Promessas Não Cumpridas Da Democracia

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Promessas não cumpridas da

democracia: uma breve leitura da teoria de


Norberto Bobbio à luz da Constituição Federal e
da realidade da democracia no Brasil
O artigo analisa as promessas não cumpridas e os obstáculos à concretização da
democracia a partir da teoria de Norberto Bobbio, discorrendo sobre o tema à luz da
Constituição Federal de 1988 e da realidade da democracia no Brasil.

1.INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, no caput do Artigo 1º, garante que a República
Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e, no parágrafo
único do artigo 1º, dispõe: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente”. Mais adiante, no inciso III, do artigo 3º,
consagra que um dos objetivos fundamentais da República consiste em “erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Portanto, a Constituição Federal de 1988, está aberta para as transformações


políticas, econômicas e sociais que a sociedade brasileira requer, e, na medida em
que tais mudanças se caracterizam como desdobramentos necessários do conteúdo
da Constituição, a lei deve exercer função transformadora da sociedade, impondo
mudanças sociais democráticas.

Entretanto, a democracia anunciada no parágrafo único do Art. 1º da


Constituição Republicana resta programática e inanimada em razão de omissões e
interesses escusos preponderantes nos Poderes da República brasileira.

Em uma tentativa de entendermos a realidade fática de nossa democracia,


partindo da premissa de que a participação popular é, ou deveria ser, legitimação da
ação do Estado, abordaremos as promessas não cumpridas da democracia moderna e
os obstáculos à concretização da democracia, ideário extraído da obra de Norberto
Bobbio, O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo, dentre as quais o
ilustre jusfilósofo italiano listou: (a) a promessa do nascimento de uma sociedade
pluralista; (b) a revanche dos interesses; (c) o fim do poder oligárquico; (d) a
ampliação dos espaços de participação; (e) o fim do poder invisível, abordando, ao
final, questão da ausência de educação do cidadão para a democracia, il cittadino non
educato, segundo Bobbio.

2. DEMOCRACIA
A democracia, segundo José Afonso da Silva, “é a realização de valores,
dentre eles, igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana. É muito mais que
governo, é regime, forma de vida e, principalmente, processo”.
Em O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo, Norberto
Bobbio ensina que a palavra democracia pode ser definida das maneiras as mais
diversas, afirmando que não existe definição que possa deixar de incluir em seus
conotativos a visibilidade ou transparência do poder: “O poder está no núcleo mais
interno do poder”. (BOBBIO, 1986, p. 21)

O autor traz, ainda, aquilo que afirma ser uma definição mínima de
democracia, segundo a qual por regime democrático entende-se primariamente: “Um
conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que
está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados:

Tal definição formal, parece muito pobre para os movimentos que se proclamam
de esquerda. Porém, a verdade é que não existe outra definição igualmente clara e
esta é a única capaz de nos oferecer um critério infalível para introduzir uma primeira
grande distinção entre dois tipos ideais opostos de formas de governo[2].
Há, portanto, enorme dificuldade em se conceituar a democracia, sobretudo
porque o termo carrega em si a característica fundamental de que está sempre a ser
construído, de que é criação ininterrupta.

Neste sentido, Marilena Chauí diz que “A democracia é invenção porque,


longe de ser a mera conservação de direitos, é a criação ininterrupta de novos direitos,
a subversão contínua dos estabelecidos, a reinstituição permanente do social e do
político” (CHAUÍ, 1983).

Além disso, com esteio nas lições de Streck e Morais, “é evidente que a
democracia requer uma grande dose de justiça social”, não sendo possível falar em
democracia em meio a indicadores econômico-sociais que apontam para a existência
de uma grande parcela da população vivendo abaixo da linha da pobreza (STRECK E
MORAIS, 2001, p. 104).

Portanto, na medida em que nossa realidade demonstra a miséria e os


indicadores estão abaixo da linha de pobreza, ocorre-nos a necessidade da
“reinstituição do social”, de evolução do processo democrático, realizando as
promessas não cumpridas da democracia e superando os obstáculos à sua
concretização.

