04 - Pareceres - Conselho - Consultivo - Patrimonio - Cultural - Vol1
04 - Pareceres - Conselho - Consultivo - Patrimonio - Cultural - Vol1
04 - Pareceres - Conselho - Consultivo - Patrimonio - Cultural - Vol1
DO
P ARECERES DO C ONSELHO C ONSULTIVO DO
P ATRIMÔNIO C ULTURAL
DO
P A RE CE RE S
VOL
volume i
Diretoria do IPHAN
Andrey Rosenthal Schlee
Luiz Philippe Peres Torelly
Marcos José Silva Rêgo
Robson Antônio de Almeida
Vanderlei dos Santos Catalão
Coordenação editorial
Sylvia Braga
Edição e copidesque
Angélica Torres Lima
Gilka Lemos
Revisão e preparação
Gilka Lemos
Cristiane Dias
Fotos
Acervo Iphan
ISBN : 978-85-7334-286-4
1. Processo de tombamento - parecer. 2. Patrimônio Cultural. 3. Patrimônio material. I. Reis Filho, Nestor
Goulart. II. Finger, Anna Elisa.
CDD 363.69
Os pareceres reunidos nesta publicação foram editados e sofreram supressões apenas nas formalidades de
praxe, de modo a facilitar a leitura.
www.iphan.gov.br | www.cultura.gov.br
Pareceres do Conselho Consultivo do
Patrimônio Cultur al
Cidades Históricas, Conjuntos Urbanísticos e Arquitetônicos
volume i
II. Distrito Federal
Sumário
06 APRESENTAÇÃO
09 NOTA INTRODUTÓRIA
11 A. CIDADES MODERNAS
13 I. Amapá
13 Vila Serra do Navio
69 II. Bahia
69 Andaraí – Igatu
73 Itaparica
77 Lençóis
81 Mucugê
85 Porto Seguro
89 Rio de Contas
93 Salvador – Cidade Baixa
107 Salvador – Corredor da Vitória
113 São Félix
159 V. Maranhão
159 Alcântara
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
177 VIII. Mato Grosso do Sul
177 Corumbá
191 X. Paraíba
191 Areia
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Apresentação
A reunião de pareceres dos membros do Conselho Consultivo do Iphan sobre 46 sítios urbanos reconhecidos
como patrimônio nacional é de uma riqueza que ultrapassa o valor de cada uma dessas peças, individualmente já
tão valiosas. Se vista no conjunto, a coleção, primeira de uma série, retrata o olhar do Iphan sobre o patrimônio
urbano brasileiro, especialmente entre os anos 1970 e 2010. Embora não esgote todas as ações de tombamento
de sítios urbanos no período, contém os casos mais representativos, sob a ótica do bem objeto de interesse ou
como elemento elucidativo da evolução da abordagem e das estratégias da política de preservação. De imediato,
sepulta definitivamente a tese, hoje já bastante superada, de que o foco da proteção do Iphan se concentrou nos
monumentos de valor excepcional, sejam os isolados, sejam os sítios de caráter monumental. Especialmente a
partir dos anos 1980, essa tendência vai sendo totalmente revertida, o que resulta também em maior dispersão
territorial, tanto para “além Tordesilhas” quanto em direção aos interiores dos estados litorâneos.
Ainda que, como dito, os pareceres selecionados não respondam pela totalidade dos bens tombados nesses
quarenta anos, observa-se um crescimento acentuado do número de tombamentos urbanos durante a primeira
década do século XXI, isto é, nesses dez anos se concentra a metade dos exemplos apresentados. Essa tendência
explica o imenso desafio vivido hoje pelo Iphan para a gestão de cidades, uma vez que a somatória dos sítios urbanos
tombados compreende, em todo o país, cerca de 80 mil edificações e coleciona uma diversidade de problemas
típicos de áreas centrais, pelo adensamento e especulação, bem como pela subutilização e marginalização.
Outra tendência da prática de proteção que fica demonstrada pelos pareceres é a de se aglutinar, sob uma única
poligonal, vários tombamentos de bens isolados anteriormente existentes, evoluindo da estratégia adotada pelo
Iphan nas suas primeiras décadas, em se tratando de grandes cidades, ou seja, a cautela diante da previsão da
pressão imobiliária que fatalmente recairia sobre essas áreas. Nos exemplos apresentados, complementações e
rerratificações estabelecem poligonais de conjuntos que passam a refletir melhor os valores daquele bem, além de
serem mais fiéis às formas de gestão e fiscalização que o Iphan já vinha exercendo nesses locais, como em Recife,
Belém, São Paulo e Porto Alegre.
