Mulheres Que Amam Demais - Robin Norwood
Mulheres Que Amam Demais - Robin Norwood
Mulheres Que Amam Demais - Robin Norwood
Sobre a obra:
Sobre nós:
Agradecimentos
Três pessoas merecem minha gratidão por seu decisivo comprometimento
com a elaboração desse livro. Primeiramente, meu marido, Bob Calvert, que leu
tudo que escrevi — umas seis, sete vezes ou mais — e mesmo assim continuou
disposto e encorajador, contribuindo com informações, sugestões e críticas ao
trabalho em andamento.
Segundo, minha datilógrafa, Stephanie Stevens, que demonstrou a capacidade
quase mediúnica de decifrar folhas e folhas do material manuscrito,
acompanhado de anotações complicadas do esquema do livro.
E terceiro, devo agradecer a Laura Golden, editora da Tarcher, primeira a ver
o manuscrito e a acreditar nele. A compreensão clara de Laura do conceito de
amar demais, como também sua orientação incansável a uma autora de
primeira viagem, aprimoraram imensamente a coerência e a qualidade geral do
projeto.
Cada uma dessas pessoas acreditou neste livro antes de ele se concretizar, e
sou-lhes grata por sua dedicação, amor e apoio.
Tenho a maior esperança de que esse livro ajude qualquer pessoa que ame
demais. É escrito, porém, principalmente para mulheres, pois amar demais é
sobretudo um fenômeno feminino. Seu propósito é bastante específico: ajudar as
mulheres com maneiras ou sentimentos destrutivos a reconhecer o fato, a
compreender a origem desses sentimentos e a obter os instrumentos para
modificar suas vidas.
Mas, se você é uma mulher que ama demais, devo preveni-la de que a leitura
deste livro não será fácil. Na verdade, se a definição se encaixa, e, no entanto,
você não se perturba com a leitura, ou se sente aborrecida ou zangada, incapaz
de se concentrar no material apresentado aqui, minha sugestão é de que tente ler
o texto outra vez, em outra época. Todos temos necessidade de negar o que é
doloroso demais ou ameaçador demais para ser aceito. A negação é uma forma
natural de autoproteção, que age automática e espontaneamente. Talvez numa
leitura posterior você seja capaz de enfrentar as próprias experiências e os
sentimentos mais profundos.
Leia vagarosamente, procurando se identificar tanto intelectual quanto
emocionalmente com essas mulheres e suas histórias. Os casos exemplificados
neste livro podem lhe parecer exagerados. Asseguro que não são. As
personalidades, as características e as histórias com que deparei, entre milhares
de mulheres que conheci pessoalmente e profissionalmente, e que se adaptam à
categoria de amar demais, não são absolutamente exageradas aqui. Os casos
verdadeiros são muito mais complicados e dolorosos. Se o problema delas parece
pior e mais desgastante que o seu, permita-me dizer que sua reação inicial é
típica da maioria de minhas clientes. Cada uma acredita que seu problema "não é
tão ruim assim", mesmo quando se refere com compaixão a situações de outras
mulheres que, na opinião dela, possuem conflitos "reais".
É uma das ironias da vida o fato de nós, mulheres, conseguirmos reagir com
complacência e compreensão à dor na vida das outras, enquanto permanecemos
tão cegas à dor (e pela dor) em nossa própria vida. Sei disso perfeitamente bem,
tendo sido uma mulher que amou demais a maior parte do tempo, até que o
estrago físico e emocional se tornou tão sério que fui forçada a analisar meus
padrões de relacionamento com homens. Passei os últimos anos esforçando-me
para modificar aquele padrão. E esses anos foram os mais gratificantes de minha
vida.
Espero que, para todas vocês que amam demais, este livro não ajude apenas a
se tornarem mais conscientes da realidade de sua condição, mas também as
encoraje para começarem a se modificar, retirando sua atenção afetuosa de sua
obsessão por um homem e colocando-a na própria recuperação e na própria
vida.
Aqui, uma segunda advertência faz-se adequada. Existe neste livro, como em
muitos outros de "auto-ajuda", uma lista de etapas a serem realizadas para a
pessoa se modificar. Se você decidir que realmente quer seguir essas etapas,
serão necessários — como em toda recuperação terapêutica — anos de trabalho
e nada menos que seu total comprometimento. Não existe nenhum atalho para
sair do padrão de amar demais em que você se envolveu. E um padrão adquirido
na infância e praticado bastante, e abandoná-lo será um desafio cheio de medo e
ameaça.
Não advirto para desencorajar. Afinal, você estará certamente enfrentando
uma luta através dos anos se não mudar a forma de se relacionar. Mas, nesse
caso, sua luta não será com relação ao crescimento, será simplesmente com
relação à sobrevivência. A escolha é sua. Se escolher iniciar o processo de
recuperação, você passará de mulher que ama com doloroso sofrimento, para
mulher que se ama o suficiente para suprimir a dor.
VÍTIMA DO AMOR,
VEJO UM CORAÇÃO PARTIDO.
VOCÊ TEM SUA HISTÓRIA PARA CONTAR.
VÍTIMA DO AMOR;
É UM PAPEL TÃO FÁCIL
E VOCÊ SABE DESEMPENHÁ-LO TÃO BEM.
. . . ACHO QUE SABE O QUE QUERO DIZER.
CAMINHANDO NA CORDA BAMBA ENTRE A DOR E O DESEJO.
ESPERANDO ENCONTRAR O AMOR.
VICTIM OF LOVE
Era a primeira sessão de Jill, que parecia cheia de dúvidas. De expressão viva
e boa aparência, cabelos loiros encaracolados, sentou-se formalmente, com o
olhar fixo em mim. Tudo nela parecia arredondado: o contorno do rosto, o corpo
levemente roliço, e principalmente os olhos azuis, que logo notaram os diplomas
e certificados pendurados em meu consultório. Fez-me algumas perguntas sobre
a universidade e meu trabalho profissional, e então mencionou, orgulhosa, que
fazia faculdade de Direito.
Houve uma pausa e ela olhou para suas mãos encolhidas.
— Acho que seria melhor começar dizendo por que estou aqui — falou
rapidamente, usando a impetuosidade de suas palavras para criar coragem. —
Estou fazendo isso, quero dizer, procurando um terapeuta, porque estou
realmente infeliz. Por causa dos homens, claro. Digo, os homens e eu. Sempre
faço algo para afastá-los. Tudo começa bem. Eles procuram por mim e tudo
mais, e depois que me conhecem — Jill ficou visivelmente tensa, tentando não
deixar a dor transparecer — tudo acaba.
Olhou para mim contendo as lágrimas, e prosseguiu lentamente:
— Quero saber o que estou fazendo de errado, o que tenho que mudar em
mim, porque mudarei. Farei qualquer coisa que for preciso. Sou persistente. —
Voltou a falar rapidamente. — Não é por falta de vontade. Eu só não sei por que
isso está sempre acontecendo comigo. Tenho medo de me envolver mais. Quero
dizer, sofro todas as vezes. Estou começando a sentir medo dos homens.
Ela se exprimiu com veemência, meneando a cabeça, os cachos
acompanhando seu movimento, e prosseguiu:
— Não quero que isso aconteça, pois me sinto muito só. Tenho muitas
responsabilidades na faculdade de Direito, e também trabalho para me sustentar.
Isso me manteria ocupada todo o tempo. Na verdade, foi tudo o que fiz no último
ano: trabalhar, ir à faculdade, estudar e dormir. Mas senti a falta de um homem
em minha vida. Então conheci Randy — continuou rapidamente —, ao visitar uns
amigos em San Diego há dois meses. Ele é procurador da Justiça, e nos
conhecemos numa noite em que saí com meus amigos para dançar. Bom, nós
nos demos bem de imediato. Havia tanta coisa para falar, creio até que tenha
falado mais que ele. Mas ele parecia gostar. E era simplesmente maravilhoso
estar com um homem que se interessava por coisas importantes para mim
também.
Ela franziu o cenho.
— Ele pareceu-me realmente atraente. Perguntava-me se era casada (sou
divorciada há dois anos), se morava sozinha, esse tipo de coisa.
Pude até calcular a ansiedade de Jill ao papear alegremente com Randy
naquela primeira noite. E a ansiedade com que o recebeu uma semana mais
tarde, quando esticou em alguns quilômetros sua viagem a Los Angeles para
visitá-la. Quando jantavam, Jill o convidou para dormir em seu apartamento,
dessa forma ele poderia adiar para o dia seguinte a longa viagem de volta. Randy
aceitou o convite, e o caso entre eles começou naquela noite.
— Foi maravilhoso. Ele deixou que eu cozinhasse para ele e gostou de ser
tratado assim. Naquela manhã, passei a ferro sua camisa antes que se vestisse.
Eu adoro tomar conta de um homem. Nós combinávamos perfeitamente.
Ela sorriu com saudade. Ao continuar a história, estava claro que Jill ficara,
quase de imediato, completamente obcecada por Randy. O telefone tocava
quando ele chegou ao seu apartamento em San Diego. Jill disse-lhe que se
preocupara com ele devido a sua longa viagem e que estava aliviada por saber
que já estava em casa a salvo. Ao achar que ele ficara um pouco confuso por
causa do telefonema, desculpou-se por estar incomodando e desligou, mas um
desconforto crescente surgiu dentro dela, alimentado pela consciência de que,
mais uma vez, preocupara-se muito mais com Randy do que ele com ela.
— Certa vez Randy disse que não o pressionasse, senão desapareceria. Fiquei
muito assustada. Tudo dependia de mim. Tinha que amá-lo e deixá-lo em paz ao
mesmo tempo. Como isso era impossível para mim, fiquei cada vez mais
assustada. Quanto mais me apavorava, mais o perseguia.
Em pouco tempo, Jill telefonava quase todas as noites. O acordo que fizeram
foi o de se fazer revezamento, mas, quando era a vez de Randy telefonar, ficava
tarde e a inquietude de Jill era demais para ser suportada. De qualquer forma,
dormir estava fora de cogitação, então telefonava para ele. As conversas eram
vagas e prolixas.
— Ele dizia que se esquecera, e eu falava: "Como pôde esquecer?" Afinal, eu
nunca me esqueci. Então, começávamos a falar dos porquês, e parecia que ele
tinha medo de se aproximar de mim, e eu queria ajudá-lo a superar esse medo.
Ele vivia dizendo que não sabia o que queria na vida, e eu queria ajudá-lo a
perceber quais eram seus problemas.
Assim, Jill afastou-se um pouco, na tentativa de fazer com que ele ficasse mais
perto emocionalmente. Ela não aceitava o fato de ele não a querer. Já chegara à
conclusão de que ele precisava dela.
Pela segunda vez, Jill foi a San Diego para passar o final de semana junto dele;
naquela visita, ficaram juntos todo o domingo, mas ele a ignorou, assistindo à
televisão e bebendo cerveja. Foi um dos piores dias para Jill.
— Ele bebia demais? — perguntei a ela, que me olhou surpresa. — Não, não
exatamente. Na verdade, eu não sei. Nunca pensei nisso. Claro, ele estava
bebendo quando nos conhecemos, mas é natural. Afinal, estávamos num bar. Às
vezes, quando falávamos por telefone, ouvia gelo tilintando num copo, e eu o
censurava por estar bebendo sozinho. Na verdade, sempre que estávamos juntos,
ele estava bebendo alguma coisa. Mas supus que gostava de beber. É normal, não
é?
Parou por um instante, pensativa.
— Sabe, às vezes ele falava de forma estranha ao telefone, principalmente
para um procurador. Era vago, impreciso, distraído, incoerente. Mas nunca
pensei que fosse conseqüência da bebida. Não sei como justificava sua atitude
para mim mesma. Simplesmente não pensava no assunto.
Percebi tristeza em seus olhos.
— Talvez realmente ele bebesse demais, mas devia ser pelo fato de eu o
entediar. Acho que eu não era interessante o suficiente, e ele não queria ficar
comigo.
Prosseguiu, ansiosa:
— Meu marido nunca desejou estar perto de mim, era óbvio! — Seus olhos
encheram-se de lágrimas e sentiu o coração apertado.
— Nem meu pai... O que há comigo? Por que todos agem assim? O que estou
fazendo de errado?
No instante em que Jill conscientizou-se de um problema entre ela e uma
pessoa que lhe importava, dispôs-se não apenas a resolvê-lo, mas também a
responsabilizar-se por tê-lo criado. Se Randy, seu marido e seu pai não puderam
amá-la, algo fora feito de errado ou não fora feito. As atitudes de Jill, seus
sentimentos, experiências e comportamento eram típicos de uma mulher para
quem amar significa sofrer. Ela apresentava muitas das características comuns a
mulheres que amam demais. Não obstante os detalhes específicos das histórias e
dos problemas, apesar do fato de terem vivido um árduo relacionamento com
um homem ou do envolvimento numa série de parcerias infelizes com vários
homens, essas mulheres apresentam o mesmo perfil. Amar demasiado não
significa amar muitos homens, ou apaixonar-se com muita freqüência, ou
mesmo ter um grande amor genuíno por alguém. Significa, na realidade, ficar
obcecada por um homem e chamar isso de amor, permitindo que tal sentimento
controle suas emoções e boa parte do seu comportamento, mesmo percebendo
que exerce influência negativa sobre sua saúde e bem-estar, e ainda assim
achando-se incapaz de opor-se a ele. Significa medir a intensidade do seu amor
pela quantidade de sofrimento.
Ao ler este livro, você poderá identificar-se com Jill, ou com outras mulheres
cujas histórias chegou a ouvir ou ler, e questionar se você também é uma mulher
que ama demais. Embora seus problemas com homens sejam similares aos
delas, talvez você tenha dificuldade em associar sua situação aos "rótulos" que se
aplicam a algumas experiências dessas mulheres. Todos temos reações
emocionais adversas a palavras como alcoolismo, incesto, violência e vício, e às
vezes não conseguimos olhar para nossas próprias vidas de forma realista porque
tememos que esses rótulos se apliquem a nós ou a pessoas que amamos.
Infelizmente, negar esses termos quando eles são cabíveis, freqüentemente,
impede-nos de conseguir a ajuda adequada. Por outro lado, esses rótulos tão
temidos podem não se aplicar à sua vida. Sua infância pode ter envolvido
problemas de natureza mais sutil. Talvez seu pai muito embora desse segurança
financeira à família, detestasse as mulheres e não confiasse nelas. Essa
incapacidade dele de amar talvez tenha impedido você de se amar. Ou a atitude
de sua mãe com relação a você tenha sido de ciúme ou de competitividade em
casa, ainda que elogiasse você em público, de forma que você precisava se sair
bem para ter sua aprovação, temendo, no entanto, a hostilidade que seu sucesso
provocaria nela.
É impossível em apenas um livro abordar os inúmeros tipos de
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Jill, como o míope, não procurava o que faltava onde havia esperança de
encontrar, mas onde era mais fácil de procurar, pois era uma mulher que ama
demais.
Nesse livro, exploramos o que significa amar demais, por que amamos
demais, onde aprendemos e como podemos transformar nossa forma de amar
numa relação saudável. Examinemos novamente as características de mulheres
que amam demais, desta vez uma por uma.
1. Você vem de um lar desajustado em que suas necessidades emocionais não
foram satisfeitas.
Talvez a melhor forma de se aproximar da compreensão dessa característica
seja começar pela segunda parte: "... em que suas necessidades emocionais não
foram satisfeitas". "Necessidades emocionais" não se refere somente à
necessidade de amor e afeição. Embora esse aspecto seja importante, mais
crítico é o fato de suas percepções e sentimentos terem sido ignorados ou
negados, ao invés de aceitos e legitimados. Um exemplo: os pais estão brigando.
A criança assusta-se e pergunta à mãe: "Por que você está brava com papai?" A
mãe responde: "Não estou brava", aparentando braveza e aborrecimento. A
criança fica confusa, assustada, e diz: "Eu ouvi você gritando". A mãe esbraveja:
"Já disse que não estou brava, mas vou ficar se você continuar!". Agora, a
criança está com medo, confusa, com raiva e sentindo-se culpada. Sua mãe
insinuou que suas percepções estavam incorretas, e, se isso é verdade, de onde
vem o sentimento de medo? A criança tem que escolher entre saber que está
certa e que a mãe mentiu deliberadamente ou pensar que está errada no que
ouve, vê e sente. Será freqüentemente direcionada para a confusão, despistando
sua percepção para que não tenha que experimentar o desconforto de tê-las
invalidadas. Isso prejudica a habilidade da criança de confiar em si e em suas
percepções, tanto
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na infância quanto mais tarde, na fase adulta, principalmente em
relacionamentos mais íntimos.
Necessidade de afeição também pode ser negada ou mal satisfeita. Quando os
pais brigam ou encontram-se em outros tipos de conflito, pode sobrar pouco
tempo ou atenção para a criança. Isso deixa a criança com sede de amor, sem
saber como acreditar nele ou aceitá-lo, achando que não o merece.
Examinemos agora a primeira parte dessa característica: vinda de um lar
desajustado. Lar desajustado é aquele em que um ou mais destes pontos ocorre;
• abuso de álcool e/ou outra droga (prescrita ou proibida)
• comportamento compulsivo, como comer demais, trabalhar demais, limpar
demais, jogar demais, gastar demais, fazer regime, exercitar-se demais, e assim
por diante; essas práticas são comportamentos viciantes, como também
processos progressivos de doença; entre muitos outros efeitos prejudiciais, rompe
e evita efetivamente o contato decente e a intimidade numa família
• espancamento de cônjuge e/ou crianças
• comportamento sexual inapropriado por parte dos pais com a criança, indo
de sedução a incesto
• brigas constantes e tensão
• grandes espaços de tempo em que os pais recusam-se a conversar entre si
• pais que apresentam atitudes e valores conflitantes e comportamentos
contraditórios, que concorrem para a submissão das crianças
• pais que competem entre si ou com as crianças
• um dos pais que não consegue relacionar-se com outros membros da família
e, por isso, evita-os e alega que eles são os culpados por evitá-los
• inflexibilidade quanto a dinheiro, religião, trabalho, utilização do tempo,
mostras de afeição, sexo, televisão, trabalho doméstico, esportes, política, e assim
por diante; obsessão por um
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desses itens pode impedir o contato e a intimidade, pois a ênfase não está em
relacionar-se, mas em seguir as regras.
Se um dos pais apresenta qualquer dessas características de comportamento ou
obsessão, prejudica a criança. Se pai e mãe incorrem em uma dessas práticas
insalubres, o resultado pode ser ainda mais prejudicial. Freqüentemente, os pais
apresentam formas complementares de patologia. Por exemplo, um alcoólatra e
uma pessoa que come compulsivamente se casarão, e começarão a brigar para
controlar o vício um do outro. Os pais também se contrabalançam de formas
insalubres; quando a mãe sufocadora e superprotetora casa-se com o pai bravo e
que rejeita, cada um deles permite-se, através do comportamento do outro,
continuar relacionando-se com a criança de maneira destrutiva.
Existem vários tipos de famílias desajustadas, mas todas apresentam um efeito
comum em crianças que nelas crescem: são crianças prejudicadas, até certo
ponto, em sua capacidade de sentir e relacionar-se.
2. Como não recebeu um mínimo de atenção, você tenta suprir essa
necessidade insatisfeita através de outra pessoa, tornando-se superatenciosa,
principalmente com homens aparentemente carentes.
Reflita sobre como crianças, principalmente garotinhas, comportam-se quando
não têm o amor e atenção de que precisam. É possível que o garotinho torne-se
nervoso e reaja apresentando um comportamento de destruição, mas a garotinha
freqüentemente voltará a atenção para a boneca favorita. Ninando-a e
confortando-a, de certa forma identificando-se com a boneca, a garotinha
esforça-se indiretamente em receber a atenção de que necessita. Quando
adultas, as mulheres que amam demais fazem a mesma coisa, talvez de maneira
um pouco mais sutil. Em geral, tornamo-nos superatenciosas em muitas áreas de
nossa vida, senão todas. Mulheres vindas de lares desajustados (e principalmente
de lares com problemas relacionados ao álcool, pude observar) estão
representadas até demais em profissões de prestação de serviços, trabalhando
com enfermagem, consultoria, terapia e serviço social. Somos atraídas por
pessoas carentes, identificando-nos compadecidamente com sua dor e
procurando aliviá-la para aliviarmos nossa própria dor. Fará sentido os homens
que nos atraem serem, na maioria, os que parecem carentes, se entendermos
que é o desejo de sermos amadas e auxiliadas que está por trás da atração.
Um homem que apele para nós não será necessariamente um pobretão ou
doente. Talvez seja uma pessoa incapaz de relacionar-se com outras, ou seja frio
e não-afetuoso, ou inflexível, ou egoísta, mal-humorado ou melancólico. Talvez
seja um pouco precipitado e irresponsável, ou incapaz de assumir um
compromisso, ou ser fiel. Ou talvez nos diga que nunca foi capaz de amar
alguém. Dependendo de nossas experiências, reagiremos a tipos diferentes de
carência. Mas reagiremos com convicção de que esse homem precisa de nossa
ajuda, compaixão e nossa sabedoria para melhorar sua vida.
3. Como não pôde transformar seus pais nas pessoas atenciosas, amáveis e
afetuosas de que precisava, você reage fortemente ao tipo de homem familiar
mas inacessível, o qual você tenta, mais uma vez, transformar através de seu
amor.
Talvez tenha tido conflitos com um de seus pais, talvez com ambos. Mas o que
foi errado no passado, o que faltou e o que foi doloroso, é o que você tenta no
presente corrigir.
Agora, parece claro que algo muito prejudicial e autodestrutivo está
acontecendo. Estaria tudo bem se trouxéssemos toda nossa compaixão,
compreensão e apoio para os relacionamentos com homens saudáveis, homens
com quem houvesse esperança de satisfazermos nossas necessidades. Mas não
temos atração por homens saudáveis que poderiam nos ajudar. Parecem
enfadonhos. Temos atração por homens que nos reproduzem os conflitos tidos
com nossos pais, quando tentávamos ser boas o bastante, amáveis o bastante,
valorosas o bastante, prestativas o bastante e espertas o bastante para termos
amor, atenção e aprovação daqueles que não podiam nos dar o que
precisávamos, devido a seus próprios problemas e preocupações. Agora, agimos
como se o amor, a atenção e a aprovação não valessem nada, a menos que
fôssemos capazes de extraí-los de um homem que também é incapaz de nos dar
tudo isso, por causa de seus próprios problemas e preocupações.
4. Com medo de ser abandonada, você faz qualquer coisa para impedir o fim
do relacionamento.
Abandono é uma palavra forte. Implica alguém nos deixar, possivelmente
para morrermos, pois podemos não ser capazes de sobreviver sozinhos. Há o
abandono literal e o emocional. Toda mulher que ama demais já passou, ao
menos uma vez, pelo abandono emocional total, com todos os temores e vazios
que isso acarreta. Sermos deixadas por um homem que representa de tantas
formas as pessoas que nos abandonaram anteriormente faz com que os temores
aflorem outra vez. É claro que fazemos tudo para que esse sentimento não volte,
o que leva à próxima característica.
5. Q uase nada é problema, toma muito tempo ou custa demais, se for para
"ajudar" o homem com quem está envolvida.
A teoria por trás dessa ajuda é que, se funcionar, o homem se transformará
em tudo que você queria que fosse, o que significa ganhar a luta de conseguir o
que tanto quis por tanto tempo.
Assim, enquanto somos freqüentemente econômicas conosco e sonegamos
nossos interesses, não medimos esforços para ajudá-lo. Alguns sacrifícios para o
bem dele incluem:
• mudar-se para locais geograficamente acidentados porque "ele não está feliz
aqui";
• dar-lhe metade de todos os seus pertences e propriedades para que não se
sinta inferiorizado;
• dar-lhe casa para morar para que sinta-se seguro;
• permitir que abuse de você emocionalmente pois "nunca permitiram que
expressasse seus sentimentos antes";
• arrumar-lhe um emprego.
É apenas parte da lista de como tentamos ajudar. Raramente questionamos a
conveniência de nossos atos para o bem dele. De fato, perdemos muito tempo e
gastamos muita energia tentando inventar novas fórmulas que possam funcionar
melhor do que as já costumeiras.
6. Habituada à falta de amor em relacionamentos pessoais, você está disposta
a ter paciência, esperança, tentando agradar cada vez mais.
Se outra pessoa com um tipo diferente de história se encontrasse nessas
circunstâncias, seria capaz de dizer: "Isso é horrível. Não vou continuar com esse
comportamento". Mas supomos que, se não está funcionando e não estamos
felizes, de alguma forma ainda não fizemos o suficiente. Vemos cada nuança de
comportamento como uma possível indicação de que o parceiro está finalmente
se modificando. Vivemos na esperança de que amanhã será diferente. Esperar
que ele se modifique é, na verdade, mais confortável que nos modificar e
modificar nossas vidas.
7. Você está disposta a arcar com mais de 50 por cento da responsabilidade,
da culpa e das falhas em qualquer relacionamento.
Freqüentemente, as pessoas vindas de lares desajustados tiveram pais
irresponsáveis, infantis e fracos. Crescemos rapidamente e tornamo-nos pseudo-
adultos antes mesmo de estarmos prontos para arcarmos com as
responsabilidades que esse papel acarreta. Mas também ficamos satisfeitos com
o poder que nos foi conferido por nossos familiares e outras pessoas. Agora,
como adultos, acreditamos que cabe a nós fazer com que os relacionamentos
dêem certo, e freqüentemente cooperamos com parceiros irresponsáveis e
culposos, que contribuem para a sensação de que tudo depende mesmo de nós.
Somos especialistas em arcar com a responsabilidade.
8. Sua auto-estima está criticamente baixa e, no fundo, você não acredita que
mereça ser feliz. Ao contrário, acredita que deve conquistar o direito de
desfrutar da vida.
Se nossos pais não nos acham merecedores de amor e atenção, como
podemos acreditar que somos realmente pessoas boas, agradáveis? Pouquíssimas
mulheres que amam demais têm convicção de que, no fundo, merecem amar e
ser amadas pelo simples fato de existirem. Ao contrário, acreditamos que
possuímos falhas ou defeitos terríveis, e que devemos nos esforçar bastante para
superá-los. Vivemos com a sensação de culpa por termos falhas e com medo das
mesmas serem descobertas. Esforçamo-nos muito, muito mesmo, para
parecermos boas, pois não acreditamos que somos.
9. Como experimentou pouca segurança na infância, você tem uma
necessidade desesperadora de controlar seus homens e seus relacionamentos.
Você mascara seus esforços para controlar pessoas e situações, mostrando-se
"prestativa".
Inevitavelmente, uma criança sentirá pânico pela perda de controle da família,
se viver em qualquer dos tipos mais caóticos de família desajustada, como uma
família de alcoólatras, uma família violenta ou incestuosa. As pessoas das quais
depende não estão presentes para ela porque estão doentes demais para protegê-
la. De fato, essa família é, com freqüência, fonte de ameaça e dano, ao invés de
fonte de segurança e proteção, coisas de que a criança necessita. Por ser esse
tipo de experiência tão opressivo, tão arrasador, aqueles de nós que sofreram
dessa forma não vêem a hora de virar a mesa, por assim dizer. Ao sermos fortes
e prestativos a pessoas, protegemo-nos do pânico de estarmos à mercê de outras
pessoas. Temos necessidade de estar com gente a quem podemos ajudar, para
nos sentirmos seguros e com controle da situação.
10. Você está muito mais em contato com o sonho de como o relacionamento
poderia ser que com a realidade da situação.
Quando amamos demais, vivemos num mundo de fantasias, em que o homem
com quem estamos tão infelizes ou tão insatisfeitas é transformado naquilo em
que cremos que possa se tornar, ou em que realmente se tornará com nossa
ajuda. Por sabermos pouquíssimo a respeito de ser feliz num relacionamento, e
por experimentarmos poucas experiências de ter alguém de quem gostamos para
satisfazer nossas necessidades emocionais, o mundo de fantasias é o mais
próximo de que ousamos chegar para termos o que queremos.
Se já tivéssemos um homem que fosse tudo que quiséssemos, para que ele
precisaria de nós? Todo aquele talento (e compulsão) para ajudar não teria
espaço para revelar-se. Uma boa parte de nossa identidade não teria razão de
existir. Assim, escolhemos um homem que não é o que queremos, e continuamos
a sonhar.
11. Você é uma pessoa dependente de homens e de sofrimento espiritual.
Nas palavras de Stanton Peele, autor de Love and Addiction [Amor e Vício],
"experiência viciadora é aquela que absorve a consciência da pessoa e, como
acontece com analgésicos, alivia a sensação de ansiedade e dor. Talvez não haja
nada tão bom para absorver nossa consciência do que um relacionamento
amoroso de um certo tipo. O relacionamento viciador é caracterizado pelo
desejo da presença animadora de uma outra pessoa... O segundo critério é que o
relacionamento diminui a habilidade da pessoa em prestar atenção a outros
aspectos da vida e em lidar com eles".