2.1 AS PROMESSAS NÃO CUMPRIDAS DA DEMOCRACIA MODERNA

Muito se discutiu sobre essa questão à luz das “transformações da


democracia”. No entanto, como bem ressalta Bobbio, a palavra “transformação” é vaga
o bastante para consentir as mais diversas avaliações sobre o tema: à direita,
“verdadeiro carro-chefe de uma longa e ininterrupta série de lamentações sobre a crise
da civilização, a democracia transformou-se num regime semianárquico, predestinado
a ter como consequência o estilhaçamento do Estado; à esquerda, típica expressão de
crítica extraparlamentar, a democracia parlamentar está se transformando cada vez
mais num regime autocrático. Sendo assim, Bobbio concentra sua reflexão sobre o
contraste entre os ideais democráticos e a “democracia real”, esta tida pelo autor como
matéria-bruta em contraposição ao ideal. (BOBBIO, 1986, p. 22)

É exatamente desta matéria bruta e não do que foi concebido como nobre e
elevado que devemos falar; em outras palavras, devemos examinar o contraste entre
o que foi prometido e o que foi efetivamente realizado (BOBBIO, 1986, p. 23).
Diante dessas constatações, Bobbio permite-nos uma reflexão abrangente da
situação do processo democrático e de suas contradições, enumerando o que chamou
de promessas não cumpridas da democracia moderna.

2.1.1 O NASCIMENTO DE UMA SOCIEDADE PLURALISTA

A democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade, vale


dizer, de um entendimento de que a sociedade política é um produto artificial da
vontade dos indivíduos, calcado em três eventos que caracterizam a filosofia social da
idade moderna: (a) contratualismo do Século XVII e XVIII; (b) do nascimento da
economia política; e (c) da filosofia utilitarista de Bentham e Mill. (BOBBIO, 1986, p.
23).

Partindo da hipótese do indivíduo soberano que, entrando em acordo com


outros indivíduos igualmente soberanos, cria a sociedade política, a doutrina
democrática tinha imaginado um Estado sem corpos intermediários, característicos da
sociedade corporativa das cidades medievais e do Estado estamental. (BOBBIO, 1986
p. 24)

Ocorre que os sujeitos politicamente relevantes nos Estados democráticos


tornaram-se sempre mais os grupos, grandes organizações, associações da mais
diversa natureza, sindicatos das mais diversas categorias profissionais, partidos das
mais diversas ideologias, e sempre menos os indivíduos.

Desse modo, os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida


política em uma sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo
ou a nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou
indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo como unidade ideal, mas
apenas o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes, com a sua
relativa autonomia diante do governo central.

Portanto, quando analisamos quem são os protagonistas do jogo


democrático, temos cada vez mais grupos de interesses que patrocinam e se colocam
à frente no jogo político, e não os indivíduos.

Diante dessa realidade, Bobbio ilustra a realidade social democrática


afirmando que o modelo da sociedade democrática era aquele de uma sociedade
centrípeta, no entanto, a realidade que vivenciamos é a de uma sociedade centrífuga,
que possui vários centros de poder, podendo ser chamada de policrática. (BOBBIO,
1986 p. 24)

Transportando essas noções para a realidade brasileira, podemos perceber


que os grupos que protagonizam a vida política em nossa sociedade, dentre os quais
podemos citar, dentre outros, v.g., as poderosas bancadas ruralista e industrial no
Congresso Nacional e as grandes empresas que atuam no mercado financeiro,
governam no sentido de um enfraquecimento aos direitos dos indivíduos mais
vulneráveis de nossa sociedade, como por exemplo, retrocedendo na proteção ao
meio ambiente e aos direitos do consumidor.

2.1.2. A REVANCHE DE INTERESSES


A democracia moderna, nascida como democracia representativa em
contraposição à democracia dos antigos (direta), deveria ser caracterizada pela
representação política, isto é, por uma forma de representação na qual o
representante, sendo chamado a perseguir os interesses da nação, não pode estar
sujeito a um mandato vinculado.