De enorme ousadia é o caso do tombamento de Brasília, que, além de incidir sobre uma cidade criada havia
apenas trinta anos, se fez de forma atípica, ao reconhecer o Plano Urbanístico de Lucio Costa como o foco da
proteção, exigindo que os controles do Iphan incidissem não apenas sobre os tradicionais aspectos volumétricos
e construtivos, mas também sobre a destinação de uso dos imóveis, essência do ideário da cidade racionalista e
funcional expresso pela distribuição espacial de funções prevista pelo Plano Piloto. Ainda entre os modernos, o
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organizador da publicação, professor Nestor Goulart dos Reis Filho, destaca a Vila de Serra do Navio, cidade
projetada por Oswaldo Bratke para a companhia mineradora Icomi, implantada no interior do Amapá na década
de 1960, posteriormente abandonada e hoje sendo reocupada por outro perfil de moradores. Preservar o projeto
de Bratke implicou primeiro solucionar questões fundiárias e legitimar sua presença naquela comunidade, tema
com que o Iphan vem lidando desde então, felizmente com resultados já muito palpáveis.
Os pareceres vistos individualmente são também preciosos. Que organização tem o privilégio de ter reunido em
seu Conselho intelectuais, autores e pesquisadores do porte de Gilberto Freyre, Paulo Santos, Pedro Calmon,
Gilberto Ferrez, Augusto da Silva Telles, Eduardo Kneese de Mello, Nestor Goulart, Francisco Iglesias, Ângelo
Oswaldo, Joaquim Falcão, Max Justo Guedes, Paulo Ormindo de Azevedo, Liberal de Castro, Paulo Bertran?
E outros que somam conhecimento do tema com vasto currículo de preservacionistas ou de gestores como
Ítalo Campofiorito, Luiz Philippe Andrés, Sabino Barroso, Paulo Chaves, Cyro Lyra, Eugenio Lins, Dalmo
Vieira Filho, Rosina Parshen, Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Marcos Azambuja? Os pareceres desse time
selecionado tornaram-se peças fundamentais para a gestão dos bens pós-tombamento, já que os conjuntos
apresentam heterogeneidades, ou seja, nem tudo deve ser preservado, uma vez que há em seu interior áreas e
bens desconformes, em mau estado de conservação, que, importante dizer, são apontadas pelos relatores não
como impeditivos do reconhecimento, mas, ao contrário, como motivadores para se buscar a tutela do estado
visando à reversão dos problemas.
Resta agradecer ao ex-presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, que idealizou essa série, à sempre
competente e enriquecedora organização de Nestor Goulart, à equipe de publicações do Iphan, chefiada por
Luiz Philippe Torelly, a todos da casa que tratam com tanto rigor os acervos documentais e, em especial, aos
Conselheiros, pela grandeza de seu trabalho em favor do mais alto interesse público, fonte do orgulho que
ostentamos de termos sido capazes de construir, ao longo de décadas, uma política e um órgão de patrimônio
com a qualidade dos que temos hoje no Brasil.
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II. Distrito Federal
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Nota introdutória
Em maio de 2010, foi instalada a Câmara de Arquitetura e Urbanismo do Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural, que entre os seus objetivos inclui o estudo dos critérios de tombamento de bens culturais. Para essa
finalidade, é fundamental o exame dos processos correspondentes, em especial os pareceres conclusivos preparados
pelos conselheiros, bem como as informações finais elaboradas pelos técnicos e pelos quadros jurídicos da Casa.
São dois grupos de documentos de alto interesse, do ponto de vista histórico e cultural, que agora, por proposta de
Câmara, a Presidência do Iphan decidiu publicar. Com a colaboração eficiente da então secretária do Conselho,
a historiadora Anna Maria Serpa Barroso, foram reunidos os informes de todos os processos que, dado o número
elevado de casos, serão publicados em dois volumes.
Neste primeiro volume, apresentamos alguns pareceres sobre cidades históricas, conjuntos urbanísticos e
arquitetônicos. São documentos fundamentais para todos os que se dedicam ao estudo da matéria. Permitem
conhecer, na prática, os processos de trabalho do Iphan e os critérios de valor que presidem as políticas de
proteção, bem como as especificações e as recomendações aplicáveis a cada caso.
Os mais antigos, assinados por alguns dos grandes nomes ligados à proteção dos bens culturais no passado, são
em si mesmos documentos de interesse histórico especial.
Os elaborados a partir da década de 1970, bem mais circunstanciados, incluem um número maior de informações
úteis e mostram mudanças na legislação e nas práticas administrativas.
Com esta publicação, acreditamos ser possível ampliar o diálogo, em âmbito nacional, entre profissionais que
atuam nas esferas administrativas federal, estadual e municipal, e esperamos atingir todos os interessados pelo
estudo do patrimônio cultural do país.
Grade do Instituto de Educação do Estado do Pará, Belém. Foto: Caio Reisewitz, 2007.
