Apocalipse Magic The Gathering
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CAPÍTULO 1
OS GLADIADORES
Tudo levou a isso: dois homens ajoelhados lado a lado perante Yawgmoth.
Certamente, estes não eram meros homens. Um era um deus virtual. Seu cabelo
longo e loiro acinzentado se espalhava pela pedra, e seus olhos de powerstones
projetavam uma profunda sombra. Urza Planinauta abrira pela primeira vez o portal para
Phyrexia, lutara a primeira guerra Dominariana contra hordas de demônios e planejara e
executara a atual guerra mundial até seus mais minuciosos detalhes. Ele viveu por
milênios e gastou todo o tempo se preparando para encarar Yawgmoth – embora ele nunca
esperasse fazê-lo em uma completa e desprezível reverência intencional. Ao lado dele
estava ajoelhado um homem que não tinha nem uma centena de idade. Nenhum fio cinza
aparecia em seu cabelo preto, e nenhuma linha de preocupação na testa, embora ele
herdara preocupação suficiente pelo mundo todo. Desde que Urza tinha iniciado,
involuntariamente, todo este horror.
Lado a lado, as duas maiores esperanças de Dominária se ofereciam a Yawgmoth.
O Inefável estava lá e não estava lá. A mente de Yawgmoth formou o estrado
negro onde Gerrard e Urza se curvavam. Mais frio, mais afiado, mais implacável do que
granito, o estrado roubava cada respiração enquanto fazia os dois homens ofegarem. Ele
sentia a homenagem deles em mãos esticadas e suadas. Além das pontas dos dedos havia
mais peças da mente de Yawgmoth – clavas, machados, espadas, maças, chicotes,
manguais, ferros de marcar, e cada outra morte concebida pelo Senhor da Morte. Estas
armas fantásticas, mineradas, golpeadas e afiadas pela Única Mente, brilhavam
avidamente. Yawgmoth estava no estrado e nas armas, nas areias negras que enchiam a
arena, na arquibancada negra que os cercavam e no céu negro que cobria a todos. A arena
e suas armas não eram nem menos nem mais do que sonhos de um deus.
Em toda essa irrealidade, somente uma coisa era real.
Gerrard ergueu sua cabeça e olhou para as arquibancadas.
Uma figura solitária permanecia lá. Hanna. Cabelo dourado, olhos azuis, pele de
seda, lábios rosados – somente ela era sólida e verdadeira. Hanna se tornara o mundo para
Gerrard. Ele não mais se importava em salvar Dominária ou até mesmo ele. Ele se
importava só em salvá-la. Para fazê-lo, ele condenara sua alma. Era por isso que Gerrard
estava prostrado aqui.
Mas o que dobrava os joelhos do Planinauta? Certamente, ele não se curvava por
amor verdadeiro. Quem de toda a eternidade, já merecera o amor de Urza? Quem, salvo
o próprio Yawgmoth?
De repente, Hanna não estava mais sozinha na arquibancada. De corredores
sombrios, criaturas emergiram.
Os primeiros eram altos e delgados, com rostos esqueléticos e corpos envoltos em
trajes negros. Eles se mexiam como marionetes em cordas, sem peso e tensos. Atrás deles
trotavam criaturas colossais.
Olhos enormes rolavam agitadamente em rostos amassados. Mãos cheias de
garras se arrastavam pelas escadas. Então, vieram monstros aracnídeos que trotavam
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sobre que estalavam. Bestas se achegavam aos montes – guerreiros com cabeça de bode
e homens cigarras, horrores mecânicos e diabretes balbuciantes, criaturas com pele
mucosa e cérebros sobre pernas artrópodes, monstros cobertos de facas afiadas, albinos
carecas com línguas de serpente, anjos com olhos de ônix, demônios com lábios de
sangue, sabujos vampiros, víboras esqueléticas. Todos Phyrexianos.
Sem dúvida, esse era o Círculo Interno de Yawgmoth. Quem mais ele admitiria
neste lugar profano? Estes eram os seus asseclas mais malignos, assassinos e odiosos.
Eles deslizavam, flutuavam, batiam com os pés e se movimentavam rapidamente para
tomarem acento ao redor do anfiteatro. O chão tremia. Logo, a arena estaria cheia.
Chiados, guinchos, rugidos e gemidos se revoltavam no ar. O fedor da podridão,
imundície, sangue e óleo enchiam o lugar.
Apesar de toda selvageria, nenhuma besta tocou em Hanna. Ela caminhou entre
eles, inviolada e determinada, em direção a uma sacada no fim da arena.
Na sacada estava um dragão negro, maior do que o planinauta Szat, maior do que
o Primordial Crosis. O manto da besta se eriçava com chifres. Suas várias papadas se
expandiam com hálito vil. Garras do tamanho de um homem se agarravam ao corrimão
da sacada e pareciam afundar na pedra. Asas volumosas se fechavam como um manto
sobre costas cheias de penugem.
Urza ergueu sua cabeça e olhou. Sobre lábios espantados, ele falou o nome,
“Yawgmoth.”
Hanna subiu até a sacada e sentou dentro da sombra escura do dragão entronizado.
Ela colocou sua mão sobre a pata dele.
Pasmo e apavorado, Gerrard disse, “Ela está pegando a mão dele. Está pegando a
mão de Yawgmoth.”
“Yawgmoth não é somente aquele dragão,” Urza replicou, apontando em direção
à multidão perversa. “Todos eles são Yawgmoth.”
Gerrard compreendeu. Aqueles espectadores reunidos não eram servos de um
deus. Eram avatares. Ele enchera a arena com simulacros carnais dele mesmo. Ele
enxergava através dos olhos deles, ouvia através de suas orelhas e sentia através de seus
corpos. Embora milhares e milhares de criaturas se amontoavam, isto era, na verdade,
uma audiência privada.
A multidão se aquietou. Placas de bocas e mandíbulas estremeceram em silêncio.
Cada olho focado sobre as duas figuras no meio deles. O peso de aquele olhar pressionou
a cabeça de Gerrard e Urza até a pedra. Onde uma vez eles prostraram seus rostos, agora
seus corpos inteiros se prostravam. Aquele olhar podia tê-los esmagados, mas não
esmagou. Yawgmoth não queria os corpos deles. Ele queria a adoração deles.
Por entre milhares e milhares de dentes e línguas, uma única voz se formou: a voz
de Yawgmoth, “Finalmente, chegou a isso.”
“Sim, Lorde Yawgmoth,” Urza respirou reverentemente, “finalmente.”
“Era inevitável,” continuou a voz da multidão, a voz do Único. “Todas as coisas
vivas se prostrarão diante de nós. Todas as que não o fizerem morrerão. Até mesmo vocês,
nossos grandes inimigos, se deitam sobre seus rostos em adoração – e vocês vivem.”
“Louvado seja você, Lorde Yawgmoth,” respondeu Urza.
Gerrard jazia silencioso diante do terrível deus.
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“Mas vocês dois não viverão. Somente um é necessário para nos entregar
Dominária. Somente um ascenderá. O outro morrerá.”
Os homens ergueram as cabeças e olharam para a alta sacada.
Os olhos de Gerrard refletiram o brilho azul e magro de Hanna.
Os olhos de Urza – facetados de forma diferente – refletiram somente a escuridão
absoluta do dragão.
Os homens não falaram para seu novo mestre, mas seus rostos faziam uma
pergunta harmônica: Serei eu, Lorde? Serei eu que sentarei a sua mão direita? Serei eu
que morrerei?
“Nós não escolheremos quem viverá e quem morrerá. Pelo conflito, nós nos
erguemos. Pela morte, nós vivemos. Pela Phyresis, nós nos transformamos. Nós
massacramos nações e mundos, empilhamos corpos até os céus para que pudéssemos
ascender. E nós ascendemos.”
“Se vocês ascenderem, devem fazê-lo em batalha. Vocês já ascenderam até aqui.
Vocês enterraram seus amigos – nações de amigos – e subiram em suas costas. Como
mais poderiam alcançar seu caminho até aqui, se curvar diante de nós? Mas para se erguer
ao nosso lado, devem lutar mais uma batalha, devem enterrar mais um amigo.”
“Você, Urza Planinauta, e você, Gerrard Capasheno, se enfrentarão até a morte.
Nós somos o Senhor da Morte. Faremos do vitorioso nosso servo. O que perecer nós o
tornaremos em nosso brinquedo.”
Urza fitou solenemente em direção à sacada, seus olhos reluziam no pensamento.
“Grande Lorde, perdoe minha presunção, mas seria um desperdício destruir essa obra-
prima ao meu lado. Gerrard Capasheno levou oitocentos anos para ser construído. Ao
invés de destruí-lo, permita-me entregá-lo a você, um presente, como foi meu titã
mecânico-”
Gerrard interrompeu, “Eu estava para dizer que vergonha seria esmagar este velho
fóssil. Muitos pagariam para ver seus ossos.”
Urza rosnou. “Você é um mero homem. Não pode esperar me derrotar. Eu sou um
planinauta.”
Antes que Gerrard pudesse responder, a multidão falou as palavras de Yawgmoth.
“Não aqui, Urza. Você não é um planinauta aqui. Nós o despojamos de cada arma, cada
feitiço, cada imunidade. Aqui, você e Gerrard são mortais. Um de vocês provará isso
logo. Gerrard, deixe que sua juventude o fortaleça. Urza, deixe que as eras o fortaleçam.
Elas e sua astúcia serão suas armas naturais. As únicas outras armas que poderão carregar
são essas diante de vocês.”
Os gladiadores – pois era isso no que se transformaram – olharam para as espadas,
machados e clavas enfileirados diante deles. Energias circulavam ao redor de lâminas
afiadas e lanças brutais.
“Cada uma delas é mortal a sua própria maneira. Cada uma também está
magicamente aprimorada para acertar, não somente a carne, mas também o espírito.
Perfeitamente concebidas, perfeitamente projetadas, perfeitamente balanceadas, estas
armas são as melhores que vocês já usaram. Aprendam com elas. Experimentem.
Pratiquem um no outro, e quando vocês conseguirem desferir um golpe mortal e limpo,
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façam. Nós julgamos os vivos e os mortos. Somente uma vitória digna e pura será
recompensada.”
Gerrard se colocou sobre um dos joelhos. Olhar decidido, ele olhou para
Yawgmoth e Hanna. “Eu alegremente lutarei com Urza. Ele me criou em miséria e me
condenou a se ajoelhar aqui. Eu lutaria e o mataria mesmo sem recompensa, e ascender
ao seu lado, Lorde Yawgmoth, é uma grande recompensa. Ainda assim, a competição
seria mais interessante se você desse uma dádiva extra ao vencedor e uma maldição extra
ao perdedor.”
O terrível bestiário escutou. Através de presas e probóscides, eles falaram. “Nós
concederemos. O vencedor receberá aquilo que mais deseja. A alma do subjugado,
ajuntada a nós, receberá o que mais teme. Mas seu inimigo vai declarar primeiro. Diga
seu desejo, Urza chamado de Planinauta.”
Embora Gerrard tenha se colocado sobre um joelho, Urza permanecia de bruços.
Sua boca lançava vapor pela pedra. Ele falou sussurrando, mas o estrado era Yawgmoth.
Ele ajuntou o som e o enviou pela arena.
“Somente desejo uma dádiva, Grande Lorde – aprender com você, compreender
tudo o que você fez e como fez, explorar o brilhantismo que contemplo neste lugar, neste
mundo. Quero saber como você deu vida ao metal e como transformou vida em metal.
Quero compreender, não somente o artifício, mas Phyresis. Quero adorar, e em adoração,
conhecer.”
O silêncio respondeu à pergunta, e então, as vozes: “Assim será concedido a você,
Urza chamado Planinauta, se você triunfar.” Os olhos da multidão se viraram para
Gerrard. “E você, Capasheno? Qual dádiva você pedirá?”
Ele se colocou de pé. O movimento pareceu estranho, ao lado do planinauta
prostrado. Mas alguma coisa nos olhos de Gerrard evitou que Yawgmoth atacasse.
“Somente quero Hanna. Traga ela de volta a vida. Eu não a quero com cordões,
assim como você mantém Selenia. Eu a quero livre, viva, e capaz de caminhar pelo portal,
de volta para Dominária. Quero que a marque com uma proteção, assim nenhum
Phyrexiano vai ousar feri-la. Por Hanna, eu luto.”
Uma sensação percorreu a hoste reunida. Na sacada negra, Hanna sentava ao lado
do enorme lagarto. Sua mão não se levantou da grande garra.
“Por uma mulher, você desistiria de um mundo inteiro?” Gerrard respirou fundo.
“Ela é meu mundo.” Cabeças balançaram e línguas cacarejaram. “Uma grande fraqueza,
Gerrard, ter um coração muito grande e mole – uma grande fraqueza em um mundo cheio
de lâminas. Garantiremos essa dádiva a você, assim como pediu, se você triunfar.” O ar
gemeu com uma ansiosa tensão. Um brilho súbito marcou as armas na borda do estrado.
“Agora, Urza Planinauta e Gerrard Capasheno – ergam-se e peguem suas lâminas e
lutem.”
O mestre de armas Benaliano não se importava com alabardas, adagas, tridentes
ou machadinhas. Gerrard queria uma espada – não uma espada pesada ou um florete
tênue, mas um sabre sólido, a lâmina de um desbravador de céus. Ele caminhou em
direção da mais próxima. Curvando-se, ele apertou o cabo. Ele formigava, vivo, em suas
mãos. Farpas de energia aferroavam suas articulações e percorriam suas veias. A espada
e seu poder arcano alcançaram os nervos do seu corpo e deram nós em seu coração. Está
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lâmina tinha muito que ensinar. Gerrard virou-se, nivelando a espada. Ela cantarolava,
sedenta pelo sangue do planinauta.
Urza estava lá, desarmado. Seu estranho olhar se movia pacientemente de arma
para arma. Aqui estava o artífice, analisando cada martelo e bastão contra Gerrard como
se ele fosse um motor para ser desmantelado. Através da sua mente, se projetavam as
taxas de peso, resistência a tração, momentos de arco e torções calculadas. Ele não mataria
Gerrard, mas o desmontaria, um artífice destruindo uma máquina.
O pensamento enfureceu Gerrard. Os nós do coração se apertaram, torcendo o
ódio dos músculos retorcidos. Deixe que Urza pondere sobre a escolha da arma,
desperdiçando tempo que não tinha. Gerrard mostraria a ele seu erro. Ele caminhou pelo
estrado.
Com os olhos brilhando, Urza se curvou e puxou um simples pique de aço polido.
Era uma arma defensiva, própria para manter atacantes à distância, mas inútil se eles se
aproximassem. Mesmo assim, as energias negras rastejavam pela haste dizendo que esta
arma tinha seus segredos. A energia saltava nas mãos do planinauta e rastejava sob sua
carne, ensinando seus caminhos.
Gerrard urrou através de dentes trincados e atacou. Ele rodopiou a espada por cima
e a trouxe abaixo com um poderoso golpe.
Urza o anulou, empurrando o pique diante dele. O aço cego evitou o aço afiado.
O sabre desceu até o punho, mas não conseguiu forçar para o lado. Com as duas mãos na
arma, Urza alavancou. Ele jogou a ponta do pique em direção ao rosto de Gerrard.
O mais jovem examinou seu ataque, fincou os pés e recuou. A ponta do pique
passou por baixo do maxilar, abrindo um rasgo vermelho na barba. Seu sangue desenhou
uma linha no ar. Manchas vermelhas se espalharam pela pedra negra, que foram engolidas
vorazmente.
Na arquibancada, cabeças adornadas se ergueram em direção ao céu e gargantas
viscosas vomitavam exclamações de deleite. O dragão agarrou o corrimão com alegria.
Somente Hanna olhava com um silêncio incerto.
Gerrard recuou para se concentrar. Ele limpou uma mancha quente da sua mão. O
primeiro sangue pertencia a Urza. O velhinho tinha força, no final das contas, mas Gerrard
tiraria o último sangue.
Ele levantou sua espada outra vez e investiu. Como da outra vez, o pique do
planinauta golpeou seu rosto. Desta vez, Gerrard se virou para o lado. Ele agarrou a haste
da arma com sua mão ensanguentada e a arrastou, estendendo seu sabre. Urza teria que
cambalear para a lâmina ou soltar o pique. Ele fez o último, embora não rápido o bastante.
Gerrard bateu com a ponta do pique no seu inimigo, acertando Urza na garganta e o
arremessando sobre as armas.
Girando o pique, Gerrard apontou para Urza. “Você matou muitos. Como se sente
ao encarar sua própria morte?”
Urza se pôs de pé, num movimento que contradizia sua aparência de velho. Ele
empunhou uma maça cuja cabeça projetava pontas. Um olhar radiante encheu os olhos
de Urza.
“Eu sempre encarei minha própria morte, Gerrard. Eu construí máquinas para
espantá-la, mas eu a via em cada placa polida. Eu construí academias para romper com a
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tirania do tempo, mas eu enterrei meus alunos lá. Eu construí até mesmo você, Gerrard,
e aqui está você, a face da morte.”
A maça girou perversamente entre eles, empurrando a espada de Gerrard.
“Mas você não é minha morte, Gerrard. Yawgmoth é. Ele é minha morte, e a sua
morte, e a morte de cada criatura. Eu aceito isso. Você também devia. Yawgmoth nunca
dará Hanna a você. Ele é a morte de todos.”
Um brado subiu da multidão. Yawgmoth amou o discurso de Urza.
Gerrard não gostou. “Está errado, Urza, sobre isso e tudo mais. Eu recuperarei
Hanna e a libertarei deste lugar. Matarei você.” Ele se lançou, desejando somente tirar o
sangue do homem. O sabre fatiou em direção ao pescoço do planinauta.
Urza esquivou, balançando sua maça para golpear a cabeça de Gerrard.
As duas armas atingiram de uma só vez – espinhos rasparam a bochecha do jovem
e a espada raspou a orelha do velho. Parados por um momento, dentes serrados sem
sorrisos, os inimigos se encararam. Eles encaravam a face sangrenta da morte...
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CAPÍTULO 2
7
“Eles têm as coisas sob controle,” Karn disse. Sisay balançou a cabeça. “Não por
muito tempo.”
Através do declive, gargantuas Phyrexianas galopavam. Enormes punhos de
músculo, as criaturas berravam. Suas garras balançavam o chão. Suas garras agarravam
e matavam minotauros. Suas presas prendiam os Metathrans.
“Eles são mais do que suficientes,” Karn disse enquanto mais defensores
chegavam.
Kavus de Yavimaya encheram a batalha. Lagartos enormes nascidos do fogo e
folhagem, os Kavus tinham um gosto pela carne Phyrexiana. O menor dos Kavus eram
bestas de quatro patas que podiam engolir uma cria de sangue. O maior deles eram
monstros com seis patas que podiam engolir um pelotão inteiro. Em segundos, eles tinham
acabado de fazer isso. A batalha se tornou uma alimentação frenética dos Kavus.
“E se você precisar de maiores garantias,” Karn disse placidamente, “contemple.”
Além do seu braço marchava um exército que encobria o sol. Das florestas
pantanosas abaixo, caminhavam os ents magnigote. Altos como montanhas e largos como
cidades, as árvores animadas eram defensores indomáveis do mundo. Suas raízes se
agarravam no chão, os levando em direção a batalha. Seus galhos alcançavam o vento.
Em minutos, o Bons Ventos estaria cercado com segurança pelos ents.
Sisay olhou maravilhada. “Como você sabia, Karn?”
“O navio,” ele replicou simplesmente. “Seu casco chama os magnigotes. Ele os
invocou.”
Sisay balançou a cabeça. “Não. Quero dizer tudo isso. Como você sabia que
ficaríamos a salvo?”
Ele pareceu encolher os ombros, um movimento estranho em seus maciços
ombros. “De repente, eu sei várias coisas. Venha, vou explicar.” Com isso, ele se virou e
caminhou para a popa, em direção a sala do capitão.
Sisay o seguiu. Ela acenou distraidamente para Tahngarth se ajuntar a ela. “É
melhor você vir para ouvir isso.”
O guerreiro minotauro olhou para cima, onde ele se agachou ao lado do
cabrestante. Ele se arrebentou durante a aterrissagem, e Tahngarth esteve trabalhando
para recoloca-lo. Ele também não estava na melhor forma. Seu pelo marrom e branco
estava manchado com queimaduras, algumas serias. Suor escorria dos seus chifres
retorcidos. Tahngarth assentiu, olhando depois para Sisay.
“Venha Multani,” ele rugiu, parecendo falar com um buraco no convés. “Karn
encontrou alguma coisa.”
Das placas despedaçadas e madeira carbonizada, outra figura se formou. Ele
construiu seu corpo das vinhas e do casco vivo do Bons Ventos. Uma estrutura alta e
lascada com juntas de cânhamo e com buracos nos olhos, Multani fez até Tahngarth
parecer pequeno.
“Espero que seja algo miraculoso,” Multani disse. “Meus milagres acabaram.”
Sempre reticente, Tahngarth somente assentiu. Os dois seguiram sua capitã.
Sisay caminhou pelo convés da meia nau. A caminho do seu escritório, ela se
agachou ao lado de Orim. A curandeira estava agachada ao lado de um homem que
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quebrara seu braço na aterrissagem forçada. Ela colocou o membro numa tala e estava
terminando o nó final na tipoia. Sisay colocou a mão sobre o ombro dela.
Orim olhou para cima, sorrindo ironicamente. Seus olhos brilhavam como as
moedas penduradas no seu cabelo escuro. “Ele é o último dos mais graves. Muitas outras
inchações e contusões, embora.” Sisay estudou o homem. “Como está seu braço,
Ensign?” “Bem, Capitã,” ele replicou, reunindo sua coragem. Ele ergueu o braço
enfaixado. “Estava até pensando em afiar a ponta da tipoia e usá-la como uma garra.”
Sisay riu. “Bom homem.” Ela se virou para Orim. “Precisamos de você no
escritório.”
Orim assentiu, olhando por cima dos ombros de Sisay. Multani e Tahngarth
também estavam lá. “Você está queimado!”
“Mais tarde,” Tahngarth disse, afastando a sugestão. “Negócios importantes.”
Um olhar pensativo entrou nos olhos de Orim, um olhar compartilhado por seus
companheiros. Isso foi tudo o que sobrara do núcleo de comando do Bons Ventos. Gerrard
se fora – sabe-se lá para onde – e Squee com ele. Hanna estava morta, e Mirri e Rofellos.
Crovax e Selenia se voltaram para o mal, e quem sabia o destino de Takara ou Ertai?
Somente estes cinco permaneciam – dois homens, um minotauro, um espírito da floresta...
e Karn. Ele esperava por eles na frente da porta do escritório.
“Vamos,” Sisay disse quietamente. Ela levou seus companheiros até o escritório.
Era um lugar decente. Em cada lado, a popa da amurada formava paredes
convergentes. A madeira brilhava com vida. As lanternas brilhavam nas costelas do navio.
Bancos baixos com almofadas profundas estavam ao lado de tapetes ornamentados e
estantes parafusaram firmemente suas cargas, para evitar que uma mudança rápida de
curso as espalhasse por todos os lugares. Na mesa de uma parede, o Livro de Thran jazia,
banhado na luz da lanterna.
Karn estava de pé ao lado dele. Ele estendeu suas mãos enormes. “Por favor,
amigos, fiquem à vontade.”
Sisay e Orim sentaram-se no banco. Tahngarth simplesmente plantou seus cascos
e cruzou os braços. Multani se sentiu à vontade ao se derreter no casco. Seu corpo de
lascas caiu em uma pilha arrumada ao lado das tábuas, e seu espírito cintilava através da
madeira viva.
Numa voz lenta e intensa, Karn disse, “no desespero, eu encontrei o que
encontrei.” Ele levantou o Livro de Thran em uma mão e o segurou. “Este livro, esta parte
antiga do Legado de Gerrard, tem sido nossa fonte solene de informações acerca do Bons
Ventos, porém o maldito é lacônico-” Karn quase ficou vermelho. “Perdoem-me minha
linguagem.”
Sisay deu a ele um sorriso torto. “Somos todos marinheiros aqui. Continue.”
“Antes, eu sempre fora paciente, extraindo informações de pequenos reparos,
pequenas mudanças. Desta vez, entretanto, o motor – bem, está perto da destruição.”
Sisay olhou estoicamente para frente. A única emoção que apareceu no seu rosto
foi o leve nó da sua boca quando os dentes lhe tocavam os lábios.
“Eu abri o livro para ver as mesmas ilustrações sem sentido, as mesmas
explicações parciais. Eu o arremessei-”
“Você o quê?” Sisay interrompeu.
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“-e quando ele caiu, ele se abriu... diferente.” Aquele anúncio enigmático foi o
suficiente para atordoar os outros em silêncio. Karn encontrou seus olhares perplexos e
caminhou em direção a eles, segurando o livro aberto. “Vocês veem? Lembram-se desses
diagramas? Destas palavras?”
Sisay, que passara maior tempo se debruçando sobre o tomo, olhou fixamente.
“Sim, claro. Os mesmos indecifráveis.”
Assentindo, Karn virou página atrás de página. Então, como um mágico fazendo
truque de mãos, ele abriu o livro até o seu meio, achatou-o de modo que as duas metades
da coluna se encontrassem e se fundissem, virou o livro até seu fim, e abriu-o outra vez.
O Livro de Thran estava, de repente, com o dobro de tamanho, com uma espinha muito
mais longa e páginas maiores e mais profundas. Através daquelas páginas apareceram,
em parte, as palavras e imagens que todos já tinham visto antes, incorporadas agora em
padrões maiores e imagens maiores.
“Estas não são páginas separadas,” Karn explicava enquanto se virava lentamente,
permitindo que os amigos as olhassem. “Elas estão todas unidas num único tecido, em
camadas sobre camadas, dobrado e costurado. É um tecido que conta o que veio antes.
Na leitura, eu discerni o que está por vir.”
Era demais para Sisay. Ela saltou para frente e pôs as mãos sobre as páginas novas.
Seus dedos gentilmente as acariciaram. Seus olhos percorreram as imagens – ela viu um
homem, não, um deus, envolvido em pensamentos como numa nuvem. A testa do deus
estava amarrotada, seu longo cabelo e selvagem na cabeça e seu rosto lançava uma
sombra profunda. Uma luz sinistra e louca brilhava em seus olhos de inseto. A imagem
toda teria sido muito perturbadora, renderizada em traços de preto, exceto por uma coluna
de luz que se transformava na testa do homem. Era outro homem, formado somente de
pensamentos. Ele era a esperança, o salvador.
“Isto não é um manual técnico,” Sisay disse maravilhada. “Isto é um retrato.”
“Essa parte, sim,” concordou Karn, “mas é apenas um canto de um mural
interminável e em constante mudança que retrata todo esse conflito. E para cada imagem
aqui, há milhares de palavras. O Livro de Thran é tanto uma sinfonia quanto um livro, um
grande mosaico de visões, oráculo e beleza.”
Sisay disse, “Como você pôde decifrar tudo isso tão rápido, da hora do acidente
até agora?”
O golem de prata parecia quase suspirar. “Eu tive mais tempo. Eu já conhecia cada
página aqui. Agora, estou reunindo-as. Todas se encaixam com o que eu tenho lembrado
– ou talvez, eu me encaixei pela primeira vez. Eu recuperei um milênio de vida, e estou
me contorcendo na minha concha de prata. Quando eu matei na Batalha de Koilos, me
lembrei de ter matado antes. Foi uma fenda estreita em uma grande represa, mas através
dela gotejou, depois pulverizou e então, inundou milhares de anos. Vejo tudo, e muito
mais.”
“O que vejo aqui,” ele espalhou suas mãos pelas páginas, “eu já vi aqui.” Ele
correu seus dedos pela sua cabeça.
Ainda encarando a imagem da concebida do deus, Sisay disse, “o que isso tudo
significa?”
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“Este é Gerrard,” disse Karn, “nascido da mente do Planinauta Urza. Por séculos,
Urza se esforçou para criar a criatura perfeita para herdar seu maquinário perfeito, o
Legado. Ele fez os Metathrans, embora eles fossem muito dependentes para seguirem
ordens. Ele se virou para os humanos e criou criaturas como Crovax, e até mesmo você
Sisay.” Gentilmente, Karn deslizou o dedo abaixo do queixo da mulher, um toque tão
suave e familiar que a fez virar o rosto. “Ele estava muito perto da perfeição com você e
Crovax – talvez perto demais. Cada de um vocês tem um coração puro – o qual pode
facilmente se tornar em puro mal. Não, para seu guerreiro, Urza procurou um humano
robusto, pragmático e ligeiramente zangado. Por todos os seus defeitos, Gerrard é o
pensamento encarnado de Urza Planinauta, e a última esperança do mundo.”
“Mas onde está Gerrard?” perguntou Tahngarth. “E onde está Urza?”
Os olhos de Karn escureceram. Ele parecia perdido. “Não sei. Mas na ausência
deles, devemos ser ambos. Devemos carregar o Legado.”
“Sim, Karn,” Sisay pressionou, “conte-nos sobre o Legado. Conte-nos acerca do
Bastão da Invalidação, Bolha Juju e o Modelador de Céu-”
“E os Ossos de Ramos,” acrescentou Orim.
“E o Bons Ventos,” Tahngarth ofereceu.
“E até mesmo eu,” Karn finalizou. Ele achatou o Livro de Thran novamente na
sua página central, pressionou as bordas da coluna, virou o livro e abriu-o novamente.
Imagens maiores resplandeciam de páginas internas, estes floridos, pintados por
uma mão habilidosa. Ilhas flutuavam em mares azuis. Poços de lava suprimiam
mecanismos sedentos. Florestas cresciam engrenagens vivas para rodas enormes. Grãos
ondulavam sob o céu de penas. Pântanos se abriam em profundidades titânicas. Escondido
em todas essas cenas, estavam partes do Legado.
“O Legado. Por quanto tempo procuramos suas peças. Quanta esperança
depositamos nelas,” Karn disse enquanto abria o livro outra vez.
A próxima página mostrava Urza vestido numa vestimenta de luz, pesando de
mundo a mundo. Sua túnica era magistral, azul-escura e prateada. Seus bolsos pingavam
estranhos artefatos. Ocasionalmente, eles caíam para ficar em um mundo ou outro.
“Urza queria mantes estes artefatos poderosos longe das mãos erradas. Alguns ele
espalhou. Outros ele escondera onde os descobrira. Alguns até – seus Ossos de Ramos,
Orim – eram pedaços de máquinas deixados pela guerra de Argoth. Todos eram
dispositivos que podiam aprimorar sua máquina voadora. É por isso que ele nos enviou
para a caçada.”
Multani falou do casco atrás deles. “Urza sempre pôde ver os detalhes, mas não o
quadro todo. Ele construiu grandes máquinas como você, Karn, e o Bons Ventos, mas não
tinha ideia do que fazer com eles.”
Os olhos de Karn foram assombrados por memórias. “Quando eu fui feito pela
primeira vez, meu propósito era viajar de volta no tempo e destruir Yawgmoth antes da
guerra Thran-Phyrexiana. Embora, a máquina do tempo pudesse somente alcançar um ou
dois dias, eventualmente ela sobrecarregou, destruindo Tolária. Então Urza não teve uso
para mim. Tive que encontrar objetivo para mim mesmo. Trabalhando na plataforma de
mana em Shiv, cuidando dos motores do Bons Ventos – a milhares de anos, depois mais
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tarde, cuidando de Gerrard. Eu era um simples fragmento de design, um pedaço de lixo,
exceto porque eu sempre procurei uma maneira de ser útil.”
“O resto do Legado é o mesmo. Tivemos esperanças erradas nele. É uma coleção
de lixo a não ser que saibamos o que fazer com as peças. Estes artefatos são poderosos,
verdade, mas não são perfeitos. Urza nunca teve um único propósito em mente para eles.
Ele era um inventor inveterado, que conhecia uma boa máquina ou magia quando via, e
quem guardou isso até mais tarde. Ele conhecia todas as peças que seriam poderosas nas
mãos certas. Essas mãos eram as de Gerrard. Agora, elas devem ser as nossas. Devemos
decidir o que fazer com o Legado.”
Outra vez, Multani falou da madeira. “Urza nunca pôde ver o quadro todo, mas
você sim, Karn. Diga-nos. O que fazer com o Legado?”
Karn dobrou o Livro de Thran de uma vez, até metade do tamanho e, mais uma
vez, até que se parecesse com o livro que conheciam antes.
“Venham comigo. O vapor já deve ter clareado da sala de máquinas.” Com o Livro
de Thran dobrado embaixo do braço, Karn caminhou da câmara.
Tahngarth, Orim, e Sisay trocaram olhares cautelosos. Sisay falou por todos. “O
que faremos com o novo Karn?”
Orim balançou a cabeça. “Ele fala como se fosse um oráculo. De repente, ele sabe
muito.”
Com mau humor, Tahngarth disse, “de repente, ele acha que todos devemos ser
Gerrard.”
Se colocando de pé, Sisay disse, “Nós somos. Gerrard, Urza e Hanna... Precisamos
ser todos e tudo se quisermos ganhar.” Ela foi a primeira a seguir o golem de prata. Orim
encolheu os ombros e foi também. Tahngarth deu outra bufada antes de seguir. Por sua
vez, Multani percorreu as tábuas a seus pés, através da meia nau até a escotilha, descendo
a escada e atravessando a baluarte da sala de máquinas.
Karn estava certo. O lugar estava em frangalhos. As vigas em cima corriam com
vapor condensado. Gotículas mergulhavam dentro do motor quebrado. Fissuras
serpenteavam pela fuselagem. Sete das doze baterias de mana vazavam superfluídos
verdes nas tábuas. Conduítes de energia soltavam fumaça. Coletores crepitavam com o
estresse do calor. O Modelador de Céu foi um pouco esmagado pelo impacto, e a Bolha
Juju estava tão opaca quanto um olho com catarata.
Ao lado de tudo isso, estava Karn, engenheiro e componente do motor. De certa
forma, ele parecia murcho parado ali na presença do motor arruinado. Ele agarrou o Livro
de Thran como se fosse um escudo.
A capitão Sisay liderou a tripulação até a sala de máquinas. Ela parou e olhou o
desastre.
Sisay soltou um gemido. Ela colocou as mãos sobre o dispositivo esfarrapado. Sua
cabeça caiu e seus joelhos se dobraram.
“Qual a vantagem do Legado se o Bons Ventos está em pedaços?”
A voz de Karn foi solene e baixa. “Em pedaço, sim – o Bons Ventos, e todos nós.
Ele tinha que ser quebrado para ser reconstruindo em algo novo. Minhas memórias me
transformaram.” Ele ergueu o Livro de Thran. “Aqui estão as memórias do Bons Ventos.
Deixe-me transformá-lo.” Ele, reverentemente, colocou o Livro de Thran em cima do
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coletor do motor. “Se o motor do Bons Ventos ainda vive, ele se lembrará e será
transformado.”
A luz despertou ao longo das bordas do livro. Cada página irradiava. Um brilho
ardente lambeu a capa de couro. De laranja a azul, o brilho se intensificou. Logo, o Livro
de Thran foi totalmente engolido. Braços de energia correram do livro, buscando os
coletores do motor. Aonde o fogo foi rachaduras se fundiram. Reentrâncias se alisaram.
O metal se engrossou. O vidro se selou. Em poucos instantes, o poder dançante se
espalhou para envolver o motor todo.
O fogo retorceu o metal com novas configurações. Ele forjou novas conexões. Ele
aumentou a fornalha e aprofundou as baterias de mana, remodelando todo o mecanismo.
A tripulação somente conseguia ficar atrás e boquiaberta. Sisay murmurou, “o que está
fazendo?”
“Transformando,” Karn disse. “Está se tornando o que deve se tornar.”
Uma voz veio das paredes de madeira ao redor – a voz de Multani. “Farei o mesmo
com o casco - infundi-lo com as memórias de eras. Eu o transformarei no que deve se
tornar.”
“Logo, o Bons Ventos atingirá sua configuração final,” Karn disse.
Sisay assentiu, olhos arregalados. “Mas mesmo assim, ele ainda é apenas uma
ferramenta. Ainda assim, devemos decidir o que fazer com ele.”
“Sim,”, Karn disse. “Devemos nos transformar também.”
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CAPÍTULO 3
DEFENSORES DE DOMINÁRIA
“Eles não devem alcançar o Bons Ventos!” gritou Eladamri das costas de seu
maior Kavu.
Logo à frente do comandante dos elfos, uma enxurrada de Phyrexianos alcançou
o topo do pontal de pedra e desceu em direção ao navio naufragado. Eladamri enfiou os
calcanhares nas laterais do lagarto gigante. Galopou em seis membros gigantescos pelos
bancos ondulados de lava. Seus cascos de três dedos quebravam a pedra como se fosse
lama seca. Lançou uma nuvem de mineral reluzente, uma nuvem redobrada pelas
montarias de Lin Sivvi e do minotauro Comandante Grizzlegom.
Eladamri ergueu a espada. “Atacar!” O comando era desnecessário. As forças da
coalizão – minotauros e Metathran, elfos e Keldonianos, benalianos e Kavus – já
trepidavam pela montanha. Ainda assim, o grito pareceu bom nos dentes de Eladamri.
“Atacar!” Lin Sivvi gritou, girando seu mortal totem-vec no alto da cabeça. A
corrente zumbiu no vento furioso. A cabeça do machado cantou sua própria canção de
batalha. A mulher Vec crescera sempre à sombra dos Senhores de Rath e Phyrexianos e,
agora, cavalgar contra eles em batalha parecia magnífico. Ela sorriu, um olhar que
combinou com o semblante cheio de dentes de seu Kavu.
“Atacar!” Grizzlegom berrou. O comandante minotauro se inclinou ao lado da
cabeça do lagarto e agarrou o machado perto da orelha.
Esses Kavus haviam se juntado aos exércitos da coalizão apenas uma hora antes.
A princípio, pareciam horrores monstruosos – até demonstrarem seu apetite pela carne
Phyrexiana. Com línguas e dentes como paliçadas, eles se alimentavam das forças que
encontravam. No meio da batalha, Lin Sivvi fez amizade acidental com uma besta ao
lançar um golpe de totem-vec que mandou uma cabeça Phyrexiana cortada para uma boca
de Kavu. A besta-lagarto esbarrara nela e ela subira nas costas. Eladamri, Grizzlegom e
cem outros haviam feito o mesmo. Se a pé esse exército da coalizão era formidável,
montados nos Kavus, eles eram incontroláveis.
Na vanguarda, Eladamri, Lin Sivvi e Grizzlegom dirigiam suas montarias em
direção a um mar de Phyrexianos.
A encosta estava cheia de Scutas, animais que pareciam gigantescos caranguejos-
ferradura com pernas que arrastavam presas sob seus escudos. Havia também crias de
sangue, humanoides convertidos em centauros com membros dianteiros mecânicos e um
segundo conjunto de braços. As tropas de choque Phyrexianas eram as mais humanas de
todas – com suas pernas providas de garras metálicas, costelas com couraças subcutâneas,
ombros com lâminas dentadas e os rostos pouco mais do que crânios cobertos por sacos
de pele.
Para os Kavus, todos eram apenas lanches crocantes.
As línguas dos lagartos açoitavam, batiam em escudos e crânios e arrastavam as
criaturas para as mandíbulas de tesoura. Os dentes de Kavu perfuravam a mais grossa
armadura Phyrexiana. Enormes pedaços de carne desciam pelas gargantas das bestas. Os
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cascos deles matavam ainda mais. A cada galope, Kavus esmagavam Phyrexianos
encolhidos. O óleo brilhante escorria de suas bocas e pintava suas pernas.
O apetite do Grizzlegom havia sido estimulado. Ele saltou de sua montaria e caiu
no meio de uma multidão Phyrexiana. Seus cascos fizeram as primeiras mortes – um par
de tropas de choque cujos ombros espinhosos não tinham cabeças. Os crânios
pontiagudos se lançaram para frente, e Grizzlegom os derrubou, lançando os corpos
espinhosos em mais dois Phyrexianos. Aquelas quatro bestas desmoronaram, formando
uma plataforma de carne sobre a qual Grizzlegom poderia lançar seu ataque. Seu machado
voou. Cortou três cabeças dos pescoços de crias de sangue e levantou-se banhado de ouro
para rachar o escudo craniano de um Scuta.
Seu território soberano já havia dobrado em tamanho – oito Phyrexianos sob seus
pés e mais a cada segundo. Os ombros de pele branca de Grizzlegom trabalhavam como
bandas de aço. Ele estava orgulhoso daqueles ombros e dos seus chifres trançados, sinais
que o marcaram como um herói na tradição de Tahngarth. Quem além de Tahngarth ou
Grizzlegom poderia ter se sentido tão em casa no meio sangrento dessa horda? Ele já
estava de pé sobre doze cadáveres Phyrexianos.
Das costas de sua montaria, Lin Sivvi também fez o mesmo. Seu totem-vec era
tão longo, rápido e mortal quanto uma língua Kavu. Ela libertou-o de sua mais recente
vítima, um Phyrexiano de cabeça de cabra que agora tinha uma fenda profunda entre seus
chifres. Enquanto ele caía, Lin Sivvi soltou um grito ululante e agarrou sua arma. Ela a
deixou voar novamente. A corrente ondulou perfeitamente através do ar sulfúrico. A
lâmina oleosa atirou gotas douradas enquanto se lançava através do vazio e se enterrava
no peito de um soldado da tropa de choque. A lâmina passou exatamente entre as costelas,
cortando a criatura no coração. Lin Sivvi sempre foi uma criatura mortal, criada em um
crisol de guerra. Somente nessas últimas semanas, nestes últimos dias, ela se tornou uma
criatura cujo próprio coração havia sido perfurado.
Eladamri a observou. Os dois lutaram lado a lado na Fortaleza em Rath. Juntos,
eles lutaram em Llanowar e Koilos, e na Geleira da Necrópoles. Em algum lugar no frio
e negro coração daquela camada de gelo, a barreira final entre eles havia caído. Eles eram
um agora. Eles completavam um ao outro como nenhum Phyrexiano estivera jamais
completado.
Enquanto o totem-vec de Lin Sivvi abria um corredor para um lado, a espada de
Eladamri destroçava feras no outro. Apesar do massacre dos cascos dos Kavus, os
Phyrexianos subiam. Eles subiam pelas pernas dos lagartos como baratas numa mesa. Se
a lâmina de Eladamri tivesse sido menos rápida, eles também o teriam esmagado.
Ele cortou. Sua espada fatiou um soldado da tropa de choque. Da clavícula ao
esterno, a coisa estava aberta. Onde deveria haver um coração, havia apenas um grupo
escabroso de tubos nefríticos. Eles filtravam o sangue oleoso, e sem eles o soldado
certamente morreria. Ainda assim, viveria e mataria por horas. Tirando a lâmina da ferida
aberta, Eladamri enfiou a ponta no crânio da coisa.
Enquanto este caía, Eladamri chutou outro Phyrexiano – um bicho de
configuração aracnídea, que parecia ser um rebento de Tsabo Tavoc. Logo atrás, surgiu
outro soldado da tropa de choque, cujos dedos mecânicos se afundaram na carne do Kavu.
Eladamri cortou o ombro do monstro como um homem cortando um tronco de madeira.
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Ele cortou um braço e depois o outro. Um simples chute na testa foi o suficiente para
mandar a criatura para o chão. Antes mesmo de ter atingido o lado do vulcão, o maior
Kavu de Eladamri pegou-o e comeu-o.
Eladamri levou um momento para olhar para Lin Sivvi. Envolta na batalha e
sangue, ela estava mais bonita. Indomável. Destemida. Implacável. Mais adiante, na
encosta desmoronada, estava o Bons Ventos. Nenhum Phyrexiano havia chegado perto do
casco inerte. Forças da coalizão tinham contido a onda de ataque.
Eladamri olhou para a colina. Phyrexianos despejaram um dilúvio negro na
encosta da montanha. Eles emergiam de um profundo túnel no vulcão. Sua base estava
ali dentro. Aqui a céu aberto, os defensores tiveram que lutar contra dezenas de milhares
de monstros. Se eles pudessem selar este portal na encosta da montanha, eles lutariam
apenas contra um punhado.
“Marchemos para cima!” Eladamri gritou por cima do estrondo. “Marchemos em
direção aos portões!”
Lin Sivvi ouviu. Ela conduziu sua montaria até a encosta do talude. Os
Phyrexianos caíam como seixos sob os cascos dos Kavus. Seu totem-vec voou e cantou
com a fúria de cada golpe.
“Você reconhece isso, Eladamri?”
Puxando a ponta da espada do humor vítreo de uma cria de sangue, Eladamri
respondeu, “Reconheço o quê?”
“O portão.” Ela não precisava dizer mais nada. Ele entendeu.
Era inconfundível, com seus muros altos de cal derramado, seus amplos terrenos
pavimentados, suas torres de vigilância e trincheiras – até mesmo as guarnições que
ficavam de cada lado da entrada.
O estômago de Eladamri azedou. “A entrada principal da Fortaleza. Eu já
conquistei aquele lugar uma vez em batalha. Devo fazer isso de novo?”
“Temos que vencer esta guerra,” respondeu Lin Sivvi. "Nós devemos capturar a
fortaleza." Para esses dois oriundos de Rath, não havia possibilidade mais atraente do que
capturar a Fortaleza. Tal vitória baniria todo o terror para os elfos de Skyshroud, os Dal,
Vec e Kor. Cumpriria as profecias do Korvecdal, o Unificador que viria e destruiria o
coração do mal. “A vida valerá a pena se vencermos esta guerra.”
Eladamri rangeu os dentes e lançou um olhar por cima do ombro. Abaixo, estava
o Bons Ventos intocado. Ele estava em ruínas, mas sua tripulação sobreviveu, e eles eram
os combatentes mais valentes que Eladamri já havia encontrado. Acima dele, aquele corte
negro na encosta da montanha bocejava, espalhando Phyrexianos pelo mundo. Sim, ele
conquistou aquele portão uma vez. Se ele o tivesse desligado antes, ele não estaria
olhando para ele novamente agora. Era o portão então. Vitória ou morte.
“Suba lá,” Eladamri gritou para a sua montaria. O maior Kavu pulou avidamente,
carregando a montaria de Lin Sivvi. Um terceiro animal se juntou a eles. O comandante
Grizzlegom subiu pela lateral.
“Qual é a jogada?” perguntou o minotauro enquanto arrastava suas pernas
ensanguentadas até o pescoço do lagarto.
“Vamos fechar o portão,” respondeu Eladamri. Ele seguiu em frente. Seu Kavu
mastigava bestas sob seus pés. Uma criatura com a boca de uma sanguessuga escalou o
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flanco do lagarto. Eladamri enfiou a espada por essa boca. Ele ergueu a lâmina oleosa
para cima, apontando para o portal adiante. “Vamos conter a enxurrada de monstros e
depois matar aqueles que já emergiram.”
Os lábios de Grizzlegom se afastaram dos dentes ensanguentados. “É uma luta.
Isso é tudo o que eu preciso – uma luta.” Ele espetou um soldado da tropa de choque no
coração. Seu Kavu investiu de surpresa em um pelotão de Scutas. Apenas conchas
quebradas e lama branca permaneceram. Assobiando estridentemente, ele acenou para as
tropas à frente.
Eles vieram. Minotauros e Metathran, Benalianos e elfos, Keldonianos e Kavus,
o exército seguiu. Eles abriram caminho através dos enxames Phyrexianos.
Lin Sivvi era a ponta daquele cutelo. Ela conduziu a besta sobre um caminho
pavimentado com cabeças monstruosas. Dezenas das criaturas morriam a cada passo.
Dezenas mais eram desfeitas pelo terrível turbilhão de seu totem-vec. Ela alcançaria o
objetivo, sim – o portão ao lado do vulcão – mas ela também aproveitaria a jornada.
Eladamri cavalgou ao lado dela. Um golpe de sua espada cortou as cabeças de
uma falange Phyrexiana. Por sua vez, Lin Sivvi colocou o seu Kavu contra o de Eladamri.
As duas bestas esmagaram e mataram tudo o que estava entre elas. Seus pés se esfregaram
um contra o outro.
Eles fizeram o seu caminho – Eladamri, que foi sonhado por Géia, e Lin Sivvi,
que foi sonhada por Eladamri. A verdade desses sonhos estaria à frente. Se Eladamri fosse
o verdadeiro Unificador, ele prevaleceria no portão principal. Se Lin Sivvi fosse sua
verdadeira alma gêmea, ela prevaleceria também. Nenhum deles poderia ter sucesso, a
menos que ambos o alcançassem. Eles não eram mais duas criaturas separadas, mas o
começo e o fim de um único sonho.
Eles chegaram a um planalto amplo, uma grande plataforma de obsidiana, preta e
lisa. Estrias de navalha irradiavam da entrada principal.
As primeiras fileiras de Phyrexianos caíram rápida e impotentemente diante dos
trovejantes Kavus. Atrás das três montarias dos comandantes vieram mais cem bestas.
Muitas carregavam ginetes.
Outras carregavam apenas fúria. Elas pisotearam Scutas, crias de sangue e
soldados das tropas de choque, transformando-os em pudins.
Bestas menos indefesas se aproximavam – monstros tão ansiosos para chegar à
batalha que galopavam sobre seus semelhantes. Eles eram tão grandes quanto os Kavus,
embora caminhassem sobre duas pernas semelhantes a garras. Seus braços terminavam
em garras que podiam segmentar um rinoceronte em um único aperto. Com uma cabeça
repleta de ossos, dentes de cimitarra, um tórax tão largo quanto um barril e uma pele de
couro, cada gargantua Phyrexiano lutava como um exército inteiro.
Uma besta saltou pelo chão de obsidiana pouco antes de Eladamri. Com um grito,
se jogou sobre o Kavu de Eladamri. Ela agarrou o lagarto em uma chave de braço. Os
braços do monstro envolveram a espinha da montaria. As narinas do gargantua tomaram
uma respiração profunda enquanto suas presas afundavam na garganta do Kavu. Garras
perfuraram através das escamas. Sangue reptiliano brotou das feridas.
O Kavu lançou seu próprio grito. Ergueu-se sobre as quatro patas traseiras,
levantando o gargantua no ar.
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O tenaz monstro apenas afundou seus dentes ainda mais profundamente. Parecia
um bulldog na garganta de um touro.
O Kavu agitou-se, lutando para quebrar o abraço da besta. Toda a sua luta só
aprofundou as feridas no pescoço do Kavu.
Eladamri subiu pelas costas da besta. Alcançando uma das garras do gargantua,
ele encontrou pontos de apoio para as botas. Com as duas mãos em sua espada, ele
levantou a lâmina e bateu em um grande corte. O golpe cortou dois dedos da garra da
gargantua. Os dígitos foram embora. Feridas gêmeas derramaram sangue oleoso sobre o
ombro do Kavu. Com outro talho, Eladamri removeu as outras duas garras, deixando o
gargantua com apenas um coto.
Ele gritou, soltando seus dentes do ombro do Kavu. Recuando, o gargantua abriu
a boca para engolir Eladamri inteiro. A besta investiu. Suas mandíbulas estalaram.
Eladamri foi mais rápido. Ele saltou e pousou no focinho do monstro. Ele estava
observando aquela horrível mancha molhada, sugando ar e sacudindo. Era a única parte
do crânio do monstro que não tinha ossos. Eladamri testou sua teoria, enfiando a espada
na narina da coisa e alcançando o cérebro. Houve um estalo quando a ponta perfurou
algum saco de fluidos e, em seguida, um horrível jorro cinza.
O gargantua caiu. Seus olhos giraram loucamente em sua cabeça ossuda enquanto
a besta estremecia em direção ao chão. Um silvo de gases desprezíveis escapou do
cadáver já caído.
Dando um grito de vitória élfico, Eladamri ergueu a espada para o céu. Só então
ele viu que sua própria montaria jazia morta, sob a massa moribunda do gargantua.
Eladamri piscou, incrédulo. Tinha sido um grande Kavu, uma criatura antiga, morta em
questão de segundos.
“Suba!” veio um grito de cima. Lin Sivvi, montado em um Kavu, estendeu a mão
para ele.
Assentindo, o comandante dos elfos subiu pela perna escamosa da montaria e se
posicionou atrás dela. “Espero não atrapalhar seu estilo de luta.”
Sua única resposta foi um ataque rápido contra uma cria de sangue. Seu totem-vec
disparou, matou o monstro e retornou à sua mão antes que ele parasse de zumbir. Tinha
sido tão rápido até mesmo para acumular óleo brilhante.
“Você está em boa forma.”
“A luta está lá em cima,” ela respondeu, apontando para frente. O resto do exército
da coalizão passou por eles como uma enxurrada enquanto Eladamri se detinha na luta
contra o gargantua. Agora, os Keldonianos, os Metathrans e os minotauros travavam uma
batalha campestre, corpo a corpo, nos campos de obsidiana.
Apesar de seu enorme tamanho, o Kavu trotou cautelosamente entre suas próprias
tropas, tomando cuidado para não as esmagar. Seus pés com garras pisavam no solo tão
suavemente quanto um gatinho, embora ele avançasse como um touro em direção às
linhas de frente.
A montanha de repente saltou.
“O que foi isso?” perguntou Lin Sivvi.
Eladamri levou a mão ao ouvido. A montanha saltou de novo. “É quase um
batimento cardíaco. É quase como se o vulcão estivesse vivo.”
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“Talvez esteja próximo de uma erupção,” respondeu Lin Sivvi. A montanha saltou
pela terceira vez. "Vulcanismo? Ou alguma conspiração Phyrexiana?"
“Não saberemos até tomarmos o portão,” disse Eladamri. “Adiante.” O Kavu já
havia chegado à frente. A espada e o totem-vec já giravam em uma nuvem de aço.
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CAPÍTULO 4
A NUVEM AUSTERA
O sangue cobria a arena, o sangue do imortal Urza e mortal Gerrard. Muito sangue.
Se isto fosse Tolária ou Benália, ambos teriam morrido dez vezes. Isto era Phyrexia. Aqui,
Mishra permaneceu por quatro mil anos sob um triturador de carne. Aqui, Yawgmoth
permaneceu por nove mil anos, sendo transformado de um homem para um deus
monstruoso. Aqui também, Gerrard e Urza podia jorrar sangue e, ainda assim, continuar
lutando. Eles pintaram a arena como se fossem pincéis saturados. Em dedos
escorregadios, Gerrard segurava um martelo de guerra e o balançava por cima da cabeça
num golpe alto. O martelo bateu contra uma aparada tardia. Ele bateu contra a espada de
Urza. Ele se encolheu num lado. O malho bateu no seu ombro. Ossos se quebraram. O
músculo caiu sobre uma articulação arruinada. A espada se soltou. Urza recuou atônito
contra a parede, e adicionou figuras ao mural vermelho.
A multidão gritava. A euforia enchia os céus. Ela reverberava pela arena,
canalizada pelos círculos concêntricos de pedra. Era isto o que gladiadores precisavam –
sem descanso, sem saúde, sem esperança, sem sangue, sem sede de sangue. Berros, vaias,
os gritos carregavam um desejo louco, quase adorador. Ele infundia os dois lutadores.
Isso se tornou o sangue deles. Ele amalgamava órgãos, músculos e a pele remendada.
Mais do que isso - fez os dois homens desejarem lutar. Era uma contagiosa e irresistível
sede de matar.
Sorrindo, Gerrard levantou o martelo e avançou. Uma linha de sangue escorria da
sobrancelha, perigosamente perto do olho. Ele balançou a cabeça, limpando-a. Círculos
se formaram na areia. Um rugido veio da multidão. Ele bebeu o som amargo. Ele percorria
sua barriga e queimava seus músculos. O martelo se ergueu sozinho. Gerrard foi em
direção a Urza.
O ombro do planinauta havia se curado consideravelmente sob a ovação da
multidão, mas fragmentos de ossos ainda saltavam dele. O braço estava inutilizado.
Suturas de dor enrugavam o pescoço do velho. Ele não tinha armas. Estavam atrás de
Gerrard, no estrado no centro da arena. Urza não tinha meios de bloquear o martelo e nem
possuía escapatória. Se ele saltasse, o golpe esmagaria suas costelas. Se desviasse,
acertaria seu crânio.
O martelo de Gerrard desenhou um arco de prata no céu. Caiu sobre o planinauta
encurralado.
Urza avançou por baixo do martelo que descia. Seu ombro arruinado acertou o
estômago de Gerrard. Fragmentos de ossos cortaram através de tecido e pele cravada. O
martelo traçou seu caminho inevitável, esmagando o chão e espalhando areia. Urza saltou
pela areia, carregando seu inimigo. O golpe repentino arrancou o martelo das mãos de
Gerrard. Os pés de Urza bateram no chão. Ele empurrou seu protegido para cair de costas.
Urza estava em cima dele e rugiu. O som bestial ecoou através da arquibancada e
aumentou nas gargantas monstruosas.
Um ataque ingênuo e feroz. Agora, nenhum dos combatentes tinha arma.
Urza se virou e caminhou para o estrado.
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Gerrard lutou para se pôr de pé. Ele tentava respirar, mas não conseguia. Houve
um momento de pânico sufocante enquanto os músculos atordoados lembravam como
respirar. Em asfixia, a sede de sangue minguava. De repente, a cabeça de Gerrard estava
clara. O ar da arena, o espírito do lugar, era violento. Respirar era levar Yawgmoth no
peito.
Ainda assim, Gerrard tinha que respirar. Agarrando seus joelhos, ele conseguiu
inalar. Lentamente, o pânico se foi. A fúria tomou seu lugar. A raiva – vital e louca –
formigava em seus pulmões e se espalhava pelo corpo. Acendeu o fogo nele. Os músculos
se enrijeceram. Pernas e braços doíam para lutar. Dos dedões até a ponta dos dedos, ele
estava possesso de violência. Somente sua mente permanecia clara e cheia de vontade.
Ele permitiria que Yawgmoth imbuísse seu corpo com guerra, mas não sua mente. Não
mais sua mente.
Urza alcançara o estrado e escolhera uma espada grande, o tipo pesado para cortar
pernas de cavalos. Ele gingou a lâmina. Ela se moveu tão fácil quanto um florete. A arma
estalava como relâmpago negro. A energia fluiu pelo sulco de sangue, através da travessa
e para suas mãos. Ela cintilava nos braços. Poderes sombrios costuraram os últimos
pedaços de carne se fechando sobre os ossos do ombro. Fagulhas sem luz dançavam em
um sorriso cerrado.
Momentos antes, Gerrard possuíra uma expressão similar. Violência infundia
melhor do que o ar. Enchia as armas também. Elas ensinaram os possuidores a matar.
A grande espada estava segurada num aperto duplo, Urza avançou.
Gerrard partiu em direção ao seu martelo de guerra caído. Ele poderia usá-lo ou
seria usado pela arma? Fazia diferença? Ele não podia mais rejeitar uma arma do que
podia rejeitar respirar. Gerrard agarrou o cabo.
O poder se aproximava como uma aranha da sua carne. Isso o incomodava.
Encheu-o de força enquanto o envenenava. Ambas as mãos apertaram o cabo enquanto a
magia espinhosa subia pelo pescoço. Ele apertou os olhos com força, lutando contra a
maré. Aquilo arrancou humores virulentos da sua mente.
O rápido bater de botas na areia anunciou a aproximação de Urza.
Gerrard girou, erguendo o martelo de guerra. A maré de sede de sangue subiu.
Engolindo, ele soltou o martelo. Ele caiu na areia e bateu sombriamente. A maré de
sangue desapareceu.
Urza surgiu. Ele ergueu alto a grande espada para fender num golpe. Gerrard
permanecia sem arma, suas costas para a parede, sem escapatória. A grande espada caiu
cortando o ar.
Gerrard se lançou sob o golpe. Ele deu um passo para o lado do cabo. No mesmo
movimento fluido, seu punho acertou a mandíbula do planinauta. Dentes estalaram juntos.
Urza cambaleou para trás. A grande espada afundou sua ponta na areia. Gerrard pisou no
lado da lâmina, forçando-a a ir ao chão.
Urza se agarrou ao cabo e foi arrastado para baixo. Ele soltou, tarde demais.
Gerrard chutou o rosto do homem. Traços gêmeos de sangue escorriam do seu
nariz quebrado enquanto ele caía para trás. Urza caiu de costas. A poeira o cobriu.
A arquibancada irrompeu. Bocas de placas soaram juntas num som de cigarra.
Línguas se agitaram e cascos retumbaram. Na sacada real, baforadas de fuligem se
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moviam alegremente nas narinas do dragão negro. Até mesmo Hanna parecia ter interesse
especial naquela inversão audaciosa.
Gerrard não se importava com a opinião deles. Ao invés disso, ele estava de pé
acima do seu inimigo, encarando Urza com olhos não menos estranhos. Os punhos de
Gerrard circulavam ao redor dele.
“Vamos fazer isso direito, Planinauta,” ele disse. “Mãos nuas. Nada além de
socos. Se eu tiver que matar você, prefiro fazer com minhas mãos do que com algum
pedaço de metal amaldiçoado.”
Olhando cautelosamente para seu inimigo, Urza ergueu um cotovelo e juntou as
pernas abaixo dele. “Sempre lutei com aço. Desde a primeira guerra contra os Falaji até
minha invasão a este mundo empesteado, eu sempre lutei com máquinas.” Ele saltou
sobre os pés, pronto para se defender de outro golpe, mas se apoiando o tempo todo em
direção ao estrado. “Por que deveria parar agora?”
Com seus punhos erguidos, Gerrard continuou. “Estas não são suas máquinas,
Urza. São de Yawgmoth. Todo este lugar existe somente na mente dele, sua imaginação.
Nós lutamos de acordo com seus caprichos. Não somos guerreiros, mas sim marionetes.