Como expressão cabal da soberania, o mandato livre foi transferido da


soberania do rei para a soberania da Assembleia eleita pelo povo. Desde então a
proibição de mandatos imperativos tornou-se uma regra constante de todas as
constituições de democracia representativa, e a defesa intransigente da representação
política sempre encontrou convictos seguidores entre os partidários da democracia
representativa, contra as tentativas de substituí-la ou de combiná-la com a
representação dos interesses. (BOBBIO, 1986, p. 25)

Na realidade democrática, cada grupo tende a identificar o interesse nacional


com o interesse do próprio grupo, não havendo um critério geral capaz de permitir a
distinção entre o interesse geral e o interesse particular deste ou daquele grupo, sendo
certo que quem representa interesses particulares tem sempre um mandato
imperativo.

Em um sindicato, por exemplo, onde entre outras atribuições está a de


realizar acordos com enorme relevância política, como em relação ao teto salarial das
categorias. Ou em um parlamento, onde estão aqueles que de vez em quando fogem
à disciplina partidária aproveitando-se do voto secreto para fazer valer o seu interesse
pessoal.

No Brasil, aproximam-se as eleições para a Presidência da República e, de


um lado, temos o Partido dos Trabalhadores como candidatos da situação e o Partido
da Social Democracia Brasileira como oposição. Na medida em que os debates vão
surgindo, mostra-se evidente a revanche de interesses, cada qual em busca de um
mandato imperativo que represente os interesses desse ou daquele grupo.

A fim de ilustrar a revanche de interesses, Bobbio destaca que esse sistema é


caracterizado por uma relação triangular na qual o governo, idealmente representante
dos interesses nacionais, intervém unicamente como mediador entre as partes sociais
e, no máximo, como garante do cumprimento do acordo. (BOBBIO, 1986, p. 26).

2.1.3. A PERSISTÊNCIA DAS OLIGARQUIAS

Bobbio considera como terceira promessa não cumprida da democracia


moderna a derrota do poder oligárquico.

O princípio inspirador do pensamento democrático sempre foi a liberdade


entendida como autonomia, isto é, como capacidade de dar leis a si próprio. A
democracia representativa é por si mesma uma renúncia ao princípio da liberdade
como autonomia. (BOBBIO, 1986, p. 27)

Naturalmente, a presença de elites no poder não elimina a diferença entre


regimes democráticos e regimes autocráticos. Para Bobbio, Joseph Schumpeter
“acertou em cheio quando sustentou que a característica de um governo democrático
não é a ausência de elites mas a presença de outras elites em concorrência entre si
para a conquista do voto popular”. E, por fim, referindo-se ao livro de F. Burzio, Bobbio
ressalta a distinção incisiva entre as elites que se impõem das elites que propõem.
(BURZIO apud BOBBIO, 1986, p. 27-8)

Portanto, quanto à detenção do poder político, enquanto se esperava a maior


distribuição possível deste poder, desaparecendo o poder oligárquico, o que a
realidade nos mostra é que houve uma multiplicação de elites que concorrem entre si
pela dominação política.

Aqui, mais uma vez fazendo um paralelo entre a teoria de Bobbio e a


realidade da democracia brasileira, vale mencionar a persistência da oligarquia rural
existente desde os primeiros anos da República, contando hoje, inclusive, com um
forte representante na Presidência da Comissão de Meio Ambiente, Defesa do
Consumidor e Fiscalização – CMA do Senado Federal.

2.1.4. O ESPAÇO LIMITADO

“Se a democracia não consegue derrotar por completo o poder oligárquico, é


ainda menos capaz de ocupar todos os espaços nos quais se exerce um poder que
toma decisões vinculatórias para um inteiro grupo social” (BOBBIO, 1986, p. 28).
A distinção não é mais aquela entre poder de poucos e de muitos, mas aquela
entre poder ascendente e descendente. Cabe elucidar, trata-se de inconsequência da
democracia moderna, e não de irrealização, vez que ela nasce como método de
legitimação e controle das decisões políticas em sentido estrito, ou do “governo”
propriamente dito, no qual o indivíduo é considerado em seu papel geral de cidadão e
não na multiplicidade de seus papéis específicos de estudante, de soldado, de
trabalhador, de consumidor. (BOBBIO, 1986, p. 28)