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Cidades Modernas
I. Amapá
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
I. Amapá
PROCESSO: 1.567-T-08
RELATOR: LUIZ PHELIPE DE CARVALHO CASTRO ANDRÈS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 15 DE ABRIL DE 2010
Foi com muita honra que recebi do senhor presidente do Iphan, doutor Luiz Fernando de Almeida, por
intermédio da profa. Anna Maria Serpa Barroso, a incumbência de examinar e opinar sobre este processo, que
trata do pedido de tombamento do “Núcleo Vila Serra do Navio, Município de Serra do Navio, Estado do
Amapá”.
Meu primeiro passo foi conhecer a cidade e os sítios no entorno do objeto desta proposição. Solicitei ao Iphan
as condições para me deslocar de São Luís do Maranhão até aquele município, no interior do estado do Amapá,
e fui solicitamente acolhido pela equipe da Superintendência local, por meio de sua titular, a arquiteta Simone
da Silva Macedo.
Já em Macapá, me deparei com a Fortaleza de São José, de presença dominante às margens do rio Amazonas e
que abriga a sede do Iphan naquele estado. Tombada como Patrimônio Histórico Nacional, desde 1950, é um
belo exemplo de como se pode reaproveitar o patrimônio cultural por meio de um trabalho sério de restauração
e adaptação. No caso deste – um dos maiores e mais expressivos exemplares da arquitetura militar portuguesa
no século XVIII, hoje transformado em espaço de cultura e lazer, integrado a um parque ambiental da cidade,
de intensa visitação por parte dos amapaenses e que exerce uma função pedagógica junto àquela comunidade –,
introduzindo de forma positiva o conceito de tombamento, não como ação limitadora, mas que faz devolver à
população um bem que se transforma em equipamento de uso coletivo, apropriado por todos, que os engrandece
e orgulha, além dos evidentes benefícios de gerar empregos através do turismo.
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I. Amapá
Na viagem de Macapá ao município de Serra do Navio, contamos com a ajuda voluntária do arquiteto Daniel
da Silva Souza, natural da Vila Serra do Navio, onde viveu a infância e parte da adolescência, que nos guiou
em direção ao núcleo da selva tropical amazônica, na região mais setentrional do país. A rota das estradas que
percorremos, distante por mais de duzentos quilômetros, substitui o percurso dos rios, que por sua vez eram
utilizados como vias de acesso pelos desbravadores desse território no início do descobrimento, no século XVI, e
nos introduz na esplêndida paisagem amazônica, antes atravessando campos e cerrados e áreas de reflorestamento,
para finalmente descortinarmos a serra verdejante – esta sim, coberta de densa mata amazônica, com árvores que
alcançam quarenta a cinquenta metros de altura, entremeadas por veredas de buritis e por onde serpenteia o rio
Amapari, na proximidade de cujas margens se assenta a cidade que é o objeto desta proposição.
O trajeto nos aproxima da primeira região do país onde, no início do século XX, foram descobertas grandes
jazidas de manganês, na direção do Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque. O Tumucumaque,
criado em agosto de 2002, já é reconhecido como o maior parque de floresta tropical do mundo e é quase do
tamanho do estado do Rio de Janeiro. Pouco a pouco, e na medida em que nosso carro avançava, fui me dando
conta de onde estava eu no universo imenso da Amazônia, olhando um pequeno mapa, ouvindo os relatos do
arquiteto que nos guiava e observando as raras placas de sinalização da estrada, que indicavam, por exemplo, a
derivação para o município do Oiapoque, o famoso extremo norte do litoral brasileiro.
Antes, descobrira que o topônimo “Serra do Navio” não é mais um rastro de Fitzcarraldo, personagem mítico
que percorreu outras serras amazônicas, arrastando por dentro da mata selvagem, com o sacrifício de muitas
vidas, imenso navio de madeira, para perseguir um projeto mirabolante. Segundo explicações locais, neste
nosso caso, o nome da vila se deve ao formato natural de uma montanha, cujo perfil lembrava a forma de um
navio. Montanha esta que, por ser constituída de manganês, foi posteriormente desfigurada pelo desmanche
da mineração e reduzida a pedras para exportação. O gentílico é “serrano”. Seus habitantes se autodenominam
“povo serrano”.
Percebera eu, também, que um pouco mais ao sul estava o município do Laranjal do Jari, que evoca o rio do
mesmo nome, às margens do qual se instalou o famoso Projeto Jari. Um potentado multinacional, construído
pelo milionário americano Daniel Keith Ludwig, que chegou a adquirir uma área de florestas do tamanho do
estado de Sergipe, destinando-as à agropecuária, mineração e reflorestamento para produção de celulose.
E finalmente, na chegada à vila, a emoção de saber-me muito próximo do habitat dos índios Wajãpi, cuja arte
Kusiwa, de um grafismo corporal rico e expressão oral reveladora de uma cosmogonia intrigante, já passou pela
avaliação deste egrégio Conselho e aqui foi inscrito no Livro de Registros das Formas de Expressão, em 2002,
para no ano seguinte tornar-se o primeiro acervo nacional a ser reconhecido pela Unesco como Obra-Prima do
Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
A viagem em si, ouvindo as narrativas e os depoimentos dos arquitetos Simone e Daniel, serviu para mim como
um introito ao percurso que vamos realizar na história.