Oh, eu lutarei com você, Urza Planinauta, derrotarei você e conquistarei minha dádiva,
mas não serei a marionete de ninguém.”
Um chiado veio da multidão. Os momentos da reversão heroica foram esquecidos
diante dessa blasfêmia ousada: lutar, mas não de acordo com os termos de Yawgmoth.
Gerrard avançou em Urza, balançando outro soco o qual escureceu um olho. Ele
agarrou a capa do seu inimigo, o puxou-o para perto e sussurrou entre dentes cerrados, “é
mais do que isso. Muito mais. Se este lugar somente existe na mente de Yawgmoth, é
feito de rochafluente. Nanomáquinas.” Aquela palavra chamou a atenção de Urza. Suas
lutas diminuíram enquanto Gerrard elaborava. “Nanomáquinas que se agarram umas às
outras e respondem à vontade de Yawgmoth... e Crovax... e outros...”
Gritos de fúria aumentavam na plateia.
“O que importa?” Urza respondeu, enfatizando o comentário com um golpe na
bochecha de Gerrard.
O homem cambaleou para trás, soltando a capa. “Não consegue ver? Se
Yawgmoth pode moldar essa coisa, então também podemos. Nós devemos apenas
acreditar para criá-la.” Gerrard agarrou o ar ao lado dele. Seus dedos se envolveram ao
redor de alguma coisa. Eles se apertaram e trouxeram uma arma a existência. Um cajado.
Gerrard o rodopiou habilmente ao redor do ombro. “Minha arma. Minhas regras. Não sou
marionete, mas um guerreiro!” Ele balançou o cajado numa varredura ampla e brutal,
esmagando a cabeça de Urza.
O planinauta caiu, suas botas trazendo areia em seu rastro. Ele caiu no chão,
parecendo tão morto pela ingenuidade de Gerrard quanto pelo golpe do cajado.
A fúria no estádio se dissipou, substituída por um grito ascendente de admiração.
Bocas escabrosas que estiveram vazias instantes antes, floresciam com rosas negras que
eram arremessadas para Gerrard. Espinhos e pétalas desidratadas grudavam a sua pele
ensanguentada, como se tentassem recuperar sua tonalidade perdida. Outras mãos na
multidão arremessaram projéteis – comida estragada, vômito, órgãos, carnes e restos –
em direção a Urza, onde ele jazia arrebentado.
22
Da alta sacada, uma voz estrondosa surgiu. “Muito bem, Mestre de Armas. Você
aprendeu. Você ascendeu da simples letalidade que demos a você para uma letalidade
superior. Você se transformou de uma marionete inútil a uma criatura que se move
sozinha. Um autômato. Mas você deve ascender ainda mais antes que possa se aproximar
dessa plataforma e se ajoelhar.” O dragão estendeu sua garra torcida e apontou para Urza.
Gerrard se virou para ver seu velho inimigo se levantar. Coberto de sujeira e
sangue, ele parecia não mais do que um par de olhos angustiados, se levantando dos
detritos. Seu corpo tomou forma como se fosse feito de lixo.
Enquanto Gerrard olhava a figura patética, ele teve a impressão que olhava um
espelho – não, não um espelho, mas um retrato. Um espelho mostra o espectador em
tempo real. Um retrato mostra o espectador num passado distante. Urza era o passado
distante de Gerrard, era o homem primitivo.
Aqueles olhos, o foco e o lócus da vida de Urza, encaravam o jovem com uma
fúria funesta. Ele estendeu sua mão para o lado. Assim como Gerrard criara um cajado
do ar, da mesma forma alguma coisa crescia na palma do planinauta. Não era um mero
cajado. O cabo da arma brilhava com escamas de serpente. A ponta da coisa estava cheia
de lâminas: gládio, machado, enxó e lança, tudo em um. A extremidade do dispositivo
era, talvez, a mais diabólica de todas: um flagelo. Este chicote multi-caudal não se
consistia de correias de couro, mas de cobras. As escamas reptilianas que cobriam o cabo
se espalharam numa verdadeira pele de cobra na base do dispositivo. As nove correias
deslizaram pela areia em direção a Gerrard. Seus dezoito olhos fixados nele.
Com um sorriso cheio de dentes, Urza ergueu sua nova arma e a rompeu pela
extremidade. O movimento se agitou pelos longos corpos das cobras, agitando-as. Os
capuzes das cobras se abriram. Elas abriram suas bocas. Presas brancas brotaram.
Gerrard cambaleou para trás.
Veneno pastoso disparou das presas das cobras e atravessou a areia. Eles se
lançaram em direção a ele. Ele moveu seu cajado, esmagando suas cabeças. A mandíbula
das cobras se prendia no cajado. Dentes estilhaçavam a madeira, esguichando veneno
nela. Gerrard o soltou. O bastão caiu de dedos dormentes. Ele se retraiu com as serpentes
em direção a Urza. Envolvido com serpentes, o cajado atingiu as lâminas da arma de Urza
e foi desfeito. Fissurado, cortado, fatiado e perfurado, o bastão se transformou em lascas
na areia.
“Minha arma,” Urza chiou, sua voz combinando com a companhia das cobras.
“Minhas regras. Talvez eu não seja um planinauta aqui, mas ainda sou um mestre artífice.
Há mais coisas em minhas filosofias do que no céu e no inferno.”
A multidão uivou de prazer.
O planinauta avançou. Ele balançava o cajado de serpentes diante dele. Nove
víboras se desenrolaram, alcançando Gerrard. Dezoito presas deslizaram para morder a
carne do jovem herói.
Gerrard se esquivou de suas mandíbulas e correu pela parede pintada de sangue
da arena. Ele deixou uma imagem sanguínea de si mesmo, esticada e desesperada diante
do inimigo. Urza aprendera de sua inovação e o superou. Era assim que a batalha
aconteceria. Gerrard inovaria alguma estratégia, e Urza a dominaria. Se Gerrard quisesse
23
vencer, ele deveria fazê-lo atacando seu oponente com alguma inovação antes que se
tornasse do próprio Urza.
Por enquanto, ele devia só sobreviver. As cobras saltaram, agarrando suas roupas.
Ele recuou. Seus dentes rasgaram o tecido amarrotado. Ele chutou areia em suas presas.
Gerrard correu. Alguns chamariam isso de covardia. De fato, o bombardeio de
fezes das arquibancadas disse a Gerrard que Yawgmoth pensava sobre aquela rápida
retirada. Coragem e covardia eram menos importantes agora do que vida e morte, e tempo
para pensar. Em cada pisada, Gerrard dava a si mesmo outro segundo.
Urza o seguiu como um cão numa lebre.
Pense! Gerrard disse a si mesmo. Ele desejava criar alguma arma melhor – um
cajado flamejante ou um estilingue flamejante – mas nenhum deles podia se comparar a
eficiência mortal que Urza portava. E certamente, qualquer coisa que Gerrard inventasse
seria rapidamente superado por Urza. Não, era melhor descobrir um novo paradigma do
que ser superado pelo velho.
Se o mundo ao redor podia ser moldado em armas, por que não em defesas?
Defesas mortais.
Os pés de Gerrard acertaram montes de areia, e sua mente mudou aqueles salpicos
circulares em armadilhas circulares – armadilhas para ursos. Cada trilha tornou-se uma,
um amplo conjunto de mandíbulas de ferro espalhadas prestes a engatilhar. Somente
precisaria de um único passo imprudente para cortar Urza pelos joelhos. Ele cairia de cara
em mais dispositivos e seria feito em pedaços.
Exceto que Urza era Urza. Ele evitou as armadilhas na areia, correndo para o outro
lado.
Gerrard precisava de algo mais poderoso.
Ele encontrou. Por que não moldar a areia na forma de ferro? Deixe que a areia
seja areia, com sua força natural ela sobrepujaria qualquer coisa que viesse contra.
Gerrard enviou o pensamento. A arena estava faminta por ideias, e devorou este
pensamento – rapidamente. A areia ganhou vida, areia movediça, não no sentido de um
lamaçal, mas no sentido de uma coisa que sempre viva, sempre se alterando.
Urza deu um passo dentro da areia movediça e afundou até os joelhos. Ele levou
um segundo para se segurar e afundar até a cintura. Lutando para girar o cajado de
serpentes acima da terra fervente, ele se afundava mais.
No meio do caminho, Gerrard se virou para ver o desaparecimento do seu
progenitor. O planinauta já estava enterrado até a cintura. A areia o agarrava. Seus dedos
o puxaram pelos ombros. Garras arenosas agarraram seu cabelo e barba. Partículas
encheram as narinas e orelhas. Seu último berro se tornou uma nuvem de pó. Grãos se
gravaram naqueles olhos radiantes. A areia cobriu Urza pela cabeça e ele afundou.
Com mãos vazias e olhos vazios, Gerrard se virou em direção a sacada real. Ele
passou o braço sobre sua barriga e o outro sobre o monte de areia que uma vez fora Urza
Planinauta.
“Eu reclamo minha graça, Yawgmoth. Eu ascendi. Matei meu rival. Agora, dê-me
Hanna.”
O dragão negro sobre aquela sacada exaltada chiou como uma das serpentes de
Urza. “Não.”
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Perplexo, Gerrard gritou, “Não?”
“A batalha é até a morte,” veio a voz, e não somente da sacada, mas de todas as
bestas lá. “Você não matou Urza, apenas o enterrou vivo. Sim, você se aprimorou, subiu
do posto de fantoche para guerreiro, e guerreiro para estrategista. Você inventou ofensivas
e defensivas, mas ainda assim, não matou seu inimigo. Contemple, Gerrard – Urza
Planinauta.”
Gerrard se virou para o monte de areia.
Ele se erguia novamente. Assim como Urza se erguera dos restos, agora ele se
erguia do solo. Aqueles olhos o conduziram novamente, trazendo o resto dele a existência.
Areia caia dos ombros, braços e vestes. Grãos caiam das narinas e lábios. Urza deixou
seu cajado embaixo do solo, ele não precisava mais dele. Seus olhos trouxeram uma nova
e repentina vida a areia. Onde Gerrard havia criado areia movediça, Urza criou golens –
criaturas do solo. Nas testas estava escrito Emeth, antiga palavra Thran para verdade, e
eles se ergueram para espancar Gerrard.
A multidão – o próprio Yawgmoth – gritou em aprovação.
Gerrard fugiu. Outra vez, Urza aprendera da inovação dele e a deixou
exponencialmente mais mortífera.
25
CAPÍTULO 5
*****
*****
Isso é o que deve ter parecido para Urza, Multani percebeu enquanto lutava para
27
atravessar o casco do Bons Ventos. É assim que deve ter sido quando eu o prendi na árvore
magnigote.
Multani estava realmente preso. Anteriormente, ele sempre percorrera a fibra do
casco tão facilmente quanto um pensamento através de um cérebro. Agora, o cérebro não
pertencia mais a ele. Criara outra mente. O Bons Ventos estava criando consciência e
Multani estava preso em seus pensamentos emergentes. Nenhuma mente queria ser
invadida.
Multani enterrou-se ao longo da proa a estibordo, na esperança de alcançar a
madeira estilhaçada onde o navio havia encalhado. Ele precisava de um corpo para
escapar do casco. Para construir um corpo, ele precisava de lascas. A cada centímetro que
avançava, porém, o calor na madeira se intensificava e os sistemas vasculares inchavam.
A nau mudou sua energia vital para curar seu casco. Celulose engrossada. Um tumor
verde queimado. Madeira arruinada regenerada – e mais. Amplificou o que havia antes.
Uma vez, Multani havia curado a nau, retrabalhara-a de acordo com sua própria
visão de seu destino. Agora ela se reformulou. O feiticeiro-maro se voltou contra a maré
de cura. Ele teria que descobrir outra fuga. Talvez ele pudesse encontrar alguma madeira
ainda viva dentro da passagem do carpinteiro. A maioria dos projetos de naus marítimas
tinha uma passagem do carpinteiro – uma passagem estreita ao longo da linha de água,
destinada a permitir que os carpinteiros reparassem os danos causados nos combates
navio-contra-navio. Urza não precisava de uma no Bons Ventos, já que a nau podia curar
suas próprias feridas e raramente navegava na água. A passagem nem aparecia nos
projetos principais da nau, mas Multani a encontrara de qualquer maneira em suas viagens
pelo casco. Ele nunca a havia adentrado antes, nunca precisara, mas agora Multani se
dirigia para o espaço secreto, esperando que fosse sua salvação.
Multani correu para a passagem oculta. A vida pulsava fortemente aqui também,
mas de um modo meditativo. Encontrando uma pilha de tábuas vivas, Multani entrou
nelas. Madeira deformada. Nós de envelhecimento. Bordas articuladas. Fibra trançada.
Multani montou um corpo para si mesmo. Angular e enorme, o feiticeiro-maro ergueu-se
no espaço escuro. Por fim, ele estava livre da nau. Finalmente ele pôde respirar.
Multani soltou um longo suspiro. Fazia um ano desde que ele se sentira tão preso
– em Yavimaya, enquanto demônios caíam dos céus. A respiração diminuiu dele e se
espalhou pelo casco interno da nau.
Daquela madeira vívida veio uma voz à mente de Multani, uma voz feminina. É
você, mestre. Você voltou.
Multani inclinou a cabeça. Bloqueios lascados se projetavam acima dos olhos em
forma de nós.
Phyrexia está destruída, então?
"O quê?" Multani deixou escapar.
Você não é o mestre. Você não é o Criador.
De repente, compreendendo, Multani respondeu, "Não. Eu não sou o Criador. Eu
não sou Urza Planinauta.
Uma natureza medrosa entrou na câmara. Ninguém além do Criador pode entrar
aqui. É uma área extradimensional. Não há passagem através de meus conveses
principais. Ninguém, a não ser o Criador, sabe que ela existe.
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“Não só ele. Eu sei.”
Quem é você?
“Eu sou Multani... um amigo. Talvez um mentor. Eu tenho te curado e te moldado
para-” ele parou, imaginando para o que estava moldando a-” este momento. Para sua
chegada à maioridade.”
Como você tomou conhecimento da passagem do carpinteiro?
“Eu sei tudo sobre você. Ou uma vez eu soube. É o caminho de todos os seres
vivos. Há sempre alguém – um pai, um mentor, um amigo – que conhece você melhor do
que você mesmo. Então chega uma hora em que você ultrapasse esse conhecimento e se
conhece melhor do que todos. Esse é o dia em que você atingiu a maioridade. Isso é hoje.”
Ambos ficaram em silêncio por um tempo. Multani sentiu uma súbita ternura em
relação a essa nau, que ele cultivara de uma única semente. De certo modo, o Bons Ventos
tinha sido sua nau o tempo todo. Hoje ela nunca seria dele novamente.
O que será de mim então, Mentor Multani? O que estou me tornando?
Ele encolheu os ombros lascados. Os olhos em forma de nó brilharam com resina.
“Eu não sei. Este é o dia em que eu paro de te conhecer melhor. O que te torna é o que
você faz de si mesma.”
Esta jovem nau – velha em sua cronologia, mas totalmente nova em todo seu
formato, em sua mente desperta – pensava muito. É bom ter não apenas um criador, mas
também um mentor.
“Você teve muito mais do que isso, grande Bons Ventos,” respondeu Multani.
“Você pertence a Gerrard Capasheno, que traçou seu futuro, e foi guiada pela Capitã
Sisay, que a comandou, e foi fortalecida por Karn, que viveu através de você, e foi
defendida por Tahngarth, que lutou por você. Você teve muitos mentores, muitos amigos.
Você está cercado por uma multidão deles.”
É assim para com todos os seres vivos?
“É para ser assim com todos nós.”
Como posso agradecer-lhes? O que posso oferecer em troca?
“Tornar-se o que você foi feita para ser.”
Um considerado silêncio seguiu. Parece-me que o Criador é mais poderoso que
você, Multani, mas que você é mais sábio.
O espírito da natureza não pôde deixar de rir. “No tocante à minha falta de poder,
peço uma única dádiva a você, Bons Ventos.”
Eu a concederei, se puder.
“Conduza-me para fora desta passagem extradimensional, e fora do seu casco
transformador, e me conceda um pouco de madeira viva da qual eu possa ter um corpo
separado. Então eu lhe desejarei bem e irei me retirar.”
Haviam apenas algumas poucas palavras finais. Chegar à maioridade é algo
solitário.
A força vital da nau tomou conta dele. Seu espírito foi retirado rapidamente, mas
gentilmente, das tábuas vivas onde ele havia residido. O corpo caiu aos pedacinhos na
passagem do carpinteiro. Multani entrou no casco do Bons Ventos.
Ele passou por anéis de madeira acolhedores. A seiva que uma vez se jogava
contra ele agora o carregava em uma amistosa maré. Os grãos onde outrora ele vagara
29
como mentor e amigo agora o conduziam para fora. Ele sabia que esta era a última vez
que ele se moveria através da grande nau Bons Ventos. Cada célula de seu ser parecia
cantar sua passagem, o alegre, e triste desfile de um herói que partia.
Então, foi feito. De repente, ele se pôs de pé além da proa dela. Um novo corpo
de fibra jovem e forte abraçou seu espírito. Ele era alto, a cabeça espetada de folhagem
como as pétalas púrpuras de um cardo. Seus ombros largos tinham um poder radiante
sobre eles, e seu torso estava coberto por um manto branco como algodão. Sobre pernas
incisivas, ele recuou para se firmar e pés que pareciam raízes antigas agarraram a encosta
vulcânica. Sua mão se desprendeu do Bons Ventos, e o último elo entre eles estava
quebrado.
Não o último. Diante dele, gloriosamente restaurada, pendia a figura de proa de
Géia que ele havia formado na proa do navio. De uma larga cascata de cabelos retorcidos
brilhava o rosto de Hanna – forte, orgulhosa, de olhos claros e sorrindo gentilmente. O
Bons Ventos saberia o caminho dela. Mesmo sem ele, sem Karn e todos os outros, ele
conheceria seu caminho. Ele tinha amadurecido.
“É uma coisa solitária, mas gloriosa,” ele sussurrou carinhosamente.
Só então notou o resto da equipe de comando – Sisay, Tahngarth, Karn e Orim –
em pé sobre um punho de basalto próximo. Eles estavam admirados com o navio
transfigurado. Os pés de Multani eram trituradas contra a montanha rochosa enquanto
fazia seu caminho até eles. Então, ele também viu.
O Bons Ventos estava maior do que nunca, mas também mais elegante. Sua proa,
que recentemente se arrepiou de espinhos, era agora uma única ponta larga e afiada. Já
não mais era para lutar contra os dragões mecânicos e navios saltadores. Agora ele lutaria
contra deuses. Vestido de prata com um brilho reluzente, seu casco voltou a arrastar as
longas e largas asas de metal. Suas entradas de ar foram aperfeiçoadas para uma série de
canais que levavam ao coração pulsante da nave.
E que coração. Mesmo de fora, o poder do novo motor se manifestava no zumbido
que ele dava no ar e na fina nuvem de poeira que dançava atrás dela. O antigo Bons Ventos
gritava desafiadoramente para o céu. O novo Bons Ventos lutaria para permanecer no
chão.
Ele era vasto, poderoso e bonito. Ele não pertencia a ninguém, não agora –
ninguém a não ser as eras.
30
CAPÍTULO 6
31
através do vidro de sua cabine, a raiva da mulher era evidente. Sua mente enviou uma
única palavra que era tanto acusação e condenação: Urza.
Sim, respondeu o guerreiro pantera.
Ele matou Szat e agora Taysir! Com Kristina e Daria, já são quarto de nós
perdidos.
Cinco, disse Windgrace. O próprio Urza está perdido.
Ele sempre esteve perdido. Ele gastou quatro milênios para se perder. Ela se
deteve. As manoplas de seu titã mecânico agarraram punhados iguais de fio e os
arrancaram. Faíscas chiaram pelo chão. Ela lançou as fibras longe.
Dois recém-chegados apareceram no caminho desses objetos lançados. O titã
mecânico de Bo Levar se agachou com facilidade, deixando o metal retorcido raspar sobre
as gaiolas dos falcões em suas costas. O Comodoro Guff não era tão ágil ou atencioso. O
feixe estava pendurado, brilhante, em uma peça do colar de sua máquina. Ele parecia um
bigode descuidado sob o grande olho do planinauta.
Bo Levar observou a cena e rapidamente deduziu sua importância. Eu sabia que
isso ia acontecer. Maldição.
Sim, Maldição! repetiu vigorosamente o Comodoro Guff. Maldito seja todo esse
inferno! Ele parou, e somente então notou seu bigode de fios. Manoplas enormes tentaram
arrancá-lo, lutando para libertá-lo, mas parecia somente estar acariciando suas cerdas. O
que... precisamente... aconteceu?
Bo Levar apontou o dedo enfaticamente para Taysir. Esta é a forma que as coisas
sempre terminam com Urza. As pessoas dizem: “Ei, ele está apenas tentando ajudar o
mundo.” Mas que grande merda!
Uma grande merda de babuíno! Uma grande merda de babuíno derretida coberta
com uma camada fina de vômito de cabra! elaborou o Comodoro Guff. Então, com menos
arrogância, ele perguntou, O que exatamente estamos discutindo?
Freyalise respondeu: Estamos falando sobre o assassinato de outro planinauta, a
destruição da bomba principal que deveria acender todas as outras e a deserção de nosso
líder para o lado de Yawgmoth.
O módulo controlador do Comodoro Guff voltou-se para Bo Levar. Você passou
para o lado de Yawgmoth?
Não ele! Interrompeu Freyalise. Urza!
Oh, sim, Urza. Claro. Sim, finalmente passou para o outro lado. Comodoro Guff
parecia satisfeito. E para os olhares vazios o fitando, ele respondeu, Eu li a história disso
seis meses atrás. Eu estava me perguntando quando ele iria chegar a isso. Bastava
esperar.
Até mesmo Bo Levar parecia exasperado com seu velho amigo. Se você sabia o
que ele ia fazer, por que você não o impediu?
O Comodoro acenou com um dedo de metal Thran para o homem. Eu já tinha
confirmado. Não faz sentido parar algo que já foi confirmado.
Freyalise caminhou até ficar diante do homem. Então, se você já leu tudo isso
antes, o que devemos fazer agora?
Guff sacudiu a cabeça. Sinto muito. Eu assinei um rigoroso acordo de
confidencialidade.
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Bo Levar andou na frente de seus companheiros. Somente Urza sabe como a
bomba principal foi construída. Só ele poderia reconstruí-lo.
Urza se foi. Não há esperança de encontrá-lo, disse Freyalise.
Bo Levar assentiu. Então cabe a nós detonar as bombas. Uma por uma. Caso
contrário, nossa viagem aqui terá sido em vão. Caso contrário, Kristina, Daria, Szat e
Taysir... e sim, até mesmo Urza, morreram em vão. Nós iremos na ordem inversa,
voltando para as bombas que cada um de nós plantou. Nós iremos em pares. Um será o
localizador, encontrando cada bomba e apontando para o outro se aproximar. O outro
será o detonador, que terminará a sequência da explosão antes de transplanar para
longe. Ambos os trabalhos são perigosos, o último pelas bombas, e o primeiro, pelos
grupos de recepção que Yawgmoth nos enviará.
O Comodoro ficou boquiaberto com o entendimento súbito. Yawgmoth sabe o que
estamos planejando!
Temos que assumir que ele sabe tudo sobre nós. Até as rubricas da morte em
nossas vestes.
As rubricas da morte em nossas vestes? Freyalise gaguejou só depois juntando as
peças.
É por isso que vamos ter que ficar sem as vestes, disse Bo Levar.
Freyalise respirou fundo. Nestes ambientes tóxicos?
Olha, você é a única que odeia essas máquinas, e uma daquelas que odeia Urza.
É melhor confiar em sua própria magia, em suas próprias habilidades inatas do que
nessas coleções de facas. Faça o que todos nós fizemos na terceira esfera.
Conjure trajes de guerra e proteções para si mesma. Isso exigirá mais energia,
mais concentração, sim, mas será mais seguro. Deixe a folhagem e o mana verde
cobrirem você.
“Deixe um sorriso ser seu guarda-chuva,” aconselhou o comodoro Guff,
repentinamente parado do lado de fora de seu titã mecânico. Seus pés foram colocados
no chão no meio de fios vivos. Seguiu-se uma dança espástica e o antigo planinauta saltou
com uma energia cintilante. Enquanto dançava, uma grossa capa branca escorria para
envolver sua pele e em um momento ele estava protegido. Seu monóculo cresceu o
suficiente para ocupar toda a frente de seu rosto, semelhante a uma máscara de mergulho.
“Mas é melhor você se proteger.”
Foi necessário apenas um único olhar para a figura dissecada de Taysir para
inspirar outros a abandonarem seus titãs mecânicos. As máquinas tombaram visivelmente
quando seus mestres saíram. As juntas se assentaram e foram bloqueadas. Seus pontos de
luz diminuíram e cessaram. Suas cabines se tornaram globos entorpecidos.
Bo Levar apareceu primeiro. Seu estiloso colete e calças de pirata se estenderam
para cobrir qualquer carne nua. Os tecidos grossos empurraram serpentes de fio
cuspidoras para trás. Seu cabelo castanho-claro ostentava um súbito chapéu de aba larga
com protetores de orelha. A coisa emplumada na sua coroa estalava com pequenos raios.
Ao lado dele estava de pé – ou melhor, flutuando – Freyalise. Ondas de cabelo
pintado de laranja e vermelho cobriam seu pálido rosto amendoado. Tatuagens com temas
florais entrelaçavam suas bochechas e testa. Seu corpo era tão ágil quanto a haste de uma
flor e seus pés deslizavam no chão sinuoso. Tudo isso foi visível por apenas um breve
33
instante, antes de um grupo de vinhas rastejarem através de seu corpo e envolvê-la. As
gavinhas de aço não eram nada contra aquelas vinhas. Faíscas espirradas foram apagadas
pela seiva pulverizada.
O último a sair foi Lorde Windgrace. Ele ficou por um momento em sua posição
ereta de meio-pantera enquanto seu corpo terminava sua transformação. Seu peito
estreitou e aprofundou. Seus braços se afinaram e se viraram para frente. Sua pele
engrossou em uma guedelha impenetrável. Ele se abaixou em uma posição agachada,
juntou as pernas e pulou. O salto o levou para longe dos cabos mortais. Windgrace pousou
na máquina caída de Taysir.
“Não é certo deixá-lo aqui.”
Bo Levar falou em nome dos outros. “O que você propõe?”
O guerreiro pantera respondeu enquanto abria caminho até o titã mecânico. Ele
parecia um grande predador rasgando uma grande carcaça. A armadura esticada pelo calor
quebrou facilmente sob suas garras. Os para-brisas se separaram de suas armações. Uma
rachadura se abriu no coração da grande máquina e Lorde Windgrace se arrastou por ela.
Um clamor fervoroso veio de dentro.
Os outros três planinautas assistiram atordoados.
“Ele poderia simplesmente ter transplanado para dentro do traje,” Freyalise disse.
"Também está tumultuando,” disse o Comodoro Guff. "Que indigno."
Bo Levar sacudiu a cabeça. “É o 'dalfir'- um rito guerreiro. Se um guerreiro pantera
morre em batalha e não pode ser enterrado, seu coração deve ser removido e levado de
volta para casa.”
“Uma atitude brutal e bárbara,” comentou Guff.
“Não,” respondeu Bo Levar,” não quando sua nação está cheia de lordes Lich
procurando guerreiros mortos para reanimar.”
Comodoro Guff olhou para a paisagem destruída ao redor dele. Seu rosto ficou
enorme atrás do monóculo gigante e sua respiração formou cones brancos gêmeos sob o
bigode. “Uma excelente precaução, devo dizer.” Ele se virou para seus companheiros.
“Se a situação exigir, terei prazer em arrancar os corações de vocês.”
Freyalise lançou-lhe um olhar perigoso. “É melhor ter certeza de que eu estou
morta antes de tentar, ou você vai sentir falta de um órgão muito querido.”
O Comodoro desviou o olhar, “Bem, me parte a alma!”
Lorde Windgrace emergiu, encerrando misericordiosamente a necessidade de
mais conversação. Ele pulou nos fios e pousou no meio dos companheiros. Carvão cobria
suas garras, mas não havia sinais do coração de Taysir.
“Você realizou o dalfir?”" perguntou Bo Levar reverentemente.
“Realizei,” respondeu o guerreiro pantera com uma reverência. “Seu coração
estará seguro. Eu o envolvi em roupas limpas e o absorvi em minha própria carne. Ele
está aprisionado em minhas costelas, ao lado do meu próprio coração.”
Piscando em pensamentos, Bo Levar disse, “Você fez a ele uma grande honra.”
Novamente, o guerreiro pantera curvou-se. “Sou eu quem se sente honrado em
levá-lo comigo.” Ele se voltou para Freyalise. “Você quer ser a localizadora ou a
detonadora?"
34
“Eu vou achar o nosso caminho. Sigam-me.” Com isso, Freyalise desapareceu.
Onde uma vez ela havia flutuado, apenas os horríveis cabos trançados permaneceram –
eles, e algo mais: um aroma. Cheirava a prados, onde gramíneas verdadeiras cresciam, e
florestas, onde as árvores despontavam para o céu.
Lorde Windgrace levantou o nariz, inalando o aroma doce. Ele poderia
acompanhar Freyalise tão segura e silenciosamente quanto se estivesse rastreando uma
corça em uma trilha de cervos. “Até nos encontrarmos novamente em uma Dominária
livre.”
“Até lá, velho amigo!” O Comodoro Guff estava entusiasmado. “Até lá então,”
disse Bo Levar em voz baixa.
Windgrace saltou no ar, seguindo aquele cheiro vital e inevitável. E transplanou.
O rastro do aroma o conduziu do campo de fios até a base de uma cidade pneumagogue.
Ele flutuou um momento no céu, investigando a cena.
Os pneumagogues eram pouco mais que borrões de asas de aço sobre corpos de
conchas vermelhas. Parte físicos, parte metafísicos, os pneumagogues voavam
furiosamente sobre um buraco escavado na metrópole deles. E ainda mais furiosamente,
eles cercavam a mulher que o havia levado até lá.
Agora fora de seu traje titã, Freyalise jogou uma magia verde. Ela bateu no chão
ao redor dela, invocando um repentino bosque. Hastes de bambu empalaram muitas das
bestas. Vinhas selvagens arrastaram outras para o chão. Ainda assim, mais pneumagogues
desciam para atacá-la. Os próprios dedos de Freyalise se abriram e floresceram, enchendo
o ar de flores brancas. O material macio entupiu as asas e as prendeu em espiráculos,
Pneumagogues caíram do céu.
“É melhor fazer isso rápido,” disse Freyalise acima do estrondo. Lorde Windgrace
fez isso rápido. Ele mergulhou em direção ao solo, atravessando o enxame de bestas. Seus
ombros os atingiram, jogando-os para longe. Eles aumentavam em número à medida que
se aproximava do local da bomba. Ele cravou suas garras na parte de trás de um
pneumagogue e o atirou para longe da bomba. Soltando um rugido, ele fez sinal para que
Freyalise transplanasse. Então, houve apenas o golpe rápido de uma única garra.
O mundo incendiou. A bomba saltou no seu buraco. Ela se tornou uma
incandescente energia branca. Um halo de fogo derreteu o chão. Uma coluna de fogo
disparou para o céu. A grande cidade cheia de torres dos pneumagogues estremeceu e se
despedaçou. Por toda a estrutura, rachaduras negras surgiram e, um instante depois,
ficaram brancas quando a radiação as inundou. Ela desmoronou e o próprio solo cedeu.
Lorde Windgrace não viu mais nada. Ele já tinha transplanado. Em algum lugar,
uma seção de Phyrexia desapareceu. Windgrace não prestou atenção. Ele seguia o cheiro
doce da vida. Seu próprio coração acelerou mesmo quando o coração de seu amigo
permanecia em silêncio e morto ao lado dele.
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CAPÍTULO 7
“Isto não é bom!” gritou Eladamri, de pé nas costas de um novo Kavu. A maior
besta havia demonstrado seu coração de guerreiro em uma demanda à frente. Eladamri
saltou para lá e continuou lutando. Mesmo agora ele apertava suas palavras entre golpes
de espada. “Eles são infinitos aqui! Deve haver um caminho melhor para o interior.”
A porta principal para o vulcão havia deixado de ser uma abertura, cheia de pilhas
espessas de quitina, mecanismos quebrados e carne podre. O totem-vec Lin Sivvi estava
voando com fúria. As garras e presas de seu Kavu limpavam o caminho, mas toda vez
que ele abria uma avenida, era fechado por uma enxurrada de Phyrexianos. Eles saíam da
porta de entrada do lado do vulcão.
“Se não os pararmos aqui, eles nos farão cair do lado da montanha.”
Eladamri cutucou seu enorme Kavu, empinando-o. A massiva besta se levantou
sobre as patas traseiras. Depois soltou sua incrível massa, atingindo os Phyrexianos com
as garras de seus cascos.
“Nossos exércitos poderiam se entrincheirar mais abaixo.”
Grizzlegom, balançando o machado em círculos assassinos, soltou um grunhido
rabugento. “Eu não vim aqui para lutar uma batalha defensiva.”
Eladamri passou sua espada pelo topo da cabeça de um Phyrexiano albino. “É por
isso que nossos exércitos poderiam se entrincheirar, enquanto nós entramos na Fortaleza.”
Um sorriso selvagem se espalhou pelos lábios do Minotauro. “Eu gosto do jeito
que você pensa, elfo, mas só nós três não podemos entrar por este portão.”
“Nós três, com um grupo de minotauros, elfos e Keldonianos selecionados,”
respondeu Eladamri de volta. “E não por este portão. A montanha tem tantas fendas
quanto o crânio de Crovax. Há um milhão de maneiras de entrar.”
Grizzlegom assobiou estridentemente, sinalizando para suas tropas. Ele deu o
sinal para “recuar e entrincheirar.” Instantaneamente, a batalha se moveu pela encosta.
Os minotauros cessaram o seu avanço de chifres e aço e recuaram.
Eladamri, da mesma forma, emitiu ordens às suas tropas, primeiro em élfico e
depois em Keldoniano comum. Era como se um tampão tivesse sido removido sob o
campo de batalha. As tropas foram drenadas para longe do conflito.
Os três comandantes e suas montarias foram subitamente cercados por uma
enxurrada de monstros. Alguns gestos de Grizzlegom trouxeram mais dez minotauros
montados para se juntarem a eles. Os Kavus avançaram, carregando ou um único
Keldoniano ou conjuntos inteiros de elfos. Os últimos se reuniram em grupos de
arqueiros, atirando flecha após flecha nas fervilhantes bestas.
“Onde estamos indo?” Grizzlegom gritou enquanto retirava seu machado de um
crânio partido de um Scuta.
“Se estamos à procura de uma rachadura-” Como se fosse um sinal, a montanha
pulou de novo. Cem mil garras perderam o equilíbrio. Um grande estrondo ressoou na
encosta próxima. Eladamri apontou e gritou, “-nós iremos para o lugar de onde vêm as
explosões.” Ele enfiou os calcanhares em seu Kavu.
36
A magnífica criatura deu uma guinada para frente através da face de basalto. Ela
lançava dezenas de Phyrexianos a cada impacto de suas enormes garras.
A montaria de Lin Sivvi saltou para o lado direito de besta dele e a de Grizzlegom
foi colocada à esquerda. Em sua esteira, pela estrada de monstros tombados, o restante de
sua equipe atacou. Isso não era mais uma batalha, mas um puro atropelamento. Lâminas
atacavam apenas para proteger os flancos e as caudas dos grandes lagartos. Eles mesmos
eram a arma suprema. Nada poderia ficar na frente deles.
Em pouco tempo, com pernas oleosas, os Kavus derrubaram as bestas. Garras se
assentaram em pedra-pomes e obsidiana. Eles galoparam para frente, distante da batalha.
Boom! Outra explosão sacudiu a montanha. À frente, a cerca de dez milhas de
distância, uma nuvem de fumaça branca subia da encosta e se curvava ao vento. Parecia
uma bandeira, uma bandeira de rendição, e vinha de uma rachadura longa e estreita.
“Lá!” Eladamri gritou, inclinando a cabeça para a pluma. Lin Sivvi enviou sua
montaria em uma corrida a toda velocidade. Grizzlegom chutou sua montaria, seus olhos
fixos no local e o nariz inalando o primeiro cheiro sulfúrico de fumaça. Keldonianos e
elfos subiram atrás deles. Seus Kavus causaram um estrondo similar a um terremoto
enquanto eles avançavam pela encosta. Poeira cinzenta espiralava no ar. As bestas
pulavam em fendas profundas entre as massas de rocha endurecidas e cravavam suas
garras no solo pálido. Dez milhas não eram nada para eles. Suas enormes pernas
avidamente comiam a distância.
A terra tremeu novamente e mais fumaça branca saiu da fenda. A nuvem era
dispersada pelo vento.
“O que está acontecendo lá em cima?” Grizzlegom gritou para seus companheiros.
“Não poderemos descer pela boca de um vulcão ativo.” “Por que nenhum dos outros está
soltando fumaça?” Lin Sivvi perguntou. A boca de Eladamri mostrou uma linha sombria.
Ele acenou para suas tropas pararem. Os Keldonianos e os elfos atrás forçaram suas
montarias a parar. Vendo as ações de seus aliados, os minotauros fizeram o mesmo.
Apenas os três comandantes avançaram. Mesmo eles diminuíram a velocidade,
entretanto, com seus Kavus pisando mais levemente pelo chão.
Aos seus companheiros, Eladamri disse, “Nós não sabemos o que tem lá. Não há
necessidade de sacrificar nossas tropas.”
Os três chegaram bem perto da rachadura. Era uma profunda fissura preta e
vertical, naturalmente ocorrendo entre duas extrusões de basalto. Rachaduras laterais
ramificavam-se do veio principal, mas elas se espalhavam apenas superficialmente na
montanha. A fenda central era a mais funda.
Vozes eram ouvidas vindas de dentro – vozes suaves, sombrias e eficientes. Uma
criatura parecia contar sílabas metricamente. O som foi encerrado por outra explosão.
A dez milhas de distância, o chão estremeceu. Ali, bem ao lado da rachadura,
rocha sólida se ergueu. Ela empurrou os Kavus e derrubou os comandantes das costas das
bestas. Eles caíram com a graciosidade que puderam, sem gritar de surpresa ou dor, mas
sem dúvida grunhindo com o impacto. Eladamri, Lin Sivvi e Grizzlegom caíram no chão
um a um, se viraram e olharam para a fenda. Suas imensas montarias se afastaram da
sibilante abertura.
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Mais uma vez, a onda de fumaça branca surgiu. E mais uma vez, ela coagulou no
ar. Apesar do zumbido em seus ouvidos, os três comandantes notaram o som de mais
vozes. Nenhuma das palavras era inteligível, mas o dialeto era indubitavelmente o dos
anões.
Eladamri ergueu as sobrancelhas e se virou para seus companheiros, apenas para
observar a mesma expressão em seus rostos. Anões? Aqui?
Em Rath e Keld, em Talruum e Urborg, os três comandantes haviam lutado com
muitas bestas, mas nunca haviam enfrentado anões Phyrexianos. Talvez a estatura dos
anões os tenha colocado distante do olho de Yawgmoth. Talvez, por ser uma pequena
raça, isso os tenha salvado dos tormentos transgênicos acumulados em cada uma das
outras espécies inteligentes de Dominária. Qualquer que fosse a razão, Yawgmoth não os
notara antes e parecia não os notar agora. Chegaram inesperadamente a Urborg,
perambularam sem serem molestados por uma guerra total, atingiram aquela fenda
rochosa no vulcão da Fortaleza e começaram a explodi-lo.
Como se estivesse respondendo aos pensamentos de Eladamri, a fenda sacudiu
novamente. Mas desta vez, não só liberou fumaça, mas pedaços de rocha.
As pedras foram jogadas para fora, caindo em uma longa linha através da lava
endurecida.
Os Kavus se afastaram das pedras e se inclinaram contra a encosta da montanha.
Eles deslizaram para frente como gatos à espreita.
Os lábios de Eladamri desenharam uma linha apertada. Esses anões certamente
não eram aliados do mal, mas isso não os tornava aliados do bem - especialmente dos
não-bons elfos. Eladamri olhou de relance para Lin Sivvi e Grizzlegom. Eles pareciam
tão apreensivos quanto.
Do começo ao fim, os anões lutavam pelos anões.
Eladamri sinalizou para seus companheiros que ele planejava avançar. Eles
assentiram em resposta. Cautelosamente, os três levantaram-se de suas posições
agachadas. Lin Sivvi se dispersou para a direita e Grizzlegom para a esquerda, enquanto
Eladamri rastejou até a fenda. As vozes lá dentro ficaram mais altas, as palavras mais
diretas. Eladamri podia até perceber, nas profundezas negras da fenda, figuras acocoradas
envoltas em fumaça.
Uma daquelas figuras agitou distraidamente a coisa enquanto cantarolava o que
soava como um hino. Ela começou movendo seus braços ritmicamente, juntando-os na
frente de seus ombros, balançando-o até seus quadris e repetindo o movimento. A
princípio, parecia que ela estava conduzindo um coro. Crepitações de relâmpagos
vermelhos que se moviam ao longo de seus braços desmentiam essa interpretação.
Energia se reunia. Dedos de poder a apunhalavam, brotando cachos de calor dos nós dos
dedos. Ela moveu seus braços ainda mais rápido e a melodia subiu por sua garganta. Em
lampejos intermitentes, o feitiço dela se ergueu da fenda profunda e ígnea que ela estivera
cortando na montanha. Luz também brilhou através de outras faces anãs - coriáceas,
austeras, atenciosas e cantantes. Em uníssono, eles cantaram uma nota final e a mulher
jogou suas mãos à frente. Uma força crepitante emergiu da boca dos cantores, reuniu-se
nas mãos levantadas da mulher anã e pulou em um relâmpago escarlate. A energia se
arqueou através da câmara escura. Ela incendiou antigas dobras de pedra, estabelecidas
38
quando Urza e Mishra haviam destruído o mundo. O poder mágico se aprofundou nas
fissuras, estalou através deles, rasgou enormes pedaços de pedra e os lançou através da
fenda.
Embora os anões permanecessem resolutos e quietos na avalanche de pedras,
Eladamri se jogou de lado. Fractius desciam pela encosta da montanha, mais uma vez
assustando os lagartos gigantes.
Eladamri balançou a cabeça tristemente e murmurou, “eu pensei que os malditos
Kavus viviam nos vulcões.”
Ele achava que ninguém o ouvira, mas próximo, Grizzlegom respondeu: “Sim,
mas eles nunca estiveram perto de anões.”
Esse seria o trabalho de Eladamri nos próximos momentos - aproximar-se dos
anões e permanecer vivo. Sua melhor chance de sucesso em ambos seria abordá-los entre
as explosões. Encorajado por aquela urgência, Eladamri ficou de pé e andou até a boca
torta da abertura.
“Saudações, povo anão,” ele gritou, somente para tardiamente perceber que o
élfico poderia ser a língua errada. De fato, parecia que sim, porque nenhum dos cidadãos
das rochas se virou para olhar em sua direção. Mudando para a linguagem comum de
Rath, tentou novamente. “Sou um defensor de Dominaria e presumo que vocês também
devam ser.” Mesmo assim, as pequenas bestas não responderam. Rapidamente trocando
as línguas, Eladamri falou em seguida em Keldoniano comum, “Eu quero negociar,
esperando por uma aliança.” Nem um único fio de cabelo tremeu na caverna. Nem uma
única narina se dilatou.
Soltando um suspiro irônico, Eladamri avançou cautelosamente pelo interior do
espaço. Aqui estava um homem que tinha unido os Kor, os Vec e os Dal de Rath, que
reuniu os povos divididos de Llanowar e tinha fundido os xenófobos elfos da Lâmina de
Aço com os “xenodepredadores” Keldonianos. Ele não seria derrotado por um punhado
de anões.
Num dialeto das línguas que ele conhecia, falando devagar e com firmeza, como
se tivesse falando para crianças, Eladamri disse, “Sou amigo. Não vou ferir ninguém.
Posso ajudar. Ajudamos uns aos outros.”
Um silêncio sepulcral. O guerreiro em Eladamri teve que se perguntar se estava
caminhando em direção a uma emboscada. Todos os outros instintos lhe diziam que,
embora algo estranho estivesse acontecendo, ele estava absolutamente seguro. Eladamri
se aproximou do primeiro dos anões, um ancião de barba grisalha com um nariz tão
grande e bulboso quanto um pepino. A criatura estava virada de costas para ele e não fez
nenhum movimento quando o lorde elfo se aproximou.
Reduzido a monossílabos, Eladamri disse, “Amigo. Paz. Ajuda. Bem...” Ele
colocou a mão gentilmente no ombro do anão e suas palavras cessaram imediatamente.
Seus dedos tocaram apenas pedra.
Piscando, Eladamri olhou para a criatura. Não era nada mais que uma pilha de
pedras. Seu nariz era um bulbo de lava endurecida. Sua barba grisalha era um pedaço
poroso de pedra-pomes. Seus ombros eram blocos de basalto, seu corpo era uma extrusão
atarracada. Eladamri se virou, olhando as outras criaturas na fenda. Eles eram igualmente
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de pedra. Enquanto sua imaginação poderia ter feito criaturas deles, na verdadeira luz,
eles não eram nada mais do que conglomerados de pedra.
Talvez o unificador dos mundos tivesse finalmente encontrado seu desafio. Quão
bom era o uso de palavras proféticas quando alguém estava falando com uma literal
parede de pedra?
Eladamri parou entre as estátuas por um momento antes de parar na frente da
mulher anã. Momentos antes, ela tinha extraído um relâmpago vermelho da boca de seus
camaradas. Agora, ela não era nada.
Suspirando profundamente, Eladamri acenou para Lin Sivvi e Grizzlegom no alto.
O Vec e o minotauro seguiram para dentro. Ambos eram talentosos guerreiros,
prontos para qualquer coisa. Eles foram pegos totalmente de surpresa quando viram
Eladamri entre as estalagmites. Grizzlegom olhou-as categoricamente, como se por
vontade própria pudesse transformá-las em carne.
“Eles estavam vivos, não estavam?” Eladamri perguntou em voz alta enquanto
seus companheiros circulavam. “Explodindo coisas e cantando.”
Grizzlegom inclinou a cabeça. “Isso foi o que eu vi.” Sua mão de quatro dedos
deslizou pelo rosto de um dos anões sentindo apenas a solidez fria. Como se duvidando
de seus próprios sentidos, Grizzlegom acrescentou, “Isso é o que meu Kavu viu.”
Lin Sivvi ficou igualmente confusa. “Eles perfuraram esta fenda. Olhem para as
queimaduras de carbono. Eles certamente viveram, há apenas alguns momentos atrás.”
Balançando a cabeça, Eladamri disse, “O que eu sou, uma górgona, congelando
essas pobres criaturas?”
“Eu também não sou,” brincou Grizzlegom, mostrando sua pele com manchas
brancas e seus chifres torcidos. “Eu sou bonito.”
Eladamri balançou as mãos em frustração. “Eu esperava me aliar com essas
criaturas. Eu esperava que elas pudessem nos mostrar uma maneira de atacar a Fortaleza.”
“Não podemos nos aliar a rochas,” disse Lin Sivvi.
O Unificador balançou a cabeça. “Não, nós não podemos.” Ele moveu a cabeça
em direção à boca da fenda e à luz do dia além. “Vamos embora.” Embora Eladamri tenha
dado um passo em direção à luz, nenhum de seus companheiros fez um movimento.
Ambos pararam em estupefação diante dele.
Os olhos de Lin Sivvi falavam muito: decepção, espanto, confusão e até irritação.
Grizzlegom disse, “Isso é tudo? É tudo o que você vai fazer?”
“Vejam, vocês mesmos disseram isso. Não podemos nos aliar a rochas. Eu preciso
de corações. Corações comuns e necessitados. Foi assim que eu uni o povo de Rath, de
Llanowar e de Keld. Eu aprendi o que eles desejavam e eu dava isso a eles. As rochas não
precisam de nada.”
A Vec e o minotauro não tinham resposta para isso. Eles arrastaram os pés na
direção de Eladamri, se juntaram a ele a caminho da saída da fenda.
“Espere,” disse uma única voz feminina e estridente atrás deles. Era o tipo de voz
que estava acostumada a ser obedecida. Para sua consternação, Eladamri parou em um
instantâneo silêncio subserviente, como um estudante sendo pego matando aula. A voz
disse, “Nós temos corações, palpitantes e ardentes corações.”
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Eladamri e seus companheiros se viraram devagar para ver a anã que estivera
canalizando o relâmpago.
Ela não parecia ter se mexido, embora agora estivesse de frente para eles. O que
antes era basalto e lava sem forma havia se tornado carne e osso bem definidos. Ela tinha
longos cabelos, além de ombros hábeis, boca pragmática, nariz proeminente e rugas onde
os anos tinham sido indelicados. No entanto, nada disso importava, já que seus olhos eram
brilhantes, azuis e penetrantes.
“Por que nós aprofundaríamos na montanha?” Os companheiros que cercavam a
mulher permaneciam transformados em pedra. Eladamri apertou as mãos em sua frente e
disse, “Grande senhora, por que você se aprofundou nesta montanha?”
“Há mal aqui,” ela respondeu. “Um mal mais profundo do que qualquer outro que
Dominária já teve até agora. A água não pode lavá-lo. O ar não pode apagar seu fedor. O
fogo só o alimenta. Só o próprio mundo pode eliminar essa mancha. Somente lava.”
Entusiasmado, Eladamri respondeu, “Você fala de um grande mal. Nós o
chamamos de Fortaleza. Vocês estão cavando em direção a ela agora mesmo.”
A anã parecia ter ouvido apenas parte do que Eladamri disse. “Quando chegarmos
ao núcleo do vulcão, invocaremos uma erupção. O mundo purificará esse mal.”
“Também queremos o mesmo, grande senhora,” disse Eladamri. “E como eu
deveria chamá-la?”
“Eu sou a Irmã Nadeen Dormet, druida da rocha,” ela respondeu sem emoção.
Eladamri se ajoelhou, para poder olhá-la diretamente nos olhos. “Alie-se conosco,
Nadeen. Vamos protegê-la enquanto você cava para o interior. Assim que atingir o centro
do vulcão, deixe-nos passar. Vamos destruir a Fortaleza.”
Ela encolheu os ombros. “Só o mundo pode destruir este mal – embora você possa
tentar. No momento que terminarmos o nosso túnel para o interior, haverá apenas um dia
antes da purgação da Fortaleza. Você terá apenas um dia para executar o seu plano.”
Arrastando-se para a frente sobre os joelhos, Eladamri disse, “Então, somos
aliados?”
Nadeen pegou a mão oferecida e apertou-a. “Com uma condição.”
“Diga.”
“Você e suas tropas terão que recuar, só assim vocês não serão abatidos pelos
escombros voadores.”
Eladamri assentiu, beijou as costas da pequena mão dela e fez uma reverência.
“Uma sugestão perfeitamente sensata, minha aliada Nadeen.”
Contra sua vontade, a anã pareceu corar. Ela disfarçou a expressão com um gesto,
que também despertou os outros druidas de pedra no meio dela. Enquanto Eladamri e
seus companheiros recuavam, as canções dos anões ressurgiram.
Mostrando um sorriso torto, Eladamri caminhou com Lin Sivvi e Grizzlegom de
volta a suas montarias. “Eles serão a salvação deste mundo. Você percebe isso.”
Grizzlegom pareceu se irritar com a sugestão, contudo apenas respondeu, “Nós
vamos dar a eles todas as oportunidades para que isso aconteça.”
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CAPÍTULO 8
DENTRO DO LABIRINTO
Urza queria estar orgulhoso da sua criação, deste jovem revoltado chamado
Gerrard.
Na verdade, ele era um projeto glorioso, uma máquina que ficava mais forte para
cada injúria acumulada sobre ela. Ele era diabolicamente forte – a verdade era inegável
quando Gerrard rebatia os golens com seus punhos – e aquela força infernal tinha vindo
de uma vida infernal. Batalha após batalha durante a conjunção, e antes disso a morte de
Hanna, e antes disso a tribulação de Rath, e antes disso Vuel e parricida e matricida...
Gerrard fora amamentado na injúria, e isso o deixara assombrosamente forte.
Ele era esperto também. Seus punhos esmagaram a palavra “Emeth” sobre a testa
do golem, obliterando a primeira letra e dessa forma, transformando verdade em morte.
A besta de areia estremeceu até se desfazer. A vida fora, visivelmente, drenada dele. Os
membros racharam e se deslocaram. Outro golpe do punho, e a criatura afundou como
um castelo de areia. Girando, Gerrard deu o mesmo soco na outra besta.
Gerrard deu um sorriso cheio de areia para Urza Planinauta.
Impressionante, sim, este jovem – forte e esperto – mas Urza não podia estar
orgulhoso dele. Gerrard era uma lâmina afiada com um sulco profundo, uma coisa boa,
mas no final, uma coisa do destino.
Gerrard se aproximou. Urza se afastou. Ele precisava de tempo para pensar.
Pensar ganharia o dia. Se Urza podia criar golens da mente e areia, que coisas maiores
ele poderia criar?
Ele deu outro passo para trás. Um labirinto se ergueu diante dele. Suas paredes se
consistiam de capricho e areia. Passagens atravessadas e interações infinitas. Capricho se
tornou determinação. Areia se tornou arenito e então, mármore. A rocha era resoluta,
quarenta pés de altura e um pé de espessura. Não havia caminho para Gerrard.
“Ele tentará derrubá-lo,” Urza refletiu para si mesmo, ainda pisando levemente
para trás.
Seu pensamento fora recompensado por um baque e grunhido do jovem. A
multidão – o Inefável gritando através de centenas de milhares de bocas – gritou de prazer.
Urza acrescentou sua risada. Era pura poesia prender Gerrard do lado de fora do
labirinto. Gerrard fora concebido em erro desesperado, a manifestação viva de Urza do
antigo e deslocado medo de – de fato, o ódio de – Yawgmoth. Quão errado Urza esteve.
Matar Gerrard acertaria as coisas. Seria a destruição simbólica de todos os planos
extraviados de Urza.
O garoto bastardo renovou seu assalto. O círculo de aço dizia que ele tinha criado
uma picareta. Com uma fenda rítmica e crepitante, ele cavou um buraco na parede de
mármore. A multidão começou a bater palmas, cronometrado com cada golpe. Algumas
das manifestações de Yawgmoth começaram a contar fervorosamente para ver quantos
golpes levaria para quebrar a parede.
Urza se virou para a agitação e caminhou mais fundo para o labirinto. Ele estava
igual a Gerrard – todo suado e furioso.
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Urza era frio calculista. Ele tocou as paredes aqui e ali, plantando pensamentos
mortíferos. O labirinto ficou mais sombrio, girando através de círculos apertados. Urza
os seguiu.
Eu devo lembrar que Gerrard não é o verdadeiro inimigo, mas somente o vilão de
palha colocado para me ensinar com meus erros. Ele, realmente, não está me enfrentando,
mas apenas me castiga pelo capricho de Yawgmoth. Vivendo ou morrendo, ele me
recorda de milênios de falhas. Morrendo – e ele certamente morrerá – ele demonstra
minha vitória sobre meu passado miserável.
Um grande estrondo de pedras caindo trouxeram o rugir de aprovação da
multidão. Gerrard golpeara seu caminho para dentro do labirinto. Agora, ele transformaria
sua picareta numa espada curta, adaga, dardos – o tipo de armas pequenas que podiam
matar em lugares apertados.
Como era transparente a mente do jovem.
Como em resposta, de repente, Yawgmoth deixou o labirinto claro. O granito
espesso foi substituído por vidro espesso – igualmente resiliente, mas permitindo a
multidão ver tudo.
Urza parou por um momento, considerando seu labirinto mental. Não precisava
ser apenas de vidro. Deixe que ele seja feito de lentes após lentes, ampliando as figuras.
As seções da parede do labirinto se deformaram e incharam. Cada painel se tornou um
prisma e se alinhou com todos os outros. As matrizes tinham dois focos – o velho
inteligente que as criara, e o jovem revoltado o qual as atacara estupidamente. O labirinto
pegou ambas as imagens e as enviou para a multidão.
O coro de prazer que se seguiu disse a Urza que seu mestre estava contente. Que
utilidade tinha a força bruta diante de tamanha sutileza mental?
Urza também viu a imagem do seu atacante. Gerrard saltou como um lobo entre
os painéis de vidro. Seus olhos se viraram imediatamente para Urza e o caminho à frente.
Ele fez seu caminho rápido para dentro, seguindo as pegadas.
E por que apenas prismas nesta caixa de luz? Urza se perguntou. Por que não
espelhos?
Um desses painéis prateados cresceu num ângulo de quarenta e cinco graus e um
giro de noventa graus. O espelho mostrou a Gerrard uma passagem reta, com pegadas
recuando perto da distância. Gerrard disparou com tudo e bateu no espelho. Ele
cambaleou até o chão e derrubou sua espada na areia.
A audiência aclamou sua queda com o retumbar dos pés. Urza sorriu. Ah, sim.
Deixe que Gerrard persiga seu criador mais fundo e fundo dentro do labirinto da mente.
Deixe que ele tente sobreviver contra milênios de genialidade.
A ovação continuou enquanto Gerrard se levantava da areia, pegava sua arma
caída e se virava para o corredor lateral. Ele deu apenas quatro passos à frente antes de
desacelerar até parar. Ele era astuto. Um homem inferior teria deixado que a fúria e
humilhação lançassem todo seu mundo numa névoa vermelha, e assim caminharia até a
armadilha de Urza preparada na parede. Era um gatilho simples – um filamento fino como
o ar se estendia de um lado para o outro. Cabos mais leves, o filamento estava conectado
a um objeto mais pesado – um bloco de pedra de duzentas toneladas estava escondido na
escuridão do céu. Ainda assim, Gerrard viu a coisa.
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Sorrindo, ele recuou e balançou sua espada na linha do gatilho. Ela cortou o
filamento facilmente, soltando as molas e girando as engrenagens. Com um chiado quase
silencioso, a rocha caiu do céu. Ela deslizou em perfeita precisão pelas paredes e atingiu
a areia. O golpe enviou poeira para os lados e balançou o chão profundamente.
Gerrard ficou ao lado do local. Uma nuvem de areia o circundou.
A multidão amou. Outra vez, o estilo superou a substância. De alguma forma, o
sorriso presunçoso de Gerrard contou mais do que a armadilha de duzentas toneladas de
Urza.
Com uma reverência, o jovem embainhou sua espada e saltou pela areia. Ele criara
um tipo de trampolim. Ele o arremessou no ar, fazendo com que aterrissasse levemente
sobre a rocha. Novamente, ele se curvou ao bramido de Yawgmoth e caminhou
tranquilamente entre as paredes do labirinto em direção à borda do labirinto.
Urza sorriu sem humor. Talvez Gerrard não permitira que a humilhação o
mandasse direto a uma armadilha mortífera, mas ele permitiria que o orgulho assim o
fizesse.
Alcançando o fim da armadilha, Gerrard saltou. Sua mente se ampliou para
transformar a areia em elástico, mas uma mente mais poderosa já havia se apossado dessas
partículas.
Gerrard veio ao chão e caiu diretamente através dele, dentro de um fosso negro.
Ele o engoliu com rapidez e segurança.
Urza o pegou. Apertando seu punho, ele trouxe as areias para o fosso em
constrição apertada ao redor do mortal herói. Gerrard estava preso. Inescapável. Embora
ele jazesse na areia a trinta pés de distância através de vários painéis de vidro, era como
se ele estivesse preso na própria mão de Urza. Um aperto daquela mão, e Gerrard estaria
morto.
Urza esperou pela adoração insana da multidão. Ao invés disso, somente havia
um silêncio julgador. As palavras penetraram na mente de Urza, faladas de miríades de
bocas: É essa a vitória que você quer contra sua criação, Urza?
O planinauta parou, sua mão quase fechada num aperto suado. “Vitória é vitória,
não é? Sobrevivência é sobrevivência. Dominância é dominância.”
Não é, veio a resposta inequívoca. Você poderia ter tido uma vitória certa
simplesmente sobrevivendo a este homem. Ele é mortal, e você é imortal. Sobrevivência
e dominância significam nada quando vêm dessas coisas insignificantes. Você não luta
com ele, mas envia golens e fossos para fazer isso.
Pura perplexidade encheu Urza. “Você não pode me culpar por isso. Eu o
sobrepujei. Usei minhas armas nativas.”
E não se arriscou, Yawgmoth replicou. Eu podia ter destruído Dominária,
simplesmente. A praga é uma coisa poderosa. Eu podia simplesmente ter enviado minhas
legiões infinitas para devasta-la e trazer-me os despojos. Não é o bastante. Estas
batalhas travadas até agora são apenas um prelúdio. Não conquistarei Dominária
através de representantes. As máquinas de praga, tropas de choque, a Fortaleza são
apenas anunciadores da verdadeira batalha. Eu mesmo tomarei Dominária. Arriscarei
tudo, entrarei nela e a sufocarei – cada ser vivo. Você derrotar Gerrard da mesma forma.
Você deve arriscar tudo e matar o coração dele.
44
A mão de Urza se abriu. Grãos de areia caíram das dobras da sua carne. Parecia
sujo e sem sentido o que ele fizera. Matar à distância, tecer uma teia como uma aranha e
esperar até que sua presa ficasse exausta – sim, estava bem para sobrevivência, mas era
desprezível e mesquinho.
Com um aceno grandioso, Urza soltou Gerrard. O movimento arremessou o jovem
revoltado para fora do fosso e dissolveu as paredes entre eles. O labirinto se fora. Em seu
lugar estava somente a areia trespassada.
Agora Urza lutaria. Ele arriscaria tudo e conquistaria.