A principal questão não é “Quem ou Quantos votam?”, mas sim a resposta à


pergunta: “Em quais lugares se vota?”. Quando se deseja saber se houve um
desenvolvimento na democracia de um país o certo é perguntar se aumentou o
número de espaços nos quais podem exercer o direito de participar nas decisões que
lhes dizem respeito, não procurar perceber se aumentou o número de quantos tem
direito de participar. (BOBBIO, 1986, p. 28)

Daí surge a importante observação de Bobbio de que, em alguns destes


espaços não-políticos – como a fábrica – deu-se a proclamação de certos direitos de
liberdade no âmbito do específico sistema de poder, como analogamente podemos
dizer ao que ocorreu com as declarações dos direitos do cidadão em relação ao
sistema do poder político. Pois que temos a concessão de direitos de liberdade
precedendo a concessão de direitos políticos, o direito nasce sem conquista, é mera
concessão.[3]

Daí é que nas palavras de Pedro Demo: “os direitos passam a concessão. O
Estado já não cumpre deveres, mas doa favores. Os líderes fundam o povo, não o
contrário. A legitimidade não se elabora na criação comunitária, mas se decreta.”

Para o sociólogo, participação da base é a alma do processo de participação,


porque participação autêntica é a da base, que é a sua origem. “O que faz a
democracia é sua base, como bem colocava a Comuna de Paris, poder de baixo para
cima. Na cúpula, sendo delegada, o poder é de serviço, não autônomo, descolado,
prepotente”. (DEMO, 2001, p. 49)
Desse modo, houve de fato no Brasil um aumento quantitativo de lugares em
que o povo é chamado a participar, no entanto, essa atuação popular tem servido
apenas como cumprimento de um dever social simbólico, nada mais que isso.[4]

2.1.5. O PODER INVISÍVEL

Talvez influenciado particularmente por aquilo que acontecia na Itália, onde a


presença do poder invisível (máfia, camorra, lojas maçônicas anômalas, serviços
secretos incontroláveis e acobertadores dos subversivos que deveriam combater) é,
ainda hoje, visibilíssima, no jogo de palavras do próprio autor, Bobbio elenca o poder
invisível como a quinta promessa não cumprida da democracia.

É assente que a democracia nasceu com a perspectiva de eliminar para


sempre das sociedades humanas o poder invisível e de dar vida a um governo cujas
ações deveriam ser desenvolvidas publicamente. A democracia moderna vem do
modelo antigo, de modo particular da democracia ateniense, em momentos em que o
povo se reunia na ágora e tomava livremente, à luz do sol, suas próprias decisões,
após ter ouvido os oradores que ilustravam diversos pontos de vista. Para denegri-la o
antidemocrático Platão a chamou de teatrocracia, termo também presente em
Nietzsche. (BOBBIO, 1986, p. 30)

Um dos motivos de superioridade da democracia diante do absolutismo, que


valorizavam as autoridades ocultas, misteriosas e defendiam com argumentos
históricos e políticos a necessidade de fazer com que as grandes decisões políticas
fossem tomadas nos gabinetes secretos, longe dos olhares indiretos do público, funda-
se na convicção de que o governo democrático poderia finalmente dar vida à
transparência do poder, ao “poder sem máscara”. (BOBBIO, 1986, p. 30)

Muito importante é o controle público do poder em nossa época, na qual


aumentaram muito e são praticamente ilimitados os instrumentos técnicos de que
dispõem os detentores do poder para conhecer capilarmente tudo o que fazem os
cidadãos.

No Brasil, país em que parlamentares estão envolvidos em milícias, a força


militar é utilizada no do processo eleitoral para evitar a interferência de líderes do
crime organizado e escutas telefônicas ilegais são banalizadas, parece-nos mais que
uma promessa não-cumprida, estamos diante de uma tendência contrária às
premissas: a tendência não ao máximo controle do poder por parte dos cidadãos, mas
ao máximo controle dos súditos por parte do poder.

