grupo. materiaisY Os processos de circulação circular, tais como a
(Parêntese em obséquio aos estetas: pelo fato de que o tempo e o arrecadação de um tributo seguido de uma redistribuição hierárquica
trabalho dedicados a utilizar formas e colocar no molde são, neste e hierarquizante, seriam perfeitamente absurdos se não tivessem
caso, mais intensos porque a censura da expressão direta do como resultado a transmutação da natureza da relação social entre
interesse pessoal é, igualmente, mais forte, as sociedades arcaicas os agentes ou os grupos diretamente envolvidos. Por toda pane em
oferecem aos amadores de belas formas o encantamento de uma que são observados, tais ciclos de consagração têm por função realizar
arte de viver alçada à ordem da "arte pela arte" que tem por base a operação fundamental da alquimia social, transformar relações
a recusa em reconhecer evidências, tais como "negócios são arbitrárias em relações legítimas, assim como diferenças de fato em
negócios" ou "time is money", sobre as quais se apóia a arte de distinções oficialmente reconhecidas. As relações duradouras de
viver tão pouco artística da harried leisure class' das sociedades dominação legítima e dependência reconhecida encontram seu
di tas avançadas). fundamento na circulação circular em que se engendra a mais-valia
Possuímos bens para doá-los. Somos "ricos para dar aos simbólica que é a legitimação do poder. Considerando apenas o
pobres", como dizem os naturais da Cabília,26 Forma exemplar de caso parrÍClIJar das trocas de bens materiais e/ou simbólicos que
denegação: porque nos tornamos possuidores também no ato de visam legitimar relações de reciprocidade, como faz Lévi-Strauss,
o
Pierre Bourdieu rl
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I
corremos o risco de esquecer que todas as estruturas de troca disfarce fará aparecer como legítimas ou, até mesmo, como
inseparavelmente material (circulação) e simbólica (comunicação) evidentes. 28
funcionam como máquinas ideológicas, desde o momento em que A verdade oficial produzida pelo trabalho coletivo de
o estado de fato que elas tendem a legitimar, transformando uma eufemização, forma elementar do trabalho de objetivação que
relação social contingente em relação reconhecida, é uma relação de conduzirá à definição jurídica das práticas convenientes não é
força assimétrica. somente o que permite ao grupo salvar seu "ponto de honra
A reconversão permanente do capital econômico em capital espiritualista"; ela tem, igualmente, uma eficácia real porque - no
simbólico, mediante o desperdício de energia social que é a pressuposto de que fosse desmentida por todas as práticas, à
condição da permanência da dominação, só pode ter sucesso com maneira de uma regra que só teria exceções - continua sendo a
a cumplicidade de todo o grupo: o trabalho de denegação que está verdade das práticas que pretendem ser convenientes. Cada um
na origem da alquimia social é, como a magia, um empreendimento carrega a moral da honra sobrecarregada com o peso de todos os
coletivo. ''A própria sociedade se dá por satisfeita com a ilusão de outros; além disso, o desencantamento que conduz ao
seus devaneios", como dizia Mauss. O desconhecimento coletivo desvendamento progressivo das significações e funções recalcadas
que está na origem da moral da honra, como d~negação coletiva da só poderá resultar do desmoronamento das condições sociais da
verdade econômica da troca, só é possível porque, neste tipo de <"['IlSlIra cruzada que cada qual suporta com impaciência, sem deixar,
mentira do grupo para consigo mesmo, nunca existe cllg:IILlLlur, nu entanto, de impô-L! aos outros. 2 "
nem enganado: o camponês que trata scu k!J.IIllIllCS Cll!l10 UIlI
Se for verdade que a violência simbólica é a forma branda e
associado, porque este é o costU!l1e e UIlLl cxigl"llci;l ela iJullra,
enrustida assumida pela violência quando esta não pode manifestar-
além de se enganar - porque só pode obedecer a seu interesse sob
se abertamente, compreende-se que as formas simbólicas da
a forma eufemizada, assumida pela moral da honra -, engana seu
dominação tenham-se deteriorado progressivamente à medida que
khammes, a este só resta pedir para entrar, com a cumplicidade
se constituíam QS mecanismos objetivos que, tornando inútil o
de todo o grupo, na ficção interesseira que lhe oferece uma
trabalho de eufemização, tendiam a produzir as disposições
representação honrosa de sua condição. O mesmo é dizer que os
desencantadas exigidas por seu desenvolvimento. 30 Compreende-
mecanismos que asseguram a reprodução dos habirus conformistas
se também que a tomada de consciência e a neutralização
fazem, aqui, parte integrante de um aparelho de produção que
progressivas dos efeitos ideológicos e práticos dos mecanismos
não poderia funcionar sem eles. Os agentes só conseguem segurar-
que asseguram a reprodução das relações de dominação
se uns aos outros - não somente pais e filhos, mas credor e devedor,
determinem um retorno a formas de violência simbólica fundadas
fazendeiro e khammes - pelas disposições inculcadas e reforçadas
também na dissimulação dos mecanismos de reprodução pela
continuamente pelo grupo que tornam impens,iveis determinadas
conversão do capital econômico em capital simbólico: através da
práticas que a economia desencantada do interesse* sem qualquer
redistribuição legitimadora, pública (política "social") ou privada
(fillanciamento de fundações "desinteressadas", donativos a
hospitais, instituições escolares e culturais, etc), tornada possível
• No original, incérêt; assinale-se que este termo significa também "juro" (de
por eles, é que se exerce a eficácia dos mecanismos de reprodução.