As mãos que, momentos antes seguravam apenas a areia escoante, agora
seguravam um grande machado, uma arma ímpar. Sua ampla cabeça de dois lados tinha
o peso de um malho e a ponta de uma navalha. O punho de metal estava eriçado com
espinhos mortais. Uma lâmina idêntica de dois lados se projetou da sua extremidade.
Segurando o centro do cabo de metal, Urza girou as lâminas facilmente. Em instantes,
alcançou a velocidade de um rotor de um helionauta Tolariano.
Urza avançou. Mão sobre mão, ele girou a lâmina acima da cabeça. A canção do
giro, ele acrescentou sua voz, um staccato recitativo, “Gerrard. Eu criei você. Preservei
você. Eu destruirei você. Você é a descendência de um pensamento – um pensamento
errante e inútil. Pensamentos não podem superar o pensador.”
Gerrard apenas sorriu amplamente. “Pensamentos podem superar um pensador
louco.” Suas espadas cresceram para outros implementos – um grande escudo na sua mão
esquerda e uma grande espada na mão direita. Ele fincou os pés sem vontade de dar
espaço ao velho. “Estive esperando por isso minha vida toda.”
“Eu também,” replicou Urza. “Todos esses quatro mil anos.”
Dois passos trouxeram as cabeças do machado num alcance letal. A arma
rodopiante fendeu o ar. Ela procurou Gerrard. Apesar de si mesmo, Gerrard retirou outro
passo. Ele ergueu o escudo. Era uma coisa maciça. Teria parado um touro atacante,
torcendo os chifres para trás.
Urza planinauta não era um touro. Sua mente fortaleceu as lâminas do machado
para adamantina e deu a eles o peso de uma avalanche. Ele transformou o escudo de
Gerrard macio como cera.
O machado deslizou profundamente pelo escudo. O metal floresceu de ambos os
lados da lâmina. O machado fendeu a mão esquerda de Gerrard. Sem forças, ele soltou o
escudo. Ele caiu, dilacerado no chão.
Gerrard recuou um segundo passo. Ele certamente não planejara aquilo. Ele
ergueu sua espada, em desespero repentino.
A segunda lâmina do machado bateu. Ela pegou a grande espada de Gerrard bem
acima da travessa e fendeu por ela. Uma lâmina de seis pés foi cortada em seis polegadas.
Na sequência, o machado retornou. A cabeça que tinha fendido o escudo de Gerrard
acertou o pomo e o arremessou para longe da mão dele. Ele deu um terceiro passo, as
mãos sangrando dos dois lados.
O quarto e último golpe veio violentamente. O machado acertou o peito de
Gerrard. A lâmina afiada cortou através da túnica de couro que ele vestia, através da roupa
abaixado dela e da pele abaixo dessa. Ele fendeu o esterno como se fosse um osso de
45
galinha. A lâmina continuou, bissectando o pulmão esquerdo e o coração abrigado ali.
Por fim, a lâmina se alojou na espinha do jovem.
Gerrard ficou pendurado por um instante na lâmina. Então, soltando dos
calcanhares, ele caiu de costas. A arma de Urza caiu com ele, presa nas vértebras.
Urza se elevou acima de sua descendência.
Tudo chegou a isto: a morte de Gerrard. Dentro dele, Urza matara cada impulso
falso, cada erro crônico que o colocou contra Yawgmoth. O machado permanecia no peito
de Gerrard enquanto o sangue jorrava pelos lados como um rio.
Soltando o cabo metálico, Urza se ajoelhou ao lado do homem caído. Ele ergueu
a cabeça de Gerrard da areia. Ele o embalou, incerto se essa era a postura de um caçador
com uma presa morta ou um pai com um filho há muito perdido.
“Você ganhou,” Gerrard disse fracamente, através de lábios sangrentos. “Você
esteve certo todo esse tempo, e no fim você venceu.”
Urza balançou sua cabeça amargamente. “Não. Eu estive errado todo esse tempo.
Eu estava mais errado quando eu o criei. Você é a antítese de tudo o que conheço como
verdade.”
Olhos rolando de agonia, Gerrard replicou, “Era meu trabalho convencê-lo
contrário. Eu falhei.”
“Você não falhou, Gerrard. Sua missão era impossível. Você devia me salvar, e
Yawgmoth devia me destruir. Mas eu nunca quis ser salvo.”
“E agora... me matando... você está condenado,” Gerrard arquejou enquanto sua
carne ficava branca. O último suspiro silvou dos seus pulmões. Ele se estremeceu e se
fora.
Soltando o homem derrotado, Urza se pôs de pé. Ele ergueu seus olhos pedintes
em direção aos estandes, em direção a sacada real onde estava sentado o dragão preto.
“Esta é a vitória verdadeira, Lorde Yawgmoth. Eu matei meu passado. Matei o
herói de Dominária. Garanta-me minha dádiva. Deixe que eu ascenda ao seu lado,
aprendo com você e o adore por toda eternidade.”
Você mostrou muita compaixão por este jovem destruidor. Nós não queríamos
que você o matasse à distância. Nem esperávamos que o embalasse em seus braços e
chorasse, “Yawgmoth tenha misericórdia!” Isto não é mais uma vitória do que tudo o
que fizera antes. Isto é uma ascensão relutante, não vitória.
Por isso, darei a cada um de vocês uma última chance. A luta é até a morte – sem
prisioneiros, sem misericórdia.
Assentindo abjetamente, Urza se virou para o corpo de Gerrard. Ele não estava
surpreso em descobrir que seu machado fora removido, e a respiração de Gerrard
retornara.
O jovem sentou-se, reconstruído pela mão de Yawgmoth. Um apetite por morte
brilhava em seus olhos...
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CAPÍTULO 9
47
mais do que carpinteiro de um navio. Muito mais.” As palavras “mentor” e “amigo”
pairavam no que ela disse. “Gostaria apenas que você pudesse permanecer tempo
suficiente para cumprimentar seu ex-aluno, Gerrard, quando o resgatarmos.”
Mais uma vez, o aceno expressivo. “Você o resgatará. Eu posso sentir. E quando
você o fizer, dê-lhe meu adeus.”
Ela apertou as mãos fibrosas dele. “Eu vou.”
Uma mão bateu no ombro dele, uma mão sólida de metal vivo. Multani virou-se
para ver Karn diante dele. Olhos como lavadores de gordura encontraram olhos como
buracos.
“Você está partindo.” Era uma afirmação, não uma pergunta. “Sentirei falta da
melhor parte de mim.”
Um sorriso de amizade genuína encheu os grãos do rosto de Multani. “Você está
perdendo cada vez menos esses dias, Karn. Você está se transformando em conjunto com
o Bons Ventos. Você já tem a massa de dez homens e agora está ganhando a alma deles
também. A melhor parte de si ainda está por vir.” Multani bateu com os dedos levemente
na enorme estrutura de metal, enviando um tom de carrilhão através do golem prateado.
Atrás de Karn pairavam Tahngarth e Orim, camaradas em guerra. O olhar de
Multani repousou em adeus silencioso em cada um deles, e depois além deles, nas
memórias fantasmagóricas de Gerrard e Squee. Talvez eles já estivessem mortos. Talvez
todos eles morressem nos dias desesperados à frente. Esse adeus seria uma coisa final.
Multani deu um último aceno para os amigos e caminhou pelo meio deles. Eles o
observaram partir, os olhos escurecidos pela sombra que passava.
Que estranho que esse homem que morava nas florestas e se tornara tão apegado
a esse grupo heterogêneo de marinheiros do céu. Multani acelerou os passos na encosta
da montanha. Ele correu ladeira abaixo. Ele disparou mais rápido do que qualquer homem
poderia e mais rápido ainda como uma erva daninha. Abrindo os braços acima dele e
dobrando as pernas abaixo, ele se deixou rolar. Multani desceu as prateleiras de obsidiana
e retirou os músculos retorcidos de lava.
Em instantes, ele alcançou a floresta na base da montanha e caiu entre as árvores.
Os golpes de troncos nos ombros e nas costas, os arranhões de espinhos nos braços e
pernas, o tatear de trepadeiras em todas as suas partes teriam destruído uma criatura
menor. Para Multani, esse foi o abraço duro do lar. Seu espírito fugiu da moldura
magnigote e mergulhou em ciprestes espinhosos e gavinhas entrelaçadas. Ele percorreu
canais de seiva, emaranhados de raízes, sinapses carregadas de lama e subiu furos
adjacentes. Ele disparou para o céu através das colunas e floresceu através dos galhos que
se espalhavam. Em instantes, pulando de agulha em agulha e de folha em folha, ele
permeava a floresta. Ah, esticar-se, respirar através de estomas intermináveis, erguer cem
milhões de mãos em busca do sol... Como ele sentira saudades desse lugar vital!
Como um cachorro em meio ao trevo, ele rolou entre as árvores e lembrou-se do
porquê de viver e do que amava. Ele espiou o dossel amplo de folhas em um céu cruzado
com dragões mecânicos e navios de guerra, com verdadeiros dragões e anjos guerreiros.
Um lugar conturbado. Um lugar terrível e conturbado.
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Algo maciça apagou o sol. Parecia que uma montanha gigante havia deslizado
entre a floresta de Multani e a esfera vivificante. Sua sombra era fria e dolorida, e Multani
viu seu contorno inconfundível.
Lá, com uma altura de três mil pés, o ent lorde magnigote Nemata, diminuira sua
casca melena e sua resistente madeira. Ele não subira aqui para ameaçar a floresta
atrofiada, mas para resgatá-la. Como um homem lutando para lançar um enxame de
morcegos, o lorde ent golpeou galhos através de um enxame de dragões mecânicos.
Ao ver aquela grande figura, Multani lembrou-se de seu verdadeiro lar, o corpo
de sua alma. Oh, deixar esta terra condenada por aquela segura! Yavimaya havia vencido
sua guerra. Ela era pura e poderosa. Urborg nunca seria assim. Mesmo que os Phyrexianos
fossem expulsos, o lugar ainda pertenceria aos mortos e mortos-vivos. Lutar contra essas
batalhas sem esperança minava a alma, e Yavimaya o chamou.
Ele caiu em direção à costa, reunindo a força da floresta enquanto caminhava.
Seria um longo salto para Yavimaya, do outro lado do mundo. Os ents magnigotes haviam
caminhado meses durante o fundo do oceano, agitando as águas em sua pressa maciça. O
espírito era mais rápido ainda.
Dos últimos tiros que penderam sobre o último pântano de água salgada de
Urborg, Multani pulou. Ele viajou por uma diáfana rodovia de pólen. Ele se estendia em
uma fita sinuosa através do oceano cantante. Multani tropeçou nos esporos, mais rápido
que o vento. A cada passo que passava, seu espírito atravessava milhares de milhas. O ar
envenenado de Urborg se arrastou, substituído pelo ar revigorante do mar. E o ar de
Yavimaya era o mais fresco do planeta, tão puro, tão úmido, tão cheio de vida.
Outra fronteira, e seu espírito alcançou a terra – uma terra cheia de morte. Os
Phyrexianos haviam feito seu trabalho aqui. As florestas eram mastigadas até a polpa. Os
animais foram abatidos. Os Phyrexianos saltitavam, tímidos e sem humor como coiotes.
Nenhuma casa permaneceu inteira. Ninguém vivia. E no meio da desolação – árvores
derrubadas, corpos derrubados e inimigos se banqueteando – tropas Phyrexianas se
curvaram em oração de adoração. Eles não se prostraram ao sol ou a um ídolo ou a um
sacerdote. Eles se curvaram em direção a Urborg, em direção ao homem que alcançava o
domínio do planeta: Crovax.
Suspensa em trilhas de pólen – não havia uma folha de grama imaculada aqui –
Multani correu pelo local destruído e se perguntou: O que é essa terra infernal, para onde
o bem se foi e o mal governa? Por fim, ele viu e soube. Ali estavam as torres caídas, as
paredes quebradas, as destruídas grandes casas, os milhões massacrados da cidade de
Benália.
A cidade de Benália. Isto uma vez fora a bela Benália, governada pelas sete casas,
a terra natal de Gerrard Capasheno. Ela morreu lutando contra Phyrexianos.
Atordoado, Multani saiu do local destruído. Finalmente, ele alcançou a floresta
antiga de Llanowar. Ah, aqui seria um alívio. Multani lutou na Batalha de Llanowar,
fechou os portais de praga que a destruíram e infundiram imunidade na própria floresta.
Ele e seus aliados haviam curado centenas de milhares de elfos e começado a reconstruir
os elfilares em ruínas. Aqui, Multani encontraria socorro.
Exceto que, embaixo das copas das árvores, se afundavam filas de bestas negras.
Como um exército de formigas, eles marchavam. Phyrexianos. A floresta poderia estar
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imune à praga, mas não estava imune aos exércitos monstruosos. Eles saíram de Benália
e invadiram. Enquanto o chão agitava os invasores cruéis, as árvores estavam cheias de
guerreiros elfos. Flechas caíam em granizo verde nos monstros. Uma em cada cinco
flechas passava pela carapaça para encontrar carne. Uma em cada vinte realmente matou.
Para cada Phyrexiano derrubado, outros dezenove marchavam mais fundo na floresta.
Multani quase caiu de um lado para outro, caindo em cascata através da madeira
para reuni-la contra seus inimigos. Ele estava enojado da morte da guerra, e se esses
monstros atravessassem Yavimaya? Ele não podia lutar todas as batalhas, e a Batalha de
Yavimaya era uma que ele deveria travar.
Correndo pelas copas das árvores, Multani alcançou o braço mais distante de
Llanowar. Ele mergulhou das árvores para as ervas. Grama simples. Eles não possuíam a
complexidade antiga de uma floresta primitiva, mas estavam vitalmente vivas. Fluir
através delas como ele fez foi revigorante. Dariam a ele a força de pular o oceano em
direção à Yavimaya.
Ele conseguiu. A grama deu lugar à areia e, por sua vez, às profundezas azuis.
Sobre tudo isso, ele voou em torres de pólen. Pelo menos os mares estavam seguros. Os
Phyrexianos temiam a água, especialmente a água salgada, devido ao seu poder de
ferrugem e corrosão. Suas pragas não podiam alcançar sob as ondas. Seus soldados não
conseguiriam conquistar gargantas oceânicas. A vida sob os grandes mares havia sido
salva do avanço Phyrexiano. Embora os espíritos da floresta e do mar tivessem sido
inimigos um do outro, Multani não invejaria sua salvação.
Lá, sob as ondas, um cardume de golfinhos se erguia. A luz do sol brilhava em
sua carne cinza. Eles alcançaram a superfície e saltaram. Só então Multani viu que não
eram golfinhos, mas tritões, e que não estavam vivos, mas mortos-vivos. Suas costas
estavam cheias de espinhos de metal infectados – bem como as centopeias espinhais que
os Phyrexianos usavam em espécies terrestres. Mesmo sob as ondas, os monstros
governavam.
Lá, um riacho negro no oceano – Yavimaya acenou. Se os Phyrexianos haviam
conquistado Benália, invadido Llanowar e chegassem ao fundo do mar, que esperança
restava para Yavimaya?
O coração de Multani doeu quando ele saltou através das milhas. Ele chegou de
cabeça, pronto para o pior. Sua alma bateu nos cachos de raízes que alcançavam o mar
agitado. Ele mergulhou através deles até o primeiro dos grandes magnigotes à beira da
floresta da ilha. Até as copas das árvores, com três mil pés de altura, e lá de folha em
folha foi Multani. Ele se espalhou pela floresta, com medo do que encontraria. Sua alma
não ficou mais magra à medida que avançava, mas mais espessa, impregnada com mais
força da terra que era sua casa.
Em cem árvores, em mil árvores, em cem mil... Não havia esporos de praga aqui,
tropas vorazes, máquinas de roer. Somente a vida verdejante brilhava em tudo. Árvores
antigas afundaram raízes em cavernas aquosas e alcançaram galhos em céus reluzentes.
Entre esses galhos, havia grandes macacos em jardins de frutas, e elfos nas vinhas aéreas.
Os homens de madeira – outrora Phyrexianos convertidos em defensores da floresta –
agachavam-se, vigilantes, a cada virilha. Enquanto isso, Kavus patrulhava os troncos
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intermináveis. Os ents magnigotes estavam prontos e, em seus bulbos radiculares, os
druidas cantavam encantamentos.
Multani caiu naquelas árvores plácidas como um homem em uma rede. Ele sentiu
as tensões dos últimos dias de Urborg escorrerem para longe dele. O medo e o desespero
se foram. A facilidade e a alegria haviam retornado. Foi por isso que ele viveu. Era para
isso que ele vivia. Que o mundo fosse para as Nove Esferas; o paraíso permanecia em
Yavimaya.
Mesmo enquanto ele estava lá, envolto em felicidade, ele sabia a falsidade disso.
Como os habitantes dessa grande floresta podiam descansar enquanto, a meio mundo de
distância, toda criatura lutava pela vida? Pior ainda, se essas vidas não fossem suficientes,
o paraíso não ficaria em lugar algum em Dominária. Quanto tempo antes que os navios
retornassem, antes dos zumbis tritões surgissem? Quanto tempo antes dos Phyrexianos
varrerem símios, elfos, Kavus e druidas, e transformarem os homens de madeira em
monstros? Era o vício peculiar das florestas se voltar para dentro e não dar a mínima para
o que acontecia lá fora. Mesmo enquanto estava deitado ali, abrigado em sua terra natal,
Multani sabia que se entregar a esse impulso agora significaria aniquilação total.
Ele também sabia o que devia fazer. Seria seu último grande ato na guerra contra
Phyrexia. Gastar tanta energia deixaria seu espírito dissipado por anos, décadas ou
séculos. Ele usaria a si mesmo em defesa de seu mundo. Se ele fizesse isso direito, o
mundo não precisaria mais de milagres como Multani.
Até aquele momento, tudo tinha sido complicado. A barganha entre a vida e a
morte é confusa, mas, uma vez que um acordo é fechado, tudo é simples. Yavimaya não
precisava dele. Dominária precisava. Géia precisava dele. Era um pequeno sacrifício para
garantir a vitória.
Multani desceu pelos troncos das árvores. O calor e a luz retrocederam. Ele
alcançou os bulbos da raiz e mais além do emaranhado de gavinhas nas profundezas. Lá,
em meio a inscrições druídicas, Multani fez seu pacto simples.
Géia, eu a convoco. Ouça a minha voz. Não venho pedir seu favor, mas conceder
meu serviço. Não houve resposta. Nunca houve. No entanto, desta vez Multani sabia, sem
sombra de dúvida, que ele fora ouvido. Você tem inúmeros defensores aqui em Yavimaya.
Eles conquistaram a paz que a terra desfruta agora. Mas outras terras definham. Eles
precisam das aranhas gigantes e dos guerreiros elfos, dos homens de madeira e Kavus,
das saprófitas e dos ents. Eles precisam deles agora.
Eu serei o canal deles. Conheço ambas as terras e as conectarei. Eu suportarei,
através do meu ser esses defensores, que eles possam lutar em Urborg. É uma tarefa
muito além do meu poder, mas não se você conceder sua ajuda.
Uma pausa final, pois Multani finalmente sentiu a magnitude do que estava prestes
a ocorrer. Não sei que preço pagarei, apenas que será um preço total e suficiente. E
assim, antes que você conceda minha oração, deixe-me dizer simplesmente, adeus.
O feitiço começou. Géia estava impaciente. Multani não precisou se mudar de
onde residia, lá nas profundezas de Yavimaya. Ele não precisava mais ir à floresta, mas
ela que precisava chegar até ele. E o fez. Num raio de cinco milhas, todas as árvores,
todas as fadas, dríades, druidas e habitantes foram atraídos em direção à alma paciente do
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espírito da natureza. Como a floresta o infundira antes, infundiria-o novamente. Uma a
uma, como páginas dobradas em um livro, inúmeras árvores deslizaram para Multani.
Enquanto Yavimaya vinha, ela encontrou lugar em sua mente, Multani encontrou
seu lugar em uma floresta diferente. Cipreste e palma, atravessados com água fétida – ele
juntou para si memórias daquela floresta. A realidade de um cobria a lembrança do outro.
Multani era o conduíte. Ele se gastara para ligar metade de um mundo.
*****
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CAPÍTULO 10
Nada era melhor do que música, nada. Verdade, o mundo estava cheio de coisas
maravilhosas – tortura e dominação, vingança e perseguição, crueldade e absolvição –
mas música era o melhor. Em seu agonifone, Crovax tinha música e todo o resto tocando
de uma vez.
O grande compositor sentou-se, como uma vareta reta, em cima de um banco
almofadado. Sua cabeça estava curvada, em severa consternação, em direção a um
console de três registros. Seus dedos acariciavam teclas que uma vez foram dedos.
O mestre artesão levou meses para ajuntar os ossos. As falanges de minotauros
eram as melhores, mas os carpos de outras espécies eram suficientes. Secados
cuidadosamente, moldados e polidos, os ossos eram colocados em três teclados. Depois,
o artesão modelava os mecanismos sob cada tecla, usando úmeros e tíbias para as peças
maiores, e o frágil martelo, bigorna e estribo para o funcionamento. Ele ajustou,
perfeitamente, todo o conjunto, criando uma obra-prima.
Crovax ficou tão satisfeito que ele imortalizou o artesão estofando o banco com
sua pele. Sim, ele fora assassinado, assim como todos os que atraíram o olhar de Crovax.
Não fazia diferença se o evincar encarava seu alvo com muito amor ou muito ódio. O
resultado era o mesmo. Na verdade, o artesão não fora punido. Ele não fora executado
pelo agonifone.
Crovax ergueu suas mãos, esticou as garras e as desceu num coro de agonia. Ele
recostou-se, bebendo no som estridente. O ar carregado de saliva explodiu nele.
Para cada uma das duzentas e setenta e quatro teclas no agonifone, uma vítima
estava nas fileiras. Esses eram os tubos de órgãos. Por todo o caminho até a parede, as
vítimas jaziam, fileira atrás de fileira. Eles foram presos num lugar que o ângulo que
permitiam com que as agulhas de rochafluente trabalhassem nos instrumentos. Toda vez
que Crovax apertasse uma tecla – assim como fazia agora arpejos emaranhados que
varriam do menor tom para o maior – um mecanismo ativava a agulha de rochafluente.
Ele perfurava o corpo de uma determinada vítima e se espalhava por dentro, fazendo
coisas que asseguravam o tom apropriado, duração e intensidade. Geralmente, por horas
sem fim, Crovax harmonizava a máquina. Muitas vezes ele teve que fazer audição para
novos talentos nas fileiras. Ele realmente queria Squee para ser seu alto C, mas o goblin
era surdo, e estava muito ocupado sendo morto cronicamente por Ertai para fazer o
trabalho. Crovax permitira a Ertai seus prazeres. O evincar tinha o seu próprio.
Outra vez, as mãos de Crovax desceram. Outra vez, as harmonias dissonantes
eram arrancadas. Ele sempre amara música, das melodias de campo de escravos de
plantação para o excruciante som que seu pai tocava. Música era pura emoção. Para os
escravos, fora miséria. Para o pai de Crovax, fora a mesma coisa. Crovax revertera a
equação. Agora, pura emoção era música.
Hoje, ele estava se sentindo brincalhão, e a errante linha em tom grave dizia isso.
Uma sucessão de foles e gemidos eram compostos através do teclado inferior enquanto
posicionava sua mão direita acima. Garras tocavam os ossos. Uma melodia estridente
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começou. Seus dedos se agitaram como as pernas de uma aranha pelo teclado. As fileiras
replicaram com lamentos em quartos aumentados e segundos diminuídos. O contraponto
da dor se solidificou em acordes homofônicos. Quatro vozes, seis vozes, oito e dez – ele
delineou um décimo terceiro acorde que estremeceu as estruturas da Fortaleza. Ah, doce
dissonância!
E ainda assim, espreitando atrás daquele som de dissonância final, havia uma
profunda harmonia. Perplexo, Crovax encarou os rostos acima dele, bocas berrando. Ele
se colocou de pé, suas garras pressionando as teclas. Ele olhou para as gargantas das
vítimas. Um por um, ele as ouviu, e afastou seus dedos, eliminando o som. Os tons
cessaram em angustia pelo acorde. Finalmente, ele retirou a nota final, e ela ecoou.
Ainda, a nova harmonia se espalhou, com um tom de pedal. Crovax olhou para
baixo. Seus pés estavam cheios de fíbulas. Ele ergueu os olhos para o teto negro e o
encarou. Ele cheirou. Essa concordância doentia não veio de dentro da Fortaleza ou do
vulcão. Vinha de longe. E não era um som verdadeiro. Era um tipo diferente de harmonia
– uma música natural.
Se afastando do agonifone, Crovax entrou no quarto. Atrás dele, o instrumento se
ajeitou em dor ofegante, como gaitas de fole se esvaziando. Crovax não lhe deu atenção.
Ao invés disso, ele se virou, procurando o impulso da música. Lá, norte-nordeste a cerca
de quarenta milhas de distância. O barulho vinha de lá.
Crovax não era planinauta – nem mesmo Yawgmoth podia realizar aquilo – mas
ele conhecia algumas magias. Erguendo garras viciosas, ele puxou a mão pelo corpo.
Gavinhas de energia sangraram dos dedos e o envolveram. As energias se acumularam
num globo radiante. Ele se encolheu a uma estrela brilhante e subiu, sibilando através de
uma rachadura no teto. Em instantes, ele emergiu acima da Fortaleza e rodopiou pelo
vulcão. O cometa raiou da caldeira e se esticou pela montanha como um longo arco-íris.
Ele cobriu milhas em segundos e, de repente, estava lá.
Embora tenha chegado com grande velocidade, Crovax abaixou lentamente, em
choque. A esfera iluminada se alargou e pousou no chão. Fios de poder se desataram. O
feitiço se desgastou e Crovax se encontrava num lugar irreal.
Aqui, onde devia haver pântanos de floresta morta, havia uma floresta crescente.
Crovax estava sobre um bulbo de raiz que se eriçava com espinhos. Ele batia
contras as raízes de todas as outras árvores, bloqueando o pântano completamente. Destes
bulbos se erguiam árvores gordas em densos freios. Cada árvore era um mundo. Em seus
troncos se dependuravam coisas gigantes e gotejantes, parecendo lesmas feitas de seiva.
Ainda mais alto, em forquilhas elevadas, espreitavam lagartos enormes – os Kavus, seus
homens haviam reportado. Eles deram as cotas para o sol e encararam a singular figura lá
embaixo. Acima de todos, três mil pés acima de onde ele estava agora, elfos e símios se
aglomeravam na folhagem como piolhos no cabelo emaranhado.
Quem fez isto? Quem tinha o poder para transformar os pântanos negros em
florestas verdejantes, e aqui – na própria ilha de Crovax! Urza estava em Phyrexia lutando
por sua vida e Gerrard também. Freyalise e Windgrace e seu bando lamentável estavam
presos em Phyrexia também. Quem poderia ter mobilizado tamanha força?
Os olhos de Crovax se estreitaram. Ele ouviu a harmonia verde da flora e fauna,
do predador e da presa e ele soube: Géia.
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Seus asseclas – homens de madeira, Kavus, elfos e símios e cada outro defensor
da floresta – desceram para atacar Crovax. As árvores choveram com ramos de cupins,
exceto que estes cupins eram enormes e rápidos. Kavus do tamanho de elefantes tinham
dentes horríveis e correram em direção a Crovax.
Ele podia ter fugido. O feitiço que o trouxe estava pronto e esperando. Mas ele era
Crovax, e Crovax não fugia. Esta era a terra de Crovax. Ele a defenderia com a ajuda de
seus infindáveis asseclas.
Pisando no chão, Crovax chamou por poder. Ele jogou os braços para o lado,
garras abertas como um guarda-chuva horripilante. Da ponta dos dedos, poder ébano se
sobressaia e crepitava. Ele acertou raízes e foi além delas, até o solo – a sobra de coisas
mortas. Onde seu raio preto acertou, carne podre e ossos enterrados se ergueram. Em
instantes, antes que invasores pudessem cerca-lo, eles foram cercados por guerreiros de
húmus.
Não era o suficiente para Crovax. Ele arremessou suas garras para mais longe.
Energias cintilantes subiram pelas encostas das montanhas e adentraram os bosques. Elas
acertaram as crias de sangue Phyrexianas, tropas de choque, Scuta, e um bestiário de
outros horrores. Onde as energias acertaram, elas puxaram bestas para o lado de Crovax.
Era uma magia de invocação em sua mais direta e brutal forma e providenciou a Crovax
um exército súbito.
Os Kavus se lançaram das árvores. Eles desceram com os dentes antes de qualquer
coisa. Um caiu por cima de uma tropa de choque e o mastigou. Outro golpeou com sua
crista sagital contra as costas de um Scuta, rachando a carapaça fazendo suas tripas
respingar. Onde os dentes não fizeram o trabalho, garras fizeram. Punhos maciços
rasgaram crias de sangue. Caudas açoitadoras acabaram com pelotões inteiros de mortos.
Os Phyrexianos mais espertos – Crovax entre eles - simplesmente desviaram dos
Kavus. Enquanto uma besta acertou o chão do lado dele, o machado de Crovax cortou
sua garganta. Através do jorro resultante, ele atacou outro Kavu. O evincar enfiou sua
lâmina larga na narina do monstro, cortando através do cérebro. Além disso, ele acertou
os olhos da criatura.
Ao redor dele, Phyrexianos aprenderam com o exemplo do seu comandante. Eles
rasgaram gargantas, afundaram espadas nas orelhas e arrancaram línguas das bocas. Isso
foi apenas entre os Kavus – os primeiros e os piores dos atacantes verdes.
Elfos desceram pelas longas vinhas e caíram entre a hoste negra. Eles vieram com
espadas que pareciam agulhas e gritavam os nomes das mães. Um jovem guerreiro
apunhalou. A lâmina penetrou o peitoral de Crovax, perfurou suas entranhas e saiu nas
costas.
O evincar não estava impressionado. Ele agarrou a espada da mão do elfo e
arrancou a lâmina dele. A mão e o pulso dele estalaram. Com um poderoso puxão, Crovax
arrancou o galho do ombro. O jovem caiu numa pilha desleixada.
Estes elfos não tinham espadas, mas espinhos, e eles não eram guerreiros, mas
flores. Crovax os colheu com alegria. Logo, ele teria uma cabeça para se ajuntar ao
exército num buquê, e então, uma perna e outra cabeça. Ele dançou pela batalha. Os
homens de madeira o arranharam, mas não podiam derrubá-lo. Nada podia. Ele era
indomável.
55
Isso foi quando a primeiras saprófita caiu. Foi uma coisa gélida e viscosa, tão
grande quanto um rinoceronte, mas com a consistência de pus. De um bolso de fundo ao
lado da árvore magnigote, a coisa florescera. Ela caiu como um cuspe de muco no evincar.
Crovax permaneceu resoluto enquanto a gosma caía sobre ele. Sua cabeça rachou
através do núcleo fibroso do monstro, rasgando seu nexo central. Sem aquele tecido, a
saprófita não era mais do que um ensopado. Crovax abriu seus braços com fúria,
arrancando as entranhas do monstro. Ele rugiu, e sua respiração criou uma grande bolha
de ar no citoplasma. A bolha estourou. A besta também.
O evincar emergiu como um recém-nascido, liso e berrando. Pedaços translúcidos
do monstro se penduravam na sua armadura e lentamente derreteram. Ele sacudiu a coisa,
bem a tempo para outra saprófita cair ao lado dele e respingar novamente. Vendo uma
cria de sangue presa dentro do monstro úmido, Crovax cortou através da membrana com
seu machado. Ele chegou e puxou a cria de sangue para fora.
Mais duas saprófitas úmidas caíram no chão. Phyrexianos e mortos-vivos
definhavam embaixo delas.
“Lutem, malditos! Lutem! São apenas fungos!”
“Sim, milorde,” respondeu uma tropa de choque, “mas fungos comem os mortos.”
Crovax avaliou a situação. Centenas de tropas de mortos-vivos não estavam
emergindo das criaturas que jorravam. Eles estavam se dissolvendo. Em instantes, esses
sacos hediondos de nada derrotariam seu exército inteiro.
“Que tal catarro seco?” Crovax sibilou. Ele inclinou sua cabeça para trás e sugou
para si a energia dos pântanos. Ela verteu como fumaça preta das suas narinas, olhos e
orelhas. Ela rodopiou em ciclones idênticos pelos seus ombros e braços. A energia rugiu
pelas pontas dos dedos e bateu com força, quente e pútrida, nas saprófitas.
Sua carne gelatinosa estremeceu. Ela secou e trincou. Em cada rachadura se
formou esporos de podridão. Eles comeram através da carne alargando feridas. Pedaços
de saprófitas se dividiram para cada outro. Eles se desintegraram e se tornaram em apenas
pó no campo de batalha.
Crovax rugiu seu triunfo só depois de ver a derrota. Embora seu feitiço de
podridão destruira as forças fungais, também obliterara seu próprio exército. Fungos e
Phyrexianos não estavam distantes da cadeia alimentar, ambos vulneráveis a podridão.
Os Kavus, elfos e homens de madeira sobreviveram. Eles convergiram ao redor
do evincar de Rath.
“Afastem-se, ou serão mortos, todos vocês,” berrou Crovax, mas era um blefe. Ele
não tinha poder para destruir todas estas bestas. “Vocês estão condenados!”
Aquelas palavras fizeram sentido para ele mesmo, pois ele olhou para cima para
ver mais dezenas de saprófitas escorrendo das árvores e descendo em direção a ele.
Antes que os sacos de lodo chegassem, Crovax criou seu próprio saco. Ele ergueu
as garras sobre a cabeça e as desceu, acertando o ar. Jorrou poder. Gavinhas giravam ao
redor do corpo de Crovax, se ajuntando, e se alargaram numa enorme bolha brilhante ao
redor dele. A coisa luminosa se esticou e se afinou, como uma agulha. Saprófitas caíram.
Sem ser afetado, o filamento deslizou para o céu, procurando mais Phyrexianos, mais
mortos-vivos, mais tropas.
56
Crovax partira, sim, mas ele não fugiu. Ele era Crovax. Esta era sua terra. Ele foi
apenas ajuntar as ferramentas para sua vingança.
57
CAPÍTULO 11
58
campo de vidro com seu filho de barba preta pronto para destruí-lo. Eles são maiores do
que a vida, mas também são insetos atravessando um copo. Procuramos por um momento
antigo, um campo de batalha negro e queimado onde Tawnos e Ashnod se encontraram,
representantes de Urza e Mishra. Ah, aqui está, e aqui, acima e abaixo, os rostos dos dois
atacantes, Urza loiro-acinzentado e Mishra de barba preta.
Como se arrastam as eras, onde cada história se repete. Urza é Urza e Gerrard é
Mishra. Yawgmoth é Yawgmoth e Dominária é Rebbec. Como se arrastam as eras!
Esse momento único nós seguramos em nossas mãos, sempre o encarando com
olhos copiosos.
Estamos dentro da porta brilhante e radiante, senhor de um mundo lindo e
generoso, nossos braços se abrem amplamente para trazê-la para nós, nosso povo ao
redor, acolhendo. Onde ela está é apenas uma tumba escura, o pedestal do espelho, os
guardiões mecânicos. Acima da cabeça dela, Halcyon evapora. Rochas sólidas se
transformam em cinzas. A morte branca desce, certa e inescapável. Estamos na porta,
chamando, mas ela fecha a porta, nos afasta por cinco mil anos e destruição ascende.
Oh, como nós temos te odiado, Rebbec, querida. Por uma era de eras nós te
odiamos. Embora Urza tenha sido nosso nêmesis, você fora nosso verdadeiro inimigo.
Urza abriu a porta que você fechou. Ele reconheceu o mundo que você fechou. Você é a
bruxa do mundo. Você é nossa sombra, drenando nossa vida, fingindo que ódio é amor,
se agarrando a nós, assim você podia nos trair. Nós mataríamos o multiverso inteiro para
purga-lo de corrupção e erguê-lo incorruptível, mas você, Rebbec – você escolheu uma
morte diferente. Morte pelo fogo branco. Como nós temos te odiado!
Mas quem é esse que me pressiona? Quando saímos de Dominária, era uma pedra
morta ao redor de um sol maligno. Como está o mundo agora? Uma coisa viva e pulsante.
Quem é esta Geia que nos tirou do ataque de Yavimaya e cura nossa praga em Llanowar,
quem planta novas florestas em Keld e ergue uma prole para lutar por ela? Quem, a não
ser você, Rebbec? Conhecemos seus trabalhos, seus projetos furiosos e remodelados, seu
implacável alcance em direção à luz, sua arquitetura orgânica. Conhecemos você.
Como aquele fogo branco não purgou você? Quando te cercou, suas próprias
partículas foram consumidas. Ao invés de comerem sua carne, sua carne comeu a nuvem
e se espalhou por Halcyon, o império, o mundo. Você fez a Dominária o que fez conosco
– se agarrou na sombra, fez o ódio parecer amor, e tomou poder suficiente para governar.
Enquanto Phyrexia nos transformou de um homem para um deus, Dominária transformou
você. Uma mudança de essência, uma mudança de nome, e a mortal Rebbec se tornou a
imortal Géia.
Você continua a mesma. Você nos afastou por nove mil anos, e agora você
organiza todas as suas criaturas para nos afastar por mais nove mil. Conhecemos você.
Se Urza é pai de Gerrard, Rebbec é mãe dos dois.
Assim que terminar de brincar com esses dois, nós iremos até você e a
destruiremos. Envolveremos nossos dedos ao redor do coração do ódio e apertaremos até
que se transforme em amor e apertaremos outra vez até que você seja um farrapo morto.
Dor, repentina, estranha e esquisita, lágrimas através de nós, nos trazendo do
devaneio. Estamos de pé, gritando de alegria. Eles estão se matando, e a arquibancada
delira. Gerrard gira uma alabarda reluzente. Sangue jorra das suas pontas salpicando a
59
multidão. Urza ruge e pega a arma com um maciço tridente. Os dentes se torcem para
capturar a lâmina da arma. Ele puxa seu tridente para um lado, sacando uma faca do seu
cinto, dando uma facada eviscerante. Gerrard segue sua arma e se afasta, atrás de uma de
nossas cabeças.
Sentimos o aço de Urza fatiar o couro, rachar o crânio em direção ao nosso lobo
frontal, dividindo o crânio bem acima de nossos olhos. Vemos nosso próprio sangue
escorrendo diante de nós, e sentimos nossos membros estremecerem e caírem do ataque.
Nós até escutamos nossa respiração trabalhando de forma irregular, impulsionado por um
cérebro inferior que fica escondido sob o ataque. Enquanto morremos, a dor é interessante
e poderosa.
É apenas uma de nós, um de centenas de milhares. Não importa quantos eles
matem, eles não nos matarão. Somente um destes corpos contém nosso verdadeiro locus,
e nunca o encontrarão, e mesmo que pudessem, não poderiam mata-lo. Deixaremos que
continuem. Estas mortes, estas estocadas acidentais ou golpes desajeitados, são boas,
como a dor de uma longa e profunda cicatriz. Deixaremos que lutem entre nós.
Sentiremos centenas de mortes. Cada uma só aguçará nosso apetite pela morte final.
Urza foge para nós. Ele se debate. Ele está débil. Seu tridente se ergue
desajeitadamente para refletir uma saraiva de golpes. A ponta dele acerta os dentes de
uma de nossas bocas. Eles caem como um grosso granizo em nossas pernas. Apenas
berramos de excitação. Gerrard avança. Sua alabarda corta através do nosso pescoço.
Nossa cabeça permanece em pé em meio a uma chuva sibilante de ouro. Então afunda e
cai para o lado.
Nós vivemos eras por este momento – não apenas para testemunhar a morte de
Urza ou seu progênito, mas para morrer com eles, de novo e de novo.
Ainda assim, seria mais doce se Urza lutasse. Veem como ele foge para dentro
dos ombros eriçados, se esquiva atrás de massas escamosas? É como se ele não quisesse
se ajuntar a nós, nos servir, mas prefere se esconder debaixo de nossas asas. Indigno. Não
há abrigo sob as asas de Yawgmoth.
Vamos despertá-lo. Um bom discurso acenderá o fogo nele. Barrin, talvez? Ou
Xantcha? Ou Mishra? Não. Ele não os amou. Urza só amou Urza. Ele não sente remorso
pelas falhas dos outros, apenas pelas suas próprias falhas.
Em nossas múltiplas vozes, nós barramos, “Lute, Urza! Não há sylex para te salvar
desta vez.”
Ele nos escuta. Ele escuta enquanto a alabarda de Gerrard trepida entre o tinir do
tridente. Rangendo os dentes, Urza torce seu tridente. Com uma revolução, ele prende a
cabeça da alabarda. Com uma segunda, ele quebra a haste da arma. Ele a puxa com força.
O machado se afasta do resto. Descartando a lâmina quebrada, Urza balança o tridente
em direção a Gerrard.
O jovem mestre de armas se afasta, cautelosamente, para nosso meio.
Ele está armado apenas com um pedaço afiada da haste. A arma mais próxima
está a centenas de pés de distância, no chão da arena.
Urza avança. Os olhos do velho brilham insanamente. As facetas da Mightstone
e da Weakstone brilham.
60
Eles vêm de uma única powerstone, dividida para criar um portal entre Dominária
e Phyrexia. Estas pedras drenaram a vida do grande Glacian e absorveram sua
personalidade dividida. Recarregadas, elas fecharam o portal por cinco milênios. Somente
Urza e Mishra o reabriram. Como recompensa, as pedras moldaram os garotos em
monstros de guerras. Mishra se tornou Phyrexiano, assim como Urza, embora mais
sutilmente. Ele prova isso agora. Com ambas as pedras na cabeça, Urza está no coração
de um verdadeiro Phyrexiano.
Ele segura o tridente por cima da cabeça como uma azagaia, seu braço se inclina
para o lançamento. Terá que ser perfeito. Uma vez que a arma sair das mãos de Urza, ele
estará indefeso.
Gerrard ergue a haste para desviar do ataque. Ele cambaleia de volta para nós.
Estamos de pé, entoando, “Sy-lex! Sy-lex!” e jogando os braços para o ar. Gerrard se
abaixa atrás de um escavador musculoso. Seu corpo de barril é um emaranhado de tendões
apertados. Seus braços de símios se erguem para afastar o ataque do tridente. Não é o
tridente que ataca primeiro.
Gerrard bate com a ponta lascada da haste em nossas costas. A arma improvisada
abre a carne e empurra o osso para o lado. Nos levantamos, um grito agudo da nossa
pequena boca. Nossos braços de símios tentam arrancar a haste, mas Gerrard a empurra
mais funda. Lutamos para se virar, mas de alguma forma, ele prendeu a ponta da alabarda.
Só então o tridente voa das mãos de Urza. Ele se dependura no ar. Os dentes
acertam nossa carne e a perfuram. A respiração sibila de quatro feridas. Pontas de metal
cruzam com a estaca de madeira. Pegos entre um bastão afiado e um garfo empalador,
nós caímos.
Gerrard nos usou como escudo.
Não podemos respirar; não podemos ficar de pé. Apenas nossos enormes braços
se mexem, se debatendo, impotentes para matar nossos atormentadores. Nos batemos
espasmodicamente. Sentimos nossa morte e nos entusiasmamos.
Melhor do que isso, ambos os gladiadores estão sem armas.
Gerrard é um mestre de armas e pode criar armas onde não há. Ele chuta o
sangramento atrás do escavador e manda a besta esparramada em Urza. Suas mãos
massivas agarram o velho. Seus dedos apertam. Rios de sangue jorram pela pele e roupas.
Gritando, o escavador agarra Urza.
Nos inclinamos. Gerrard está roubando de nós a morte. Ele está matando através
de um representante. Ele joga uma besta insana em seu inimigo ao invés de lutar.
Nosso lamento se transforma em alegria.
Urza pegou a alça do tridente e a gira selvagemente. Os dentes giram, rasgando
músculo, ossos, pulmão e coração. O escavador cai. Suas mãos soltam Urza. Da barriga,
o tridente desliza numa grande saraiva de pedaços.
Nós sibilamos. Todos ao redor são mais olhos e ouvidos. Nós observamos e
escutamos e exultamos dentro da multidão vasta e assassina.
Urza se afasta, triunfante. Suas vestes mostram rosas florescendo onde o
escavador o esmagara, mas ele ergue o tridente acima da cabeça. A pontas giram em
direção a Gerrard.
61
O jovem recua. Ele percebe que não pode enganar Urza, não pode resistir mais do
que Urza, não pode nem usar a multidão contra ele. Gerrard recua. Ele recua para as
arquibancadas, seus olhos sempre sobre seu inimigo, mas seus pés o trazem mais e mais
perto da sacada onde estamos. Alguns momentos atrás ele era o predador, mas agora, é a
presa. Ele procura abrigo onde não há.
Estamos nos sentando novamente, as centenas de milhares de nós. A maré virou
dramaticamente, mas essa recuada tediosa não é uma coisa emocionante.
Então nós vemos – o caminho de Gerrard leva onde está um pneumagogue morte.
Suas seis asas se esticam como metal ao redor dele, fixadas pelo pouso casual da ponta
da alabarda. A arma de Gerrard se projeta pela face fissurada. Estávamos tão preocupados
com a luta, que mal sentimos a morte desta criatura.
Gerrard chuta o machado despedaçado para soltá-lo. A lâmina rola pela fissura,
mas não se solta. Gerrard se lança na haste, e as lâminas rolam contra os ossos.
Urza compreende e encurta a distância. Ele empurra seu tridente num golpe
empalador.
Gerrard se afasta e agarra a haste do tridente. Dois dentes perfuram sua carne. As
pontas atravessam o bíceps superior da mão de Gerrard. Ele aperta com mais força a haste,
lutando para parar seu impulso.
Urza afunda mais a arma. Um dos dentes atravessa o braço de Gerrard. Outro
desliza para espetar o peito dele, logo acima do coração.
“Finalmente,” Urza rosna, “Eu acabo com meu maior erro.”
“Não, Urza,” Gerrard grita em resposta. “Eu acabo com ele.”
Urza investe. O tridente afunda mais profundamente.
Gerrard o agarra com força e o gira. A força viaja de ombro a ombro e desce pelo
seu braço dominante. Ele solta a lâmina da alabarda do pneumagogue.
Segurando a ponta da alabarda, Gerrard gira. A lâmina fende o ar gritante. Ela
arqueia, perfeita e prateada até a garganta de Urza. O metal fatia a carne. A jugular perde
sua cor vermelha pelo corpo do planinauta. A espinha resiste menos. Um disco se rompe
ordenadamente. Os nervos de dentro são cortados. O corpo de Urza afunda, sem vida, sob
seu olhar fixo. A lâmina do machado corta o lado mais distante do pescoço.
A cabeça de Urza se solta. Ela cai, com os olhos arregalados em descrença.
Ela cai entre nós. Nós gritamos com prazer e nos esticamos para pegá-la. Há uma
tempestade de garras em torno desse prêmio sangrento e giratório. Unhas arrastam a carne
para longe de suas bochechas.
Uma mão pega o cabelo loiro-acinzentado e o segura. A mão de Gerrard. Ele puxa
a cabeça de todos os outros. Ele retira o tridente do seu braço ferido e pega a cabeça
decepada. Ele a ergue alto e é batizado no sangue do seu criador.
Nós gritamos de êxtase. Cada um de nós de põe de pé e grita para os céus. “Urza
está morto! Urza está morto! Urza está morto!”
Carregando uma expressão de triunfo sombrio, o jovem ensanguentado, Gerrard
Capasheno, caminha pela multidão. Ele brande seu prêmio e arma que levou a vitória,
caminhando em direção à sacada.
Seus lábios repetem quietamente o cântico: “Urza está morto.”
62
CAPÍTULO 12
63
Bo Levar assentiu. “Não pude instalar a bomba na base enquanto lutava com o
vento. Tive trabalho suficiente, enfrentando as máquinas defensoras.”
“Que seriam-” começou Comodoro Guff.
Figuras se ergueram no ar ao redor da máquina. Elas pareciam enormes medusas
surradas.
“Bruxa mecânicas,” Bo Levar replicou.
A horrível máquina flutuava alto e enorme como nuvens de tempestade. Espinhos
titânicos se eriçavam pelas costas. Embaixo deles se balançavam centenas de membros
articulados, cada um com uma garra farpada que podia arrebatar um pelotão inteiro.
Comodoro Guff tossiu discretamente em seu monóculo e disse, “Acredito que
você disse, velho amigo, que você estava esperando por uma luta, e eu podia fazer o
trabalho com a bomba?”
“Acredito que você disse isso,” replicou Bo Levar, “mas concordo.” Ele colocou
o chapéu novamente. Com um pensamento, o tecido fico duro como uma armadura. “Seja
rápido.” Então, com outro pensamento, ele transplanou para as bruxas mecânicas.
Tão assustador quanto o grande dínamo parecia a meia milha de distância, era
horripilante na sua base. A máquina parecia um titã de cócoras no mundo. Sua fuselagem
lançava o trabalho estrutural abaixo numa escuridão profunda. Fundamentos massivos,
com estruturas de aço tão largas quanto árvores magnigote, ancoravam o dínamo. Sob a
superfície coberta de arames, as estruturas de suporte se aprofundavam mais. Conduítes
de energia corriam em grossos blocos pelas vigas. Muitos destes arames foram
desmembrados, abrindo caminho.
O comodoro bufou. “Ele disse que tinha desativado o motor. O cortou como um
homem corta uma cana. Trabalho desleixado.” O comodoro se abaixou até o espaço
escavado. Pisando na estrutura das vigas sobre a escuridão vazia, Guff adentrou. Ao redor
dele, fios cortados formavam um corredor escarrado.
“Nem preciso usar minhas mãos-”
A observação foi cortada pelo impacto da bruxa mecânica caindo no chão lá fora.
A estrutura embaixo de Guff balançou. As vigas gigantes gemeram. Larvas mecânicas
saltaram da pele rompida da bruxa, espalhados como pérolas derramadas.
Para se segurar, Guff agarrou um suporte duplo de arame quebrado. Energia
estalou na ponta dos seus dedos, não pôde penetrar a roupa de borracha. Ele deu um olhar
irritado para cima.
“Tudo bem. Estou me apressando.”
Mais quatro passos instáveis e Comodoro Guff alcançou a bomba. Como os outros
desse tipo, este dispositivo incendiário estava embalado num pacote pequeno. A bomba
residia no nexo de placas de cinco canais de carga separados. Uma vez que esta conexão
fosse explodida, o motor cairia na escuridão abaixo, e uma enorme fenda abriria a sétima
esfera.
Detonar a bomba era uma coisa fácil, um simples cruzar de fios. Lá, embaixo da
concha de aço escovado, o fio de ignição de backup se estendia ao redor da powerstone.
Um mero toque na bucha oposta desencadearia a explosão. A dificuldade seria se
comunicar com Bo Levar a tempo do pirata se afastar da sua batalha ardente. Cedo
demais, e os defensores cercariam o comodoro. Muito tarde seria literalmente muito tarde.
64
“Apenas preciso falar com ele,” Guff disse para si mesmo.
O comodoro deu as costas para a bomba e voltou para o corredor de fios sibilantes.
Ao redor dele, filamentos estreitos emitiam pontos de luz, tubos grandes escoavam fluídos
hidráulicos, aberturas corrugadas emitiam névoa púrpura, cabos cortados acendiam-
Outro impacto abalou o chão. O pé de Guff deslizou na escuridão. Ele caiu. Suas
mãos alcançaram algo sólido para se agarrar – aqueles dois cabos grossos –
Ele não segurou os cabos. Eles se apoderaram dele, ou melhor, a corrente neles
fez isso. Percebendo um canal aberto, a energia subiu pelos fios para os dedos do
comodoro. Ela bramiu pelos tendões do seu ser, energizando seus bíceps, descendo pelas
costelas, pelo coração e por todos os nervos do seu corpo. Seu cabelo ficou de pé. Seu
bigode irradiava. Poder estalava pela íris, fazendo-as girar como rodas em miniatura.
Estes foram apenas desvios tangenciais. A maior parte da energia jorrou dele para o cabo
oposto.
Comodoro Guff estremeceu. Seus dentes chacoalharam. Ele se debateu, mas não
conseguiu se soltar. O surto era tanto excruciante quanto energizante. Apesar da
devastação dos seus sentidos, a carga, pelo menos, limpou o embaçado do seu monóculo.
Seu rosto brilhava como lanterna, e o monóculo projetou sua imagem pelo corredor em
direção aos céus.
Um som tomou conta do mundo. Era o barulho inconfundível de um motor
ligando.
Os lábios brilhantes de Guff pronunciaram a palavra, “Ops.”
*****
Bo Levar abriu caminho através da bruxa mecânica. Ele matara essa de dentro
para fora. Agora, ele tinha que escapar antes que o matasse. Seus dedos rasgaram a pele
externa. Suas mãos agarraram as membranas úmidas e o jogaram para cima. Ele se livrou
de um par de vermes mecânicos que se agarraram nele. Com uma explosão dos seus pés
– aumentada por jatos de fogo dos dedos dos pés – Bo Levar escapou da besta. Ela pegou
fogo assim que ele fugiu para os céus.
Lá, nos céus brancos, ele viu um estranho presságio – um sol radiante com o rosto
do Comodoro Guff. Como se não fosse estranho o suficiente, o orbe parecia ter dito,
“Ops.”
Balançando a cabeça, Bo Levar disse, “Oh, não.”
Uma rápida olhada para o bunker da bomba confirmou que a imagem veio de lá.
O espaço que era escuro agora brilhava cegamente. Bo Levar tentou transplanar para lá,
mas as turbinas do motor distorciam a geometria espacial. Ele segurou as abas do seu
largo chapéu, virou no ar, e mergulhou em direção ao lugar. Seu objetivo era salvar seu
companheiro, mas na verdade ele salvou a si mesmo.
A turbina de vento, de repente, começou a girar. Lâminas gigantes agarraram o ar
e o puxaram para o profundo cilindro. Mais rápido, elas giravam. O vento fluiu para o
motor como água sendo drenada.
Bo Levar inclinou sua cabeça e redobrou o impulso do seu feitiço de voo. Mesmo
assim, o ciclone rasgou suas roupas, dragando-o para a turbina.
65
As últimas três bruxas mecânicas estavam em pior forma – mais perto da turbina
e mais volumosa. Uma bruxa não teve chance. Ela deslizou de volta para o dínamo, bateu
no cone no centro, afundou nas lâminas rodopiantes e foi feita em pedaços. Pedaços de
pernas trituradas caíram pelas ventoinhas. Elas despelaram o corpo e flagelaram as cerdas.
O corpo caiu nas lâminas até que se abriu e cuspiu larvas mecânicas.
A próxima bruxa mecânica se inclinou contra o vento. Do ciclone, ela fez um
progresso lento, e teria escapado se não fosse por suas pernas longas que se arrastavam.
Elas varreram em seu rastro, inclinando seu corpo loucamente e desestabilizando-o. Ela
deslizou repentinamente para dentro da turbina. Colidindo com grande força, a bruxa
mecânica foi desintegrada.
O influxo de material quebrado entupiu o dínamo por um momento. O vento
afrouxou.
Bo Levar partiu em direção ao bunker da bomba. Infelizmente, a última bruxa
mecânica também fez isso. Com cada cerda intacta, o monstro perseguiu Bo Levar. Suas
garras acertaram o ar acima dele.
Bo Levar deu uma olha por baixo do seu chapéu estilizado, percebendo seu
iminente perigo e, por falta de uma alternativa melhor, fez movimentos frenéticos de
bruços.
Uma garra o atacou e o pegou. Suas gavinhas rasgaram sua capa de capitão e o
jogaram para cima. Ele passou através de uma floresta de outros tentáculos, em seu
caminho em direção à garganta voraz. Ele não tinha poder para matar essa besta
definitivamente – sozinho, ele já tinha derrotado quatro – mas tinha astúcia para derrotar
suas garras. Ele alcançou sua capa de capitão, agora rasgada e amarrotada, e de um
compartimento especial forrado com tubos de aço, puxou um charuto. Um estalo de dedos
despertou uma chama suficiente para acendê-lo. Fumaça azul girou para longe dele e
envolveu o tentáculo. Uma última e longa tragada, e ele espetou a ponta quente na perna
da criatura. Nenhuma criatura gostava da queimadura de charuto, nem mesmo um vasto
pesadelo Phyrexiano, mas a dor era apenas uma mordida de mosquito – a princípio. Bo
Levar selecionara um charuto especial, um escolhido com menos tabaco e mais pólvora.
A explosão foi pequena comparada com todo o rugido e trovoar da turbina, mas
poderosa o suficiente para explodir a perna em duas.
Bo Levar caiu pelo ar, sua roupa ainda presa na perna decepada. Ele pretendia dar
a baforada em Urza após o sucesso em destruir Phyrexia, um tipo de piada de planinautas.
Esta alternativa foi quase tão agradável.
“Se eu ver aquele miserável outra vez, darei a ele mais do que um charuto
explosivo.”
Bo Levar mergulhou em direção à fenda radiante onde a bomba estava, não-
detonada. Com sutileza característica, ele rolou no ar e deixou a garra cortada cair no
chão. Bo Levar grunhiu e girou. Ele ajuntou os pés e tirou a garra da roupa. Ela caiu entre
fios que estavam perto. Sua única vítima se apoiou e se soltou. Ele foi açoitado meia dúzia
de vezes pelas energias que arquearam de fio a fio, mas considerou como nada esses
choques comparados com o que Comodoro Guff sofrera lá dentro.
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Através do corte irregular no painel, Bo Levar vislumbrou seu velho amigo,
transfixado num raio. Ele brilhava. Suas mãos estavam abertas, e seu corpo parecia um
pavio de lanterna.
Bo Levar se jogou através da passagem aberta. Não havia chão sob seus pés,
somente uma rede de vigas sobre a escuridão. Rápido como um gato, Bo Levar saltou de
viga em viga, indo direto ao Comodoro Guff. Ele o acertou sem parar, e sentiu, por um
momento, o êxtase agonizante da corrente enquanto ela passava por ele.
Os dois planinautas foram arremessados, fumegando como um meteoro. Eles
caíram sobre um largo suporte e ficaram lá, tanto por causa da energia latente quanto pelo
design atual.
Ofegante, Bo Levar virou seu companheiro, agarrou aquele monóculo ridículo e
o abriu. Um jorro de nuvem de vapor saiu, revelando um rosto completamente maníaco.
O cabelo estava em cerdas duras, e os olhos do homem rolavam em êxtase.
“Comodoro. Você está bem?”
O companheiro estremeceu, tossiu uma vez, e disse, “Deixe-me tentar
novamente.”
Soturno, Bo Levar balançou sua cabeça. “Pensei muito.” Ele se pôs de pé, colocou
Comodoro Guff sobre o ombro, e marchou em direção à bomba.
“Apenas mais uma vez,” o homem soluçou.
“Sim,” respondeu Bo Levar. “Apenas mais uma, e nós partimos.” Ele alcançou a
bomba, segurou o fio crítico, pressionou contra a bucha oposta e, espontaneamente,
transplanou com seu passageiro.
Ao redor, o ar se desfez em pedaços.
67
CAPÍTULO 13
O Bons Ventos voava acima de Urborg. Ele era uma coisa do outro mundo. Sim,
seu casco ainda era da madeira magnigote de Yavimaya. Sim, seus acessórios ainda eram
do metal Thran de Shiv. Mas a nova configuração do Bons Ventos não fora sonhada em
Dominária, nem mesmo pelo Planinauta Urza.
Somente, talvez, o golem de prata Karn previra esta nova glória. Ele estava vendo
muitas coisas grandiosas nesses dias, em Dominária e além. Sua pele brilhava
intensamente, semelhante à armadura reluzente do navio. Ele não precisava se esconder
na escuridão suja da sala de máquinas. O Bons Ventos não precisava mais da sua mente,
pois ele possuía sua própria mente. Agora, Karn ficava no convés da meia nau do Bons
Ventos.
Ele não o esquecera. Na sua transformação, o Bons Ventos movera a arma restante
da meia nau para a linha central, assim Karn poderia manejá-la. Uma vez lá, a arma sofre
mitose, se dividindo em duas armas idênticas, lado a lado. Ambas foram feitas para o
golem de prata manejar. Ele estava agora com uma mão agarrada a ambos os controles
de disparo. Até mesmo os gatilhos se ajustaram aos seus dedos largos. Matrizes de
observação se contorceram para permitir que ele tivesse uma visão dos céus, igual a um
camaleão. Toda a ameia se elevou acima da meia nau, dando a ele uma vista clara em
duzentos e setenta graus de arco.
O Bons Ventos não precisava mais de Karn, nem ele precisava do navio, mas de
uma forma que eram mais poderosamente conectados do que antes. Uma vez que foram
partes de um único organismo agora, eram gêmeos nascidos no mesmo momento
oracular.
Ele estava vendo muitas coisas grandiosas, assim como o Bons Ventos. As
lanternas do navio se transformaram em dispositivos óticos. Elas podiam irradiar, em
espectro, algumas partes, até mesmo além do ultravioleta e do infravermelho. Logo, estas
luzes escaneariam a cadeia de ilhas procurando por um homem e um goblin. Se Gerrard
e Squee estivessem em Urborg, os olhos que tudo veem do Bons Ventos os encontrariam.
O Bons Ventos subiu mais alto nos céus. Seus motores zumbiram avidamente,
sem se esforçar. As alturas eram seu lar por direito. Ele subiu nelas com uma facilidade
silenciosa, uma bolha de ar escapando dos mares profundos. O mundo afundou. Uma
nuvem branca desceu no navio. Ela se rompeu no Bons Ventos e girou através das suas
entradas de ar. Ele parecia uma noiva velada.