A esse respeito, vale destacar o ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, em 22


de agosto de 2013, na primeira audiência da Comissão Parlamentar de Inquérito dos
Ônibus, em que milicianos entraram em confronto com manifestantes que ocupavam a
Câmara de Vereadores em protesto contra a péssima qualidade do transporte público
naquela cidade[5],

2.1.6. O CIDADÃO NÃO EDUCADO PARA A DEMOCRACIA

De acordo com o argumento segundo o qual o único modo de fazer com que
um súdito se transforme em cidadão é o de lhe atribuir aqueles direitos que os
escritores de direito público tenham chamado de activae civitatis, ou na tradução:
cidadania ativa, direitos do cidadão; a partir daí, a educação para a democracia
surgiria no próprio exercício da prática democrática. (BOBBIO, 1986, p. 31)

John Stuart Mill, em Considerações Sobre o Governo Representativo, divide


os cidadãos em ativos e passivos, esclarecendo que, em geral, os governantes
preferem os segundo, pois é mais fácil dominar súditos dóceis ou indiferentes), mas a
democracia necessita dos primeiros. (apud BOBBIO, 1986, p. 32)

Muito se ocupou a ciência política americana, em especial nos anos


cinquenta, do tema tratado sob o rótulo da “cultura política” e sobre o qual “foram
gastados rios de tinta que rapidamente perdeu a cor” (BOBBIO, 1986, p. 33).

Recorda Bobbio da distinção estabelecida entre cultura para súditos, ou seja,


orientada para os output do sistema, e cultura participante, ou seja, orientada para os
input do sistema, própria dos eleitores que se consideram potencialmente
empenhados na articulação das demandas e na formação das decisões.

Pode-se dizer que a apatia política atinge hoje a maioria dentre os que têm
direito ao voto. Do ponto de vista da cultura política, estas são pessoas que não estão
orientadas nem para os output nem para os input. São simplesmente desinteressados
daquilo que, como se diz na Itália de Bobbio, acontece no “palácio”.

Segundo Maria Victoria de Mesquita Benevides, em Educação Para a


Democracia[6]:

Não existe, ainda, a educação para a democracia, entendida, a partir da óbvia


universalização do acesso de todos à escola, tanto para a formação de governados
quanto de governantes. Ao contrário, aqui ainda persiste "um ensino monárquico, ou
seja, aquele que tem por objetivo separar os que serão sábios e governarão, daqueles
que permanecerão ignorantes e obedecerão". Aliás, o grande educador brasileiro
Anísio Teixeira também deve ser evocado em sua crítica à "escola paternalista,
destinada a educar os governados, os que iriam obedecer e fazer, em oposição aos
que iriam mandar e pensar, falhando logo, deste modo, ao conceito democrático que a
deveria orientar, de escola de formação do povo, isto é, do soberano, numa
democracia.
“As opiniões, os sentimentos, as ideias comuns são cada vez mais substituídas
pelos interesses particulares”. Há uma “moral baixa e vulgar” segundo a qual “quem
usufrui dos direitos políticos pensa em deles fazer um uso pessoal em função do
próprio interesse” (TOCQUEVILLE apud BOBBIO, 1986, p. 34).
Nota-se que o cidadão não educado para a democracia, ou cittadino non
educato, é fato que tem como consequência o fenômeno da pobreza política, tema
tradado por Pedro Demo em sua obra de mesmo nome, segundo o qual o povo está
impossibilitado de se autogovernar a partir do momento em que não participa
efetivamente da democracia, participa por mera obrigação e participa também sem
nem mesmo entender o significado de seu voto.