Em Serra do Navio, fomos recebidos pela prefeita Francimar Pereira da Silva Santos, que nos acolheu com muita
gentileza e nos levou a conhecer o setor industrial, o qual, segundo testemunhei, encontrava-se fechado com
cadeado e sob forte vigilância, a tal ponto que nossa visita de reconhecimento só poderia ser realizada com o salvo
conduto da presença da autoridade máxima do município, a prefeita. Aí, tive a sorte de conhecer o local que para
mim representou muito no esforço de compreensão deste caso, o setor industrial da Vila Serra do Navio.
A tarefa de elaborar o parecer foi mais uma vez facilitada pela qualidade dos estudos cuidadosamente preparados
pelo Iphan, que se encontram no dossiê de tombamento. No entanto, é minha tarefa oferecer aos senhores
conselheiros uma síntese fiel do que me foi dado presenciar e conhecer durante minha visita ao local e que,
examinando as mais de setecentas páginas do processo, lhes permita estabelecer um juízo sobre esta proposta.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Quanto ao dossiê, cuidadosamente preparado por técnicos competentes da equipe da 2a SR do Iphan, sob a
coordenação geral da arquiteta Maria Doroteia de Lima, é amparado em minuciosos estudos, como aqueles
dos arquitetos Hugo Segawa, Mônica Junqueira e Guilherme Mazza, que escreveram sobre a vida e a obra de
Oswaldo Bratke, ou ainda do arquiteto Benjamin Adiron Ribeiro, que registrou a história da criação da Vila
Serra do Navio, contada através dos aspectos geográficos, políticos, sociais e econômicos que deram origem
a uma peculiar forma de ocupação, em meio às vastas extensões da mata amazônica. Trata-se, o dossiê, de
um documento didático, fartamente ilustrado com fotos, mapas e desenhos que traduzem a importância do
patrimônio cultural representado no acervo de arquitetura e urbanismo modernista.
Para introduzir o assunto em seu contexto histórico, apresento aqui uma cronologia retirada das informações
contidas em vários pontos do processo:
Boa parte dessa história gira em torno da descoberta de grandes jazidas de manganês na região e da
importância que este mineral ocupa no processo de produção do aço, funcionando como elemento
redutor na etapa de fundição e economizando energia no derretimento do minério de ferro. Em outras
palavras, o manganês é material precioso e de grande importância para as potências industriais;
Em 1934, o engenheiro Josalfredo Borges assinala ocorrências de minério de manganês no vale do rio
Amapari;
Em 1941, um garimpeiro de nome Mário Cruz recolhe amostras de minério na Serra do Navio;
Em 1943 (13 de dezembro), o presidente Getúlio Vargas assinou ato pelo qual se criava o Território
Federal do Amapá, como parte de uma política do Estado Novo para o “desenvolvimento da Amazônia”,
sendo nomeado governador o então capitão Janary Gentil Nunes;
Em 1946 (13 de setembro), o presidente Eurico Gaspar Dutra, por meio do Decreto-Lei n. 9.858,
constituiu em reserva nacional as jazidas de manganês existentes e incumbiu o governo do território de
proceder às pesquisas e prospecções;
Em 1947 (outubro), foi publicada a concorrência para exploração das jazidas e a organização do sistema
produtivo da mineração em Serra do Navio mudou o panorama socioeconômico e cultural da região;
Em 1947 (novembro), foi julgada a concorrência e venceu uma empresa brasileira denominada Icomi
(Indústria e Comércio de Minérios Ltda.), num certame em que estiveram concorrendo poderosas
mineradoras internacionais;
Em 1951, a empresa conclui os estudos geológicos e confirma a existência de quantidade superior a dez
milhões de toneladas de minério;
Em 1953, foram assinados os contratos de concessão para o porto de minério e estrada de ferro. Esta data
é importante no processo, pois daí começa a contar o prazo de cinquenta anos de licença para exploração
das jazidas, ou seja, até 2003. Entretanto, precisamos observar desde o início que o projeto Icomi como
um todo compreendia mais do que a Vila Serra do Navio. Tratou-se da construção de duas vilas e de um
sistema integrado de transporte ferrovia-porto, ligando-as. Ou seja, no interior da selva, o local das jazidas
e da extração do minério, foi instalada a Vila Serra do Navio propriamente dita e todo um complexo
de instalações industriais destinadas à extração, beneficiamento e movimentação do minério, que era
armazenado em vagões e transportado por uma ferrovia de 194 quilômetros até o porto, no estuário do
rio Amazonas. Ali, onde o minério era embarcado em navios de grande calado, é que foi construída a
segunda vila, denominada de Santana;
Em 1954, iniciaram-se as obras de instalações industriais, embarcadouro e ferrovia;
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I. Amapá
Em 1955, iniciaram-se os projetos de urbanização e de construção das duas vilas destinadas aos
empregados da Icomi;
Em 1957, concluem-se, antes do prazo estipulado, as obras de instalações industriais, embarcadouro e
ferrovia, e começa o embarque de minério no porto de Santana;
Em 1960, concluem-se as obras de urbanização e construção das vilas residenciais da Serra do Navio,
próximas do lugar de extração, e de Porto de Santana, perto do embarcadouro;
Em 1988 (5 de outubro), com a nova Constituição Federal, o território foi elevado à categoria de estado.