Karn acenou gravemente. Tudo parecia certo. Nunca o navio fora tão poderoso,
tão quieto. As armas em suas mãos não eram mais monstruosidades Phyrexianas
projetadas, mas armas elegantes que derramariam ar tão facilmente quanto derramavam
fogo. À frente, no castelo de proa, outras duas dessas armas estavam posicionadas, uma
manejada por Tahngarth e outra por Orim. Ela havia trocado seus instrumentos de cura
pelas ferramentas da guerra. Que transformação! Até mesmo Sisay era uma nova criatura.
Ela estava no leme com uma nova ferocidade nos olhos – determinação em ver este navio
chegar ao seu destino.
68
Esse destino foi em direção a eles com uma velocidade inescapável.
Quando a nuvem foi embora, um círculo de formas negras se formou – cruzadores
Phyrexianos, geradores de praga, navios bate-estacas e navios-punhais. Eles encheram o
horizonte através dos quatro pontos da bússola. Nem mesmo desde os primeiros dias da
guerra houve uma armada reunida como essa. A sobreposição de Rath fizera embarcações
de desembarque serem redundantes – até agora. O Bons Ventos os atraiu. Sua assinatura
de poder irradiava pelo globo e pelo mundo. Cada navio Phyrexiano que ficou em
Dominária, convergiu para Urborg para despedaça-lo.
A voz de Sisay veio pelo duto de comunicação. “Bem, Karn, o que acha?”
“Temos um destino,” ribombou o golem de prata enigmaticamente.”
“Fugimos para salvar o navio para esse destino,” Sisay replicou, “ou lutamos para
encontrar esse destino?”
Houve um longo silêncio. “O Bons Ventos não encontrou Gerrard ou Squee. Até
que ele o faça, ele deseja lutar. E eu também.”
A gargalhada de Tahngarth veio pelos dutos. “Nunca pensei que ouviria você dizer
isso, mas estou feliz.”
Orim falou do seu lado do castelo de proa. “Nunca pensei que eu me ouviria
dizendo isso, mas eu quero lutar também.”
“Ótimo,” replicou Sisay. “Então estamos de acordo.” Ela olhou para as novas
linhas do seu navio – o aríete à sua frente, as balaustradas sinuosas, as armas letais.
“Alguma sugestão de táticas?”
“Leve-nos a eles,” Karn disse simplesmente. “Cuidaremos do resto.”
Nada mais precisava ser dito.
Não houve uma guinada violenta, nem um tremendo ronco dos impacientes
motores para lançar o navio através dos céus. O Bons Ventos era muito poderoso para
isso, muito inteligente. Com graça silenciosa, ele ajuntou velocidade. Os últimos
resquícios da nuvem se desfizeram em farrapos ao redor dele. Ele disparou à frente.
Tahngarth a estibordo e Orim estibordo, se sacudiram atrás de suas armas. O
impulso os guiou naturalmente à posição e direcionou seus canhões para o borbulhar de
navios à frente. Enquanto isso, Karn na meia nau, olhava através de uma ótica divergente,
olhando os cruzadores de ambos os lados do navio. Na cauda, manejando a arma que se
tornara indiscutivelmente de Squee, estava um jovem estandarte, com os nós dos dedos
branco e absorto. Ele lutava para manter a mira nos navios da retaguarda. O Bons Ventos
os ultrapassou tanto que, repetidamente, eles desapareciam.
Tahngarth falou por todos os atiradores. “Quando abrimos fogo? Qual é o alcance
dessas novas canhoneiras?”
A resposta de Sisay foi sarcástica. “Sugiro um teste. Escolha um alvo e veja quão
perto você chega.”
“Sim,” replicou Tahngarth avidamente. Ele colocou na mira um navio bate-estaca.
Seus dedos apertaram os botões de disparo.
O canhão falou. Ele não rugiu. Não explodiu. Ele falou, e a certeza violenta desse
anunciado era a morte. Uma coluna de energia branca-quente rolou da extremidade do
canhão. Ela fendeu o céu como uma lâmina de luz. Tão alinhada era a linha de corte que
parecia que os céus se dividiram em dois.
69
Observando através da vista magnífica, Tahngarth viu o impacto.
A rajada colidiu contra o navio e abriu um buraco no espesso metal da sua fronte.
O aço floresceu em pétalas largas. A energia não gasta na explosão respingou por cima
do resto do navio. Ela rasgou a fuselagem, segmentos da estrutura e acertou o núcleo de
energia. Uma esfera laranja de fogo despertou lá dentro. O navio explodiu, enviando uma
coroa de energia quente. O efeito abriu os braços para abraçar outros dois navios que
estavam perto e acendê-los também. Expelindo fogo e jorrando fumaça, eles se inclinaram
e começaram uma rápida descida em direção aos vulcões abaixo.
“Acho que o alcance é de trinta milhas,” Tahngarth disse alegremente.
Orim deu de ombros. “Também posso atirar.” Ela não foi tão sanguinária no
processo como o minotauro, embora com vontade, ela alinhou a arma com seu alvo e
disparou uma rápida saraiva. Quatro disparos curtos vieram da arma. A energia reluzente
subiu em linha reta em direção ao alvo – um pesado gerador de praga.
Parecia um carbúnculo no céu. Através daquela visão, Orim conseguia ver os
esporos corrompidos jorrando da máquina monstruosa. Aqueles eram os mesmos tipos de
esporos que mataram centenas de milhares em Benália, dezenas de milhares em Llanowar
e a singela Hanna. Orim pagaria a contaminação com a mesma moeda.
As quatro rajadas acertaram o navio de praga. O primeiro golpe acertou o nariz da
embarcação e rolou como uma onda despedaçando a sobrancelha, dissolvendo a coisa
enquanto corria. O segundo disparo correu direto para os lançadores de praga, designados
a expelir virulência sobre a terra. Agora, o lançador funcionava como uma concha,
desviando a explosão para arrancar os bancos de praga. Explosões brancas se espreitaram
pela concha que se desintegrava. O terceiro e quarto disparo acertaram simultaneamente,
um de cada lado do navio. Eles acertaram a lateral dos bancos de motores e os
evisceraram. Purificado da peste e descaroçado como uma maçã, a máquina negra
afundou. Até mesmo os ventos o despedaçavam enquanto caia. Phyrexianos caíam como
pulgas.
Karn foi o terceiro a disparar - embora, na verdade, suas explosões gêmeas
caíssem com uma fração de segundo depois dos dois primeiros. Naquela fração de
segundo, o Bons Ventos tinha cruzado uma milha, e o anel de navios inimigos se apertara.
Bombordo e estibordo, os canhões de Karn sibilaram. Energia como um punhado de
relâmpagos partiu em direção a dois cruzadores Phyrexianos. As rajadas rodopiavam
enquanto disparavam pelo ar, ansiosas para descarregar sua carga mortífera.
O primeiro golpe acertou o alvo como uma bola de cone, rasgando os bancos de
bombardeio de mana do cruzador. Conduítes tosquiados pulverizaram a corrupção. O
navio se digeriu. No lado oposto, o outro ataque vaporizou o estabilizador lateral de um
navio. Ele se inclinou com tudo para bombordo e começou a rodopiar sobre seu eixo.
Uma saca-rolha gigante, o navio girou e afundou. Ele se projetou no chão e abriu um
buraco, estreito e profundo.
Olhando para ambas cenas de destruição, Karn assentiu.
Quatro armas disparadas, seis navios obliterados. As armas do Bons Ventos eram
de fato, impressionantes. Bem diante dele, uma larga avenida se abrira, com ar puro além
dela.
70
O Bons Ventos inclinou-se, afastando-se do espaço vago espaço e trovejando em
direção a uma nova linha de ameaça.
“O que está fazendo?” Tahngarth rosnou antes que pudesse se conter.
“Estou sendo capitã,” veio a resposta pelo duto, “Imediato.”
“Minhas desculpas, Capitã,” Tahngarth replicou.
“Estou sendo capitã, e estou entrando na diversão,” Sisay disparou de volta.
“Ataques defensivos. Vamos colidir.”
De repente, a artilharia antiaérea se ergueu diante deles. Embarcações inimigas
desapareceram atrás de uma muralha de teias de mana preta e bombas de plasma.
Os canhões da frente do Bons Ventos vieram à vida. Eles dispararam fogo branco
pelos céus. Raios de plasma ferveram no oblívio. Eles bateram na mana preta até que as
cargas misturadas explodissem. A muralha, uma vez impenetrável, de destruição foi
subitamente rompida, e o Bons Ventos saltou por ela.
Uma parede ainda mais imponente pairava além: um gerador de praga. A mais
gigantesca nau da frota Phyrexiana, geradores de praga eram chamados pelas pessoas de
“precursores.” Quando seus contornos escabrosos apareciam à distância, eles
pressagiavam morte - morte múltipla e inescapável. Agora, a própria máquina da morte
não podia escapar.
O Bons Ventos deslizava como um bisturi nos céus. A figura de proa de Géia
suportou aquela massa de metal contorcido. Com os olhos que tudo veem de Hanna e o
queixo desafiador, ele avançou. Como a própria alma do mundo se vingando de todos os
ferimentos infligidos nela, a figura de proa de Géia sulcou dentro do gerador de praga.
Ela fendeu o espesso armamento de metal e mergulhou mais profundamente. Ela
deixou a rochafluente para trás como se fosse um mar de ondas. O Bons Ventos cortou
através do gerador de praga. Células fétidas apareceram na seção transversal. Em
algumas, criaturas estavam de guarda, surpresas demais para recuar enquanto a grande
nau passava por eles. Em outras, tripulações Phyrexianas trabalhavam em grandes
máquinas, também cortadas em dois pelo navio que rasgava. Mais fundo, no núcleo de
comando, ordens eram gritadas e outras afogadas pelos imperativos do metal que falhava
e dos monstros que morriam. Sem diminuir, sem arrependimento, o Bons Ventos
mergulhou mais fundo, uma faca procurando o coração.
Ele o encontrou. O motor era uma coisa enorme. Ele abrangia o conduíte central
e proliferava em infinitas matrizes de engrenagem e pistão. O Bons Ventos rasgou todos
eles. Sua quilha perfurou a carcaça do motor e abriu uma longa trincheira no topo. Energia
pura brotou atrás dele e se derramou na sala, dissolvendo tudo. O Bons Ventos era muito
rápido para ser tocado. Assim que o núcleo entrou em estado crítico, lançando fogo em
todas as direções, o Bons Ventos já abria caminho pelas linhas de escape e pela popa da
nau.
Ele emergiu numa chuva de fragmentos de metal, o qual, rapidamente, se
transformou numa tempestade de energia. O metal se derreteu. O próprio ar foi gasto. O
precursor sangrava fumaça de cada tubulação. Ele virou-se magnificamente e começou
um mergulho estremecido.
Sisay gritou no leme e pôs o Bons Ventos para subir. A nau se ergueu avidamente,
se afastando do anel de destruição. Ela destruíra sete navios agora, mas sobraram
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centenas. Eles formaram uma íris preguiçosa abaixo, apertando-se como se em resposta
a alguma luz ofuscante.
“Isso é divertido, mas tem que haver um jeito mais rápido,” Sisay disse.
“Leve-nos para o anel,” Tahngarth replicou através do duto. “Vamos bombardeá-
los. Eles estão muito perto um do outro para fazerem alguma manobra efetiva, e teremos
uso total de nossas armas.”
“Eles vão romper a formação,” Sisay replicou.
“Eles são muito lentos. Pegaremos a maioria deles com rajadas dos canhões. Você
consegue fatiar através dos outros.”
O sorriso de Sisay foi audível através do duto. “Estou dentro.”
O navio se estabilizou e mergulhou em direção à linha Phyrexiana. Eles já tinham
começado a quebrar a formação. Eles pensaram em cercar o Bons Ventos num círculo de
morte. Agora, o círculo se tornara sua própria morte. Embora alguns navios aceleraram e
alguns subiram para enfrentar seu inimigo mercurial, a maioria permaneceu naquele
longo arco negro o qual o Bons Ventos apagaria do mundo. Ele caiu como um martelo.
Diante dele, seis dos sete canhões dispararam. Somente o atirador do topo não conseguiria
um alvo. O atirador da torreta trouxe um caminho branco sob o navio. Até mesmo o
atirador de cauda preso em seus arreios, atirou nos navios pela popa. Mas o maior dano
veio de Tahngarth, Orim e Karn. Suas armas ardiam com tanta força que os canos das
armas eram pouco distinguíveis da substância brilhante que lançavam.
O primeiro disparo de Tahngarth encharcou o centro de um cruzador Phyrexiano,
devorando o navio. Ele caiu em seções separadas cada uma arrastando uma parte cortada
tão horrível quanto um membro esmagado. A rajada de Orim se fechou como um punho
na ponte de um navio bate-estaca e arrancou completamente a coisa da superestrutura. O
navio se inclinou e caiu. Com sua arma de estibordo, Karn incinerou um esquadrão de
frota de navios-punhais que se ergueram para atacar o Bons Ventos. Eles caíram em
pedaços rodopiantes em direção ao chão. A arma de Karn lançou fogo luminoso na cauda
de fascíola do cruzador que estava se virando para atacar. O poder adicionado
impulsionou o navio para uma embarcação vizinha. Eles se espremeram juntos, o
cruzador cavando um poço profundo no lado do seu sósia.
O próximo gerador de praga foi de Sisay. Ela se dirigiu para baixo, trazendo a
figura de proa e a quilha num golpe letal. Não entorpecida pelo primeiro assalto, a borda
afiada do Bons Ventos fendeu o convés superior do gerador de praga. Ele cortou fundo,
uma laceração longa entre protuberâncias espinhosas. Ele esmagou Phyrexianos no
caminho e despedaçou bancos de esporos. Enquanto passava, o Bons Ventos esterilizou
a virulência com seus motores que rugiam. A ferida mortal foi atingida, Sisay puxou a
nau para longe da carcaça eriçada. Ele era pouco mais que isso agora, profundamente
estripado e falhando nos céus.
“É como atirar em peixes num barril!” ela gritou pelo duto de comunicação. “Eles
nem estão atirando de volta!”
“Eles não podem,” veio a resposta retumbante de Karn que estava na meia nau.
“O que quer dizer?” Sisay perguntou.
Mesmo enquanto ele liberava um par de rajadas dos canhões que segurava, Karn
disse, “Olhe para eles. Olhe para os Phyrexianos no convés enquanto passamos.”
72
Dentro da ponte envidraçada, Sisay se inclinou para as matrizes óticas que lhe
deram a vista de inúmeros ângulos ao redor do navio. Enquanto o Bons Ventos se lançava
sobre um cruzador Phyrexiano e o lavava com fogo branco, as bestas que estavam nos
conveses exteriores e balaustradas não fizeram nenhum movimento para lutar. Em vez
disso, eles estavam admirados.
“O que estão fazendo?” ela se perguntou alto.
“É uma das maiores defesas do Bons Ventos. Medo. Maravilha. Fascínio. Ele é
um deus para qualquer um que o vê voando, que o vê lutando. E que mortal está pronto
para enfrentar um deus?”
Sisay olhou outra vez. Era verdade. Eles adoravam a nau. Mesmo enquanto ela os
matava, eles a adoravam.
“Como sabe tudo isso?” Sisay perguntou razoavelmente.
“O Bons Ventos me disse,” Karn respondeu. Ele pausou para detonar outro navio
Phyrexiano nos céus. “Seus escâneres descobriram isso. Eles descobriram mais uma
coisa.”
“O que?” Sisay perguntou.
A voz de Karn retumbou com esperança. “Ele encontrou Squee. E onde Squee
está, talvez encontraremos Gerrard.”
73
CAPÍTULO 14
As forças da coalizão tiveram que escavar. Não havia esperança de selar a entrada
principal do vulcão da Fortaleza. Eles tentaram de tudo, desde assaltos frontais a
movimentos de pinça pelos deslizamentos de rocha acima do portal até esquadrões
suicidas com incendiários. Nada funcionou. Embora os pedregulhos caíssem sobre a
passagem, os Phyrexianos cavariam seu caminho e emergiriam lutando, tão ubíquos e
incansáveis quanto formigas.
As forças de coalizão tiveram que escavar.
Minotauros e Metathrans estavam em formação de lanças diante das linhas – um
baluarte vivo permitindo mais defesas atrás deles. Enquanto isso, Keldonianos e Kavus
cortavam linhas paralelas dentro da rocha esvaziando a pedra porosa entre os canais de
basalto. Lâminas de aço e elfos de Skyshroud estabeleciam ninhos de arqueiros e
casamatas a cada cinquenta jardas. Atrás de todo esse trabalho impressionante, estavam
as linhas de abastecimento que se estendiam por vinte milhas da montanha aos pântanos
até o mar cintilante. Somente com esta muralha de guerreiros e tocas que os defensores
de Dominária poderiam manter os Phyrexianos afastados.
Embora extensa, a escavação era rasa – seis a dez pés de profundidade. No outro
lado da montanha, outros escavadores foram igualmente diligentes, exceto pelo fato de
que seu duto, agora, tinha duas milhas de profundidade.
Eladamri se agachara num lugar sem luz ao lado de Lin Sivvi, Grizzlegom, seus
elfos, Keldonianos, minotauros e tropas Metathran. O túnel estava escuro como breu aos
olhos de Lin Sivvi, embora seus companheiros podiam enxergar assinaturas de calor.
Soldados se ajuntavam apertadamente naquela alcova, no abrigo da pedra irregular. O
suor escorria do rosto deles, e eles respiravam com dificuldade. Era estressante esperar
desse jeito, como um tiro na barriga de um bombardeio.
Bem além do canto pedregoso, Irmã Dormet e seus druidas da rocha realizavam
um ritual antigo. O som sibilante dos seus cantos parecia o chiado de um pavio curto. Em
instantes, haveria uma tremenda explosão da montanha. A caverna se encheria com
fragmentos de rochas voadoras. Como os anões sobreviveriam à explosão era um
completo mistério. Ninguém mais ousava assistir.
“Está será a última,” Eladamri disse quietamente para Lin Sivvi. “Eles dizem que
há apenas mais seis pés de rocha e que esta explosão resolverá. Então você terá luz
novamente.”
“Sim,” ela replicou categoricamente. “A luz da lava. E não será apenas a lava
naquela câmara central. Serão os Phyrexianos. Eles vão se derramar por este poço assim
como fizeram no portão principal.”
“É nosso trabalho garantir que não o façam.” Eladamri sorriu na escuridão. “É
outro ataque a Fortaleza. Como nos velhos tempos.”
Lin Sivvi balançou sua cabeça sombriamente. “Muito parecido com os velhos
tempos-”
“Tampe os ouvidos,” advertiu Eladamri. “Lá vem.”
74
Eles se agacharam ainda mais, orelhas tampadas e olhos fechados. Mesmo assim,
eles ouviram o canto atingir seu tom febril.
O chão estremeceu. Um som se empurrou dolorosamente contra seus peitos, como
se cada guerreiro estivesse sendo espremido por um punho de gigante. As sombras dos
anões se projetavam num esboço gritante contra o brilho ofuscante. Então a luz
desapareceu, bloqueada por um enxame de lascas que encheram o local. A maioria dos
fragmentos dispararam diretamente pelo corredor. Muitos outros ricochetearam e se
multiplicaram contra as paredes opostas. Um cheiro como de relâmpago carregava o ar
enquanto a poeira o enchia. Aquela saraiva brutal continuou por um tempo. Por fim,
quando acabou – cegando, ensurdecendo, engasgando, esmagando e sufocando – houve
uma definitiva mudança na passagem à frente. Lin Sivvi abriu seus olhos fechados para
ver – luz.
Uma luminescência vermelha dançava pela parede da caverna. Ele fluía pelo ar
carregado de poeira. As sombras dos anões pareciam maiores, fazendo com que
parecessem do tamanho de homens e minotauros.
Enquanto Eladamri, Lin Sivvi, Grizzlegom e suas tropas respiravam mais uma vez
e se afastavam da parede de pedra irregular, os anões que conjuraram o feitiço ainda
estavam parados. Era como se tivessem gasto toda a sua energia em acelerar a pedra e
tivessem se transformado em pedra.
“Agora é... nossa vez,” engasgou Eladamri. O ar não cheirava mais como se fosse
velho, mas afiado como enxofre. “Os Phyrexianos logo virão. Devemos defender nossos
irmãos diminutos.”
Ele se afastou da parede e sacou sua espada. Lin Sivvi ficou ao lado dele, seu
totem-vec consideravelmente mais compacto do que as lâminas ao redor dela. Enquanto
os guerreiros ganhavam espaço, eles se armaram e caminharam em direção à batalha.
Eladamri contornou o ombro de pedra e olhou em direção à origem da explosão.
Uma passagem longa e irregular se estendia daquele local para um lugar que brilhava em
vermelho – a caverna da Fortaleza. Os anões que instigaram a explosão já percorriam o
corredor. Eles caminharam, sem se importar com a rocha derretida que se agarrava ao
teto, paredes e chão ao redor deles. Eles pareciam igualmente alheios aos monstros
Phyrexianos que se remexiam no final da passagem e dispararam diretamente em direção
a eles.
“Sabujos vampiros!” Eladamri gritou. Ele se lembrava das bestas em seu primeiro
assalto a Fortaleza – caninos do tamanho de pôneis com pelos desgrenhados e dentes
como punhais. “Os anões não tem chance.”
Piscando, Lin Sivvi disse, “Melhor olhar outra vez.”
O primeiro sabujo vampiro, suas mandíbulas pintando o chão com baba, saltou
sobre o anão líder. Ao invés de erguer uma arma ou se virar para fugir, o robusto
companheiro apenas se endureceu e manteve seu posto. O sabujo vampiro veio ao chão,
seus alegres dentes se espalharam amplamente.
O segundo cão fez um pouco melhor. Com sua cabeça curvada, ela colidiu contra
o sólido anão. O pequeno cérebro que ocupava a cabeça daquele cachorro ficou
totalmente embaralhado pelo impacto. A besta tombou, seus pés chutando
espasmodicamente.
75
Avançando, Eladamri disse, “Como fazem isso? Como enfrentam esses
monstros?”
“Rocha em seus elementos,” Lin Sivvi lembrou. “Quando a ameaça vem, eles
simplesmente viram pedra.”
Eladamri assentiu, apertando as mãos no cabo da espada. “Uma defesa excelente,
mas estamos executando uma ofensiva aqui.”
“E eles também,” Lin Sivvi replicou.
Um terceiro sabujo vampiro saltou pelo canto e se lançou pela passagem. Ele
saltou pelos corpos dos companheiros e o anão de pedra que os derrubara. Ao invés disse,
ele concentrou sua ira no segundo anão, o qual certamente não teria as mesmas proteções.
Não as mesmas proteções, mas ainda mais poderosas. O segundo anão era Irmã
Nadeen Dormet. Ao invés de esquivar do ataque, ela simplesmente ergueu mãos que
reluziam em vermelho. Havia apenas uma substância com essa tonalidade – lava quente.
Irmã Dormet agarrou o sabujo vampiro pela garganta. Pelo negro foi queimado. O
monstro gritou. As mãos de lava da Irmã Dormet se afundaram até seus dedos
encontrarem a espinha do monstro.
Ele caiu para o lado, sua língua se balançando na boca.
Irmã Dormet arremessou o cão e avançou com confiança. Logo, ela e seus
companheiros alcançariam o final do corredor e desceriam dentro do espaço de grelhar
adiante.
“Estátuas de pedra e mãos de lava,” Eladamri disse, maravilhado. “Quem está
protegendo quem aqui?”
“Vamos apenas chegar à Fortaleza,” aconselhou Lin Sivvi. Logo atrás dela, se
esquivando para caber através da pequena passagem, Comandante Grizzlegom
caminhava com seu machado. “Oh, estive esperando por este momento. Finalmente, uma
luta verdadeira!”
“Haverá milhares de lutas verdadeiras nas próximas horas,” Eladamri replicou,
embora ele avançasse com a mesma alegria. Ele respirou fundo. O ar cheirava a explosão
e pólvora. Ele sorriu selvagemente. “Estou pronto para isto também.”
Lin Sivvi deu um sorriso, “Estou feliz de estar em companhias tão preparadas.
Aqui vamos nós.”
A boca do túnel à frente estava repentinamente escurecida por figuras pretas –
triangular e aterrorizante. Olhos de porco, incontáveis presas, um bosque de garras, tudo
posto em movimento por massas de músculos verdes.
“Moggs!” chiou Eladamri. Seu povo havia conseguido uma existência nobre à
sombra desses brutos corcundas, e Eladamri desenvolvera um talento para mata-los. “Por
Skyshroud!”
“Pelos Vec!” Lin Sivvi acrescentou, correndo atrás dele. “Por Hurloon!”
Grizzlegom rosnou enquanto corria. Suas tropas acrescentaram seus próprios gritos
enquanto surgiam como lava subindo pelo tubo.
O líder mogg – sem dúvida um sargento, cujo posto era baseado pelo peso e
maldade – se lançou com um rugido. A honra duvidosa da coisa exigia dela a primeira
morte em sua companhia, e um mogg acreditava que uma morte era melhor obtida por
76
um ataque insano. Com garras embaixo e dentes abertos em cima, a coisa caiu sobre
Eladamri-
Ou no lugar onde Eladamri estava. Ele simplesmente esquivou da investida,
deixando o mogg morder e atacar o ar. Deslizando para o lado, ele golpeou. A espada
cortou através do músculo viscoso, entranhas, um disco cartilaginoso e da coluna interior.
O mogg se despedaçou. Garras e presas cessaram seu trabalho no ar. A luz
demoníaca naqueles olhos apertados sumiu. No momento em que Lin Sivvi chegou a ele,
nada sobrara do sargento, exceto dois pedaços de carne. A espada de Eladamri não fora
gananciosa. Ele deixou a próxima besta para o totem-vec dela.
A arma Vec – uma lâmina curvada presa pela mão - era infame por ataques à
distância em um raio de vinte pés. Somente seu portador sabia que era ainda mais
mortífera quando segurada pela mão.
Lin Sivvi encontrou os dentes do mogg com uma lâmina perversa. O aço quebrou
esmalte. O mogg rugiu por tocos de dente. Lin Sivvi enfiou a lâmina no palato e envolveu
a corrente no pescoço da criatura. Ela subiu naqueles braços que se debatiam e ficou em
cima dos ombros curvados e puxou. A besta, que por um momento pensou em morder a
cabeça dela, agora só mordia o chão de pedra. Lin Sivvi o jogou no chão e se curvou para
que Comandante Grizzlegom pudesse saltar.
Assim o minotauro o fez, muito ansioso por esperar sua vez. Ao contrário de seus
dois companheiros de Rath, Grizzlegom não era tão versado no comportamento dos
moggs. Também ao contrário deles, ele podia derrotar sua presa em seu próprio jogo.
Grizzlegom abaixou sua cabeça e atacou um mogg. Ele acertou a besta, furando-
a profundamente e então, ergueu sua cabeça. O mogg empalado se esmagou contra o teto
do corredor. Grizzlegom avançou, deixando a rocha irregular raspar a besta até o osso.
No momento em que ele alcançou a câmara central do vulcão, a criatura nos seus chifres
era um farrapo morto.
“Câmara,” era muito pequeno, uma palavra muito casual para a vasta extensão
onde a Fortaleza residia. Uma caverna cônica que tinha facilmente dez milhas de diâmetro
e dez quilômetros de altura, o interior do vulcão era iluminado pelo brilho vulcânico no
centro do seu piso. Através daquele solo enrugado, os anões druidas avançavam em
direção à lava aberta. Eles derrotaram todas as bestas que os atacaram e agora, passavam
embaixo do seu nariz, em direção à coluna de magma.
Eladamri, Lin Sivvi, Grizzlegom e suas tropas tinham um objetivo diferente – a
Fortaleza. Ela pairava sobre eles como os ossos pélvicos de um titã. O nível mais baixo
da Fortaleza era uma massa arqueada de marfim que se estendia em pedaços de chifre.
No topo, havia plataformas metálicas afixadas a uma arquitetura mais orgânica. Toda a
estrutura, brutal e barbárie, ocupava oito milhas cúbicas no coração da montanha. O
centro de todo esse poder assustador estava na sala do trono do evincar, a sala do trono
de Crovax.
O sorriso no rosto de Eladamri fico ainda mais maligno. Ele se virou para Lin
Sivvi, que surgiu com seu totem-vec enrolado num braço. “Você se lembra de ter feito
isso antes?”
Seus dentes também se mostraram. “Este dia não acabará como aquele dia.”
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“Ele começará da mesma forma,” Eladamri comentou, apontando para a larga
passagem que levava ao portão chamado Portcullis. A ponte de rochafluente eriçada com
moggs e sabujos vampiros e il-Vec e il-Dal guerreiros ansiosos para enfrentar os
invasores.
Grizzlegom avançou para a caverna e, ofegante com alegria, se ajuntou aos
companheiros. “Qual a perspectiva?”
“Excelente,” Eladamri gracejou, “se você gosta de lutar.” “Excelente,” ecoou
Grizzlegom.
Nada mais precisava ser dito. Havia muita batalha à frente. A parede inclinada do
vulcão, da ponte de rochafluente até o afloramento onde os três comandantes estavam, já
se enchia com bestas nocivas. Eladamri, Lin Sivvi, Grizzlegom e suas tropas se jogaram
nos monstros como um povo faminto num banquete.
A lâmina de Eladamri cantava no ar. Ela se afundava na carne de mogg. O metal
rasgava os ossos enquanto passava pela costela da criatura. O monstro caiu. Eladamri,
meio passo depois, trouxe sua espada para cortar um guerreiro il-Dal do umbigo até o
pescoço.
Perto dele, Lin Sivvi atacava com sua vantagem onipotente. O totem-vec fatiava
o ar e músculos com a mesma facilidade. Ele fendeu a cabeça de um mogg dos seus
ombros musculosos e continuou até dividir o cérebro de um traidor de um il-Vec. Ela
puxou a corrente, e arrancou sua última morte no caminho de um sabujo vampiro, o qual
correu em sua direção e se esparramou. Recuperando sua lâmina, Lin Sivvi pisou na
cabeça do canino enquanto chicoteava simultaneamente seu totem-vec no outro lado. A
corrente envolveu o pescoço de um mogg enquanto a lâmina separava o pescoço de outro.
Mas mesmo a fúria de uma mulher desprezada não podia se comparar com a
frenesi de batalha de Comandante Grizzlegom. Ele, cuja terra natal se tornara um inferno
durante a sobreposição de Rath, lutava em direção ao coração da sobreposição. Algumas
bestas ele simplesmente atropelou, seus cascos acertando-os no peito, derrubando-os e
socando como marretas na madeira podre. Aquelas criaturas adiante, foram pegas e
estranguladas por mãos com dois polegares opostos. Depois deles eram bestas que se
chocaram em chifres enormes. Com corpos cobrindo seu marfim, Grizzlegom começou
novamente com seus cascos.
As forças da coalizão lutaram da mesma forma, inspirados por seus líderes.
Minotauros e Metathrans, elfos e Keldonianos, eles ceifaram moggs como trigo e
debulharam il-Vec como joio. Em segundos, centenas de soldados de Rath estavam
mortos. Os Dominarianos, com apenas um punhado de mortos, alcançaram a cabeça da
ponte.
“Matem eles!” Eladamri demonstrou com um infeliz mogg. “Expulsem eles! Para
a sala do trono de Crovax! Para a vitória!”
Os gritos foram recebidos atrás dele, e as forças da coalizão surgiram pela ponte
de rochafluente. Não havia nada além de vitória à frente.
78
CAPÍTULO 15
DE LENHADORES E CABEÇAS
Em vitória absoluta, Gerrard andou a passos largos entre as hordas berrantes que
gritavam na arena. Com uma mão ensanguentada, ele levantou a cabeça decepada de Urza
Planinauta. Ela piscou em espasmos da morte, seus olhos de pedras preciosas parecendo
quase brilhar com luz sobrenatural. Por outro lado, ele levantou a lâmina da alabarda que
matara – uma arma ampla e brutal, colhedora de almas.
Na verdade, porém, a verdadeira arma era Gerrard. Puxado do ferro e purificado
pelo aço, forjado pela mão de Urza e martelado por uma vida inteira de perdas, afiado a
um extremo agudo e com vontade de matar, Gerrard era o verdadeiro instrumento da
morte de Urza.
“Urza está morto! Urza está morto! Urza está morto!”
Até Gerrard disse isso. Nos lábios sorridentes, ele cantou. “Urza está morto... Urza
está morto... Urza está morto...” Isso significava algo diferente para ele. Isso significava
que seu passado – a longa condenação que ele chamou de vida – estava finalmente
terminada. Isso significava que ele poderia começar de novo. Finalmente ele se levantara
e assassinara o tirano que o gerou, o educou, o sacrificou. Gerrard matara o assassino, e
agora o assassino estava morto.
“Urza está morto! Urza está morto! Urza está morto!”
Era ainda mais do que isso. A morte de Urza significava a vida de outro.
Ela ficou parada na sacada imperial no outro extremo da arena. Durante toda a
luta, Gerrard olhou para ela. Enquanto Urza olhava com devoção extasiada o enorme
dragão ao seu lado, Gerrard podia ver apenas Hanna. Ela não era quase nada – um décimo
da altura do dragão, um centésimo do peso do dragão, um milésimo da mente dele, sua
mente maliciosa – e, no entanto, ela era tudo. Gerrard desceu a este inferno apenas para
recuperá-la da sepultura. A morte de Urza significava que ele havia feito exatamente isso.
Ele morreu para que Hanna pudesse viver novamente.
Gerrard marchou pelo meio deles, as encarnações berrantes de Yawgmoth. Como
tudo isso era loucura. Ele deveria ter se encolhido com essas bestas horríveis – mesmo
que fossem apenas criaturas naturais e não lascas de um deus – mas ele não o fez. Eles se
encolheram dele. Ele golpeou as garras deles quando alcançaram uma tira de carne da
cabeça. Ele cuspiu nas mandíbulas tagarelas que chupavam a vida vermelha pingando
abaixo. Ele varreu sua alabarda matadora-de-deuses diante dele para abrir caminho
através da multidão. Os monstros que não retraíram os braços os tiveram cortados. As
criaturas não retiraram suas cabeças as perderam. O deus que estava em todos e em
nenhum deles parecia nem um pouco enfurecido por esses ataques, mas quase excitado.
Os gritos emocionados ficaram apenas mais altos.
Nenhuma dessas coisas importava, apenas a da varanda.
Gerrard caminhou em sua direção. A multidão demoníaca tornou-se um campo de
trigo, dividindo-se entre os amantes imortais. O terrível troféu nas mãos de Gerrard
tornou-se um buquê de rosas silvestres, reunidas com tanta veemência e indiferença que
o sangue jorrou de seus espinhos ciumentos. A alabarda na outra mão de Gerrard tornou-
79
se uma lanterna brilhante para iluminar seu caminho. Gerrard se aproximou de sua dama.
Ela estava na beira da varanda, uma donzela enclausurada por um pai ciumento,
observando a chegada de seu libertador.
Gerrard alcançou o estrado pedregoso. Ali, ombro a ombro, com uma multidão
infinita de demônios lamuriantes, ele se ajoelhou, inclinou a cabeça e ergueu alto sua
oferta de amor.
A resposta da multidão de Yawgmoth foi ensurdecedora. Apertado naquele som,
Gerrard se agachou e esperou. Por fim, a ovação desapareceu.
Através de cem mil gargantas, Yawgmoth falou. “Você venceu, Gerrard
Capasheno. Com destreza, ferocidade e vontade sanguínea, você provou ser digno de se
curvar aqui diante de nós.”
Um aplauso quebrou esse belo discurso, um aplauso da boca do criador do
discurso. Durante todo o tempo, Gerrard manteve a cabeça baixa e a de Urza erguida.
“Concedemos a você o cargo de primeiro servo. Você servirá a nós e somente a
nós, e Crovax servirá a você. Seus poderes serão maiores que os dele. Nós lhe damos
força dez vezes...”
Gerrard sentiu o movimento arrebatador das garras do dragão acima dele.
Mortalhas quentes de magia descendo para envolvê-lo. Seus músculos endureceram-se
como cabos de aço. De repente, um poder impressionante chegou a eles.
“Nós lhe concedemos resistência dez vezes maior.”
Seus ossos se transformaram em uma substância que poderia ficar sob força
esmagadora e causar golpes mortais.
“Nós lhe concedemos dez vezes o conhecimento.”
De repente, seus pensamentos dispararam em ordem e intensidade caleidoscópicas
e correram para profundidades que ele nunca havia imaginado.
“Nós lhe concedemos dez vezes determinação.”
Esse último benefício, o mais surpreendente de todos, pegou a já formidável
determinação de Gerrard e a tornou indomável.
Yawgmoth deve me achar um escravo absoluto, pensou Gerrard. Eu sou sim, mas
não a ele.
Gerrard levantou-se do joelho e parou diante da sacada imperial. Abaixando a
cabeça de Urza, ele levantou a sua. Embora ele falasse com Yawgmoth, os olhos de
Gerrard se fixaram no rosto esbelto e bonito de Hanna. Sob o cabelo loiro, ela retornou
seu olhar amoroso. Os olhos dela seguiram todos os contornos do rosto dele enquanto ele
falava.
“Grande deus Yawgmoth, seus benefícios são muito generosos. Mas há apenas
um benefício que eu realmente procuro – que eu exijo. A vida nova, livre, verdadeira e
irrestrita da minha amada Hanna.” Ele olhou sem piscar para ela. “Por causa dela que eu
lutei. Por causa dela que eu matei. Seu retorno à vida é a recompensa prometida que me
faz seu servo.”
O silêncio na arena foi pior que o barulho. Naquele pavor, Yawgmoth falou com
miríades de vozes. “Você fala ofensivamente e perigosamente, Servo Gerrard. Somos
dignos de sua servidão – da servidão de qualquer um e de todos. Nossa ascensão não se
baseia em favores por uma garota.”
80
Gerrard ficou tenso, temendo não pelo próprio destino, mas pelo de Hanna. “Eu
falei mal. Minha servidão não depende da libertação dessa alma singular. Minha servidão
depende de seu valor absoluto, Lorde Yawgmoth – um valor que significa que uma
promessa de Yawgmoth – seja a glória prometida ou a dor prometida – é absolutamente
segura. Portanto, que suas maravilhas sejam testemunhas de todos os mundos, e conceda-
me a dádiva prometida.”
Um silêncio relutante respondeu. Talvez Yawgmoth nunca tivesse pretendido
deixar Hanna livre. Talvez sim, mas apenas uma vez Gerrard demonstrou total reverência.
O que mais ele poderia fazer? Matara Urza, apresentara a cabeça decepada do planinauta,
curvara-se profundamente diante do Lorde de Phyrexia e prometera sua eterna servidão.
A única possível ofensa que cometeu foi que ele não olhava para o grande dragão preto
na sacada, mas para a mulher esbelta ao lado, mas não conseguia desviar os olhos dela –
ele a amava tanto.
Como se sentisse o foco de Gerrard, Yawgmoth falou a seguir pelos lábios de
Hanna. “Dê-nos a cabeça de Urza Planinauta,” ela disse, estendendo as mãos para receber
o troféu, “e concederemos a você essa dádiva final.”
Gerrard congelou, a cabeça erguida em uma mão e a lâmina de alabarda erguida
na outra. Como Yawgmoth falou através de Hanna? É verdade que ela era escrava dele,
mas Gerrard também, e Yawgmoth não falou através de Gerrard. Ele não podia. Somente
esses simulacros, essas criaturas do nada, eram as bocas de Yawgmoth. Hanna também
não passava de uma marionete carnuda, animada pela presença de Yawgmoth em sua
pele? Ela era apenas uma aparência, criada para enganá-lo?
Gerrard não conseguia desviar o olhar dela. Foi o amor por Hanna que o levou ou
o amor por Yawgmoth?
Gerrard cambaleou. Seus olhos entraram em contato com o penetrante olhar azul
de sua amada. Era realmente amor que ele sentia, ou o gêmeo do amor – ódio? Isso
importava? Ele fora enganado. Ele matou Urza e prometeu a Yawgmoth tudo para libertar
uma mulher que era o próprio Yawgmoth.
“Dê-nos a cabeça de Urza Planinauta,” Hanna repetiu calmamente, “e nós lhe
daremos o seu desejo mais verdadeiro.”
Gerrard mais uma vez fixou os olhos nela. Ele ficou com a cabeça de Urza
Planinauta em uma mão e a alabarda de roubar alma na outra.
“Como você ordena, meu senhor,” Gerrard disse, erguendo a cabeça manchada de
sangue de Urza.
Sorrindo docemente, Hanna se inclinou sobre o parapeito e estendeu as mãos para
receber o prêmio sangrento. Seus dedos se entrelaçaram em êxtase ciumento nos cabelos
loiros e cinzentos do planinauta. Ela se levantou para levantar a cabeça, mas Gerrard não
a soltou. Em vez disso, ele girou a alabarda. Tão rápido e imparável quanto um raio, a
lâmina se arqueou para cortar o ombro de Hanna. A lâmina cortou a pele, os músculos e
a clavícula, passando por três costelas. Hanna olhou para ele, angústia e pavor enchendo
os olhos.
“Gerrard! Não! Você me salva apenas para me matar!” Soltando um rugido
inarticulado, Gerrard arrancou a lâmina da fenda e a derrubou novamente. Pulmão e
costelas de cravo em aço. A luz saiu dos olhos de Hanna – oh, visão horrível, vê-la morrer
81
pela segunda vez! Mesmo naquele momento terrível, porém, Gerrard sabia que atingira o
coração de Yawgmoth. O senhor de Phyrexia havia escondido sua essência dentro de
Hanna, certo de que ele estaria seguro. Ele não estava.
Gerrard levantou a alabarda pela terceira vez para terminar o trabalho. Envolto em
sangue, a grande arma se arqueou.
Ela nunca bateu. Uma força inexorável explodiu da figura cortada de Hanna – uma
explosão como um ciclone. Agarrou Gerrard com força e o jogou para longe. Ele estava
envenenado neste lugar, o melhor e mais confiável servo se voltando para uma traição
assassina. Yawgmoth o vomitou.
Tão mole quanto uma boneca de pano, Gerrard atravessou a arena. Apenas suas
mãos permaneciam firmes, uma apertada ao redor da alça e a outra segurando a cabeça
agredida de Urza Planinauta. Sob seus pés, o estrado preto passou onde esse duelo havia
começado. Gerrard partiu.
Yawgmoth o jogou não apenas do outro lado da arena, mas fora de Phyrexia. Um
projétil vomitado. O espaço lotado se distorceu. Bestas se fundiam em um grande saco de
músculo. Paredes de pedra se curvavam em um enorme órgão cujo único objetivo era
lançar Gerrard do mundo. Através do portal, ele voou. Era como mergulhar em um poço
– o espaço estreito, as energias estimulantes, a escuridão sem fôlego...
Gerrard atravessou o portal e tombou pela sala do trono de Evincar Crovax. Sua
chegada áspera teria sido suficiente para matá-lo antes, mas graças à dádiva de
Yawgmoth, seus músculos não se machucaram, seus ossos não se quebraram. Ainda
segurando a cabeça e a alabarda, Gerrard bateu contra o console do órgão assassino de
Crovax. Ele quebrou, soltando um grito profano. Gerrard se afundou em um bando de
sabujos vampiros e finalmente rolou para uma parada rápida e dolorosa ao lado do enorme
trono preto. Naquele momento instável, ele viu o portal de Phyrexia se fechar.
Gerrard não se deu ao luxo de sentir dor. Ele se levantou e subiu no trono. Com
os olhos ainda trêmulos, ele fez um rápido inventário dos arredores.
A sala permanecia como ele se lembrava – uma câmara negra de pedra derretida,
guardada por guerreiros il-Vec e il-Dal no perímetro e sabujos vampiros no chão. Moggs
ficaram em mudo espanto em seus grupos verdes. Até Ertai permaneceu, seu rosto
atordoado sob choques de cabelos atormentados. Suas quatro mãos se moveram como as
pinças de um caranguejo gigante. Havia apenas uma diferença. Crovax se fora.
“Quando o gato sai...” brincou Gerrard para si mesmo. Para os guardas, ele disse,
“Eis o campeão de Yawgmoth. Eu matei Urza Planinauta. Yawgmoth me enviou aqui.”
Ertai deu um passo à frente, seus olhos loucos tremendo. “Estávamos assistindo,
Gerrard. Vimos o que aconteceu. Conhecemos seus benefícios e sua traição.” Ele fez um
sinal rápido e complexo com os dedos de uma mão.
“Tanta coisa para aumentar a inteligência,” resmungou Gerrard. Ele provou que
estava errado um momento depois. Jogando a lâmina da alabarda no cinto, Gerrard traçou
o exato inverso do sinal que Ertai havia feito. Enquanto o jovem adepto abriu as costuras
da matéria, liberando chamas incineradoras, Gerrard pegou e encheu a energia, selando-
a de novo. Ele havia anulado o feitiço simplesmente desfiando-o no ar.
Ertai ficou boquiaberto. Ele rosnou uma frase misteriosa, e as palavras se fundiram
em uma nuvem giratória de veneno preto. Atravessou rapidamente a sala do trono em
82
direção a Gerrard. Um sabujo vampiro se agachou, mas muito devagar. Ele caiu em uma
pilha desgrenhada. Não havia tempo para fugir.
Gerrard não tentou. Em vez disso, ele se inclinou para trás, prendendo o calcanhar
no pedal do agonifone. O behemoth Phyrexiano que forneceu esse tom abriu sua boca de
um metro e meio e berrou. A corrente de ar ao redor de Gerrard soprou a nuvem de veneno
de volta para seu criador.
Ertai rangeu os dentes enquanto arrastava o feitiço do ar. A escuridão se dissipou
para revelar um sorridente Gerrard.
“Yawgmoth me fez seu superior intelectual.”
Ertai fez outro gesto, embora este não fosse um sinal mágico.
Ele se virou para encarar os moggs que estavam ociosos por perto. O olhar passou
despercebido – os goblins observavam o fogo e a fumaça. Eles sorriram de alegria. Ertai
retirou mana da carne morta e lançou-o em um olhar que poderia literalmente matar. O
mogg líder caiu no chão. Seus guerreiros notaram sua morte. Um deles olhou para Ertai,
cujo olhar mortal permaneceu. O mogg gritou e desviou o olhar, mas não antes que seu
rosto estivesse paralisado. De qualquer maneira, dando ordens, o novo líder levou seu
grupo ao ataque.
Moggs correram para o trono.
Gerrard saltou levemente sobre os ombros apertados dos moggs. Enquanto
avançava, ele crava a cabeça na lâmina da alabarda. Moggs caíram no seu rastro de
corrida. Gerrard pulou do último goblin quando este caiu. Ele alcançou o chão e atacou
um inimigo mais formidável – um guerreiro il-Dal com um grande machado, forjado nos
poços de Rath. De pele vermelha e barba, o guerreiro tinha determinação com sua arma.
Felizmente para Gerrard, sua vontade se tornou indomável. Gerrard girou a lâmina
da alabarda. Ele bateu contra a arma do il-Dal e a jogou de volta. Os músculos de
Yawgmoth afastaram a arma e o homem.
Dentes amarelados apareceram através da barba entrançada do il-Dal quando ele
recuperou o equilíbrio. Ele deu um passo para trás para atrair Gerrard. Seu machado girou
em um arco de cortar o joelho.
Um guerreiro típico teria lutado para desviar o machado, mas Gerrard nunca foi
típico. Ele bloqueou o golpe com a bota e chutou o machado no chão. Ele golpeou para
cima e empurrou a arma dentro de seu portador e acabou com ele, partindo para o próximo
guerreiro de Rath.
Gerrard nunca chegou. Algo preto e podre o atingiu – pesado e vil, como um
cadáver de elefante. Foi outro feitiço corrupto de Ertai. A explosão derrubou Gerrard,
derrubando simultaneamente os dois guardas il-Vec que haviam barrado seu caminho.
Todos os três caíram no chão numa massa desgrenhada. As energias mágicas os sujavam
como piche e comiam profunda e rapidamente os músculos. Ela cozinhou os guardas
transformando-os em nada.
No meio do feitiço de podridão, Gerrard aguentou, sem ser afetado. Mais estranho
ainda, a cabeça de Urza parecia igualmente resistente à escuridão. Gerrard ficou de pé,
apertou a lâmina da alabarda e esforçou-se para fazer com que seus dedos pegajosos
invertessem os gestos de Ertai.
83
Foi inútil. Outra onda de energia atingiu Gerrard e o envolveu. Ele cambaleou no
chão, derrubado pela corrupção. Não importava se as coisas o comiam ou não. Enquanto
isso o cobria, ele não podia lutar. Se ele não pudesse lutar, os sabujos vampiros acabariam
com ele.
Ertai sabia disso. Ele sorriu torto, todas as quatro mãos levantando para lançar a
gota final, rasgando. “Isso é por me deixar para trás em Rath.” As pontas dos dedos se
espalharam violentamente. Canais de podridão derramavam deles para rasgar através da
sala-
Ertai desmaiou de repente. Seu feitiço se lançou no teto. Uma mão esverdeada
puxou seu cabelo, puxando a cabeça para trás.
Só então Gerrard vislumbrou o seu salvador verrugoso.
“Squee!” ele gritou.
“Eu salvo você esta vez como todas vezes. Pena que não cheguei para matar
Yawgmoth pra você.”
Lançando a corrupção dele, Gerrard deu um soco no rosto do il-Vec. “Squee está
aqui. Agora todos vocês estão condenados!”
84
CAPÍTULO 16
ASSASSINOS DO MUNDO
85
O guerreiro pantera sabia que não poderia aguentar por muito tempo. Suas asas de
corvo cavaram no ar e o lançaram através de campos de arame. Sua cauda de víbora se
levantou – seu capuz se abriu e suas presas levantaram para atacar. Ele abriu as
mandíbulas, estendendo-as para fora.
Os Pneumagogues correram como um enxame de gafanhotos, exceto que cada um
era do tamanho de um homem. A asa direita de Windgrace cortou o tórax de uma besta,
rasgando-a em duas metades que giravam um para o outro. Seus dentes afundaram na
barriga de outro. Era insubstancial, uma nuvem rubi. Mesmo assim, ele quase engasgou
com a espessura da carne espiritual que mordeu. Outro foi, rasgado em pedaços por suas
garras, e um quarto picado por sua cauda cheia de dentes. Eles não revidariam, ele sabia
das batalhas anteriores. Eles só convergiriam ao redor da bomba para desmontá-la.
Windgrace os desmontou. Foi um trabalho infernal. Essas criaturas eram um amálgama
de carne e espírito, e destruí-los entristecia o guerreiro pantera. Mesmo assim, ele fez o
que devia. Lorde Windgrace arrancou tórax, asas cortadas, cabeças decepadas e observou
almas vermelhas desaparecerem enquanto mecanismos caíam do céu.
Pneumagogues passaram por ele para atacar Freyalise.
Windgrace virou bruscamente e mergulhou atrás deles. O mais próximo, ele
ultrapassou com um poderoso golpe de suas asas negras. Ele caiu sobre ela, afundou
garras nas costas e a jogou para longe. Saltando de seu cadáver, Windgrace se lançou em
direção ao próximo inimigo. Seus dentes pegaram sua barriga e rasgaram ao meio.
Mais pneumagogues o cercaram. Suas asas os golpearam, mas não conseguiram
encontrar ar para bater. Abruptamente, Windgrace mergulhou. Seus captores o seguiram
em um bando zumbindo.
Nesse banco espesso de corpos vermelhos, uma mulher verde apareceu. A mão
dela bateu. Trepadeiras brotaram ao longo de seus dedos e uma palma surgiu para agarrar
Lorde Windgrace. O puxão inexorável o girou e o puxou pela multidão de pneumagogues.
No momento em que eles saltaram e atravessaram a manada, o guerreiro pantera
perguntou, “Ajeitou a explosão?”
Freyalise sorriu. “O que acha?”
As palavras foram cortadas por um clarão ofuscante que lançou todos os
pneumagogues em silhueta nítida. Suas sombras pintaram os planinautas. No momento
seguinte, a explosão inchou a tal tamanho que o mais baixo dos pneumagogues foi
ultrapassado pela nuvem mortal. Eles desapareceram. Marés brancas ferviam ao redor de
todas as criaturas daquela multidão.
Toda criatura, exceto Lorde Windgrace e Freyalise. Simultaneamente e
espontaneamente eles transplanaram. Foi uma benção. O ar onde eles estiveram fora
transformado em líquido incinerador. A energia aumentou até alcançar a metade do céu.
Explosões profundas brilharam dentro da nuvem branca. Pedaços de grama e viga
quebrados caíram na nuvem.
A explosão havia quebrado a sexta esfera de Phyrexia, abrindo-a para a sétima.
A destruição não estava terminada. A nuvem subiu. Com velocidade caindo,
disparou para o céu. Aqui, o céu era apenas um vasto cofre de metal. A explosão atingiu
o ventre daquele cofre e subiu em um trovão longo e de ponta plana. O cofre falhou
repentinamente, liberando uma cascata. O mar de óleo da quinta esfera se derramava
86
através de uma gigantesca fenda no teto. Líquido inflamável jorrou no coração de uma
tempestade de fogo. O óleo mergulhou o máximo que pode, antes que o cisalhamento do
vento o transformasse em trilhões de gotículas. Essas gotículas inflamaram-se.
A segunda explosão foi maior que a primeira. Começou no centro da esfera,
espalhando-se para baixo em uma lenta coluna de chamas e para cima em um instante
faminto. A diferença aumentou. Estilhaços de metal caíram por toda a sexta esfera e
arrastaram incêndios de óleo à medida que avançavam. A nuvem branca recuou diante de
uma chama azul que se estendia do chão ao céu. O fogo proliferou em todas as direções.
O óleo derramou na fenda, alimentando as chamas.
Por toda a sexta esfera, era a mesma coisa. Freyalise e Lorde Windgrace
detonaram outros quatro dispositivos, e Guff e Bo Levar detonaram sabe-se lá quantos
mais. Onde quer que os incendiários subissem, Phyrexia descia. Bombas destruíram três
esferas simultaneamente.
Freyalise e Windgrace não ficaram admirando sua obra. Eles haviam transplanado
da conflagração final para a bomba seguinte, posicionada na quarta esfera.
Aqui estava o verdadeiro inferno de Phyrexia. Estendia-se diante deles em campos
sem fim. Uma infinidade de recipientes de vidro continha uma miríade de newts – novos
Phyrexianos mergulhando em óleo brilhante. Quando completadas, essas criaturas seriam
exércitos para Yawgmoth. Alguns menos afortunados nunca seriam elogiados, pois em
uma faixa de trinta metros de largura, Urza havia pisoteado as cubas. Seu titã mecânico
pisoteou a vinha, matando centenas de milhares de newts.
Freyalise e Windgrace planejavam matar centenas de milhões.
O lorde pantera, retendo suas estranhas asas negras, voou em conjunto com a dama
da floresta. Lado a lado, asa e videira, eles voavam sobre tanques intermináveis e
passadiços irritantes. Eles fizeram um progresso paciente sobre os exércitos nascentes.
À frente estava o nexo de poder. Parecia uma colmeia gigantesca e flutuante, com
as bordas tortas e cheias de buracos. Para eles e para fora deles brilhavam pontos
reluzentes de luz, as potências vibrantes que energizavam os tanques. Partículas
rodopiavam de um poço profundo e largo sob o nexo flutuante, um ciclone de luz que
sustentava a esfera central no alto. Na borda interna do imenso poço, Urza havia plantado
uma bomba da alma, uma carregada com o espírito de Szat.
Foi necessário um planinauta para acionar a bomba, outro para carregá-la e mais
dois para detoná-la.
Placidamente, a pantera alada e a rainha da floresta flutuavam sobre os tanques.
Tão reverentes que eram, tão vigilantes que não podiam deixar de ver a repentina agitação
violenta nos tanques sob os pés. Em anéis largos, a perturbação se espalhou por todo o
campo. Era como se um punho enorme tivesse golpeado a parte de baixo da esfera – o
que realmente havia acontecido. A acusação de que Windgrace e Freyalise haviam
detonado duas esferas abaixo alcançou sua mão ardente e se chocou contra as fundações
deste mundo.
Os sacerdotes do tonel também sentiram isso. Pararam nos passadiços para olhar
as células abaixo dos pés.
Os newts sabiam ainda melhor. Qualquer coisa que pudesse abalar os pilares do
mundo poderia destruir seus frascos de vidro e óleo e suas próprias vidas.
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Eles estavam certos em temer. O dia da morte deles havia chegado.
Um sacerdote do tonel apontou para os dois intrusos. Seus dedos dessecados
apertaram um amuleto de dentes, e ele pronunciou uma palavra violenta. Acima da
criatura vestida de vermelho, surgiu um feitiço que transformou o ar em linhas negras de
preto. Mana esguichou como teias de aranha em direção aos dois planinautas.
Freyalise estendeu a mão quase casualmente e soltou uma nuvem verde de
esporos. Macrófagos inundaram as teias negras e as absorveram, comendo a morte.
Mais adiante, gigantescos braços de insetos alcançaram o céu. Das baías situadas
entre os tanques, membros quitinosos se erguiam.
Lorde Windgrace estava pronto. As eras de guerra em Urborg haviam ensinado a
ele as melhores contramágicas da magia preta – não os feitiços brancos ou verdes contra
as quais essas criaturas estavam entrincheiradas, mas os feitiços azuis ou vermelhos que
estavam mais próximos do coração da escuridão. Dos olhos do guerreiro pantera
emergiram dois cones azuis que varreram o campo adiante. Pernas segmentadas que antes
apalpavam o céu atacaram lateralmente. Em vez de arrancar os dois planinautas do céu,
os membros se rasgaram pelas juntas. O brilho de seus olhos foi acompanhado por um
brilho carmesim de suas garras. Vigas vermelhas, tão curvas e cortantes quanto aquelas
garras, cortavam mais das pernas que chegavam. Onde os raios ardentes alcançavam, a
carapaça e a carne branca se separavam e desapareciam.
Newts debatiam-se nos tanques. Eles sentiram sua destruição. Com fúria ou
piedade, Lorde Windgrace lançou patas gigantes de fogo por aqueles tanques. Incêndios
inflamavam óleo brilhante. Eles explodiram com força explosiva, luzes fritando as
criaturas dentro. Colunas de chamas azuis irromperam dos tanques abertos. Cada um
queimava brilhantemente enquanto seu óleo durava, enquanto seu ocupante expirava.
“Não desperdice seus feitiços,” aconselhou Freyalise. Eles se aproximaram do
nexo barulhento, e seus olhos refletiram brilhantemente aquele lugar. Ela acenou com a
cabeça em direção ao local da bomba. Equipes de sacerdotes se reuniram para desarmar
o dispositivo. “Temos peixes maiores para fritar.”
Algo distante e frágil entrou nos olhos do guerreiro pantera. “Passei séculos
tentando restaurar Urborg. Toda aquela guerra para salvar uma ilha. Hoje, luto mais uma
guerra, mas isso para amaldiçoar um mundo.”
Freyalise balançou a cabeça vigorosamente. “Isso não é um ecossistema. Isso é
uma tirania. Assassinos são criados aqui. Na natureza, até atos básicos são inocentes. Em
Yawgmoth, mesmo atos nobres são culpados-”
“Um mundo inteiro,” interrompeu Windgrace. “Somos assassinos do mundo.
Estamos destruindo um mundo inteiro.”
“Estamos estripando uma mente, uma mente horrível que gerou todos esses
outros. É uma árvore do mal, Windgrace. Nós a puxamos pela raiz.”
“Você destruiria tão facilmente toda Urborg, não é?” ele perguntou.
“Sim,” ela respondeu sem hesitar. “Eu drenaria todos os pântanos, nivelaria todos
os vulcões e encheria a ilha com uma floresta.”
Em seu rosto felino, os olhos do planinauta brilhavam bruscamente. “"Então, qual
é a diferença entre você e Yawgmoth?”
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“A diferença.” respondeu Freyalise, enquanto varria a multidão de sacerdotes do
tonel, “é que Yawgmoth perderá e eu vencerei.”
Não havia mais tempo para debate. Eles alcançaram o amplo poço no centro dos
campos do tanque. Partículas cintilantes de energia giravam por baixo e, em glória
curvilínea, subiam para penetrar na grande colmeia acima. Foi um espetáculo brilhante,
hipnótico e sobrenatural.
Freyalise não se importava com isso. Em vez disso, ela se concentrou na casca de
roupas vermelhas abaixo. Os sacerdotes do tonel estavam aglomerados em volta do
incendiário, como tecido cicatricial, sobre uma infecção profunda. Uma onda da mão de
Freyalise cobriu aquelas figuras podres com fungos. Raízes brancas se cravaram dentro e
através da pele Phyrexiana. Gavinhas sugavam músculo seco e osso morto. Cogumelos
desmontavam suas presas.
Sim, ela venceria. Ah, sim.
Freyalise desceu, com Windgrace alado ao lado dela. Ambos alcançaram o solo
na beira inclinada. Freyalise flutuou em direção à bomba e a preparou com dedos duros
como ferro. Lorde Windgrace, enquanto isso, pairava acima. Seus pinhões pretos
varreram e cortaram quaisquer criaturas que se aproximassem.
“Está pronto,” disse Freyalise, de repente ao lado dele novamente.
Ela apertou a pata dele na mão e o jogou para cima. Os planinautas rivais
deslizaram através de uma lágrima no tecido do mundo. A fenda se fechou atrás deles,
nem um segundo mais tarde.
A bomba explodiu. Seu brilho eclipsou os movimentos de energia. Globos de
força alcançaram todas as direções. Abaixo, a explosão dividia o poço a quinhentos pés.