Partindo-se do ponto de vista de que somente o homem produz qualidade. Ou


de que qualidade é uma conquista humana, em sua história, em sua cultura. Objetos
naturais ou o dado físico não possuem propriamente qualidade, porque são dados na
natureza. Aplica-se no máximo a noção de qualidade formal. Um diamante tem mais
qualidade que outro, de acordo com suas propriedades internas mais ou menos
perfeitas. Mas não é em si uma obra de arte, porque isto já seria obra do homem.
(DEMO, 2001, p. 41)
Se assim entendermos a problemática, qualidade política é aquela que trata
dos conteúdos da vida humana, sendo a arte de viver a sua perfeição. Refere-se ao
relacionamento do homem com a natureza, através sobretudo do trabalho e da
tecnologia, que são formas humanas de intervenção, onde assoma o horizonte
ideológico e prático inevitavelmente. Refere-se igualmente ao relacionamento do
homem com o homem, no interior do fenômeno do poder: o que ele faz de si mesmo,
dadas as circunstâncias objetivas. (DEMO, 2001, p. 41).

“Qualidade política é aquela do homem como ator e criador de si mesmo. Como


estratificador e distribuidor da desigualdade social. Como produtor de utopias e futuros
melhores. Como conquista humana”. (DEMO, 2001, p. 41)
Falta ao cidadão brasileiro consciência de cidadania, certeza de que o
governo é órgão do interesse público, e deve servir ao bem comum do povo e da
nação. A autonomia moral do homem-cidadão, capacitado de seus direitos e de seus
deveres unicamente se alcança quando ele se matricula na escola do civismo, rende
culto à Constituição, manifesta respeito à lei e trata o Direito, a justiça e a liberdade,
com devoção, reverenciando os valores cardiais e imperativos da organização
democrática do Estado (BONAVIDES, 2008, p. 152-3).

O aperfeiçoamento da democracia denota, sem dúvida, um horizonte positivo


da qualidade política, bem como as mazelas de nossa democracia traem sua falta.
Democracia pela metade, como concessão, tutelada. Democracia diletante,
incompetente. Essa é a perspectiva da pobreza política (DEMO, 2001, p. 42).

3. Obstáculos à Concretização da Democracia


Ainda em Bobbio, extrai-se a ideia das circunstâncias fáticas decorrentes das transformações
da sociedade civil que não foram previstas pelos formuladores do ideário democrático e que,
segundo ele, são os responsáveis pelo não cumprimento das promessas da democracia
moderna.

Dentre tais obstáculos, em primeiro lugar temos a complexificação da sociedade quando da


passagem de uma economia familiar para uma economia de mercado e desta para uma
economia protegida. A partir daí, há a necessidade de constituição de um quadro profissional
habilitado tecnicamente a lidar com a crescente complexidade social e a pergunta: quem
estaria legitimado a tomar decisões? (BOBBIO, 1986, p. 34)

Tendo por base a ideia de que a tecnocracia é a antítese da democracia, de que a democracia
assenta-se em um poder disperso, onde todos devem decidir sobre tudo e de que na
tecnocracia apenas os técnicos envolvidos podem tomar decisões, com quem deve
permanecer o poder de tomar as decisões, com aqueles que representam a realidade do povo
ou com aqueles que detém a técnica? Daí a contraposição da decisão política frente a decisão
técnica, o poder disperso frente ao poder concentrado. (BOBBIO, 1986, p. 34)

Frente a problemas tais como o controle da inflação, o enfrentamento de uma crise econômica
mundial, o desemprego e uma má distribuição de renda fica a pergunta: “Não são eles de tal
envergadura que requerem conhecimentos científicos e técnicos para serem resolvidos?”
Notadamente, a resposta é sim (BOBBIO, 1986, p. 36).

O segundo obstáculo não previsto e que sobreveio de maneira inesperada foi o crescimento do
aparato burocrático. A burocracia, como bem nota Streck, surge em consequência do próprio
processo de democratização da sociedade que, na medida em que alargava as possibilidades
de participação social, permitia que novas demandas fossem propostas ao Estado. É aí que se
constitui um aparato burocrático responsável por responder às pretensões sociais cuja
característica é a de ser um “poder que se organiza verticalmente do alto para baixo,
contrapondo-se, assim, ao modelo democrático de um poder que se estabelece na base e se
eleva para o topo” (STRECK E MORAIS, 2004, p. 107).