capital aplicado).
transmitida hereditariamente (e.g., a graúa, consideração, influência, dos romanos), cuja evocação está plenamente justificada contra todas as formas de idealismo e
para o título ou, se quisermos, a passagem da honra para o jus honorum: assim, idealização, não são pertinentes em relação à lógica específica da violência simbólica,
por exemplo, em Roma, o uso dos títulos (e.g., eques romanus) que definia uma assim também a falta de pára-raios ou telégrafo elétrico evocada por Marx na
dignúas, como posição reconhecida oficialmente no Estado (em oposição a uma célebre passagem da Introduetion généra/e à /a Critique de /,économie poiitique
simples qualidade pessoal), acabou progressivamente por ficar submetido - da não é suficiente para justificar a existência de Júpiter ou Hermes, ísto é, a lógica
mesma forma que o uso das insignia - aos controles minuciosos do uso ou do interna da mitologia e arte gregas.
direito (cf. NICOLEI, CI. L'ordre équestre d /'époque répubiicaine, 1, Déíinitions
17. O "olhar" interacionista que, ignorando os mecanismos objetivos e sua eficácia,
juridiques et struccures sociaies, Paris, 1966. p. 236-241). dedica-se às interações diretas entre os agentes, encontraria seu terreno de eleição
11. Cf. sobre este ponto, BOURDIEU, P. e BOLTANSKI, L. "Le titre et le poste: nesse tipo de sociedades, ísto é, no caso precisamente em que, em razão da relação
rapports entre le systeme de production et le systeme de reproduction" in Aaes de que une comumente o etnólogo a seu objeto, ele é o mais improvável. Para continuar
ia recherche en sciences socia/es, no 2, março de 1975. p. 95-107. [NT: Texto já o jogo dos paradoxos, podemos observar que o estruturalismo, no sentido rigoroso
traduzido: "O diploma e o cargo: relações entre o sistema de produção e o sistema do termo, isto é, enquanto ciência das estruturas objetivas do mundo social (e não
de reprodução" in BOURDIEU, P. Escriws de educação (org. de Maria Alice Nogueira somente das representações que os agentes têm a esse respeito), nunca é tão
e Afrânio Catani), Petrópolis, Vozes, 1998. p. 127-144] inadequado (ou menos fecundo) quanto ao ser aplicado a sociedades em que as
12. É o caso, por exemplo, da ideologia carismática (ou meritocrática) que explica, relações de dominação e dependência são o produto de uma verdadeira criação
pela desigualdade dos dons naturais. as oportunidades diferenciais de acesso aos continuada (a menos que não queiramos defender - como faz implicitamente o
diplomas, reproduzindo assim o efeito dos mecanismos que dissimulam a relação estruturalismo, tal como o entende Léví-Strauss - que, neste caso, a estrutura
entre os diplomas obtidos e o capital cultural herdado. reside na ideologia e que o poder reside na posse dos instrumentos de apropriação
13. DURKHEIM, E. Montesquieu et Rousseau précurseurs de ia soci%gie, Paris, lkssas eSlruturas, isto é, na forma de capital cul[llral).