Ele quebrou todos os barris e derramou habitantes semiformados no chão para fracassar
e morrer como peixes. A onda de choque varreu cerca de metade de Phyrexia. Abaixo
dele, os futuros exércitos de Yawgmoth estavam esmagados e despedaçados.
Em algum lugar da terceira esfera, Freyalise e Windgrace se materializaram. Sob
seus pés, tubos gigantes tremiam com a energia da explosão.
Freyalise exibia um sorriso amargo. “Eu o derrotei. Eu derrotei Yawgmoth. Ele
pensou que ganharia, mas foi eu. Oh, sim, eu venci.”
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CAPÍTULO 17
NA TOCA DO MONSTRO
No meio de uma batalha aérea – estes dias, tudo acontecia em meio a uma batalha
aérea campal – O Bons Ventos finalmente encontrou Gerrard.
Após sentir a presença de Squee abaixo, ele voara sobre dezenas de bombardeios
acima do vulcão central de Urborg, e lançara radiação em todo o espectro, reunido em
energia e a provocou em suas fibras separadas e discernira todos os arroios abaixo, cada
sala na Fortaleza, cada criatura em cada sala... Lá, na toca do monstro, ele descobrira
Gerrard.
O Bons Ventos jubilou. Ele ascendeu em direção aos céus. Sua proa polida rasgou
as nuvens e a máquina de guerra Phyrexiana escondida na nuvem. Ele despedaçou metal
tão facilmente como ar. O que sua proa não quebrava, suas setes armas detonavam. Elas
descarregaram com uma repentina e simultânea barragem que desmantelou o cruzador.
Ele ficou em pedaços diante da triunfante nau voadora. O Bons Ventos arremessou placas
quebradas e criaturas arruinadas.
Sisay, no leme, foi a primeira a entender. Antes do resto da tripulação sentir seus
estômagos caírem em seus sapatos, ela sentiu que o Bons Ventos tomou seu próprio leme
e escolheu seu próprio curso. Nunca antes o navio sobrepusera a vontade do capitão, e
nunca faria a não ser que...
“Ele encontrou Gerrard!” Sisay gritou pelo duto de comunicação.
Infelizmente, a revelação se perdeu nos guinchos de metal contra metal naquela
escalada enfática. A tripulação somente conseguia se encolher e se segurar, observando
em espanto, enquanto os armamentos Phyrexianos caíam como folhas de outono.
Karn não escutou, mas ele entendeu. Ele e o navio eram almas gêmeas,
amadureceram juntos, e ele sentiu a alegria do navio tremer através dos controles de tiro
de canhão. O convés debaixo de seus pés doía avidamente enquanto o Bons Ventos
superava seu arco. Sua quilha girou como uma flecha. O navio mergulhou. Os pés de
Karn queriam se soltar do convés, mas seus arreios de atirador o mantiveram no lugar.
Mãos acionaram alegremente os canhões, Karn gritou, “Ele está indo para
Gerrard!” Rajadas gêmeas de energia branca fenderam dos canhões pelo céu. Elas
perfuraram os navios Phyrexianos e abriram uma grande descida em direção à caldeira.
Mesma acima do barulho das armas, o berro de Karn tocou claro. Orim, tripulando
a arma que uma vez fora de Gerrard, permanecia nos arreios e liberou uma feroz coluna
de fogo. Ele disparou através dos navios inimigos e traçou uma linha reta até o poço onde
ficava a Fortaleza.
Ela ergueu sua mão livre e bradou, “Reúna o rebanho – estamos voltando para
casa!”
A referência bovina trouxe um olhar maligno ao seu companheiro de artilharia:
Tahngarth.
Orim explicou, “Gerrard está lá embaixo!”
Os lábios do minotauro recuaram numa expressão que era muito violenta para ser
um sorriso. Ele soltou chamas brancas através do céu para cobrir o gerador de praga. A
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pesada embarcação respondeu com linhas viscosas de mana preta, mas tarde demais. Os
disparos de Tahngarth apimentaram a armadura do navio antes de atingirem uma entrada
lateral e mergulharem dentro do motor. O navio balançou uma vez. Cada placa curvada
se expandiu. Cada emenda brilhou. Então a máquina se desfez numa estrondosa bola de
fogo.
Enquanto o navio mergulhava em direção à caldeira, indiferente à frota
Phyrexiana ao redor dele, até o último tripulante sabia que o navio encontrara Gerrard:
viajantes, alferes, oficiais do convés e ajudantes de bordo – todos os dentes cerrados atrás
dos lábios cerrados, sob olhos cerrados sobre mãos cerradas. Eles seguravam firme,
mergulhando dos céus azuis para os infernos negros.
“Fiquem atentos!” Sisay gritou. “Temos alguns dissidentes aqui.”
Teias de mana preta se esticaram pelo céu, barrando o caminho para o vulcão
central. Elas formaram camadas de morte, transformando o ar limpo em carvão.
“Estou pronta!” Orim replicou, mirando seu canhão.
A energia jorrou da sua arma, escaldando o ar. Ela queimou pela primeira camada
de imundície, e a segunda e a terceira. No entanto, raios poderiam fazer muito. O Bons
Ventos ultrapassou-os.
A saraivada de Tahngarth saiu relutantemente da arma, pouco capaz de escapar da
velocidade da arma.
O Bons Ventos cortou direto em direção à teia de corrupção.
Orim rosnou, “Aqui é onde Gerrard deveria berrar ‘evasão!”
Sisay respondeu, “Aqui é onde Hanna passaria a agulha.”
Embora ela não movesse um músculo, o leme avançou e girou. O Bons Ventos
serpenteou violentamente. Ele dobrou os mastros e mergulhou através dos intervalos da
teia de mana preta. Enquanto a corrupção mortífera sibilou por ele, o Bons Ventos subiu
intocado. A figura de proa de Géia parecia quase sorrir, encarando com os olhos de
Hanna.
Sisay berrou, “Você viu isso, Orim?”
“Sim,” ela replicou. “Como nos velhos tempos.”
Tahngarth levantou uma sobrancelha queixosa para ela. “Viu o que?”
“É coisa de irmã,” Orim replicou por cima do ombro enquanto retirava um navio
bate-estacas do caminho do Bons Ventos.
Tahngarth ergueu o punho – dois dedos e dois polegares – e disse, “Salve a
irmandade.” Com sua outra mão, ele enviou um disparo de raios dentro da barriga de um
Phyrexiano Cruzador. A saraiva eviscerou o navio.
Foi o último disparo que qualquer um deles mandou para o céu. Em instantes, o
Bons Ventos sairia do alcance dos seus inimigos aéreos e mergulharia dentro do vulcão.
Uma cratera ígnea se expandia bem embaixo, e no seu centro estava um eixo negro. Era
para lá que o Bons Ventos iria.
“Já destruímos as armas no limiar da caldeira,” Sisay berrou enquanto o Bons
Ventos mergulhava, “mas quem sabe o que eles têm lá embaixo?”
Todo mundo no convés olhou para aquele lugar negro profundo, de guarda negra.
Na última vez que eles olharam para ele, Tahngarth matara Greven il-Vec e enviara seu
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navio, Predador, para o abismo. O minotauro o apelidou de “cartão postal para Crovax.”
Agora, o Bons Ventos faria sua visita há muito atrasada.
“Aqui vamos nós!” Gritou Tahngarth.
A voz de Karn ressoou pelos dutos de comunicação e por cima do convés polido.
“Há armas no eixo! Cuidado com as armas!” “Como você sabe?” Tahngarth replicou. Em
resposta, o grande golem de prata apenas pisou no convés e disparou seus canhões. A
arma de bombordo estendeu sua mão branca, agarrou uma maciça bombarda Phyrexiana
junto com a borda interna do eixo, e a arrancou. A bombarda caiu, disparando tiros pelo
espaço que foi projetado para proteger. O canhão de estibordo de Karn disparou uma
explosão escaldante dentro de um depósito de armas. A energia branca vertia através das
figuras que manejavam as armas. Eles queimaram até ossos e cinzas.
Karn sabia porque o Bons Ventos sabia. A cova em que caíram estava alinhada
com uma espiral apertada de armas embutidas nas paredes cônicas. No momento seguinte,
não houve dúvidas de sua presença. Cada arma disparou. O navio voou em direção a uma
súbita panóplia de cores, tudo queimando, rasgando, despedaçando, obliterando-
As setes armas do Bons Ventos repentinamente despertaram para vida, mas o que
eram sete armas contra um arsenal profano? Apesar disso os canhões destruíram duas
vezes o número de inimigos e negaram três vezes o fogo inimigo, ainda assim centenas
de armas disparavam contra ele.
O Bons Ventos era sua melhor defesa. Com um casco brilhante como espelho e
asas polidas, ele refletiu os raios e encolheu rajadas de plasma. Bombas de mana preta
apenas se soltavam da sua pele reluzente, incapazes de subir nele. E onde não havia casco
prateado, o Bons Ventos respirava uma aura protetiva ao redor dele: o envoltório de
deslocamento. A bolsa diáfana sempre subia involuntariamente nas Eternidades Cegas,
guardando a tripulação do puro caos. Agora que o Bons Ventos era uma coisa viva e
pensante, ele podia invocar o envoltório de deslocamento sempre que quisesse, e ele
queria agora. O mana preta e o fogo vermelho se derramaram pela membrana como tinta
derramada no vidro – sombrio e bagunçado, mas não mortal. Enquanto o Bons Ventos
avançava, a gosma perversa deslizava inofensivamente.
A membrana deu tudo de si. Enquanto o envoltório do Bons Ventos ignorava os
horrores das bombardas de mana e os disparos de plasma, ele emitia raios alvirrubro que
esticavam seu caminho mortal pela parede.
Vinte armas Phyrexianas arruinadas, depois trinta. Elas derretiam como velas na
luz do sol. Onde o Bons Ventos tocava com os braços, o melhor armamento Phyrexiano
virava uma poça. Os bombardeios acima já choviam metal e superfluidos nas suas
duplicatas abaixo.
“Essa é a pior parte!” Sisay chamou encorajadora. “Estes são os guardas do portão.
Assim que passarmos por eles, a Fortaleza estará aberta.”
O Bons Ventos sabia que essa esperança era falsa assim como sua alma gêmea,
Karn, também sabia. “Quando as armas pararem, as piores defesas começarão,” ele
chamou.
Mal ele e seus canhões falaram a verdade que mencionaram surgiu. Alguma coisa
nova segurou o Bons Ventos – campos repulsivos. Eles iniciaram onde a luz falhou, dando
lugar a um fundo escuro, frio e sulfúrico. Bem ali, uma mão invisível segurava o Bons
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Ventos. A figura de proa de Géia foi empurrada rudemente para cima. Sua quilha desviou
o olhar da barreira invisível e achatou-se a um tom nivelado. Ele já não mais partia em
direção ao coração invisível da montanha, mas cortou um círculo oblíquo ao redor do
interior.
Pior do que isso, as armas que sobraram acima vomitaram sua fúria na embarcação
parada. O mana preto respingou no envoltório do navio, lançando sua sombra sobre a
tripulação. O lodo escorreu relutantemente em direção à amurada e gotejou. Enquanto
isso, feixes vermelhos davam golpes de relance e eram refrangidos pelo envoltório. A
cada três disparos, um buraco se abria onde acertava.
Um feixe violento impactou a membrana, se curvou em direção ao convés do
castelo de proa, esmagando-o. Ele vaporizou uma seção irregular de tábuas e rasgou
braçadeiras abaixo.
Sisay sentiu o leme do Bons Ventos cambalear em agonia. Este não era mais uma
mera nau de guerra em apuros. Agora o Bons Ventos era um guerreiro encurralado, seus
atormentadores lançando rochas nele.
Segurando o leme com força e lutando para guiar o navio mais profundo, Sisay
suavizou, “Vamos tirá-lo disso!” Então, bem alto nos dutos, ela gritou, “Tahngarth! Orim!
Que tal um contra-ataque!”
“Estamos indo!” veio a resposta de Orim.
Ela pontuou as palavras com uma explosão completa do canhão dela. O brilho
branco subiu. Ele comeu uma coluna descendente de raio de fogo, seguindo a energia
como uma faísca de um fusível. Enquanto os canhões Phyrexianos vomitavam suas
últimas rajadas carmesins, a rajada branca de Orim dissolveu o reservatório, as câmaras
e as cargas da máquina.
A resposta de Tahngarth não foi menos mortal. Ele mirou numa bombarda de
mana, arrancando a barriga dela e lavando sua tripulação com corrupção negra.
“E você, Karn?” chamou Sisay.
O homem de prata não estava atirando. Ele se soltara dos arreios de atirador e
estava indo em direção à escotilha. Embora ele não estivesse perto de nenhum duto de
comunicação, sua voz veio em alto e bom som para Sisay. “Os outros cessarão os ataques
de cima. Vou levar esse navio para baixo.”
A incredulidade de Sisay falou igualmente alto através do para-brisa da ponte. “O
que?”
“O Bons Ventos precisa de mim.”
Sisay só podia concordar com aquilo.
*****
Karn jogou para trás a escotilha da meia nau e desceu as escadas. Ele caminhara
por este caminho inúmeras vezes antes, embora agora parecesse totalmente alterado. Mais
espesso, degraus mais largos brilhavam com graxa nova, desprovido de todos os
amassados feitos pelo homem prata ao longo dos anos. Lanternas aerodinâmicas se
penduravam em paredes mais fortes, menos provável de se quebrarem por um golem
vagaroso. Tudo estava diferente – mas o Bons Ventos o chamava. Na última vez, Karn
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tinha subido as escadas com a distinta impressão de que o navio jamais precisaria dele
outra vez. Agora, cada passo revogava essa impressão. Ele precisava dele, mas como ele
poderia ajudar?
Em um borrão de especulação desconfortável, Karn chegou à sala de máquinas e
entrou. O lugar estava escuro – mais do que antes. O golem de prata se arrastou para
dentro, passando por novos canos distorcidos e renovados trocadores de energia. O motor
trabalhava, mas não com o grito barulhento dos velhos tempos. O gemido forçado dos
dínamos tinha mais dignidade agora, mais solenidade sombria. Até a voz do Bons Ventos
mudara.
Incerto do que fazer, Karn seguiu a velha trilha de óleo que caminhava andar. Ele
chegou ao local onde uma vez se ajoelhara para interagir com o motor e o controle do
navio. Até os buracos gêmeos da pressão dos seus joelhos na madeira se foram.
Um calafrio de miséria tremeu através da grande massa da máquina. Ele tocou em
placas de metal e fez a powerstone do Livro de Thran brilhar estranhamente. Outra
explosão atingiu a casa.
Karn olhou para o teto escuro e imaginou mais morte carmesim chovendo. “Que
proveito terei aqui?” Novamente, o navio sacudiu. Karn estendeu a mão para se firmar no
motor.
Através dos dedos veio uma pequena e inconfundível sensação – um choro
desesperado e solitário.
Karn olhou para baixo e viu, com total espanto, que os buracos idênticos
permaneceram ao lado do motor transformado. Apesar de todas as suas transformações,
o Bons Ventos manteve esses dois. Ele deixara a porta aberta para conversar novamente
com Karn.
Ele se ajoelhou. A ação era inteiramente natural. Seus joelhos fizeram marcas de
friso no chão. Ele estendeu as mãos para os buracos. Com dedos trêmulos, ele segurou as
barras na frente dele e virou as mãos para o motor. Um formigamento familiar veio à
tona quando os canais de pensamento se insinuaram. Os filamentos estreitos se
contataram com sua rede neural e, de repente, a voz que esteve quieta ficou alta. Karn!
Por que demorou tanto?
O golem de prata piscou. Eu não achei... pensei que não pudesse ajudar, ... Você
tem sua própria mente agora-
Mais razão ainda para não me abandonar. O que acha disto?
Tudo ao redor deixou de existir naquele momento. Havia somente o Bons Ventos
e ele – e os milhares de segredos que os dois compartilhavam. Você tentou transplanar
para a Fortaleza?
Foi a primeira coisa. Ela está protegida contra intrusões, assim como Phyrexia.
Além disso, o campo repulsivo produz uma distorção de espaço temporal parecido com
o causado pela transplanagem – bem parecido com aqueles sobre Benália no primeiro
dia.
Se lembra disso? Karn perguntou maravilhado.
Lembro-me mais do que você imagina.
Ele assentiu distraidamente. Sua mente se mexeu pelo Modelador de Céu, os
Ossos de Ramos, o Cristal Thran, a Bolha Juju. Se estes campos são apenas fenômenos
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de transplanagem, eles podem ser moldados como qualquer outro deslocamento. Ao
invés de manipularem seu próprio envoltório de deslocamento, vocês simplesmente
recalibrarão seu alvo para os vetores dos campos repulsivos.
De alguma forma, através da massa de metal diante dele, Karn sentiu um sorriso
se formando na figura de proa de Géia. A voz do navio veio, deliciada, Por que demorou
tanto, Karn?
*****
Para cada arma Phyrexiana que eles explodiam, mais duas disparavam fogo
antiaéreo. O convés estava cheio de buracos, e um dos canhões abandonados por Karn
soltava vapor devido a um golpe direto. O envoltório de deslocamento, que antes os
protegera, decaía e falhava sob a torrente de ataques.
“Não podemos aguentar mais isso,” Tahngarth rosnou por cima dos gritos
estridentes da sua arma. “Ou subimos ou afundamos.”
“Karn está trabalhando nisso!” Sisay berrou de volta. “Ele e o navio, ambos.”
Orim gritou, “Tarde demais!” Seu canhão projetava-se para o céu como um dedo
acusador. Por fora da garganta da montanha descia um ataque total. Teias pretas e feixes
vermelhos caíam do navio.
O Bons Ventos mergulhou de repente para baixo. Ele detectou a magia dos campos
repulsivos e agora deslizava através deles com ávida velocidade. Enquanto o Bons Ventos
mergulhava sob ondas de distorção, aqueles no convés somente conseguiam ficar de pé
num olhar estupefato como marinheiros afundando num navio. Os canhões e bombardas
não o alcançavam mais. Seus disparos se esparramavam pela superfície dos campos
repulsivos, sangue vermelho e óleo preto em um mar agitado.
Enquanto isso o Bons Ventos velejava suavemente em direção à escuridão. Ao seu
redor, os campos repulsivos roubavam o ar do calor e da luz. O frio sufocante e a
escuridão aterrorizante – a maioria dos navios que andaram por tais profundezas jamais
se ergueram de novo. Talvez o Bons Ventos não se ergueria também – um naufrágio em
profundezas sem sol. A descida teria sido horrível salvo que Gerrard esperava lá embaixo.
“Aí está!” chorou Orim, colocando-se de pé e apontando por cima da balaustrada
de bombordo.
Da escuridão total abaixo, uma forma se formou. Parecia uma pilha de ossos,
branqueada e ameaçadora, unida por tendões nervosos há muito mortos. Enquanto o navio
se aproximava da aparição, uma lógica orgânica surgia – chifres que sobressaiam junto
de passarelas vulneráveis, pedaços de carapaças abrigando os apartamentos mais
espaçosos e suntuosos, varandas de ferro sob dobras de osso. A coisa toda parecia um
esqueleto de leviatã.
A Fortaleza.
Estas eram profundezas desconhecidas, sim, mas o Bons Ventos já se aproximara
daquele lugar horrível uma vez. Sisay, Tahngarth e Karn foram prisioneiros naquela
fortaleza. Gerrard, Crovax, Ertai, Squee e seus companheiros tiveram que vir para salvá-
los. Agora, os papéis estavam trocados. Os salvadores se tornaram os prisioneiros e os
prisioneiros salvadores.
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Sisay recuou do leme, sentindo que o Bons Ventos seguiria seu próprio curso até
aquele profundo e terrível lugar.
Pelo duto de comunicação, a capitã disse, “Tahngarth, Karn – o que quer que esteja
fazendo, peça para outro fazer. Vocês são meu grupo de embarque. Encontraremos
Gerrard e Squee.”
“E eu, Capitã?” Orim perguntou.
Sisay deu um sorriso feroz. “Enquanto a capitã, o imediato e o engenheiro
estiverem na Fortaleza cortando moggs, você ficará no comando, não é?”
Mesmo através do duto de comunicação, a oração sussurrada de Orim foi audível.
“Cho-Manno, ajude-me.”
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CAPÍTULO 18
Nada emocionava Crovax mais do que uma batalha. Mesmo aqui, numa floresta
invasora sob o sol incandescente, Crovax estava feliz enquanto pudesse matar. Pelos
deuses, ele conseguiu matar. Seu machado fendeu um elfo do pescoço ao umbigo e
emergiu antes que ele tivesse tempo de gritar. Suas metades caíram como a casca de
banana. Crovax bateu sua lâmina dentro da caixa de voz de outro elfo. Ele não conseguiu
gritar em sua morte, embora o ar borbulhasse vermelho ao redor da lâmina de Crovax.
Seu pé empurrou a coisa para longe. Sua mão quebrou o pescoço de outro. Seu machado
cortou mais dois com um único golpe.
A batalha emocionava.
O exército de zumbis de Crovax, literalmente, comeu a infantaria élfica. Ossos
dos dedos fizeram garfos notáveis nos corpos dos elfos. Dentes de zumbis morderam
cabeças de elfos como maçãs crocantes. Avidamente, os mortos-vivos lutaram com a fúria
do próprio Crovax.
Atrocidade! Uma floresta onde devia haver pântanos! Ele queimaria cada árvore
e mataria cada bicho verde. Crovax já havia incendiado todo o perímetro da floresta.
Colunas pretas de fumaça giravam em direção ao céu. Enquanto isso, Crovax e suas tropas
de mortos-vivos matavam saprófitas. Kavus, homens de madeira, druidas e elfos as
centenas. Ele lutaria até o que último caísse.
Havia uma grandeza de canto em seu machado enquanto matava, uma alegria
aguçada. Crovax trabalha como um escultor, talhando ar, pelo sangue e osso. Ele criou
um autorretrato em carne cortada. Havia seus olhos ferozes, aqueles dois homens de
madeira cujas cabeças queimavam com seu feitiço. Havia seu enrugado nariz, o druida
ajoelhado com vestes marrons e pescoço cortado. Havia seus dentes irregulares, com
aquele corpo de Kavu com as costelas esfoladas e afiadas. Nos milhares de mortos,
Crovax viu somente uma ampla mesa de banquete. Nos múltiplos gritos e gemidos,
Crovax somente ouviu a cacofonia alegre do seu coração.
Até que um som estranho veio – um grito de medo, não de fora do evincar, mas
de dentro. Ele meio que se virou, ouvindo o terror naquela voz. As palavras vieram de
uma criatura fraca – uma mentalmente poderosa, porém fraca.
“Ertai,” Crovax murmurou.
O devaneio do momento quase lhe custou o pescoço. Um homem de madeira –
um da sua própria tropa de choque Phyrexiana transformado em flora – balançou uma
clava em seu caminho. Crovax saiu de baixo dela, apoiou a perna da coisa com um pé e,
preguiçosamente, quebrou o joelho com o outro.
“Do que Ertai poderia precisar?” Crovax ponderou enquanto fendia uma saprófita
que caía em seu caminho. “Ele está em minha sala do trono, pelo amor de-” Uma
percepção repentina e terrível veio a Crovax. “Minha sala do trono!”
Ele não amava nada mais do que a batalha e amava nada menos do que sair dela.
Era isso o que estava acontecendo com ele. Sim, ele invocou sua magia. Ela o envolveu
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e transformou seu corpo sólido em espírito. A coisa reluzente o ergueu do vulcão e girou-
o para o céu. Da caldeira, ele foi para a Fortaleza.
A sala do trono estava em perigo. Ertai – incapaz de lidar com o problema –
invocara seu mestre.
Assim que eu botar minhas garras em você, pequeno Ertai, Crovax pensou
enquanto seu espírito descia os corredores da Fortaleza e procurava a sala do trono abaixo,
você pensará duas vezes antes de me tirar da batalha outra vez.
Quando Crovax ganhou forma na sala do trono, embora, foi ele quem pensou duas
vezes.
Moggs pendiam das estalactites em bolos, parecendo vítimas da própria mão de
Crovax. Quem, além dele, tinha poder para arremessá-los lá? Sabujos vampiros
atapetavam o chão com peles desossadas. Quem poderia tê-los esmagados? Paredes
negras escorriam gosma mais negra que Ertai havia pulverizado por toda parte. Quem ele
tentou matar com toda aquela tinta?
Agora mesmo, o feiticeiro de quatro braços pairava perto da porta e lançava
olhares pelo corredor. Ele parecia quase impaciente pela chegada de Crovax.
Mesmo antes do evincar tomar toda forma, Ertai falou com ele, “Mestre, vou
destruir o goblin imortal,” ele colocou um par de polegares no corredor, “a não ser que
você queira ajuda com o outro.” Ele gesticulou em direção ao centro da sala.
Lá, a maior atrocidade de todas, sentada no trono do evincar, estava a cabeça
decepada de Urza Planinauta. Mesmo na morte, Urza encarava com seus olhos que tudo
viam. O sangue acumulou-se no assento e escorreu pela face frontal. O sangue de Urza,
embora houvesse mais. Dois il-Vec guerreiros se penduravam nos chifres nas costas do
trono.
“Ele fez tudo isso?” Crovax perguntou, finalmente sólido o suficiente para falar.
O evincar apontou seu machado para o trono. “Uma cabeça fez isto?”
Ertai estremeceu com o desejo de ir para seu próprio aposento. “Não a cabeça.
Ele!” Ele apontou enfaticamente além do trono e depois se retirou pelo corredor.
Crovax deixou o filhote partir. Ele estava ocupado demais olhando as sombras de
obsidiana de seu trono e distinguindo a figura de pesadelo que pairava além.
Gerrard Capasheno! Ele parecia o mesmo - magro em seu colete de couro e calça
– mas uma nova e maligna luz brilhava em seus olhos. Gerrard carregava, não uma
espada, como seu costume, mas a ponta de uma alabarda. Era larga e afiada, e cintilava a
magia mortal de Yawgmoth.
Gerrard avançou.
“Você é Phyrexiano agora,” Crovax disse, percebendo.
Gerrard sorriu ferozmente. “Yawgmoth achou conveniente melhorar-me, sim.”
Ele girou a pesada lâmina facilmente em sua mão.
Crovax ergueu sua arma em posição de ataque. Ele enviou impulsos ao chão sob
os pés de Gerrard, deixando-o mole como lama, e então duro como ferro, prendendo-o.
“O que você fez com minha sala do trono?”
“Eu reorganizei,” Gerrard replicou convencido. Ele tentou avançar outro passo,
mas seus pés estavam presos na rochafluente. Ele parecia inabalado. “Depois de tudo,
esta não é mais sua sala do trono. É minha.” Ele pontuou essa afirmação com um aceno
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de mão, tornando o chão líquido novamente. Ele saiu da armadilha e caminhou em direção
a Crovax.
Apesar de tudo, o evincar recuou. Desde Volrath, nenhum outro homem podia
manipular a rochafluente da Fortaleza. “Como fez isso?”
“É minha,” Gerrard respondeu friamente. Ele estendeu a mão, como se
pretendesse agarrar o peitoral de Crovax. Antes que seus dedos se aproximassem do
evincar, outra mão pressionou-se contra as paredes da câmara. Era uma mão enorme,
poderosa, e alcançou Crovax.
Ele se virou e enviou sua própria vontade para a rocha. A mão que alcançava
encolheu-se e alisou-se na parede.
“Seus poderes não estão completos,” provocou o evincar.
“Mesmo assim, Yawgmoth disse que governarei sobre você, que eu comandarei o
resto da invasão.”
Crovax zombou. “Você nunca governará sobre mim até que eu esteja morto.”
Assentindo profundamente, Gerrard disse: "É exatamente isso que eu tinha em
mente.”
Num acordo silencioso, os dois avançaram. A ponta da alabarda de Gerrard fez
um laço branco no ar, parecendo incontrolável. O machado de Crovax girou para refletir
a lâmina. Metal ressoou contra metal. Um arrepio frio percorreu a mão de Crovax, seu
machado retinindo. Ele avançou novamente, tentando espetar o coração do benaliano.
Gerrard foi muito rápido. Ele deslizou para o lado, deixando a lâmina do evincar
passar por ele. Então ele atacou com suas mãos, agarrou a lâmina, e a puxou.
Crovax tentou torcer o machado, para cortar os dedos do homem, mas a mão de
Gerrard era uma prensa. Se o evincar se segurasse, ele seria puxado para baixo da
alabarda. Se ele soltasse, estaria desarmado... Não, não desarmado. Quando Crovax
estivesse na sala do trono, enquanto a sala do trono ainda fosse dele, ele nunca estaria
desarmado.
Crovax não soltou a lâmina simplesmente. Ele empurrou-a em seu atacante.
Gerrard cambaleou para trás. Ele segurou o machado em uma mão e a lâmina da
alabarda em outra.
Crovax também recuou. Um simples floreio de suas garras enviou gavinhas de
energia para os sacos de carne desossada que uma vez foram seus sabujos vampiros. De
repente, eles balançaram. Seus ossos ainda estavam despedaçados, seus órgãos ainda
estavam em polpa úmida, mas se moveram. A dor nada mais significava, Contusões
crepitaram quando os animais peludos se lançaram em direção a Gerrard. Presas
quebradas sorriram para ele.
O jovem salvador de Dominária girou, se lançando aos monstros. Sua alabarda
mordeu profundo, fendendo pelo e tudo abaixo. Os golpes teriam parado qualquer ser
vivo, mas não estes sabujos mortos. Eles morderam suas pernas. Eles rasgaram seus lados.
Eles o escalaram com um golpe penetrante.
Crovax sorriu orgulhosamente. “Você diz que Yawgmoth deu a você o domínio
sobre mim? Não parece isso. Quais criaturas mortas lutam por você, Gerrard? Você
controla a rochafluente, sim, mas e a carne morta? Quem a não ser um verdadeiro
necromante poderia governar a Fortaleza?
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Gerrard lutava como um texugo. Ele fatiava e cortava com o machado e a alabarda.
Os sabujos vampiros ficaram em pedaços. Nacos de carne não maiores que
ensopados caíram no chão. Mesmo assim, magia negra os reanimava. Como ratos
sangrentos, estes pedaços se contorceram para escalar o lutador. Estilhaços de ossos o
morderam. Fragmentos musculares derramavam veneno em suas feridas.
Gerrard rugiu. Ele transformou o chão de rochafluente em líquido agitado. Cada
pedaço de carne do sabujo afundou no chão, dragado.
Vendo seus pets sacrificados, Crovax mexeu suas mãos para os lados. Seus dedos
enviaram traços necromânticos para os guardas mortos il-Vec. Corpos se contraíram e
estremeceram. Olhos que eram cinzas ficaram preto brilhante. Dedos gélidos pegaram
espadas e machados. Zumbis il-Vec cambalearam ferozmente em direção a Gerrard.
“Mate-os outra vez, Gerrard,” gralhou Crovax. “Você fez uma vez. Ser governante
dos vivos não é o suficiente. Para manter a Fortaleza, você também deve governar os
mortos.”
O jovem salvador não se levantou e esperou. Ele atacou o zumbi il-Vec mais
próximo. Ele se esquivou mal. Seus nervos mortos não eram páreo para os reflexos
aprimorados de Gerrard. Ele fintou para um lado e lançou o machado de Crovax através
da cabeça da coisa. O zumbi caiu para trás contra a parede, suas pernas se dobrando.
Seus companheiros se aproximaram.
Gerrard subiu o corpo do zumbi. Ele se lançou no muro, para fora do alcance da
espada que o perseguia. Ela acertou a rochafluente, afundou e ficou presa. Gerrard se
apoiou nele e deu meia volta. Suas botas caíram sobre a cabeça do segundo atacante e a
esmagou como um melão.
Mesmo enquanto ele estava suspenso no ar, Gerrard girou sua alabarda e
decapitou um terceiro guarda. Sua cabeça pendeu solta e arqueou no ar. Gerrard pousou
sobre o corpo bagunçado, ficou de pé e balançou sua lâmina. Aço e crânio se ajuntaram.
A cabeça do zumbi caiu pela sala para se chocar contra um de seus companheiros no chão.
Em questão de segundos, Gerrard matara quatro dos mortos-vivos – garantido a
eles a segunda morte. Nos próximos movimentos, ele desmantelou os outros. Eles caíram
sem reviravoltas ou glória, apenas a razão indiscutível de uma lâmina afiada e pesada.
Quando o massacre acabou, Gerrard olhou para a sala do trono. Ele a fez sangrar uma vez
com humores vermelhos. Agora, fluídos pretos escorriam de suas vítimas.
Num arco próximo, Crovax estava de pé, sorrindo ferozmente. Suas garras juntas
fingindo um aplauso. “Então, você pode destruir os mortos – isso é melhor do que ser
destruído por eles, porém não tão bom quanto controla-los.” Seu olhar varreu as
estalactites acima. “Eu os controlo.” Ele levantou as mãos como se quisesse arrancar a
barriga de um grande animal. Ao invés disso, ele puxou mogg atrás de mogg.
Os monstros caíram no chão num círculo verde ao redor de Gerrard. Pernas
inteiras os pegaram. Braços inteiros se rasgaram diante deles. Garras e dentes eram tão
afiados na morte quanto na vida. Somente os ombros e pescoços foram modificados,
perfurados por espinhos grossos. Como um, os goblins se lançaram sobre Gerrard.
Ele balançou sua alabarda. Ele cortou têmpora a têmpora através de um crânio e
continuou até se alojar nos olhos do próximo. Mas havia dez daquelas bestas. Enquanto
100
sua lâmina estava pendurada, os outros oito rasgaram seus braços, pernas e costas. Eles
eram tubarões rasgando um pedaço de carne.
O Evincar de Rath só podia assistir em descrença. O que Yawgmoth viu naquele
homem? Coragem? Habilidade? Fúria? E de que adiantava isso quando um homem estava
despedaçado?
Gerrard lutou. Onde outros homens teriam perecido e morrido, este homem lutava.
Mesmo enquanto goblins aravam suas costas com garras, ele matava. Cabeças de moggs
eram achatadas. Pescoços caíam. Seus braços terminaram em ruínas tremendo no chão.
Enquanto moggs mordiam suas pernas, ele cortava suas costas ao meio. Parecia que
ninguém podia sobreviver a estes ataques combinados, ainda assim Gerrard, não somente
sobreviveu, mas levou seus atacantes à morte.
Como ele fez aquilo? Os dentes de um mogg podiam morder uma rocha. A garra
de um mogg podia eviscerar uma gargantua. Como podia um único homem com uma
simples alabarda quebrada, matar todos eles e se erguer do meio deles?
Yawgmoth. Ele garantira a Gerrard força, velocidade e inteligência sobre-humana.
Ele deve ter até aprimorado as habilidades naturais de cura dele. Embora sulcos profundos
cortassem as costas de Gerrard, nenhum ainda sangrava. Os músculos e carne se
costuravam enquanto ele arrancava sua alabarda da cabeça do último goblins.
Crovax balançou a cabeça, narinas queimando. Ele escolheu errado. Ele não
poderia superar Gerrard por força. A força de um deus estava nele. Crovax teria que
derrotar Gerrard predando alguma parte intocada por Yawgmoth. Alguma coisa como a
bondade ou compaixão dele.
“Eu fui um tolo,” Crovax admitiu, ficando bem distante do alcance da lâmina
ensanguentada, “enviar meus melhores guerreiros a você. Eles podem não valer nada para
você morto, mas para mim, suas carreiras apenas começaram. Perdi um pelotão aqui.”
“Não é somente isso que você vai perder,” Gerrard replicou, ofegante enquanto
erguia o machado. “Você está sem guerreiros. Agora vai perder a vida.”
“Se você realmente deseja me substituir, é melhor saber o que está fazendo. Deixe-
me mostrar o que te falta.” Crovax apontou para Gerrard com uma garra torta. “Isto é o
que deve ser capaz de governar em meu lugar.” Ele deu as costas para o perseguidor,
ergueu suas garras, e as desceu sobre o teclado de ossos de dedo do seu agonifone.
A parede veio à vida – não a parede, mas as criaturas presas na parede, os tubos
vivos do órgão assassino de Crovax. Com cada tecla que seus dedos apertavam, uma
criatura viva gritava. Desespero se tornou música.
Gerrard rosnou, se lançando sobre o evincar. Ele lutou contra o fluxo de gritos.
Ele salvaria estas pobres almas colocando sua alabarda no homem que as atormentava.
Com toda sua força, ele balançou sua lâmina em direção a Crovax. Ela cortou o ar antes
de cortar a espinha.
Só que Crovax deu um passo para o lado. Ele compreendera a compaixão de
Gerrard. Ele sabia o que o jovem faria. A alabarda não acertou o evincar de Rath. Ao
invés disso, ela acertou as teclas brancas do agonifone e as prendeu. Acima, as vítimas
tremiam em absoluta agonia, gritando seus pulmões bruscamente. Quando uma expiração
seguia seu curso, eles apenas aspiravam ar para gritarem novamente. Eles estavam
morrendo, mortos pelo salvador de Dominária.
101
E agora o salvador precisava ser salvo.
Crovax bateu as mãos estridentes de Gerrard do machado e da alabarda. Ele pegou
a garganta de Gerrard em suas garras e apertou. A carne se inchava em faixas vermelhas
sob seus dedos contraídos. Crovax encarava o rosto de seu cativo.
O evincar falou. Um hálito apodrecido saiu. “Precisa mais do que força,
velocidade e vontade para governar aqui, Gerrard. Precisa de sede de sangue. Precisa de
fascinação genuína - não, obsessão genuína por causar dor. Sim, você é forte. Sim, você
é poderoso. Mas até que você seja cruel, nunca governará em meu lugar.”
Com isso, Crovax forçou seu aperto. Os olhos de Gerrard giraram por um
momento insano e delicioso. Então, eles escureceram. Naquelas órbitas sem luz, Crovax
viu seu próprio sorriso brilhante e distorcido.
102
CAPÍTULO 19
LAVA CRESCENTE
*****
103
do antigo Evincar Volrath. O novo governante da Fortaleza, Crovax, modificou a imagem
apenas adicionando fileiras de dentes de tubarão rudemente processados.
Eladamri conhecera os dois opressores – o maligno Volrath e Crovax que era pior.
Seu povo, os Elfos de Skyshroud, viveram uma eternidade sob o olhar sinistro dos
Evincares de Rath. Agora, era o próprio Eladamri quem enfrentava esse semblante.
“Portcullis deve cair,” ele sibilou para seus companheiros, e apontou com a espada
que portava.
Lin Sivvi caminhou ao lado dele, sua figura delgada pintada com sangue verde
dos moggs. “Você quer dizer, devemos atravessá-lo.”
“Quero dizer que deve cair,” reiterou Eladamri enquanto olhava para aquele
odiado rosto composto.
Grizzlegom chegou em seguida. O sorriso-de-sangue no rosto dizia o quanto ele
estava gostando da batalha. “O que você sugere?” Ele jogou a mão em direção à
balaustrada e à caverna negra além. “Nossos peritos em demolição estão fora de alcance.”
Assentindo sombriamente, Eladamri disse, “É apenas uma questão de saber o que
explodirá e como desencadeará.”
“O óleo brilhante pega fogo com uma simples chama,” Lin Sivvi ofereceu
enquanto o triunvirato avançava, à frente de um pequeno, mas feroz grupo de tropas. “E
queima bastante quente. O suficiente para atear fogo a, digamos, fluídos hidráulicos ".
Os olhos do comandante elfo percorreram os gigantescos cilindros hidráulicos que
abriam e fechavam os portões de Portcullis - mecanismos guardados por um contingente
da elite Phyrexiana. Eladamri assentiu, pensativamente.
“Então,” Grizzlegom disse, “precisamos matar, empilhar e queimar os defensores
do portão, dessa forma detonando a parte hidráulica?”
Lin Sivvi e Eladamri assentiram em uníssono.
“Enquanto estivermos falando sobre Phyrexianos mortos, estou dentro,”
Grizzlegom disse.
Ele acenou atrás dele, levando adiante um ávido pelotão de minotauros. Um rápido
sinal de mão disse a eles para prepararem as armas para a batalha e se amontoarem,
firmemente, em torno do comandante. As tropas fizeram isso com eficiência notável.
Alabardas, martelos e espadas ajuntaram-se ao machado de Grizzlegom, pronto para
matar. As armas quase que pareciam dentes brilhantes numa criatura gigante que
avançava.
Eladamri soltou seu próprio grito de guerra. Elfos de Skyshroud e da Lâmina de
Aço se amontoaram de um lado. Todos portavam espadas como a sua, embora os mais
afastados mantivessem suas lâminas embainhadas e seus arcos preparados. Do outro lado
de Eladamri um punhado de Keldonianos atacava, cada um valia por dez homens e
armados com espadas longas. Com Eladamri, eles fariam a passagem correr com o óleo
brilhante.
Agora, eles precisavam de alguém para acender a fagulha. Lin Sivvi era essa
pessoa. Ela se tornara uma comandante nata das tropas Metathran. Os altos guerreiros
azuis encontraram alguma coisa para apreciar na obstinada e poderosa Vec líder. Ela era
tão destemida e feroz quanto um Metathran. Ela pegou uma tocha escondida ao longo da
ponte de rochafluente, ergueu alto o fogo e gritou, “Atacar!” Os Metathrans fizeram isso.
104
Na vanguarda, o pernalta Grizzlegom e seus minotauros rugiram em direção ao
portão. Metal reluzia sobre suas cabeças, e cascos quebravam pedras abaixo. Guerreiros
il-Dal e il-Vec se prepararam para o ataque. Embora hipertrofiados e aprimorados
mecanicamente, os guerreiros de Rath não eram páreos para a fúria dos minotauros.
O machado de Grizzlegom bateu em cima do martelo de guerra de um il-Dal e
partiu a cabeça da coisa. Com um puxão de braço, ele arremessou o machado e o martelo
para longe e esmagou o queixo barbudo do guerreiro com o punho. O il-Dal se dobrou,
apenas para revelar outro guerreiro atrás. Grizzlegom nem parou para limpar sua arma
suja, ao invés disso, balançou o machado e o martelo. A haste do martelo acertou os olhos
do guardião. Mesmo enquanto ele caía, o comandante minotauro pegava seu martelo de
guerra. Machado numa mão e martelo na outra, Grizzlegom avançou contra seus
inimigos.
Enquanto isso, Eladamri lutava com moggs. Era a última guerra entre as bestas e
os sencientes. Eladamri e seus elfos pareciam anjos esculpidos enquanto que os moggs
pareciam demônios derretidos. Espadas afiadas lutavam contra porretes esmaga-ossos;
sagacidade contra estupidez. Eladamri desmantelou seu primeiro oponente como um
açougueiro vestindo um porco. Sua espada fendeu os músculos do tendão e do osso. Os
Keldonianos lutaram com a mesma ferocidade, desfazendo essas estranhas imagens do
outro mundo.
Lin Sivvi e sua unidade de Metathrans enfrentaram os mais poderosos. Eles foram
de igual para igual, não contra mestiços de Rath, mas verdadeiros Phyrexianos. Enquanto
elfos lutavam contra a perversão final da carne de elfo, Metathrans lutavam contra
criaturas tão parecidas em manipulação genética que poderiam ter sido irmãos. Mãos
azuis agarravam crânios cinzas e as despedaçavam. Cabeças Metathrans acertavam
corações Phyrexianos. A própria arma de Lin Sivvi brilhava em sua corrente fazendo com
que o sangue oleoso Phyrexiano jorrasse como cerveja de torneiras. Era preciso apenas
um toque de sua tocha para engolfar o resto das bestas em chamas.
O fogo se levantava, laranja, vermelho e azul, dos Phyrexianos caídos. Ele
incendiava os que ficavam de pé. As chamas varriam deles para as bestas empilhadas sob
maciços cilindros hidráulicos e os cobria de chamas. Enquanto minotauros lutavam contra
il-Dal e elfos contra moggs, os verdadeiros Phyrexianos queimavam. Lin Sivvi matou
mais e lançou seus corpos na pilha. Logo, as chamas lamberiam cada ponta do mecanismo
de abertura.
A primeira rachadura veio, alta e alegre, como o grito de um vencedor. Fluídos
hidráulicos borrifavam do veio. Eles se espalharam e pegaram fogo. A labareda varreu
para dentro, passou por pedaços de aço sem ar, e alcançou os mecanismos internos.
Engrenagens foram trituradas e se soltaram, pistões estouraram e todo o horrível dínamo
se desintegrou.
O mecanismo explodiu, enviando estilhaços por todo o campo de batalha. Pedaços
pontiagudos de metal mataram elfos, minotauros e Metathrans – mas muito mais dos
defensores da Fortaleza. As explosões abriram os portões sorridentes do Portcullis. Com
um terrível grito e gemido, as barras soltaram das suas montagens. As forças da coalizão
largaram suas batalhas para recuar correndo. Quando estes portões tombaram, eles caíram
em cima das poucas bestas que restaram para defender o caminho interno.
105
“Avançar!” gritou Eladamri. Sua ordem ecoou no grito vingativo de suas tropas.
“Avançar, para o lar de Crovax!”
“Avançar!” eles responderam, e as forças de coalizão atacaram o destroçado
Portcullis.
*****
Eles cantavam sobre uma flor nutrida em pedra e escuridão. Cantavam sobre eles
mesmos. Em cada linha da canção, eles atingiam a rocha sobre a qual caminhavam. Seus
martelos despertaram calor repentino. Ao invés de destroços de pedras voando, os golpes
lançavam respingos de pedra em brasa. Impermeáveis ao material, os druidas da rocha
avançavam.
Eles alcançaram o fim da jornada – um profundo e largo poço que jorrava uma
coluna gorda de vapor. A beira do penhasco, os anões cessaram sua marcha e pararam.
Balançando seus martelos contra o penhasco, terminaram sua canção.
Com cada golpe dos martelos, mais rocha derretida espirrava da borda do poço.
Longos canais vermelhos de lava corriam pelo penhasco, dedos se esticando. Impactos
rítmicos derretiam mais rocha, até que cada anão estive sobre uma cascata regular de
vermelho. Eles continuaram a cantar, e a lava finalmente desceu o suficiente para tocar
em coisas semelhantes: magma. O pulso acelerado dos martelos dos anões deu vida à
rocha derretida e ao lago derretido abaixo. No meio do profundo poço, um olho vermelho
piscou acordado. Ele se alargou e se aproximou. O canto funcionou. Os martelos
funcionaram. Os druidas da rocha despertaram as profundezas pétreas.
Ainda assim cantavam. Ainda assim, eles batiam enquanto a inundação mortal
brotava abaixo deles. Um quarto de milha abaixo, quinhentos pés, cem pés, dez pés ... A
maré vermelha incineradora subiu.
Ainda cantando, irmã Dormet ergueu a bota e colocou-a no dilúvio de pedra. Ela
trouxe a outra bota ao lado da primeira. Lá elas ficaram, o martelo agarrado ao seu lado
e a voz cantando. Os demais fizeram o mesmo. Eles subiram na maré purificadora, no
dilúvio que em breve varreria a Fortaleza de Dominária.
*****
Como nos velhos tempos, pensou Eladamri. Sua espada fez um trabalho rápido
em um guerreiro il-Vec. A coisa que uma vez fora um homem, mas estava tão contorcida
por enxertos e engrenagens se tornara um monstro. Com um golpe pelo meio, Eladamri
o reduziu a nada. Ele não teve pena da coisa. Sua própria covardia fizera aquilo. A
covardia mesquinha de indivíduos havia escravizado nações inteiras para os soberanos
Phyrexianos. Se a única maneira de revogar aquela tirania fosse matar cada covarde que
a empoderara, Eladamri faria isso. Como nos velhos tempos.
Ele passou pelas metades caídas do monstro e deu mais dois passos pelo corredor.
Lin Sivvi e Grizzlegom lutavam ao lado dele. Eles desceram uma passagem retorcida
como a garganta de uma grande besta. Seus passos e gritos ecoavam nas paredes
107
cintilantes. Atrás deles, guerreiros da força de ataque se amontoavam. Eles tomaram a
ponte de rochafluente, destruído o Portcullis, e erradicaram cada besta pelo corredor
principal da Fortaleza. Mais daquelas bestas se colocaram à frente deles.
A espada de Eladamri decapitou um mogg enquanto se lançava no ataque. Sem
cabeça, os ombros da besta ainda acertaram seu estômago, empurrando-o para trás.
Lin Sivvi se manteve firme, empunhando seu totem-vec sem soltar. Ela enterrou
a lâmina curva na barriga de um il-Dal e, abrindo um rápido círculo, esvaziou a criatura
no chão.
Grizzlegom furou com os chifres um par de guerreiro de Rath. Ele carregou os
dois monstros por mais dois passos enquanto balançava seu machado no torso de outro.
Então, como um cão balançando o pelo, ele sacudiu violentamente e jogou os restos de
seus três inimigos no chão do corredor.
Eles invadiram, Lin Sivvi liderando agora, Grizzlegom atrás dela e um Eladamri
levemente enrolado por último. O caminho se abria para uma ampla sacada que cobria a
densa escuridão em torno da Fortaleza. A sacada estava abarrotada de monstros.
Grizzlegom e Lin Sivvi abriram caminho, cada um matando duas criaturas e indo
atrás de mais.
Ansioso para matar, o elfo lorde se lançou ao primeiro guerreiro de Rath que pôde
alcançar. Suas cantava enquanto acertava o ombro magro da coisa descendo até o que
deveria ter sido o coração. Ele dirigiu a lâmina para baixo, em direção às vísceras, uma
morte definitiva. Lá, a espada parou. Ficou presa em alguma coisa dura, algo parecido
vidro inserido no centro da coisa. Rosnando de impaciência, Eladamri bateu a lâmina na
besta e a empurrou para o chão.
Somente então ele viu o rosto – rosto dela. Ela era uma jovem elfa – uma elfa de
Skyshroud, embora sua carne tinha a palidez cinza dos constructos Phyrexianos e os olhos
eram esferas de vidro. Ela se contorceu na espada dele, espetada como um inseto. Ele
poderia tê-la matado com um simples toque, mas ele parou. Não era o que ela era agora -
uma servidora ocular, como ele já vira antes – mas o que ela fora. Ela não era covarde,
mas uma criança élfica abduzida e transformada em um instrumento do mal. Ela era uma
criatura assim como sua própria filha, Avila.
Enquanto ele olhava para a pobre criatura espetada em sua espada, suor e sangue
derramaram dos olhos de Eladamri, e lágrimas também. Nem todos eram covardes mortos
neste dia. Alguns eram vítimas.
Um golpe rápido acabou com a dor da vítima. Ainda com olhos fechados,
Eladamri estava acima da criatura caída. Ele cambaleou, lutando para acalmar seu coração
trovejante.
Uma mão pegou seu ombro. Ele girou, espada pronta. Sua lâmina bateu de lado,
bloqueada pelo totem-vec.
“Eladamri,” disse Lin Sivvi, “Você tem que ver isso.”
Rindo e tremendo, ele replicou, “Não consigo ver coisa alguma.”
Ela pegou seu braço e o trouxe até a balaustrada da sacada. Mesmo através das
lágrimas, Eladamri distinguiu o brilho vermelho pálido abaixo da Fortaleza, um olho
raivoso olhando para cima e crescendo.
“O que acha disso?” perguntou Lin Sivvi.
108
Suando rapidamente, Eladamri disse: "Acho melhor chegarmos à sala do trono
antes do que quer que isso seja chegue até nós.
Tudo o que ela disse foi, “Sim,” e sua lâmina estava matando outra vez.
109
CAPÍTULO 20
LIBERTANDO OS CATIVOS
“Sempre pareceu mais fácil quando era ela quem fazia,” Orim resmungou,
lançando um leme relutante para bombordo. Sisay dissera para ela, simplesmente, voar
em círculos e olhar pelo retorno da tripulação. Aparentemente, voar em círculos não era
tão fácil quanto parecia. “Vamos lá, maldito navio,” Orim disse enquanto ela jogava seu
peso sobre a roda teimosa. “Apenas vire!”
O leme do Bons Ventos respondeu lentamente, mas seus motores estavam
ansiosos. Orim enviara um alfere para dar partida no acelerador que estava quase fechado,
mas o grande navio saltara como uma pedra saltitante pela caverna escura. Suas lanternas
esticaram os dedos de luz para sondar o ventre de pedra. Em todo lugar, havia basalto –
muito escuro, muito duro, muito insistente em curvar-se para dentro e agarrar o Bons
Ventos como um mosquito, esmagando-o. Num lugar como este, um motor ansioso e um
leme obstinado significavam destruição.
“Certamente, ele nunca fez isso dentro de uma montanha,” Orim disse a si mesma.
Então se lembrou da montanha de Mercádia, com seu hangar Phyrexiano. Sisay guiou o
navio para fora daquela bagunça ardente como se estivesse velejando em céus abertos.
Franzindo o cenho, Orim bufou, “Bem, ela nunca teve que fazer isso com uma tripulação
novata.”
Aquela mesma tripulação soltou um grito coletivo de pavor, pois o navio mal
escapara de uma estalactite dentuço dez vezes maior que o navio. Orim forçava a roda
enquanto sibilava palavrões. O navio virou obliquamente para longe, e a tripulação
respirou aliviada. Estes eram camaroteiros, estocadores, e companheiros que iniciaram
que começaram essa jornada acreditando que o Bons Ventos era um veleiro – e nunca
estiveram perto de um porto seguro o suficiente para arriscarem escapar. Jovem, idiota,
amedrontado ou todos os três, a tripulação remanescente do Bons Ventos estava propensa
a entrar em pânico.
Mesmo enquanto a enorme estalactite deslizava para estibordo, o alfere na arma
da cauda decidiu descarregar uma barragem de canhão nele. Fogo branco – cegante
naquele lugar tenebroso – irregular como um raio, se chocou contra a estalactite,
envolvendo-a em dedos faiscantes e a soltou. Milhares de toneladas de pedra se separaram
do teto inclinado e mergulharam, silenciosamente, sob o Bons Ventos. Foi uma contagem
total de vinte antes que o enorme e horrível estrondo do bloco viesse debaixo.
“Basta disso!” Orim chamou pelo duto de comunicação. “Não queremos derrubar
a montanha sobre nós. Além do mais, não sabemos o que há lá embaixo e não queremos
despertar-”
“Há alguma coisa lá embaixo!” gritou um camaroteiro que manuseava a arma de
Gerrard. Ele estava em arreios duas vezes maiores e mais largos e apontava sobre a
balaustrada de bombordo. “Olhem lá embaixo! Alguma coisa vermelha!”
Os outros olharam, e no momento seguinte, vozes inundaram os dutos de
comunicação.
“Parece um olho maligno!”
110
“É o inferno! É o fogo do inferno!”
“A montanha está em erupção!”
“Nós todos vamos morrer!”
“Calem a boca, todos vocês,” retrucou Orim. “Isso é uma ordem! Se vamos
morrer, pelo menos façam com dignidade, e façam seu trabalho de antemão. Circularemos
até avistar o sinal!” Furiosa, ela fechou o duto de comunicação e sibilou, “Que tal um
maldito aliado? Tenho que lutar contra cada um de vocês?”
Pelo menos, não tenho que lutar contra mim mesma, ela pensou. Enquanto
labutava no leme, ela fechou os olhos por um momento e despertou o fogo argento da
magia Cho-Arrim. Começou nos dedos, um feitiço de cura, e afundou em direção aos
ossos. Ele o acalmava enquanto percorria. A tensão saiu dela, e o leme virou facilmente
sob seu toque.
Abrindo os olhos, ela encarou maravilhada o leme. Ele girou com uma facilidade
suave. Suas mãos não lutavam, mas pareciam parte dela. Suas mãos curadoras formaram
um conduíte entre a mente dela e a do-
Eu não sou um maldito navio, disse o Bons Ventos na mente dela. Mas eu sou seu
maldito aliado.
Orim assentiu e sorriu. Claro. Guie o caminho. Ela manteve as mãos no leme, para
não quebrar o contato mental. E veja o que pode fazer para acalmar a tripulação. Eles
são boas pessoas, de verdade.
Verei o que posso fazer.
*****
111
Tahngarth matava por uma razão completamente mais simples: vingança. Afinal,
ele era um deles, um protophyrexiano, alterado fisicamente em preparação para
transplantes e a transformação absoluta. Ele lutou contra seus antigos captores, desejoso
para mostrar a eles o que fizeram.
Sisay, no meio deles, tinha a mente mais clara dos três. Ela lutava por uma razão:
Gerrard.
Karn e Tahngarth esmagaram um par de guerreiros il-Vec, arremessando-os tão
brutalmente que as criaturas derraparam pelo piso de malha de metal que se ralaram como
pedaços de queijo. Enquanto isso, Sisay surgiu entre eles, avistando uma longa escada
que descia para um lugar escuro e odorífero. As paredes eram venenosas, como se
bombeassem os maus humores das diabruras abaixo. E lá estava a diabrura, pois este era
o calabouço que os três companheiros sofreram.
Um barulho de gemidos e gritos subiu as escadas.
“Ele deve estar lá embaixo,” Sisay disse.
Tahngarth apenas grunhiu em concordância. Isso porque ele estava ocupado
demais retirando sua striva de um guarda que tentou detê-lo.
Karn não respondeu, apenas desceu as escadas. Sisay o seguiu em seguida, e
Tahngarth apareceu na retaguarda.
Um mogg sedento se lançou da escada em cima de Tahngarth.
Ele simplesmente ergueu sua cabeça e pegou a besta com os chifres. O mogg foi
empalado, pescoço e virilha, e agitou-se, de modo que Tahngarth o removeu com uma
striva através do intestino. Ele arremessou a besta no chão, tornando seu corpo um reduto
contra novos ataques. Se virando, Tahngarth desceu o resto dos degraus e alcançou seus
companheiros entre os fossos de tortura.
O lugar tinha um impacto visceral. O fedor de vísceras e desespero, as manchas
de sangue e bile, as paredes como tecidos necróticos – estes horrores não foram logos
esquecidos – nem nunca – por aqueles que passaram tempo atrás destas portas de
rochafluente.
Karn colocou o ombro numa destas portas e a empurrou. Ao invés de cair no chão,
a porta simplesmente se desfez em pedaços que caíram para dentro. O grande golem de
prata ficou no meio, um deus primordial. Seus olhos de aço distinguiram um miserável
no canto. Ele já fora um homem, antes que seus membros fossem substituídos pelos de
um macaco e o rosto por uma placa de metal. A coisa se mexeu e, em seu rosto de placa
polida, Karn viu suas próprias feições refletidas.
Sisay caminhou pela porta arruinada ao lado dele e se aproximou do prisioneiro.
“Onde está Gerrard?” ela perguntou, direta, mas compassiva. “Onde está o prisioneiro
Gerrard?”
A coisa tentou responder, embora a máscara não tinha lugar para a boca. Os sons
ofegantes que emitiu sugeriam que ele não estava mais lá.
Sisay assentiu tristemente, acenando com a mão. “Venha, então. Está livre. Venha
com a gente. Estamos saindo deste lugar.”
A coisa símia recostou-se por um momento em silêncio, desacreditado, antes de
caminhar em direção aos seus três libertadores. Sisay observou a coisa chegar, seus olhos
112
se encheram com pena e um pouco de horror. Se Gerrard não tivesse vindo por ela, como
seria sua aparência agora?
Karn chutou a próxima porta. A criatura que estava dentro era meio aranha, com
os braços cortados e conjuntos extras de pernas enxertadas. Também não podia falar.
Também ansiava por liberdade.
Eles desceram o salão, um horror atrás do outro. As fileiras de criaturas
aumentavam atrás deles. Os três não precisavam mais lutar com os guardas de Rath. Os
prisioneiros faziam isso por eles. Um comandante il-Vec correu descendo as escadas só
para encontrar-se inundados de formas retorcidas, arranhando e mordendo. Os trabalhos
de Phyrexia se voltaram contra eles.
Finalmente, Karn pulverizou a porta que levava a uma prisioneira notável, uma
pequena criança élfica, acabada de ser abduzida. Com certeza, ela estava destinada a se
tornar outro espião ocular de Yawgmoth, cujos olhos e sentidos se tornariam do lorde de
Dominária, mas os companheiros chegaram a tempo de salvá-la.
Sisay entrou e pegou a criança nos braços. Ela a segurou com força, como se
estivesse abraçando um simulacro capturado dela mesma. “Você está segura. Tudo vai
ficar bem.” Ela não sabia se a criança élfica entendia, mas os sons acalmadores eram o
mesmo em qualquer lugar. “Eles não podem te machucar agora. Vamos te levar.”
De olhos arregalados e encarando, a criança apenas se agarrou à Sisay.
A capitã devolveu o abraço desesperado. “Não sei se você compreende o que estou
dizendo, mas se estiver, tenho que te perguntar: ouviu falar de outro prisioneiro, um
homem chamado Gerrard? Sabe onde estão mantendo-o?”
“Comandante Gerrard?” ela perguntou com perfeita elocução.
Sisay ficou sem fôlego. “Sim! Onde ele está?”
A expressão da criança élfica não mudou nem um pouco. “Ele pertence ao evincar.
Assim disse o guarda.”
“Sim, mas onde ele está?”
A garota apontou obliquamente através do teto da sua cela. “Na sala do trono.”
Sisay abraçou a criança apenas com mais força para esconder suas lágrimas de
alegria. “Para a sala do trono,” ela ecoou.
*****
Que pista sangrenta eles abriram, Eladamri, Lin Sivvi e Grizzlegom. Espada,
totem-vec, machado de batalha, transformavam ossos em cascalho e músculos em
alcatrão. Naquela estrada de ouro-vermelho vieram Metathran de pés-firmes e minotauros
de pés-seguros, Keldonianos e elfos. Outrora um bando de quarenta, agora eram um
bando de vinte, mas cada um dos guerreiros caídos havia matado dez monstros antes de
morrer. Cada um dos guerreiros que viviam matou mais. Com essa numeração simples,
Eladamri penetrou tão profundamente na Fortaleza tanto quanto se tivesse milhares.