“Todos os Estados que se tornaram mais democráticos tornaram-se ao mesmo


tempo mais burocráticos, pois o processo de burocratização foi em boa parte
uma consequência do processo de democratização” (BOBBIO, 1986, p. 35).
Quando os proprietários eram os únicos que tinham direito de voto, era natural que pedissem
ao poder público o exercício de apenas uma função primária: a proteção da propriedade, nasce
daí a doutrina do Estado mínimo, do intuito de defender aquele direito natural supremo que era
exatamente, para Locke, o direito da propriedade. Quando o direito de voto foi estendido
também aos não-proprietários, aos que nada tinham, aos que tinham somente a força de
trabalho, a consequência foi que se passou a exigir do Estado a proteção contra o
desemprego, seguros sociais contra as doenças e a velhice, casas a preços populares.
(BOBBIO,1986, p. 35 – 6)

“Assim sendo, aconteceu que o Estado social foi a resposta a uma demanda
vinda de baixo, a uma demanda democrática no sentido pleno da palavra”
(BOBBIO, 1986, p. 37-8).
O terceiro obstáculo também se refere ao alargamento da participação e ao acúmulo de
demandas, estando ligado ao tema do rendimento do sistema burocrático como um todo: a
questão da ingovernabilidade democrática.

Nota-se que o Estado liberal, ao se transformar em Estado democrático emancipou a


sociedade civil do sistema político. Tal processo de emancipação fez com que a sociedade civil
se tornasse cada vez mais uma inesgotável fonte de demandas dirigidas ao governo, ficando
este, para bem desenvolver sua função, obrigado a dar respostas sempre adequadas. No
entanto, é tarefa das mais difíceis responder a demandas cada vez mais numerosas e
urgentes. “A quantidade e a rapidez destas demandas são de tal ordem que nenhum sistema
político, por mais eficiente que seja, pode a elas atender adequadamente” (BOBBIO, 2006, p.
38).

Ademais, diante da rapidez com que as demandas chegam ao governo, torna-se contrastante a
lentidão que os complexos sistemas político-democráticos impõem à classe política no
momento de tomada das decisões. Há portanto uma verdadeira defasagem entre os
mecanismos, um cada vez mais acelerado e outro cada vez mais lento.

Em síntese, a sobrecarga de demandas viabilizou a defasagem quantitativa e qualitativa das


soluções propostas pelos métodos adotados para essa finalidade.

Sabidamente o ideário democrático partiu de um modelo de sociedade muito menos complexo


e com um número bem menor de demandas, motivo pelo qual os obstáculos levaram às
chamadas falsas promessas.

À guisa de conclusão, valemo-nos das ideias de Guillermo O`Donnell, para quem a existência
de cidadãos pobres e desiguais é inerente à dimensão burocrática do Estado, sendo certo que
este problema “é mais severo e sistemático quando o “sujeito dessas relações está em
situação de pobreza e desigualdade ampla e severa. Esses males cultivam o autoritarismo
social, amplamente praticado na América Latina por ricos e poderosos, e repercutem na
maneira em que as burocracias do Estado tratam muitos indivíduos. Essa é, acredito, outra
dimensão crucial da qualidade da democracia; na América Latina, com suas profundas e
persistentes desigualdades, essa dimensão é uma das mais deficientes” (O`DONNELL, 2002).[7]

4. Conclusões Articuladas
Por todo o exposto no presente trabalho, apresentamos as seguintes conclusões articuladas:

1. A democracia moderna não cumpre a todas as aspirações da sociedade, de modo que


Norberto Bobbio veio a desenvolver o que chamou de Promessas não cumpridas da
Democracia Moderna, denunciando o nascimento de uma sociedade pluralista com vários
centros de poder, a sobreposição da representação de interesses sobre a representação
política (visando os interesses da nação), a persistência das oligarquias, o espaço limitado em
que a democracia é praticada, a permanência do poder invisível e a figura do cidadão não
educado para a democracia, de modo que aqueles a que se destina a democracia não estão
aptos a praticá-la;