Mas, o estado do Amapá só foi instalado de fato no dia 1° de janeiro de 1989, com a posse do primeiro
governador eleito;
Em 1992, houve a criação do município de Serra do Navio;
Em 1998 (5 de janeiro), a Icomi paralisa as atividades, após 44 anos de atuação e seis anos antes do
término do contrato, em virtude de que havia se tornado antieconômica a extração do manganês, pela
queda do preço no mercado internacional;
Em 1998 (6 de agosto), alunos e funcionários do Curso de Arquitetura da Universidade Federal do Pará
entram com pedido de tombamento;
Em 2003, finda o prazo de concessão das jazidas. Detalhe importante é que tanto o contrato de
arrendamento como o Decreto-Lei 39.762/56 estabelecem que, ao final do prazo do contrato, “as
benfeitorias, construções, melhoramentos e instalações reverterão ao patrimônio da UNIÃO”.
Abro parênteses para observar, nesta cronologia, como foi contínua e rápida a sucessão de providências. Observa-
se uma surpreendente celeridade em um processo ocorrido há mais de sessenta anos, em um Brasil afastado dos
grandes centros, em uma recém-criada unidade da federação, ainda como território, e que devia sofrer de todas
as mazelas do serviço público, como falta de materiais e de pessoal qualificado.
Também impressiona a rapidez da construção das vilas, no prazo de cinco anos, incluindo-se, aí, o tempo gasto
com viagens de estudos, pesquisas e elaboração do projeto pelo escritório de Bratke, tarefa esta que foi realizada
com poderoso aporte financeiro da Icomi, que não mediu esforços para atender às recomendações do projetista.
Mencionei no início, com ênfase, a Fortaleza de São José porque, historicamente, os dois empreendimentos são
relacionados em suas motivações estratégicas, muito embora separados por séculos no tempo.
Como área de fronteira, a região que hoje corresponde ao estado do Amapá sempre foi alvo de políticas que
tentavam promover a sua colonização e o seu povoamento. A fortaleza foi construída como parte de uma
estratégia geopolítica do governo português, no período pombalino, com o propósito de assegurar a presença,
a vigilância e, portanto, o controle e o domínio da Amazônia, com base no Tratado de Madri, celebrado entre
Portugal e Espanha, em janeiro de 1750, que definiu os limites ao norte da colônia brasileira.
Também a chegada de colonos para as vilas de Macapá e Mazagão, a criação de colônias agrícolas no Oiapoque
guardam pontos de convergência com as motivações do governo brasileiro, na primeira metade do século XX,
para estimular a exploração do manganês.
Além do que, esse fato foi visto como argumento de política de relações exteriores, conforme nos revela, no texto
do dossiê, a opinião do geólogo Glycon de Paiva, renomado especialista brasileiro que realizou levantamento
geológico e estudos de jazidas em todos os estados do Brasil:
O aspecto geopolítico do Manganês do Amapari predomina sobre qualquer outro técnico ou
comercial e que todos os esforços do governo devem convergir para, em qualquer tempo, embora
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
aproveitado por particulares, possa a província manganífera do Amapá servir ao Brasil como
arma política, econômica e comercial de primeira grandeza.
De fato, a experiência de mineração do manganês estimulou a ocupação de outras áreas do território, em especial
na capital Macapá e no local da Vila Amazonas ou Vila de Porto de Santana, atraindo gente de todas as partes
do país em busca de oportunidades, que se congregaram na diversidade de suas culturas originais, consolidando
o que se pode reconhecer como uma presença brasileira na região.
Conforme cita o arquiteto José Aguilera, do Gprot-Depam/Iphan, em seu excelente parecer,
a Criação do TFA em 1943 como parte de uma política do Estado Novo (1937-1945) para o
“Desenvolvimento da Amazônia”, e a posterior organização do sistema produtivo da mineração
em Serra do Navio, transformaram o panorama sócio-econômico e principalmente cultural da
região.
Não obstante a influência de estratégias políticas do Brasil, o fato é que a extração de manganês no Brasil
representava vantagens em relação à URSS, principal fornecedor do minério para os EUA, especialmente com o
advento da «guerra fria», pois esse é um mineral de grande potencial estratégico, necessário à produção dos aços
resistentes à abrasão, como aqueles que são utilizados na fabricação de canhões e esteiras de tratores e tanques de
guerra. Já a Icomi havia sido resultado de uma sociedade entre o magnata brasileiro Augusto Trajano de Azevedo
Antunes, com 51% das ações, e a empresa norte-americana Bethlehem Steel, com 49%.