Eles atacaram. O corredor por onde correram havia sido uma grande veia no
coração da Fortaleza, pontuada por portas de escudo destinadas a protegê-lo contra tais
invasões. Grizzlegom havia chutado a primeira e mais fraca. Um Metathran havia
religado o mecanismo de disparo do segundo. Eladamri havia matado e recuperado a
113
chave mágica dos guardas do terceiro. O que quer que esteja no final deste corredor, atrás
de três portas e dois guardas em pé, teria que ser vital para a invasão. Um depósito de
armas. Uma incubação de presas horrores. Uma sala de reféns reais. O que quer que
estivesse além seria liberado em breve pelas forças da coalizão.
O conjunto final de portas deslizou silenciosamente para dentro em enormes
dobradiças. Eladamri avançou e parou.
“Ah, sim, a sala dos mapas.”
Era uma grande câmara esférica com paredes de ardósia verde irregular. Um piso
circulava o perímetro da câmara e descia para uma camada secundária, centrada em um
poço profundo. Naquele poço flutuava uma máquina, com bicos semelhantes a falcões
acima e abaixo. Tudo isso foi vislumbrado nas cercanias. Os olhos de Eladamri foram
atraídos diretamente para o centro da câmara, para o brilhante fantasma gerado pela
máquina.
Era um globo enorme. diáfano, radiante com um brilho interior. A esfera era
composta por um loop de luz e magia cintilante. Até um nativo de Rath podia olhar para
aquela esfera girando lentamente e saber que era um mundo.
Lin Sivvi veio em seguida e olhou com admiração muda para o espetáculo.
Grizzlegom precisou, chegando um momento depois, para pronunciar o nome
daquele mundo. "Dominaria?"
Ele balançou sua cabeça. Embora algumas das formas de relevo estivessem
corretas - Yavimaya ali em sua ilha verde, e Keld exatamente onde deveria estar - outras
nações estavam desaparecidas - Talruum e Zhalfir e Shiv - e outras nações foram
apagadas sob manchas negras e espalhadas. Benália era uma, e Koilos era outra, e
Hurloon ... Os olhos de Grizzlegom nadavam com visões da capital em chamas, das
fileiras e filas de minotauros, inclusive ele, expostos diante do laboratório de mutações.
As manchas negras fizeram sentido repentino. "Dominária".
À medida que o globo girava lentamente, mostrava mais escuridão, mais
obliteração. A maré rasteira da escuridão se estendia pela superfície do mundo. Havia
mais sombra do que luz. Parecia que uma fera gigantesca envolvia Dominária em mil
tentáculos.
Os outros haviam chegado agora, todo o contingente sangrento. Eles se
espalharam pela plataforma circular e encararam o mundo. Alguns usavam expressões de
reverência. Outros cerraram os dentes e olharam. Todos assistiram aqueles cânceres
negros crescendo na face da Dominaria.
Grizzlegom foi o primeiro a agir. Ele voltou pela porta, puxou um cadáver mogg
em ambas as mãos e os arrastou de volta para a sala do mapa. Ele jogou os corpos sobre
a balaustrada. Eles voaram, fluindo e sangrando e colidiram fracamente com a máquina
que gerava o globo. Em vez de extinguir a imagem, os corpos apenas a escureceram. Eles
pareciam estender o alcance das sombras.
Narinas queimando, Grizzlegom olhou acusadoramente para os cadáveres. Com
um rugido todo-poderoso, ele pulou da plataforma e caiu ao lado do mecanismo. No
mesmo movimento, ele trouxe seu machado abaixo. Ele atingiu um console de metal e
acertou fundo, provocando uma chuva de faíscas. Grizzlegom levantou a lâmina e gritou
com raiva contra o invólucro.
114
Esse grito pareceu unir o grupo. Um a um, começando com Eladamri, eles
saltaram para o nível mais baixo para destruir aquela imagem odiosa. Eles destruíram a
máquina. Mesmo em pedaços, o mundo girou desatento acima, escurecendo a cada curva.
*****
115
seguinte teriam que acalmar seus medos ou correr o risco de motins. Mas o que ela poderia
dizer? Eles estavam certos. Não havia esperança.
Ela limpou a garganta para falar. Havia mais catarro nele do que ela esperava,
devido ao calor intenso. Ela puxou alto e, sem outra escolha, cuspiu a bola sobre o
parapeito. Ele voou, um maço viscoso, e mergulhou em direção ao mar de lava. De olhos
arregalados e ainda sem palavras, Orim virou-se para seu assistente. Ele não a viu, vendo
o cuspe despencar. Um sorriso encheu seu rosto. Quando a coisa foi fervida no ar, o jovem
arrancou a própria boca de muco e vomitou sobre a grade.
“Tome isso Yawgmoth, seu maldito bastardo!”
Uma risada quase histérica veio do outro lado da previsão. O outro artilheiro
cuspiu sua própria meleca no vermelho crescente abaixo. “Chupa isso, Yawgie! Chupa
isso!”
Um soldado de guerra de Benaliano foi o próximo, despejando um fluxo ainda
mais ignominioso de suas calças no material que consumia. Ele não tinha provocação,
mas uma gargalhada selvagem. Ele deve ter entrado no grogue mais cedo, pois sua
duração foi impressionante. Outras jovens inundaram as escadas para adicionar seus
próprios insultos pessoais à morte implacável que se elevava em direção a eles.
Orim aprovou, pelo menos na medida em que ela não fez nenhum comentário. Os
mortais estavam em voz alta para desprezar a morte. Estava entre seus direitos
inalienáveis. Foi a faísca da coragem, e Orim ficou feliz em soprar essa faísca em chamas.
Ela subiu pela escotilha da ponte e tomou seu lugar novamente diante do leme.
No momento em que seus dedos pousaram na madeira fria, ela ouviu a voz de seu navio.
Isso foi bem feito.
Orim nunca soube se o Bons Ventos estava sendo sarcástico.
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CAPÍTULO 21
OS DUELISTAS
O lagarto escondido!
O sapo viscoso!
Quando Ertai caminhou pelo corredor sinuoso, ele rangeu os dentes. O verniz
arquivado fez pequenos barulhos estridentes. As mãos dele brilharam. Cargas de
relâmpago estalaram de seus ombros, até cotovelos bifurcados e quatro pares de mãos.
Saltou das garras para os baluartes ao redor, sondando as sombras. Aqui, os disparos
estalaram uma série de rebites. Lá, a energia mergulhou em um conduíte e fez as lanternas
escurecerem e piscarem. Um pouco além daquele suporte, um raio espetou, agarrou e
balançou sua presa como um cachorro balançando um esquilo no chão.
“Squee!” Ertai berrou.
Envolto em energia branca, o goblin saltou de seu esconderijo. Ele cambaleou ao
ar livre e tentou correr. Disparos já fritaram os pés no chão. Cargas desenfreadas
percorriam todas as suas fibras. Ele dançou miseravelmente. A pele verde e peluda
descascou e ficou marrom. Músculos de fricassé. Ossos descalcificados. A figura
esquálida do duende se manteve mais um momento antes de cair em uma pilha de fuligem
e minerais.
Ertai bufou alegremente. Ele queria fazer isso desde o primeiro dia em que
conhecera a pequena porcaria. Esse verme seria um membro da tripulação e companheiro,
era irritante. Os olhos de Ertai se estreitaram. Esse verme ter ganho imortalidade era
insuportável.
O adepto caminhou com urgência pelo corredor em direção àquela pilha de cinzas.
Já rodopiava com ventos invisíveis, se reconstruindo. Se ao menos Ertai pudesse alcançá-
lo antes-
A figura se solidificou e disparou pelo canto.
A barata fedorenta. Ertai correu.
Ele ficaria fraco após sua regeneração – desorientado. Se Ertai o matasse com
bastante frequência e rapidez, talvez Squee continuasse morto. Reunindo um raio mortal,
um feitiço de mana preto que comeria a carne de seus ossos, Ertai correu. A energia em
forma de teia envolveu seus braços prontos para a descarga.
Um pé esticado agarrou sua perna.
Ertai se esparramou. Ele caiu de cabeça e bateu no chão. O feitiço reunido espirrou
ao seu redor, comendo sua carne. Melhor que deixar o mana queimar e comer sua alma.
Ainda assim, foi uma agonia. A bochecha de Ertai derreteu. Um olho foi com ele,
estourando como uma uva. Lábios e gengivas se dissolveram, deixando as presas em um
sorriso misterioso. Ele perdeu uma de suas garras vestigiais para a gosma, e a mão daquele
lado estava atordoada e rígida. Ertai usou de qualquer maneira, levantando-se das coisas.
Algo o empurrou – garras nas suas costas. Squee gritou enquanto saltava das
omoplatas de seu inimigo. O rosto meio comido espirrando novamente na lama, Ertai
soltou um grito de pura fúria. Ele rolou para o lado ruim e fez um feitiço rápido com as
mãos livres. Fumaça verde-preta jorrou da ponta de seus dedos – fumaça venenosa. Ele
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disparou no ar, envolveu Squee em punho, e envolveu todos os seus orifícios, todos os
seus poros. Não havia nem tempo para vomitar. Squee foi envenenado em um momento.
Embora ele não pudesse ver através da nuvem mortal que enchia o corredor – e quase não
conseguia ver nada – Ertai ouviu o goblin cair no chão.
Levantando-se, destruído por sua própria magia, Ertai cambaleou de volta à sala
que o curaria. Sua carne clamava por poder. Logo, ele estaria inteiro.
*****
*****
*****
Não vou respirar disso de novo, isso tá certo, pensou Squee quando se levantou
novamente na nuvem. Só vamos sair daqui. O fedor não pode tá em todo lugar.
Ele caminhou, sentindo o caminho a seguir no corredor escuro.
Claro, ele estava se enganando, e sabia disso. Muitas vezes, quando ele fedia no
Bons Ventos o fedor enchia o lugar por dias – como na época em que queriam que ele
cozinhasse comida humana em vez de larvas. Larvas fritar agradável e limpo. Elas não
enviam fumaça preta ao ar e causam queima de graxa, da mesma forma que o queijo. E
quando disseram para ele cortar a gordura dos bifes, nunca disseram para cozinhar a carne
em vez da gordura. Por que eles nunca disseram nada até que fosse tarde demais–
Um canto de metal perverso bateu no dedo de Squee, que doía muito, e ele ofegou
e morreu.
119
*****
Tá morto não é tão ruim, Squee pensou. Tem uma luz vermelha brilhante e uma
voz amigável que diz “coma!” e um banquete de larvas. A porcaria é que a mão agarrar
Squee e puxar Squee de volta à vida. Ela sempre puxar Squee de volta à vida.
Respirar não, sem dedões arrancados, nada disso, Squee disse a si mesmo
enquanto estava parado pela terceira vez. Squee prender a respiração pra morrer, se é isso
que ele tem que fazer pra viver.
Ele andou. Ele passou por várias curvas e curvas. O ar em seus pulmões ficou
obsoleto. Ele queria desesperadamente respirar. Apressar-se através da nuvem só fez seu
peito doer mais. Talvez não fosse tão ruim respirar e morrer de novo. Ele daria outra
olhada no banquete de insetos e, em seguida, tentaria atravessar essa nuvem.
Não, ele disse a si mesmo. Squee precisa voltar pra sala do trono e salvar a bunda
de Gerrard. Ele se apressou.
Felizmente, a nuvem desapareceu antes de Squee. Infelizmente, Squee não
percebeu que ainda vivia. Ele dobrou uma esquina para ficar em um corredor longo e reto
com uma luz vermelha brilhante no final.
“Droga!” Squee rosnou. “Squee não respire! Squee mantém a respiração perfeita.
Agora Gerrard perde a bunda porque Squee morre novamente. Droga dupla! Droga!” Os
olhos do goblin se arregalaram, temendo que ele tivesse acabado de se condenar a uma
vida após a morte menos do que agradável. Ainda assim, a luz vermelha radiante brilhava
à frente.
Haveria uma mesa de banquete lá dentro e muitos insetos. Squee acenou com a
cabeça amarrotada, atirou as mãos em resignação e disse, “Sim, sim, sim. Vá em direção
à luz. Squee sabe.”
Era realmente uma luz agradável, brilhante e poderosa, e em seu brilho sempre
havia um banquete de insetos. Talvez Squee realmente mordesse um deles antes que a
mão viesse. Talvez se ele se apressasse, ele poderia dar duas mordidas. Squee correu para
frente. A luz se intensificou. Tudo ficou nas sombras. Agora não havia nada além de
Squee e aquela luz acolhedora. Suas garras o carregaram pela grade de metal e por uma
porta gloriosa. O quarto estava inundado de luz. O próprio ar ficou leve. Como sempre,
diretamente sob a luminescência havia uma grande mesa e, sobre ela, um banquete de
insetos.
Squee piscou. Normalmente, o banquete consistia em milhares de insetos, alguns
fritos, outros assados, outros crus e outros vivos. Desta vez, porém, o banquete foi um
único e enorme inseto. Estava deitado de costas, longas patas traseiras estendidas para
baixo como as de um gafanhoto e dois pares de pernas dianteiras enroladas acima do tórax
nodoso. Era um inseto feio – e isso dizia alguma coisa – com uma crista desgrenhada na
cabeça, olhos vidrados e uma boquinha retorcida. Como era um inseto, porém, pouco
importava. As perninhas eram engraçadas, mas ásperas. Lesmas eram feias, mas
deliciosas. Talvez essa coisa horrenda seja o inseto mais saboroso do mundo. Que mal
faria descobrir? A coisa estava obviamente morta.
Squee se aproximou da mesa, esperando que a qualquer momento voltasse à vida.
Nenhuma mão veio. Ele chegou ao lado da mesa. A luz estava ofuscante. Ele formigava
120
de todas as superfícies e fazia o inseto parecer confuso por toda parte. Squee esfregou as
mãos avidamente. Por onde começar? Havia um cacho de aparência tenra no lado da
cabeça do inseto. Squee poderia mordiscá-lo.
Ele se inclinou sobre a mesa. O brilho radiante o envolveu. Foi maravilhoso e um
pouco doloroso. Ele estendeu a mão para o pequeno cacho de carne. Dentes afiados se
separaram e depois estalaram juntos.
Squee levantou-se, mastigando. Parecia borracha. Realmente mastigável. E sem
graça. Não é o tipo de inseto em que alguém esperaria num banquete.
A criatura se moveu. Afinal, não estava morto, embora estivesse lento com a luz.
Uma das pernas ergueu-se à toa para cutucar sua cabeça, onde Squee havia dado sua
primeira mordida.
Isso tornou as coisas mais interessantes. Os insetos vivos sempre tinham um sabor
melhor do que os mortos. Squee cuspiu aquele primeiro bocado decepcionante e se
inclinou para dar uma grande mordida no rosto de inseto. Com a boca aberta e os dentes
pingando saliva, Squee apareceu no rosto do inseto.
Quando sua sombra caiu sobre o rosto, ele reconheceu o inseto. Ertai! Ele deve ter
morrido no ataque de gás também, e foi para a mesma luz que Squee, comeu todos os
insetos e se deitou para tirar uma soneca.
Squee fechou a boca e olhou irritado para o homem. Que rude, ele pensou. Maldito
bastardo não deixou Squee nadinha pra comer, só um pouco de ouvido. Orelha! Squee
comeu a orelha de Ertai! Ele cuspiu novamente. Bem feito. Coma todos os insetos, como
se ele fosse o único morto de fome.
Então um dos olhos de Ertai se abriu. Sua pupila se estreitou até um ponto exato,
e suas garras, lentas, não mais, estenderam a mão para agarrar Squee.
O goblin se lançou para trás. Gerrard havia lhe ensinado esse movimento. Houve
muitas vezes que ele teve que se afastar de Gerrard. Desta vez, ele fez isso tão bem e tão
rápido que bateu contra a parede traseira da câmara e bateu com a cabeça em uma barra
– não uma barra sólida, mas uma coisa do tipo alavanca que deslizou seu sulco e trouxe
um grande gemido da máquina da qual fazia parte.
Ertai começou a se levantar sobre a mesa, mas então a luz mudou. Ele ficou mais
e mais brilhante, tão brilhante que quando Squee fechou as pálpebras, ele pôde ver
diretamente através delas e ver Ertai irritando-se como um inseto real desta vez, enquanto
sua carne queimava até os ossos.
Em pânico, Squee se virou e procurou a alavanca, e ele a puxou para baixo.
A luz se apagou. Tudo desligado. Tudo estava preto e parado, exceto Squee, que
estremeceu e choramingou sob a alavanca.
Quando finalmente seus olhos se ajustaram o suficiente para ver novamente,
Squee se levantou. Ele estava naquela sala estranha com aquela mesa estranha, mas em
vez de Ertai havia apenas uma pilha de cinzas em forma de Ertai.
Squee encolheu os ombros. “Serve pra você. Da próxima vez que morrer, deixe
alguns insetos pra Squee.”
121
*****
123
CAPÍTULO 22
A EVISCERAÇÃO DE PHYREXIA
124
“Nove mil anos, destruídos em um momento,” concordou Bo Levar.
Freyalise falou sem compaixão, sem remorso.
“Nove mil anos de monstruosidade vil terminaram em um momento – ficarei feliz
com isso.”
Esse foi o fim de tudo. Sim, Gamalgoth cairia no esquecimento com todo o resto
de Phyrexia.
“Esta será a nossa maior luta,” Bo Levar disse. “Eles tiveram um mês para
trabalhar nos aglomerados de bombas, para perceber que não podem difundi-los ou
removê-los sem acioná-los, e depois fortalecer-se contra o nosso retorno.”
"Sim,” Lorde Windgrace confirmou. "Eu observei. Eles enterraram as bombas sob
uma cúpula de meia milha de concreto, esperando amortecer o impacto e nos manter
afastados."
Freyalise tinha um olhar irônico. “Precisamos apenas esculpir a cúpula e, quando
nossos trabalhos crescerem o suficiente, dispararão o aglomerado".”
Mais uma vez, Lorde Windgrace confirmou. “Sim.”
“Então vamos lá. Estou pronta para fechar este lugar,” Freyalise disse, e
transplanou, desaparecendo do meio deles.
Lorde Windgrace juntou os músculos das pernas, saltou no ar e sumiu também.
O Comodoro Guff enfiou o grande livro em um bolso de colete incrivelmente
pequeno, onde o tomo desapareceu completamente. “Tem evento surpreendente. Vamos
fechar este capítulo.” Ele empurrou a mão mais profundamente no bolso, até o cotovelo
e depois até o ombro. A cabeça seguiu em seguida e o outro ombro. Ele até chutou as
pernas, enfiou-as no bolso e, antes que sua anca caísse no chão, saiu da existência.
“Evento surpreendente,” ecoou Bo Levar, pensando em um navio alto cheio de
barris de licor. Ele sorriu e o seguiu.
Suas roupas elegantemente cortadas pareciam dobrar-se, e ele deslizou nas
rachaduras da realidade.
Embora tivessem saído um de cada vez, os quatro planinautas reapareceram
simultaneamente em um anel flutuante acima da cúpula de concreto. Ela se estendia pelo
coração da cidade, envolvendo muitos edifícios antigos, mas protegendo outros da
explosão inevitável. Mesmo agora pelas ruas abaixo, os Phyrexianos rondavam como
formigas negras e subiam nos telhados até seus ninhos de canhões de raios.
Se livrem desses, Bo Levar enviou mentalmente a seus camaradas, mostrando-lhes
uma imagem mental das armas que carregavam sobre eles. Vou começar com a cúpula.
O pensamento nem estava completado quando Freyalise lançou suas mãos em
direção aos dois ninhos de canhões. Da ponta dos dedos se estenderam espirais de forças
verde que acertaram as estruturas de pedra irrompendo vinhas entrelaçadas. O mato
espinhoso rastejou vingativamente sobre cada centímetro da arma e sua tripulação
perfurando as bestas em milhares de lugares.
Enquanto isso, Lorde Windgrace abriu suas garras diante dele, criando um véu de
magia em sua forma. Energia cintilante afundou em cada vinco, folículo e poro. Ele
agarrou esse manto brilhante, arrancou-o do corpo e jogou-o em um segundo depósito de
armas. Lá, tornou-se um simulacro de si mesmo, construído apenas com energia de mana.
O simulacro pousou, rosnando, na tripulação e começou a despedaça-los. Lorde
125
Windgrace, enquanto isso, lançou o feitiço novamente, preparando outro guerreiro
espectral.
A técnica do Comodoro Guff era ainda mais estranha, mas não menos eficaz. Ele
pulou o céu como uma donzela através de um campo. Onde ela pegava uma cesta de flores
e as arremessava alegremente em sua esteira, o comodoro, em vez disso, pegou outro livro
– um livro maçante, sobrescrito e sem valor – e arrancou páginas aos montes. Ele jogou
as páginas amassadas em rajadas agitadas dentro das armaduras, nas ruas, nas janelas...
Seus folhetos de propaganda eram, em uma palavra, aleatórios. Eles também eram letais.
Criaturas, furiosamente, arrancaram aquelas páginas do ar e espiaram a escrita ali.
Aqueles que vislumbraram uma única palavra adormeceram. Aqueles que vislumbraram
mais morreram no local. Era realmente um livro horrível e, assim como eram esses livros,
suas páginas eram infinitas.
Enquanto os outros três planinautas desabilitavam as armas, Bo Levar voltou sua
atenção para o domo. Ele não tinha intenção de esculpir através de meia milha de cimento.
Sua magia azul de mana sugeria melhores opções. O cimento, especialmente o cimento
novo, continha muita água. Sua mente aproveitou seu potencial, acelerando-o. A água
brilhava e tremia, quebrando os laços da cal que havia sido preparada.
O pico da cúpula começou a correr. O cimento torrado tornou-se líquido
novamente. Bo Levar aprofundou seu foco. Mais água despertou. Riachos cinzentos
viraram cascatas. Dias de trabalho passaram em momentos. Um fosso de lodo se formou
ao redor da cúpula e se espalhou para fora. Ele engoliu os Phyrexianos que corriam para
defender sua cidade. Ele agitava ruas adjacentes. O monte achatou e afundou.
Mais alguns minutos e, o aglomerado de bombas será exposto, Bo Levar, enviou
mentalmente a seus camaradas. Segurem até lá.
Um grito de resposta veio do Comodoro Guff. Um disparo do canhão de raio
saltou de uma fresta oculta, atingiu o livro levantado em sua mão e vaporizou até a última
palavra miserável. Também tirou a mão do comodoro no pulso. Seu rosto brilhava tão
vermelho quanto o colete e, com pura fúria, ele regenerou a mão que faltava. Com esse
novo apêndice, ele estendeu a mão, pegou o monóculo do olho e girou-o na direção da
arma defensiva. um brilho prateado. A pequena lente girou no ar, ampliando-se e
ganhando um brilho argentado. Como se estivesse em linhas invisíveis, o monóculo
deslizou para prender o cano do canhão de raios.
Ele latiu, lançando outro raio. A luz atingiu o disco espelhado e saltou de volta
pela garganta da arma. O mecanismo explodiu e o cano se enrolou como a casca de uma
banana.
Em um ninho de armas adjacente, onde quatro canhões pousavam em uma longa
fila, uma projeção de mana de Lorde Windgrace enviava suas garras pelo pescoço de um
artilheiro Phyrexiano. Carne se soltou de energia. O simulacro pantera saltou para os
controles da arma. Agarrou uma manivela de metal e girou-a com velocidade
sobrenatural. O canhão girou lateralmente. A criatura pantera girou outra roda,
derrubando o cano para mirar diretamente nos outros canhões. Foi preciso apenas o
apertar rápido de um gatilho e raios vermelhos desceram pela linha.
A primeira arma se partiu. Suas extremidades derretidas se afastaram uma da
outra. Raios dispararam através da abertura para acertar a próxima arma. Ele disparou
126
mais duas rodadas antes que seu buraco derretesse. Seu próximo raio explodiu por dentro
e jogou metal fundido em uma ampla esfera.
A última arma girou e mirou canhão rebelde. As equipes Phyrexianas lançaram
uma salva devastadora que pulverizou o canhão do simulacro. Rugindo sua vitória, os
Phyrexianos nunca notaram o contorno fantasmagórico do simulacro, que saltou da arma
destruída para pousar entre eles.
A criatura de mana matou o artilheiro principal primeiro. Ele bateu seu corpo
contra o mecanismo de carga. Um gemido crescente avisou da energia que se formava no
interior e da inevitável explosão em que ninguém restava para desencadear sua liberação.
Em instantes, as garras da pantera garantiram que ninguém permanecesse. Ele foi embora
mesmo quando o dispositivo entrava em estado crítico.
Observando a explosão, Bo Levar sorriu. Sua expressão só se aprofundou quando
a maré de cimento inundou os dois últimos ninhos de armas. Seria consideravelmente
mais fácil concluir essa tarefa sem ter que se preocupar com raios de canhão-
Dragões mecânicos! Freyalise disse mentalmente. Com as palavras, veio uma
imagem – quatro formas negras que se projetavam das montanhas na extremidade do
mundo. As criaturas mecânicas voaram com uma velocidade incrível, superando até os
gritos de guerra de suas bocas abertas. Um para cada um de nós. Ela girou no ar como
dente de leão e saiu flutuando em direção ao ataque do dragão.
Enquanto suas mãos começaram uma dança complexa, sua mente alcançou a mana
sob seus pés flutuantes. Sim, Phyrexia era rica na mana mais negra, mas havia verde aqui
também. As plantas metálicas que proliferavam na primeira esfera participavam de ambas
as cores, uma fusão de antagonistas que não ocorreram em nenhum outro lugar. Se
Yawgmoth poderia fazer o metal crescer, Freyalise também.
Era um feitiço simples, conhecido por todo mago verde novato. Reunindo potentes
mágicas em sua mão, ela soprou uma nuvem de esporos de mana ao vento. Eles caíram
diante dela, enrolando como uma fita no ar e enrolando em torno da primeira serpente de
metal.
Partículas de energia afundaram-se em escamas flexíveis e pele fina, nos músculos
tensos dos cabos abaixo e nos ossos metálicos que eles moviam. O dragão cresceu, partes
se expandindo com força perturbadora. Juntas se uniram. Asas ficaram presas. Os
membros ficaram pesados demais para se sustentar. O dragão mergulhou dos céus com
tanta certeza como se tivesse sido morto completamente. Todo o metal retorcido e as
soldas torturadas, o animal caiu duas vezes antes de atingir um prédio abaixo. Ele quebrou
o teto como se fosse uma casca de ovo e provocou uma explosão.
Lorde Windgrace assumiu o segundo dragão. O guerreiro pantera impulsionou seu
feitiço com o lado negro do espectro. Sua mente convocou um pensamento, um
pensamento simples, mas poderoso, descoberto pelos liches de Urborg. Suas
necromancias capturaram a ideia final que surgia em todas as mentes mortais quando
estavam a deixar de existir, um pensamento que acalmava a carne e despertava a podridão.
Dizia-se que os abutres podiam ouvir esse pensamento e sabiam o momento de começar
a se alimentar. Se Lorde Windgrace permitisse que a ideia se formasse completamente
em sua própria mente, até ele teria sido morto. Em vez disso, ele o criou na mente do
127
dragão mecânico. Seus olhos ficaram escuros. Seus membros se enrolaram em morte. Ele
caiu do céu.
Comodoro Guff enfrentou o terceiro dragão mecânico – e quase morreu. A coisa
desceu sobre ele e soprou um jorro vermelho de chamas. No momento antes de Guff ser
engolido, ele vasculhou seu cérebro por uma forma que seria impermeável ao fogo. Ele
não pensou em nada, apenas no próprio fogo. Ele se lançou sobre ele, consumindo sua
carne – não, não consumindo, pois, sua carne havia se tornado fogo no último momento.
Era um corpo quente, mas confortável. Ele se sentia como um homem nadando em uma
banheira grande. Melhor ainda, ele percebeu que poderia reunir as chamas em seu corpo
e, assim, aumentá-la. Em um momento, o holocausto que expeliu da boca do dragão
assumiu a forma de um gigantesco Comodoro Guff. Ansioso para se tornar ainda maior,
o planinauta enfiou as mãos ardentes na boca do dragão e arrastou-se pela garganta da
serpente. Ele procurou a fonte incandescente de toda aquela chama e, alcançando-a,
expandiu-se enormemente. Ouviu um estalo terrível, e o impetuoso Guff saiu pelas costas
de uma casca de dragão queimada.
O último motor dragão pertencia a Bo Levar, que acabara de lavar todo o cimento.
Ele quase esgotou suas reservas de mana movendo a montanha, mas um truque inteligente
precisava de pouca mana. Olhando do aglomerado de bombas agora exposto embaixo
dele para a figura do dragão mecânico que se lançava, Bo Levar fez uma série de cálculos
mentais. Ele lançou uma convocação simples, a convocação mais simples de todas – para
não trazer nada à existência. Diretamente no caminho do dragão, ele convocou uma
singularidade inviolável, um ponto no espaço que não poderia ser ocupado por nenhum
nada.
O dragão colidiu com o ponto, menor que uma picada de alfinete. Ele atravessou
o cérebro metálico da criatura, dobrou o pescoço como uma corrente mole e arrancou seu
coração mecanicista. O dragão caiu, a singularidade permanecendo intacta por trás dele.
Bo Levar flutuou para um lado, dando espaço para o cadáver despencar no topo do
aglomerado de bombas.
As bombas explodiram. Energia branca floresceu sob os pés de Bo Levar. Isto
formou um conjunto de novas cúpulas. Cada uma expandida exponencialmente. Cada
uma pulverizou tudo devastando o que encontrava. Elas se espalharam com tanta fúria
que, no primeiro momento, engoliram uma milha quadrada. No segundo eles engoliram
nove milhas quadradas. Na terceira, trinta e seis. Então cem. Então duzentos e vinte e
cinco.
Bo Levar e os outros se afastaram das explosões. Eles voaram por Gamalgoth, que
desapareceu para sempre.
As explosões arrasaram as florestas e derreteram a rocha. A nuvem branca e
mortífera ferveu para fora mesmo enquanto afundava na devastação. Uma massa terrestre
do tamanho de um pequeno continente – do tamanho da antiga Argivo – simplesmente se
transformou em nada. Ao redor da borda rachada da explosão, onde a concha da primeira
esfera lutava para se manter unida, pedaços de terra se soltaram e mergulharam na
segunda esfera.
Conseguimos, veio o pensamento de Freyalise em todas as mentes. Nós
destruímos Phyrexia.
128
No momento em que ela disse isso, a nuvem explosiva se deslocou o suficiente
para que eles pudessem ver através da primeira esfera e da segunda para abrir tubos na
terceira e a escuridão fervente na quarta. Phyrexia foi cortada em corte transversal como
um prédio semidemolido.
Não está destruída, Bo Levar replicou. Mas certamente está eviscerada. Levará
era para que Yawgmoth reconstrua-a.
O Comodoro Guff riu internamente e pensou, Ha! Mal sabem esses pobres
bastardos que ele não tem planos de reconstruir.
O quê? Ecoaram os outros três planinautas.
O comodoro olhou chocado para eles. Eu pensei isso em voz alta?
Bo Levar o encarou com um olhar nivelado, uma façanha quando a atmosfera de
Phyrexia diminuía ao seu redor. O que você sabe, Comodoro?
Bufando em seu bigode, o comodoro disse, Sigilo, meu garoto. Eu tenho o hábito
de não discutir eventos futuros com aqueles destinados a vivenciá-los-
Quebre o hábito, Bo Levar interrompeu. Por que Yawgmoth não gostaria de
reconstruir Phyrexia?
Ora, é simples, o comodoro disse, piscando. Dominária será sua nova casa.
Os quatro destruidores de Phyrexia trocaram olhares de coração partido. Bo Levar
falou por todos eles. Então, tudo o que fizemos foi levá-lo irrevogavelmente ao nosso
mundo. Quando o comodoro assentiu sombriamente, Bo Levar disse, Ótimo. Vamos sair
daqui e voltar a Dominária – ou devemos chamá-lo de Nova Phyrexia?
129
CAPÍTULO 23
OS OLHOS DE URZA
130
em terrível glória a bordo da Fortaleza, esgueirou-se por baixo dos deques do Bons
Ventos. Vocês aprenderam a obedecer à loucura de Crovax, mas a loucura dele era apenas
loucura. A loucura de Gerrard é fúria!” Ele empurrou a cabeça de Urza para o alto, e seu
rugido ecoou pela abóbada preta. As estalactites ressoaram, como sinos desenhando uma
tonalidade no ar.
Então veio uma pausa mortal, um silêncio onde deveria haver o som de rostos
beijando o chão. Os guardas ajoelhados não se abaixaram. Eles pareciam prontos para se
levantar e seguir adiante.
As palavras falharam com Gerrard. Ele estava pronto para começar a lutar, matar
o máximo que pudesse antes de morrer.
Palavras não falhavam com Squee. “Aham!” ele começou com uma tosse aguda
que atraiu todos os olhos, incluindo os de Gerrard. Squee posou diante do trono em uma
postura imperiosa que aprendeu com os duendes de Mercádia.
“Eis também Lorde Squee, homem mágico desse trono negro.” Ele jogou as garras
para a frente, imitando o lançamento de feitiços, embora parecesse mais um gato batendo
na bola. “Ha-cha-cha!”
Os olhos de Gerrard brilharam. Os soldados tiveram um vislumbre de sua
verdadeira fúria.
Destemido, Squee avançou diante do trono e cantou, “Assim como Gerrard matou
se mesmo com um Crovax, Squee também matou se mesmo com um Ertai.” Ele assentiu
profundamente. “Sim. E assim como Gerrard tá gritando com vocês por ser uns idiota,
então vocês também tem Squee muito irritado.”
O tenente riu entre dentes de aço inoxidável. “Se você é um mago, mostre-nos o
seu melhor feitiço.”
Squee mexeu no ar novamente e tentou parecer feroz.
Gerrard, sub-repticiamente, chutou-o pelas costas e disse, “Ele não lhe precisa
mostrar um feitiço. Ele matou Ertai. Ele é mais poderoso que Ertai. Desacredite por sua
conta e risco!”
“Eu não acredito,” o tenente disse enquanto se levantava, seu machado de batalha
girando ansiosamente em suas mãos, “mas por sua conta e risco".
Os outros também se levantaram.
Antes que eles pudessem avançar, Squee gritou, “Squee fará seu melhor feitiço.
Sua adorável ajuda – er – Evincar vai balançar sua lâmina, e a cabeça de Squee vai atirar
em seu corpo e cair. Então, ele voltará a colocar a cabeça em pé.”
Sussurros de reverência vazaram dos soldados.
“Um feitiço de ressurreição!”
“Ele vai matar o sapo.”
“Espere, vamos ver isso!”
O olhar de Gerrard tinha um tom suplicante, e ele murmurou, “Pode não
funcionar... com Crovax morto.”
Os olhos de Squee se arregalaram por um momento. Sua sobrancelha franziu em
concentração. Ele se virou para os guerreiros.
“Talvez Squee tente um truque de cartas-”
131
“Levante-se dos mortos,” o tenente exigiu, com o machado brilhando, “ou desça
com eles... a escolha é sua."
Squee olhou para os soldados, considerando. Ele se virou para Gerrard e franziu
os lábios. Ele jogou os braços para os lados, respirou fundo e disse, “Assista de perto.
Squee não tem nada na manga.”
“Logo ele não terá nada no colarinho,” brincou um guerreiro.
Squee engoliu uma vez visivelmente. “Saque a lâmina!”
Gerrard obedeceu, erguendo a alabarda. Ele murmurou, “De novo não.”
“Balance a lâmina!” gritou Squee estridente, fechando os olhos e tapando os
ouvidos com dedos longos e ossudos.
Respirando com dificuldade, Gerrard cerrou os dentes e balançou. A lâmina
gemeu no ar, cortando reta e verdadeira. Ele entrou na parte de trás do pescoço ósseo de
Squee, cortou ossos e músculos e saiu pela frente, rolando a cabeça solta. Não havia como
duvidar do golpe da fonte vermelha, do crânio caído e da trituração quando atingiu o chão.
O corpo foi em seguida em uma queda flácida, quase decepcionada. Gerrard terminou a
sequência, a alabarda apenas chamando a atenção para a cabeça que segurava na outra
mão. Por fim, ele parou o impulso da lâmina perversa. Ela pingou. Ele não queria
pendurá-lo novamente na cintura. Todos os pensamentos foram para os dois pedaços de
carne e a poça de vermelho no chão.
Houve um silêncio. Desta vez, todos os olhos estavam mortos
Squee.
“Nada está acontecendo.” o tenente disse, inutilmente.
“Cale a boca,” aconselhou Gerrard, olhando. “Dê-lhe tempo.”
O tenente estava certo, no entanto. O sangue não fervia e voltava para os vasos
vazios. A carne não se retraiu, como tantas vezes antes.
Piscando, o tenente rosnou, “Nós lhe demos tempo suficiente para os impostores.”
Ele deu um passo à frente. “Você vai desejar ter morrido tão rapidamente quanto seu
mago da corte.”
Gerrard olhou por um momento incrédulo por mais tempo para os restos verdes
de carne que haviam sido seu camarada, seu amigo. Talvez a alabarda tivesse realmente
o matado – uma arma matadora de almas.
O círculo de guerreiros se apertou.
“Para trás!” Gerrard gritou, acenando com a alabarda e brandindo a cabeça de
Urza. “Afastem-se ou morram.”
“Quem vai nos matar?” perguntou o tenente. Ele estava quase ao alcance de
golpear com o machado. “Seu mago?”
Com seriedade mortal, Gerrard rosnou, “Não, eu vou te matar.”
“Sim, Evincar,” o tenente disse, dando um giro que Gerrard teve que pular. “Você
não pode matar todos nós.”
“Mas eu posso,” interrompeu uma nova voz – na verdade, uma voz muito antiga.
Ela não veio de Squee ou Gerrard, mas da cabeça que Gerrard sustentava no alto
– a cabeça de Urza Planinauta. Raios vermelhos rolaram dos olhos de pedras preciosas de
Urza. Eles espirraram sobre o tenente e suas tropas mais próximas, banhando-os em fogo
assassino
132
O sorriso contido do tenente derreteu. Sua pele rachou. Carne espasmódica soltou
do osso. Seu pescoço ardeu e seu crânio caiu em direção ao chão, mas nunca atingiu,
desintegrou-se. Ao seu redor, soldados morreram da mesma maneira.
Quando os olhos de Urza vomitaram seu olhar matador, sua boca se moveu em
instruções roucas. “Limpe a sala,” ele disse a Gerrard, que obedeceu. Mais soldados se
tornaram esqueletos e depois em cinzas à deriva. “Mate todos.”
Foi um comando fácil de obedecer. Logo, a batalha na sala do trono havia
reivindicado outras vítimas de três pontos. Como aqueles que morreram antes, estes não
deixaram vestígios de sua existência – nada além de cinzas.
Pela terceira vez, o silêncio tomou conta da sala do trono. Naquele silêncio,
Gerrard voltou os olhos agora escurecidos de Urza Planinauta para si mesmo e olhou para
suas estranhas facetas negras. “Você está vivo,” ele respirou incrédulo. O rosto antigo
olhou de volta com infinita tristeza. “Sim, mas por pouco.”
Gerrard procurou aqueles olhos mortos. “Se você vive, pode construir um novo
corpo para si.”
“Não posso. Nenhum machado comum poderia ter me matado, pois meu corpo
era apenas uma conveniência para abrigar minha alma..., mas essa alabarda que você
empunha... foi forjada pelo próprio Yawgmoth. Ela separou para sempre a maior parte da
minha alma.”
“Como você vive, afinal?” Gerrard perguntou sem fôlego. A cabeça estremeceu
com alguma angústia interior e disse: “Existe apenas um órgão de planinauta – o cérebro.
Enquanto ele, e essas duas powerstones permanecerem na minha cabeça, eu viverei.”
Gerrard – que havia derrubado dezenas de cruzadores Phyrexianos, havia travado
cinco batalhas diferentes em três planos diferentes, tinha até mesmo esfaqueado
Yawgmoth disfarçado de seu amor – Gerrard corou e desviou o olhar da cabeça.
“Bem, uh, desculpe por cortar sua-” “Se você não tivesse me matado, eu teria
matado você,” Urza respondeu. “É melhor assim. Se eu tivesse vencido, teria me curvado
a serviço de Yawgmoth. Você não apenas escapou dele, mas me afastou o suficiente para
que eu pudesse escapar dele também. Você cortou a parte Phyrexiana de mim. Eu me
tornei como Mishra, mais máquina do que homem. Agora não sou nenhum.”
“Squee nem máquina, nem homem!” interrompeu uma voz estridente. “Por que
você cortou a cabeça dele?”
“Você está vivo!” Gerrard repetiu, mudando seu foco de Urza sem corpo para um
goblin inteiro. O crânio cortado havia crescido novamente. Onde antes havia apenas um
corpo sem vida, agora havia um goblin contorcido e tagarela. Era como se Squee nunca
tivesse sido morto. Gerrard olhou novamente para Urza. Os dois trocaram olhares
espantados. “Como é que você não é morto por uma lâmina que mata almas?”
“Talvez ele não tenha alma,” Urza sussurrou.
“Squee o maior mágico de todos!”
Franzindo a testa, Gerrard levantou a cabeça de Urza. “Aqui está o melhor homem
mágico de todos os tempos, Squee, e veja o que aconteceu com ele.”
Cruzando os braços sobre o peito, Squee assentiu, considerando. “Bem, esse
homem mágico não recuperou o corpo e Squee sim. Squee acha que Yawgmoth não o
quer morto.”
133
“Talvez ele não queira sua companhia. Você está vivo porque é muito irritante
para morrer,” brincou Gerrard.
“Talvez isso funcione para mim também,” interrompeu Urza.
“Squee vivo porque Squee imortal!”
Gerrard riu. “Se irritação é imortalidade, sim, você viverá para sempre. E se você
não pode morrer, vai nos tirar daqui.”
O goblin pareceu subitamente com medo. “Ah, mas Squee morre.”
Um olhar pensativo cruzou o rosto de Urza, e seus olhos de pedras preciosas
pareciam escurecer sombriamente. “Como é morrer, Squee? Eu já conheci todas as outras
coisas em todas as esferas, até o amor de uma mulher.” Gerrard e Squee levantaram as
sobrancelhas com isso. Urza parecia irritado. “Certamente você já ouviu falar de Kayla
bin-Kroog? Autora de História da Guerra dos Irmãos? Ela foi minha esposa.”
Gerrard e Squee encolheram os ombros.
“Eu sabia tudo o que um homem pode saber, mas não sei como é morrer, e farei
isso em breve. Diga-me. O que vem em seguida?”
“Sem seguida?” Era mais do que Squee podia suportar. Ele se curvou rindo. “O
que vem a seguir?”
“Sim, sem seguida,” Urza reiterou, as narinas dilatadas. “Existe uma vida após a
morte, e se sim, como é?”
Squee ficou melancólico. “Sim, tem vida após a morte. É uma grande festa de
insetos.”
Urza grunhiu. “Vou me esforçar para permanecer vivo.”
Um som muito familiar veio no corredor – centenas de pés de botas se
aproximando.
“Boa sorte,” Gerrard sussurrou, desejando de repente ter aproveitado a chance de
escapar. “Urza, você ainda tem aquele olhar matador?”
“Tive isso desde que fui professor de Tolária,” respondeu a cabeça.
“Bom. Squee, você ainda tem essa... irritação imortal?”
“Tudo pronto,” foi a resposta do duende.
“Vamos deixar esses bastardos saberem quem comanda a Fortaleza.” Gerrard
desceu do trono e levantou a cabeça de Urza no ar. Com a outra mão, ele acenou com a
alabarda, convocando Squee.
Eram duas pessoas e meia contra sabe-se lá quantos? Parecia um regimento
inteiro. Algumas dessas concussões não vieram dos pés, mas dos cascos – e coisas piores.
A única esperança para Gerrard e seu grupo infeliz era saltar sobre quem estivesse vindo.
No momento em que as três primeiras figuras apareceram na porta, Gerrard gritou,
“Matem eles!”
Correndo para a frente, ele bateu a cabeça de Urza para cima para lhe dar o melhor
ângulo de ataque possível, mas nenhum raio de morte se espalhou. Com a parte plana da
alabarda, Gerrard empurrou Squee em direção às bestas com cabeça-de-chifre. O goblin
só caiu de joelhos e riu nervosamente. Rosnando, Gerrard balançou sua alabarda diante
dessa nova ameaça. A lâmina da alma voou pelo ar e colidiu com o aço erguido, repelido
por uma mão resoluta e habilidosa. Desequilibrado, Gerrard recuou, caindo de bunda.
“Bela recepção aos seus salvadores,” brincou uma voz familiar e feminina.
134
Gerrard piscou e de repente viu não um monstro com chifres, mas um minotauro,
não um assassino mecanicista, mas um golem de prata, e não um guerreiro de Rath, mas
Sisay. Ela ofegava e estava suada, mas era ela.
“O qu-que vocês estão fazendo aqui?” ele perguntou, quase implorando.
“Afastando os golpes da morte,” Sisay respondeu de ânimo leve. Ela estendeu a mão,
pegando a mão dele e puxando-o para cima. “E salvar um trio com extrema necessidade
de salvar.”
Gerrard respirou, permitindo-se ser puxado em seus braços fortes. “Você pode me
salvar a qualquer momento.”
Urza, cuja cabeça bateu ignominiosamente contra as lâminas nos ombros de Sisay
quando os velhos amigos se abraçaram, disse, "Sim, salve-nos".
“Tahngarth!” Gerrard disse alegremente, apertando a mão de quatro dedos do
minotauro. “Obrigado.”
O minotauro assentiu. “Lembro-me de um resgate semelhante, neste mesmo
local.”
Por fim, Gerrard foi até o enorme homem prateado, Karn, cuja estrutura com
muitas cicatrizes exibia as marcas reveladoras do sangue de Rath e óleo Phyrexiano.
Desatento, Gerrard envolveu a criatura em um abraço agradecido.
Além dos três líderes, chegou um contingente estranho, gente torturada de todas
as espécies – elfo, humano, minotauro, goblin e outras coisas indefinidas. Todos eram
emaciados, esculpidos pela dor.
“Um belo exército de condenados você trouxe,” observou Gerrard.
Sisay sorriu com orgulho. “Os mais condenados. Eles não têm mais nada a perder
e têm contas a acertar.”
O sorriso de Gerrard era deslumbrante. “Meu tipo de gente. Qual é a maneira mais
rápida de sair daqui?”
Sisay encolheu os ombros. “O Bons Ventos aguarda. Qualquer caminho livre de
guardas é o mais rápido.”
Como se a frase tivesse sido convocada, o rugido de soldados veio a outra porta.
Gerrard olhou se desculpando na direção do arco. “Este é um lugar ocupado.”
Sisay sorriu, respondendo não às suas palavras, mas ao anfitrião que apareceu na
porta do outro lado – um certo minotauro, elfo e Vec.
Gerrard abriu bem os braços, sacudindo Urza brutalmente. “Grizzlegom,
Eladamri, Lin Sivvi! Que regresso a casa!”
O minotauro revirou os olhos em direção às estalactites. “Que casa!”
Atrás dos três comandantes, havia outro exército, Metathran, minotauro,
Keldoniano e elfo. Eles eram tão variados quanto a brigada de Sisay, e não menos
sedentos por óleo brilhante. Os dois grupos, guerreiros treinados e prisioneiros torturados,
se fundiram em uma única unidade. Todos eram pessoas que enfrentariam o inferno para
sair deste lugar.
Urza murmurou, “Isso de repente se transformou de tragédia em comédia.”
Ignorem-no, Gerrard apertou vigorosamente as mãos dos comandantes que
chegavam. “A situação é sombria. O que estou dizendo? A situação é alegre. Nós-” ele
135
estimou a reunião- “duzentos que enfrentarão dois mil guerreiros da Fortaleza. Nosso
objetivo – o navio Bons Ventos. Vamos!”
136
CAPÍTULO 24
YAWGMOTH
Eu estou nas alturas da brilhante Halcyon. Meus navios de guerra flutuam como
uma coroa acima da minha cabeça e lançam sombras gigantes no deserto. Eu respiro o ar
fresco. Meus olhos são de pedras preciosas – não como os da criança Urza, modelada
com os golpes ásperos de um cinzel. Meus olhos refletem as facetas onipresentes de uma
cidade. Nenhuma sombra aparece para aqueles olhos, pois eu sou o sol, a lua e a estrela
da manhã da cidade. Eu estou em cada lâmpada. Até minha própria sombra se esconde de
mim, transformada em traidora pela dor das trevas em busca de luz.
Eu sou Yawgmoth. Isso foi há nove mil anos quando estava assim, na figura
humana, nas alturas de Halcyon. Nove mil anos, mas o tempo não significa nada para
mim. Eu vivo em todos os tempos e sem tempo. Eu fiz todas as coisas e nada. Toda ação
que começo é uma que já foi realizada. Toda fome que surge em mim já foi saciada.
Nenhum mero mortal pode se opor a mim. Antes de agirem, eu sei o que eles fizeram.
Antes da batalha, eu sei que triunfei.
Mishra fica na beira arborizada daquela floresta quente, em meio a folhagem
metálica. Ele olha fixamente para o dragão mecânico e deseja tal poder. Sei que ele vem,
e sei que ele deseja vir, e eu sei que ele é meu. Enquanto ele se agacha em um mundo
diferente – meu mundo, minha Phyrexia – vejo sua vida rolar como um tapete comprido,
a urdidura e a trama cheias de filamentos de metal. Eu vejo tudo, e sei que Mishra é meu
para sempre. Mesmo daqui a quatro mil anos, vejo Mishra embaixo dos moedores,
lutando para manter o rosto fora deles e implorando ao irmão por libertação. Eu vejo Urza
ir embora.
Este não é um jogo de azar. Eu conheço todas as regras, todas as exceções. Eu sei
como você pensa que vai ganhar e sei como você vai perder. Conheço a matemática
inexorável do nosso duelo e vejo sua morte.
O mesmo acontece com Mishra. Mesmo quando ele e seu irmão tropeçam de
surpresa nas Cavernas dos Condenados, meus cabos já se arrastam sob sua pele. O mesmo
acontece com Urza, condenado a ser tão Phyrexiano quanto seu irmão. Sim, ele levou
quatro mil anos para fazer isso, não pode aprender de um poder superior, como fez
Mishra. No final, porém, Urza é minha máquina. Eu vejo sua criação, sua elaboração, sua
destruição.
Sim, quando ele e seu irmão adentram a Caverna do Condenados, dois rapazes
entusiasmados buscando aventura, vejo Mishra enredado em mecanismos e Urza com a
cabeça cortada dos ombros.
Eu também vejo o cortador – Gerrard. Ele nasceu por causa de Urza. Ele é adotado
por outra família e os perde para o ódio de Vuel. Ele nega a sentença de morte que seu
criador impõe a ele, luta com raiva, pechincha para revertê-la e finalmente a aceita – e
corta a cabeça do criador. Eu o vejo manter a cabeça erguida em exultação. Eu o vejo se
aproximar da varanda onde estou.
137
Mas quem poderia prever que ele esfaquearia quem ele ama? Há algo errado com
este Gerrard. Ele não vê as imagens bonitas e ouve as frases bonitas. Ele vê a matemática
do jogo e briga enquanto seus caprichos o conduzem. Ele é como eu.
Não importa o que Gerrard fará. Eu já vi o fim dele. Ele morrerá na conflagração
final, quando eu me espalhar pelo mundo. Ele e Urza também.
É o suficiente. Eu sei o que eles fizeram com Phyrexia. Eu sei o que devo fazer
com Dominária.
Contemplem minha garra. Eu a torço dessa forma. É um gesto fácil e simples, que
acena de um pai para seus filhos. Venha até mim.
Eles o fazem. Até a última partícula faz. É a minha vitória sobre Dominária. Eles
se elevam, tão numerosos, tão variados, meus filhos. Não estou falando dos Phyrexianos,
pois eles já vivem. Quero dizer todas as coisas mortas em todo o planeta. Eles são todos
meus e se levantam.
A vida é tão arrogante. Ele acredita que governa o mundo, qualquer mundo. Mas
para cada folha de grama, há um milhão de folhas mortas que se transformaram em
sujeira. A vida é apenas um parasita fraco da morte abrangente. Agora, a morte arrancará
seu manto passivo e se levantará para recuperar o que lhe pertence.
Dominária, você é minha.
*****
Começou em Urborg.
Pântanos, sem fundo na lama, ferviam. As coisas mortas sob as águas subiram. As
coisas tomaram forma. Eles não se reconstituíram entre as árvores que outrora pisavam e
os animais que antes vagavam pelas ilhas. Em vez disso, eles formaram criaturas de
húmus, coisas pesadas e monstruosas, com as costas curvadas, membros e olhos
retorcidos como buracos de cobra. Eles eram monstros de turfa preta e pedaços de osso.
Eles agitaram-se através de águas impenetráveis e abriram caminho até a terra.
Cem mil, cem milhões, eles eram. Pântanos afundaram. Coisas mortíferas que
saiam vagarosamente da sujeira.
Lá, eles encontraram companheiros terrestres. O denso húmus das florestas se
transformou em guerreiros com dentes de pedra. Agulhas de cipreste eriçavam nas costas
das coisas. Lesmas se formaram em lábios gotejantes. Olhos como cogumelos cegos
espiavam dos rostos de podridão. Eles eram enormes, esses animais trôpegos, e
trovejavam em direção aos chamados exércitos da Dominária.
Eles não tiveram que lutar, mas apenas pisar. Flechas élficas apimentaram os
animais sem sucesso. Homens da lama atacaram os elfos e os enterraram vivos. Lodo
aguado corria para os pulmões para a derrota sobrenatural, e marés vermelhas jorraram
de seus lábios moribundos.
Os Metathran não se saíram melhor. Não importava que os guerreiros azuis
sacassem suas lanças de powerstone ou se agarrassem com ferocidade aos homens da
lama que caíam sobre eles. Eles não podiam respirar lama. Enterrados na sujeira viva,
eles sufocaram.
138
Então, o que dizer dos minotauros? Eles balançaram seus machados fúteis. O aço
não conseguiu encontrar carne verdadeira, mas apenas afundava e ficava preso. Os
guerreiros com chifres caíam tão facilmente quanto seus aliados mais fracos, cobertos de
decadência desenfreada.
Até os ents magnigotes – mesmo aqueles guardiões maciços da floresta, com três
mil pés de altura e ferozes – como eles poderiam lutar? Eles tiravam sustento do chão
preto. Agora, ele levantou-se contra eles. Já não podiam sugar água e nutrientes dos
mortos. Para eles, a perda de solo rico era como uma perda de ar. Eles definharam.
Com raízes lentas e troncos trêmulos, homens da lama subiam. Seus pés
arrastaram a vida para fora da seiva. Suas mãos enegreceram as folhas, cegando-as ao sol.
Os filhos de Yawgmoth se levantaram para matar as criaturas que haviam nutrido.
Os mortos não mais se encontrariam em sepulturas fáceis, para serem pilhados
pelos vivos. A morte não estaria mais sujeita. A morte reinaria para sempre.
*****
*****
139
terras. Até os elfos mortos, enterrados com esporos de peste nos seios, se mexeram e se
levantaram do chão envolvente.
Foi aí que o milagre de Eladamri começou. Foi aqui que o milagre da inoculação
Phyrexiana de Orim salvou uma floresta inteira. Agora, para quê?
Os elfos da Lâmina de Aço se afogaram em uma lavagem de lama. Árvores
murchavam sob uma lama negra. O salão memorial de Staprion cedeu e colapsou.
Llanowar, uma vez orgulhoso de sua vitória, definhava em completa derrota. A
morte chegara ao mundo do verde.
*****
Essas margens selvagens de Shiv, esculpidas em arco perfeito como por uma
bússola celeste, também não estavam imunes. Mesmo o esperto Teferi não poderia salvar
toda essa terra de seus violadores.
Centenas de ossos e carne seca tomaram nova forma. Goblins mortos, Viashino e
dragões caíram dos montes de seus restos mortais. Eles se reconstituíram em reflexões
perversas de seus antigos eus. Alguns eram amálgamas grotescas de todos os animais
enterrados ali. Dragões mortos se juntaram aos esqueletos de seus matadores. Até o
primeiro Rhammidarigaaz, sepultado em lava, emergiu. Crivado de buracos, o
monstruoso Primordial sacudiu suas asas antigas e se lançou sobre o tubo de lava que
levava ao mundo exterior.
*****
Tolária – aquele crânio derretido de uma ilha – se agitou com a vida do mal. O
que Urza havia dado por perdido, Yawgmoth recuperou como encontrado.
Nas cavidades derretidas havia ossos, Phyrexianos, humanos e elfos. Eles se
levantaram. Estudiosos e estudantes racharam do chão vítreo que os cobria. Eles se
ergueram, esqueléticos e alienígenas, nas encostas das colinas. Eles encararam com olhos
vazios um mundo que não podiam mais compreender. Isso não importava. Dentro de seus
próprios ossos, eles sentiram a verdade. Eles lutavam por Yawgmoth agora.
Os mais perversos de todos foram os três que se ergueram de túmulos adjacentes
perto do mar. Rayne foi a primeira a surgir, adorável na meia-idade, a esposa que não
envelhecia para um Barrin que não envelhecia. Ele se levantou a seguir, apenas um
espectro. Sua forma física fora destruída. O pior de tudo, porém, era o cadáver de cabelos
loiros que estava ao lado dele. Sua barriga fora devorada pela peste negra, mas seu rosto,
mesmo com as bochechas afundadas, ainda mostrava a beleza que ela carregara na vida:
Hanna.
Yawgmoth havia negado sua verdadeira vida, ele a pendurara como um prêmio
diante de Gerrard, apenas para levá-la embora depois. Agora ela vivia novamente, mesmo
que apenas como um cadáver seco. Ela, o pai e a mãe partiram pela paisagem destruída,
procurando alguém para matar.
140
*****
*****
Está na hora. Eu esperei uma eternidade por você, Rebbec. Você me fechou de
Dominária há noventa séculos. Quando eu me tornei um deus em Phyrexia, você se tornou
uma deusa em, Dominária. Não pense que eu não te reconheço, Géia. Não pense que eu
não sinto seu cheiro e não saiba quem você uma vez fora e a quem você se opôs.
Eu segurei você no meu coração, Rebbec, pensando que você me amava, mas você
fez o ódio parecer amor. Foi um truque que você aprendeu comigo. Agora eu retribuo.
Abro novamente o portal pelo qual joguei Gerrard e a cabeça de Urza. Eu os sigo
como um cachorro retornando ao vômito. Abro o portal e saio.
Você me vê, mente gentil? Você sente o que eu sou? Seus olhos, sem dúvida, me
acharão apenas uma nuvem negra de fuligem. Há muito mais em mim, no entanto. Meu
próprio toque é a morte. Meu próprio perfume é decadência. Minha própria visão é
reanimação. Eu escorro pela sala do trono, meus dedos de fuligem brincando com as
cinzas mortas que estão lá. Minha alma percorre de sala em sala. Um guarda mogg cai
sobre o rosto e lentamente se parece como uma sobremesa derretida; um cozinheiro il-
Kor cai sobre sua chapa fumegante e permite que sua carne frite no lugar; um guerreiro
il-Dal encontra sua armadura transformada em grafite e depois não encontra nada.
Isto é o que eu faço. Eu rolo como o anjo da morte e dizimo exércitos inteiros.
Eles caem aos ossos no chão e se levantam novamente um momento depois.
Oh, é bom governar Dominária. E através do mundo, tomarei posse de você,
minha doce dama, minha Géia, minha Rebbec!
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CAPÍTULO 25
Para qualquer outra raça, esse mar fervente de lava teria sido um inferno. Para a
irmã Dormet e seus companheiros druidas da rocha, era mais como o paraíso.
Eles estavam na maré cheia de rocha derretida. As mãos deles seguravam os
punhos dos martelos, que por sua vez repousavam nas coisas borbulhantes. De suas bocas
tocavam canções que convocavam o poder do mundo e tornavam os anões indestrutíveis.
Por toda parte, o magma se amontoava. Colunas de pedra superaquecida
disparavam para cima. Alguns lambiam o núcleo de rochafluente da Fortaleza. Os
mecanismos inferiores estavam meio derretidos, meio aglomerados com basalto. Novas
estalactites estavam espalhadas por toda a base da fortaleza.
Para cada globo de rocha que atingia a Fortaleza, cem ataques vinham do alto.
Bestas de Rath se amontoavam nas balaustradas e arremessavam o que quer que viesse à
mão –pedaços de parede quebrados, gororobas de masmorra, e até moggs ocasionalmente.
Tudo em cascata em direção ao círculo de anões. Poucos dos ataques atingiram seus alvos.
A maioria dos materiais se reduziam a cinzas quando caíam. Apenas pedaços de
rochafluente caíam para acertar os anões pedregosos. Outros ataques mais determinados
vieram de ninhos de artilharia ao longo do perímetro da Fortaleza. Eles foram projetados
para derrubar tumultos nos viveiros dos moggs e, portanto, consistiam em trincheiras
pesadas de balistas. Dardos dispararam em direção aos anões, atingiram-nos e
ricochetearam como muitas moscas incômodas.
A Irmã Dormet ergueu o olhar, bem a tempo de perceber uma briga com os olhos.
O metal furioso tocou sua esclera e ricocheteou para mergulhar na inundação de magma.
Ela olhou para os conveses cheios da Fortaleza.
Um novo grupo havia chegado. A essa distância, eles pareciam não menos
selvagens do que os monstros de Rath, mas havia algo diferente neles: pele azul,
angularidade élfica, chifres brancos demais e orgulhosos...