Riviere et Cie, 1953. p. 197 IX 1\ hist,',ri:l do vocabulúrio das instituições indo-européias, escrita por Émile
14. Ibid. p. 195. A analogia com a teoria cartesiana da criação continuada é ['crl'·i!.1. Ikl1vL'niste, apreende os referenciais lingLiísticos do processo de desveiamenwe
E logo que Leibniz, criticando Deus condenado a mover o mundo "como o dc'S{'IIGlfI(:Ullefl(O que conduz da violencia fisica ou simbólica ao díreito, do resgate
carpinteiro manipula seu machado ou como o moleiro dirige sua ml\ dl'svi,llIdo (do prisioneiro) à compra, do premio (por um feite> brilhante) ao salário, assim
ou orientando as águas para a roda" (LEIBNIZ, G. W. "De IPS:l Nallll:( in (J/'/lS'D/1 corno do reconhecimento moral ao reconhecimento de dívidas, da crença ao crédito
phil050phica se/ecu. Paris, Boivin, 1939. p. 92), opõe :10 J11Ulldo "1111";,111", iW:IJ\I-. ou, ainda, da obrigação moral à obrigação executória diante de um tribunal.
de subsistir sem uma assistencia de todos os instantes, \1111 nllllh!') rísi,'o doudo (BENVENISTE, É. Le Vocabu/aire des institutions indo-européennes, Paris, Ed.
de uma vis propria, ele anuncia a crítica conl ra tod:ls as rorrnas d:l recusa de de Minuit, 1969, especialmente, t. 1, Economie, pilrenté, socléré, p, 123-202). E do
reconhecer ao mundo social uma natureza, isto é, uma IIcl'essicladc illuncnte, que mesmo modo, Moses L. Finley mostra que a dívida que, às vezes, era administrada
só muito mais tarde irá encontrar sua express~o (isto é, prccis:lIllC11te na introdução para criar um relação de servidão podia tambêm servir para criar relações de
aos Principes de ia phiiosophit, du druir dc Hcgel). solidariedade entre iguais (FINLEY, M. L. "La servitude pour dettes" in Reme
15. Se os atos de comunicação - trocas ele dons, desafios ou palavras, etc. - contêm d'histoire du droit fj-apçals et étranger, 4a série, 63 (2), abril-junho de 1965. p.
sempre em si a virtualidade do conf1ito e porque eles encerram sempre a possibilidade 159-184).
da dominação. A violência simbólica é, com efeito, esta forma de dominação que, 19. A questão do valor relativo dos modos de dominação - formulada, pelo menos,
ultrapassando a oposição que se estabelece comumente entre as relações de sentido implicitamente pelas evocações rousseaunianas dos paraísos originais ou pelas
e as relações de força, entre a comunicação e a dominação, só se realiza através da dissertações sobre a "modernização" - é totalmente desprovida de sentído e só
comunicação sob a qual ela se dissimula. pode dar lugar a debates, por definição, intermináveís sobre as vantagens e os
16. Vemos que não é suficiente observar, como fez Marshall D. Sahlins, que a inconvenier,:es do ames e do depoIs, cujo único interesse consiste em revelar as
economia pré-capitalista não oferece as condições de um modo de dominação, fantasias sociaIs do pesquísador, isto é, a relação não analisada que ele mantém
indíreto e impessoal, no qual a dependência do trabalhador em relação ao patrão é com sua própria sociedade. Como em todos os casos em que se trata de comparar
o produto quase automático dos mecanismos do mercado do trabalho, para tornar um sistema a outro, podemos opor indefinidamente representações parciais dos
visível a forma especííica assumida, nesse caso, pelas relações de dominação (cf. dois sistemas (por exemplo, encantamento versus desencantamento), cuja coloração
SAHUNS, M. D. "Political Power and the Economy in Primitive Society" in G. E. afetiva e conotações éticas variam somente, para sua constituição, do sistema que
Dole e R. L. Carneiro, Essays in the Science of Cu/cure, Nova York, Thomas Y. é tomado como ponto de vista. Os sistemas considerados enquanto taís constituem
CrowelI Company, 1960. p. 390-415; "Poor Man, Rich Man, Big Man, Chief: o único objeto legítimo de comparação, o que impede qualquer avaliação diferente
Political Types in Melanesia and Polynesia" in Comparaâve Srudies in Sociery:md daquela que está implicada na lógica imanente da evolução.
Hlstory, 5, 1962,63. p. 285-303; "On the Sociology of Primitive Exchange" in M.
20. Alguns agiotas, com medo de se exporem à perda da honra e serem banidos do
Banton ed., The Re/evance of Mode/s for Soda! Anrhropoiogy, London, Tavistock
grupo, preferem acertar novos prazos (até a colheíta das azeitonas) com seus
Publicatíons, 1965. p. 139-236). Do mesmo modo que estas condições negativas,
devedores a lim de não serem obrigados a vender terras para quítar suas dívidas.
00 Modos de Dominação
N
PIerre BourdIell