Mas, voltando ao teor do processo, o procedimento administrativo inicia-se em 6 de agosto de 1998, com
a solicitação de tombamento, na forma de abaixo-assinado por alunos, técnicos e funcionários do curso de
Arquitetura da Universidade Federal do Pará, dirigida à doutora Elizabeth Melo Soares, coordenadora da então
Sphan do Pará e Amapá. Portanto, estamos tratando de um processo que se iniciou há doze anos.
A solicitação se referia ao tombamento
do COMPLEXO DA ICOMI no Amapá, constituído pela cidade Jardim da Serra do Navio
e todas as demais instalações urbanas, industriais, portuárias, assim como a ferrovia e seus
equipamentos (galpões, locomotivas, vagões de carga e de passageiros, seus acessórios), no caso da
cidade, sua malha urbana, sua arquitetura e paisagem.
Segue-se uma coleção de recortes de jornais do Pará, do Amapá e de São Paulo, datados do mesmo ano de 1998,
onde se pode reconhecer de imediato, pelo tom das manchetes, a preocupação generalizada com o patrimônio
da Icomi, que, desde a paralisação das atividades da empresa, vem sendo disputado pela União, pelo estado do
Amapá e pela prefeitura de Serra do Navio.
Não é de se estranhar a disputa. As notícias publicadas nesses jornais descrevem assim, e de forma apenas
resumida, o patrimônio, com valor estimado em um bilhão de dólares, que a Icomi deixou ao paralisar suas
atividades:
Uma estrada de ferro de 194 quilômetros, mais de 30 vagões de carga, e de passageiros, locomotivas,
mais de 500 casas em Santana e Serra do Navio, um hospital, parte de uma hidrelétrica, linhas
de transmissão de energia, prédios de escolas e de ginásio de esportes, um hotel, duas pousadas,
uma ponte de Concreto de mais de 200 metros, dezenas de caminhões importados de grande
potência, dragas, duas escavadeiras de 220 toneladas, e duas de 110 toneladas, central telefônica
e todo tipo de equipamentos e materiais próprios para extração mineral.
Observe-se que todo esse complexo equipamento encontrava-se em condições de funcionamento no momento
em que a empresa paralisou a extração do minério, em 5 de janeiro de 1998. Portanto, há apenas doze anos, seis
anos antes do término de seu contrato.
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I. Amapá
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
E finaliza propondo:
a realização de um grande seminário no local, com participação das autoridades com poder de
decisão e onde sejam definidas atribuições e assumidos compromissos no cumprimento de metas
estabelecidas durante o encontro.
Em 2007 (23 de julho), a superintendente regional do Iphan do Pará, Maria Doroteia de Lima,
recebe correspondência do deputado Manoel Brasil, do estado do Amapá, através da qual o referido
parlamentar “vem solicitar informações sobre o andamento do processo de tombamento”, bem como
“solicita orientação para substanciar o pedido de tombamento estadual da Serra do Navio e entorno, via
Assembleia Legislativa”.
Em 2007 (21 de agosto), essa solicitação do deputado Manoel Brasil é atendida por meio de ofício
assinado por Maria Doroteia de Lima, superintendente regional da 2a SR/Iphan, ocasião em que alerta
sobre a necessidade de se convocar também, para o debate, as empresas mineradoras que entraram em
atuação na área, após a saída da Icomi, além dos representantes da Câmara dos Vereadores, governos
estaduais e municipais e representantes do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM),
Ministério do Turismo, Ministério do Meio Ambiente e Ministério das Cidades.
Em 2007 (3 de setembro), a superintendente Maria Doroteia de Lima oficia ao chefe do DNPM no
Amapá sobre a tramitação do processo de tombamento e solicita os nomes das novas empresas mineradoras
que, naquele momento, estavam explorando jazidas minerais na mesma região.
Em 2007 (25 de setembro), o governador do estado do Amapá, Antônio Valdez Góes da Silva, usando de
atribuições que lhe são conferidas pela Constituição do Estado do Amapá, decreta:
Fica constituída Comissão Especial para atuar, de forma efetiva, na assunção das responsabilidades e
realização de todos os procedimentos necessários ao resgate do patrimônio móvel, imóvel, ambiental,
sanitário, social e de qualquer natureza de competência do governo do estado do Amapá, localizado
no município de Serra do Navio, especialmente na denominada Vila da Serra do Navio.