Usamos nossa obsessão com os homens que amamos para evitar a dor, o
vazio, o medo e a raiva. Usamos os relacionamentos como drogas, para evitar o
que sentiríamos se concordássemos conosco. Quanto mais dolorosa a interação
com o homem, mais distração ele nos causa. Um relacionamento realmente
insalubre tem simplesmente a mesma função de uma droga bem forte. Sem um
homem a quem dirigir a atenção, entramos em estado de abandono,
freqüentemente com muitos dos mesmos sintomas físicos e psicológicos do
estado que acompanha o verdadeiro abandono do uso de drogas: náuseas,
suadouro, arrepios, tremedeira, aceleramento cardíaco, pensamento obsessivo,
depressão, insônia, pânico e ataques de ansiedade. Num esforço de aliviar esses
sintomas, retomamos com o último parceiro ou procuramos desesperadamente
por um outro.
12. Você tende psicologicamente e, com freqüência, bioquimicamente, a se
tornar dependente de drogas, álcool e/ou certos tipos de alimento,
principalmente doces.
A afirmação acima aplica-se principalmente a muitas mulheres que amam
demais, filhas de pessoas que abusam de certas substâncias. Todas as mulheres
que amam demais possuem um acúmulo psicológico de experiências que
poderia levá-las a abusar de substâncias que alteram a mente, para fugir de seus
sentimentos. Mas filhos de pais viciados também tendem a herdar uma
predisposição genética para desenvolver seus próprios vícios.
O fato de o açúcar refinado ter estrutura molecular quase idêntica à do álcool
etílico pode ser o motivo por que muitas filhas de alcoólatras desenvolvem esse
vício e tornam-se consumidoras compulsivas de substâncias doces. O açúcar
refinado não é um alimento, é uma droga. Não tem valor nutritivo, só calorias
inúteis. Ele pode alterar dramaticamente a química cerebral e é uma substância
viciadora para muitas pessoas.
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13. Ao ser atraída por pessoas com problemas que precisam de solução, ou ao
se envolver em situações caóticas, incertas e dolorosas emocionalmente, você
evita concentrar a responsabilidade em si própria.
Enquanto somos ótimas em dizer intuitivamente o que outra pessoa sente ou o
que ela precisa ou deveria fazer, não estamos em contato com nossos próprios
sentimentos e somos incapazes de tomar decisões sábias sobre aspectos
problemáticos de nossa vida. Com freqüência, não sabemos realmente quem
somos, e envolvermo-nos em problemas dramáticos nos livra de termos que
parar e descobrir isso.
Tudo o que foi dito não significa que não nos emocionamos. É possível que
choremos, gritemos e nos lamentemos. Mas não somos capazes de usar nossas
emoções para nos orientar ao fazermos as escolhas necessárias e importantes na
vida.
14. Você tende a ter momentos de depressão, e tenta preveni-los através da
agitação criada por um relacionamento instável.
Um exemplo: uma das minhas clientes, que sofria de depressão e era casada
com um alcoólatra, fazia uma comparação entre viver com ele e sofrer um
acidente de carro todo dia. Os altos e baixos amedrontadores, as surpresas, as
manobras, a imprevisibilidade e a instabilidade do relacionamento eram
cumulativamente um choque constante e diário para seu sistema. Se você já
sofreu um acidente automobilístico no qual não ficou seriamente machucada,
você deve ter experimentado um "alto" bem definido no dia seguinte ou nos dias
que se seguiram. Isso se deve ao fato de seu corpo ter passado por um choque
muito forte e a adrenalina ter ficado subitamente disponível em quantidade
excessiva. Se você é uma pessoa que luta contra a depressão, você procurará
inconscientemente situações que a mantenham agitada, situações bem parecidas
com o acidente de carro (ou o casamento com um alcoólatra).
39
Isso fará com que você se agite o suficiente para não sentir-se por baixo.
Depressão, alcoolismo e alimentação descontrolada estão estreitamente
relacionados entre si e parecem estar geneticamente interligados. A maioria dos
anoréxicos com quem trabalhei, por exemplo, tinham os dois pais alcoólatras, e
muitas das minhas clientes com problemas de depressão tinham, ao menos, um
dos pais alcoólatra. Se você é uma pessoa vinda de família com problemas
relacionados ao álcool, você tem provavelmente dois motivos para sofrer de
depressão: por causa de seu passado e por causa de suas heranças genéticas.
Ironicamente, a agitação de um relacionamento com alguém que apresenta essa
doença a atrai muito.
15. Você não tem atração por homens gentis, estáveis, seguros e que estão
interessados em você. Acha que esses homens "agradáveis" são enfadonhos.
Achamos que o homem instável é excitante, o não-confiável é desafiante, o
imprevisível é romântico, o imaturo é charmoso e o intelectual é misterioso. O
homem zangado precisa de nossa compreensão, e o infeliz de nosso conforto. O
homem inadequado precisa de nosso encorajamento, e o frio de nosso calor. Mas
não podemos "consertar" um homem que é agradável da maneira como é, e, se
ele é gentil e importa-se conosco, também não podemos sofrer. Infelizmente, se
não podemos amar demais um homem, normalmente não podemos amá-lo de
forma alguma.
Nos capítulos seguintes, cada uma das mulheres que você conhecerá tem,
como Jill, uma história para contar sobre amar demais. Através de suas histórias,
talvez você encontrará ajuda para entender mais claramente os padrões de sua
própria vida. Então, você também será capaz de empregar as armas dadas nesse
volume para transformar esses padrões em uma nova configuração de auto-
realização, amor e alegria. É o que lhe desejo.
40
sa e sexual. O fato de fazê-lo feliz a deixava feliz. Finalmente, seu amor fazia
efeito na vida de alguém. Era tudo o que sempre quisera. Ela não era como sua
mãe, afastando uma pessoa com exigências. Ao contrário, estava criando um
vínculo construído inteiramente através de amor e abnegação. Trudi orgulhava-
se de exigir tão pouco de Jim.
— Eu me sentia muito só quando não estava com ele, e era uma boa parte do
tempo. Via-o por apenas duas horas, três vezes por semana, e ele nunca entrava
em contato comigo nesse meio-tempo. Ele tinha aulas às segundas, quartas e
sextas, e nos encontrávamos depois. O tempo que ficávamos juntos era
praticamente fazendo amor. Quando estávamos finalmente a sós, corríamos
impetuosamente um para o outro. Era tão intenso, tão excitante, que por vezes
era difícil para ambos acreditar que o sexo pudesse ser tão emocionante para
qualquer outra pessoa no mundo. E então, logicamente, tínhamos que nos
despedir. As horas que eu não passava com ele eram vazias. Quando estávamos
longe um do outro, eu gastava a maior parte do tempo preparando-me para vê-lo
novamente. Lavava os cabelos com um xampu especial, fazia as unhas, e apenas
deixava-me levar, com o pensamento nele. Evitava pensar demais a respeito de
sua mulher e sua família. Acreditava que ele casara-se antes de ser adulto o
suficiente para saber realmente o que queria, e o fato de não ter intenção de
abandonar tudo, de não ter intenção de fugir das obrigações, cativava-me cada
vez mais.
Trudi acrescentaria, também, "e fazia-me sentir cada vez mais confortável
com ele". Ela não era capaz de manter um relacionamento íntimo, de forma que
o abrandamento que o casamento de Jim e sua família proporcionavam era
realmente bem-vindo, como fora também a relutância do jogador de futebol de
ficar com ela. Só ficamos confortáveis quando nos relacionamos de maneiras
familiares, e Jim proporcionava tanto a distância quanto a falta de compromisso
que Trudi já conhecia tão bem do relacionamento de seus pais com ela.
O segundo semestre da universidade estava quase no fim, o verão estava
chegando, e Trudi perguntou a Jim o que aconteceria a eles
48
quando a escola entrasse em recesso e eles não mais tivessem aquela desculpa
conveniente para se encontrarem. Ele franziu o cenho e respondeu vagamente:
— Não sei ao certo. Pensarei em alguma coisa.
A expressão facial foi suficiente para mobilizá-la. Tudo o que os unia era a
felicidade que ela era capaz de proporcionar-lhe. Se ele não estava feliz, tudo
poderia se acabar. Ela não deveria causar essa expressão nele.
O ano letivo terminou e Jim não pensara em nada.
— Eu telefono — ele disse.
Ela esperou. O pai de um amigo ofereceu a Trudi um emprego para o verão,
em seu hotel movimentado. Muitos de seus amigos também trabalhavam lá e
incentivaram-na a aceitar. Prometeram a ela que seria divertido trabalhar no
lago durante o verão. Ela recusou a oferta, temendo perder o telefonema de Jim.
Apesar de quase não sair de casa por três semanas, a chamada nunca veio.
Numa tarde quente em meados de julho, Trudi encontrava-se no centro da
cidade, fazendo compras sem compromisso. Saiu de uma loja com ar-
condicionado, piscando devido à claridade do dia, e deparou-se com Jim,
bronzeado, sorrindo e de mãos dadas com uma mulher que só poderia ser sua
esposa. Havia duas crianças com eles, um menino e uma menina, e, no colo de
Jim, num suporte azul, um bebê. Os olhos de Trudi procuraram os de Jim. Ele os
arregalou brevemente, depois desviou o olhar, passando por ela com sua família,
sua esposa, sua vida.
Ela conseguiu chegar até seu carro, embora a dor no peito quase a impedisse
de respirar. Ficou lá, sentada, no estacionamento abafado, soluçando e suspirando
muito tempo depois do pôr-do-sol. Então, vagarosamente, com a visão turva,
dirigiu até a universidade e até as colinas atrás dela, onde Jim e ela passearam e
se beijaram pela primeira vez. Guiou até onde começava um barranco ao lado
da estrada, e então seguiu em linha reta onde deveria virar.
Foi um milagre ela ter sobrevivido ao impacto mais ou menos ilesa. Também
foi uma grande decepção para ela. Deitada na cama do hospital, pensava em
tentar novamente, tão logo dessem alta.
49
Boa parte do tempo em que realmente faziam amor, ele estava ou muito
cansado ou desinteressado para conseguir ou manter a ereção. Um dia, em meu
consultório, descrevia sua tentativa fracassada mais recente de fazer amor, e de
repente começou a rir:
— Quando penso nisso, é demais! Ninguém se esforçou mais do que eu para
fazer amor com alguém que não queria. Preciso parar de fazer isso. Vou desistir
de olhar. Pareço sempre ter atração por homens que não têm nada a me
oferecer, e que não querem o que eu tento oferecer-lhes.
Esse era um aspecto importante para Trudi. Tornara-se mais capacitada para
se amar através do processo de terapia, e agora poderia avaliar um
relacionamento como sendo não compensador, ao invés de concluir que não
merecia ser amada e que deveria esforçar-se mais. O grande impulso de usar
sua sexualidade para estabelecer um relacionamento com um parceiro relutante
diminuiu bastante e, na época em que parou de fazer terapia, após dois anos,
namorava casualmente vários homens e não dormia com nenhum deles.
— É tão diferente estar namorando alguém e estar realmente prestando
atenção se eu gosto dele, se passamos bons momentos juntos, se acho que ele é
uma pessoa agradável. Nunca pensei nessas coisas antes. Estava sempre me
esforçando bastante para fazer a pessoa com quem estava parecer-se comigo,
para ter certeza de que ele tinha bons momentos comigo e que me achava
agradável. Sabe, após um namoro, nunca pensei se queria ver aquela pessoa
novamente ou não. Eu estava ocupada demais imaginando se ele gostava o
suficiente de mim para querer reatar o namoro. Eu fiz tudo ao contrário.
Quando Trudi decidiu parar com a terapia, não fazia mais nada ao contrário.
Ela distinguia facilmente um relacionamento impossível, e, mesmo se havia uma
pequena atração entre ela e um pretendente relutante, essa atração morria logo
em sua análise fria do homem, da situação e das possibilidades. Ela já não estava
mais no mercado da dor e da rejeição. Queria alguém que pudesse realmente
ser um parceiro para ela; caso contrário, não queria ninguém.
52
Nenhum meio-termo funcionaria. Mas permaneceu o fato de Trudi não saber
nada a respeito de viver com os opostos de dor e rejeição: conforto e
compromisso. Nunca experimentara o grau de intimidade provindo de um tipo de
relacionamento que ela agora pedia. Embora desejasse proximidade com um
parceiro, nunca operara num clima de verdadeira proximidade. Não fora por
acaso que fora atraída por homens que rejeitavam; a tolerância de Trudi para ser
realmente íntima era pouca. Não houvera nenhuma intimidade em sua família
conforme crescera, apenas brigas e acordos, cada acordo marcando mais ou
menos o início de uma nova briga. Houvera dor e tensão, e ocasionalmente um
alívio da dor e da tensão, mas nunca um compartilhamento verdadeiro, uma
proximidade verdadeira, ou amor verdadeiro. Como reação às manipulações de
sua mãe, a fórmula de amor para Trudi fora dar-se sem pedir nada em retorno.
Quando a terapia a ajudou a sair da cilada criada pelo martírio de auto-sacrifício,
soube claramente o que não fazer, o que foi grande aperfeiçoamento. Mas ela
estava apenas a meio caminho.
O próximo passo de Trudi era aprender simplesmente a estar na companhia de
homens que considerava agradáveis, mesmo se também os achasse um pouco
enfadonhos. Essa sensação de aborrecimento é a que a mulher que ama demais
experimenta quando se encontra com um homem "agradável"; nenhum sino
toca, nenhum rojão explode, nenhuma estrela cai do céu. Na ausência de
excitação, elas sentem-se ansiosas, irritáveis e incapazes, um estado geralmente
inconfortável que é abrangido pelo rótulo aborrecimento. Trudi não sabia como
comportar-se na presença de um homem agradável, atencioso e realmente
interessado nela; como todas as mulheres que amam demais, suas habilidades ao
relacionar-se eram desenvolvidas para um desafio, não simplesmente para gozar
da companhia de um homem. Se ela não tinha que usar de artifícios e manipular
para manter um relacionamento, achava difícil relacionar-se com o homem,
sentir-se confortável e à vontade. Devido ao fato de estar acostumada com a
agitação e com a dor, com o conflito e com a vitória ou a derrota, um
intercâmbio em que faltassem esses componentes poderosos parecia muito
insípido para ser importante,
53
e também inquietante. Ironicamente, haveria mais desconforto na presença de
companheiros seguros, com quem se pode contar, agradáveis e estáveis, do que
jamais haveria com homens irresponsáveis, distantes emocionalmente,
inacessíveis ou desinteressados.
A mulher que ama demais está acostumada com aspectos e comportamentos
negativos, e ela estará mais confortável com eles que com seus opostos, a menos
que ou até que se esforce bastante para modificar o fato para si mesma. A menos
que Trudi aprendesse a relacionar-se confortavelmente com um homem que
considerasse importantes os mesmos aspectos que ela considera, não teria
esperança de algum dia conseguir um relacionamento gratificante.
Antes da recuperação, a mulher que ama demais normalmente apresenta as
seguintes características, com relação a como se sente e como se relaciona
sexualmente com homens:
• Ela pergunta "Quanto ele me ama (ou precisa de mim)?" e não "Quanto me
importo com ele?"
• Muitas das relações sexuais com ele são motivadas por "como fazê-lo me
amar mais (ou precisar mais de mim)?"
• Seu impulso de dar-se sexualmente a outros que acredita serem carentes
pode resultar em comportamento que ela mesma rotula como promíscuo, mas
tem esse comportamento primeiramente para a gratificação de outras pessoas, e
não de si própria.
• O sexo é uma das armas que usa para manipular ou mudar o parceiro.
• Ela, com freqüência, acha os conflitos de poder e de manipulação mútua
muito excitantes. Comporta-se sedutoramente para conseguir o que quer, sente-
se bem quando isso funciona, e mal quando não funciona. O fracasso em
conseguir o que quer normalmente faz com que ela se esforce mais.
• Ela confunde ansiedade, medo e dor com amor e excitação sexual. Ela
chama a sensação de ter um embrulho no estômago de "amor".
• Ela se excita através da excitação dele. Não sabe por si só co-
54
mo sentir-se bem; de fato, é ameaçada por seus próprios sentimentos.
• Ela se torna inquieta, a menos que o desafio de um relacionamento
insatisfatório esteja presente. Não tem atração sexual por homens com quem não
tem conflitos. Ao contrário, rotula-os de "enfadonhos".
• Ela sempre procura um homem que seja sexualmente menos experiente,
para sentir-se no controle.
• Ela deseja proximidade física, mas, por ter medo de ser envolvida por uma
outra proximidade e/ou ser oprimida por suas próprias necessidades de cuidados,
só está confortável com a distância emocional causada e mantida pelo stress no
relacionamento. Torna-se medrosa quando um homem está disposto a ficar com
ela tanto emocionalmente quanto sexualmente. Ou ela foge ou o afasta.
A pergunta pungente de Trudi no início de nosso trabalho, "Como o sexo entre
nós era tão bom, fazia-nos sentir tão bem e unia-nos tanto, se realmente não
existia nada entre nós?", merece ser estudada, pois as mulheres que amam
demais freqüentemente encaram o dilema de bom relacionamento sexual em
relações infelizes e sem esperança. Fomos ensinadas que "bom" relacionamento
sexual significa amor "de verdade", e que, contrariamente, o sexo não poderia
ser realmente satisfatório e realizador se o relacionamento não fosse, como um
todo, correto para nós. Nada é mais verdadeiro para as mulheres que amam
demais. Devido à dinâmica operando em cada nível de interação com os
homens, incluindo o nível sexual, um relacionamento ruim contribui realmente
para o sexo ser excitante, apaixonante e estimulante.
Podemos ser bastante pressionados a explicar à família e aos amigos como
alguém que não é especialmente admirável ou simpático pode, no entanto,
despertar em nós uma emoção antecipada e um desejo intenso nunca antes
conseguido pelo que sentimos por uma pessoa mais agradável ou mais
apresentável. É difícil dizer que somos encantadas pelo sonho de acordar todos os
atributos positivos
55
— o amor, o carinho, a atenção, a integridade, e a nobreza — que, estamos
certas, estão dormentes em nosso amante, esperando para desenvolver-se no
calor de nosso amor. As mulheres que amam demais freqüentemente dizem a si
mesmas que o homem com quem se envolveram nunca foi realmente amado
antes, nem pelos pais, nem mesmo pelas antigas esposas ou namoradas. Nós
achamos que ele foi prejudicado, e assumimos prontamente a tarefa de
compensar tudo o que faltava em sua vida, mesmo antes de conhecê-lo. De certa
forma, o cenário é uma versão de Branca de Neve, com papéis invertidos
sexualmente, onde a personagem dormia sob um encanto, esperando pela
liberdade que vem com seu primeiro beijo verdadeiramente de amor. Queremos
ser a pessoa que vai quebrar o encanto, para libertar esse homem do que vemos
como sua prisão. Entendemos sua indisponibilidade emocional, sua raiva ou
depressão, ou crueldade, ou indiferença, ou violência, ou desonestidade, ou vício
como sinais de que ele não foi amado suficientemente. Fazemos nosso amor
conflitar com falhas dele, com seus fracassos e até com sua patologia. Estamos
determinadas a salvá-lo através da força do nosso amor.
O sexo é uma das formas primárias de tentarmos amá-lo saudavelmente. Todo
contato sexual carrega todo o nosso esforço de modificá-lo. Com cada beijo e
cada toque empenhamo-nos em dizer a ele como é especial e valoroso, como é
admirado e estimado. Temos certeza de que, uma vez que ele está convencido de
nosso amor, será transformado em seu verdadeiro eu, ciente da incorporação de
tudo que queremos e precisamos que ele seja.
De certa forma, o sexo sob tais circunstâncias é bom porque precisamos que
ele seja bom; gastamos um bocado de energia fazendo com que funcione,
tornando-o maravilhoso. Qualquer resposta que provocamos encoraja-nos a nos
esforçar cada vez mais, a ficarmos mais amorosas, mais convincentes. E outros
fatores também operam. Por exemplo, embora parecesse que o sexo gratificante
não seria muito razoável num relacionamento infeliz, é importante lembrar que o
clímax sexual alivia tanto a tensão física como a emocional. Enquanto uma
mulher evita o envolvimento sexual com
56
o parceiro quando há conflito e tensão entre eles, outra mulher, em
circunstâncias parecidas, acha que o sexo é uma forma bastante efetiva de
aliviar boa parte de tensão, ao menos temporariamente. Para uma mulher que se
encontra num relacionamento infeliz com um parceiro a quem está
doentiamente ligada, o ato sexual pode ser o lado do relacionamento que é
gratificante, e a única forma de relacionar-se com o parceiro.
De fato, o grau de alívio sexual que ela experimenta pode estar diretamente
relacionado com o grau de desconforto que sente com o parceiro. É fácil de
entender. Muitos casais, sendo sua relação saudável ou não, experimentam um
bom relacionamento sexual após uma briga. Depois de um conflito, dois
elementos contribuem para um intercurso sexual especialmente intenso e
extasiante: um deles é o já mencionado alívio de tensão; o outro envolve um
grande esforço, após a briga, de fazer com o que o sexo "funcione", de forma a
solidificar os laços do casal que foram ameaçados pela discussão. O fato de o
casal apreciar uma experiência sexual que particularmente agrada e satisfaz sob
essas circunstâncias parece validar o relacionamento como um todo. O
sentimento gerado pode ser: "Olhe como estamos perto um do outro, como
somos amorosos, como fazemo-nos sentir bem. Realmente devemos ficar
juntos".
O ato sexual, quando é altamente gratificante fisicamente, tem o poder de
criar laços profundos entre duas pessoas. Especialmente para as mulheres que
amam demais, a intensidade do conflito com um homem pode contribuir para a
intensidade de experiência sexual com ele, e, assim, dos laços com ele. E o
contrário também é verdadeiro. Quando nos envolvemos com um homem que
não é tanto um desafio, pode faltar fogo e paixão no âmbito sexual. Devido ao
fato de não estarmos quase em constante estado de excitação por ele, e de não
usarmos o sexo para provar algo, consideramos um relacionamento mais fácil,
mais solto, como algo insípido. Em comparação com os estilos tempestuosos de
relacionamento que conhecemos, esse tipo amansado de experiência parece
apenas confirmar para nós que a tensão, o conflito, a dor no peito e o drama
igualam-se realmente ao "verdadeiro amor".
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Isso leva-nos à discussão do que seja o verdadeiro amor. Eu sustento o
argumento de que o amor é muito difícil de se definir porque, na nossa cultura,
tentamos combinar dois aspectos do amor, muito opostos e até mutuamente
excludentes, em apenas uma definição. Assim, quanto mais falamos sobre o
amor, mais caímos em contradição, e, quando encontramos um aspecto do amor
em conflito com outro, desistimos, confusos e frustrados, e concluímos que o
amor é muito pessoal, muito misterioso e muito enigmático para se definir
precisamente.
Os gregos foram mais espertos. Usaram palavras diferentes, eros e agape,
para fazer uma distinção entre essas duas formas bem diferentes de
experimentar e que chamamos de "amor". Eros, claro, refere-se ao amor
apaixonado, enquanto que agape descreve o relacionamento estável e
compromissado, livre de paixão, que existe entre duas pessoas que se importam
bastante um com o outro.
O contraste entre eros e agape permite-nos entender o dilema quando olhamos
para esses dois tipos de amor de uma só vez, num relacionamento com uma
pessoa. Também ajuda-nos a entender por que eros e agape têm seus próprios
defensores, aqueles que afirmam que uma forma ou outra é a única maneira
verdadeira de se experimentar o amor, pois cada uma realmente tem sua beleza,
sua verdade e seu valor muito especiais. E em cada tipo de amor também falta
algo precioso, que só o outro tem a oferecer. Vamos agora analisar como os
proponentes de cada um descreveriam estar amando.
Eros: O amor verdadeiro é um desejo avassalador e desesperado pelo bem-
amado, que é distinguido como diferente, misterioso e esquivo. A profundidade
do amor é medida pela intensidade da obsessão pela pessoa amada. Resta pouco
tempo ou atenção para outros interesses ou atividades, pois muita energia está
concentrada na lembrança de encontros passados ou na imaginação de encontros
futuros. Freqüentemente, devem-se superar grandes obstáculos, e, dessa forma,
há o aspecto sofrimento no amor verdadeiro. Outra indicação da profundidade do
amor é a predisposição a suportar a dor e a opressão por amor ao
relacionamento. Estão associados ao
58
amor verdadeiro os sentimentos de excitação, êxtase, drama, ansiedade,
tensão, mistério e anseio.
Agape: O amor verdadeiro é o companheirismo com o qual duas pessoas que
se gostam estão profundamente compromissadas. Essas pessoas possuem muitos
valores, interesses e objetivos básicos em comum, e toleram saudavelmente suas
diferenças individuais. A profundidade do amor é medida pela confiança e
respeito mútuos. O relacionamento permite a cada um ser mais inteiramente
expressivo, criativo e produtivo no mundo. Há uma grande alegria nas
experiências compartilhadas, tanto do passado quanto do futuro, e também
naquelas que são antecipadas. Cada um vê o outro como seu amigo mais querido
e mais estimado. Outra medida da profundidade do amor é a predisposição em
olhar para si mesmo de forma honesta para promover o crescimento do
relacionamento e o aumento da intimidade. Estão associados ao amor verdadeiro
os sentimentos de serenidade, segurança, devoção, compreensão,
companheirismo, apoio mútuo e conforto.
Eros, o amor apaixonado, é o que a mulher que ama demais normalmente
sente pelo homem impossível. Na verdade, é por ele ser impossível que existe
tanta paixão. Para que a paixão exista, é necessário haver conflitos e obstáculos
contínuos para serem superados, um anseio por mais do que está disponível.
Paixão significa literalmente sofrimento, e, freqüentemente, quanto maior o
sofrimento, mais intensa é a paixão. A intensidade emocionante de um caso de
amor apaixonado não pode ser atingida pelo conforto mais doce de um
relacionamento estável e compromissado, de forma que, se fosse para ela
receber finalmente do objeto de sua paixão o que deseja tão ardentemente, o
sofrimento cessaria e a paixão logo se acabaria. Então talvez ela dissesse a si
mesma que desistiria do amor, porque a dor doce-amarga não existiria mais.
A sociedade em que vivemos e os meios de comunicação sempre presentes
que rodeiam e saturam nossa consciência confundem constantemente os dois
tipos de amor. Prometem-nos, de diversas formas, que um relacionamento
apaixonado (eros) nos trará contentamento e realização (agape). De fato, o que
se implica é que, com
59
paixão intensa o suficiente, forjamos um laço duradouro. Todos os
relacionamentos fracassados, baseados inicialmente em paixão espantosa,
podem testemunhar que essa premissa é falsa. A frustração, o sofrimento e o
anseio não contribuem para um relacionamento estável, firme e rico em
cuidados e atenção, embora sejam certamente fatores que contribuem
vigorosamente para um relacionamento apaixonado.
Interesses, valores e objetivos comuns, e capacidade de intimidade grande e
sustentada são os requisitos, se é para o encanto erótico inicial de um casal
finalmente transformar-se numa devoção compromissada e atenciosa, que se
fortificará com o tempo. Entretanto, o que freqüentemente acontece é o seguinte:
num relacionamento apaixonado, abastecido como deve ser com a excitação, o
sofrimento e a frustração de um novo amor, há o sentimento de que está faltando
algo muito importante. O que se quer é compromisso, um meio de estabilizar a
experiência emocional caótica e de proporcionar um sentimento de proteção e
segurança. Se o que se opõe ao fato de estarem juntos for superado, e se for
conseguido um compromisso genuíno, esses parceiros finalmente irão se olhar e
perguntar-se para onde foi a paixão. Eles sentem-se protegidos, aquecidos e
amáveis um com o outro, mas um pouco enganados, também, por não estarem
mais entusiasmados com o desejo um pelo outro.
O preço que pagamos pela paixão é o medo, e a mesma dor e medo que
alimentam o amor apaixonado podem também destruí-lo. O preço que pagamos
pelo compromisso estável é o aborrecimento, e a mesma proteção e segurança
que solidificam tal relacionamento podem também torná-lo inflexível e inerte.
Se tem que haver excitação e desafio contínuo num relacionamento, após um
compromisso, então deve basear-se não na frustração ou anseio, mas na
exploração até maior do que D.H. Lawrence chama de "os mistérios gostosos"
que existem entre um homem e uma mulher que estão comprometidos. Como
Lawrence explica, talvez isso seja feito melhor com um parceiro, pois a
confiança e honestidade do agape devem combinar com a coragem e a vulnera-
60
bilidade da paixão, para criar uma intimidade verdadeira. Certa vez, ouvi um
alcoólatra em fase de recuperação, e ele fez sua colocação de forma bem
simples e muito bonita. Ele disse:
— Quando bebia, ia para cama com muitas mulheres, e muitas vezes tinha
basicamente a mesma experiência. Desde que fiquei sóbrio só fui para a cama
com minha esposa, mas cada vez que ficávamos juntos era uma experiência
nova.