A Irmã Dormet sorriu através de sua música.
Eladamri e suas forças de coalizão emergiram das profundezas da Fortaleza. Eles
lutaram por dois lados, cercados por bestas. Os guerreiros mais próximos da balaustrada
acenavam para fora, como se estivessem convocando alguém – ou algo assim.
A druida da rocha levantou ainda mais o olhar. Lá, na escuridão, pairava um
grande olho vermelho. Não, não era um olho, mas o casco de um navio. Ele circulava
lentamente, seguindo em direção ao exército da coalizão.
Eladamri atendeu ao aviso da Irmã Dormet. Afinal, ele e suas tropas escapariam
da conflagração. Os druidas da rocha estavam preparados para morrer e matar qualquer
um na Fortaleza. Saber que seus amigos viveriam deixou Irmã Dormet feliz.
*****
*****
Eles não foram longe. Olhe para eles: salvadores da Dominária? Ratos agitados!
Gerrard Capasheno fica na balaustrada como uma donzela iniciando uma viagem,
acenando com lágrimas nos olhos para seu amado, com a mão segurando nenhum lenço
fleumático, mas a cabeça fleumática de um planinauta.
Lá está Sisay, melhorada pela privação em minhas masmorras. Caramba, como os
músculos dela se mexem enquanto ela gesticula por ajuda. Como eles vão se mexer
quando minha presença os tocar. Eles se transformarão em cordas de juta.
E Karn, o glorioso homem de prata? Eu farei dele um martelo de esferas para
esmagar goblins. Que coisa sem sangue e fingida ele era então. Ele parece ter aprendido
minhas lições – puxando braços dos lugares e cabeças dos pescoços. Eu o ensinei a
amaldiçoar o conforto da paz e mergulhar no êxtase da guerra.
Esse é o poderoso Tahngarth, tão incompleto, tão musculoso, retorcido e meio
acabado? Ele deveria ter me deixado terminar com ele.
Agora vou terminar com todos.
Eu levanto. Meu coração negro ainda está derramando do portal atrás de mim. O
núcleo do meu ser ainda emerge de Phyrexia. Bastante de mim está aqui, no entanto -
143
uma garra é suficiente para matar essas pequenas coisas. O ódio ferve em mim. Ódio e
algo nascido de ódio...
As figuras tomam forma. Eles não são mais moggs ou il-Vec ou il-Dal. Eles têm
peles de sabujos vampiros, sangue preto de mulheres-aranha, presas de demônios, garras
de sacerdotes do tonel. Onde seus olhos deveriam estar são apenas buracos alinhados com
dentes. Nascidos do meu ódio fervente, eles são meus filhos cerebrais e despedaçarão
esses heróis pálidos. Eu sentirei cada barra, cada golpe. Vou provar todas as vitórias,
como ensinei a Tsabo Tavoc a fazer há muito tempo. E quando eles forem abatidos, todos
os últimos, lamberei seus corpos. A derrota deles vai me garantir o mundo.
Eu me levanto e diante de mim se levanta as hordas uivantes do meu ódio.
*****
*****
*****
147
CAPÍTULO 26
O Bons Ventos subia por um espaço preto e incinerador. Embora suas lanternas
emitissem raios de luz, elas se estendiam apenas alguns milhares de metros antes de serem
engolidas pelas sombras. Um cone de pedra fuliginosa os cercava. Uma nuvem
impenetrável jorrava abaixo. Um campo de interrupção espreitava acima.
Gerrard estava parado na balaustrada da proa, a cabeça de Urza erguida diante
dele. “O que você vê, Urza?” ele perguntou urgentemente.
“Eu vejo escuridão,” respondeu ele friamente, “como você.”
A estibordo, veio um rosnado. Tahngarth estava em seus arreios de artilharia,
empurrando os controles de fogo para cima. O cano apontou para a nuvem que ardia. Os
dedos dele apertaram. O canhão falou. Seu brilho agora familiar esfaqueou. Cegante e
escaldante, a coluna de energia mergulhou na nuvem. Atingiu. A luz espirrou na
escuridão, que pareceu borbulhar em torno dela por um momento. O ataque se desfez.
Desapareceu sob o vapor tenebroso.
“"Isso não vai adiantar,” Urza disse calmamente.
Tahngarth olhou para a cabeça. “Adiantou para mim.” Outra carga caiu de sua
arma.
A voz de Urza estava cansada. “A luz natural – não importa quão intensa – não é
páreo para a escuridão sobrenatural. Você não pode matá-lo dessa maneira.”
“Ele?” Gerrard ecoou.
“Aquele é Yawgmoth.”
Gerrard olhou para o poço. Os olhos dele se estreitaram com raiva. “Nós
escapamos do mundo dele, então agora ele está entrando no nosso.” Um sorriso se
espalhou pelos lábios de Gerrard. “Não estou sem truques ainda.”
Ele caminhou até o canhão radiante, enfiando a cabeça de Urza na base do tripé e
amarrando os traços.
No duto de comunicação, ele chamou, “Sisay, leve-nos pelos campos de distorção.
O Bons Ventos, faça a mágica que você fez para nos fazer atravessar antes. Todo mundo
– segurem-se.”
“Vocês ouviram isso, pessoal,” Sisay respondeu. Ela apertou o leme com mais
força. “Agarrem-se em algo.” Ela girou o leme e o puxou.
O Bons Ventos se inclinou e subiu. Da figura de proa de Géia, uma aura cintilante
emergiu. Dançava ao longo da balaustrada e brilhava à medida que avançava. A energia
traçou cada linha do navio, cada dobra de armadura. Chegando à popa, o poder se
expandiu para fora em um invólucro de transplanagem. A energia captada do campo de
distorção. Isso provocou uma distorção e um entrançado de magia, rasgando e
esfarrapando. O Bons Ventos cravou-se no campo. Seus filamentos rachados se
arrastaram como franjas pelo invólucro de transplanagem.
No convés, Gerrard, Tahngarth, Karn e Squee assistiram com admiração e queixo
caído enquanto o navio se movia através da barreira.
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Seus dedos permaneciam nos controles de fogo de seus canhões, embora seus
olhos vagassem pela magia sibilante.
“Gostaria de saber se isso vai parar Yawgmoth,” Gerrard murmurou.
A cabeça de Urza respondeu, “Não conte com isso.”
Como se cruzasse uma onda, o Bons Ventos conduziu sua proa através do campo
de distorção. A luz brilhava sobre eles à frente, uma luz fina e cinza, mas a luz era a
mesma. O Bons Ventos emergiu na garganta pontilhada do fogo do vulcão. Os poucos
canhões de Rath restantes começaram a descarregar neles.
“"Não se preocupe, meu velho,” disse Gerrard, de maneira nada amigável, a Urza.
“"Yawgmoth é apenas um gênio em uma garrafa. Tudo que eu preciso é de uma rolha
grande o suficiente.” Ele acenou com a cabeça em direção ao topo do fosso, onde um
motor de praga flutuava maciçamente dentro de uma armada Phyrexiana. “E aí está.”
Inclinando-se para o duto de comunicação, ele chamou, “Preparem-se. Sisay, subida
total.”
“Sim, Comandante!”
Mesmo enquanto ela puxava o leme, os motores do navio ronronavam. Era um
som gutural e confiante. O navio parecia quase esticar na quilha enquanto se projetava
em direção ao céu. Os canhões de raio eram muito lentos. Ele deslizou entre os dedos
vermelhos.
Gerrard apertou o pedal do canhão e o balançou para frente. “Tahngarth, Karn,
acere aquilo.”
“Sim,” Tahngarth respondeu. A carga pronta em sua arma.
Karn na meia nau seguia o navio acima. “Podemos derrubá-lo, mas como podemos
garantir que ele abra o buraco?”
“É aí que Sisay entra,” Gerrard respondeu, cuspindo no cano da arma e vendo o
material ferver instantaneamente. “Ela vai levar a coisa até lá.” Gerrard fez uma pausa,
esperando ouvir o lamento de incredulidade.
Sisay o surpreendeu. “Tudo bem. Estou ansiosa por uma boa luta.”
O Bons Ventos saltou da foz do vulcão. Ele saltou para o céu. Acima dele, o motor
de praga manchava o sol. Enorme, negro e escabroso, o navio parecia uma nuvem de
tempestade iminente. O Bons Ventos disparou abaixo como um raio prateado. Então veio
o trovão.
Quatro canhões explodiram. Eles tornaram o ar branco. Explosões convergiram
com vontade. Eles golpearam sob chifres eriçados e bateram nas cisternas superfluidas
abaixo. O metal se dissolveu. Ele choveu em meio a uma rajada de líquido verde. Motores
por todo lado da porta crepitaram e falharam. A fumaça soprava das entranhas mortas. O
navio começou a se inclinar. "Leve-nos para estibordo!" Gerrard ordenou. Ele jogou outra
parede branca embaixo da nave.
Seu tiro foi acompanhado por um enxame de raios dos outros canhões. Fogo
quente varreu debaixo da nave, um ângulo mais oblíquo quando o Bons Ventos se
aproximou. No caminho, as vigas incineraram um emaranhado de enormes canos,
rasgaram armaduras explosivas e finalmente alcançaram as cisternas de estibordo. A
energia derramava e líquido verde jorrava. O navio montanhoso virou e começou a
despencar.
149
“É todo seu,” Gerrard gritou para Sisay, enquanto o Bons Ventos se aproximava
do motor de praga.
“De jeito nenhum!” Sisay respondeu em aviso.
Bombardas de mana preto lançaram a morte em forma de teia no ar. A arma de
Tahngarth abriu um buraco na cortina destrutiva, mas não o suficiente. Os outros
artilheiros eram muito lentos e o navio muito rápido. O Bons Ventos entrou na teia da
morte.
Gerrard e Tahngarth se abaixaram, apoiando-se contra o golpe de energia. Ele
nunca veio. Gerrard olhou para cima e viu fios de mana preto arrastando-se pelo invólucro
de transplanagem do navio. "Bom trabalho, Bons Ventos!" ele gritou. Em resposta, o
navio escapou da gosma assassina, subiu um arco apertado e caiu sobre o motor de praga.
Géia liderou a investida, usando o rosto destemido de Hanna. Ela atravessou uma floresta
de espigas. Seu bate-estacas bateu na espinha sólida da nave. A madeira magnigote batia
na armadura de metal. Seus motores engataram. Pela primeira vez desde sua
transformação, o Bond Ventos realmente rugiu. Uma força incrível atirou o navio abaixo,
contra o motor de praga lançando também o motor de praga para baixo.
Gerrard flutuou leve em seu arnês enquanto os navios mergulhavam em direção
ao vulcão. Seu rosto ficou pálido. "Consegue ver o buraco, Sisay?"
"Não consigo,” a capitã respondeu, agarrando-se ao leme, “mas o Bons Ventos
pode. Ele está comandando as coisas agora.”
Gerrard assentiu, olhando através de enormes chifres curvos para placas de
armadura que fervilhavam com Phyrexianos. Ele girou a arma e vaporizou um pelotão
inteiro. Tornaram-se fumaça que voava para cima com velocidade terrível. “Você acha
que ele saberá quando tiver que soltar?”
Mais canhões levaram a morte a mais monstros quando Sisay disse, “Ele saberá.”
Um banco de nuvens varreu ao redor deles, e de repente o horizonte apareceu em
um círculo completo.
“A qualquer momento, Bons Ventos,” Gerrard murmurou para si mesmo. “Não
sejamos exagerados.” O resto da frota girava tão alto que pareciam meras manchas. “A
qualquer momento-”
O Bons Ventos se libertou. A floresta de chifres caiu embaixo dele. Ele nivelou e
se levantou. O motor de praga despencou. Poeira brilhava entre eles no ar agitado. O
navio Phyrexiano atingiu o pico do vulcão. As bordas da superestrutura se abriram em
círculo, empurradas pela borda do poço. O resto do motor caiu no buraco, um mergulho
perfeito.
“Ha!” gritou Gerrard. “Tudo isso para Yawgmoth!”
Embora a cabeça de Urza estivesse virada para Gerrard, ele parecia ver com outros
olhos. “Ele não precisa emergir para ter vencido.”
Gerrard levantou-se, boquiaberto sobre a balaustrada. Ele estava tão concentrado
no motor de praga que não havia notado o mundo ao redor.
Estava totalmente devastado, despojado como se uma explosão de sylex tivesse
percorrido a terra. A camada superficial do solo se fora. Os pântanos haviam afundado
no mar. Os oceanos haviam avançado. Os exércitos da coalizão entrincheirados por toda
a terra foram inundados. A arrebentação agitava seus corpos.
150
“O que aconteceu?” Gerrard se perguntou em voz alta.
Novos exércitos de Phyrexianos ocuparam a terra. Criaturas maciças de preto e
sombrio, monstros escalavam barrancos rochosos e marchavam por barrancos vulcânicos.
Em seu rastro, deixaram tropas de elfos massacradas em massa, ou Keldonianos
enterrados em altos montes de lama ou minotauros atolados em pântanos repentinos.
Mesmo enquanto o Bons Ventos subia ao céu, uma divisão de Metathran lutou
contra os pesados guerreiros. Embora os machados de Metathran esculpissem ferozmente
na frente, embora os membros caíssem das criaturas, seus números nunca pareciam
diminuir. Os exércitos monstruosos avançaram, agarrando Metathran com as próprias
mãos e rasgando-os.
“De onde eles vieram? Como eles ganharam tanto terreno?” Gerrard rosnou.
Urza o encarou devasto. “Você não entende? Eles são a terra, o húmus – todas as
coisas mortas. Yawgmoth os ergueu aqui. Ele os ergueu aqui e por toda Dominária. Ele
anima o próprio solo contra nós.”
“Nosso lugar é lá embaixo,” disse uma voz profunda no ombro de Gerrard. Ele se
virou para ver o comandante Grizzlegom. O minotauro havia subido no convés e andado
a passos largos, como um cabrito montês, até Gerrard. A seu lado, Eladamri e Lin Sivvi.
A decisão brilhava em seus olhos. Grizzlegom falou por todos eles. “Não somos lutadores
do céu. Somos infantaria. Não podemos fazer nada de bom neste navio, mas há muito que
precisa ser feito lá em abaixo. Este é o nosso mundo, Gerrard. Você precisa nos deixar
defendê-lo.”
Por sua vez. Gerrard olhou para cada comandante. Seu rosto estava sombrio, e a
coragem nos olhos deles o fez apertar a mandíbula. "Será suicídio. Quantas tropas você
tem?"
Grizzlegom deu de ombros, como se os números não tivessem sentido. “Um
punhado de minotauros, o mesmo de Metathrans, elfos e Keldon-”
“Um punhado,” Gerrard interrompeu.
“Mais duzentos prisioneiros libertados das masmorras Phyrexianas.”
Gerrard balançou a cabeça, “Por que eles lutariam?”
Grizzlegom usava uma expressão vazia e repetiu as palavras lentamente.
“Prisioneiros... das... masmorras... Phyrexianas.”
Urza disse, “Deixe-os ir, Gerrard. Este navio e sua tripulação têm um destino não
menos perigoso pela frente.”
Gerrard assentiu. “Foi uma honra lutar ao seu lado, meus amigos.”
“Uma honra,” Grizzlegom respondeu, inclinando a cabeça.
Eladamri e Lin Sivvi assentiram.
“Leve-nos para baixo, Sisay” Gerrard chamou pelo duto de comunicação. “Um
local plano e rochoso longe desses homens da lama.”
“Obrigado, comandante,” Grizzlegom disse.
A voz de Gerrard ainda soava em comando. “Tahngarth, Karn, Squee, vamos
pavimentar uma pista de pouso.”
A arma dele acendeu. Uma viga branca esfaqueou. Alcançou através das rochas
amassadas e espirrou sobre um regimento de criaturas de lama. O calor cozinhou e secou
a carne deles. Estilhaços endurecidos se afastaram e caíram no chão. Mais caíram. As
151
bestas ao redor do disparo simplesmente desmoronaram. Aqueles no núcleo explodiram,
banhando o chão com lama quente. Mais quatro armas dispararam. Por todo o tempo,
monstros se tornaram estátuas de cerâmica ou pilhas em ruínas, ou nada.
Uma extrusão de basalto forneceu uma plataforma ampla e elevada. O platô
formou uma silhueta negra nos olhos de Géia quando o navio desceu até ele e diminuiu a
velocidade. Com um movimento suave de acomodação, a nave pousou na pedra.
Assim que o Bons Ventos aterrissou sobre seu mecanismo de pouso, a prancha
deslizou pela amurada e caiu no lugar. Um momento depois, as corajosas forças da
coalizão de Dominária marchavam para a batalha certa e para a destruição certa.
*****
Era bom ter pedras debaixo dos cascos de novo. Era ainda melhor atravessar
aquela rocha, com o machado na mão e os inimigos em grande parte estendendo-se para
o mar.
Grizzlegom havia começado essa investida na prancha inclinada do Bons Ventos.
A extrusão começou inclinada, mas a verdadeira velocidade veio do coração zangado de
Grizzlegom. Ele sentiu isso. Todos eles sentiram: eles travavam a batalha do Apocalipse.
E que estranhos precursores eram esses homens de barro, esses golens. Pareciam
os guerreiros de lama de Mishra, vindos da antiguidade para aterrorizar a posteridade.
Grizzlegom sabia como combater Phyrexianos. Ele entendia a voracidade deles. Mas
quem sabia como combater homens da lama?
Girando o machado de batalha, Grizzlegom inclinou a cabeça e bateu nas coisas.
A carne deles era macia, mas densa, como argila. Os chifres de Grizzlegom atingiram um
par deles. Girando seu peso, ele se levantou e balançou a cabeça. Essa era uma tática letal
que normalmente matava os dois inimigos ao mesmo tempo.
Dessa vez, quando os corpos se dobraram e rasgaram, pedaços soltos de húmus
subiram por todos os ombros, pescoço e focinho de Grizzlegom. Eles se espremeram no
nariz e na boca do minotauro para sufocá-lo. Eles se combinaram para formar dedos
estranguladores em sua garganta. Eles adentraram os olhos e arrastaram-se para os
ouvidos. Abafando sua fúria, Grizzlegom jogou fora o que restava dos cadáveres de barro.
Ele cuspiu os pedaços na boca, sacudiu os pedaços nos olhos e ouvidos, e bufou
magnificamente para se livrar dos tampões nas narinas.
Ao seu redor, os outros minotauros eram igualmente atormentados. Um cuja
cabeça inteira estava envolvida no torso de um homem da lama desabou sob o peso de
mais dois que subiram nele. Ele se esforçou para sair do aglomerado e ofegou uma única
vez antes que mais bestas caíssem sobre ele. Eles o enterraram vivo.
Mesmo enquanto Grizzlegom escapava do material sufocante, seu machado
acertou profundamente a pilha. A lâmina bateu no chifre e Grizzlegom estendeu sua mão
livre. Mais dois cortes abriram o chão o suficiente para que ele pudesse levantar a cabeça
do touro – longe o suficiente para ver que ele já estava morto.
O solo vivo envolvia-se em torno dos cascos de Grizzlegom. Cortando e pisando,
ele lutou por uma crosta dura de solo logo à frente. Se ele e suas tropas pudessem alcançar
esse trecho, eles poderiam sobreviver.
152
Do outro lado, Keldonianos avançavam. De fato, eles espalharam óleo e fogo
diante deles. O calor intenso assou o chão e qualquer homem da lama. As artes do fogo
eram bem conhecidas pelos Keldonianos, pois em seu clima frio, o fogo era vida. Nesse
clima infernal, o mesmo se aplicava.
Os homens da lama arrastaram Grizzlegom pelas jarretes. Ele usou o machado
como uma palheta de alpinista e se libertou. Outro homem da lama caiu de costas. Ele o
arremessou e arranhou o chão assado. Quando ele se levantou, ele puxou outros dois
minotauros para o chão sólido. Lá, os três lutaram e mataram, esperando o resto do
pelotão se juntar a eles.
Se esses monstros surgirem em todos os lugares, pensou Grizzlegom ao cortar a
cabeça de outro golem, nosso mundo está realmente condenado.
*****
153
CAPÍTULO 27
154
Entre as páginas rabiscadas, Bo Levar e Freyalise vislumbraram esboços. Alguns
eram quase irreconhecíveis. Alguns eram terrivelmente claros. Alguns mostravam os
Nove Titãs. Um deles até mostrou Taysir morto. Bo Levar e Freyalise ficaram olhando
boquiabertos enquanto o Comodoro virou para a página que procurava, bem perto do final
do volume.
“Ah! Aqui!” ele cutucou a página aberta. “A morte de Windgrace. Ele é explodido
por dentro por um lich lorde. Que pena isso. E você morre.” Ele apontou para Bo Levar.
“"E você.” Ele apontou para Freyalise. “Mas somente quando Yawgmoth emerge e
domina o mundo.”
“Domina o mundo!” Bo Levar disse. “Você aprovou isso?”
A confusão do comodoro se tornou defensiva. “O que mais? Yawgmoth está certo.
Quem poderia acreditar que Gerrard poderia detê-lo? Já ouviu falar em suspensão da
descrença, meu velho?”
Bo Levar fez uma careta para o amigo de longa data. “Você não pode fazer isso.
Você não pode destruir Dominária-”
“Eu não estou fazendo isso!” Comodoro protestou. “O autor e seus personagens
estão fazendo isso.”
“Uma história que compele a realidade!” Bo Levar disse. “Nós somos os
personagens. Você tem que nos deixar decidir isso. Pela primeira vez, apenas uma vez,
confie nos personagens para encontrar seu próprio caminho.”
O Comodoro disse, “Eu sabia que você diria isso. Está escrito bem aqui-”
Bo Levar socou o peito do Comodoro. Entre dentes cerrados, ele sibilou. “Comece
a apagar dessa passagem para frente. Não há tempo. Você nos liberta para ganhar essa
coisa ou perdê-la – mas para perder nos nossos próprios termos – ou nunca mais falarei
com você.”
“Claro que você não vai. Você estará morto.”
O pirata pegou a túnica de Guff. “Faça!”
“Eu não tenho borracha.”
“Você é um planinauta! Conjure uma!”
“Não,” o Comodoro rosnou. “É integridade artística.”
Perdido por palavras, Bo Levar parecia prestes a estourar um vaso sanguíneo. Ele
sacudiu, o rosto inchado de raiva.
Atrás dele, veio uma voz calma e irônica. “Suponho, então, que você se lembrou
de mover sua biblioteca com segurança para além do Nexo. Seria uma pena para o
Apocalipse Dominariano destruir todos os seus livros.”
Guff murmurou silenciosamente, “Todos... meus... livros...” Uma enorme
borracha apareceu de repente em sua mão. “Porcaria!”
“Ótimo,” Bo Levar disse. “Comece com essa conversa e apague até o fim.
Certifique-se de não perder nada e não pare até terminar. Caso contrário... todos os seus
livros...”
“Cada maldito livro,” ele ecoou, assentindo febrilmente. “Cada maldito livro.”
Com isso, o Comodoro se afastou da conferência no ar.
Embora tivesse desaparecido completamente, os dois planinautas finais sentiram
que ele estava por perto, apagando loucamente. Houve um súbito embaçamento da
155
memória recente e a vertigem da dúvida. O passado tornou-se um pântano afundando. O
futuro tornou-se um céu alto.
Bo Levar sorriu ao sentir seu destino não escrito, momento a momento. Virou-se
para Freyalise, cujo rosto inescrutável não havia mudado nem um pouco e disse, “Bem,
senhora, vamos lá.” Ele se curvou profundamente.
Ela que estava acostumada a flutuar acima do solo respondeu, “Vou ajudar meu
povo. Para onde você vai?”
Bo Levar deu de ombros. “Sou marinheiro. Luto melhor no mar.”
“Mas a batalha está em terra,” ressaltou Freyalise.
“Vou ver o que posso fazer sobre isso,” Bo Levar respondeu enigmaticamente.
Então ele piscou e sumiu.
Freyalise farejou sua aura e disse, “Marinheiros.” No momento seguinte, ela se
foi.
*****
156
Freyalise ainda não sorriu. Isso foi apenas o começo. Sua magia fertilizou cem
milhões de plantas aéreas. Suas longas raízes brancas serpenteavam para baixo. Parecia
que os grandes magnigotes estavam soltando os cabelos. Cada gavinha desceu centenas
ou milhares de pés até atingir as massas rastejantes de lama. Lá, elas se enterraram como
larvas, mergulhando na carne morta para buscar o núcleo vivo e dominar o todo. As fibras
finas engrossaram com sua dieta rica, arrastando a vitalidade do chão. Tão grossas quanto
cordas, grossas como homens, as trepadeiras se soltavam e os golens caíam em flocos de
solo vazio.
Freyalise ainda não sorria. O feitiço dela ainda tinha seu maior efeito.
Partículas douradas de poder atingiram as raízes dos ents magnigotes. Cada
minúscula partícula de luz era como uma estação do sol. Cada partícula de magia era
como um bilhão de grãos de turfa. Cada gota da vontade da dama era como um lençol
d'água a milhares de metros de profundidade. O feitiço despertou os gigantes
adormecidos. As raízes, uma vez paradas na rocha, se moveram. Punhos de fibras de
árvores se abriram em raiva, buscando mãos.
Enquanto lá embaixo, os órgãos dos membros da árvore ganharam nova vida, o
mesmo milagre começou acima. Partículas brilhantes de magia afundaram nos estomas
das últimas folhas e permearam sua carne. Magia irresistível percorreu a rede de veias.
De folha a graveto e de graveto a ramo e de ramo a galho e de galho a tronco, a vitalidade
se espalhava. As cabeças das grandes árvores tremiam. Galhos quebrados se fundiam.
Galhos despidos brotavam e floresciam. Onde antes a ruína havia governado, brotavam
brotos verdes para agarrar o sol e puxar seu poder para os ents.
A onda de rejuvenescimento desceu das copas das árvores e subiu das raízes.
Golens de lama caíam na chuva cinzenta ao redor. Os grandes defensores de Yavimaya
ergueram-se dos pântanos que os reivindicaram e avançaram por terras demoníacas.
Freyalise sorriu. Então ela se foi, transplanando para outro bosque moribundo.
*****
Era uma cena estranha, mas desde que Bo Levar havia se envolvido com Urza
Planinauta, ele se acostumara a cenas estranhas.
Metathrans lutavam abaixo, ombros azuis ondulando sob a lama aderente.
Pareciam criaturas apanhadas na areia movediça, exceto que essa terra devoradora estava
viva e subira uma montanha vulcânica para matar toda uma divisão. Enquanto mil
Metathrans se debatiam no meio de homens do barro, um Metathran estava em rígida
atenção no topo de um afloramento rochoso.
Bo Levar estava ao seu lado, pois havia conjurado o feitiço que controlava tão
completamente o guerreiro. O capitão do mar sorriu sombriamente, balançando a cabeça
com a última tentativa do Metathran de se libertar.
“Relaxe. Estou do seu lado.”
“Então por que impedir meu retorno à batalha?” o Metathran ofegou.
Bo Levar piscou, e sua expressão mostrou que de repente percebeu a simplicidade
de seu cativo. “Porque se eu deixasse você se juntar a eles, você morreria com eles. Quero
salvar todos vocês-”
157
“Yawgmoth!” deixou escapar o Metathran. “É o que Yawgmoth diria.”
“Yawgmoth?” Bo Levar bateu no uniforme do capitão. “Você acha que
Yawgmoth se veste tão bem assim? Você acha que Yawgmoth se veste mesmo? Escute,
eu só preciso saber uma coisa – vocês podem sobreviver à água? Muita água? Uma
inundação?”
“Nunca revele uma fraqueza,” o Metathran recitou.
Bo Levar não pôde deixar de rir. Ele olhou para o céu vazio e suspirou, “Posso
obter ajuda aqui?” Voltando ao seu cativo, Bo Levar disse, “Olha, como você tem pele
azul, presumo que você possa funcionar na água – mas preciso saber porque quero salvar
vocês e matar essas coisas de barro. Oh, por que estou perdendo tempo?” Bo Levar fez
um sinal no ar, e a energia mágica flutuou de seus dedos para o olhar de seu cativo.
Uma luz de crença brilhou nos olhos do Metathran. "Parte do nosso design vem
do sangue de dragões azuis." Ele ergueu os olhos em direção ao símbolo tatuado na testa.
“Este é o nome do dragão azul sacrificado para nos trazer à existência. É nos dito que
sempre podemos ir para o mar para escapar de uma batalha fútil e emergir novamente
para lutar em outro lugar.”
Bo Levar assentiu e deu um tapa no ombro do Metathran. “Viu? Isso não foi tão
difícil. Tudo que você precisava era de um pouco de coerção.” Mal sua mão deixou o
ombro do guerreiro, Bo Levar saiu da existência.
Ele reapareceu em um lugar próximo – uma profundidade do oceano a milhas de
distância. Perto de Urborg, os atóis mantinham o mar a poucos metros, mas aqui a água
estava a uma milha de profundidade. Aqui, Bo Levar apareceu a meia milha abaixo.
Estava escuro e frio, e a pressão teria matado instantaneamente um mortal. Estes
eram os mares de Bo Levar. Ele havia aprendido a confiar neles. Desde Argoth – desde
que o mortal capitão Crucias havia atravessado aquela tempestade horrível e ofuscante e
se tornado o planinauta Bo Levar – ele nunca mais desconfiava do mar. Agora Bo Levar
estendeu suas mãos, seu poder, para agarrar uma milha cúbica de oceano. Era vinte mil
toneladas de água – mais do que poderia ser transportado pelas armadas combinadas do
mundo, e ainda assim uma carga gerenciável para um único planinauta. Ele pegou a água.
Ela o acolheu, pois todas as coisas banais acolhem o toque avivador do divino. Bo Levar
transplanou de volta para a encosta em combate.
Uma legião de Metathrans lutava contra doze legiões de homens da lama lá. De
repente, porém, a batalha estava embaixo da água. Metathrans vicejavam na água – como
ele acabara de aprender – enquanto os golens de lama se transformavam em lodo e depois
em nada. O vasto ventre de água ficou ali por um momento na encosta vulcânica, sólido
e transparente como um pedaço de gelatina. Então a gravidade cobrou seu preço. Os
cantos e bordas do cubo se transformaram em água branca. As alturas dele caíam e se
curvavam em grandes ondas. Os lados incharam e quebraram na encosta. A vasta barriga
da onda permaneceu intacta e, parecendo grávida de formas azuis em disparada, rolando
suavemente em direção ao mar.
Bo Levar estava dentro da metade inferior. Ele permitiu que seu corpo físico
permanecesse, rolasse com a onda que buscava seu nível. Ao seu redor, golens de lama
se enrolavam em tiras de seda e as alegres formas de Metathrans nadavam. Mesmo
158
quando Bo Levar e seus benfeitores chegaram ao mar, ele sabia que levaria esse santuário
para mais pessoas do povo azul.
*****
*****
Loucamente, ele apagou. Loucamente, sim, pois que editor apaga com tanto fervor
as palavras que um autor escreveu? Qual editor permite que seu autor escreva cem mil
palavras apenas para apagar dez mil delas? Apenas um editor desesperado para acertar a
história.
“Porcaria.”
O Comodoro Guff agachou-se sobre um nódulo de basalto e aplicou febrilmente
a borracha maciça na história do Apocalipse Dominariano. Houve uma frase sobre a
morte de Eladamri. Logo depois, Lin Sivvi não morreria mais, por todo o caminho ela
fora emparelhada com ele como se fosse a perna dele. E o que dizer deste parágrafo em
que Bo Levar acende um charuto no pântano e é feito em pedacinhos? Guff nem apagou
159
aquele pedaço, mas amassou a página inteira e a jogou na lava que escorria de uma
rachadura próxima. O que mais teria que ir para essa maldita trilogia funcionar? E o
material jurídico, a dedicação e os reconhecimentos? Afinal, quem dá o excremento de
uma cabra para o editor de um épico? O Comodoro Guff jogou essas páginas de lado e as
viu pegar fogo. Ele jogou o teaser também. De qualquer maneira, havia jogado fora a
destruição da Dominaria, algo que estava completamente indeciso neste momento.
O Comodoro Guff desviou o rosto do livro devastado na mão e olhou para o céu.
“Isso nunca teria acontecido quando eu estava encarregado da continuidade.”
Claro, ele nunca fora viciado em finais felizes. Você traz as Nove Esferas de
Phyrexia para atacar a única esfera da Dominaria e quer um final feliz? Que idiota pensou
nisso? Ainda assim, como o Comodoro poderia discutir com Bo Levar? Final ruim, e ele
perdeu não apenas todos os livros escritos sobre Dominária, mas todos os livros que
possam ser escritos sobre ela – incluindo alguns best-sellers de sua autoria. Então, com a
borracha e com a desgraça.
“Eu não posso matar Sisay, afinal,” murmurou o Comodoro para si mesmo. Em
um consolo leve, ele murmurou, “Ela sempre foi mais legal que Gerrard de qualquer
maneira.” Ele balançou sua cabeça. “Por que não posso matar Squee, no entanto? O
mundo realmente depende desse cocô?” Apesar de suas palavras tristes, ele esfregou a
borracha em páginas de material.
A cada golpe, Guff removia milhares de palavras do futuro, deixando aberto para
os personagens decidirem por si mesmos. Era uma experiência horripilante, mas ele
suportaria isso para salvar sua biblioteca.
Sua mão parou apenas quando ele alcançou o destino de Yawgmoth. No rascunho
original, Yawgmoth havia conquistado tudo. Agora, quem sabe? Com duas grandes
tentativas, Comodoro Guff removeu as passagens.
Lágrimas rolaram dos olhos do Comodoro enquanto desejava um editor que
pudesse salvar o mundo.
Foi seu último pensamento. A nuvem de morte negra o engoliu e o obliterou.
*****
Não havia mais nada para detê-lo. Sem portais, sem lava, sem montanhas, sem
heróis. Nenhum plugue poderia segurá-lo. O motor da praga preso na boca da caldeira
cedeu e caiu. Yawgmoth se levantou.
Ele rolou pelos céus. Yawgmoth se espalhou pelo mundo com o fervente furor de
uma erupção vulcânica. Negra e imensa, sua alma rolou para fora da coroa da montanha
da Fortaleza. Seu toque simples liquefez a face ocidental do vulcão, transformando pedra
em cinza. Ele eliminou mil Metathran naquele primeiro momento e quinhentos
minotauros. No segundo momento, tudo, desde o cone até o mar, foi arrancado da vida.
Nenhum guerreiro, nenhum animal, nenhuma planta, nenhum micróbio sobreviveu. Ele
rolou sobre o mar, e a sombra que ele lançou matou tritões às centenas e peixes aos
milhares e plâncton aos milhões.
160
Esses exércitos rivais não significavam nada. Yawgmoth os enxugaria como
figuras desenhadas em giz. Tudo o que restava era a escuridão sobre a qual eles haviam
sido escritos, a escuridão de lorde Yawgmoth.
Em um mero momento, ele se espalhou por um quilômetro quadrado. Em duas,
ele havia engolido quatro milhas quadradas, depois dezesseis, depois quatrocentas e
cinquenta e seis e depois duzentos e sete mil novecentos e trinta e seis milhas quadradas.
Em poucos minutos, Yawgmoth abrangeria o mundo.
Como ele tomou o céu, seus mortos tomaram as terras. Logo, ninguém resistiria a
ele. O que mais se pode esperar quando os deuses batalham?
161
CAPÍTULO 28
DIVERSAS SALVAÇÕES
O Bons Ventos cortou o céu. Ele parecia um anjo vingador. Dele brilhava uma
glória mortal que golpeava a escuridão. Ele era um segundo sol. Onde ele brilhava, as
criaturas das sombras derretiam. Exércitos de monstros mortais não podiam suportar sua
presença terrível. Ninguém poderia sobreviver a ele.
Até Yawgmoth. A nuvem sufocante correu com uma velocidade estranha, mais
rápida que o Bons Ventos. Ele se espalhou em todas as direções, tinta através da água,
transformando tudo em preto. Chegou ao céu para derrubar o sol, e à terra para retirar o
coração do mundo.
O brilho do Bons Ventos não era nada perto da escuridão de Yawgmoth. Sombras
mortas pelo grande navio foram ressuscitadas pelo Senhor das Sombras. Exércitos salvos
pelo Bons Ventos foram destruídos pela Morte Encarnada. Tudo o que estava no caminho
de Yawgmoth morreu. A geometria torta do cone vulcânico abrigara algumas das tropas,
mas Yawgmoth logo as teria também, logo teria o mundo inteiro.
“Aquele velho bastardo,” Gerrard rosnou. “Aquele desgraçado!” No duto de
comunicação, ele gritou, “Sisay, você está pronta para um último confronto?”
“Eu já tenho as coordenadas definidas,” ela respondeu. “No coração dessa coisa,
certo?”
Os dentes de Gerrard brilharam na luz fraca do mundo. “Aí está minha capitã!”
“Não vai dar certo,” Urza interrompeu. “Você não pode matá-lo voando nas
nuvens e atirando.”
“É o que diz a cabeça decapitada,” Gerrard disse. “Equipe de comando, vamos ver
um show de mãos. Quem quer explodir o coração desse monstro?” Gerrard olhou por
cima do ombro.
O braço de Tahngarth ergueu-se no ar. Karn levantou os dois braços prateados do
canhão que ele possuía. Sisay brandiu um punho acima do leme, e Orim ficou na escotilha
do convés principal, dando o sinal alto. Mesmo Squee, fora da vista além do leme, deixou
seus desejos claros.
“Squee mata Yawgie por você!”
A testa de Gerrard se inclinou. “Urza, você não votou.”
“Sempre com você, são piadas. Sempre arrogante, diabos que se lasquem, voando
nas calças.”
“E quem me fez? Quem criou a arrogância em mim? E, deixe-me dizer uma coisa,
Urza Planinauta – o demônio se importa, e o assento da minha calça e algumas piadas são
tudo o que tenho para lutar contra ele. Aliás, eles são tudo o que você tem para lutar com
ele. Então, se eu fosse você, calaria a boca e aproveitaria o passeio. Temos um deus para
matar.”
O Bons Ventos voou sob seus pés, caindo na direção da escuridão que se
espalhava. O epicentro da nuvem permaneceu no pico do vulcão. Sisay havia treinado o
leme naquele local e o navio respondeu ansiosamente. Os motores rugiram, acrescentando
162
seu impulso à atração inexorável da Dominária. Na figura de proa de Géia, estendia-se
um invólucro diáfano que os manteria a salvo da corrupção de Yawgmoth.
Gerrard apertou o pedal sob o canhão e ouviu enquanto zumbia com uma energia
branca e quente. Do outro lado da previsão, os cascos de Tahngarth despertaram o mesmo
fogo em sua arma. Karn na meia nau, parecendo apenas outro módulo da arma maciça
que ele empunhava, carregou sua arma também.
Na popa, o canhão de Squee estava tão bem preparado que chorava traços de
energia branca em seu rastro. Esses seriam os tiros mais importantes que algum deles já
deu. Esses talvez fossem os últimos tiros também.
“Se você vir algo que pareça com um coração, uma aorta, coluna vertebral ou
cérebro, atire,” Gerrard aconselhou.
Tahngarth respondeu, “Estou atirando em tudo e qualquer coisa.”
“Squee vai atirar da bunda. É o que Squee sempre dispara.”
Gerrard riu. “Tudo bem, agora. Urza diz que não podemos fazer isso. Vamos
provar que ele está errado. Vamos matar dois deuses com uma pedra só.”
O Bons Ventos mergulhou na nuvem negra. O mundo desapareceu. Além do
envelope, havia apenas Yawgmoth. Não era uma escuridão simples. Olhando para aquela
nuvem, a tripulação não viu o vazio, mas a somatório de todos os horrores. Escravidão,
estupro, vivissecção, canibalismo, praga, fome, assassinato, ódio, suicídio, infanticídio,
genocídio... extinção. Dentro dessa nuvem, os impulsos mais vis e horríveis do multiverso
arranhavam.
“Vamos mostrar a esse bastardo a luz,” Gerrard disse.
A mão dele apertou os controles de fogo do canhão. Ele arrotou energia branca e
quente. O raio saltou através do invólucro do Bons Ventos e rugiu para o coração do mal.
Rasgou carne e agonias pingando. Ele rasgou através da repressão acumulada e
iniquidades monstruosas. O ataque ferveu o ser de Yawgmoth.
Atrás de Gerrard, uma explosão idêntica de Tahngarth esfaqueou. Raios de
energia perfuravam os males fétidos, cortando-os. O raio atingiu profundamente a nuvem
e abriu um caminho claro.
Enquanto Karn disparava alto, Squee disparava baixo. O goblin ficou entre em
seus arreios, sua arma bateu o mais longe possível e derramou um rio de luz. Ele parecia
um homem segurando um farol e olhando através de uma tempestade demoníaca.
A luz física não pode penetrar nas trevas metafísicas.
Pior, o invólucro do Bons Ventos diminuiu. Ele podia resistir ao vácuo, contra o
caos rodopiante entre mundos, mas não era páreo para o mal concentrado de Yawgmoth.
“Pare, Sisay!” Gerrard chamou. “Puxe para cima!”
“Estou,” ela respondeu, “se houver um fim para esta escuridão.”
O invólucro caiu, perigosamente perto do convés. O Bons Ventos estremeceu no
punho fechado da nuvem. Com um espasmo de pânico, ele se libertou e se levantou. A
escuridão fuliginosa caiu sob ele. O sol brilhou novamente em sua armadura. O Bons
Ventos saltou ansiosamente no céu.
Gerrard deixou seu canhão cair. Ele se recostou nos arreios e cruzou os braços
sobre o peito. “Então é isso. Não podemos parar Yawgmoth.”
“Você pode, mas não dessa maneira,” Urza respondeu.
163
Enquanto o Bons Ventos pairava sobre o mundo da meia-noite, Gerrard encarava
os olhos esquisitos do planinauta. “Tudo bem, então. Qual é o seu plano, Planinauta?
Como paramos Yawgmoth?”
Ainda enfiada em um canto do suporte de canhão, a cabeça de Urza ganhou um
sorriso severo. “Você sabe o que é o Bons Ventos, Gerrard?”
Gerrard bufou. “Claro.”
"Ele é mais do que uma nau voadora, mais do que uma parte do seu Legado. Ele
é uma coleção de mundos. Sua powerstone carrega dentro de si o Reino de Serra,
absorvido para fortalecê-la. Também possui as almas de inúmeros anjos, de inúmeros
santos. Cada uma delas é um universo em si mesma, mas mais do que isso, o Bons Ventos
é alimentado pelos Ossos de Ramos – coração, crânio, mão e assim por diante. Essas
powerstones mantêm a essência de um antigo dragão mecânico um lacaio que eu
reprogramei para a guerra em Argoth. O navio possui a Bolha Juju e o Modelador de Céu,
cada repositório de deuses. Até seu casco é esculpido no coração da árvore mais antiga
de Yavimaya e mantém parte da essência de Géia. "
“O que isso importa?” Perguntou Gerrard. O sorriso de Urza apenas se
aprofundou. “Você não vê? Este navio abrange mundos sobre mundos. Todos estão
condensados nele, para lutar contra Yawgmoth. Você também, rapaz. Você é como o
Bons Ventos. Assim como eu o carreguei com divindades de todo o Nexo, assim eu
carreguei você com as melhores almas, as melhores mentes, os melhores corpos de nosso
tempo. Você é tanto um ser conglomerado quanto o Bons Ventos. Como ele é composto
de cem mundos, você é composto de mil almas. Eu precisava de um navio, de um herói,
para destruir Yawgmoth para sempre.”
Gerrard acenou com as mãos, impaciente. “Tudo bem. Guarde sua teologia para
alguém que se importa. Como destruímos Yawgmoth?”
Tristeza veio ao rosto de Urza. “Se o Bons Ventos carrega cem mundos nele, então
apenas quebrando-o, esses reinos se tornarão realidade. Se Gerrard tiver mil heróis nele,
então apenas quebrando-o, esses heróis se juntarão à batalha.” Gerrard ficou boquiaberto
com a cabeça decepada, incapaz de compreender. “Sacrifique o navio,” disse Urza,
“sacrifique-se, e Yawgmoth será destruído.”
Sobrancelhas franzidas, Gerrard disse, “Este é o seu plano? Você quer trazer o
Reino de Serra para cá em Urborg? Você quer despertar cem mundos neste lado do globo
para ver o que acontece?"”
“Sim,” Urza admitiu. “A devastação será incrível. Todas as criaturas, toda flora
deste hemisfério será destruída, mas o outro hemisfério sobreviverá para repovoar-”
“Você quer me matar e trazer do meu cadáver mil heróis para defender o mundo?
Você quer criar um exército de lendas para limpar a terra?”
“Sim,” repetiu Urza. “O hemisfério que permanecerá precisará ser purificado. Os
exércitos Phyrexianos se aglomeraram em todos os lugares. Os heróis latentes em seu
sangue, com seu sacrifício, se tornarão estrondosos. Apenas se entregue, Gerrard, e
entregue sua nave... e na conflagração final, Yawgmoth será destruído.”
O jovem comandante de barba negra parou para pensar. O Bons Ventos e sua
tripulação eram tudo para ele. Eles significavam mais do que sua própria vida, o que
também seria perdido se ele ouvisse Urza. Ainda assim, quanto eles valiam na balança?
164
Um navio contra um mundo. Como Gerrard poderia argumentar? Se ele foi o resultado
de mil anos de testes genéticos, se ele era a soma de um milênio de heróis, como ele
poderia recusar?
“Isso é bobagem, Gerrard, e você sabe disso,” Sisay interrompeu do duto de
comunicação. “É apenas mais uma explosão de sylex. Depois de quatro milênios, tudo o
que ele conseguiu pensar foi outra explosão de sylex. Não dê ouvidos a ele.”
Gerrard abriu as mãos em sinal de rendição. “Ele me criou. Quem mais devo
ouvir?”
“Você mesmo,” Sisay disse. “Se você é a soma de mil heróis, tem um julgamento
melhor do que Urza Planinauta já teve. Não dê ouvidos a ele. Você decide como salvar
este mundo.”
Gerrard olhou para as mãos, fortes e calejadas por anos de batalha. Ultimamente,
aquelas mãos estavam sujas, como se ele estivesse cavando terra. “Eu gostaria de poder
lavar isso.”
Do duto de comunicação veio a voz calma de Orim. “Você não pode lavar essa
nuvem, Gerrard. Ninguém poderia. Se a mágica da água de Cho-Arrim pudesse funcionar,
eu estaria fazendo uma dança da chuva, mas-”
“Mana branca,” Gerrard murmurou sem querer. "Mana branca poderia lavar
Yawgmoth, poderia matá-lo.”
Tahngarth rosnou. “Os Phyrexianos já colheram Benália. Zhalfir se foi. Eles
atacaram primeiro os locais de mana branca. Nunca poderíamos reunir o suficiente para
fazer a diferença.”
“Mas há outro aliado aqui,” Karn interrompeu. Quando Gerrard virou-se para ele,
o golem de prata apontou um dedo para o céu. “A Lua Nula. Está cheia de mana branca.”
“O que?” Perguntou Gerrard.
“Nos tempos antigos, os Thran assumiram a base de transmissão esférica
destinada a controlar os motores de artefatos. Eles mataram a tripulação do orbe,
plantaram cargas de levitação e enviaram a Lua Nula aos céus. Lá, ela permaneceu até
hoje, reunindo mana branca de Dominária, enfraquecendo o mundo contra essa invasão
vindoura. Mas podemos fortalecer o mundo novamente. Podemos colher o mana da lua.”
Urza rosnou, “Como você sabe disso? Nem mesmo eu sei disso.”
“O Bons Ventos me disse. Foi revelado no Livro de Thran.”
Um sorriso se espalhou pelo rosto de Gerrard, e seus dentes brilhavam perolados.
“Há mana branca pura o suficiente nessa coisa para envenenar Yawgmoth?”
“Há pelo menos nove mil anos lá,” Karn disse.
Urza interrompeu. “Você nunca poderia derrubar a Lua Nula da órbita. É muito
grande.”
“Não precisamos derrubá-la da órbita,” Gerrard respondeu. “Nós apenas temos
que quebrá-la como um ovo e guiar a gema para baixo.”
A carne ao redor dos olhos de Urza ficou vermelha. “Como uma nave pode guiar
uma cascata de centenas de quilômetros de poder?”
“Fácil,” veio a resposta de Karn. “O Bons Ventos é um funil de energia. O que
derrama em suas entradas, o que reluz através de seus arranjos de powerstones, o que rola
de seus canhões, tudo isso é energia canalizada.”
165
“Vocês vão se matar fazendo isso,” Urza disse em seu protesto final.
“Essa é a única coisa que nossos planos têm em comum,” Gerrard disse. “Capitã
Sisay, prepare uma transplanagem para a Lua Nula. Traga-nos a uma velocidade máxima
de uma milha acima do lado escuro.”
“Sim, comandante,” Sisay disse. Ela girou o leme e puxou-o em sua direção.
O Bons Ventos curvou-se em uma subida íngreme. Ele acelerou na subida.
A tripulação se apegou aos seus postos. Em todas balaustradas, os nós dos dedos
ficaram brancos. Os lábios se afastaram dos dentes e os olhos se arregalaram.
Eles deixaram para trás a mancha negra de Yawgmoth, espalhando-se pelo
mundo. Eles entraram em espaços cerúleo.
“Segurem-se!” Gerrard chamou através do duto de comunicação.
Tempo e distância se estendiam absurdamente. Se Gerrard tivesse dito mais, as
palavras nunca teriam atravessado a lacuna, apenas teriam voltado aos dentes e ficariam
entrelaçadas ali. Gerrard apertou com força o punho já brutal do cabo do canhão. Ele
apoiou os pés nos pedais e bombeava loucamente.
A proa, com sua figura de proa de Géia, cravou-se no tecido do céu. O Bons Ventos
transplanou. Espaços empíreas se desfizeram, deixando-o nas Eternidades Cegas. Além
do invólucro de transplanagem, as energias violentas do multiverso se enroscaram,
giraram e estalaram. Dentro desse invólucro, a tripulação se escorou.
Tão rapidamente como o mundo do caos emergiu, assim desapareceu, deixando
apenas escuridão eterna, estrelas radiantes e uma enorme lua cinza. O enorme orbe
inchou.
“Curso de colisão,” Sisay anunciou.
“Artilheiros, esculpir um corredor!” Gerrard ordenou.
Uma longa explosão descascou de sua arma. Passou pelo invólucro de
transplanagem, atravessou o espaço aberto e impactou a superestrutura da lua. As vigas
derretiam. Placas se dobravam e dissolviam. Grades desapareciam. A salva cortou uma
longa faixa através do lado da grande esfera. Mais fogo, de Tahngarth a estibordo e Karn
na linha central, jorrou sobre a esfera. Ele esculpiu mais buracos. As marcas de explosão
se fundiram. Grandes pedaços de metal afundaram no branco interior. Ainda assim, não
foi suficiente. Uma seção longa e grossa de metal projetava-se diretamente diante de
Gerrard. Ele balançou o canhão na direção dele, mas o navio se fechou rápido demais.
Em segundos, eles impactaram.
Thran metal não era nada para a cabeça da deusa-endurecida de Géia. Ela bateu
na seção, rachou e mergulhou na brancura radiante dentro.
E irradiava – milênios de mana branca. Não era opaco como leite ou tinta, mas
luminoso como fogo. A radiação rolou para além do invólucro de transplanagem, brilhava
na armadura do navio, cobiçava o fogo dos pós-combustores. Em sua busca imparável, a
nave atravessou um antigo canal de energia. As metades cortadas do cabo se separaram e
caíram. Nas linhas fantasmagóricas apareceram caminhos antigos, redes de nós de reparo
e um núcleo de comando no centro de tudo.
“Mantenha seu curso,” Gerrard ordenou, enquanto olhava de soslaio para o núcleo
de comando.
166
O orbe pesado cresceu até encher toda a frente do Bons Ventos. Sem desacelerar,
a nave atingiu o nódulo. Ele rachou. Cadeiras de comando caídas e múmias preservadas
por mana – os corpos dos antigos controladores Thran. Eles haviam montado esse grande
orbe além do alcance do ar, mas mesmo morrendo, suas formas foram preservadas. Agora,
eles tremulavam atrás do Bons Ventos, como os anjos de Serra haviam feito.
“Tire-nos daqui capitã,” Gerrard disse. “Leve-nos de volta ao nosso mundo.”
Através da luz arrebatadora, o Bons Ventos mergulhou. O poder derramou através
dela, recozendo seus metais, alinhando seus cristais, purificando seus humores. A grande
nave canalizou esse poder.
A luz irrompeu dos canhões avançados. Os raios subiram juntos em uma
constelação devastadora. Eles perfuraram a casca externa da Lua Nula. Mais cargas
saltaram em longas filas. A grande esfera rachou por dentro. Ela se abriu, vomitando seu
conteúdo ardente.
O Bons Ventos seguiu as explosões de canhão. Ele disparou através da fenda
irregular e mergulhou. Ao seu redor, mana branca caía em cascata em uma ampla cortina.
Ela desceu.
Ele não era um navio agora, nem mesmo uma nave viva, mas um deus que descia
em glória. Seu traje iluminou o céu mais brilhante que o sol. Lindo, diáfano e volumosos,
aquelas vestes a seguiram para baixo. Em sua própria pureza, eles matariam o Senhor da
Morte. Elas matariam Yawgmoth.
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CAPÍTULO 29
A RUÍNA DE DOMINÁRIA
Os homens da lama caíam sob uma chuva irregular ao redor de Eladamri e Lin
Sivvi. Espada e totem-vec, os dois avançaram acima do tronco cheio. Suas tropas – de
corte selvagem e olhos afiados – escalavam todos os lados. Eles haviam limpado as partes
mais baixas das ents magnigote. Com os fogos Keldonianos abaixo e os feitiços de musgo
acima, os defensores finalmente foram acabando com as monstruosidades.
Os ents maltratados começaram a se mover novamente. Ramos maciços
flexionados. Gavinhas roçavam ao longo da casca entupida de lama. Ramos varreram os
homens da lama. As bestas se separaram e caíram. Rugidos loucos começaram nas
profundezas das árvores, ressoando em cavidades negras e subindo para saltar de bocas
abertas. Com os gritos, vieram os corpos despedaçados de mais golens de lama, aqueles
com a temeridade de descer a gargantas das bestas.
Eladamri deu seu próprio uivo. Ele ergueu o braço da espada no ar e acenou. “Os
ents despertaram! Os defensores de Géia lutam novamente!”
Ao redor, outros aceitaram o grito. Era um som glorioso no meio de lama e sangue.
Glorioso e de curta duração.
Uma nova tempestade apareceu. Uma nuvem negra rolou sob o sol. Lançava uma
profunda escuridão no meio dos ents magnigotes e de seus defensores.
Eladamri olhou para cima. Ele embainhou sua espada – este não era um inimigo
que poderia ser morto com uma lâmina – e alcançou Lin Sivvi e a puxou para seu lado.
Ela também olhou com pavor para o céu escuro. Parecia um poço aberto acima deles. Os
elfos da Lâmina de Aço ficaram boquiabertos através dos óculos de neblina. Os elfos de
Skyshroud se lembraram dos céus musculares de Rath. A realização mais verdadeira veio
entre os ents. Com as clorofilas retinas de suas inúmeras folhas, eles viram.
Um lamento mortal surgiu das bocas dos ents magnigotes quando Yawgmoth os
atingiu. Sua alma, um piroclasma preto, mergulhou e se chocou contra as árvores. Eles
balançaram sob o golpe. Galhos enormes dobrados como ervas diante de um vendaval.
Eladamri e Lin Sivvi se agarraram ao tronco. Aqui e ali, um elfo perdia o controle e caia
em direção aos fogos abaixo.
O guardião magnigote estremeceu ereto novamente. Seu topo foi comido
claramente. Yawgmoth dissolveu tudo. O lamento se transformou em gritos enquanto o
ent magnigote morria. Yawgmoth percorreu a casca deles, despindo-a com sua presença.
Ele se derramou nas bocas abertas das criaturas, rodopiando em suas cavidades e trazendo
a morte.
Eladamri sentiu a transformação sob seus dedos – a vitalidade sendo drenada da
madeira. A árvore que ele e suas tropas haviam salvado estava morta agora para sempre.
A própria morte de Eladamri se aproximava de cima. A nuvem negra fervia ansiosamente
na direção deles. Eladamri olhou para o chão – longe demais para cair, e coberto com o
fogo Keldoniano. Ele e Lin Sivvi sobreviveram a dois ataques separados à Fortaleza,
bombas de praga em Llanowar e vermes da areia em Koilos, uma batalha no gelo e a
chegada de Crepúsculo Keldoniano, mas eles não sobreviveriam a esta hora sombria.
168
“Há um lugar para guerreiros mortos,” ele disse pesadamente a Lin Sivvi. “Verei
você lá. Vamos nos encontrar.”
Ela se inclinou para ele, beijando-o uma última vez. “Este é o lugar para guerreiros
mortos – o campo de batalha.”
Eladamri exibia uma expressão sombria. “Sim. Agora, precisamos apenas
escolher: morte por Yawgmoth ou morte por fogo.”
Lin Sivvi sorriu, uma expressão muito rara. “Se eu puder desafiar aquele monstro
uma última vez-” e soltou o tronco da árvore.
Eladamri também deixou-se ir. Ele ficou surpreso com o quão fácil era. Juntos,
eles caíram, caindo tão rapidamente quanto Yawgmoth.
Olhando surpresos, os elfos os viram cair, e então eles soltaram também. Ao abrir
as mãos, alguns desses guerreiros abriram mão de um milênio de vida. Estranho como
eles estavam felizes, caindo com seus comandantes entre o fogo crescente e a escuridão.
Eles caíram e estava feito. Nada restou para Yawgmoth, exceto os fogos furiosos
abaixo e as propostas cinzentas das chamas. Ele os golpeou brutalmente e os apagou,
chamas, Keldonianos, elfo e Vec, como um.
*****
Como esse guerreiro pantera lutava! Seus olhos encaravam a morte nos homens
da lama. Eles caíam em pilhas fumegantes. Ele saltou sobre suas formas mortas, vinte
num salto, e rugiu. De suas bochechas rolavam feixes de feitiços, criados para combater
mortos-vivos. Um feitiço em espiral atingiu um homem da lama e triturou-o na areia.
Outro flash evaporou a água em um golem. A criatura explodiu, destruindo mais um
grupo dos monstros. Um terceiro feitiço despertou fungos através de um pelotão de
homens da lama, transformando-os em pilhas de trufas. Que criaturas ele não podia matar
com olhares e rugidos, o homem pantera matou com garras e presas. Mesmo agora, ele
empalava duas bestas enquanto mordia a cabeça de uma terceira.
O Comandante Grizzlegom estava orgulhoso de seguir esse lutador de outro
mundo. Nunca antes Grizzlegom esteve modesto do poder de seu machado, e verdade
seja dita, ele fendia essas criaturas com uma vingança mortal. Mas enquanto ele os matava
sozinho apenas para vê-los subir novamente, esse homem pantera os matava em massa e
para sempre. Além dos ombros amarronzados do guerreiro felino, talvez cem homens de
lama permanecessem no topo da colina. Se as forças da coalizão ganhassem aquele
terreno alto e rochoso, eles poderiam defendê-lo contra todos os que chegavam.
“Atravessar! Para as alturas!” Grizzlegom rugiu, erguendo o machado acima. Seu
braço livre sinalizou para as tropas Metathrans se separarem e flanquearem o principal
exército de homens da lama. Com absoluta precisão, os guerreiros azuis desviaram de seu
curso e subiram em direção ao cume. Enquanto isso, o homem pantera, Grizzlegom, e os
minotauros esculpiam o principal contingente de golens. “Por Hurloon!”
“Por Hurloon!” ecoou suas tropas em um grito ensurdecedor. O som subiu entre
eles, fortalecendo cada indivíduo com o poder do todo. Os inimigos mortais teriam sido
abalados pelo tumulto, mas esses homens da lama eram coisas sem ouvidos e sem alma.
169
Grizzlegom pontuou o grito com um golpe de bifurcação no machado. As metades
do golem caíram. O golpe de recuperação do comandante foi muito lento para pegar a
próxima besta. Em vez disso, ele enfiou o cabo do machado na testa. Ele o pisoteou.
Agora sua arma estava realmente suja. Enquanto ele lutava contra a lama emocionante,
ele cortou um caminho claro com seus chifres. Mais homens da lama caíram sobre seus
ombros largos. Eles arranharam dedos de podridão através de sua pele, abrindo feridas
sujas. Grizzlegom os sacudiu como um cachorro sacudindo a água. Ele sentiu seu sangue
– quente e vermelho – lavando a infecção dos ferimentos. Essa era sua verdadeira
mortalidade, a praga rastejante.
Mesmo que os defensores destruíssem esse exército de guerreiros de húmus,
haveria mais e mais sempre. Eles não podiam mais confiar nem no chão sob seus pés. O
próprio mundo que eles lutaram para salvar agora se voltou contra eles. De que adiantava
terreno elevado quando todo o terreno pertencia a Yawgmoth?
Outro rugido do guerreiro pantera trouxe Grizzlegom de seus devaneios. Ele olhou
para além dos restos de suas últimas mortes e viu homens da lama caírem em cinzas. Eles
não podiam ficar diante da magia do guerreiro pantera. A água fumegou neles, reduzindo-
os a nada. Uma avenida larga se abriu no meio deles, levando ao cume rochoso. Melhor
ainda, os Metathrans subiram a encosta e plantaram suas glaives de powerstone como se
fossem bandeiras do domínio.