Em 2007 (22 de outubro), a arquiteta Simone da Silva Macedo encaminha o relatório de uma audiência
pública realizada no dia 18/10/2007. O conteúdo do relatório revela uma situação preocupante. Ficava
evidente que havia se instalado no seio daquela comunidade um forte sentimento de desconfiança e
até mesmo de rejeição ao tombamento. De alguma forma, os primeiros anúncios do tombamento
estadual haviam sido realizados sem que houvesse de fato preparação e uma ação pedagógica para difusão
dos conceitos de tombamento e que permitisse, por parte da comunidade, melhor compreensão dos
benefícios desse ato. Moradores estavam receosos de que o tombamento significasse a sua expulsão. Além
do que, havia um clima de profunda insatisfação com o poder público em face aos crescentes problemas
de infraestrutura que passaram a afligir a vila desde que ela deixou de ser gerenciada pela empresa.
Em 2007 (outubro), o governo do estado do Amapá convida o Iphan para uma reunião onde seriam
compatibilizados esforços na tentativa de promover o tombamento concomitante nos níveis federal
e estadual. Propõe parceria com a Secretaria Estadual de Cultura (Secult), para que o Iphan apoie a
instrução do processo de tombamento estadual. Compromete-se o estado em criar uma comissão entre
representantes de seus órgãos estaduais, com vistas a estancar o processo de descaracterização.
Em 2007 (13 de novembro), o Iphan convoca e realiza na sede do município uma reunião com as
instituições públicas estaduais, federais e municipais, empresas de mineração e sociedade civil organizada,
envolvidas no processo de tombamento da Vila Serra do Navio. Nessa reunião, são apresentadas as
principais implicações do tombamento, bem como ouvidas as reivindicações da comunidade, em claro
esforço para obter o engajamento de todos no processo.
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I. Amapá
Em 2007 (18 de dezembro), foi criada pelo governo do estado do Amapá a Fundação Serra do Navio
(FSNV), por meio da Lei n. 1.161, para apoio à restauração, manutenção e gestão do patrimônio
arquitetônico, histórico e cultural de Serra do Navio.
Em 2007 (19 de dezembro), a arquiteta Simone da Silva Macedo emite o Ofício n. 215, da Sub-Regional
do Iphan no Amapá, dirigido ao procurador-geral da República no Amapá, onde relata uma situação
emergencial e solicita apoio para embargar, via Ministério Público Federal, todas as obras em andamento
na Vila Serra do Navio que não possuíam nenhum estudo de impacto local. Esse embargo deveria vigorar
até que fossem concluídos os estudos para a demarcação da área de entorno e de influência.
Em 2008 (3 de janeiro), a Sub-Regional do Iphan no Amapá encaminha, por ofício à prefeita Francimar
Pereira Santos, a proposta de tombamento da Vila Serra do Navio, para conhecimento mais detalhado e
discussão com a comunidade, conforme acordado em reunião anterior de 13/11/2007.
Em 2008 (5 de março), o senhor procurador da República Douglas Santos Aragão responde ao apelo do
Iphan, solicitando mais detalhes sobre a fase do processo de tombamento da Vila Serra do Navio, assim
como sobre as providências judiciais e extrajudiciais já adotadas.
Em 2008 (17 de março), Maria Doroteia de Lima, superintendente regional do Iphan-PA/AP, emite o
Ofício n. 147/2008, dirigido à doutora Carmem Rosa Soeiro Abreu, procuradora federal do Iphan, para
solicitar “a adoção de medidas necessárias, com vistas à viabilização de medida cautelar de proteção da
Vila de Serra do Navio”.
Em 2008 (17de abril), Maria Doroteia de Lima, superintendente regional do Iphan-PA/AP, responde
ao senhor procurador em longo ofício, onde descreve todas as etapas do processo, desde sua origem,
em 1988. De início, reitera ao procurador que, “após os estudos já então realizados, não existem mais
dúvidas quanto aos méritos desse conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico, bem como do
acervo ferroviário e industrial”. Na sequência, esclarece que os impedimentos para a finalização dos
procedimentos de instrução “devem-se a disputas e pendências judiciais relativas ao espólio da empresa
ICOMI no Amapá, que se arrastam desde a década de 1990, principalmente no que diz respeito à área
urbana e administrativa da Vila da Serra do Navio”.
Segue-se no corpo do processo o relatório de minuciosa pesquisa cadastral, realizada entre Iphan e Secult,
versando sobre “Uso, Ocupação e Modificações nos Imóveis da Vila de Serra do Navio”. Tal pesquisa
integra o conjunto de esforços empreendidos para subsidiar a instrução do processo de tombamento e,
neste caso em particular, foi esclarecedora no sentido de se indicar a ocorrência de uma série preocupante
de intervenções modificadoras da tipologia original, já então realizadas em diversas casas, bem como a
situação legal e a natureza dos atuais ocupantes.
Acompanham cópia do decreto de criação da Fundação Serra do Navio, cópias de diversos documentos
de Notificações de Fiscalização, Embargos Extrajudiciais, bem como de Relatórios de Vistoria Técnica
lavrados pelo Iphan, durante o ano de 2008.