A emoção e excitação que não vêm do estimular e ser estimulado, mas do
conhecer e ser conhecido, são muito raras. A maioria de nós, em
relacionamentos compromissados e estáveis, opta por previsibilidade, conforto e
companheirismo porque tememos explorar os mistérios que possuímos juntos
como homem e mulher, tememos expor nossos eus mais profundos. Ainda
assim, com medo do desconhecido em nós e entre nós, ignoramos e evitamos o
mesmo presente que o compromisso põe a nosso alcance: a intimidade
verdadeira.
Para as mulheres que amam demais, o desenvolvimento da intimidade
verdadeira com um parceiro só acontecerá após a recuperação. Mais adiante,
encontrar-nos-emos novamente com Trudi, na medida em que ela encara o
desafio da recuperação
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Decidi casar-me com ele, o que foi definitivamente um erro. Sabe, eu não
tinha idéia de como me sentia com relação a nada. Não sabia se eu o amava ou
se ele era o que eu queria. Eu só sabia que, finalmente, lá estava alguém, que ele
me amava. Tivera poucos namorados e não sabia quase nada sobre os homens.
Eu estivera ocupada demais cuidando das coisas em casa. Estava tão vazia por
dentro, e lá estava aquela pessoa oferecendo-me o que parecia tanto. E ele disse
que me amava. Eu amara sozinha por tanto tempo, e agora era como se fosse a
minha vez de receber amor. E justamente a tempo. Eu sabia que estava quase
totalmente esgotada, que não tinha mais nada para dar.
Eu continuava atenta ao seu relato:
— Bem, casamo-nos rapidamente, sem o conhecimento dos pais dele. Agora,
parece uma coisa tão louca, mas na época tudo parecia mostrar o quanto ele me
amava, que ele estava disposto a desafiar seus pais para ficar comigo. Pensei,
então, que ele estivesse se rebelando por casar-se comigo, uma rebelião
suficiente para deixar seus pais zangados, mas não a ponto de expulsá-lo de casa.
Agora vejo a situação de forma diferente. Afinal, ele tinha segredos para
manter a respeito de sua identidade sexual e de seu comportamento, e ter uma
esposa fazia-o parecer mais "normal" do que não ter. Acho que foi isso que quis
dizer quando falou que precisava de mim. Lógico, eu era a escolha perfeita, pois,
sendo americana, na sua cultura estava sempre errada e seria sempre suspeita.
Qualquer outra mulher, principalmente uma da mesma classe social que
ele, vendo o que eu vi, contaria para alguém mais cedo ou mais tarde. E toda a
cidade ficaria sabendo. Mas a quem eu iria contar? Quem conversava comigo? E
quem acreditaria em mim? Eu não acredito que isso tenha sido mais deliberado
de sua parte ou calculado por ele que qualquer dos meus motivos para casar-me.
Apenas combinávamos, e pensamos, de início, que fosse amor.
Lisa prosseguiu com o monólogo.
— De qualquer forma, sabe o que aconteceu após a cerimônia? Tivemos que
ir para casa e viver com aquelas pessoas que nem ao menos foram informadas
de que estávamos nos casando! Ah, foi
66
terrível. Eles me odiavam e eu fiquei com o sentimento de que eles já tinham
se zangado com ele por um bom tempo. Eu não falava uma palavra em
espanhol. Sua família toda sabia inglês, mas não falava. Eu era completamente
excluída e isolada, e estava terrivelmente assustada desde o início. Muitas vezes
ele deixou-me sozinha à noite, e eu ficava em nosso quarto, até que finalmente
aprendi a dormir, viesse ele para casa ou não. Eu já sabia sofrer. Aprendera em
casa. De certa forma, pensei que isso era o preço que se pagava para estar com
alguém que se amava, pensei que fosse normal. Ele sempre chegava em casa
bêbado e amoroso, e isso era realmente terrível. Eu sentia o perfume de outra
mulher nele. Certa noite, eu já estava dormindo há muito tempo e um barulho
acordou-me. E lá estava meu marido, bêbado, admirando-se em frente ao
espelho, com minha camisola. Perguntei o que ele estava fazendo e ele
respondeu: "Você não acha que eu estou uma graça?" Fez algumas caretas e eu
percebi que estava de batom. Suspirou profundamente, e continuou:
— Finalmente, senti um estalo. Sabia que tinha que sair de lá. Até então eu
estivera infeliz, mas estava certa de que o erro fora meu, de que, de certa forma,
poderia ter sido mais amorosa e fazê-lo ter vontade de ficar comigo, fazê-lo
conseguir com que seus pais me reconhecessem, e até mesmo gostassem de
mim. Eu estava disposta a esforçar-me mais, exatamente como minha mãe. Mas
isso era diferente. Isso era loucura.
O monólogo prosseguia.
— Eu não tinha dinheiro e nem jeito de conseguir um pouco. Então, no dia
seguinte, eu disse a ele que contaria a seus pais o que ele fizera se não me levasse
a San Diego. Menti para ele e falei que já fizera contato com minha mãe e que
ela estaria esperando por mim. Falei que, se me levasse para lá, jamais o
incomodaria novamente. Não sei onde consegui coragem, porque eu pensei
realmente que me mataria, ou algo assim, mas funcionou. Ele tinha muito medo
que seus pais soubessem. Levou-me até a fronteira sem dar uma palavra, pagou-
me a passagem para San Diego e deu-me cerca de quinze dólares. Então, acabei
em San Diego, na casa de uma amiga.
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Permaneci lá até arrumar um emprego e, então, consegui uma vaga com três
companheiras de quarto e comecei uma vida bem rude. Lisa lembrou com
pesar:
— Àquela altura, eu já não tinha absolutamente nenhum sentimento próprio.
Eu estava completamente entorpecida. Mas ainda sentia uma compaixão
enorme, o que me causou muitos problemas. Fui para cama com vários homens
nos três ou quatro anos seguintes porque sentia pena deles. Tenho sorte das coisas
nunca realmente fugirem ao meu alcance. A maioria dos homens com quem me
envolvi tinha problemas relacionados com álcool ou com drogas. Conhecia-os
em festas ou, ocasionalmente, em bares, e, mais uma vez, eles pareciam
precisar que eu os compreendesse, que eu os ajudasse, o que agia como um ímã
para mim.
A atração de Lisa por homens desse tipo fazia muito sentido, considerando-se
sua história com sua mãe. A coisa mais próxima a ser amada que Lisa já
experimentara era ser necessária. Assim, quando um homem parecia precisar
dela, ele estava, na verdade, oferecendo amor a ela. Ele não tinha que ser gentil,
ou dedicado ou atencioso. O fato de estar carente era suficiente para reavivar em
Lisa os sentimentos antigos e familiares e estimular sua superatenção.
Sua história prosseguiu:
— Minha vida era uma confusão, e a vida de minha mãe também. Seria difícil
dizer qual de nós estava mais doente. Eu tinha 24 anos quando minha mãe largou
a bebida e tornou-se sóbria. Ela conseguiu da maneira mais difícil. Sozinha, na
sala de estar, telefonou para os Alcoólicos Anônimos e pediu ajuda. Eles
enviaram duas pessoas para conversar com ela e levaram-na a uma reunião,
naquela tarde. Até então, ela não bebera nada. — Lisa sorriu mansamente com a
coragem de sua mãe. — Isso realmente deve ter ficado intolerável, porque ela
era uma senhora muito orgulhosa, orgulhosa demais para dar esse telefonema, a
menos que estivesse desesperada. Agradeço a Deus por não estar lá para ver.
Provavelmente, esforçar-me-ia tanto para fazê-la sentir-se melhor que
ela jamais conseguiria ajuda de verdade.
68
Ela respirou fundo e retomou a narrativa:
— Minha mãe começara a beber bastante, mesmo, quando eu tinha cerca de
nove anos. Eu voltava da escola e ela estava deitada no sofá, embriagada, com
uma garrafa perto dela. Minha irmã mais velha costumava zangar-se comigo e
dizer-me que eu não encarava a realidade, porque eu jamais admitiria como isso
era ruim. Mas eu amava demais minha mãe para até mesmo perceber que ela
fazia algo errado... Éramos tão apegadas, ela e eu! De forma que, quando as
coisas não estavam bem entre ela e meu pai, eu queria compensá-la. Eu sentia
que tinha que compensar tudo que meu pai fazia para machucá-la, e a única
coisa que eu sabia fazer era ser boa. Assim, eu era boa de todas as formas que
conhecia. Perguntava a ela se precisava de ajuda com alguma coisa. Eu
cozinhava e limpava sem que me pedissem. Eu tentava não precisar de nada.
Com um gesto de cabeça, Lisa enfatizou sua conclusão: — Mas nada adiantou.
Agora eu percebo que estava lidando com duas forças incrivelmente poderosas:
o casamento deteriorante de meus pais e o alcoolismo progressivo de minha
mãe. Eu não tinha chance de consertá-los, mas isso não me fazia parar de tentar,
e parar de culpar-me quando fracassava. Tomou fôlego e prosseguiu:
— A infelicidade dela doía muito em mim, sabe? Eu acreditava que ainda
existiam áreas onde poderia me aperfeiçoar. Meus trabalhos escolares, por
exemplo. Eu não ia muito bem porque, claro, estava sob muita pressão em casa.
Tentava cuidar de meu irmão, preparar as refeições e ainda conseguir um
emprego para ajudar. Na escola, só tinha energia para um trabalho brilhante por
ano. Planejava cuidadosamente e mostrava aos professores para provar a eles
que eu era capaz. O resto do tempo, eu quase nem fazia barulho. Eles diziam que
eu não estava tentando de verdade. Ah! Eles não sabiam quanto eu estava me
esforçando para manter as coisas no lugar em casa. Mas os boletins não eram
bons, e meu pai gritava e minha mãe chorava. Culpava-me por não ser perfeita.
E continuei esforçando-me mais que nunca.
Num lar gravemente desajustado como esse, em que existem difi-
69
culdades aparentemente insuperáveis, a família dirigirá a atenção para outros
problemas, mais simples, que têm alguma esperança de ser solucionáveis. Os
trabalhos escolares de Lisa e suas notas transformaram-se, assim, no enfoque de
todos, inclusive de Lisa. A família precisava acreditar que, se esse problema
fosse sanado, traria harmonia.
A pressão sobre Lisa era intensa. Ela não estava apenas tentando resolver os
problemas de seus pais enquanto incumbida das responsabilidades de sua mãe,
mas também sentia-se como uma das causas dessa infelicidade. Devido às
proporções monumentais de sua tarefa, nunca experimentou o sucesso, apesar de
seus esforços heróicos. Naturalmente, seu senso de autovalidação sofria
terrivelmente.
— Certa vez, telefonei para minha melhor amiga e disse: "Por favor, deixe-me
falar com você. Você pode ler um livro, se quiser. Você não tem que me ouvir.
Eu só preciso de alguém do outro lado da linha". Eu não acreditava nem que
merecia ter alguém para ouvir meus problemas! Mas ela realmente ouviu, claro.
O pai dela era um alcoólatra em recuperação que fora dos Alcoólicos Anônimos.
Ela foi à Alateen, e eu acho que ela me proporcionou esse benefício da mesma
forma que me ouviu. Era muito difícil, para mim, admitir que algo estava errado,
a menos que fosse culpa de meu pai. Eu realmente o odiava.
Lisa e eu bebericamos o chá em silêncio por alguns instantes, enquanto ela
lutava silenciosamente com as memórias amargas. Quando pôde continuar, disse
simplesmente:
— Meu pai nos deixou quando eu tinha dezesseis anos. Minha irmã já saíra de
casa. Era três anos mais velha que eu, e, tão logo completou dezoito anos,
conseguiu um emprego de período integral e saiu de casa. Restamos apenas
minha mãe, meu irmão e eu. Acho que eu comecei a diminuir a pressão que
exercia sobre mim mesma para protegê-la e fazê-la feliz, e para cuidar de meu
irmão. Assim, fui para o México e me casei, voltei para casa e me divorciei, e
andei com uma porção de homens por vários anos. Prosseguiu após uma pausa:
Cerca de cinco meses após minha mãe ter entrado no progra-
70
ma dos Alcoólicos Anônimos, conheci Gary. O primeiro dia que passamos
juntos, ele estava dopado. Demos uma volta de carro com minha amiga, que o
conhecia, e ele estava fumando um baseado. Ele gostou de mim e eu gostei dele,
e ambos passamos essa informação separadamente através de minha amiga, de
forma que logo ele me telefonou e veio em casa para me visitar. Ele posou para
mim enquanto eu o desenhava só por brincadeira, e eu me lembro de ficar
entusiasmada com o que sentira por ele. Foi a sensação mais intensa que já tive
com relação a um homem. Lisa parou de falar por um instante, e logo continuou:
— Ele estava dopado novamente, e estava sentado falando devagar, você sabe,
como as pessoas falam quando estão sob o efeito de droga, e tive que parar de
desenhar porque minhas mãos começaram a tremer tanto que eu não podia fazer
nada. Ergui a prancheta num ângulo, inclinando-a e apoiando-a nos joelhos para
maior estabilidade, de forma que ele não pudesse ver minhas mãos tremendo
daquela forma.
Bebericou o chá novamente para umedecer a boca, e prosseguiu:
— Hoje eu sei que tive essa reação porque a forma como ele falava era a
mesma com que minha mãe falava quando bebia o dia todo. As mesmas pausas
longas e as mesmas palavras escolhidas com cuidado que saíam meio
enfatizadas demais. Toda a afeição e amor que eu sentia por minha mãe estavam
combinados com a atração física que tinha por ele, como um homem de boa
aparência. Mas àquela altura não tinha idéia do motivo que me fazia agir
como agia. Assim, chamava aquilo de amor.
Não foi nenhuma coincidência o fato da atração de Lisa por Gary e seu
envolvimento com ele ter começado logo após sua mãe ter parado de beber. O
laço entre as duas mulheres nunca fora rompido. Apesar da distância geográfica
considerável entre elas, sua mãe sempre fora sua responsabilidade principal e
sua ligação mais profunda. Quando Lisa percebeu que a mãe estava se
modificando, recuperando-se do alcoolismo sem sua ajuda, reagiu ao fato de não
ser mais necessária. Logo Lisa estabeleceu um novo relacionamento profundo
com outro indivíduo viciado.
71
Após seu casamento, seus envolvimentos com homens foram casuais, até que
sua mãe tornou-se sóbria. Ela "apaixonou-se" por um viciado quando sua mãe
voltou-se para membros dos Alcoólicos Anônimos à procura de ajuda e apoio
para se sentir melhor Lisa precisava de um relacionamento com um viciado
ativo para se sentir "normal".
Ela continuou com a descrição dos seis anos de relacionamento que se
seguiram. Gary passou a morar com ela quase de imediato e deixou bem claro
nas primeiras semanas que passaram juntos que se alguma vez ele tivesse que
escolher entre comprar entorpecente e pagar o aluguel, optaria pelo
entorpecente. Apesar disso, Lisa estava certa de que ele mudaria, de que ele
passaria a valorizar o que tinham juntos e a preservar aquilo. Ela estava certa de
que o faria amá-la como ela o amava.
Gary raramente trabalhava e, quando o fazia, de acordo com o que dissera,
gastava todo o salário com a maconha ou o haxixe mais caro. Inicialmente, Lisa
juntou-se a ele no uso da droga mas quando percebeu que isso interferia em sua
capacidade de se sustentar, parou. Ficou, no final, responsável pelo sustento dos
dois e encarava a responsabilidade com seriedade. Todas as vezes que pensava
em dizer a ele para sair de lá (após ele ter novamente tirado dinheiro de sua
carteira ou após haver uma festa em seu apartamento quando chegava em casa,
exausta do trabalho, ou após ele não vir para casa à noite), ele comprava uma
sacola de mantimentos ou esperava por ela com o jantar pronto, ou dizia a ela
que conseguira cocaína especialmente para dividir com ela, e a decisão que
tomara se desfazia, enquanto Lisa dizia a si mesma que, apesar de tudo, ele
realmente a amava.
As histórias que ele contava sobre sua infância faziam-na chorar de pena, e
Lisa estava certa de que, se o amava o suficiente poderia compensar tudo o que
ele sofrera. Sentia que não deveria culpá-lo ou responsabilizá-lo pelo
comportamento dele naquela hora uma vez que ele sofrerá tanto quando criança,
e ela quase se esquecia do próprio passado doloroso, conforme concentrava-se
em remediar o dele.
72
Certa vez, durante uma discussão em que ela recusou a dar a Gary um cheque
que seu pai enviara para ela como presente de aniversário, ele enfiou uma faca
em cada tela no apartamento.
— Naquela altura, eu já estava ficando tão doente que eu realmente pensei: É
culpa minha; não deveria tê-lo deixado tão zangado. Eu ainda me culpava por
tudo, tentando consertar o inconsertável.
Com um gesto rápido, ajeitou o cabelo e prosseguiu:
— O dia seguinte era um sábado. Gary saíra por um instante e eu limpava
aquela desordem, chorando e jogando fora três anos de trabalho com pinturas. A
televisão estava ligada e passava uma entrevista sobre uma mulher que fora
espancada pelo marido. Não se podia ver sua face, mas ela falava sobre como
fora sua vida e descrevia algumas cenas horríveis, e então disse: "Eu não achei
que era tão ruim assim, porque eu ainda podia suportar".
Lisa fez um movimento lento com a cabeça.
— É o que eu estava fazendo, ficando naquela situação terrível porque ainda
podia suportá-la. Quando ouvi aquela mulher, eu disse, em voz alta: "Mas você
merece mais que a pior coisa que pode suportar!" E, de repente, ouvi a mim
mesma e comecei a chorar bastante, porque percebi o que merecia de verdade.
Merecia mais que a dor e a frustração, e a despesa e o caos. Para cada tela
destruída, eu dizia a mim: Nunca mais viverei dessa forma.
Quando Gary voltou para casa, suas malas estavam feitas e esperando por ele
do lado de fora. Lisa chamara sua melhor amiga, que trouxera o marido com
ela, e o casal ajudou Lisa a ter coragem de dizer a Gary para ir embora.
— Não houve cena nenhuma porque meus amigos estavam lá. Assim, ele foi
embora sem problemas. Mais tarde, ele começou a telefonar e a me ameaçar,
mas eu não reagia de forma alguma. Após um certo tempo, ele desistiu. —
Tentou explicar-se: — Quero que você entenda que, apesar de tudo, eu não fiz
aquilo sozinha, quero dizer, quanto a não reagir. Telefonei para minha mãe
naquela tarde, após a poeira ter baixado, e contei-lhe toda a história. Ela disse-
me para freqüentar as reuniões do Al-Anon para filhos adultos de al-
73
coólatras. [erro no pdf original] Eu só ouvi minha mãe porque estava sofrendo
muno Al-Anon assim como a Alateen, é uma associação de parentes e amigos
de alcoólatras que se reúnem para ajudar um ao outro e a si próprios a
recuperarem-se da obsessão pelos alcoólatras em sua vida. Reuniões de filhos
adultos são para as filhas e filhos crescidos de alcoólatras que querem recuperar-
se dos efeitos de terem convivido, quando crianças, com o alcoolismo. Os efeitos
incluem a maior parte das características de se amar demais.
- Foi quando comecei a me entender. Para mim, Gary era o que o álcool fora
para minha mãe: ele era uma droga sem a qual não podia ficar. Até o dia em que
o fiz ir embora, eu estivera apavorada com medo de que ele me deixasse. Assim,
fazia tudo para agradá-lo. Fiz tudo que fizera quando criança: trabalhei bastante,
fui boa, não pedi nada para mim e cuidei do que era da responsabilidade de outra
pessoa. Autosacrifício sempre fora meu padrão de vida por isso, não saberia
quem eu era sem alguém para ajudar-me ou algum sofrimento para suportar. A
ligação mais profunda que Lisa tinha com a mãe, e as necessidades e desejos
que essa ligação exigia que fossem sacrificados prepararam-na para
relacionamentos amorosos futuros que mais envolviam sofrimento que qualquer
tipo de realização pessoal. Ela tomara uma decisão séria, quando criança, de
retificar qualquer dificuldade na vida de sua mãe através da força de seu próprio
amor e abnegação. A decisão logo tornou-se inconsciente, mas continuou a dirigi-
la. Totalmente desacostumada a avaliar as formas de proteger seu bem-estar,
mas entendida em promover o bem-estar de outros ela mudava para
relacionamentos que prometiam outra oportunidade de fazer tudo certo para
outra pessoa, através da força de seu amor. A verdade em sua história é que o
fracasso por não ganhar o amor através de seus esforços só a fazia esforçar-se
mais.
Gary, com seu vício, sua dependência emocional e sua crueldade combinava
todos os piores atributos do pai e da mãe de Lisa Ironicamente, aquilo era
responsável por sua atração por ele. Se o relacionamento que tivemos com
nossos pais foi essencialmente de atenção, com expressões apropriadas da
afeição, interesse e aprovação,
74
quando adultos tendemos a nos sentir confortáveis com pessoas que produzem
sentimentos parecidos de segurança, calor humano e autoconsideração positiva.
Além disso, tendemos a evitar pessoas que nos fazem sentir menos positivas a
nosso respeito, através de suas críticas e manipulações. O comportamento deles é
repugnado por nós.
Entretanto, se nossos pais relacionaram-se conosco de forma hostil, crítica,
cruel, manipuladora, dominadora, superdependente, ou de outras formas
inapropriadas, isso é o que parecerá "correto" para nós quando nos encontrarmos
com alguém que expresse, talvez bem sutilmente, sinais das mesmas atitudes e
comportamentos. Sentir-nos-emos à vontade com pessoas com quem nossos
antigos padrões doentios de relacionamento são recriados, e talvez facilmente
embaraçados e mal com pessoas mais gentis, mais amáveis ou saudáveis. Ou
ainda, devido ao fato de faltar o desafio de tentarmos mudar alguém para
tornarmos essa pessoa feliz ou para obtermos a afeição e aprovação sonegadas,
poderemos simplesmente nos sentir aborrecidos com pessoas mais saudáveis. O
aborrecimento geralmente abrange sentimentos brandos e intensos de embaraço,
que as mulheres que amam demais tendem a sentir quando estão fora do papel
familiar de ajudar, de ter esperança e de prestar mais atenção no bem-estar de
outra pessoa do que em seu próprio bem-estar. Existe na maioria dos filhos
adultos de alcoólatras, e também em descendentes de outros tipos de lares
desajustados, uma fascinação por pessoas que atraem problema, e vício à
excitação, principalmente a excitação negativa. Se o drama e o caos sempre
estiveram presentes em nossa vida, e se, como é freqüentemente o caso, fomos
forçados a negar muitos de nossos sentimentos enquanto estávamos crescendo,
iremos querer com freqüência que acontecimentos dramáticos engendrem
qualquer sentimento. Assim, precisamos da excitação da incerteza, da dor, do
desapontamento e do conflito apenas para nos sentir vivos.
Lisa finalizou sua história:
— Após Gary ter ido embora, a paz e a quietude da minha vida deixaram-me
louca. Usei de tudo para não telefonar para ele e co-
75
meçar tudo novamente. Mas, devagar, acostumei-me com uma vida mais
normal.
Acrescentou, com um suspiro de alívio:
— Não estou namorando ninguém agora. Eu sei que ainda estou doente demais
para ter um relacionamento saudável com um homem. Apenas sairia por aí e
acharia um outro Gary. De forma que estou me planejando pela primeira vez, ao
invés de tentar mudar outra pessoa. Lisa com relação a Gary, como sua mãe em
relação ao álcool, sofria de um processo doentio, uma compulsão destrutiva
sobre a qual não tinha controle sozinha. Da mesma forma que sua mãe
desenvolvera um vício quanto ao álcool e era incapaz de parar de beber por si só,
Lisa desenvolvera com Gary o que era também um relacionamento vicioso. Eu
não faço essa analogia, ou uso a palavra vicioso displicentemente ao comparar a
situação das duas mulheres. A mãe de Lisa tornara-se dependente de uma droga,
o álcool, para evitar passar pela angústia e desespero intensos que sua situação
criava. Quanto mais usava o álcool para evitar sentir a dor, mais a droga operava
em seu sistema nervoso, produzindo os mesmos sentimentos que tentava evitar. A
droga aumentava definitivamente a dor, ao invés de diminuí-la. Então, claro, ela
bebia ainda mais. Assim, ela caiu no vício.
Lisa, também, tentava evitar a angústia e o desespero. Ela sofria de uma
profunda depressão subjacente, cujas raízes estavam na infância dolorosa.
Depressão subjacente é um fator comum em filhos de todos os tipos de lares
gravemente desajustados, e sua forma de lidar com ela, ou, mais
especificamente, evitá-la, varia dependendo do sexo, da disposição e do papel
que desempenharam na família quando crianças. Quando atingem a
adolescência, muitas mulheres jovens como Lisa, mantêm a depressão presa
dentro de si desenvolvendo o estilo de amar demais. Conforme empenham-se
em relacionamentos caóticos, porém estimulantes, com homens doentes ficam
excitadas demais para cair na depressão que tarda [erro?] apenas no nível da
consciência.
76
Dessa forma, um parceiro cruel, indiferente, desonesto ou difícil torna-se, para
essas mulheres, equivalente a uma droga, criando um meio de evitar seus
próprios sentimentos, como o álcool e outras substâncias que alteram o
comportamento, criam para os viciados uma válvula de escape temporária, da
qual não se atrevem a ficar longe. E, como acontece com álcool e drogas, os
relacionamentos incontroláveis que proporcionam a distração necessária
também possuem sua própria carga de dor. Fazendo um paralelo com a doença
progressiva do alcoolismo, a dependência de relacionamento aumenta o vício.
Estar sem relacionamento, ou seja, estar só consigo mesma, pode ser pior que
estar no grande sofrimento que o relacionamento provoca, porque estar sozinha
significa sentir a combinação da grande dor do passado com a dor do presente.
Os dois vícios são paralelos nesse sentido, e igualmente difíceis de superar. O
vício da mulher com relação ao parceiro, ou com relação a uma série de
parceiros inadequados, tem sua gênese na variedade de problemas de família.
Ironicamente, os filhos crescidos de alcoólatras são mais afortunados que os de
outros passados desajustados, pelo menos nas grandes cidades, pois existem
grupos de Al-Anon para apoiá-los conforme trabalham para superar seus
problemas com auto-estima e com relacionamentos.
A recuperação de relacionamentos viciados envolve conseguir ajuda de um
grupo de apoio apropriado, para se quebrar o círculo do vício, e para se aprender
a buscar sentimentos de auto-avaliação e bem-estar de outras fontes que não um
homem, para sustentar esses sentimentos. A chave está em aprender a viver uma
vida saudável, satisfatória e serena, sem depender de outra pessoa para ser feliz.
Infelizmente, para aqueles envolvidos em relacionamentos viciados e aqueles
presos na teia do vício químico, a convicção de que podem lidar com o problema
sozinhos geralmente evita que peçam ajuda e, assim, impede a possibilidade de
recuperação.
E por causa dessa convicção — "Eu posso fazer isso sozinha" — que as coisas
às vezes ficam bem piores antes de começarem a melhorar, para muitas pessoas
em conflito com qualquer doença do
77
vício. A vida de Lisa teria que tornar-se desesperadamente incontrolável antes
que admitisse que precisava de ajuda para superar seu vício da dor.
E a condição de Lisa piorava porque tanto sofrer por amor como ser viciada
num relacionamento são fatos romantizados por nossa cultura. De música
popular a ópera, de literatura clássica a romances mais suaves, de novelas a
peças teatrais e filmes aclamados pela crítica, somos rodeados de inúmeros
exemplos de relacionamentos não recompensadores e imaturos que são
glorificados e exaltados. Mais e mais esses modelos culturais dizem-nos que a
intensidade do amor é medida pela dor que causa, e que aqueles que sofrem
realmente amam realmente. Quando um cantor diz queixosamente em sua
música que não é capaz de parar de amar alguém embora doa muito, há em nós,
talvez pela força abrupta da exposição repetida a esse ponto de vista, algo que
aceita como sendo a forma verdadeira de amar aquilo que o cantor expressa.
Acatamos que sofrimento seja um aspecto natural do amor e que a predisposição
ao sofrimento pelo bem do amor é uma característica mais positiva que negativa.
Existem poucos modelos de pessoas que se relacionam igualmente de forma
saudável, madura, honesta, não manipuladora e não exploradora, provavelmente
por duas razões: Primeira, com toda honestidade, tais relacionamentos na vida
real são bem raros. Segunda, desde que a qualidade da interação emocional em
relacionamentos saudáveis é sempre muito mais sutil que o drama de
relacionamentos doentios, seu potencial dramático é normalmente negligenciado
na literatura, no drama e nas canções. Se estilos doentios de relacionamento nos
infestam, talvez seja porque são aproximadamente tudo que vemos e tudo que
conhecemos.