Grizzlegom deu um rugido. Cascos martelavam golens mortos e cinzas. Em
instantes, todos os minotauros avançaram. Somente aqueles que estavam à beira da
batalha ainda desmantelavam seus inimigos. O resto subiu a encosta rochosa em direção
aos Metathrans e a vitória. Os guerreiros azuis estavam lá como anjos, brilhantes em um
mundo sombrio.
O céu ficou caliginoso atrás deles. Algo veio com a velocidade inescapável da
morte -
Uma nuvem negra atingiu aqueles orgulhosos guerreiros e os envolveu. Eles
gritaram – Metathrans nunca gritam, destemidos e altruístas. Agora eles o fizeram,
emitindo o som inevitável de uma coisa viva no momento da morte. O grito durou apenas
um momento antes de se desintegrar junto com os aparelhos vocais que o produziram.
Grizzlegom parou. Suas tropas vacilaram. Até o guerreiro pantera parou. Todos
deram um passo vacilante para trás quando a escuridão inundou a colina em direção a
eles.
O guerreiro pantera girou, garras estendidas. Flâmulas de feitiçaria arrastaram-se
sobre os minotauros naquela encosta. A magia tomou conta de todos eles, e pouco antes
da presença de Yawgmoth pudesse dissolvê-los em nada, eles se desintegraram e se
foram.
A nuvem negra varreu a colina, matando até os homens da lama que lutavam para
subir. Se derramou através do campo de batalha e desceu em direção ao mar aberto.
*****
A cem milhas além da cadeia de Urborg havia uma fenda profunda em mares
rasos. Esse lugar sombrio sempre foi um refúgio para a vida – seja concha ou ouriço,
170
caranguejo ou tritão. Como os artistas haviam fugido da opressão da antiga Vodália, assim
também fugiram da opressão dos Etlan-Shiis e se estabeleceram aqui, fundando os Elit-
erados. Esse povo procurava apenas beleza em um mundo feio, e eles criaram nesta fenda.
Agora tudo estava prestes a ser varrida.
Bo Levar ficou triste. No traje completo de seu capitão, ele pairava acima das
ondas ondulantes. O sol do meio-dia lançou sua sombra através das águas cristalinas e de
um lado da colônia dos artistas. Sua aparência sombria, ampliada pela água, tornara-se
uma questão de especulação entre os tritões abaixo. Mesmo agora, eles se reuniram em
grupos furtivos e apontaram através das marés para o visitante, imaginando que mal sua
presença predizia.
Bo Levar também ponderou. Talvez Yawgmoth tivesse deslizado suavemente
acima deste paraíso, nunca percebendo isso em sua busca por terras maiores – exceto que
um planinauta pairava protetoramente sobre ele. Por outro lado, talvez Yawgmoth se
afundasse nas ondas e matasse cada criatura tenra abaixo. Agora era tarde demais para
adivinhar. Cada pessoa – até planinautas – deve escolher em algum momento, resistir ao
mal ou deixá-lo rolar sobre ele. Bo Levar havia escolhido os dois.
Aqui estava o problema. Os Eliterados fugiram para este local de todos os
oceanos. Se Bo Levar os removesse para algum lugar "seguro" a meio mundo de distância,
ele estaria roubando deles o seu refúgio. Yawgmoth estava vindo para todo o mundo.
Seria melhor morrer no céu ou viver no inferno?
Mesmo esse não era o problema todo. Bo Levar havia se tornado um planinauta
na mesma explosão consumidora que transformara Urza em uma planinauta. Como
mortal, seu nome era Capitão Crucias e ele liderou expedições para Argoth. O sylex
terminou essa empreitada. A explosão cegou Crucias e destruiu sua nave, mas havia feito
outra coisa: acendera a centelha do planinauta nele. Ele estava velho na época, pronto
para desistir e de repente recebeu a bênção – ou maldição – de uma eternidade.
Essa eternidade acabou. Bo Levar estava pronto. Ele havia enterrado sua filha
Nuneive quatro mil anos atrás. Ele passara o tempo acumulando uma fortuna vazia. Ah,
e havia mais uma coisa: ele havia destruído Phyrexia, com a ajuda de três amigos. Mas
Bo Levar tinha chegado ao fim. A questão era, como gastar sua alma? Uma vida não era
algo a ser sacrificado de ânimo leve, especialmente não uma vida imortal. A melhor
resposta que Bo Levar pôde imaginar, mesmo depois de quatro séculos, foi sacrificar-se
em defesa da beleza.
Aquela nuvem negra, rolando da ilha dizimada, parecia muito familiar. Tal onda
de choque poderia criá-lo. Também poderia desfazê-lo. Ele viu isso acontecer. Aqui
estava a glória de decidir seu próprio tempo – determinando como ele partiria e o que
sobraria do seu poder. O trabalho-do-feitiço que transformaria tudo isso em realidade já
entrara em vigor.
Um globo de energia mágica se espalhou dele, em uma cúpula rasa acima do mar
e em uma grande, vasta e abrangente esfera embaixo. Toda alma entre os Eliterados seria
para sempre protegida de Yawgmoth e de seus servos. Qualquer criatura Dominariana
que se aventurasse reivindicando santuário o encontraria. Aqui estava a provisão mais
doce de todas: embora o volume do globo fosse constante, o espaço interior não era. Uma
sala poderia acomodar um palácio inteiro. Um palácio poderia abrigar uma cidade inteira.
171
Uma cidade poderia conter uma nação inteira, um mundo inteiro. Quanto mais se
fugissem para os Eliterados, buscando beleza e segurança, eles o encontrariam. O lugar
abriria espaço para eles.
Não foi um milagre pequeno, digno de um sacrifício imortal – digno de Nuneive.
Bo Levar abriu os braços, dando boas-vindas à escuridão. Sua sombra abaixo fez
o mesmo gesto. Alguns pensariam que ele convocou um feitiço. Outros pensariam que
ele os anunciava. Outros ainda se lembrariam de sua postura e a tornariam o emblema
eterno da salvação. Na verdade, Bo Levar só falou com seu assassino.
“Você acha que ganhou, Yawgmoth, mas não ganhou. Você não pode. O resto de
nós fez o que fez – glórias e atrocidades – dentro do jogo. Você foi além.”
“Você destruiria não apenas nós, mas o próprio jogo. Ao fazer isso, você perde
para sempre. Você não pode conhecer todas as cartas e certamente não consegue
adivinhar as que estão na minha mão.”
Palavras finais modestas para um homem modesto. A nuvem negra atingiu-o,
varreu-o e desmantelou-o. Queimou seu bigode, cavanhaque e capa do capitão. Enrolava
a pele, queimava os músculos e pulverizava os ossos. Mas em algum lugar escondido nas
profundezas dessa carne estava a alma mágica que os havia criado. Ela se espalhou agora,
criando algo novo. Tão clara e sólida quanto o diamante, a esfera tomou forma. Ela se
formou a partir dos restos arqueados para trás daquela figura adornada. No momento em
que sua forma física se foi – e isso foi meros segundos depois que Yawgmoth o atingiu –
suas proteções metafísicas estavam completas.
Yawgmoth rodopiou pelo domo do ar, mas não conseguiu penetrá-lo. Ele se
enrolou ao longo da esfera das águas, mas não conseguiu romper.
Dentro, como peixes em uma tigela, os tritões tremiam maravilhados com a
salvação feita para eles.
*****
172
Urborg – sempre a mais escura das ilhas e agora envolvida inteiramente na
presença do Inefável – não podia vislumbrar sua esperança que se aproximava. Brilhava
alto no céu – pequeno demais, distante demais, indiferente para perfurar essa mortalha.
Esse é o caminho da esperança. Começa a uma distância furtiva, muito alta para
ser vista. Enquanto se despejava, a cascata branca traçava uma linha através do céu negro.
Pacientemente, inevitavelmente, une o céu e a terra. E quando finalmente chega, a
esperança vem com uma vingança.
173
CAPÍTULO 30
2CHIAROSCURO
Nota do Tradutor: Chiaroscuro é uma técnica de pintura a óleo, desenvolvida durante o Renascimento,
que usa fortes contrastes tonais entre as formas tridimensionais da luz e da obscuridade para o modelo,
muitas vezes para efeitos dramáticos.
174
Gerrard sorriu, embora não sentisse alegria. Com uma voz sombria, ele
murmurou, “O que mais o nosso bom navio lhe diz?”
“Não muito, Comandante. Ele está muito ocupado agora com Karn. Uma coisa é
ter que dirigir um asteroide. Outra é ter que canalizar seu poder. Mas se alguém puder, o
Bons Ventos também pode. O Bons Ventos e Karn.”
*****
Nos primeiros momentos caóticos depois que o Bons Ventos emergiu da lua, o
navio convocou Karn para descer. Ele sentiu o pedido e pôs se de pé e atendeu ao
chamado. De qualquer forma, ele era pouco útil no convés de meia nau. Nenhum
equipamento de artilharia poderia tê-lo mantido no lugar.
Agarrando-se ao navio, Karn rastejou até a escotilha principal. Ele abriu a porta e
viu quatro rostos humanos lá dentro, olhando em choque o que antes parecia um porto
seguro. Karn passou pela abertura e fechou-a atrás dele. De mão em mão, o golem
prateado desceu as escadas, agora de pé. Na base delas, ele chegou à casa das máquinas.
Erguendo a porta, ele entrou.
O ar familiar – quente e úmido, com uma pitada de enxofre e aço – o envolveu.
Abaixo estava o motor – o temível motor. Uma vez ele conhecera todos os rebites daquela
máquina, mas agora ela havia crescido além dele. Ainda assim, eram tempos
desesperados, e o Bons Ventos precisava dele. Abaixando-se suavemente no coletor
traseiro do dispositivo, Karn soltou o batente da porta. Sob seus pés, ele sentiu o calor do
Bons Ventos. Karn desceu com cuidado por um lado do motor até chegar ao par de suporte
de mão onde uma vez voara o navio. Ajoelhando-se, Karn inseriu suas mãos enormes.
Ele segurou as hastes de controle dentro. Microfibras fizeram cócegas ao longo dos dedos.
Os filamentos deslizaram por suas articulações e fizeram contato.
Karn! Obrigado por vir.
Ele assentiu, o vapor brilhando sombriamente na testa. “Eu pensei que talvez você
pudesse precisar de alguma ajuda.”
Sim, o navio respondeu simplesmente.
“Posso atravessar, então?”
Sim.
Karn fechou os olhos e deixou a consciência cair nos braços, nas mãos. Ele sentiu
a nova solidez do motor, o poder que pulsava incessantemente dentro da fuselagem dele.
Por mais impressionante que fosse esse poder, não havia nada além da energia de mana
em todo o navio. As pontas dos espasmos e os canos dos canhões e todas as extremidades
do navio brilhavam como uma esfera de raios. A mana branca procurou um conduíte para
dentro e, se o encontrasse, todo o motor poderia ser destruído. Havia o grande dilema. A
própria força que o Bons Ventos deveria guiar e canalizar também poderia rasgá-la em
pedaços.
A morte é uma força temível, o navio falou em sua mente.
Foi a vez de Karn ser lacônico. “Sim.”
Você nasceu poucas décadas antes de Urza carregar o núcleo de poder.
“Sim.”
175
Somos criaturas gêmeas, milênios de idade, exceto que você ficou ciente o tempo
todo. Eu despertei por meros dias. O navio estava pressionando em direção a um
pensamento, uma ideia envolta em arrependimento.
A mente de Karn deslizou pelos conduítes do Bons Ventos e espiou por sua ótica.
“Em certo sentido, eu vivi antes disso. Meu córtex afetivo veio de Xantcha. Em certo
sentido, eu vivi por mil anos antes de meu corpo ser criado.”
A questão não é se todo esse poder destruirá meu núcleo – pois ele o destruirá. A
questão é, posso matar Yawgmoth antes de ser morto?
"Sim,” Karn afirmou.
É a coisa certa, ser desfeito em tal batalha, matar Yawgmoth mesmo se matando.
Quem pode argumentar sobre essas escolhas?
Uma pontada aguda percorreu Karn, e ele tentou desviar a conversa. “Quando
atingirmos a altitude adequada, nosso primeiro trabalho será deter essa descida e assumir
uma posição diretamente acima do vulcão. Para fazer isso, teremos que engatar todos os
motores contra a maré de mana.”
Talvez, tendo apenas alguns dias de vida, seja mais fácil desistir de tudo – mais
fácil do que ser uma criatura como você, com milênios de idade...
"O truque será desacelerar gradualmente o suficiente para que a tripulação não
seja prejudicada e, no entanto, abruptamente o suficiente para não sermos arremessados
contra a montanha.”
Xantcha fez a mesma coisa, você sabe, Karn. Ela ficou dentro do esplendor
radiante e deixou consumi-la e fechar o portal para Phyrexia.
"Uma vez no lugar, você permanecerá em pé a todo vapor, suas entradas de ar se
encherão de mana, que serão focadas em seu núcleo de powerstone e emergirão como
uma única coluna matadora de seus escapamentos. Energia excedente será derramada de
seus canhões e lanternas e até suas asas e pontas, você apunhalará Yawgmoth em cem
lugares, prendendo-o para baixo, e a coluna central empalará seu coração negro e o
matará. "
Sim Karn. Tudo isso é óbvio. Não foi por isso que você foi convocado. Você veio
aqui para conceder apenas uma garantia-
“Farei o que puder.”
Conceda-me o destino de Xantcha, que quando eu for imolado na chama
vindoura, algo de mim permanecerá em você.
A voz de Karn retumbou como um trovão. “Eu prometo.”
*****
Acima do mundo negro mergulhava uma estrela branca. Ela superou o sol. Ela
ultrapassou a lua. Seu trem era majestoso, glorioso. O poder dela era inexorável. Parecia
que ela se dedicaria a mergulhar de cabeça, impactando a escuridão abaixo. Em vez disso,
ela diminuiu a velocidade e parou.
Aqui, no ar, ela lutaria.
O trem de seu vestido, arrastando-se por milhares de milhas pelos céus, ondulava
ao seu redor. Ela girou. Seu rosto de deus se afastou do mundo subterrâneo, como se ela
176
rejeitasse a criatura que estava prestes a lutar. Enquanto véus brilhantes a envolviam, a
estrela levantou o rosto em direção ao céu.
Ela abriu as asas de mercúrio. Mana branca os atingiu e saltou em uma ampla
cúpula. Parecia diáfana, essa energia, mas onde atingiu a presença negra, cortou como
aço. O reflexo de suas asas cortou um círculo com duzentas milhas de diâmetro. Ferveu
a escuridão e cortou os oceanos agitados abaixo.
Ela não tinha terminado. Seus braços estenderam-se – os sete braços de uma deusa
– e lançaram ondas brancas na nuvem. Onde aqueles pulsos delgados atingiram, a
escuridão recuou, dando vistas para o chão devastado. Um braço passou ao longo de uma
costa e mostrou as ondas quebrando ali. Outro acariciou uma encosta vulcânica,
vasculhando as rochas até elas brilharem como pedras preciosas.
Ainda assim não havia terminado. A estrela respirou fundo, uma respiração
profunda da cascata de mana branca. O poder surgiu através de sua alma pura. Ela
canalizou abaixo dela em um raio de luz tão brilhante que projetou sombras na lua
quebrada.
Esse poder fez mais do que abrir buracos na escuridão. A obliterou
completamente. Onde quer que acertasse, quatro milhas de escuridão evaporaram. O feixe
de morte passeava através de um pântano salgado, subia uma encosta violenta e em
direção ao vulcão em seu pico. Logo atingiria o centro da nuvem, o núcleo de Yawgmoth,
e salvaria todo mundo.
*****
177
*****
Ele havia agarrado o mundo inteiro. Ele havia afundado suas garras e estava
forçando seu aperto – e então, do céu, essa agonia!
Foi ela. Somente uma deusa poderia aparecer dessa maneira, em uma ardente
glória acima do mundo. Como Géia transcendeu? Como Rebbec se levantou do chão que
ela infestou?
Então ele se lembrou. O Templo de Thran – o auge das realizações arquitetônicas
de Rebbec – um edifício construído em ar puro. Claro. Ela estava sempre se superando.
E o que mais poderia ser senão o templo radiante que ela enviara de Halcyon? Onde ele
passou suas eternidades, repleto de refugiados? Eles aprenderam a construir cidades
dentro das powerstones, como Glacian havia ameaçado? Eles esperaram todo esse tempo,
acima de Dominária, pelo retorno de Yawgmoth, para que pudessem descer e matá-lo?
Claro. Rebbec era sua sombra. Ela nunca fugiu para longe. Ela sempre esperou
por ele. Ela esperou por perto para esfaqueá-lo quando ele estivesse de costas. Claro.
E quase funcionou. Ele se apaixonou por isso de novo. Como ele descontaria
naquela vadia? Alguns até disseram a ele que ela estava morta. Morta? Então quem foi
esse que choveu fogo mortal nele? Rebbec! Maldita seja ela.
Quase funcionara, mas ela deixara uma porta dos fundos para ele. Yawgmoth não
abandonaria o mundo, não, mas enviaria o núcleo de seu ser de volta a Phyrexia. Por mais
estripadas que fossem, pelo menos as esferas estavam a salvo dessa bruxa radiante.
Enquanto sua alma morasse lá, seus punhos ainda podiam segurar, estrangular e matar
Dominária.
Este foi o melhor de todos os planos. Ele escaparia pela Fortaleza e destruiria o
portal por dentro. Então, em segurança, ele acabaria com este mundo.
Raios atingiram-no, rasgaram-no, destruíram sua carne sombria – doloroso, sim,
como a picada de um flagelo, mas não mortal.
Rebbec era uma colmeia de vespas. Ela enviou vespas brancas de mana para picá-
lo. Oh, ela pagaria. Ela pagaria!
Yawgmoth reuniu o núcleo de seu ser. Percorreu a nuvem negra, fora do alcance
de danos. Com a velocidade que o levara ao redor do mundo, Yawgmoth subiu a encosta
da montanha. Rebbec ainda não havia encontrado a caldeira – garota estúpida! Ele se
derramou como sangue pelo ralo. Ele foi jogado sobre a borda do poço central, e ele rolou
em direção à Fortaleza. Muito fácil-
Exceto que não havia Fortaleza. Onde antes esteve agora havia um lago de lava,
borbulhando, vermelho e subindo rapidamente. Yawgmoth não podia nadar através desse
material ardente. Pior ainda, se tivesse inundado a Fortaleza, ele derramava-se agora
mesmo através do portal aberto na sala do trono para dentro de Phyrexia. Ataques de cima
e de baixo! Como aquela vadia arranjou-?
Ele os viu, em um círculo no topo da inundação de lava. Druidas da rocha! Anões!
Era um absurdo o Senhor de Phyrexia ser derrotado por chutadores de pedra. Ele pode
não ser capaz de nadar através da lava, mas poderia facilmente destruir um círculo de
anões.
178
Yawgmoth juntou o núcleo de seu ser em um punho preto denso e se lançou para
aquele círculo patético.
Por fim, ele recuou. Uma das criaturas foi iluminada por uma luz repentina e
oracular. Um raio branco surgiu sobre a anã. Ele se alargou em um arco que atingiu três
das bestas.
Olhando em direção ao topo do poço vulcânico, Yawgmoth viu a fonte da luz.
Rebbec! Ela o atraiu aqui para prendê-lo! Sua luz atingiu e transformou esses
lacaios anões. Já não parecendo pilhas brutas de pedra, o pequeno povo tornou-se
criaturas radiantes. Mais alto, mais esbelto, com roupas e pele que brilhavam. Anãs
brancas! Que bruxaria!
Ah, mas isso não mudou nada. Havia mil respiradouros fora desses vulcões. Ela
não conseguiu prendê-lo. Selar seu portal significava apenas que ele não poderia recuar
de Dominária, que ele ficaria aqui e lutaria com toda fibra do seu ser. Apenas garantiu
que Dominária fosse dele agora e para sempre.
Deslizando para longe da luz, Yawgmoth correu ao longo da parede. Em rápidos
segundos, ele encontrou uma rede de rachaduras que respirava ar fresco. Ele peneirou
através deles e saiu na encosta da montanha.
Ele riu bastante enquanto retirava o núcleo de seu ser de Urborg. Assim era
melhor. Espreitava um pouco além do alcance dela, enquanto seus intermináveis braços
negros se lançavam para arrastar Rebbec dos céus.
Yawgmoth se afastou, fora do perímetro esculpido. Lá, na escuridão segura, ele
olhou para o espetáculo brilhante. Com um gesto quase casual, ele convocou uma legião
de tentáculos na nuvem sob Rebbec. Ela poderia cortar muitos dos braços estendidos, mas
não todos. Com o tempo, um se apossaria, e depois outro, e um terceiro, e ela seria
arrastada para o completo oblívio. A última esperança de Dominária morreria em um
punho preto.
Yawgmoth riu levemente.
Braços gigantescos surgiram de sua alma negra e açoitaram a deusa radiante.
179
CAPÍTULO 31
Gerrard estava perdido. Sufocado pela luz brilhante, agarrado por um aperto
implacável, imerso na música das esferas, ele ficou insensato. Os poderes que lutavam
acima e abaixo dele eram deuses, e ele um mero brinquedo. Não havia mais nada para um
herói fazer senão esperar até que o bem ganhasse e o mau morresse.
Hanna estava aqui. Ela encheu suas memórias. Foi onde ele permaneceu, nas
memórias. Karn também estava aqui, o guardião prateado que o protegeu. Ele protegeu
Gerrard do Senhor da Desolação, um bicho-papão em inúmeras histórias. Aqueles foram
dias gloriosos, seguros, felizes e fáceis. Gerrard voltou através deles com Hanna ao seu
lado.
Em seus sonhos, algo se intrometeu. Um grande tentáculo preto chicoteou para
fora do poço sombrio. Não tinha a substância escorregadia de um membro aquático. Era
uma escuridão muscular. Ele deu um tapa no brilho alegre e golpeou sua perna e o
arrastou. Outra coisa o puxou para o outro lado, algo que o segurou em volta dos ombros
e no peito. Eles lutaram, esse tentáculo e as tiras. Eles o rasgaram.
Naquela sensação violenta, ele emergiu do sonho oracular.
Gerrard não abriu os olhos. Mesmo com eles fechados, sua cabeça doía com o
brilho. Por suas pálpebras, ele viu silhuetas e formas – o convés virado para cima do Bons
Ventos, a massa escura de seu canhão, o emaranhado dos arreios de artilharia que o
seguravam – e ali, o que era aquilo? Um membro longo e preto o arrastou.
Frio e mordedor, ele deslizou mais apertado em torno de sua perna e puxou.
“Algo me pegou!” Gerrard gritou. Sua voz ecoou docilmente em sua cabeça. Não
poderia ultrapassar a tempestade de som. Até seus músculos melhorados não conseguiam
igualar o poder daquele membro.
Outro tentáculo atingiu o convés e envolveu um balaústre. Puxou com tanta força
que o suporte se soltou junto com metade da balaustrada.
“Algo nos pegou!” Gerrard gritou em direção ao duto de comunicação.
Uma voz respondeu, não do duto, mas de um canto próximo. “Yawgmoth. Ele nos
arrasta para baixo.”
“Urza?” Gerrard chamou. “Você pode ver? Claro que você pode ver, com aqueles
olhos malditos.”
“Eu também posso ouvir.”
Chutando a perna para tentar quebrar o aperto do tentáculo, Gerrard disse, “Use
seus olhos para explodir isso!”
“Matar moggs e matar Yawgmoth são duas coisas diferentes.”
Gerrard assentiu, “Sim. Estou descobrindo isso. Como ele pode passar pelas vigas
de mana brancas?”
“Onde quer que haja um buraco, ele estende a mão. Sempre que um tentáculo é
cortado, ele cresce um novo.”
Gerrard berrou em direção ao duto de comunicação. “Sisay! Sisay! Role o navio!”
Sisay respondeu, grogue com um sonho de febre. “O que?”
180
“Role o navio!” Gerrard gritou, balançando a perna.
“Que navio?”
Um grito do outro lado da previsão disse que Tahngarth também acabara de ser
açoitado. O Bons Ventos deslizou para baixo.
“Karn! Mais poder!”
“Não há mais poder. Não podemos aguentar!” veio a voz retumbante do golem de
prata. “Não contra a cascata de mana e os tentáculos.” O navio afundou quando mais três
tentáculos tomaram conta do convés principal. “O Bons Ventos está morto, Gerrard. A
cascata o destruiu. Mal consigo manter os motores funcionando.”
Era como acordar em um pesadelo. Morto. O navio estava morto. A garganta de
Gerrard ficou crua. “Droga, Squee! Você é o único que pode abrir caminho! Atire nessas
coisas!”
A resposta do goblin foi tão vitriólica que Gerrard conseguiu distinguir apenas
uma série de palavrões seguidos pela palavra “bundas.”
A arma de Squee falou. Ela gritou. O navio balançou com a descarga. Tremia mais
forte quando a saraiva cortou dois dos tentáculos. Squee gritou mais epítetos. Outro
tentáculo apareceu e outro.
“Sisay, você já está conosco?” Gerrard gritou.
“Eu tive o sonho mais estranho-”
“Apenas gire o navio!” Gerrard interrompeu.
O Bons Ventos girou sobre seu eixo. A mana que derramava sobre suas asas girou
e cortou o último dos tentáculos. O navio balançou para cima.
Gerrard teria gritado, embora ele não tivesse garganta para isso.
A voz de Karn veio de baixo, “Estamos perdendo o invólucro de transplanagem!”
“Tire-nos daqui, capitã.” Gerrard gritou. “Alto e rápido!”
“Sim!” ela gritou de volta.
O Bons Ventos disparou para fora da coluna de mana branca, mantendo o casco
prateado na direção do material matador. Salpicava ondas radiantes de suas ameias, como
se o navio estivesse no topo de um gêiser. Somente depois de limpar a cascata, Sisay a
ergueu. Todos ficaram felizes em sentir o convés subir sob seus pés. Arreios de artilharia
rangiam quando seus ocupantes estavam de pé.
Gerrard abriu os olhos. Aqui, além da tempestade de mana, a escuridão reinava.
O sol havia se posto. Até as estrelas pareciam relutantes em brilhar. Yawgmoth encheu o
mundo de tinta. Apenas a coluna de fogo brilhava, e lançava a sombra do Bons Ventos,
enorme e espectral, através da escuridão.
Ofegando, Gerrard ficou de joelhos ao lado do duto de comunicação. “Relatórios
de status, todos, de cima para baixo.”
Sisay foi a primeira. “Estamos esgotados, Comandante. O navio está lento. Temos
um leme danificado e um aerofólio dobrado.”
Tahngarth informou da arma de estibordo, “Nossos canhões também caíram.” Ele
apontou para a ponta do cano. A última energia consumiu-se. “ O mana sobrecarregou os
sistemas.”
181
“É pior do que isso,” acrescentou Karn. “O mana sobrecarregou o próprio Bons
Ventos. Não resta mais nada. O fantasma se foi da máquina. Posso fazer o meu melhor
como engenheiro, mas estou apenas movendo as partes de um cadáver.”
Da enfermaria, Orim relatou, “Não preciso lhe contar o que a embarcação fez para
a tripulação. Um voo um pouco mais firme me ajudaria a acertar alguns desses ossos.”
“Não temos escolha a não ser voar de forma constante,” Karn disse. Gerrard esfregou a
testa e murmurou, “É claro que temos outra escolha – colisão.” Em voz alta, ele disse,
“Transplanagem está fora de cogitação também?” “Sim.”
Depois dessa palavra, o duto de comunicação ficou dramaticamente silencioso. O
único som que veio foi o barulho de motores danificados e a agitação inquieta do vento.
Gerrard não conseguia respirar. Tudo estava escuro, o céu e o mundo ambos. Tudo
estava quieto. Ele acordou de um sonho de Hanna e se viu sozinho na escuridão.
Yawgmoth assumira o controle da Dominária, e o navio de Gerrard não conseguiria mais
escapar do mundo condenado. Ela teria que pousar algum dia, e então Yawgmoth os teria
todos.
Mordendo o lábio, Gerrard olhou para o céu negro. Algumas estrelas, minúsculas
e distantes, surgiram. Certa vez, Gerrard daria qualquer coisa para ficar em um navio alto
e senti-lo tremer embaixo dele e observar as estrelas. Ele nunca quis salvar o mundo.
Agora parecia que ele não faria.
O olhar de Gerrard caiu das estrelas para aqueles olhos estrelados de Urza
Planinauta. “Suponho que seja tarde demais para tentar seu plano.”
A cabeça de Urza olhou para trás. “É tarde demais para transformar o Bons Ventos
em uma bomba, sim. É tarde demais para salvar metade do mundo às custas da outra
metade. Tarde demais.”
Gerrard sacudiu a cabeça. “Karn, quanto tempo você pode nos manter aqui em
cima?”
“Talvez uma hora. Talvez menos.”
Gerrard assentiu. Ele respirou fundo. O ar estava frio e limpo a essa altura. Ele
abriu as mãos, sentindo o suor escorrer. “Acho que estou sem truques.”
Urza olhou fixamente para ele. “Feche o duto de comunicação.”
Irritado, Gerrard disse, “O quê? Por quê?”
“Feche-o.”
O Comandante fechou a tampa sobre o duto.
“O que?”
“Há mais uma chance. Não sei se vai funcionar. Se funcionar ou não, vai nos
custar tudo.”
Toda a hesitação se foi de Gerrard. Ele se inclinou para frente e disse, “Diga-me.”
*****
Depois que Gerrard ordenou que a equipe de comando se reunisse, Sisay foi, é
claro, a primeira na ponte. Ela ficou ao leme do navio que estava naufragando e olhou
além do para-brisa. O céu estava cheio de estrelas em chamas. A coluna de fogo estava
no porto, unindo o céu e o chão. Todo o resto era preto.
182
A porta traseira da ponte se abriu e bateu contra a parede interna. Um goblin
esguio entrou. Squee esfregou as mãos para tentar devolver o calor a elas. Seus pés
bateram nos ladrilhos enquanto ele se dirigia ao leme.
“Por que Gerrard convocou uma reunião, hein? Squee espera que seja para o
jantar. Este navio não tem insetos suficientes.”
“Eu não sei, Squee,” disse Sisay. “Espero que tenha mais a ver com um pouso
seguro.”
A escotilha se abriu. Subiu através dele Orim. Ao contrário do goblin gelado, ela
estava suando na enfermaria lotada. Ela esfregou a testa com uma ponta pendurada do
turbante antes de dobrar a ponta novamente.
“Então, o que Gerrard tirou da manga dessa vez?”
“Da manga não, da tagarelice quer dizer?" perguntou Tahngarth atrás dela. “Ele e
Urza estavam conversando. Eu perguntei o que eles estavam discutindo. Eles me disseram
que eu podia ouvir com todo mundo.”
“Você pode ouvir com todos os outros, primeiro imediato Tahngarth,”
interrompeu Sisay com desaprovação. “Se Gerrard vai me manter no escuro, é muito
melhor mantê-lo no escuro também.”
Gerrard chegou em seguida, parecendo subitamente velho. Sobre seu habitual
colete de couro, ele usava um longo sobretudo de lã para evitar o frio estelar. Uma mão
repousava sobre o punho da espada e a outra segurava a cabeça de Urza Planinauta. No
geral, Gerrard parecia mais um xamã espectral ou necromante do que o Comandante de
um navio. Ainda assim, ele sorriu ao ver seus amigos.
“Olá, todos vocês. Obrigado por terem vindo. Eu disse a Karn para ficar com o
motor para que não caíssemos.” Ele deu um breve sorriso que não foi devolvido por
ninguém na ponte. Respirando fundo, Gerrard disse, “De qualquer forma, Urza e eu
resolvemos as coisas. Não posso prometer que nosso plano funcionará. Tudo o que posso
dizer é que, se funcionar, todos vocês ficarão bem, e Dominária também. Se não der certo,
pelo menos teremos morrido tentando.”
Tahngarth resmungou. “Qual é esse plano?” Gerrard acenou com a pergunta. “É
muita bobagem, se você quer saber a verdade. Basta dizer que manteremos o navio
circulando aqui o máximo de tempo que pudermos, e quando não pudermos mais – o que
temo que talvez antes de terminarmos de nos encontrar aqui – Urza e eu temos uma
pequena surpresa para Yawgmoth.” Sisay levantou uma sobrancelha. “Se você não vai
nos contar, qual é o sentido de convocar uma reunião?”
Gerrard estendeu a mão livre e pegou a dela. “Eu só queria dizer que boa equipe
vocês foram. A melhor. Levei muito tempo para ocupar meu lugar entre vocês e mais
tempo para merecer esse lugar. Quando tudo acabar, vamos levantar um copo para essa
maldita equipe.”
Sisay tirou a mão do leme e abraçou Gerrard. Ela sabia o que era aquilo. “Eu
esqueci de passar uma mensagem. Uma de Multani.”
Gerrard se afastou do abraço e olhou nos olhos dela. “Multani?”
“Sim,” Sisay disse. “Quando ele partiu para sua terra natal, ele me pediu para dizer
adeus.”
Gerrard sorriu com força e a envolveu em outro abraço.
183
Orim foi a próxima, o cabelo coifado-de-moedas tilintando ao lado da orelha dela.
Depois, Gerrard apertou a mão de Tahngarth. Os dois trocaram um olhar sério e
respeitoso e um aceno de cabeça.
O último de todos foi Squee. Ele se agachou na porta dos fundos, com a mão na
maçaneta, preparando-se para o voo. “Squee sabe o que você está fazendo! Squee não
deixa você fazer isso!”
Gerrard abriu a mão inocentemente. “Do que você está falando?”
“Você joga Squee em Yawgmoth. Squee não pode morrer. Squee luta e luta e
morre e morre e por último mata Yawgmoth.”
Tahngarth resmungou, “A ideia tem mérito.”
O desespero brotou nos olhos verdes de Squee. “Você não vai!”
“É claro que não vamos, Squee,” disse Gerrard com desdém. “Esse não é o nosso
plano. Seria necessário um gênio para elaborar esse plano. Parecemos gênios?”
Alívio envergonhado veio ao rosto de Squee. “Claro que não. Dê um abraço em
Squee!” Ele atravessou a ponte e agarrou a perna de Gerrard com a atitude de um cachorro
exagerado.
“Tudo bem, Squee,” Gerrard disse, dando uma tapinha na cabeça verrugosa do
sujeito. “Já basta.”
“Squee tão feliz que ele não luta com Yawgmoth.”
“Sim. Tudo bem agora. Ok. Você pode parar.”
“Oh, obrigado, obrigado, obrigado-”
“Squee!”
“Certo,” o goblin disse, voltando. Sua marcha gingada ficou ainda mais instável
pelo afundamento repentino do navio. Deslizou perceptivelmente para baixo, diminuindo
a velocidade. Com um calafrio, o motor deu partida novamente.
“Essa é a minha deixa,” Gerrard disse com um sorriso triste. “Obrigado, todos
vocês. Foi ótimo.” Com isso, ele se virou e desceu pela escotilha.
Sisay e os outros simplesmente ficaram estupefatos quando Gerrard saiu, levando
a cabeça de Urza com ele.
O motor parou pela segunda vez. O Bons Ventos balançava, como se os sacudisse
gentilmente de seus devaneios.
“Vocês ouviram o comandante,” Sisay disse, sua voz calma e autoritária.
“Preparem-se para um pouso de emergência. Estações de batalha, todo mundo.”
Os outros assentiram e foram para seus respectivos lugares.
Tahngarth demorou um momento. Ele e Sisay haviam sido o núcleo dessa equipe
muito antes de Gerrard, mas ambos passaram a confiar no homem.
Tahngarth resmungou baixinho, “O que você acha que ele planejou?”
Sisay balançou a cabeça. “Eu não sei, mas vai ser bom.”
*****
Karn se ajoelhou ao lado do enorme motor. Ele sentiu como se estivesse ajoelhado
em oração. Ele deveria estar.
184
Uma coisa era imbuir uma máquina com sua inteligência, sua alma. Outra coisa
era manter um corpo com morte cerebral se mantendo o maior tempo possível. Karn
lamentou pelo Bons Ventos. Ele estremeceu ao se mover pelo cadáver dele, mas, a menos
que o fizesse, o navio cairia do céu.
Gerrard e Urza finalmente chegaram. Eles entraram na escuridão fumegante da
sala de máquinas e se aproximaram de Karn. Gerrard se ajoelhou, colocando a cabeça do
planinauta ao lado do joelho. Dos olhos estranhos de Urza saía uma luz estranha.
“Oi, Karn,” disse Gerrard da maneira que costumava ser quando menino.
“Como está o motor?”
Karn baixou o olhar, vendo as leituras percorrerem seus olhos. “Falhando,” ele
murmurou baixinho.
Gerrard deu um sorriso tenso. “Bem, faça o seu melhor. Temos uma ideia – algo
que pode salvar a todos nós.”
“Estou ouvindo,” respondeu o golem prateado.
Gerrard levantou a cabeça de Urza. “Diga a ele.”
Os olhos de Urza brilharam. A boca dele se abriu. Através dos lábios cheios de
sangue, ele falou. “Na minha primeira batalha contra Yawgmoth, me tornei um
planinauta. Na verdade, eu estava em guerra com meu irmão, Mishra, mas quando
descobri que ele havia se tornado um servo de Yawgmoth – um Phyrexiano – eu o matei
com uma bola de fogo, e matei metade do mundo com a explosão do sylex.”
“Toda criança conhece essas histórias,” Karn disse, apertando o queixo quando o
motor desligou mais uma vez. A nave afundou em sua órbita. Ele virou para estibordo,
cortando uma linha mais acentuada em direção à coluna de mana e a Urborg. Enquanto
tentava reiniciar a máquina, Karn disse, “Perdoe meu tom. Eu não quis ofender.”
“Você não ofendeu,” Urza garantiu. “E embora toda criança saiba da Guerra dos
Irmãos, poucas sabem das Weakstone e Mightstone que levaram meu irmão e eu de fato
a se juntarem à explosão do sylex na minha cabeça, fazendo de mim um planinauta.
Menos ainda sabem que essas pedras foram uma vez um único cristal, aberto para abrir
um portal permanente entre Phyrexia e Dominária. E poucos sabem que essas pedras têm
a personalidade de Glacian de Halcyon, o gênio que se opôs à ascensão de Yawgmoth ao
poder. Glacian está impresso nos cristais, as duas metades de sua mente bifurcada
instruindo a mim e a Mishra no artifício. Ele sabia desde o início quem realmente era
Yawgmoth. Ele selou Yawgmoth por cinco mil anos. Ele me capacitou a fechá-lo por
mais quatro mil. Se eu sacrificar essas duas pedras, torná-las parte da matriz de energia
do Bons Ventos, produzirá uma labareda de poder que o próprio Yawgmoth será desfeito.”
“Você sabe disso?” Karn perguntou sem rodeios.
“Eu acredito nisso,” respondeu Urza.
Karn assentiu sombriamente. “Se Yawgmoth for ou não desfeito por isso, você
será, Urza Planinauta.”
“Sim, isso é uma certeza. Assim como você e Gerrard. Ele deve remover as pedras
do meu crânio e colocá-las dentro do seu peito, para completar, finalmente, o Legado.”
Karn olhou para o homem que ele jurou proteger. “Por que Gerrard deve fazer
isso? Eu poderia puxar as pedras da sua cabeça."”
185
Urza piscou placidamente. “Porque ele não é apenas o herdeiro do Legado. Ele é
parte disso, assim como você. Projetado de carne em vez de metal, mas uma parte
inegável. Ele é a centelha que catalisará toda a reação. Quando ele colocar as pedras
dentro de você, o Legado estará completo e gerará um campo que aniquilará Yawgmoth...
e todos nós.”
Karn voltou os olhos para Gerrard. “Que escolha temos?”
Ele sorriu. “Somente esta escolha. A escolha dos heróis.”
186
CAPÍTULO 32
Era meia-noite em Urborg, uma meia-noite sem lua, graças ao Bons Ventos. Até a
cascata de mana branca havia cessado, absorvida em rochas e mares. Foi fácil para
Yawgmoth retirar sua presença enquanto o mana branca envolvia todo o centro de Urborg
em um sarcófago. Agora, ele fechou tudo, fechou o mundo.
O domínio de Yawgmoth sobre Dominária estava completo. Seus exércitos
haviam tomado Benália, Novo Argivo, Hurloon, Koilos, Tolária e Urborg. Yawgmoth
levou todo o resto. Sob sua presença sombria, era meia-noite em todo o mundo. Agora,
para apertar ainda mais.
Ele desceu lentamente sobre eles – todo elfo, minotauro e anão, todo goblin,
dragão e humano – para matar todos eles, para salvar todos eles. Ninguém, a não ser seus
próprios filhos, seus Phyrexianos, sobreviveria à noite. Todos seriam Phyrexianos pela
manhã.
Havia apenas um único dissidente – a deusa flamejante que tentara matá-lo.
Rebbec pairou sobre Urborg, um planeta errante, uma estrela moribunda. Ela se matou ao
tentar matá-lo. Agora ela pairava, temendo o abraço inevitável. Ela não podia permanecer
no ar para sempre, e uma vez que ele matara todo o mundo dela, ele voltaria suas atenções
para saltar os céus e rasgá-la.
Ah, mas ela veio até ele. Com movimentos furtivos de deslizamento lateral,
Rebbec desceu. Ela veio com os movimentos tímidos de uma amante infiel, buscando
perdão. Yawgmoth concederia a ela perdão e misericórdia. Na graça, ele a mataria,
rasgaria sua falta de fé e a elevaria novamente nele.
Ah, aqui ela veio. Ele esperaria. Quando ela estava perto o suficiente, seus
tentáculos a arrebatariam do céu e a esmagariam contra seu núcleo.
*****
187
Gerrard assentiu. Segurando a nuca de Urza na mão esquerda, ele levantou a mão
direita para a terrível operação.
Posicionando dois dedos em uma das sobrancelhas, as unhas cravando logo acima
das pálpebras, Gerrard disse pesadamente, “Adeus, Urza.”
“Adeus, Dominária,” respondeu o planinauta.
Cerrando os dentes, Gerrard bateu os dedos nas órbitas oculares do homem. As
tampas se dobraram sob essa pressão insistente e as pontas dos dedos se curvaram ao
longo do interior dos buracos. As facetas lisas das pedras davam lugar a acentuadas
irregularidades atrás. Dedos com força aumentada se fecharam nos cristais. Gerrard
puxou. Os lábios de Urza puxaram em agonia apertada sobre os dentes cerrados. Com
mais um puxão horripilante, as pedras surgiram.
A cabeça de repente parou. Os músculos relaxaram. Um olhar estranho surgiu
naquele rosto antigo, um olhar que só poderia ser chamado de paz. Nunca antes as linhas
do rosto de Urza mostraram paz.
Gerrard agarrou as metades sangrentas da pedra, uma em cada mão para mantê-
las separadas. Ele conhecia as histórias de Koilos e o poder explosivo das pedras quando
reunidas. Ele até conhecia a história de Radiante, o anjo que havia arrancado essas pedras
uma vez antes e as reuniu para sua aniquilação. Gerrard apertou a Mightstone e a
Weakstone no peito, seu coração trovejando quando ele olhou para a cabeça morta de
Urza. Era como se todas as linhas de cuidados naquele rosto velho tivessem sido gravadas
novamente nas de Gerrard.
O navio saltou para o estibordo – outro tentáculo – e o motor disparou sob o novo
ataque.
“Karn,” Gerrard disse, sem fôlego, “abra a cavidade do seu peito. Abra o tesouro
do Legado.”
Ainda ajoelhado ao lado do motor, Karn ativou a sub-rotina interna que abriu os
painéis do seu coração. Uma vez, ele havia armazenado muitos dos itens do Legado
dentro desses espaços vazios. Agora todos foram incorporados ao motor do Bons Ventos,
todos exceto os olhos de Urza e o próprio Gerrard. Uma vez que todos estivessem
reunidos nele, a maior arma de Urza estaria completa.
Gerrard se inclinou para frente. Suas mãos se fecharam com os punhos
ensanguentados no peito. Ele os estendeu. Eles tremeram. Os olhos de Urza. A alma de
Glacian. O coração de Karn. A vontade de Gerrard. A salvação do mundo...
Chegando ao peito de Karn, Gerrard cuidadosamente colocou as pedras
Mightstone e Weakstone onde seu coração estaria. Ele as posicionou lado a lado, com as
bordas irregulares adjacentes.
Firmando seus dedos sangrentos, Gerrard ofegou, “Aqui vai tudo ou-”
“Tarde demais!” veio o grito de Sisay lá de cima. O navio afundou tão de repente
que Gerrard flutuou das tábuas do assoalho para o ar. “Yawgmoth nos pegou! Ele nos
pegou!”
*****
188
Tentáculo após tentáculo preto arqueou as balaustradas e segurou-as. Era como se
as nuvens abaixo fossem compostas de um milhão de krakens com oito milhões de braços,
e cada uma delas segurava o Bons Ventos. Tahngarth usara a alabarda da alma de Gerrard
muito bem contra a primeira dúzia, mais ou menos, mas agora o minotauro só podia se
enrolar no minúsculo trecho de área coberta. Ele balançou a alabarda, mas não foi bom.
Com um terrível som de sucção, o Bons Ventos foi puxado para a nuvem escura.
Paredes negras erguiam-se por todos os lados, curvavam-se no teto acima do navio
aleijado e começavam a descer. O Bons Ventos estava no coração de Yawgmoth.
*****
189
*****
*****
Em todos os seus anos no comando, Sisay nunca enfrentou uma proposta tão
sombria.
Yawgmoth cercou o navio. Seus tentáculos agarravam todos os balaústres. Sua
alma negra se estabeleceu agora em direção a Tahngarth. Enquanto todos os outros
membros da tripulação se abrigavam no convés – e, é claro, Squee agarrava as pernas de
Sisay – Tahngarth ainda lutava com o Senhor de Phyrexia. Ele era a criatura mais corajosa
que Sisay já conhecera, mas que bem isso faria? Mesmo agora, enquanto pegava as pernas
constritivas do deus, Yawgmoth se virou e rasgou suas próprias pernas.
Então veio a salvação de Gerrard. Leve. De todos os grãos, de todas as dobras e
painéis do vasto navio, a luz derramava. Ela parecia uma esponja gigante que havia
absorvido tudo o que podia do brilho que acendia sua barriga e agora a escorria em densa
concentração para o exterior. A luminescência envolveu Tahngarth, suave como um
bálsamo crescente. Quando alcançou a alabarda de matar almas que ele empunhava, a
arma queimou com uma incandescência ofuscante.
190
Yawgmoth recuou. A nuvem que desceu negativamente sobre o navio e a
tripulação recuou dessa presença, mas não com rapidez suficiente.
A luz reconheceu o verdadeiro assassino de almas – Yawgmoth. Diferente do
mana branca que havia caído sobre esse deus, esse brilho se moveu com vontade. Ele
saltou do Bons Ventos e não pôde mais ser contido.
A radiação esfaqueou o coração da meia-noite, levando para casa seus espinhos
sagrados. Não apenas queimou Yawgmoth, mas o arrastou através dele, buscando seu
núcleo negro. Essa era uma luz voraz.
Ele rastejou através do Senhor da Morte, abrindo todos os ventrículos e sepulcros
e banhando-os com um novo amanhecer. A pureza matou Yawgmoth de dentro para fora.
Sisay viu tudo. Banhada em brilho ela mesma, ela agarrou o leme e guiou o Bons
Ventos através da nuvem. A escuridão ardia diante deles. Abriu canais para o céu, que
iluminava com os raios do sol.
Em um momento, em um momento glorioso, o brilho lucífero finalmente alcançou
o núcleo de Yawgmoth. Ele recuou, mas não conseguiu escapar. Ele se debateu
horrivelmente, mas o navio era impiedoso. Em segundos cintilantes, a partícula final de
seu ser fora devorada.
O Senhor da Morte estava morto. Yawgmoth estava morto.
O resto da nuvem começou a recuar. Ela se desfez. Encolheu como óleo de sabão.
A escuridão se dissolveu em círculos concêntricos desde a morte de Yawgmoth. Nuvens
se desintegraram. O amanhecer atravessou um mar revolto.
A luz do sol e a luz divina perseguiam as sombras fugitivas para as costas
próximas, sobre os mares e as montanhas. Ela perseguiria os últimos vestígios de
Yawgmoth até os confins do globo.
Sisay riu com lágrimas de alegria. Estava consumado. Essa foi a razão das
lágrimas. A razão do riso estava no castelo de proa. Ela nunca tinha visto uma dança da
vitória tão ardente e ridícula como a realizada naquele momento por Tahngarth.
*****
Deveria ser manhã, mas Dominária poderia nunca mais ver a manhã.
Os elfos permaneciam nas copas das árvores da floresta de Skyshroud. Eles se
sentaram em suas camas, esperando a desgraça. Ao redor, nos galhos espalhados das
árvores, esperavam tropas fiéis.
Acima de suas cabeças, descia a espessa nuvem da presença de Yawgmoth. Sim,
ele chegaria aqui primeiro, nas copas das árvores. Se os elfos fossem toupeiras, eles teriam
se escondido no chão abaixo.
Mas eles eram elfos. Se eles morressem, eles morreriam nas árvores.
Até Freyalise esperava lá, impotente contra esse ataque. Ela pairava na porta da
casa de Eladamri, a luz brilhando ao seu redor. Ela se ofereceu para levar essas pessoas
para outra floresta, um mundo que não estava condenado. Eles haviam recusado. Então
ela esperou com eles. Outra aparência de si mesma ficou em vigília em Llanowar, na
vigília da morte também.
“Perdoe-me, crianças élficas,” ela murmurou.
191
Suas palavras pareciam mudar o ar, mudar o mundo.
O calor substituiu o frio. A luz substituiu a sombra. A vida substituiu a morte.
Freyalise respirou fundo e cheirou a ar fresco. Ela olhou além das folhas
manchadas de sol para um céu azul dolorido.
*****
*****
192
CAPÍTULO 33
Sisay estava feliz por Dominária estar a salvo. Ela só queria que ela e sua equipe
também estivessem.
O Bons Ventos despencou. Ele, o vaso da dispensação divina, era um naufrágio
destruído. Até Karn não respondeu mais da sala de máquinas. O leme estava morto nas
garras de Sisay. Sem poder, sem impulso, sem leme – o melhor que ela podia esperar era
um pouso forçado na água. Se eles estivessem mais altos, ninguém teria sobrevivido. O
coração de Yawgmoth os deixara meras cem braças acima do mar. Sisay inclinou o navio
baixo, guiando o que equivalia a uma rocha alada em direção ao seu impacto final.
“Todas as mãos ao convés!” ela gritou através dos dutos. “Todas as mãos! Vocês
são aconselhados a pular se tiver coragem! Caso contrário, cairemos juntos.”
A tripulação inundou da escotilha principal. Muitos eram pessoas que voaram
através de Rath, Mercádia e Phyrexia com este navio. Agora, ansiosamente, eles saltaram
de seus lados em queda. Alguns chegaram a pensar em abrir capas e camisas para diminuir
a velocidade da descida. Enquanto isso, o Bons Ventos mergulhou em direção ao mar.
O primeiro imediato Tahngarth ficou em sua arma.
“Você me ouviu, Tahngarth,” Sisay gritou. “Eu sei que você tem coragem de
pular!”
Sua resposta foi um estrondo no duto. “Sim. E também tenho coragem de afundar
com o navio.”
Uma tripulação final de poucos se jogou momentos antes do impacto. Então o
Bons Ventos atingiu o mar.
Sisay não viu mais, jogada no convés como uma boneca de pano.
Squee, entre as pernas dela, ajudou a amortecer sua queda, mas seu peso quebrou
seu pescoço nodoso.
Tahngarth também foi arremessado, mas o arreio de artilharia o protegeu do
impacto.
Outros caíram nas pranchas, para não subirem novamente, exceto como isca de
tubarão.
Paredes de água subiram em ambos os lados do navio. Eles fecharam em cima e
caíram. Então todos caíram no dilúvio todo-poderoso. O navio foi tragado pela água, mas
o ar preso em seu casco empurrou tudo para a superfície. Ondas surgiram por entre os
balaústres, levando a tripulação com eles. No castelo de proa, Tahngarth se livrou do cinto
de artilharia.
Na ponte, Sisay rolou entorpecida. Ela encontrou Squee, com a cabeça inclinada
em um ângulo impossível. Não havia tempo para tristeza. O impacto havia quebrado a
quilha. Mesmo agora, o oceano despejava no casco aberto. Sisay beijou o cadáver de seu
grumete – ele tinha sido mais do que isso, assassino de Volrath, de Ertai, salvador de mil
traseiros.
193
Respirando uma lágrima, Sisay rastejou até a escotilha principal da ponte e a abriu.
Água brotou. A meia nau já estava inundada e o castelo de proa afundava também. As
explosões abaixo informavam que a água salgada havia penetrado no núcleo da unidade.
Respirando fundo, Sisay mergulhou no dilúvio. Estava quente, convidativo.
Parecia dizer a ela que iria viver, afinal. Ela nadou para fora dos destroços e emergiu
acima do meio do navio. Ela respirou fundo. A água borbulhava. O ar fervia em colunas
violentas ao redor. Com ele veio mais tripulação, remando para se manter à tona.
O casco quebrado do Bons Ventos afundou furiosamente. Num momento, foi uma
braça. No outro, eram vinte. Então seu contorno, a sombra da vida anterior de Sisay,
desapareceu para sempre.
Nunca haveria outro navio como o Bons Ventos.
Sisay acariciou fracamente, a respiração presa na garganta.
Das águas emergiu uma cabeça familiar e com chifres – a do primeiro imediato
Tahngarth. Ele parecia quase sorrir.
“Conseguimos, Sisay. Sobrevivemos ao Apocalipse.”
“Ainda não,” ela respondeu, apontando para a ilha mais próxima, a cerca de vinte
milhas de distância.
O sorriso de Tahngarth desapareceu, mas sua voz ainda estava animada. “Ainda
assim, nós vivemos.”
Sisay piscou em pensamento. “Muitos não. E Gerrard, Karn, Orim-?”
“Você não pode se livrar de mim tão facilmente,” disse Orim, chegando-se ao lado
deles. “De que adianta a magia da água se ela não pode te salvar do afogamento?”
Sisay riu. “Estou feliz em vê-lo, minha amiga. Nós somos os sobreviventes da
tripulação de comando.”
“E Squee?” perguntou Orim.
"Ele não era da tripulação de comando,” objetou Tahngarth.
Sisay balançou a cabeça. “Ele não conseguiu.”
“O que?” veio uma voz indignada. “Squee sempre consegue!” O goblin sacudiu a
água de suas orelhas peludas. “Yawgmoth diz.”
“Yawgmoth está morto,” apontou Tahngarth.
Squee encolheu os ombros, um gesto interessante no meio da espuma. “"E daí?
Yawgmoth deveria ter consertado Yawgmoth tão bem quanto ele consertou Squee!” O
goblin sorriu com dentes amarelos.
Sisay devolveu um sorriso branco. “Bem, é bom ter você de volta. Pegue o que
quer que flutue, todos vocês, e fique juntos. Temos um longo mergulho pela frente.”
*****
195
“Aqui está um segredo: o peso que eles carregam não é nada próximo ao peso que
carregamos. Eles nos entregaram um mundo novo. Agora devemos carregá-lo nas costas.
É nosso trabalho viver, garantir que o sacrifício deles não seja. um vazio. Eles
voluntariamente carregaram o fardo da morte. Vamos alegremente assumir o fardo da
vida ...”
Enquanto Freyalise falava, pois de fato era ela, Sisay só conseguia pensar em seus
amigos, desaparecidos para sempre. Guerras foram vencidas pelos mortos para os vivos,
mas aqueles que sobreviveram, aqueles tão feridos quanto ela e sua equipe, não puderam
viver verdadeiramente depois. Guerras foram travadas por netos e bisnetos, não por filhos
e filhas.
Sisay se perguntou como seus companheiros e ela sobreviveriam em um mundo
sem o Bons Ventos.
“"...Eu gostaria de poder ler todos os nomes neste obelisco. Eu gostaria que cada
um pudesse ser inscrito na posição mais alta, que todos os deuses que vagassem pudessem
conhecê-los por quem eles eram. Eu gostaria que cada um pudesse ser inscrito na mais
baixa posição, para que todos nós que habitamos na terra possamos ler e lembrar. Esse é
o nosso fardo – viver, ler e lembrar. Manter puro o mundo entregue em nossas mãos.”
Era um fardo muito grande. Sisay desviou o olhar da planinauta e olhou para o
colo, as mãos cerradas no terno preto de luto que ela usava.
*****
196
Sisay se virou, seus olhos brilhando. “Eu sei. Foi por isso que nos unimos para
salvar o mundo. Foi o que fizemos. Isso deve ser o suficiente. Mas em algum momento,
nos tornamos amigos. E o que é um mundo inteiro salvo quando custa tantos amigos?”
Uma expressão preocupada varreu o rosto de Orim. “Gerrard foi feito para esse
momento. De séculos, ele foi feito para isso. E fomos feitos para viver.” Ela tentou sorrir
novamente. “Freyalise estava certa, Sisay. Nosso fardo é maior. É difícil morrer fazendo
o que é certo. É ainda mais difícil viver fazendo isso.”
Sisay assentiu tristemente, jogando as mãos na direção dos navios atracados na
doca. “Então, qual destes irá levá-la embora?”
Um olhar conspiratório veio aos olhos de Orim. “Nada disso. Fiz acordos com
outro viajante.”
“Quem?” Sisay perguntou. Sua pergunta foi respondida como se tivesse sido uma
convocação.
O ar ao lado das duas mulheres distorceu. Imagens de água e céu torceram como
se refletidas em uma piscina prateada. Uma forma mercurial tomou forma – alta, esbelta,
de prata fluída...
Sisay ficou boquiaberta. “Karn! Eu pensei que você estivesse morto.”
“Estou,” veio a resposta fácil. Sua voz não soava mais como cascalho móvel, mas
agora como a delicada música da água. “O Karn que você conheceu está morto, pelo
menos. Eu levo o nome, mas sou mais. Sou a soma de uma legião de artefatos e almas.”
Segurando os lados da cabeça, Sisay disse, “Onde você esteve?”
Um sorriso apareceu naquele rosto estranho, que antes era incapaz de sorrir.
“Andei vagando pelos planos. Eles são lindos e horríveis. Tenho aprendido. Tenho muito
a aprender.”
“Você está atrasado,” Sisay disse, ainda atordoada. Ela apontou por cima do
ombro para o obelisco, apenas visível acima do topo das árvores. “Você perdeu a
cerimônia.”
Karn acenou com desdém. “Eu conhecia Gerrard. Eu ainda o conheço, e Urza
também. O tempo não é para mim o que é para você. Estou conversando com eles agora.
Que utilidade é uma cerimônia para mim?”
“Muito arrogante,” disse Sisay, sorrindo. “Um planinauta típico.”
Karn parecia entristecido. “Sério? Arrogante? Eu quero ser diferente, Sisay. Eu
não quero ser um planinauta típico.”
Mordendo o lábio, Sisay disse, “Então, da próxima vez, participe da cerimônia.
Afinal, você não foi projetado para ser uma sonda?”
“Humor!” Karn disse, apontando. “Sim, entendi. Ha. Ha ha. O humor é uma das
muitas coisas que estou aprendendo.”
Sisay assentiu sombriamente, “Então, você veio se despedir.”
“Sim, e levar Orim embora. Cho-Manno está ansioso para vê-la.”
Quando Sisay virou um olhar surpreso para ela, Orim só pôde corar e encolher os
ombros. “A vida é para os vivos.”
“Não me diga,” Sisay disse como se estivesse escandalizada. “Você tem a minha
bênção. Só não passe lua de mel em Mercádia.”
197
Orim sorriu. Ela estendeu a mão. A carne marrom se transformou em mercúrio.
“Estou pronta.”
“Adeus, todos vocês,” Karn disse ansiosamente. Ele fixou cada um com seu olhar
inteligente – não mais com olhos lamuriantes. “Foi bom salvar o mundo com vocês.
Espero fazê-lo novamente em breve.”
Sisay tinha um olhar de choque. “Com alguma esperança, você não precisará.”
“Humor!” Karn disse, apontando. “Ha ha! Ha ha!” Com isso, ele e Orim
desapareceram. Onde eles estavam, apenas a luz do sol e os barcos à vela permaneciam.
Sisay virou-se para os outros amigos. “Squee, por que você não foi? Você era um
rei em Mercádia.”
O goblin piscou em pensamento. “Eles dizem, Squee mais feliz em servir no céu
do que governar no inferno.”
“Eles dizem exatamente o oposto,” Tahngarth bufou.
“Oh,” Squee disse.
“E você,” perguntou Sisay sobre o homem-touro. “Eu pensei que você precisaria
reconstruir Hurloon.”
O minotauro balançou a cabeça. “O Comandante Grizzlegom tem isso em mãos.”
Sisay levantou as sobrancelhas. “Então, o que vocês dois querem fazer?”
“Já que você perguntou,” Squee respondeu, “estamos de olho no show business –
'Squee e o domado malabarista de Tangy'-”
“Nós realmente queremos uma comissão no seu navio,” interrompeu Tahngarth.
Ele olhou para a grande galé ancorada nas proximidades.” Se você precisar de um
primeiro imediato e um grumete.”
Sisay sorriu. “Então, eu não vou ficar sozinha, afinal.” Ela começou a passear pelo
cais em direção a seu novo navio, concedido a ela pelo agradecido povo de Argivo. Um
aceno de sua mão convidou o goblin e o minotauro. “O nome dela era O Vagalhão, mas
acho que ela merece algo melhor.”
“Que tal O Squee?” canalizou o goblin.
“Que tal Chifres Emergentes?” perguntou Tahngarth, zombeteiro.
Sisay balançou a cabeça. “Estou pensando em chamá-la apenas de Vitória.”
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