2. A tecnocracia e o crescimento do aparato burocrático são frutos naturais do processo de


democratização da sociedade que não foram previstos pelos pensadores da democracia
moderna e que culminaram nas ditas falsas promessas da democracia. Ainda, a democracia
enfrenta a realidade de pobreza política, de modo que o povo participa do jogo democrático
somente pela obrigação, desconhece as regras e não tem consciência do significado do voto;

3. Sem a educação básica para o cidadão, possibilitadora da formação de cidadãos cientes de


seu papel na democracia, do aprimoramento da participação popular, de melhores níveis de
organização da sociedade civil, dificilmente estaremos avançando no processo democrático;

4. A Democracia tem como pressuposto a igualdade, de modo que em uma sociedade marcada
pela pobreza e desigualdade ampla e severa não há democracia real.

5. Por fim, forte nas lições de Guillermo O’Donnell, sem justiça social não há democracia e,
sendo esta um processo permanente de construção, somente superaremos os obstáculos à
concretização da democracia e realizaremos as suas promessas não cumpridas na medida em
que a República Federativa do Brasil se aproximar de seu objetivo constitucional de erradicar a
pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais, como previsto no inciso III, do artigo 3º,
da Constituição Federal.

5. Referências Bibliográficas
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo; tradução de
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

_______, Norberto. Verbete Absolutismo em Dicionário de Política. Brasília: UnB, 1986

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Rio de Janeiro. FORENSE. 1986.

_______, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa, 2ª ed. 2003, Malheiros.

_______, Paulo. Reflexões. Política e Direito. 3ª ed. Malheiros.

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. Educação Para a Democracia. Disponível em


http://www.scielo.br/pdf/ln/n38/a11n38.pdf - acesso em 05/11/2013.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 1995, São Paulo, Ática.

DEMO, Pedro. Pobreza Política. 6ª ed. 2001.

O´DONNEL, Guillermo. Democracia Delegativa? Em: Novos Estudos Cebrap nº 31 – out. 91.
São Paulo, Ed. Brasileira de Ciências.

_________, Guillermo. Em, A Democracia na América Latina: Rumo a uma democracia de


cidadãs e cidadãos, disponível em http://www.pnud.org.br/pdf/TextoProddal.pdf - acesso em
05/11/2013).

SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, 30 ed., 2008, Malheiros.

STRECK, Lenio Luiz e BOLZAN DE MORAIS, José Luiz. Ciência Política e Teoria Geral do
Estado. Porto Alegre, 4 ed., 2004, Editora do Advogado.

Notas
Contrapondo o Estado despótico ao Estado democrático Bobbio afirma que aquele é o tipo
[2]

ideal de Estado de quem se coloca do ponto de vista do poder; no extremo oposto encontra-se
o Estado democrático, que é o tipo ideal de Estado de quem se coloca do ponto de vista do
direito
[3]Quando se refere à relação ente Estado liberal e Estado democrático, Bobbio afirma que a
concessão dos direitos políticos foi uma consequência natural da concessão dos direitos de
liberdade, pois a única garantia de respeito aos direitos de liberdade está no direito de controlar
o poder ao qual compete esta garantia. Para Bobbio o Estado liberal é o pressuposto não só
histórico como jurídico do Estado democrático. Ambos são interdependentes em dois modos:
na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas
liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da
democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a
existência e a persistência das liberdades fundamentais. A prova histórica desta
interdependência está no fato de que Estado liberal e Estado democrático, quando caem, caem
juntos. Em BOBBIO, Norberto, op. cit. p. 33

Como forma de ilustrar os efeitos da participação popular funcionando apenas como


[4]

cumprimento de dever social podemos mencionar o exponencial crescimento da apatia política,


ou seja, a prática democrática pressuposta na base da cidadania foi submetida à apatia
política.
[5] Notícia em http://noticiasriobrasil.com.br/?p=9924. - acesso em 05/11/2013.
[6] Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ln/n38/a11n38.pdf - acesso em 05/11/2013.

Texto elaborado para o PRODDAL, em A Democracia na América Latina: Rumo a uma


[7]

democracia de cidadãs e cidadãos, disponível em http://www.pnud.org.br/pdf/TextoProddal.pdf


- acesso em 05/11/2013).

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