Devido à carência de exemplos de amor maduro e de comunicação saudável
na mídia, tenho alimentado há anos a fantasia de preparar o script do episódio de
um dia de cada uma das grandes novelas. Em meu episódio, todas as
personagens comunicar-se-iam umas com as outras de forma honesta, não-
defensiva e afetuosa. Sem mentiras, sem segredos, sem manipulações, sem
ninguém disposto
78
a ser vítima de outra pessoa, e sem ninguém fazendo vítimas. Ao contrário, por
um dia os espectadores veriam pessoas compromissadas em ter relacionamentos
saudáveis com as outras, baseados na comunicação verdadeira.
Essa forma de se relacionar não somente entraria em conflito agudo com o
formato normal desses programas, como também ilustraria, por meio de
contraste extremo, como estamos saturados com representações de exploração,
manipulação, sarcasmo, procura de vingança, atração deliberada, provocação de
ciúme, mentira, ameaça, coerção, e assim por diante — nada do que contribui
para uma interação saudável. Quando se pensar a respeito do que cada segmento
retratando a comunicação honesta e o amor maduro causaria à qualidade dessas
sagas, considere também o que as alterações no estilo de comunicação fariam na
vida de cada um de nós.
Tudo acontece num contexto, incluindo a forma como amamos. Precisamos
estar cientes das falhas prejudiciais da visão de amor de nossa sociedade e
resistir à imaturidade superficial e autofrustrante em relacionamentos pessoais
que ela exalta. Devemos desenvolver conscientemente uma maneira mais aberta
e madura de relacionamento que a forma apoiada pela indústria cultural,
trocando assim o tumulto e a agitação por uma intimidade maior.
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- EU NÃO SEI como ela faz tudo isso. Ficaria louca se tivesse que lutar contra
o que ela luta.
- Sabe, nunca ouvi ela reclamar!
- Por que ela suporta pacientemente a situação?
- Afinal, o que ela vê nele? Poderia conseguir algo bem melhor. As pessoas
tendem a dizer esse tipo de coisa sobre uma mulher que ama demais, ao
observarem o que seria um esforço nobre de melhorar uma situação frustrante.
Mas normalmente encontram-se em suas experiências de infância, indícios que
explicam o mistério de sua ligação fracassada. A maioria de nós cresce
desempenhando os papéis que adotamos em nossa família de origem. Para
muitas mulheres que amam demais, aqueles papéis freqüentemente
significavam que negavam suas próprias necessidades enquanto tentavam
satisfazer as de outros membros da família. Talvez fomos forçadas pelas
circunstâncias a crescer rápido demais, assumindo prematuramente
responsabilidades de adultos, porque nossa mãe ou nosso pai estava doente física
ou psicologicamente e não podia desempenhar as funções paternas apropriadas.
Ou talvez um de nossos pais ficou ausente devido a morte ou divórcio, e tentamos
preencher essa ausência, ajudando a cuidar de nossos irmãos e do outro pai.
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Talvez nos tornamos a dona de casa enquanto nossa própria mãe trabalhava
para sustentar a família. Ou, ainda, podemos ter vivido com ambos os pais, mas
porque um deles estava zangado ou frustrado ou infeliz, e o outro não respondia
em apoio, vimo-nos no papel de confidente, tendo de ouvir detalhes do
relacionamento escabrosos demais para suportarmos emocionalmente. Ouvimos
porque tínhamos medo das conseqüências para o pai sofredor se não ouvíssemos,
e medo de perder o amor se fracassássemos em desempenhar o papel que nos
fora atribuído. Dessa forma, não nos protegemos, e nossos pais também não,
porque eles precisavam nos ver como sendo mais fortes que eles. Apesar de
sermos imaturos demais para a responsabilidade, no final nós é que os
protegemos. E, quando isso aconteceu, aprendemos bem cedo, mas muito bem,
como cuidar de qualquer pessoa, menos de nós mesmas. Nossas necessidades de
amor, atenção, cuidado e segurança permaneceram insatisfeitas, enquanto
fingíamos ser mais poderosas e menos medrosas, mais crescidas e menos
carentes do que realmente nos sentíamos. E, ao aprendermos a negar nosso
próprio desejo de ser cuidadas, crescemos procurando mais oportunidades de
fazer o que sabíamos tão bem: preocuparmo-nos com os desejos e exigências de
outras pessoas ao invés de reconhecermos nossos próprios medos, nossa dor e
nossas necessidades insatisfeitas. Fingimos por tanto tempo sermos crescidos,
pedindo tão pouco e fazendo tanto, que agora parece tarde demais para ser a
nossa vez. Então, ajudamos e ajudamos, e esperamos que nosso medo se vá e
que nossa recompensa seja o amor.
A história de Melanie é um caso desse tipo, um exemplo de como crescer
rápido demais com muitas responsabilidades (nesse caso, preenchendo a
ausência de um pai) pode criar uma compulsão a cuidados.
No dia em que nos conhecemos, logo após uma palestra que eu dera a um
grupo de alunos de enfermagem, não pude deixar de notar seu rosto cheio de
contrastes. O nariz pequeno e empinado, todo salpicado de sardas, as bochechas
com covinhas profundas, a pele leitosa, davam a ela um ar atrativamente
travesso. Aquelas caracte-
81
rísticas vivas pareciam fora de lugar no mesmo semblante que apresentava
círculos tão escuros abaixo dos olhos claros, acinzentados. Debaixo de uma boina
de ondas escuras avermelhadas ela parecia um duende pálido e cansado.
Ela esperara num canto enquanto eu falava demoradamente com cada um dos
seis alunos de enfermagem que se juntaram atrás de mim, quando terminei a
palestra. Como acontecia freqüentemente toda vez que falava sobre o assunto
doença familiar do alcoolismo vários alunos queriam discutir problemas muito
pessoais para o período normal de papo do tipo pergunta-resposta que se seguia à
minha apresentação.
Quando o último de seus colegas se foi, Melanie pediu-me licença para uma
parada momentânea e então apresentou-se, tomando minha mão cordialmente e
de maneira firme, para a pessoa miúda e delicada que era.
Ela esperara tanto e tão pacientemente para falar comigo que apesar da
autoconfiança aparente, percebi a intensidade com que minha palestra matutina
tocara seus sentimentos. Para dar a ela oportunidade de falar bastante, convidei-a
para caminhar comigo pelo campus da universidade. Enquanto eu juntava meus
pertences e deixava a sala de palestras, ela falou sociavelmente, mas quando
fomos para fora, na tarde cinzenta de novembro, ela ficou reflexiva, quieta.
Andamos por um caminho deserto, e o único som era o estalido de pólvora das
folhas secas de plátano, frágeis debaixo de nossos pés.
Melanie parou de andar para arrastar os pés sobre um grupo de formas
estelares destroçadas, com suas pontas enrolando-se por cima como estrelas-do-
mar secas, deixando exposto o interior pálido. Após alguns instantes, disse
meigamente:
— Minha mãe não era alcoólatra, mas da forma como você descreveu hoje a
influência dessa doença sobre a família, ela poderia também ter sido alcoólatra.
Ela era mentalmente doente, louca realmente, e no final a doença a matou. Ela
sofria de depressões agu-
82
das, foi para o hospital várias vezes, e algumas delas ficou lá por muito tempo.
As drogas que utilizavam para "curá-la" pareciam apenas piorar seu estado. Ao
invés de ser uma mulher louca viva, ela transformou-se numa mulher louca
parada. Mas mesmo com as drogas deixando-a zonza, ela finalmente conseguiu
fazer uma de suas tentativas de suicídio. Embora procurássemos nunca deixá-la
sozinha, naquele dia todos nós tínhamos saído para lugares diferentes, só por
alguns momentos. Ela enforcou-se na garagem. Meu pai a encontrou.
Melanie meneou a cabeça rapidamente, desfazendo as lembranças obscuras
que se juntavam em sua mente, e continuou:
— Eu ouvi dizer que poderia me identificar com o que seria dito essa manhã,
mas você disse em sua palestra que filhos de alcoólatras, ou crianças provindas
de outros lares desajustados como os nossos, escolhiam, com muita freqüência,
parceiros alcoólatras ou viciados em outras drogas, e isso não é verdade quanto a
Sean.
Graças a Deus, ele não liga para bebida ou entorpecentes. Mas temos outros
problemas.
Ela desviou o olhar, erguendo o queixo.
— Normalmente, consigo lidar com qualquer coisa... mas isso está começando
a acabar comigo. Estou ficando sem mantimento, sem dinheiro e sem tempo,
apenas isso.
Falou dessa forma como se fizesse graça, para se reagir divertidamente e não
se levar a sério. Eu tive que estimulá-la a dar mais detalhes, e ela respondeu de
forma prosaica:
— Sean foi embora novamente. Temos três crianças: Susie, de seis anos;
Jimmy, de quatro; e Peter, de dois anos e meio. Trabalho meio expediente como
sacristã, estou tentando tirar diploma na escola de enfermagem, e tento manter
tudo calmo em casa. Sean normalmente toma conta das crianças, quando não
está na escola de Belas-Artes ou quando não vai embora.
Ela continuou contando sem nenhum traço de amargura:
— Nós nos casamos há sete anos. Acabara de sair do colégio e estava com
dezessete anos. Sean tinha 24, fazia alguns bicos como ator e freqüentava a
escola em meio período. Ele dividia um apar-
83
tamento com três amigos. Eu costumava ir para lá aos domingos e preparar
para eles grandes banquetes. Era sua namorada de domingo à noite. Às sextas e
sábados ele trabalhava numa peça ou ficava com outra pessoa. De qualquer
forma, todos me amavam naquele apartamento. Os pratos que eu preparava
eram as melhores coisas que aconteciam a eles na semana. Eles costumavam
atormentar Sean, dizendo que ele tinha que se casar comigo e deixar-me cuidar
dele. Acho que ele gostou da idéia, porque foi o que ele fez. Pediu-me em
casamento e eu disse sim, obviamente. Eu estava emocionada. Ele era tão bonito,
veja!
Ela abriu a bolsa e tirou uma carteirinha plastificada de fotografias. A primeira
era a de Sean: olhos escuros, as formas do rosto bem delineadas e o queixo com
uma covinha profunda combinando com o rosto meditativamente bonito. Era a
versão, do tamanho de uma carteira, do que parecia uma fotografia tirada para a
pasta de um ator ou modelo fotográfico. Perguntei se era o caso, e Melanie
confirmou, dando o nome de um fotógrafo muito conhecido que fizera o
trabalho. Eu observei;
— Ele parece o próprio Heatchcliff, personagem do livro "O Morro dos Ventos
Uivantes" — e ela fez um sinal afirmativo com a cabeça, orgulhosa.
Olhamos juntas as outras fotos, que mostravam três crianças em vários
estágios de desenvolvimento: engatinhando, dando os primeiros passos, apagando
velinhas de aniversário. Esperando ver uma foto de Sean menos posada,
comentei que ele não estava em nenhuma das fotos com as crianças.
— Não, ele sempre tira as fotos. Ele tem um bom conhecimento de fotografia,
como também de representação e arte em geral.
— Ele trabalha em algum desses campos, agora? — perguntei a Melanie.
— Bem, não. Sua mãe lhe mandou dinheiro, e assim ele foi para Nova York de
novo, para ver que oportunidades pode ter lá.
Dada sua lealdade a Sean, esperava que Melanie se mostrasse esperançosa por
causa daquela corrida a Nova York. Um vez que
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isso não acontecia, insisti nos motivos e ouvi os primeiros sinais de queixa:
— O problema não é nosso casamento. É a mãe dele. Ela continua mandando
dinheiro para ele. Todas as vezes que ele está perto de ajeitar-se conosco ou
fixar-se num emprego, para variar, ela manda um cheque e ele se vai. Ela não
consegue dizer não a ele. Se ao menos parasse de lhe mandar dinheiro,
ficaríamos bem.
— O que acontecerá se ela nunca parar?
As lágrimas apareceram no rosto de Melaine.
— Então, Sean terá que se modificar. Farei com que ele veja como está nos
machucando. Ele terá que recusar o dinheiro quando ela lhe oferecer.
— Isso não parece provável, pelo que você me diz. Sua voz se ergueu e ficou
mais determinada.
— Ela não vai destruir tudo. Ele mudará.
Melanie topou com uma folha especialmente grande, e chutou-a à sua frente,
despedaçando-a.
Esperei por alguns momentos e então perguntei:
— Há algo mais?
Ainda chutando as folhas, Melanie respondeu:
— Ele tem ido a Nova York muitas vezes, e há uma pessoa que ele vê quando
está lá.
— Outra mulher? — perguntei, e Melanie desviou o olhar conforme fez um
gesto afirmativo com a cabeça. — Há quanto tempo ele está envolvido?
— Ah, na verdade há anos. Começou com a minha primeira gravidez. Eu
quase não o culpei. Eu estava tão doente e acabada, e ele estava tão longe!
Surpreendentemente, Melanie assumiu a culpa pela infidelidade de Sean,
como também o peso de sustentar a ele e às crianças, enquanto ele se metia com
carreiras variadas. Perguntei se alguma vez já pensara em divórcio.
— De fato, nós realmente nos separamos certa vez. É bobagem falar assim,
pois estamos separados todo o tempo, saindo como ele sai. Mas, certa vez, disse
que queria a separação, mais para dar-lhe
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uma lição, e dessa forma ficamos afastados por quase seis meses. Ele ainda
me telefonava, e eu mandava dinheiro quando ele precisava, enquanto esperava
por uma oportunidade, até que a chance se perdia. Mas, na maioria das vezes,
éramos cada um por si. Eu até conheci dois outros homens!
Melanie surpreendia-se que outros homens estivessem interessados nela. Disse,
intrigada:
— Os dois eram bons com as crianças, e ambos queriam ajudar-me com os
problemas de casa, consertando o que precisava de reparo e até me comprando
coisinhas de que eu precisava. Foi muito bom ser tratada daquela forma. Mas, de
minha parte, nunca houve algum sentimento mais profundo. Jamais conseguiria
sentir algo como a atração que ainda sentia por Sean. Assim, acabei voltando
para ele. — Sorriu maliciosamente. — E tive que explicar a ele por que as coisas
em casa estavam em tão perfeito estado.
Estávamos na metade do caminho e eu queria saber mais a respeito da
infância de Melanie, para entender as experiências que a prepararam para a
opressão de sua situação atual.
— Quando você pensa em si mesma quando criança, o que você vê? —
perguntei. Seu olhar divagou um certo tempo, depois ela começou a contar:
— Ah, é engraçado! Vejo-me com meu avental, em cima de um banquinho
na frente do fogão, mexendo um caldeirão. Eu era a filha do meio, entre cinco, e
tinha quatorze anos quando minha mãe morreu, mas comecei a cozinhar e
limpar muito antes disso, porque ela andava muito doente. Após algum tempo,
ela nunca mais saiu do quarto do fundo. Meus dois irmãos mais velhos
arrumaram um emprego após saírem da escola para nos ajudar, e eu me
transformei em mãe de todos. Minhas duas irmãs eram três e cinco anos mais
novas que eu, assim era meu dever fazer quase tudo em casa. Mas conseguimos
nos arranjar. Papai trabalhava e fazia as compras. Eu cozinhava e limpava.
Fazíamos tudo que podíamos. O dinheiro era sempre escasso, mas conseguíamos
fazer com que desse. Papai trabalhava intensamente, com freqüência em dois
empregos. Dessa forma, ficava fora de casa a maior parte do tempo. Acho que
ficava
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fora em parte porque precisava, e em parte para evitar minha mãe. Todos nós
evitávamos mamãe tanto quanto possível. Ela era uma pessoa muito difícil. Meu
pai casou-se novamente quando eu estava no colegial. Imediatamente, as coisas
tornaram-se mais fáceis, pois sua nova esposa também trabalhava e tinha uma
filha da mesma idade da minha irmã mais jovem, que na época tinha doze anos.
Tudo se combinava. Dinheiro não era mais um grande problema. Papai estava
muito mais feliz. E realmente, pela primeira vez, tínhamos o suficiente para as
necessidades básicas.
— O que você sentiu com a morte de sua mãe?
— A pessoa que morreu já não era mais minha mãe há muitos anos. Era outra
pessoa, alguém que dormia ou gritava e criava problemas. Eu me lembro dela
quando ainda era minha mãe, mas vagamente. Tenho que retornar bastante no
tempo para me lembrar de uma pessoa que era meiga e doce e que costumava
cantar enquanto trabalhava ou brincava conosco. Sabe, ela era irlandesa, e
cantava canções melancólicas... De qualquer forma, acho que ficamos aliviados
quando finalmente ela morreu. Mas eu me senti culpada também, porque achava
que, se talvez eu a tivesse entendido melhor ou me importado mais, ela não teria
ficado tão doente. Procuro evitar de pensar nisso.
Estávamos nos aproximando do local aonde eu me dirigia, e, nos poucos
momentos que nos restavam, esperava ajudar Melanie a perceber ao menos
vagamente a origem de seus problemas no presente. — Você percebe alguma
semelhança entre sua vida quando criança e agora? — perguntei.
Ela deu uma risada um pouco forçada.
— Mais do que nunca. Vejo como ainda estou esperando que Sean venha para
casa, exatamente como esperava por meu pai quando ele sumia, e percebo que
nunca culpo Sean pelo que está fazendo, porque misturo em minha cabeça suas
saídas de casa com as saídas de meu pai para poder cuidar de todos nós. Sei que
são coisas diferentes, e mesmo assim sinto-me igual, como se eu devesse me
esforçar para melhorar as coisas.
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Ela fez uma pausa e prosseguiu:
— Ah, eu ainda sou a corajosa menina Melanie, não deixando as coisas
desabarem, mexendo o caldeirão no fogão, cuidando das crianças. — Sua alvas
bochechas ficaram rosadas com o choque da percepção. — Então é verdade o
que você disse na palestra a respeito de crianças como eu fui. Nós realmente
encontramos pessoas com quem podemos desempenhar os mesmos papéis de
quando estávamos crescendo!
Ao nos despedirmos, Melanie abraçou-me com força e disse:
— Obrigada por me ouvir. Acho que eu só precisava falar um pouco sobre o
assunto. E eu agora entendo melhor, mas não estou preparada para abandonar
tudo, não ainda! — Seu espírito estava obviamente mais iluminado, como ela
mesma disse, o queixo para cima novamente: — Além disso, Sean precisa
apenas crescer. E ele tem que crescer, você não acha?
Sem esperar por uma resposta, virou-se e, a passos longos, atravessou o
caminho de folhas caídas.
O interior de Melanie, na verdade, aprofundara-se, mas muitas outras
semelhanças entre sua infância e sua vida atual permaneceram fora de seu
conhecimento.
Por que uma jovem mulher brilhante, atraente, cheia de energia e capaz como
Melanie necessitava de um relacionamento tão cheio de dor e de opressão como
o que mantinha com Sean? Por que para ela e para outras mulheres que
cresceram em lares profundamente infelizes, em que a carga emocional era
pesada demais e as responsabilidades grandes demais, o que parece bom e o que
parece ruim confundiram-se e emaranharam-se e, finalmente, tornaram-se uma
só coisa?
Por exemplo, na casa de Melanie, a atenção dos pais era desprezível devido à
desorientação geral dos membros da família, na medida em que eles tentavam-
se adaptar-se à personalidade desintegradora da mãe. Os esforços heróicos de
Melanie para lidar com os serviços de casa eram recompensados com a coisa
mais próxima de amor que ela experimentaria: a grata dependência de seu pai
com
88
relação a ela. Os sentimentos de medo e de ser sobrecarregada, que seriam
naturais numa criança em tais circunstâncias, eram obscurecidos pelo senso de
competência, que cresceu fora das necessidades de ajuda de seu pai e da
inadequação de sua mãe. Carga violenta para uma criança, ser tratada com mais
rigor que um dos pais e ser indispensável ao outro! Esse papel na infância formou
sua identidade como sendo a salvadora, que podia sair da dificuldade e do caos,
resgatando as pessoas a seu redor através de sua coragem, de sua força e de sua
predisposição invencível.
Esse complexo de salvadora parece mais saudável do que é. Enquanto ter
força numa crise é louvável, Melanie, como outras mulheres de passados
semelhantes, precisava da crise para sobreviver. Sem tumulto, tensão, ou uma
situação desesperadora para controlar, os sentimentos enterrados de infância, de
ser oprimida emocionalmente, viriam à tona e tornar-se-iam ameaçadores
demais. Quando criança, Melanie foi a ajudante de seu pai, assim como mãe
para os outros filhos. Mas ela era também uma criança que precisava dos pais, e,
uma vez que sua mãe estava psicologicamente perturbada e seu pai inacessível
demais, suas próprias necessidades não foram satisfeitas. Os outros filhos tinham
Melanie para incomodá-los, preocupar-se com eles, cuidar deles. Melanie não
tinha ninguém. Não estava apenas sem uma mãe, tinha também que aprender a
pensar e agir como adulta. Não havia lugar e nem tempo para expressar seu
próprio pânico, e, logo, ela começou a encarar como sendo normal a falta de
oportunidade para se deixar levar por emoções. Imaginava que, fingindo ser uma
pessoa crescida, conseguiria esquecer que era uma criança amedrontada. Em
pouco tempo, Melanie não apenas sobrevivia no caos, mas, na verdade, exigia de
si mesma essa sobrevivência. O peso que ela carregava ajudava a evitar sua
própria dor e pânico. Ele a afundava e aliviava ao mesmo tempo.
Mais que isso, o senso de valia que ela desenvolveu foi o resultado de carregar
responsabilidades que estavam muito além de sua capacidade como criança. Ela
tinha aprovação através do esforço, cuidando de outros e sacrificando seus
próprios desejos e necessi-
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dades pelos desejos e necessidades deles. Assim, o martírio também tornou-se
parte de sua personalidade e combinou com seu complexo de salvadora,
transformando-a numa espécie de ímã para alguém que atraísse problema,
alguém como Sean. É útil que recapitulemos alguns aspectos importantes do
desenvolvimento da criança, para que entendamos melhor as forças que atuam
na vida de Melanie, pois, devido às circunstâncias incomuns de sua infância, o
que seriam de outra forma sentimentos e reações normais tornaram-se
perigosamente exagerados em Melanie.
Para crianças que crescem numa família estruturada, é natural alimentar
fortes desejos de livrar-se do pai ou da mãe para ter o outro só para si. Os
garotinhos desejam ardentemente que o papai desapareça para poderem ter todo
o amor e atenção da mamãe. E as garotinhas sonham em substituir sua mãe
como esposa do papai. Muitos pais já receberam "propostas" de seus filhos do
sexo oposto que expressam esse desejo: Um garoto de quatro anos diz à mamãe:
"Quando eu crescer, vou casar com você, mamãe". Ou uma garota de três anos
diz a seu pai: "Papai, vamos ter nossa própria casa juntos, sem mamãe". Esses
desejos, muito normais, refletem alguns sentimentos mais fortes que uma
criança pequena experimenta. Ainda assim, se algo realmente acontece ao rival
invejado, resultando no dano ou ausência daquele membro da família, o efeito na
criança é devastador.
Quando a mãe em uma família é perturbada psicologicamente, se possui uma
doença física crônica, se é viciada em álcool ou em drogas (ou se é ausente
física ou emocionalmente por qualquer outro motivo), então a filha
(normalmente a mais velha, se há duas ou mais) é quase invariavelmente eleita
para preencher a posição vaga devido à doença ou ausência da mãe. A história
de Melanie exemplifica os efeitos de tal "promoção" sobre uma garotinha.
Devido à presença da doença mental debilitante em sua mãe, Melanie tornou-se
herdeira da posição de dirigente feminina da casa. Durante os anos em que sua
própria identidade estava se formando, ela foi, em muitos aspectos, mais
companheira de seu pai do que filha dele. Quando discutiam e resolviam os
problemas da casa, agiam como
90
se fossem casados. De certa forma, Melanie teve o pai só para si, porque o
relacionamento que tinha com ele era profundamente diferente do que seus
irmãos tinham. Ela era quase que rival dele. Ela também foi, por muito anos,
muito mais forte e mais estável que sua mãe doente. Isso significava que os
desejos normais de infância de Melanie de ter o pai só para si foram realizados,
mas às custas da saúde de sua mãe e, finalmente, da vida de sua mãe.
O que acontece quando se concretizam os primeiros desejos de infância de
ver-se livre do genitor do mesmo sexo e obter só para si o genitor do sexo oposto?
Há três conseqüências que são extremamente poderosas, determinantes da
personalidade, e que operam inconscientemente.
A primeira é culpa.
Melanie sentiu-se culpada quando recordou o suicídio de sua mãe e seu
fracasso em evitá-lo, o tipo de culpa que qualquer membro da família sente
naturalmente diante de tal tragédia. Em Melanie, essa culpa consciente era
exacerbada por seu senso superdesenvolvido de responsabilidade pelo bem-estar
de todos os membros da família. Mas, em adição a essa carga pesada de culpa
consciente, ela carregava um fardo ainda maior.
A realização de seus desejos de infância de ter o pai só para si produziu em
Melanie uma culpa inconsciente, além da culpa consciente que sentia por não ter
evitado que a mãe doente psicologicamente cometesse suicídio. Isso, por sua vez,
gerou uma queda por compensação, uma necessidade de sofrer e suportar a
opressão como castigo. Essa necessidade, combinada com a familiaridade de
Melanie com o papel de mártir, criou nela algo perto do masoquismo. Havia
conforto, senão prazer real, em seu relacionamento com Sean, com toda a dor e
solidão inerentes e a responsabilidade opressiva.
A segunda conseqüência são os sentimentos inconscientes de desconforto com
as implicações sexuais de ter para si o pai desejado. Normalmente, a presença
da mãe (ou, nesses dias de freqüentes divórcios, de uma outra companheira ou
parceira sexual para o pai, como uma madrasta ou uma namorada) traz
segurança tanto para o
91
pai como para a filha. A filha está livre para desenvolver uma sensação de si
mesma de ser atraente e amada aos olhos do pai, enquanto está protegida da
manifestação pública dos impulsos inevitavelmente gerados entre eles, através da
força do laço dele com uma mulher adulta apropriada.
Um relacionamento incestuoso não se desenvolveu entre Melanie e seu pai,
mas, dadas as circunstâncias, certamente poderia desenvolver-se. A dinâmica
atuante naquela família está freqüentemente presente quando um
relacionamento incestuoso se desenvolve entre pais e filhas. Quando a mãe, por
qualquer motivo, abdica de seu papel apropriado como parceira de seu marido e
mãe de seus filhos, e faz com que uma das filhas tome seu lugar, está forçando
sua filha não apenas a assumir suas responsabilidades, mas também a correr o
risco de tornar-se o objeto das investidas sexuais do pai. (Enquanto isso faz
parecer que toda a responsabilidade é da mãe, na verdade é sempre total
responsabilidade do pai, se o incesto ocorre. Isso porque, como adulto, é
obrigação dele proteger sua filha, ao invés de usá-la para sua satisfação sexual.)
Além do mais, mesmo que o pai nunca se aproxime da filha sexualmente, a
falta de um laço matrimonial forte entre os pais e a suposição da filha de seu
papel de mãe na família ajudam a aumentar os sentimentos de atração sexual
entre pai e filha. Devido ao relacionamento íntimo, a filha fica
inconfortavelmente ciente de que o interesse especial de seu pai por ela tem, até
certo ponto, implicações sexuais. Ou a disponibilidade emocional incomum do
pai faz com que a filha direcione para ele seus sentimentos sexuais que estão
brotando, mais do que direcionaria sob circunstâncias normais. Num esforço de
evitar a violação, mesmo em pensamento, do poderoso tabu do incesto, ela pode
se insensibilizar a grande parte de seus sentimentos sexuais ou a todos eles. A
decisão de fazer isso é, novamente, inconsciente, uma defesa contra o impulso
mais ameaçador de todos, atração sexual por um dos pais. Porque a decisão é
inconsciente, não é facilmente examinada e modificada.
O resultado é uma jovem mulher que possivelmente se sentirá desconfortável
com qualquer sentimento sexual, por causa da viola-
92
ção inconsciente do tabu relacionada a esse sentimento. Quando isso acontece,
o cuidado excessivo possivelmente será a única expressão segura de amor.
A primeira forma de Melanie relacionar-se com Sean foi sentindo-se
responsável por ele. Essa forma tornara-se há muito tempo seu jeito de sentir e
expressar amor.
Quando Melanie tinha dezessete anos, seu pai "substituiu-a" por sua nova
mulher, um casamento que ela aparentemente recebeu com alívio. Sentiu tão
pouca amargura pela perda de sua função em casa provavelmente devido, em
grande parte, ao aparecimento de Sean e seus colegas, para quem ela
desempenhava muitas das mesmas funções que desempenhara previamente em
casa. Se aquela situação não se transformasse em casamento entre Sean e ela,
Melanie provavelmente enfrentaria uma profunda crise de identidade. Como isso
ocorreu, ela ficou imediatamente grávida, recriando assim sua função de babá,
enquanto Sean cooperava começando, como o fez seu pai, a ficar ausente a
maior parte do tempo.
Ela mandou dinheiro para ele mesmo quando estavam separados, competindo
com a mãe de Sean para ser a mulher que melhor cuidava dele. (Era uma
competição em que ela já ganhara de sua própria mãe, no relacionamento com
seu pai.)
Durante a separação de Sean, quando apareciam homens em sua vida que não
exigiam seus cuidados maternos, e que de fato tentavam reverter os papéis,
oferecendo a ela mais ajuda de que precisava, ela não conseguia relacionar-se
emocionalmente com eles. Somente sentia-se confortável na posição de zelosa.
A dinâmica sexual do relacionamento de Melanie com Sean nunca
proporcionara um laço tão forte entre eles quanto a necessidade dele de seus
cuidados. De fato, a infidelidade de Sean simplesmente ofereceu a Melanie uma
outra reflexão de suas experiências de infância. Por causa da doença mental
avançada, a mãe de Melanie tornou-se "outra mulher", cada vez mais vaga e
raramente visível, no quarto do fundo da casa, removida emocional e
fisicamente da vida e dos pensamentos de Melanie. Esta conseguia relacionar-se
com sua mãe mantendo distância e não pensando nela. Mais tarde,
93
quando Sean tinha um outro interesse amoroso, aquela mulher também era
vaga e estava longe; não era tida como uma ameaça real, mas como uma
parceira de certa forma assexuada. Vale lembrar que o comportamento de Sean
havia tido precedentes. Antes de se casarem, o padrão de vida que estabelecera
era o de procurar a companhia de outras mulheres, enquanto permitia que
Melanie cuidasse de seus interesses mais práticos e menos românticos. Melanie
sabia daquilo e mesmo assim casou-se com ele.
Após o casamento, ela iniciou uma campanha para mudá-lo através de sua
força de vontade e de seu amor. O que nos leva à terceira conseqüência da
realização de Melanie dos desejos e fantasias de infância: sua crença na própria
onipotência.
Crianças normalmente acreditam em si próprias, em seus pensamentos e em
seus desejos como sendo magicamente poderosos, a ponto de causar todos os
acontecimentos significativos de sua vida. Comumente, no entanto, embora uma
garotinha deseje apaixonadamente ser a parceira de seu pai, a realidade lhe
ensina que ela não pode. Dessa forma ou não, ela finalmente aceita o fato de que
a parceira do pai é a mãe. É uma grande lição de vida, a de que ela nem sempre
pode concretizar, através de sua força de vontade, o que mais quer. Na verdade,
essa lição colabora bastante para desfazer a crença em sua própria onipotência, a
ajuda a reconhecer as limitações de seu desejo pessoal.
No caso da jovem Melanie, entretanto, aquele forte desejo tornou-se
realidade. Ela realmente substituiu a mãe por muitos anos. Aparentemente por
meio das forças mágicas de seus desejos e vontades, ela teve o pai só para si.
Então, com uma crença destemida na sua força de vontade de concretizar o que
desejava, ela era atraída para outras situações difíceis e psicologicamente
carregadas, que também tentava mudar magicamente. Os desafios que ela mais
tarde enfrentou submissamente, munida somente de sua força de vontade — um
marido irresponsável, imaturo e infiel, o peso de educar três crianças, realmente
sozinha, problemas sérios de dinheiro, e um programa acadêmico exigente,
conjugado com emprego de período integral —, são testemunhos disso.
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Sean proporcionou a Melanie uma completa derrota no que diz respeito a seus
esforços de mudar uma pessoa através da mera vontade, e satisfez as outras
necessidades criadas por sua função pseudo-adulta quando criança, dando a ela
ampla oportunidade de sofrer e suportar, e de evitar a sexualidade enquanto
exercia sua preferência por cuidados.
Deveria estar claro, a esta altura, que Melanie não era de forma alguma uma
vítima desafortunada de um casamento infeliz. Muito pelo contrário. Ela e Sean
satisfizeram todos os desejos psicológicos mais profundos um do outro. Era um
ajustamento perfeito. O fato de os oportunos presentes financeiros da mãe dele
bloquearem convenientemente qualquer tendência ao seu crescimento e
maturidade, era certamente um problema para o casal, mas não o problema,
como Melanie preferiu enxergar. O que estava realmente errado era o fato de ali
estarem duas pessoas cujos insalubres padrões de vida e atitudes em relação ao
mundo, embora diferentes, se entrosavam tão bem, na verdade, que
possibilitavam um ao outro permanecer nessa insalubridade.
Imagine os dois, Sean e Melanie, como dançarinos num mundo em que todos
são dançarinos e crescem aprendendo sua rotina individual. Devido a
acontecimentos e personalidades específicos e, mais que tudo, ao aprender as
danças que foram executadas por eles durante a infância, Sean e Melanie
desenvolveram separadamente um único repertório de passos, movimentos e
gestos psicológicos.
Então, certo dia, encontraram-se e descobriram que suas danças parecidas,
quando executadas juntas, sincronizavam-se magicamente numa dupla
extraordinária, num pas-de-deux perfeito de ação e reação. Cada movimento
realizado por um era correspondido pelo outro, resultando numa coreografia que
permitia às suas danças unidas fluírem ininterruptamente, em pêndulo.
Todas as vezes que ele abandonava uma responsabilidade, ela a tomava
imediatamente para si. Quando ela assumiu toda a carga familiar de educar a
família, ele caiu fora, dando a ela bastante espaço para desempenhar sua tarefa
com zelo. Quando procurava na pista uma outra companhia feminina, ela
suspirava aliviada e dan-
95
çava mais rápido para distrair-se. Enquanto ele dançava para fora da pista, ela
realizava um perfeito passo de espera. Em pêndulo... Para Melanie, a dança
podia ser excitante algumas vezes, e com mais freqüência uma dança solitária;
ocasionalmente, embaraçosa ou exaustiva. Mas a última coisa que queria era
parar com a dança que conhecia tão bem. Os passos, os movimentos, tudo
parecia tão certo que deu à dança o nome de amor.
96
5. Vamos dançar?
Uma resposta melhor seria que as ações dele e nossas reações, seus
movimentos e os nossos não se combinavam numa perfeita dupla. Embora seja
agradável, tranqüilizante, interessante e assegurador estar na companhia dele, é
difícil para nós considerar esse tipo de relacionamento importante e válido
desenvolvendo-se num nível mais sério. Ao invés disso, tal homem é
rapidamente renunciado ou ignorado, ou, na melhor das hipóteses, relegado à
categoria de "apenas um amigo", porque ele fracassou em causar em nós o
disparo do coração e o embrulho no estômago que chamamos de amor.
Às vezes, esses homens permanecem na categoria "amigo" por muitos anos,
encontrando-se conosco de vez em quando para tomar um aperitivo e enxugando
nossas lágrimas enquanto contamos a última traição, o último rompimento ou a
última humilhação por que passamos no atual relacionamento. Esse tipo de
homem solidário, compreensivo, simplesmente não pode oferecer-nos o drama,
a dor ou a tensão que parecem tão hilariantes e tão corretos. Isso acontece
porque, para nós, o que deveria parecer errado parece correto, e o que deveria
parecer correto parece estranho, suspeito e desconfortável. Nós aprendemos, por
associação distante e aproximada, a preferir a dor. O homem mais saudável e
mais amável não conseguirá desempenhar um papel importante em nossa vida
até que aprendamos a abandonar a necessidade de continuar revivendo o velho
conflito.
Uma mulher com um passado mais saudável tem reações e,
conseqüentemente, relacionamentos bem diferentes, porque o conflito e o
sofrimento não lhe são tão familiares, não fazem tanta parte de sua história e,
dessa forma, não são tão confortáveis. Se, ao estar com um homem, sente-se
desconfortável, ferida, preocupada, desapontada, zangada, enciumada ou, ainda,
de qualquer outra forma emocionalmente triste, ela classificará essa experiência
como desagradável e repulsiva, algo para ser evitado ao invés de perseguido. Por
outro lado, ela perseguirá um relacionamento que ofereça cuidados, conforto e
companheirismo, pois parece algo correto para ela. Seria seguro dizer que a
atração entre duas pessoas que têm a capa-
120
cidade de construir um relacionamento gratificante, baseado na troca de
reações saudáveis, enquanto talvez fortes e excitantes, nunca é tão chamativa
quando a atração entre uma mulher que ama demais e o homem com quem ela
pode "dançar".
121
as coisas usadas e gastavam meu dinheiro com seus próprios filhos. Enquanto
eu falava, ela apertou minha mão com bastante força e a acariciou, e até ficou
com lágrimas nos grandes olhos castanhos. Ao nos despedirmos naquela noite, eu
estava apaixonado. Meu companheiro queria contar-me cada detalhe de sua
grande conquista com a loira e eu nem mesmo queria escutar. Mônica dera-me
seu endereço e número de telefone, e logicamente eu iria telefonar para ela no
dia seguinte, mas, quando estávamos saindo da cidade, fomos parados pelos tiras
porque o carro era roubado. Só conseguia pensar em Mônica. Estava certo de
que era o fim de tudo, pois dissera a ela o quanto estava me esforçando para me
limpar e comportar-me direito.
Quando retornei ao Y. A., decidi arriscar e escrever para ela. Disse que estava
cumprindo pena novamente, mas por algo que eu não fizera; disse que os tiras
me prenderam porque eu tinha passagem na polícia e eles não gostaram de mim.
Mônica respondeu à carta imediatamente e simplesmente continuou escrevendo-
me quase todos os dias nos dois anos seguintes. Tudo que escrevíamos era o
quanto estávamos apaixonados, o quanto sentíamos falta um do outro, e o que
faríamos juntos quando eu saísse.
Sua mãe não deixou que ela me encontrasse em Stockton quando fui solto.
Então tomei um ônibus de volta para San José. Eu estava muito entusiasmado
para vê-la novamente, mas realmente amedrontado também. Acho que tinha
medo que ela não me quisesse, apesar de tudo. Então, ao invés de ir vê-la
imediatamente, visitei alguns companheiros e uma coisa levou à outra.
Começamos a badernar e, quando finalmente levaram-me para a casa de
Mônica, quatro dias já haviam se passado. Eu estava bastante quebrado. Tivera
que me chumbar apenas para criar coragem de vê-la, pois estava com muito
medo que ela dissesse para eu me danar.
Graças a Deus, sua mãe estava no serviço quando os rapazes descarregaram-
me na calçada. Mônica saiu sorrindo, de tão feliz que estava em ver-me, embora
não ouvisse falar de mim desde que eu chegara à cidade. Lembro-me que
demos um outro daqueles grandes passeios naquele dia, uma vez que eu não
estava tão alto. Eu
132
não tinha dinheiro para levá-la a nenhum lugar, e também não tinha carro,
mas ela não pareceu se incomodar, nem naquele dia, nem nunca.
Por um bom tempo não fiz nada de errado na frente de Mônica. Ela
desculpava-se por tudo o que eu fazia e o que não fazia. Por anos seguidos entrei
e saí de cadeias e de prisões, e ela ainda casou-se comigo e ficou junto de mim.
Seu pai desertara da família quando ela era apenas uma garotinha. Sua mãe
ficou realmente amargurada com aquilo, e ela não gostava muito de mim,
também. De fato, isso foi o motivo por que eu e Mônica nos casamos. Certa vez,
quando fui pego por cheque frio e falsificação, a mãe de Mônica não a deixou
ver-me quando eu já estava livre, após pagar a fiança. Então, fugimos juntos e
nos casamos. Mônica tinha dezoito anos na época. Vivemos um tempo num hotel,
até meu julgamento. Ela trabalhava como garçonete, mas desistiu para poder ir à
corte todos os dias durante o julgamento. Depois, logicamente, eu fui preso, e
Mônica saiu de casa e mudou-se para a cidade mais próxima da prisão, e
começou a trabalhar de garçonete novamente. Era uma cidade de universitários
e eu sempre desejei que ela voltasse para a escola; ela gostava realmente da
escola, e era muito inteligente. Mas ela dizia que não queria voltar, queria apenas
esperar por mim. Escrevia-me e vinha visitar-me tanto quanto eles permitiam.
Falou bastante com o carcereiro a meu respeito e pedia a ele que conversasse
comigo e me ajudasse, até que finalmente pedi que ela não fizesse mais aquilo.
Eu odiava falar com aquele homem. Simplesmente não conseguia me relacionar
com ele.
Embora ela me visitasse, continuava escrevendo, também, e enviava-me
livros e artigos sobre como me aperfeiçoar. Dizia-me constantemente que rezava
para que eu me modificasse. Eu queria ficar fora da prisão, mas cumpria pena
há tanto tempo que era tudo o que eu sabia fazer.
Bem, no final, uma luz acendeu-se sobre minha cabeça e envolvi-me num
programa para ajudar-me a conviver no mundo lá fora. Freqüentei a escola
enquanto estive preso e aprendi a fazer alguma coisa, Depois, terminei o colégio
e iniciei meu estudo universitário.
133
Quando saí da prisão, de certa forma fiquei longe de confusão e continuei
meus estudos, até que finalmente consegui o diploma universitário na área de
serviço social. Mas, pelo caminho, perdi minha esposa. Inicialmente, quando
discutíamos de verdade para continuar o relacionamento, estávamos bem, mas
conforme as coisas ficaram mais fáceis e começamos a conseguir tudo por que
sempre esperáramos, Mônica tornou-se mais zangada do que eu jamais a vira
em todos aqueles anos, com todos aqueles problemas. Ela deixou-me
simplesmente quando podíamos ter sido mais felizes. Eu nem sei onde ela está
agora. A mãe dela recusa-se a me contar e eu finalmente decidi que não a
procuraria, uma vez que ela não queria ficar comigo. Às vezes penso que, para
Mônica, era muito mais fácil amar uma idéia de mim que me amar em pessoa.
Estávamos muito apaixonados quando quase nunca estávamos juntos, quando
tudo o que tínhamos eram cartas e visitas e o sonho do que teríamos algum dia.
Quando comecei a fazer o que desejáramos como realidade, o nosso
relacionamento acabou. Quanto mais nos tornávamos pessoas comuns, menos
ela gostava. Acho que ela não conseguia mais sentir pena de mim.
A atração de Russell por Mônica
Nada no passado de Russel preparou-o para estar presente emocionalmente ou
mesmo fisicamente para uma outra pessoa num relacionamento de amor, num
relacionamento comprometido. Boa parte de sua vida ele estivera ativamente
procurando um sentimento de força e segurança, escapando ou envolvendo-se
em fugas perigosas. Através daquelas atividades altamente dispersivas e
geradoras de tensão, ele procurou evitar seu próprio desespero. Ele usava o
envolvimento com o perigo para evitar sentir a dor e o desamparo por ter sido
abandonado emocionalmente pela mãe.
Quando ele conheceu Mônica, ficou encantado pela aparência suavemente
atraente e a atitude terna dela para com ele. Ao invés de rejeitá-lo por ser "mau",
ela reagiu aos problemas dele com um interesse sincero e uma compaixão
profunda. Imediatamente ela
134
passou a informação de que estava disposta a ajudá-lo, e pouco tempo depois
ele testou sua força persistente. Quando ele desapareceu, Mônica reagiu
esperando pacientemente. Ela parecia possuir amor, estabilidade e tolerância
suficientes para lidar com qualquer coisa que Russell fizesse. Embora parecesse
que Mônica possuía bastante tolerância por Russell e pelo comportamento dele,
na realidade era exatamente o oposto. O que nenhum desses jovens percebeu
conscientemente foi que ela conseguiria estar presente para ele apenas enquanto
ele não estivesse presente para ela. Enquanto estava separado dela, Russell viu
em Mônica a parceira perfeita, a mulher ideal de um prisioneiro. De bom grado,
ela passou a vida esperando e desejando que ele se modificasse e que, então,
pudessem ficar juntos. Mulheres de prisioneiros, como Mônica, representam
talvez o maior exemplo de mulheres que amam demais. Porque são incapazes de
qualquer grande intimidade com um homem, escolhem viver uma fantasia, um
sonho de como amarão e serão amadas algum dia, quando seus parceiros se
modificarem e tornarem-se acessíveis a elas. Mas conseguem ser íntimas apenas
na fantasia.
Quando Russell conseguiu o que era quase impossível e começou a comportar-
se direito e a não ir mais para a cadeia, Mônica foi para longe dele. Tê-lo
presente na vida exigia que ela tivesse um grau de intimidade ameaçador;
deixava-a muito mais incomodada que a ausência dele. E a realidade do dia-a-
dia com Russell também jamais conseguiria competir com a visão idealizada de
amor mútuo que ela alimentara. Há um ditado entre os sentenciados que diz que
todos eles têm seus Cadillacs estacionados esperando por eles, significando que
eles alimentam uma versão excessivamente idealizada do que a vida será para
eles quando estiverem de volta nas ruas. Na imaginação das mulheres de
prisioneiros, como Mônica, o que está provavelmente estacionado não é o
Cadillac, simbolizando dinheiro e poder, mas uma carruagem puxada por seis
cavalos brancos, representando magicamente o amor romântico. O sonho delas é
a forma como amarão e serão amadas. Juntamente com os maridos
sentenciados, elas normalmente acham mais fácil viver com o
135
do nada parecido com o que consumira todas aquelas noites sozinho em frente
à televisão, não perdia peso. Permaneci exatamente como estava, nem mais
gordo nem mais magro. E digo mais, Nancy esforçava-se muito mais que eu
para eu conseguir perder aquele peso. Ambos agíamos como se fosse seu
objetivo, sua responsabilidade melhorar-me.
Na verdade, acho que possuo um metabolismo que requer exercícios vigorosos
para queimar as calorias eficientemente, e eu absolutamente não fazia muito
exercício. Nancy jogava golfe e eu jogava com ela um pouquinho, porém não
era meu esporte favorito.
Após estarmos juntos por cerca de oito meses, fiz uma viagem de negócios de
volta a Evanston, minha cidade natal. Logicamente, após estar lá há dois dias, fui
à casa de dois amigos da época do colégio. Não tinha vontade de ver ninguém,
com a aparência que eu estava, mas aqueles rapazes eram velhos amigos e
tínhamos muito o que conversar. Ficaram surpresos ao saber do meu divórcio.
Minha esposa também era daquela cidade. De qualquer forma, insistiram para
que eu jogasse uma partida de tênis. Sabiam que era meu esporte favorito desde
o colégio. Não pensava que pudesse chegar ao final de uma simples partida, mas
eles insistiram.
Foi muito bom jogar novamente, mesmo com os pontos de vantagem
desanimando-me, e mesmo perdendo todas as partidas. Disse a eles que voltaria
no próximo ano e daria uma surra nos dois.
Quando cheguei em casa, Nancy falou-me que ela fora a um seminário ótimo
sobre nutrição e quis que eu tentasse tudo o que ela aprendera de novidade. Eu
disse que não, que iria fazer as coisas do meu próprio jeito por uns tempos.
Veja bem, Nancy e eu nunca brigamos. Claro, ela aborrecia-me um bocado e
estava constantemente em cima de mim, para melhor cuidar de mim, mas foi a
partir do momento que voltei a jogar tênis que eu e ela começamos a brigar. Eu
jogava por volta do meio-dia, de forma a não interferir com o tempo que
passávamos juntos, mas nós nunca mais fomos os mesmos.
Nancy é uma moça atraente, cerca de oito anos mais nova que eu, e, uma vez
que comecei a emagrecer, achei que iríamos nos dar
138
melhor que nunca, pois ela orgulhar-se-ia de mim. Deus sabe como eu me
senti melhor comigo mesmo. Mas as coisas realmente não funcionaram daquela
forma. Ela queixou-se, disse que eu não era mais o mesmo, e no final ela pediu
que eu me mudasse da casa dela. Naquela ocasião, eu estava com apenas três
quilos a mais do que tinha antes do divórcio. Foi realmente difícil, para mim,
deixá-la. Esperava que, no final, nos casaríamos. Mas, uma vez que eu estava
mais magro, ela estava certa, as coisas simplesmente já não eram mais as
mesmas entre nós.
A atração de Tyler por Nancy
Ty ler era um homem de necessidades de dependência marcantes, que foram
agravadas pela crise do divórcio. Sua deterioração quase deliberada, programada
para provocar a pena e a solicitude da esposa, não funcionou com ela, entretanto
atraiu uma mulher que amava demais, que fazia do bem-estar de outra pessoa
seu objetivo de vida. O desamparo dele e a dor, e a vontade dela de ajudar
foram a base da atração mútua.
Ty ler sentia a rejeição da esposa, e uma tristeza profunda pela perda e pelo
fim do casamento. Nesse estado de infelicidade, comum àqueles que lutam para
superar a dor da separação, ele não foi tão atraído por Nancy como pessoa, mas
pelo papel de enfermeira e curandeira que ela representava, e pela cessação da
dor que ela parecia oferecer.
Praticamente da mesma forma que ele utilizara grandes quantidades de
comida para preencher seu vazio e suavizar sua perda, utilizou a solicitude sem
direção de Nancy para dar-lhe uma sensação de segurança emocional e
amparar seu autovalor destruído. Mas a necessidade de Ty ler da atenção total de
Nancy era temporária, uma fase no seu processo de cura. Conforme o tempo
passou, substituindo a obsessão e a pena de si mesmo pela autoafirmação mais
saudável, a superproteção de Nancy, que uma vez fora confortante, tornou-se
enjoativa. Diferente da dependência temporariamente marcante de Ty ler, a
necessidade dela de ser necessária
139
não era uma fase, mas um traço importante em sua personalidade e quase seu
esquema exclusivo de relacionar-se com outra pessoa. Ela era "enfermeira"
tanto no trabalho como em casa. Embora Ty ler ainda fosse um parceiro
razoavelmente dependente mesmo após recuperar-se do choque do divórcio, a
intensidade de sua necessidade de ser pajeado não combinaria com a intensidade
dela de dirigir e controlar a vida de outra pessoa. A saúde de Ty ler, pela qual ela
parecera trabalhar incansavelmente, foi na verdade o toque de morte para o
relacionamento.
Bart: 36 anos; ex-executivo; alcoólatra desde os catorze anos. Sóbrio há dois
anos.
Há cerca de um ano eu estava divorciado e vivendo uma vida de solteiro
quando conheci Rita. Ela era uma garota de aspecto hippie, pernas longas e olhos
escuros, e de início embebedamo-nos juntos muitas vezes. Eu ainda tinha muito
dinheiro, e nós realmente divertimo-nos bastante por um tempo. Mas, você sabe,
Rita nunca foi hippie de verdade. Ela era responsável demais para se soltar
muito. Ela conseguia fumar um pequeno baseado comigo, mas de certa forma
seu passado conservador característico jamais desapareceria totalmente. Mesmo
seu apartamento estava arrumado o tempo todo. Eu tinha a sensação de estar a
salvo com ela, como se ela não fosse me deixar fraquejar demais.
Na primeira noite em que saímos, saboreamos um ótimo jantar e então
voltamos para o apartamento dela. Fiquei realmente bêbado, e acho que perdi a
consciência. De qualquer forma, acordei no sofá, coberto com uma colcha
bonita e macia e minha cabeça estava sobre um travesseiro perfumado, e eu
senti como se tivesse voltado para casa, um porto seguro, sabe? Rita sabia como
cuidar de alcoólatras. Seu pai, um banqueiro, morrera da doença. De qualquer
forma, mudei-me para a casa dela poucas semanas depois, e comportei-me
como o grande negociante trapaceiro nos dois anos seguintes, pelo tempo que
consegui ter sucesso, até que perdi tudo.
Ela desistira de dopar-se após os primeiros seis meses que pas-
140
samos juntos. Acho que ela imaginou que seria melhor permanecer lúcida,
pois eu estava muito alheio. No meio de tudo isso nós nos casamos. Então eu
fiquei realmente amedrontado. Agora eu tinha uma outra responsabilidade, e eu
não me saíra muito bem com responsabilidades. Além do quê, bem na época em
que nos casamos, estava perdendo tudo financeiramente. Eu simplesmente não
conseguia mais lidar com nada na situação em que me encontrava, bebendo o
dia todo. Rita não sabia que as coisas estavam tão ruins, porque eu dizia que ia a
uma reunião de negócios de manhã e, ao invés disso, saía da cidade com minha
Mercedes e estacionava ao lado da praia e bebia. Finalmente, quando realmente
não havia mais alicerce nos negócios e eu devia para a cidade toda, não sabia
mais o que fazer.
Saí numa longa viagem, com a intenção de matar-me no meu carro e fazer
tudo parecer um acidente. Mas ela veio à minha procura, encontrou-me num
hotel barato e trouxe-me para casa. Todo o dinheiro acabara-se, mas ela ainda
colocou-me num hospital de tratamento do alcoolismo. E engraçado, mas eu não
fiquei grato. Fiquei zangado, confuso, muito assustado, e totalmente
desinteressado dela sexualmente no primeiro ano de sobriedade. Eu ainda não sei
se conseguiremos conviver, mas, conforme o tempo vai passando, as coisas estão
ficando um pouco melhores.
A atração de Bart por Rita
Quando no primeiro encontro Bart embebedou-se e perdeu os sentidos, Rita,
por achar que ele não devia sofrer, pareceu prometer a ele um descanso de sua
precipitada corrida para a autodestruição. Por algum tempo agiu como se fosse
seu dever protegê-lo da devastação causada pelo próprio vício, salvá-lo discreta e
docemente. Essa atitude aparentemente protetora na verdade serviu para alongar
mais o período em que seu parceiro poderia praticar o vício sem sentir as
conseqüências; amparando-o e confortando-o, ela o ajudava a ficar mais tempo
doente. Um viciado que pratica sua doença não procura por alguém para ajudá-
lo a melhorar, ele
141
procura por alguém com quem possa permanecer doente, sem correr perigo
algum. Rita foi perfeita por um tempo, até que Bart ficou tão doente que mesmo
ela não conseguia desfazer o que ele fazia a si mesmo.
Quando ela foi ao encalço dele e colocou-o num programa hospitalar para
alcoólatras, Bart começou a largar o álcool e a recuperar-se. Entretanto Rita
ficara entre ele e a droga. Ela já não estava mais desempenhando o papel
comum de confortá-lo e fazer tudo dar certo, e ele ressentiu-se com ela pela
traição aparente e também por dar a impressão de ser tão forte quando ela se
sentia tão fraca e desamparada.
Não importa quão mal remendamos a situação, cada um de nós precisa sentir
que somos encarregados de nossa própria vida. Quando alguém nos ajuda,
sempre nos ressentimos com a implicação da superioridade e força daquela
pessoa. Além disso, um homem freqüentemente necessita sentir-se mais forte
que a parceira feminina para sentir-se sexualmente atraído por ela. Nesse caso, a
ajuda que Rita deu a Bart, colocando-o num hospital, apenas tornou claro o
quanto ele estava doente, e o gesto profundamente preocupado dela, portanto,
enfraqueceu, pelo menos por algum tempo, a atração sexual dele por ela.
Além do aspecto emocional, pode haver também um fator psicológico
importante operando nesse contexto, que deveria ser considerado. Quando um
homem consome álcool e outras drogas da forma como Bart consumia, e depois
pára, é provável que sua química corporal leve um ano ou mais para que possa
reagir sexualmente de forma natural, sem a presença da droga em seu sistema.
Durante esse período de ajustamento físico, o casal provavelmente tem uma
dificuldade considerável em compreender e aceitar a falta de interesse dele e/ou
sua incapacidade de operar sexualmente.
O oposto também pode ocorrer. Uma tendência sexual extraordinariamente
forte poderá desenvolver-se no viciado recentemente livre da droga e sóbrio,
talvez devido ao desequilíbrio hormonal. Ou, novamente, o motivo pode ser mais
psicológico. Como diz um
142
jovem, em abstenção de álcool e outras drogas por algumas semanas: "Só
através do sexo fico alto agora". Portanto, o sexo pode ser o substituto do uso da
droga para aliviar a ansiedade característica da sobriedade recente.
A recuperação do vício e do "co-vício" (vício paralelo) é um processo
extremamente complexo e delicado para um casal. Bart e Rita devem sobreviver
àquela transição, embora tenham-se unido inicialmente porque suas doenças do
alcoolismo e do co-alcoolismo os atraíram. Mas, para viver como um casal na
ausência do vício ativo, devem caminhar separadamente por algum tempo, cada
um deles enfocando sua própria recuperação. Cada um deles deve olhar para o
seu interior e abraçar o eu que tanto tentaram evitar, amando um ao outro,
dançando um com o outro.
Greg: 38 anos, livre da bebida e sóbrio há catorze anos, por intermédio dos
Narcóticos Anônimos; atualmente casado e com dois filhos, e trabalhando como
conselheiro de jovens drogrados.
Encontramo-nos no parque certo dia. Ela lia um jornal esquerdista e eu apenas
passeava sem destino certo. Era um sábado de verão, cerca de meio-dia,
bastante quente e quieto.
Eu estava com 22 anos e deixara a faculdade no primeiro ano, mas continuava
com planos para voltar. Fazia aquilo para que meus pais continuassem
mandando-me dinheiro. Eles não conseguiam abandonar o sonho de que eu
terminaria a faculdade e iniciaria uma carreira. Assim, financiaram-me por
bastante tempo.
Alana era bem gorda, cerca de 18 a 22 quilos acima do normal, o que
significava que ela não representava um perigo para mim. Se ela me rejeitasse,
eu não me importaria, porque ela não era perfeita. Comecei a conversar com ela
sobre o que ela lia, e foi fácil, desde o início. Ela riu bastante, o que me fez sentir
como se fosse um rapaz charmoso e agradável. Contou-me da marcha de
Mississipi e Alabama com Martin Luther King, e como fora trabalhar com todas
aquelas pessoas que tentavam ser importantes.
Eu nunca tivera compromisso com nada, a não ser com divertir-
143
bonita. Quando o jogo terminou, entrei na festa, mas ela fora embora.
Descobri que era uma instrutora de meio período do departamento de inglês.
Assim, na segunda-feira, visitei-a em seu escritório e perguntei se poderia
retribuir os salgados que ela me trouxera.
Ela disse que sim, se pudéssemos ir a algum lugar sem televisão, e ambos
rimos. Mas não foi realmente uma brincadeira. Não seria um exagero dizer,
mas, quando conheci Sue, os esportes eram a minha vida. As coisas funcionam
assim quando se é muito ligado a isso. Se você quiser, consegue dirigir toda a sua
atenção para eles e não ter tempo para mais nada. Eu corria todos os dias.
Preparava-me para maratonas, instruía meus jogadores e viajava com eles para
os jogos, seguia os esportes na TV e treinava.
Mas eu era solitário, também, e Sue era muito atraente. Desde o início ela
prestava bastante atenção em mim quando eu queria, e além disso não interferia
no que eu queria ou precisava fazer. Ela tinha um filho, Tim, de seis anos, e eu
gostava dele também. Seu ex-marido não vivia naquele Estado e raramente via o
garoto, de forma que foi fácil para eu e ele sermos amigos. Eu sentia que Tim
queria estar perto de um homem.
Sue e eu nos casamos um ano após nosso encontro, mas logo as coisas
começaram a dar errado entre nós. Ela queixava-se que eu nunca prestava
atenção a ela ou a Tim, que eu sempre saía e que, quando eu estava em casa, a
única coisa com que me importava era assistir aos esportes na TV. Eu, por meu
lado, queixava-me que tudo o que ela fazia era incomodar-me e que ela sabia
como eu era quando conheceu-me. Se não gostava, o que estava fazendo
comigo? Muitas vezes eu ficava furioso com Sue, mas não me zangava com Tim,
e sabia que a forma como brigávamos magoava o garoto. Embora jamais
admitisse na época, Sue estava certa. Eu a evitava e a Tim. Os esportes
proporcionavam-me algo para fazer, algo do que falar e algo para pensar que
fosse seguro e confortável. Eu crescera numa família onde o esporte era o único
assunto que se podia discutir com meu pai, a única forma de conseguir a
148
atenção dele. O esporte era tudo o que eu sabia com respeito a ser um homem.
Bem, Sue e eu estávamos a ponto de nos separar, brigávamos muito. Quanto
mais ela me pressionava, mais eu me desentendia com ela e escapava para a
minha corrida diária, para os jogos de futebol ou qualquer outra coisa. Então,
certa tarde de domingo, os times Miami Dolphins e os Oakland Raiders estavam
jogando quando o telefone tocou. Sue saíra com Tim, e lembro-me de como
fiquei aborrecido pela interrupção, por ter que levantar-me e deixar a TV. O
telefonema era de meu irmão, dizendo que meu pai tivera um ataque de coração
e morrera.
Fui ao funeral sem Sue. Brigávamos tanto que eu quis ir sozinho, e estou feliz
por tê-lo feito. Voltar para lá, mudar toda a minha vida. E lá estava eu, no funeral
de meu pai, sem nunca ter sido capaz de falar com ele, e à beira do segundo
divórcio porque eu não sabia como relacionar-me com minha esposa, também.
Senti que estava perdendo demais, e eu não conseguia entender por que tudo
aquilo acontecia a mim. Eu era uma pessoa boa, trabalhava bastante, nunca feri
ninguém. Sentia-me totalmente só e com pena de mim mesmo.
Voltei do funeral com meu irmão mais novo. Ele não conseguia parar de
chorar. Falava incessantemente de como agora era tarde, de como ele nunca se
aproximara de nosso pai. E mais tarde, já em casa, todos falavam de papai,
como se faz após um funeral, e as pessoas faziam aquelas brincadeiras sobre
papai e o esporte, quanto ele gostava daquilo, como ele estava sempre assistindo-
os pela televisão. Meu cunhado, tentando ser engraçado, disse: "Sabe, é a
primeira vez que eu venho a essa casa e a TV não está ligada e ele não está
assistindo a um jogo". Olhei para meu irmão e ele voltou a chorar, não com
tristeza, mas com amargura. De repente, percebi o que meu pai fizera toda a
vida dele e o que eu estava fazendo, também. Exatamente como ele, não deixava
que ninguém se aproximasse de mim, conhecesse-me, falasse comigo. A
televisão era minha armadura.
Fui para fora com meu irmão e saímos juntos de carro em dire-
149
7. A bela e a fera
para provar que eu merecia ser amada, que eu não era uma pessoa de quem
um namorado ou marido quisesse afastar-se, se ele pudesse.
Passei um bom tempo na terapia até ser capaz de lembrar que outras mulheres
também tinham sido o problema com o casamento de meus pais. As brigas eram
sobre as saídas de meu pai sem voltar para casa, e minha mãe, conquanto não
dissesse claramente, sugeria que ele era infiel e, então, repreendia-o por
negligenciar todos nós. Eu pensei que com isso ela o tivesse afastado, e decidi,
muito consciente, que nunca agiria como ela. Assim, suportei tudo e esforcei-me
em sorrir sempre. Foi o que me trouxe à terapia. Um dia após meu filho de nove
anos ter tentado o suicídio, eu ainda estava sorridente e luminosa. Levei aquilo na
brincadeira, o que realmente alarmou minha amiga no trabalho. Eu
permanecera por muito tempo com aquela crença mágica de que, se eu fosse
agradável e nunca me zangasse, tudo terminaria bem.
Considerar Kenneth mal orientado também foi um dos meus enganos. Eu
passava sermões e tentava organizar sua vida, o que para ele era provavelmente
um preço baixo a pagar para ter alguém que cozinhasse e limpasse enquanto ele
fazia exatamente o que queria, sem ter de responder a pergunta nenhuma.
A negação de que algo estava errado era tamanha que eu não podia abandoná-
la, até que consegui ajuda. Meu filho estava bastante infeliz, e eu simplesmente
não queria reconhecer. Eu tentava despistá-lo, fazia piadas sobre o assunto, o que
provavelmente o fazia sentir-se pior. Eu também recusava-me a admitir para
qualquer pessoa conhecida que algo estava errado. Kenneth deixara a casa há
seis meses e eu ainda não contara a ninguém que estávamos separados, o que
também tornava as coisas difíceis para meu filho. Ele tinha que guardar aquele
segredo também, e além disso esconder sua dor. Eu não queria falar sobre o
assunto com ninguém, e, assim, não deixava Thad falar. Não percebia como ele
precisava desesperadamente revelar o segredo. A terapeuta forçou-me
realmente a contar para as pessoas que meu casamento perfeito acabara-se. Ah,
como foi difícil admitir aquilo! Acho que a tentativa de
164
suicídio de Thad foi simplesmente sua maneira de dizer: "Ei, pessoal! Algo está
errado!".
Bem, estamos melhor agora. Eu e Thad ainda fazemos terapia juntos e
separadamente, aprendendo como conversar um com o outro e a sentir o que
sentimos. Existe uma regra na minha terapia que me proíbe de fazer piada de
qualquer coisa que surja durante aquela hora. É bastante difícil, para mim,
abandonar aquela defesa e sentir o que acontece quando eu a abandono, mas
estou bem melhor nisso. Quando vou a encontros, às vezes penso se esse homem
ou aquele precisa de mim para endireitar alguns detalhezinhos de sua vida para
ele, mas eu sei que é melhor não me perder nesse tipo de pensamento por muito
tempo. Comentários bastante ocasionais sobre as necessidades doentias de
"ajudar" são as únicas piadas que me permitem fazer na terapia atualmente.
Sinto-me bem, rindo de como o comportamento foi doentio, em vez de rir para
acobertar tudo que esteve errado.
Inicialmente, Connie usou o humor para distrair-se e distrair seus pais da
realidade ameaçadora do relacionamento instável. Empregando todo seu charme
e graça, ela conseguia desviar a atenção deles para si, e dessa forma parar com
a briga, ao menos temporariamente. Cada vez que isso ocorria, ela sentia-se
como a cola que mantinha os dois combatentes unidos, com toda a
responsabilidade que aquele papel implicava. As tensões geraram em Connie a
necessidade de controlar outras pessoas para sentir-se segura e protegida, e ela
exercitava seu controle distraindo com humor. Ela aprendeu a ser extremamente
sensível a sinais de fúria e hostilidade em pessoas que viviam a seu redor, e a
afastar qualquer expressão desse tipo com uma sátira feita apropriadamente ou
um sorriso calmante.
Ela era duplamente motivada a negar os próprios sentimentos: em primeiro
lugar a idéia do rompimento potencial dos pais era amedrontadora demais para
suportar; e, em segundo, quaisquer emoções próprias apenas dificultariam sua
boa atuação. Em pouco tempo, ela negava os sentimentos automaticamente, da
mesma forma
165
O pior de tudo é que nunca podíamos falar sobre a mentira que vivíamos,
tentando parecer melhores do que éramos quando estávamos lá fora, no mundo,
mais felizes, mais prósperas, mais bem-sucedidas. A pressão para que nos
comportássemos daquela forma era grande, mas era realmente implícita. Eu
nunca pensei que conseguisse fazer aquilo. Tinha muito medo de que, a qualquer
instante, tornar-se-ia claro que eu simplesmente não era tão boa quanto os outros.
Enquanto eu sabia vestir-me bem e desempenhar-me bem na escola, sempre
sentia-me uma fraude. Dentro de mim, sabia que eu era um completo fracasso.
Se as pessoas gostavam de mim, era porque eu as enganava. Se me
conhecessem melhor, afastar-se-iam.
Acredito que o fato de ser crescido sem um pai tornou as coisas piores, porque
eu nunca aprendi como relacionar-me com homens de forma a dar e a receber.
Eles eram animais exóticos, ameaçadores e fascinantes ao mesmo tempo. Minha
mãe nunca falou sobre meu pai, mas o pouco que disse fazia-me sentir que ele
não era nada de que se orgulhar; dessa forma, eu não fazia perguntas, pois tinha
medo do que pudesse saber. Ela definitivamente não gostava muito dos homens, e
insinuava que basicamente eram perigosos, egoístas e não confiáveis. Mas eu não
conseguia deixar de achá-los fascinantes, começando pelos garotinhos do jardim
da infância. Eu me esforçava bastante para descobrir o que faltava em minha
vida, mas não sabia o que era. Devia ser o fato de querer ardentemente estar
próxima de alguém, de dar e receber afeição. Eu sabia que homens e mulheres,
maridos e esposas, deveriam amar um ao outro, mas minha mãe dizia-me, às
vezes de forma sutil e outras não, que os homens não faziam as mulheres felizes,
pois costumavam abandoná-las, fugir com suas melhores amigas, ou traí-las de
outra forma. Essas eram as histórias que ouvia de minha mãe enquanto eu
crescia. Eu provavelmente decidi bem cedo que encontraria para mim alguém
que não me deixaria, que não conseguiria ir embora, talvez alguém que ninguém
mais quisesse. Depois, acho que me esqueci que um dia tomara tal decisão.
Simplesmente continuei a representação.
168
Eu jamais conseguiria colocar isso em palavras quando estava crescendo, mas
eu só sabia ficar com alguém, principalmente do sexo masculino, se ele
precisasse de mim. Assim, ele não me deixaria, porque eu o estaria ajudando e
ele ficaria agradecido.
Sem surpresa alguma, portanto, meu primeiro namorado foi um aleijado. Ele
sofrera um acidente de automóvel e sua espinha fora quebrada. Usava suportes
nas pernas e andava com uma muleta metálica. Eu costumava pedir a Deus, à
noite, que me tornasse aleijada em vez dele. Íamos a bailes juntos e eu
permanecia sentada ao seu lado toda a noite. Bem, ele era um rapaz bastante
agradável, e certamente uma garota apreciaria estar com ele apenas pela
companhia. Mas eu tinha um outro motivo. Estava com ele por ser seguro; uma
vez que eu estava fazendo-lhe um favor, eu não seria rejeitada e não me
magoaria. Era como ter uma apólice de seguro contra a dor. Eu era
verdadeiramente louca por aquele rapaz, mas agora sei que o escolhi porque,
como eu, ele tinha algo de errado: seu defeito aparente. Assim eu poderia sentir-
me à vontade com toda aquela dor e pena dele. Ele foi, sem sombra de dúvida, o
namorado mais saudável que tive. Após ele, vieram delinqüentes juvenis,
homens fracassados, perdedores, entre outros.
Conheci meu primeiro marido quando eu tinha dezessete anos. Ele ia mal na
escola e fora reprovado. Seu pai e sua mãe eram divorciados, mas ainda
brigavam um com o outro. Meu passado, comparado com o dele, parecia bom.
Eu podia relaxar um pouco, não sentir-me tão envergonhada. E, logicamente,
sentia pena dele. Ele era bastante rebelde, mas eu acreditava que era porque
nunca alguém realmente o compreendera antes de mim.
Além disso, eu possuía no mínimo vinte pontos de QI acima dele. E eu
precisava daquela vantagem. Custou-me aquilo e até mais para que eu
começasse a acreditar que estava à altura dele, e que ele não me deixaria por
alguém melhor.
Todo o meu relacionamento com ele, nos doze anos em que estivemos
casados, foi o de não aceitar o que ele era e tentar transformá-lo no que eu
acreditava que ele deveria ser. Eu tinha certeza de que ele seria muito mais feliz,
e se sentiria muito melhor con-
169
mas no final acabei cedendo. E foi realmente uma bênção. Foi confortante e
recuperador saber que existiam tantas outras mulheres que tiveram experiências
parecidas e, freqüentemente, muito piores que as minhas. Muitas daquelas
mulheres também se casaram com homens com problemas sexuais próprios.
Aqueles homens formavam, também, um grupo de apoio, e de alguma forma
Sam criou coragem de juntar-se a eles.
Os pais de Sam sempre foram obcecados em educá-lo para ser, como eles
próprios diziam, um "garoto puro, limpo". Se ele ficasse com as mãos no colo na
hora do jantar, os pais obrigavam-no a mantê-las em cima da mesa "onde
podemos ver o que você está fazendo". Se ele ficava muito tempo no banheiro,
eles esmurravam a porta e gritavam: "O que você está fazendo aí!" Era uma
coisa constante. Procuravam por revistas em suas gavetas e por manchas em
suas roupas. Ele tornou-se tão apavorado de ter qualquer sensação ou experiência
sexual que, por fim, não conseguia sentir ou ter nada, mesmo que tentasse.
Conforme fomos melhorando, de certa forma a vida tornou-se mais difícil
para nós como um casal. Eu ainda tinha uma necessidade enorme de controlar
cada expressão de sexualidade de Sam (exatamente como seus pais fizeram),
porque qualquer agressividade sexual por parte dele era muito ameaçadora para
mim. Se ele me procurava espontaneamente, eu recusava, virava de lado ou saía
e começava a falar ou a fazer alguma outra coisa para evitar que ele
prosseguisse. Eu não suportava vê-lo apoiado sobre mim quando eu estava na
cama, porque me fazia lembrar demais de como meu pai se aproximava de
mim. Mas a recuperação dele exigia que se tornasse completamente responsável
por seu corpo e seus sentimentos. Eu tive que parar de controlá-lo para que ele
pudesse, literalmente, experimentar sua potencialidade. E, além disso, meu medo
de ser oprimida era um grande problema também. Eu aprendi a dizer: "Estou
ficando com medo agora", e Sam respondia: "O que você precisa que eu faça?"
Normalmente, saber que ele se importava com meus sentimentos e que me
ouvia era suficiente.
Resolvemos aquele aspecto fazendo com que cada vez um de nós
192
ficasse responsável pelo que acontecia entre nós sexualmente. Ambos
poderíamos dizer não a qualquer coisa que não gostássemos ou que não
quiséssemos fazer, mas, basicamente, um de nós preparava todo o ambiente para
o encontro amoroso. Foi uma das melhores idéias que já tivemos, porque
satisfazia à necessidade de cada um de nós. Tínhamos de ser responsáveis por
nossos próprios corpos e pelo que fazíamos com eles sexualmente. Aprendemos
de fato a confiar um no outro e a acreditar que podíamos dar e receber amor
com nossos corpos. Também tínhamos nosso grupo apoiando-nos. Os problemas
e sentimentos de todos eram tão semelhantes que realmente ajudavam a manter
nossos conflitos em perspectiva. Certa noite, os dois grupos reuniram-se e
passamos a noite discutindo nossas reações pessoais às palavras impotente e
frígida. Houve lágrimas e risos, e muita compreensão e compartilhamento. Isso
afastou de todos nós grande parte da vergonha e da dor.
Foi provavelmente porque eu e Sam já nos compreendíamos tanto àquela
altura, e havia tanta confiança entre nós, que o lado sexual de nosso
relacionamento começou a dar certo. Temos duas filhas lindas agora, e estamos
muito felizes um com o outro. Para Sam, sou muito menos uma mãe e muito
mais uma companheira. Ele está mais ativo, positivo. Afinal, não preciso mais
esconder do mundo o segredo de sua impotência, e nem ele necessita ser
assexuado para mim. Temos muitas escolhas agora, e escolhemos livremente um
ao outro!
A história de Ruth ilustra um outro aspecto da negação e da necessidade de
controlar. Como muitas outras mulheres que se tornam obcecadas pelos
problemas dos pais, Ruth, antes de casar-se com Sam, sabia exatamente quais
eram os problemas dele. Dessa forma, ela não se surpreendeu com a
incapacidade de desempenho sexual conjunto. De fato, aquele fracasso era uma
espécie de garantia de que ela jamais teria de se sentir novamente sem o
controle da própria sexualidade. Ela seria a iniciadora, a pessoa no controle, ao
invés de ser a vítima, o que para ela era o único outro papel no sexo.
193
Mais uma vez, esse casal teve sorte em receber ajuda sob medida para seus
problemas. Para ela, o grupo de apoio apropriado foi a União de Filhas, um ramo
da Associação de Pais, organizado para ajudar a promover a recuperação em
famílias nas quais ocorreram casos de incesto. Felizmente, um grupo
correspondente fora organizado pelos maridos daquelas vítimas de incesto, e,
nesse clima de compreensão, aceitação e compartilhamento de experiências,
cada uma daquelas pessoas afetadas pôde mover-se prudentemente em direção
a uma expressão sexual saudável.
Para cada mulher desse capítulo, a recuperação exigiu que ela enfrentasse a
dor, passada e presente, que tentara evitar. Enquanto crianças, todas
desenvolveram uma fórmula para sobreviver, que incluía a prática da negação e
a tentativa de obter o controle. Mais tarde, quando adultas, aquelas fórmulas
serviram doentiamente a essas mulheres. De fato, suas defesas tornaram-se as
principais contribuintes de sua dor.
Para a mulher que ama demais, a prática da negação, magnificamente
expressa por "omitir as falhas dele" ou "manter uma atitude positiva", evita que
notem o aspecto da cumplicidade, que percebam como as falhas dele permitem
a ela desempenhar seus papéis familiares. Quando sua vontade de controlar
mascara-se em "ser prestativa" e "encorajar", o que é novamente ignorado é sua
própria necessidade de superioridade e poder, implícita nesse tipo de interação.
Precisamos perceber que a prática da negação e do controle, sejam quais
forem os nomes dados, definitivamente não enriquece nossas vidas ou
relacionamentos. Ao contrário, o mecanismo da negação leva-nos a
relacionamentos que dão margem ao restabelecimento dos antigos conflitos, e a
necessidade de controlar mantém-nos lá, lutando para modificarmos outra
pessoa, no lugar de nós mesmas.
Retornemos ao texto realçado no início do capítulo. Como se notou antes, o
conto A Bela e a Fera sugeria um meio de perpetuar a crença de que uma
mulher tem o poder de transformar um homem se ela apenas o amar
devotadamente. Nesse nível de interpretação, o conto parece defender tanto a
negação quanto o controle
194
como o método adequado para se alcançar a felicidade. Bela, amando o
monstro amedrontador sem questionar (negação), sugere ter o poder de mudá-lo
(controle). Essa interpretação parece correta, pois ajusta-se aos papéis sexuais
ditados por nossa cultura. Entretanto, lembro a vocês que tal interpretação
simplesmente faz perder o real significado dessa história, a qual perdurou não por
reforçar os preconceitos da cultura de uma época e seus estereótipos, mas sim
por incorporar uma lei metafísica importantíssima, uma lição vital de como viver
nossas vidas bem e sabiamente. É como se a história contivesse um mapa secreto
que, uma vez decifrado e seguido com bastante esperteza, levar-nos-ia a um rico
tesouro escondido — nosso próprio "felizes para sempre". Esse aspecto, tão
importante, de A Bela e a Fera é a aceitação.
Aceitação é a antítese de negação e controle. É a disponibilidade de perceber o
que é a realidade e de permitir que esta atue, sem necessidade de mudá-la. E na
realidade mora a felicidade, que emana não da manipulação das condições
exteriores ou das pessoas mas do desenvolvimento de uma paz interior, mesmo
diante de desafios e dificuldades.
Lembre-se: no conto, Bela não tinha necessidade alguma de que a Fera se
modificasse. Ela o estimava de fato, aceitava-o como era e apreciava-o por suas
qualidades. Bela não tentou fazer um príncipe de um monstro. Não disse: "Serei
feliz quando ele não for mais um animal". Ela não sentiu pena dele por ser o que
era e nem tentou modificá-lo. Eis aí a lição. Devido à atitude de aceitação, ele foi
libertado para transformar-se em seu eu. E o simples fato de seu verdadeiro eu
consistir num príncipe (e um parceiro perfeito para ela) demonstra
simbolicamente que ela foi bem recompensada por ter praticado a aceitação.
Sua recompensa foi uma vida farta e realizadora, representada por viver feliz
para sempre com o príncipe.
A verdadeira aceitação de um indivíduo como ele é, sem a tentativa de
modificá-lo através do encorajamento, manipulação ou coação, é uma forma de
amor muito nobre, e dificílima de ser praticada pela maioria de nós. Na essência
de todos os nossos esforços para modificar outra pessoa, está um motivo
basicamente egoísta,
195
uma crença de que, através da mudança dela, tornar-nos-emos felizes. Não há
nada errado em querer ser feliz, mas localizar a fonte daquela felicidade fora de
nós mesmos, nas mãos de outra pessoa, significa evitar nossa capacidade e
responsabilidade de mudar nossa própria vida para melhor.
Ironicamente, é a mesma prática da aceitação que permite que outra pessoa
se modifique, se ela escolhe modificar-se. Analisemos como isso funciona. Se o
parceiro de uma mulher é dedicado em demasia ao trabalho, por exemplo, e ela
contesta e discute quanto às longas horas que ele passa fora de casa, qual é
normalmente o resultado? Ele passa as mesmas horas, ou até mais, longe dela.
sentindo-se justificado, por ter o direito de ficar longe para escapar das
lamentações intermináveis dela. Em outras palavras, ralhando, contestando e
tentando modificá-lo, ela, na verdade, faz com que ele acredite que o problema
entre eles não é a sua dedicação ao trabalho, mas os resmungos dela — e, na
realidade, sua compulsão de modificá-lo pode transformar-se num fator
contribuinte tão grande para a distância emocional entre eles quanto a compulsão
dele de trabalhar. Em suas tentativas de forçá-lo a ficar mais perto dela, ela está
na verdade empurrando-o para bem mais longe.
Veneração ao trabalho é um sério desajuste, como são todos os
comportamentos compulsivos. Funciona como uma finalidade na vida do marido,
provavelmente protegendo-o contra a proximidade e a intimidade que ele teme,
e prevenindo a aparição de uma série de emoções desagradáveis, principalmente
ansiedade e desespero (veneração ao trabalho é uma das formas de se evitar
alguém, empregada freqüentemente por homens provenientes de famílias
desajustadas, da mesma forma como amar demais é um dos principais meios de
fuga empregado por mulheres provenientes daquele tipo de família). O preço a
ser pago é uma existência unidimensional que o impede de desfrutar muito o que
a vida tem a oferecer. Mas apenas ele pode julgar que o preço é alto, e apenas
ele pode escolher tomar quaisquer medidas ou correr quaisquer riscos
necessários para modificar-se. A tarefa de sua esposa não é endireitar sua vida,
mas melhorar a dela própria.
196
A maioria de nós tem capacidade de ser muito mais feliz e mais realizado
como indivíduos do que percebemos. Com freqüência não lutamos por aquela
felicidade porque acreditamos que o comportamento de outra pessoa está nos
impedindo de fazê-lo. Ignoramos a obrigação de nos desenvolvermos, enquanto
esquematizamos, manobramos e manipulamos outra pessoa para modificá-lo, e
tornamo-nos zangados, desencorajados e deprimidos quando fracassamos. Tentar
modificar uma pessoa é frustrante e deprimente, mas exercer o poder que temos
de efetuar uma mudança em nossa própria vida é hilariante.
Para que a esposa de um adorador do trabalho fique livre para viver uma vida
própria realizadora, sem considerar o que seu marido faz, ela deve passar a
acreditar que o problema dele não é o dela, e que não é de seu poder, de seu
dever ou de seu direito modificar o marido. Ela deve aprender a respeitar o
direito dele de ser o que é, embora desejando que ele fosse diferente.
Quando ela aprender, estará livre — livre de ressentimentos por causa da
inacessibilidade dele, livre da culpa por não ter sido capaz de modificá-lo, livre
do peso de tentar mudar o que não consegue. Com menos ressentimento e menos
culpa, começará a sentir grande afeição por ele, pelas qualidades dele, que ela
aprecia realmente.
Quando abandonar a tentativa de modificá-lo e redirecionar sua energia para
desenvolver seus próprios interesses, experimentará a felicidade e a satisfação,
não importa o que ele faça. No final, ela provavelmente descobrirá que seus
objetivos são compensadores o suficiente para que possa desfrutar uma vida
própria, rica e gratificante, sem muito companheirismo da parte do marido. Ou,
conforme tornar-se cada vez menos dependente dele para conseguir sua
felicidade, poderá resolver que seu compromisso com um parceiro ausente não
faz sentido e poderá escolher continuar sua vida livre do constrangimento de um
casamento que não valha a pena. Nenhum desses caminhos será possível, se ela
fizer questão absoluta que ele se modifique para se sentir feliz. Até que ela o
aceite como ele é, estará paralisada como um desenho animado interrompido,
espe-
197
rando que ele se modifique antes que ela possa começar a viver sua vida.
Quando uma mulher que ama demais desiste da companhia para modificar o
homem amado, ele, então, passa a refletir sobre as conseqüências de seu próprio
comportamento. Uma vez que ela, de frustrada e infeliz, torna-se cada vez mais
animada com a vida, o contraste com a própria existência dele intensifica-se. É
possível que ele resolva lutar contra isso, desfazendo-se de sua obsessão e
tornando-se mais acessível física e emocionalmente. Ou então que resolva não
lutar. Mas isso não importa. O fato é que, aceitando o companheiro exatamente
como ele é, a mulher torna-se livre, de uma forma ou de outra, para viver a
própria vida — feliz para sempre.
198
homem para fazer com que nos sintamos melhor. Por não conseguirmos nos
amar, precisamos dele para nos convencer de que somos dignas de amor. Até
dizemos a nós que, com o homem certo, não precisamos de tanta comida, ou
tanto álcool ou tanta droga. Usamos o relacionamento da mesma forma que
usamos a substância viciante: para afastar nossa dor. Quando um relacionamento
nos desaponta, voltamo-nos até mais freneticamente à substância de que
abusávamos, mais uma vez procurando alívio. Cria-se um círculo vicioso quando
a dependência física de uma substância é aumentada pela tensão de um
relacionamento doentio, e a dependência emocional de um relacionamento é
intensificada pelos sentimentos caóticos engendrados pelo vício físico. Usamos o
fato de não estar com o homem ou estar com o homem errado para explicar e
desculpar nosso vício físico. Por outro lado, o uso contínuo de substância viciante
permite-nos tolerar o relacionamento doentio, amortecendo nossa dor e
roubando-nos a motivação necessária para nos modificarmos. Culpamos um pelo
outro. E tornamo-nos cada vez mais presas a ambos.
Enquanto continuarmos tendendo a escapar de nós mesmas e a evitar nossa
dor, permaneceremos doentes. Quanto mais nos esforçamos e quanto mais
válvulas de escape perseguimos, mais doentes ficamos, combinando vícios e
obsessões. No final, descobrimos que as soluções tornaram-se os problemas mais
sérios. Precisando loucamente de alívio e não encontrando nenhum, às vezes
podemos começar a ficar um pouco loucas.
— Estou aqui porque meu advogado me enviou. — Brenda quase cochichava
ao fazer essa confissão, na época de nossa primeira consulta. -- Eu... eu... bem,
peguei algumas coisas sem pagar e fui descoberta, e ele achou que seria uma
boa idéia procurar alguém para aconselhar-me... — Continuou
conspiradoramente: — Ele achou que seria melhor, quando eu voltasse para os
tribunais, todos constatarem que estou conseguindo ajuda para resolver meus
problemas.
200
Eu quase não tive tempo de concordar, pois ela apressou-se em completar:
— Exceto que, bem, eu não acho que realmente tenha algum problema.
Peguei algumas coisas de uma pequena drogaria e esqueci de pagar. É terrível
eles pensarem que eu roubei, mas foi simplesmente um descuido. O pior de tudo
é o constrangimento. Mas eu não tenho nenhum problema real, não como
algumas pessoas.
Brenda apresentava um dos desafios mais difíceis em aconselhamento: uma
paciente que não está suficientemente motivada para procurar ajuda para si; que
nega precisar de ajuda, e mesmo assim está lá no consultório, enviada por outra
pessoa que pensa que o aconselhamento lhe será benéfico.
Enquanto ela tagarelava num fôlego só, permaneci alheia às palavras que
vinham de encontro a mim. Em lugar de ouvir, estudei a própria mulher. Ela era
alta, pelo menos 1,70 m, magra como um manequim, pesando no máximo 52
quilos. Usava um vestido de seda elegantemente simples de cor coral forte,
ressaltado com jóias pesadas de marfim e ouro. Com cabelos cor de mel e olhos
verdes, ela deveria ter sido bonita. Todos os ingredientes estavam lá, mas faltava
alguma coisa. As sobrancelhas eram bastante unidas, criando um vinco vertical
profundo entre elas. Ela segurava bastante a respiração, as narinas
constantemente dilatadas. E os cabelos, embora cortados e penteados
cuidadosamente, eram secos e quebrados. A pele era fina como papel e
empalidecida, apesar de um bronzeado atraente. A boca podia ser grande e os
lábios grossos, mas ela apertava os lábios constantemente, fazendo os parecer
finos e compactos. Quando sorria, era como se ela estendesse uma cortina sobre
os dentes, e, enquanto falava, mordia constantemente os lábios. Comecei a
suspeitar que ela praticava comilança (bulimia), ao mesmo tempo em que se
auto-induzia ao vômito, e/ou auto-inanição (anorexia), por causa do aspecto da
pele e do cabelo, bem como a extrema magreza.
Mulheres com distúrbios alimentares apresentam também, com bastante
freqüência, casos de roubo compulsivo, de forma que esse era um outro indício.
Também suspeitei que se tratasse de uma
201
co-alcoólatra. No meu ramo, quase todas as mulheres que conheci com
distúrbios na alimentação são filhas de um alcoólatra, ou de dois (principalmente
as mulheres com bulimia), ou de um alcoólatra e uma pessoa que come
compulsivamente. Os comilões compulsivos e os alcoólatras casam-se com
muita freqüência, o que não surpreende, uma vez que tantas comilonas são filhas
de alcoólatras e filhas de alcoólatras tendem a casar-se com alcoólatras. A
comilona compulsiva está decidida a controlar sua comida, seu corpo, e seu
parceiro, através da força de vontade. Brenda e eu certamente tínhamos muito
trabalho pela frente.
— Fale-me sobre você — pedi da forma mais gentil que pude, embora
soubesse o que viria.
Sem dúvida, grande parte do que ela continuou falando naquele primeiro dia
era mentira: ela estava bem, estava feliz, não sabia o que acontecera na
farmácia, simplesmente não conseguia se lembrar, nunca roubara nada antes.
Prosseguiu dizendo que o advogado era muito agradável, obviamente como eu
era, e que ela não queria que ninguém mais soubesse do incidente porque não iria
compreender, como o advogado e eu entendíamos. O elogio tinha a intenção de
fazer-me concordar com ela que nada estava realmente errado, apoiá-la na idéia
de que a prisão era um engano, uma pequena trama inconveniente do destino e
nada mais.
Finalmente, havia pouquíssimo tempo entre a primeira consulta e a época em
que seu caso seria finalmente julgado, e, uma vez que ela sabia que eu mantinha
contato com o advogado, continuou tentando ser uma "boa paciente". Ela
comparecia a todas as consultas, e, após um certo tempo, começou, aos poucos,
a ser mais verdadeira. Felizmente também, quando aquilo aconteceu, ela
experimentou o alívio de parar de viver uma mentira. Em pouco tempo, ela fazia
terapia ao menos pensando mais em si do que no efeito que poderia causar num
juiz ao ouvir o caso. Na época em que foi sentenciada (seis meses de reclusão e
total devolução do que pegara, mais quarenta horas de trabalho comunitário que
ela cumpriu no Clube das Garotas, uma prisão feminina, naquela cidade), ela
esforçava-se para
202
tornar-se verdadeira como esforçara-se anteriormente para acobertar quem
era e o que fizera.
A história real de Brenda, que ela no início narrava bastante hesitante e
cautelosa, começou a emergir durante nossa terceira sessão. Brenda parecia
muito cansada e abatida, e, quando toquei no assunto, admitiu que tivera
dificuldade em dormir naquela semana. Perguntei o que acontecera para causar
aquilo.
Inicialmente, ela culpou o julgamento que estava por vir, mas aquela
explicação não soava inteiramente verdadeira, de forma que eu insisti:
— Existe algo mais que esteja incomodando você essa semana?
Ela esperou um instante, mordendo os lábios em atitude de desafio,
percorrendo-os sistematicamente, do superior para o inferior, e de volta ao
superior. Depois, falou com sinceridade:
— Pedi a meu marido que fosse embora, finalmente, e agora desejaria não ter
feito isso. Não consigo dormir nem trabalhar, estou com os nervos arruinados. Eu
odiava o que ele fazia, saindo com aquela garota do trabalho tão abertamente,
mas passar sem ele é mais difícil que tolerar tudo aquilo. Agora não sei para que
lado seguir, e fico pensando se não foi tudo culpa minha, afinal. Ele sempre disse
que eu era muito fria e distante, não era mulher o suficiente para ele. Acho que
estava certo. Eu realmente era um bocado zangada e retraída, mas era por ele
criticar-me tanto. Eu vivia dizendo: "Se você quer que eu seja calorosa, então
tem que me tratar com carinho, em vez de ficar dizendo que sou horrorosa,
burra e sem atrativos".
Ela, então, ficou imediatamente amedrontada, as sobrancelhas erguendo-se
mais ainda, e começou a minimizar tudo o que acabara de revelar. Mexendo as
mãos com sofreguidão, ela tentou emendar:
— Não estamos realmente separados, só dando um tempo longe um do outro.
E Rudy não é tão crítico assim, de verdade, eu acho até que mereço. Às vezes,
chego cansada do trabalho e não quero cozinhar, principalmente porque ele não
gosta do que eu preparo. Ele gosta muito mais da comida de sua mãe; às vezes
sai da mesa para ir à casa dela, e não volta antes das duas da madrugada. Sim-
203
plesmente não tenho vontade de esforçar-me tanto para fazê-lo feliz, porque
quase nunca dá certo mesmo. Mas não é tão ruim assim. Centenas de mulheres
sofrem coisas piores.
— O que ele faz até as duas? Ele não pode ficar na casa da mãe todo esse
tempo, não é? — perguntei.
— Eu não quero saber. Acho que sai com a namorada. Mas não ligo. Sinto-me
melhor quando ele sai e me deixa em paz. Muitas vezes ele quer brigar, quando
volta para casa, na verdade, eu pedi que ele fosse embora mais por causa dessas
brigas do que pelas suas saídas. O problema é que essas discussões me deixavam
muito cansada para trabalhar no dia seguinte.
Lá estava uma mulher decidida a não sentir nem revelar suas emoções. O fato
de elas realmente gritarem para serem ouvidas apenas fazia com que criasse
mais situações em sua vida com o objetivo de afugentá-las.
Após nossa terceira consulta, telefonei para o advogado e pedi-lhe que
insistisse cuidadosamente com Brenda como era importante ela continuar no
aconselhamento comigo. Eu iria cuidar dela e não queria perdê-la. No início da
quarta sessão eu me intrometi.
— Fale sobre você e a comida, Brenda — pedi tão gentilmente quanto pude.
Os olhos verdes se arregalaram assustados, a pele empalidecida perdeu até mais
a cor, e ela chegou até a se afastar.
Então, os olhos diminuíram e ela sorriu, desarmada.
— O que você quer dizer, eu e a comida? É uma pergunta tola! Contei a ela o
que percebera de sua aparência que me alertara, e falei sobre a etiologia dos
distúrbios da alimentação. Identificar o distúrbio como uma doença partilhada
por muitas e muitas mulheres ajudou Brenda a colocar seu comportamento
compulsivo numa perspectiva melhor. Não levou muito tempo como eu temia
para fazê-la falar.
A história de Brenda era longa e complicada, e levou um tempão para ela
separar a realidade da necessidade de distorcer as coisas, acobertá-las, e fingir.
Ela adquirira muita prática em disfarçar que fora pega na própria teia de
mentiras. Esforçara-se bastante em aperfeiçoar uma imagem para apresentar ao
mundo exterior, uma imagem
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que mascarava seu medo, sua solidão e o terrível vazio interior. Foi muito
difícil para ela perceber a situação em que se encontrava, para que pudesse
tomar providências para satisfazer suas necessidades. E a necessidade que
possuía era a razão de roubar e comer compulsivamente, de vomitar e comer
novamente, e de também mentir compulsivamente, tentando, com imenso
desespero, acobertar cada movimento que fazia.
A mãe de Brenda também fora uma comilona compulsiva, com um peso
exagerado, desde que Brenda era criança. Seu pai, um homem muito magro e
enérgico, há muitos anos já desconsiderara abertamente seus juramentos
matrimoniais, pois se desligara tanto da aparência quanto da religiosidade
excêntrica da esposa. Ninguém na família duvidava que ele era infiel, e ninguém
jamais falou sobre o assunto. Saber era uma coisa, mas admitir era outra, uma
violação do acordo tácito da família, e dessa forma não nos atinge. Era uma
regra que Brenda aplicava rigorosamente à própria vida. Se ela não admitisse
que algo estava errado, então nada estava errado. Os problemas não existiam, a
menos que ela os colocasse em palavras. Não é de admirar que ela se apegasse
tenazmente às próprias mentiras e fantasias que a destruíam. E não é de admirar
que era tão difícil para ela fazer terapia.
Brenda cresceu magra como o pai, imensamente liberada para comer
bastante, e mesmo assim não ficar gorda como a mãe. Aos quinze anos, seu
corpo começou de repente a mostrar os efeitos da enorme quantidade de comida
que ingeria. Quando chegou aos dezoito, pesava cerca de 108 quilos, e estava
mais desesperadamente infeliz do que jamais fora. O papai agora dizia coisas
indelicadas para aquela jovem mulher que fora sua filha preferida, falava de
como ela se parecia exatamente com a mãe depois de tudo. É verdade, ele não
teria dito aquelas coisas se não tivesse bebido, mas o fato era que, naquela época,
ele bebia a maior parte do tempo, mesmo quando estava em casa, o que era
raro. A mãe não parava de rezar e pedir a Deus, e o pai não parava de beber e de
ficar fora. Brenda, por sua vez, não parava de comer, tentando não sentir o
pânico crescendo dentro dela.
205
Quando ficou longe de casa pela primeira vez como estudante de faculdade, e
terrivelmente sozinha para ter o conforto dos mesmos pais que ela deplorava, fez
uma descoberta incrível. Sozinha no quarto, no meio de uma orgia de comida,
percebeu que poderia vomitar quase tudo que comera, e não ser penalizada pelo
enorme consumo de comida com o aumento de peso. Em pouco tempo, ela
estava tão fascinada pelo controle de peso que agora conseguia, que começou a
vomitar qualquer coisa que comia. Ela passou do estado de bulimia para o estado
de anorexia com seu distúrbio alimentar compulsivo.
Brenda apresentou fases repetitivas de obesidade, intercaladas por períodos de
extrema magreza durante os muitos anos seguintes. O que ela nunca
experimentou durante aquele tempo foi um único dia sem a obsessão pela
comida. Ela despertava todas as manhãs com esperança de que aquele dia seria
diferente do anterior, e ia para a cama todas as noites decidida a ser "normal" no
dia seguinte, freqüentemente para acordar no meio da noite louca por outra
orgia. Brenda não compreendia realmente o que acontecia com ela. Ela não
sabia que possuía um distúrbio alimentar, presente com tanta freqüência nas
filhas de alcoólatras, como também nas filhas de comilões compulsivos. Ela não
entendia que tanto ela quanto a mãe sofriam de um vício-alergia a certos
alimentos, principalmente a carboidratos refinados, o que quase se equiparava
exatamente com o vício-alergia de álcool de seu pai. Nenhum deles conseguia
ingerir sem perigo a menor porção de suas substâncias viciantes, sem darem
início a uma ânsia ardente por mais, mais a mais. E, como o relacionamento do
pai com o álcool, o relacionamento de Brenda com a comida, principalmente
com doces, consistia numa batalha longa para controlar a substância que, ao
contrário, controlava-a.
Ela continuou a praticar o vômito auto-induzido durante anos, após ter
"inventado" de fazer isso pela primeira vez, na faculdade. Seu isolamento e a
mania de ocultar as coisas tornaram-se cada vez mais envolvidas uma com a
outra e mais extremadas, e de muitas formas esse comportamento foi
alimentado pela família, como também por sua doença. A família de Brenda não
queria ouvir nada
206
dela, a não ser que pudessem responder: "Ah, isso é bonito, querida". Não
havia espaço para a dor, o medo, a solidão, a honestidade, não havia espaço para
a verdade sobre ela ou sua vida. Porque ladeavam constantemente a realidade,
ficava implícito que ela deveria ladeá-la também, e não virar a mesa. Tendo os
pais como cúmplices silenciosos, ela mergulhava mais fundo na mentira que sua
vida era, certa de que, se conseguisse parecer boa externamente, tudo ficaria
bem — ou pelo menos silenciado — internamente.
Mesmo quando sua aparência ficava sob controle por um longo período, a
tempestade interior não podia ser ignorada. Embora ela fizesse tudo que
conseguia para manter boa aparência exterior — roupas de figurino coordenadas
com a última moda em maquilagem e penteados —, isso não era suficiente para
moderar seu medo, preencher seu vazio. Era em parte por causa de todas as
emoções que recusava a reconhecer, e, em parte, por causa da destruição de seu
sistema nervoso, que sua má nutrição auto-imposta estava atuando. O estado
mental de Brenda era de confusão, ansiedade, morbidez e obsessão.
À procura de libertação da tempestade interior, Brenda, seguindo o estilo da
mãe, procurou conforto num ativo grupo religioso que se reunia no campus da
universidade. Foi nesse círculo que, no segundo ano, conheceu seu futuro marido,
Rudy, um tipo indefinido, que mais a fascinou por seu mistério. Brenda estava
habituada a segredos, e ele os possuía em fartura. Havia indícios, nas histórias
que ele contava e nos nomes que deixava escapar, de que gostava de atividades
populares como apostas em cavalos e em loterias, na cidade de Nova Jersey,
onde nascera. Fazia vagas alusões à grande quantidade de dinheiro que ganhara e
que gastara, a carros vistosos e mulheres deslumbrantes, a casas noturnas, a
bebidas e drogas.
E lá estava ele, transformado num estudante sério, vivendo no campus de uma
sossegada faculdade do centro-oeste americano, participando ativamente de um
grupo religioso para jovens, deixando de lado seu passado obscuro na procura de
algo melhor. Estava implícito que ele fugira desse passado sob ameaças, pelo fato
de ter até cortado relações com a família, mas Brenda ficou impressionada
207
tanto com sua vida obscura e misteriosa quanto com seus esforços
aparentemente sinceros para mudar. Por isso, não teve necessidade alguma de
pedir explicações detalhadas de suas experiências passadas. Afinal, tinha seus
próprios segredos para guardar.
Então, essas duas pessoas, fingindo ser o que não eram, ele um fora-da-lei na
pele de um coroinha, ela uma comilona compulsiva, mascarada como uma
vítima de moda, naturalmente apaixonaram-se — com a ilusão do outro
projetada. O fato de alguém amar o que ela fingia ser ratificava o destino de
Brenda. Agora ela teria que manter o logro, e num espaço menor. Mais pressão,
mais tensão, mais necessidade de comer, de vomitar, de esconder.
A abstinência de Rudy a cigarro, álcool e droga durou até que ficou sabendo,
pela própria família, que eles haviam se mudado para a Califórnia.
Aparentemente resolvendo que, com uma distância considerável entre ele e seu
passado, reassumiria seu risco tanto a família quanto seu antigo jeito de ser,
apanhou as malas e sua esposa recente, Brenda, e foi até à Califórnia. Tão logo
cruzou o primeiro limite do Estado, sua pessoa começou a alterar-se, voltando ao
que fora antes de Brenda o conhecer. A camuflagem dela durou mais tempo, até
que ela e Rudy começaram a viver com os pais dele. Com tanta gente na casa,
ela estava incapacitada de prosseguir livremente com seu vômito auto-induzido.
As comilanças, agora, eram mais difíceis de esconder. Ao contrário, ganhavam
espaço sob a tensão de sua atual circunstância, e o peso de Brenda começou a
subir. Rapidamente ganhou cerca de 22 quilos, e a linda esposa Rudy
desapareceu nas dobras matronais do corpo implacavelmente obeso de Brenda.
Sentindo-se enganado e zangado, Rudy deixava-a em casa e saía para beber, e
para procurar outra mulher cuja aparência o complementasse, da mesa forma
que Brenda um dia o complementara. Desesperada, ela comia mais que nunca,
alegando a si e a Rudy que tudo que precisavam era de um lugar só deles, e ela
seria capaz de ficar esbelta de novo. Quando, finalmente, conseguiram uma casa
na cidade, obviamente o peso de Brenda começou a baixar tão depressa quanto
subira, mas Rudy pouco ficava em casa para notar.
208
Ela engravidou e, quatro meses mais tarde, abortou sozinha, enquanto Rudy
passava a noite fora.
Àquela altura, Brenda estava certa de que tudo que acontecia era culpa sua. O
homem que uma vez fora saudável e feliz e compartilhara seus valores e crenças
era uma outra pessoa agora, alguém que ela não conhecia e de quem não
gostava. Discutiam por causa do comportamento dele e dos resmungos dela.
Brenda tentava não reclamar, na esperança de que o comportamento dele se
modificasse. Porém, ele não se modificava. Ela não estava gorda como a mãe, e
mesmo assim ele saía de casa como o pai. A falta de apoio para colocar a vida
em ordem a apavorava.
Brenda roubara quando jovem, não com os amigos, num assalto organizado,
mas sozinha, raramente usando ou guardando consigo os objetos que pegava.
Agora, no casamento infeliz com Rudy, começara a roubar novamente, tirando
simbolicamente do mundo o que lhe era negado: amor, apoio, compreensão e
aceitação. Mas o fato de roubar apenas a isolava mais, proporcionava a ela outro
segredo obscuro para guardar, outra fonte de vergonha e culpa. Enquanto isso, o
disfarce externo tornava-se novamente a grande defesa de Brenda contra ser
vista como ela era — uma pessoa compulsiva, medrosa, vazia e solitária. Mais
uma vez ela estava magra, e tinha um emprego principalmente para poder
comprar as roupas caras de que necessitava. Ela desfilava algumas e tinha a
esperança de que Rudy se orgulhasse dela. Enquanto ele se gabava da esposa, a
manequim, nunca se interessou realmente em vê-la andar sobre uma única
passarela.
Brenda olhava para Rudy à procura de apreciação e validação, mas a
incapacidade dele para aquilo fazia com que sua auto-estima, já tão mínima,
diminuísse ainda mais. Quanto menos ele dava, mais ela necessitava dele.
Esforçava-se para aperfeiçoar a aparência, mas sentia que faltava em si algum
elemento atrativo misterioso, que a mulher com quem Rudy mantinha seus casos
parecia completamente emanar sem esforços. Brenda forçava-se cada vez mais
a ser mais magra, porque ser mais magra significava ser mais perfeita. Tornou-
se também uma perfeccionista com relação aos serviços domésticos
209
e, em pouco tempo, estava totalmente ocupada com seus vários
comportamentos obsessivos-compulsivos: limpar, roubar, comer, vomitar.
Enquanto Rudy estava fora de casa bebendo e divertindo-se, Brenda limpava a
casa noite adentro, correndo para a cama e fingindo dormir se ouvia o carro dele
entrar na garagem, embaixo do quarto.
Rudy reclamava de suas implicâncias com as coisas da casa, e desfazia bem
agressivamente os efeitos de sua limpeza, todas as noites, quando chegava em
casa, cedo ou tarde. O resultado era que Brenda mal podia esperar ele sair para
limpar e arrumar o que ele desorganizara. Quando ele saía para a bebedeira e a
farra da noite, ela sentia-se aliviada. E, assim, tudo ia ficando cada vez mais
desajustado.
Sua prisão na farmácia foi, sem dúvida, uma bênção, na medida em que gerou
uma crise que a levou ao aconselhamento, onde começou a analisar no que sua
vida se transformara. Ela quisera por muito tempo ficar longe de Rudy, mas não
fora capaz de abandonar a compulsão de consertar o relacionamento,
aperfeiçoando-se. Ironicamente, quanto mais se separava dele, mais ele a
perseguia ardentemente, com flores, telefonemas, aparecendo de surpresa no
seu local de trabalho com ingressos para um concerto. As colegas de trabalho,
que o viram pela primeira vez quando ele fazia aquela encenação, achavam que
Brenda era uma tola em deixar um homem tão adorável e devotado, Brenda
precisou de duas reconciliações cheias de esperanças, ambas seguidas de
rompimentos dolorosos, para aprender que Rudy queria apenas o que ele não
conseguia ter. Se viviam juntos como marido e mulher, o lado mulherengo dele
rapidamente se recuperava. No segundo rompimento, Brenda disse achar que ele
tinha problemas com bebida e drogas. Ele começou a obter ajuda para provar
que não tinha problemas. Durante dois meses, ficou totalmente livre das drogas.
Reconciliaram-se novamente, e na primeira discussão que tiveram, poucos dias
depois, ele bebeu e ficou fora de casa a noite toda. Quando aquilo aconteceu,
Brenda, com a ajuda da terapia, percebeu o tipo de comportamento que tomara
conta deles.
210
Rudy usava a turbulência do relacionamento com Brenda, criada
deliberadamente, tanto para camuflar quanto para justificar sua perseguição
viciante do álcool, das drogas e das mulheres. Ao mesmo tempo, Brenda usava a
imensa tensão gerada pelo relacionamento como uma desculpa para render-se à
sua bulimia e a outros comportamentos compulsivos e para perder-se neles. Um
usava o outro para evitar lidar com eles mesmos e com seus próprios vícios.
Quando Brenda finalmente reconheceu isso, foi capaz de abandonar a esperança
de que conseguiria viver um casamento feliz.
A recuperação de Brenda envolveu três elementos muito importantes e
necessários. Ela permaneceu na terapia, freqüentou o Al-Anon para lidar com o
co-alcoolismo que duraria a vida toda, e, no final, com a aparente melhoria,
envolveu-se com os Comilões Anônimos, onde recebeu ajuda e apoio para lidar
com seu distúrbio alimentar. Para Brenda, o envolvimento com o C. A. foi o fato
mais importante na sua recuperação, e ao que resistira mais vigorosamente no
início. Comer, vomitar e passar fome compulsivamente constituíram seu
problema mais sério e mais arraigado, seu processo doentio inicial. A obsessão
pela comida sugou toda a energia que seria necessária para ela conseguir
qualquer tipo de relacionamento saudável consigo e com os outros em sua vida.
Até que fosse capaz de parar com a obsessão com respeito ao peso, à ingestão de
alimento, às calorias, às dietas e assim por diante, não conseguiria sentir
nenhuma emoção real quanto a algo, a não ser quanto à comida, e nem
conseguia ser honesta consigo e com outras pessoas.
Enquanto seus sentimentos estivessem anestesiados pelo distúrbio alimentar,
ela não conseguiria começar a cuidar de si mesma, a tomar decisões sábias para
si, ou realmente a viver a própria vida. Em vez disso, a comida era sua vida, e,
sob vários aspectos, aquela era a única vida que ela queria. A batalha para tolerar
a comida era um conflito menos ameaçador que o de enfrentar a si mesma, sua
família e seu marido. Embora tivesse imposto limites, a cada hora, com relação
ao que comeria e não comeria, Brenda nunca impusera limites no que os outros
poderiam fazer ou dizer a ela. Para se recuperar, precisava começar a definir o
ponto onde os limites
211
dos outros acabavam e os dela começavam, como uma pessoa autônoma.
Também tinha que se permitir ficar zangada com outras pessoas, e não apenas
consigo, o que fora seu estado crônico.
No C. A., Brenda começou a praticar a honestidade pela primeira vez em
muitos e muitos anos. Afinal, qual era o sentido de mentir sobre seu
comportamento para pessoas que compreendiam e aceitavam o que ela era e o
que fazia? Como recompensa por sua honestidade, veio o poder de cura, em
decorrência da aceitação vinda de seus semelhantes. Isso deu a ela coragem de
levar aquela honestidade para círculos maiores, fora do programa do C. A., para
sua família e amigos, e para possíveis parceiros.
O Al-Anon ajudou Brenda a compreender as raízes de seu problema em sua
família de origem e também deu a ela bases para entender tanto os distúrbios de
seus pais quanto a forma com que a doença deles a afetara. Lá aprendeu a
relacionar-se com eles de forma saudável.
Rudy passou a viver um outro casamento, o momento em que o processo de
divórcio se encerrou. Porém, até a noite anterior a seu novo casamento, ele
protestava por telefone que realmente só queria Brenda. Aquela conversa
aprofundou a compreensão de Brenda sobre a incapacidade de Rudy de honrar
os compromissos que assumia, da necessidade dele de procurar constantemente
uma forma de evitar qualquer relacionamento em que estivesse. Como seu pai,
Rudy era um homem que gostava de perambular, mas que também gostava de
ter uma esposa e um lar.
Brenda também aprendeu logo que era necessário manter uma distância
considerável, tanto geográfica quanto emocional, entre ela e sua família. Duas
visitas à sua casa, ambas reativando temporariamente a síndrome de comilança
e expurgação, ensinaram a ela que ainda não conseguia ficar perto da família
sem recorrer aos velhos hábitos de manipular a tensão.
Permanecer saudável tornou-se prioritário, mas ela continua surpresa com a
dificuldade do desafio e com a pouca habilidade que possui para enfrentá-lo.
Preencher a vida com o trabalho agradável, como também com novos amigos e
novos interesses, tem sido um
212
processo vagaroso, de passo a passo. Por saber pouco a respeito de ser feliz, de
sentir-se confortável e em paz, ela teve que evitar rigorosamente criar problemas
que a fariam sentir a loucura antiga e familiar.
Brenda continua freqüentando o C. A., o Al-Anon, e ocasionalmente as sessões
de terapia, quando sente necessidade. Ela não é mais tão magra como era e nem
tão gorda. "Eu sou normal!", ela clama, rindo divertidamente de si, sabendo,
porém, que nunca será normal. Seu distúrbio alimentar é uma doença que
provavelmente durará a vida toda e que exige seu respeito, embora não mais
sufoque sua saúde ou sua sanidade.
A recuperação de Brenda ainda é uma coisa frágil. Até que os hábitos novos e
mais saudáveis de viver pareçam normais, em vez de forçados, muito tempo se
passará. Ela poderia novamente voltar a evitar-se e a evitar os sentimentos
através da comilança ou através da obsessão por um relacionamento doentio. Por
saber disso, Brenda atualmente se relaciona cautelosamente com homens, nunca
marcando um encontro que exigiria faltar a uma reunião do C. A. ou Al-Anon,
por exemplo. Sua recuperação lhe é extremamente preciosa, e Brenda não quer
colocá-la em risco. Isso fica evidente por suas próprias palavras: "Tornei um
hábito, em primeiro lugar, não guardar mais segredos, uma vez que foi assim que
fiquei doente. Agora, quando conheço um novo homem, se noto que o
relacionamento parece ter futuro, sempre o deixo saber da minha doença e da
importância dos programas Anônimos em minha vida. Se ele não consegue
suportar essa verdade, ou se é incapaz de compreender, vejo tudo como um
problema dele, e não meu. Eu não tento mais virar-me do avesso para agradar a
um homem. Minhas prioridades atualmente são bastante diferentes. A
recuperação tem que vir em primeiro lugar. Do contrário, não me resta nada
para oferecer a qualquer pessoa".
213
Características de Praticantes
Alcoólatras
obcecado por álcool
nega o tamanho do problema
mente para acobertar o quanto bebe
evita pessoas para esconder problemas com a bebida
tentativas contínuas de controlar a bebida
oscilações inexplicadas de temperamento
raiva, depressão, culpa, ressentimento
atos irracionais
violência
acidentes devido à intoxicação
auto-ódio/autojustificação
indisposição física devido ao abuso do álcool
225
Alcoólatras
admite falta de apoio para controlar a doença
pára de culpar outros por problemas
dirige-se a si mesmo, assumindo responsabilidade pelos próprios atos
procura ajuda de semelhantes para a recuperação
começa a lidar com os próprios sentimentos, em vez de evitá-los
constrói um círculo de bons amigos, interesses saudáveis
1. Procure ajuda
O que significa
A primeira etapa para se procurar ajuda pode envolver qualquer coisa, desde
examinar algum livro sobre o assunto na biblioteca (que pode exigir bastante
coragem; parece que todos estão olhando!), até marcar uma consulta com um
terapeuta. Pode significar um telefonema anônimo para falar sobre o que você
sempre se esforçou para manter em segredo, ou entrar em contato com uma
clínica ou centro em sua comunidade, especializados no tipo de problema que
você enfrenta, seja o alcoolismo, um caso de incesto, um parceiro que a
espanca, ou qualquer outra coisa. Pode significar descobrir onde um grupo de
auto-auxílio se reúne e conseguir coragem para ir até lá, ou assistir a aulas de
educação para adultos, ou participar de um programa integrado. Pode até
significar chamar a polícia. Procurar ajuda significa, basicamente, fazer algo,
tomar a primeira atitude, desdobrar-se. É muito importante compreender que
procurar ajuda não significa ameaçar o parceiro com o fato de que você pensa
em fazer isso. Tal atitude é normalmente uma tentativa de chantageá-lo para
melhorar o comportamento, de forma que você não tenha que desmascará-lo
publicamente como a pessoa terrível que ele é. Deixe-o fora disso. Do contrário,
procurar ajuda (ou ameaçar fazê-la) não passa de mais uma tentativa de dirigi-lo
e controlá-lo. Tente se lembrar: você está fazendo isso por você.
O que se requer para procurar ajuda
Para procurar ajuda você deve, ao menos temporariamente, abandonar a
idéia de que consegue lidar com a situação sozinha. Você deve encarar a
realidade de que, com o tempo, as coisas ficaram piores em sua vida, não
melhores, e perceber que, apesar de seus maiores esforços, você não é capaz de
solucionar o problema. Isso significa que você deve reconhecer, de uma vez por
todas que o problema é ruim. Infelizmente, a honestidade só vem a algumas
240
de nós quando a vida nos afeta com tamanho golpe ou tamanha série de
golpes, que ficamos caídas no chão, ofegantes. Uma vez que essa situação é
passageira, no instante em que nos recuperamos tentamos retomar de onde
paramos, sendo fortes, dirigentes, controladoras, e prosseguindo sozinhas. Não se
satisfaça com o alívio temporário. Se você inicia o processo lendo um livro,
então, precisa passar para a próxima etapa, que seria contatar alguma fonte de
ajuda.
Se você marcar consulta com um profissional, descubra se essa pessoa
compreende a dinâmica de seu problema particular. Se, por exemplo, você foi
vítima de incesto, alguém sem preparo especial e conhecimento na área não será
tão prestativo como alguém que saiba o que você passou e como isso
provavelmente a afetou.
Consulte-se com alguém que seja capaz de fazer perguntas sobre a história de
sua família, parecidas com as perguntas levantadas neste livro. Você pode
desejar saber se seu possível terapeuta concorda com a premissa de que amar
demais é uma doença progressiva e se aceita a abordagem de tratamento
delineada aqui.
Minha posição pessoal é que essas mulheres deveriam consultar-se com
conselheiras do mesmo sexo. Compartilhamos da experiência básica do que é ser
mulher na sociedade, e isso cria uma profundidade especial na compreensão.
Também somos capazes de fugir dos quase inevitáveis jogos de homem-mulher
que possivelmente sejamos tentadas a jogar com um homem terapeuta ou que,
por azar, ele seja tentado a jogar conosco.
Mas simplesmente consultar-se com uma mulher não é suficiente. Ela
também deve ter consciência dos métodos mais efetivos de tratamento,
dependendo dos fatores presentes em sua história, e deve estar disposta a dar
referências a você sobre um grupo de apoio apropriado, formado por pessoas
como você — na verdade, fazer parte de tal grupo deve até ser um elemento
obrigatório de tratamento.
Por exemplo, não serei conselheira de alguém que seja co-alcoólatra, a menos
que ela se junte ao Al-Anon. Minha experiência ensinou-me que, sem um
envolvimento com essa instituição, co-alcoóla-
241
trás não se recuperam. Em vez disso, repetem seus padrões de comportamento
e continuam com sua maneira doentia de raciocinar, e a terapia por si só não é
suficiente para modificar esse fato. Com a terapia e o Al-Anon, entretanto, a
recuperação se dá muito mais rapidamente; esses dois aspectos de tratamento se
complementam muito bem.
Sua terapeuta deve fazer uma exigência parecida no sentido de você juntar-se
a um grupo de auto-auxílio que lhe seja apropriado. Do contrário, ela poderá
estar lhe dando margem para reclamar de sua situação, sem exigir que você
faça tudo que pode para se ajudar.
Cumpridas essas condições, você deve permanecer com a mesma terapeuta e
seguir suas recomendações. Ninguém jamais modificou o padrão de
relacionamento de uma vida toda através de, apenas, uma ou duas visitas a um
profissional.
Procurar ajuda pode requerer que você gaste dinheiro ou não. Muitas clínicas
possuem escalas móveis de preços, de acordo com sua capacidade de pagar, e
não há nenhuma correlação entre o terapeuta mais caro e o tratamento mais
efetivo. Muitas pessoas competentes e dedicadas trabalham para centros como
esses. O que você procura é alguém que tenha experiência e conhecimento e que
seja uma pessoa com quem você se sinta à vontade. Confie nas suas intuições e
esteja disposta a consultar-se com várias terapeutas, se necessário, para
encontrar uma que seja adequada para você.
Não é de todo necessário que você faça especificamente terapia para se
recuperar. De fato, consultar-se com a terapeuta errada causará mais danos do
que benefícios. Mas alguém que compreenda o processo doentio envolvido em
amar demais pode ser de ajuda incalculável para você.
Procurar ajuda não requer que você esteja disposta a acabar com seu
relacionamento atual, se você está em um. Também não é uma exigência a
qualquer época, durante o processo de recuperação. A medida que for seguindo
essas etapas, de um a dez, o relacionamento cuidará de si próprio. Quando as
mulheres vêm se consultar co-
242
migo, freqüentemente querem abandonar o relacionamento antes de estarem
prontas, o que significa que voltarão ao antigo ou iniciarão um novo, igualmente
doentio. Se seguem essas etapas, a perspectiva de permanecerem ou
abandonarem se modifica. Estar com ele pára de ser o problema, e deixá-lo pára
de ser a solução. Em vez disso, o relacionamento torna-se uma das muitas
considerações que devem ser feitas no quadro geral de como vivem suas vidas.
Por que é necessário procurar ajuda
É necessário porque você já se esforçou bastante, e no final nenhum de seus
maiores esforços surtiram efeito. Apesar de terem proporcionado alívio
ocasional temporário, o quadro geral é de deterioração progressiva. A chave do
mistério aqui é que você provavelmente não tem ciência de como isso se tornou
ruim, pois indubitavelmente você possui grande nível de negação operando em
sua vida. Essa é a natureza da doença. Por exemplo, mulheres pacientes minhas
disseram-me inúmeras vezes que os filhos não sabem que há algo errado em
casa, ou que essas crianças dormem nas noites de brigas. E um exemplo muito
comum de negação autoprotetora. Se essas mulheres encarassem o fato de que
seus filhos estão sofrendo verdadeiramente, seriam oprimidas pela culpa e pelo
remorso. Por outro lado, a negação dificulta bastante o fato de elas enxergarem a
gravidade do problema e obterem a ajuda necessária.
Assuma como verdadeiro o fato de que sua situação é pior e que a doença está
progredindo. Compreenda que você necessita de tratamento adequado, pois não
pode se tratar sozinha.
O que procurar ajuda implica
Uma das implicações mais temidas é que o relacionamento, se há algum, pode
acabar. Entretanto, isso não é necessariamente verdadeiro. Se você seguir as
etapas, garanto que o relacionamento irá melhorar ou acabar. Ele e você não se
manterão os mesmos.
243
Uma outra implicação temida é que o segredo é revelado. Já que a mulher
procurou ajuda com sinceridade, raramente há arrependimento por tê-lo feito,
mas o medo antecipado pode ser enorme. Se os problemas vividos por uma
determinada mulher forem desagradáveis e inconvenientes, ou gravemente
danosos, colocando até a sua vida em perigo, ela pode ou não optar por procurar
ajuda. É a dimensão do medo, e às vezes do amor-próprio também, e não a
gravidade dos problemas, que determinam a procura da ajuda.
Para muitas mulheres, procurar ajuda nem parece uma opção, pois fazê-lo é
arriscar-se desnecessariamente numa situação já precária. "Eu não queria deixá-
lo zangado" é a resposta clássica da mulher espancada quando perguntam por
que não chamou a polícia. Um medo intenso e profundo de piorar as coisas e,
ironicamente, uma convicção de que ela ainda consegue de alguma forma
controlar a situação proíbem-na de ir às autoridades ou a outras pessoas que
poderiam ajudá-la. Numa proporção menos dramática, isso também é
verdadeiro. Uma esposa frustrada pode não querer complicar a situação porque
a frieza e a indiferença do marido para com ela "não é tão mau assim". Diz a si
mesma que ele é basicamente um homem bom, sem muitas das peculiaridades
indesejáveis que ela vê nos maridos das amigas, e dessa forma ela suporta uma
vida sexual inexistente, a atitude negativa dele diante de cada entusiasmo seu, ou
a preocupação de fugir ao diálogo no tempo que passam juntos em casa. Isso não
é tolerância por parte dela, e sim espera paciente pela atenção dele, que nunca
vem, e, mais especificamente, falta de convicção de que ela merece mais
felicidade do que a que está conseguindo. Esse é um ponto importantíssimo na
recuperação. Você merece mais que as circunstâncias atuais? O que você está
disposta a fazer para melhorar a situação para si mesma? Comece pelo começo,
e procure ajuda.
244
2. Faça da própria recuperação a prioridade principal na vida
O que significa
Fazer da própria recuperação a prioridade principal significa que você está
disposta a seguir aquelas etapas necessárias para se ajudar, não importa o que
seja exigido. Ora, se isso soa extremado, pense por um instante em até que ponto
você estaria disposta a ir para fazer com que ele se modifique, para ajudar na
recuperação dele. Assim, simplesmente direcione a força daquela energia para
si mesma. Aqui, a fórmula mágica é que, embora todo o seu trabalho e esforços
não consigam modificar o homem, você consegue, com a mesma liberação de
energia, modificar-se. Dessa forma, use sua força onde ela fará algum bem —
na sua vida!
O que se requer para fazer da própria recuperação a prioridade principal
Exija um compromisso total com você mesma. Pode ser a primeira vez em
sua vida que você se considere verdadeiramente importante, verdadeiramente
merecedora da própria atenção e do próprio cuidado. Provavelmente isso seja
difícil para você fazer, mas, se seguir as recomendações de continuar as
consultas, de participar de um grupo de apoio, e assim por diante, você será
auxiliada no aprendizado de valorizar e promover seu bem-estar. Assim, por um
instante, faça a verdade sobre você aparecer, e o processo de cura terá início.
Logo, você se sentirá tão bem que desejará continuar.
Para auxiliar o processo, esteja disposta a conhecer seu problema. Se você
cresceu numa família de alcoólatras, por exemplo, leia algo sobre o assunto.
Assista a palestras e descubra o que se sabe atualmente sobre os efeitos dessa
experiência ao longo da vida. Será desconfortável, e por vezes doloroso, expôr-se
àquelas informações, mas não tão desconfortável quanto continuar a vivenciar
seus padrões de relacionamento sem qualquer compreensão de como o
245
Você precisará aprender a viver sem toda a agitação das batalhas inflamadas
de que você tem participado; sem aqueles dramas que consomem tempo e
sugam energia. Não é fácil. Muitas mulheres que amam demais sepultaram tão
profundamente seus sentimentos que necessitam da agitação de brigas,
rompimentos e reconciliações até para se sentirem vivas. Cuidado! De início,
pode ser tedioso ter apenas a própria vida interior para se concentrar. Mas, se
conseguir conviver com o tédio, ele se transformará em autodescoberta. E você
estará pronta para a próxima etapa.
7. Enfrente corajosamente os próprios problemas e os próprios defeitos
O que significa
Enfrentar os próprios problemas significa que, abandonando a direção e o
controle de outra pessoa e abandonando os jogos, você não possui agora nada que
a distraia da própria vida, dos próprios problemas e da própria dor. É a hora em
que precisa começar a analisar-se profundamente, com a ajuda de seu
programa espiritual, de seu grupo de apoio e de sua terapeuta, se tiver uma. Para
iniciar esse processo, não é indispensável ter uma terapeuta. Nos programas
Anônimos, por exemplo, pessoas que experimentam boa recuperação podem se
tornar orientadoras de novatas, e, nesse papel, freqüentemente ajudarão as
pessoas que orientam a passarem por esse processo de auto-análise.
Também significa que deve examinar bem a própria vida no presente, tanto o
que lhe faz se sentir bem quanto o que a torna infeliz. Faça em forma de listas.
Examine também o passado, todas as lembranças boas e ruins, as realizações, os
fracassos, as vezes que foi magoada, e as vezes que magoou. Examine tudo,
novamente listando. Enfoque áreas particularmente difíceis. Se o sexo for uma
dessas áreas, escreva uma história sexual pessoal completa. Se os homens
sempre foram um problema para você, inicie com seus relaciona-
266
mentos mais antigos, e, novamente, faça um relato completo. Pais? Use a
mesma técnica, desde o início, e escreva. Escrever bastante é um instrumento de
valor incalculável para ajudá-la a compreender seu passado e a começar a
reconhecer os padrões de comportamento, os temas que se repetem, em seus
conflitos com você e com outras pessoas.
Quando iniciar esse processo, faça um serviço tão completo quanto puder,
antes de parar. Essa é uma técnica que desejará utilizar novamente, mais tarde,
quando áreas difíceis começarem a surgir. Inicialmente, talvez você se concentre
em relacionamentos. Mais tarde, numa outra época, talvez possa querer escrever
a história dos empregos, como se sentia com relação a cada um antes de iniciá-
los, durante o período em que esteve empregada, e o período seguinte.
Simplesmente deixe fluírem suas lembranças, pensamentos e sentimentos.
Conforme escreve, não examine o texto procurando por padrões; faça isso mais
tarde.
O que se requer para enfrentar corajosamente os próprios problemas e os
próprios defeitos
Você terá de escrever bastante, comprometendo-se com o tempo e a energia
necessários para executar esse trabalho. Pode ser que, para você, escrever não
seja um meio de expressão fácil, em que se sinta à vontade. Entretanto, é a
melhor técnica para esse exercício. Não se incomode em escrever
corretamente, ou mesmo bem. Faça de forma a ter sentido para você.
Você precisará ser absolutamente honesta e auto-reveladora em tudo o que
escrever.
Quando completar esse projeto, o melhor que conseguir, divida-o com outra
criatura que se importe com você e em quem confie. Essa pessoa deverá
compreender o que você está tentando fazer para se recuperar, e pode
simplesmente ouvir o que escreveu sobre sua vida sexual, relacionamentos, pais,
sentimentos com relação a
267
você mesma, episódios bons ou ruins. A pessoa que escolher como ouvinte
deverá obviamente ter compaixão e compreensão. Não é necessário fazer
comentários, e isso deve ficar claro desde o início. Sem conselhos, sem
encorajamento. Apenas ouvir.
E, a essa altura de sua recuperação, não faça de seu parceiro o ouvinte de tudo
isso. Muito mais tarde, você pode optar por dividir ou não com ele o que
escreveu. Mas, no momento, não é apropriado dividir isso com ele. Você está
permitindo que alguém ouça para que possa experimentar como é contar sua
história e ser aceita. Esse não é um artifício para se passar a ferro os pontos
amassados no relacionamento. Seu propósito é a autodescoberta, mais nada.
Por que é necessário enfrentar corajosamente os próprios problemas e os
próprios defeitos
A maioria de nós, que amamos demais, empenhamo-nos em culpar outras
pessoas pela nossa infelicidade, enquanto negamos nossas próprias falhas e
opções. Essa é uma abordagem doentia da vida que deve ser cortada pela raiz e
eliminada, e a forma de se fazer isso é dar uma olhada honesta em nós mesmas.
Apenas enxergando seus problemas e seus defeitos (e seus pontos positivos e
sucessos) como seus, em vez de relacioná-los de certa forma a ele, é que você
poderá executar as etapas para modificar o que precisa ser modificado.
O que implica enfrentar corajosamente os próprios problemas e os próprios
defeitos
A princípio, você será, muito provavelmente, capaz de abandonar a culpa
secreta relacionada com muitos dos acontecimentos e sentimentos do passado.
Isso deixará o caminho livre, permitindo que mais alegria e atitudes mais
saudáveis se manifestem em sua vida.
Mais tarde, devido ao fato de alguém ter ouvido seus piores segredos e você
não ter-se destruído por isso, começará a sentir-se mais segura no mundo.
268
Quando você pára de culpar outras pessoas e assume responsabilidades pelas
próprias opções, torna-se livre para abraçar todos os tipos de escolhas que não lhe
eram acessíveis quando se via como uma vítima dos outros. Isso prepara você
para começar a mudar aquelas coisas em sua vida que não são boas, nem
satisfatórias, nem realizadoras.
8. Cultive em você quaisquer necessidades a serem desenvolvidas
O que significa
Cultivar em você uma necessidade a ser desenvolvida significa não esperar
que ele se modifique para que você continue vivendo. Também significa não
esperar pelo apoio dele — financeiro, emocional ou em assuntos práticos — para
iniciar sua carreira, ou mudar de carreira, ou voltar para a escola, ou qualquer
coisa que queira fazer. Em vez de tornar seus planos dependentes da cooperação
dele, planeje como se não tivesse ninguém em quem se apoiar, a não ser você.
Cubra todas as contingências — cuidar do filho, dinheiro, tempo, transporte —
sem usá-lo como recurso (ou como desculpa!). Se você já está protestando ao ler
isso, imaginando que sem a cooperação dele seus planos são impossíveis, julgue
por você mesma, ou procure raciocinar junto a uma amiga, como seria se nem
ao menos o conhecesse. Descobrirá que é bem possível fazer a vida funcionar
para você quando parar de depender dele.
Cultivar-se significa perseguir ativamente seus interesses. Se você esteve
ocupada demais com ele, e não possui absolutamente uma vida própria, então
comece por procurar vários caminhos diferentes para descobrir o que realmente
a atrai. Isso não é fácil para muitas mulheres que amam demais. Por ter feito
daquele homem seu projeto de vida por tanto tempo, é desagradável deslocar o
enfoque para você mesma e explorar o que é bom para o seu próprio
crescimento. Esteja disposta a experimentar ao menos uma atividade
superdiferente a cada semana. Veja a vida como uma mesa farta,
269
reações inevitáveis daqueles cujo bem-estar você certa vez colocou antes de
seu próprio. Não argumente, não se desculpe ou tente se justificar. Permaneça
tão calma e animada quanto possível e continue com suas atividades.
As modificações que você faz em sua vida exigem que as pessoas ao seu redor
também se modifiquem, e, naturalmente, elas resistirão. Mas a indignação delas
será por pouco tempo, a menos que você dê crédito à indignação. É
simplesmente uma tentativa de forçar você a voltar para o seu comportamento
antigo e abnegado, a fazer por elas o que podem e deveriam fazer por elas
mesmas.
Você deve ouvir cuidadosamente a sua voz interior com relação ao que é bom
para você, ao que é certo, e então segui-la. Essa é a forma de se desenvolver o
auto-interesse saudável, ouvindo as próprias sugestões. Até agora, você tem sido
provavelmente quase que uma especialista em captar as sugestões de outras
pessoas sobre como elas queriam que você se comportasse. Apague essas
sugestões, ou elas continuarão abafando as suas próprias.
Tornar-se egoísta, enfim, requer que você reconheça que seu valor é imenso,
que seus talentos são dignos de expressão, que sua realização é tão importante
quanto a de qualquer outra pessoa, e que seu bom caráter é o maior presente que
você tem a oferecer para o mundo como um todo, e mais especialmente àqueles
mais íntimos seus.
Por que é necessário tornar-se "egoísta"
Sem esse forte compromisso com você mesma, a sua tendência é de se tornar
passiva, desenvolver-se não para sua própria expressão grandiosa mas para o
benefício de uma outra pessoa. Embora tornar-se egoísta (que também significa
tornar-se honesta) fará de você uma parceira melhor, esse não pode ser o
objetivo final. Seu objetivo deve ser alcançar seu próprio caráter grandioso.
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Sair de todas as dificuldades que você encontrou não é o suficiente. Ainda há
sua própria vida para ser vivida, seu próprio potencial para ser explorado. É a
próxima etapa natural, conforme você ganha respeito por você mesma e
começa a honrar sua vontade e seus desejos.
Assumir responsabilidade por você mesma e por sua felicidade dá uma grande
liberdade a filhos que se sentiram culpados e responsáveis pela sua infelicidade
(o que sempre acontece). Um filho não poderá nunca pagar a dívida quando uma
mãe sacrificou a vida dela, a felicidade, a realização pelo filho ou pela família.
Ver uma mãe abraçar a vida completamente dá ao filho permissão para fazer o
mesmo, da mesma forma que ver uma mãe sofrer indica para o filho que a vida
é só sofrimento.
O que implica tornar-se "egoísta"
Seus relacionamentos automaticamente se tornam mais saudáveis. Pessoa
alguma "deve" a você o fato de não ser o que é, porque você não é mais outra
pessoa, a não ser você mesma para ela.
Você liberta outras pessoas em sua vida para cuidarem delas mesmas, sem se
preocuparem com você. (É bem provável que seus filhos, por exemplo, sintam-
se responsáveis por aliviar sua frustração e sua dor. Conforme cuida melhor de
você mesma, eles são libertados para cuidar melhor deles mesmos.)
Agora, você pode dizer sim ou não quando quiser.
Quando você muda dramaticamente os papéis, de zelosa dos outros a zelosa de
você mesma, é bem provável que seu comportamento se equilibre através de
mudanças de papéis em seus relacionamentos. Se as mudanças forem difíceis
demais para o seu homem, ele pode ir embora, procurar por outra pessoa que
seja como você
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costumava ser — de forma que você pode não terminar essa história com a
mesma pessoa com quem começou.
Por outro lado, é irônico que, tornando-se mais capaz de cuidar de si mesma,
você pode atrair alguém que seja capaz de cuidar de você. Quando nos tornamos
mais saudáveis e mais equilibradas, atraímos parceiros mais saudáveis e mais
equilibrados. Conforme nos tornamos menos carentes, mais necessidades
satisfazemos. Quando abandonamos a função de superprotetora, damos espaço
para alguém cuidar de nós.
10. Partilhe com outras pessoas o que você experimentou e aprendeu
O que significa
Partilhar com outras pessoas suas experiências significa lembrar-se de que
essa é a última etapa na recuperação, não a primeira. Ser prestativa demais e
concentrar-se em outras pessoas faz parte de nossa doença. Assim, espere até
que tenha trabalhado bastante na própria recuperação para lidar com essa etapa.
Em seu grupo de apoio, formado por semelhantes, significa dividir com
novatos a transformação que se operou em sua situação. Não significa dar
conselhos, apenas explicar o que funcionou para você. Também não significa dar
nomes e jogar a culpa nos outros. Quando se está nesse estágio da recuperação,
sabe-se que culpar outros não ajuda em nada.
Partilhar com outros também significa que, quando você encontra uma pessoa
de passado parecido com o seu, você está disposta a falar da própria recuperação
sem necessidade de coagir aquela pessoa a fazer o mesmo que você fez. Aqui,
ao contrário do que acontecia em seu relacionamento, não há mais espaço para
dirigir e controlar.
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Partilhar pode significar reservar algumas horas como voluntária para ajudar
outras mulheres, talvez trabalhando num serviço telefônico para receber
chamadas de alguém necessitado ou encontrando-se em particular com alguém
que procurou por ajuda.
Finalmente, pode significar ajudar na informação de médicos e conselheiras
sobre a abordagem adequada de tratamento para você mesma e para mulheres
como você.
O que se requer para partilhar o que você experimentou e aprendeu
Você deve expor seu profundo sentimento de gratidão por chegar onde chegou,
e pela ajuda que outros lhe deram pelo caminho, através da partilha dos casos
deles.
Você precisa ser honesta e estar disposta a abandonar seus segredos e sua
necessidade de "parecer bem".
Finalmente, você deve revelar uma capacidade de doar-se aos outros sem
esperar por uma gratificação pessoal. Grande parte da "doação" que praticamos
quando amávamos demais era, na verdade, manipulação. Agora, somos livres o
bastante para sermos capazes de dar livremente. Nossas próprias necessidades
estão satisfeitas e estamos repletas de amor. A coisa natural a se fazer agora é
dividir esse amor, sem esperar nada em troca.
Por que é necessário partilhar o que você experimentou e aprendeu
Se você acredita que tem uma doença, também precisa perceber que, tal
como um alcoólatra sóbrio, você pode cometer algum deslize. Sem vigilância
constante, você poderia retomar suas velhas maneiras de pensar, sentir e se
relacionar. O fato de trabalhar com novatos ajuda a mantê-la em contato com o
seu sofrimento passado. Não deixa que você negue o quanto foi realmente ruim,
pois a
277
história de uma novata será bem parecida com a sua, e você se lembrará com
compaixão, por ela e por você mesma, de como era. Falando constantemente
sobre o assunto, você dá esperança a outras pessoas, ao mesmo tempo que
valoriza tudo por que passou na luta para se recuperar. Você dá perspectiva à sua
coragem e à sua vida.
O que implica partilhar o que você experimentou e aprendeu
Você ajudará outras pessoas a se recuperarem. E manterá a própria
recuperação.
Dessa forma, essa partilha é basicamente um ato de egoísmo saudável, através
do qual você promove ainda mais o próprio bem-estar, permanecendo em
contato com os princípios da recuperação, que lhe servirão a vida toda.
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APÊNDICES
2. Afirmações
A solução perfeita para cada problema vem agora. Estou livre e cheia de luz.
Se você crê em Deus ou em uma força maior, faça dessa crença parte
importante de suas afirmações.
Deus me ama. Deus me abençoa.
Deus está atuando em minha vida.
A oração da serenidade é uma das melhores afirmações possíveis, quando dita
assim:
Deus me dê a serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, a
coragem para modificar as que posso, e a sabedoria para distinguir a diferença.
(Lembre-se de que você não pode modificar outras pessoas; você pode se
modificar.)
Se você não crê em Deus, você pode se sentir melhor com uma afirmação
como a que segue:
Todas as coisas são possíveis através do amor.
O amor está atuando em mim para me curar e me fortalecer. Para me
acalmar e me guiar para a paz.
É importante que você também crie suas próprias declarações, aquelas
servem como luva para você e seu caso particular. Assim, pratique algumas das
listadas aqui até que esteja preparada para elaborar suas próprias afirmações
cem por cento positivas, incondicionais e plenamente válidas, fabricadas por
você e para você. Não faça afirmações do tipo "Tudo vai perfeitamente bem
entre Tom e mim e nós nos casamos". O "e nós nos casamos" pode não ser
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a solução perfeita para qualquer coisa que aconteça entre você e Tom. Deixe o
"Tudo vai perfeitamente bem", acrescentando, por exemplo, "para o meu
proveito maior". Fique longe de querer resultados específicos. Simplesmente
afirme você mesma, sua vida, seu valor e seu futuro maravilhoso. Quando você
faz afirmações, você está programando seu inconsciente para se tornar disposto a
abandonar os velhos padrões e a entrar em formas novas, saudáveis, alegres e
prósperas de viver. Veja, por exemplo, esta afirmação:
Eu esqueço toda a dor do passado e saúdo a saúde, a alegria e o sucesso.
Viu como se faz? Agora, aqui está um espaço para suas próprias criações.
*** FIM ***
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