Em 2008 (22 de outubro), Maria Doroteia de Lima, superintendente regional do Iphan-PA/AP, por meio
do Memorando n. 266/2008, finalmente encaminha
20
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Em 2008 (18 de novembro), memorando da gerente de Proteção encaminha o pedido de abertura do
processo à coordenadora do Copedoc, arquiteta Lia Mota, no que foi atendida, em 24 de novembro,
por providência da gerente de Documentação, Arquivística e Bibliográfica, Francisca Helena Barbosa
Lima. E assim é que, em 4 de dezembro de 2008, a gerente de Proteção, arquiteta Jurema Kopke Eis
Arnaut, pôde informar à superintendente do Iphan no Pará que, finalmente, o que era um procedimento
administrativo foi transformado em processo de tombamento, sob o número 1567-T-08, intitulado “Vila
Serra do Navio, Município de Serra do Navio, Estado do Amapá”.
Encerra-se o primeiro volume do processo de forma preocupante para o patrimônio, pois, de tudo que se pôde
observar nessa documentação, e que se traduz nos autos até então, a situação litigiosa e de indefinição sobre a
posse dos bens da empresa – gerada por uma controvérsia jurídica entre a União e o estado do Amapá, acerca da
titularidade do domínio sobre os bens da extinta Icomi – causou um vazio de autoridade e de controle sobre a
gestão do recém-criado município.
Por um lado, vimos que o pedido de tombamento foi feito bem a tempo, ou seja, no mesmo ano em que a empresa
paralisou suas atividades e que, em resposta, o Iphan havia iniciado imediatos esforços para realizar os estudos e
as pesquisas necessários para subsidiar a proposta. Por outro lado, fica patente que a entrada de novas empresas
mineradoras na mesma área, exercendo atividades sem a imprescindível adoção de medidas mitigadoras de
impacto e sem novos investimentos para conservação ou expansão da infraestrutura da vila, resultou em rápido
processo de degradação do acervo arquitetônico, pelo aumento brusco da população residente e consequente
ocupação desordenada das casas, ameaçando fortemente a integridade da obra urbanística e arquitetônica.
O resultado é que as tentativas do Iphan de estabelecer parcerias, de entabular iniciativas em conjunto com outras
instituições, de obter apoio da comunidade, no esforço de proteção daquele patrimônio, sempre esbarravam
nessa contingência. Ao mesmo tempo, os embargos e as notificações e outras tentativas de impedir ou corrigir as
descaracterizações das casas e as construções fora do padrão vinham sendo, como se diz, “solenemente ignorados”.
Mas, o segundo volume se inicia de forma alentadora, abrindo com importante comunicação dirigida ao
presidente do Iphan pelo procurador-chefe da Advocacia- Geral da União no Estado do Amapá, onde finalmente
se registra, no apagar das luzes de 2008, a decisão judicial, por meio do Acórdão da 5a Turma do Escritório do
Tribunal Regional Federal da 1a Região: “foi reconhecido o domínio da União sobre os referidos bens”, assim
como foi concedida “a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional”, ressaltando ao final que “os bens imóveis
que integram a Vila Serra do Navio estão sendo objeto de incorporação provisória pela Gerência do Patrimônio
da União, no Estado do Amapá, em cumprimento a sobredita decisão judicial”.
Segue-se, no corpo do processo, cópia completa da apelação cível, com Ementa, Acórdão, Relatório e o brilhante
e circunstanciado voto da relatora, a excelentíssima senhora desembargadora federal Selene Maria de Almeida,
seguido dos embargos que foram opostos pelo estado do Amapá e o voto final da relatora, negando provimento
aos referidos e reiterando caráter de urgência para deferir, finalmente, em 3 de dezembro de 2008, o pedido de
antecipação da tutela jurisdicional, para que a União pudesse dar imediato cumprimento ao acórdão.
Dessa forma definida, por via de decisão judicial superior, a propriedade do acervo, o Iphan pôde encontrar o
necessário respaldo e amparo legal para dar prosseguimento ao processo de tombamento federal.
Ato contínuo, já em 26 de janeiro de 2009, a gerente de Proteção do Depam oficia ao senhor Michel Amazonas
Cotta, da Advocacia-Geral da União no Amapá, respondendo à indagação daquele escritório sobre o nome e
o número do processo de tombamento e solicitando “seja comunicado ao IPHAN qualquer interferência que
possa comprometer a integridade do sítio”.
Na mesma data, a gerente de Proteção envia ofício à superintendente regional, no Pará e no Amapá, dando
ciência da decisão de antecipação da tutela jurisdicional da Vila Serra do Navio.
21
I. Amapá
Em 2009 (3 de março), é encaminhado o excelente parecer preparado pelo arquiteto José Aguilera, do
Depam/Gprot, do qual passo a transcrever alguns trechos esclarecedores do trabalho do Iphan.
O Iphan realizou minuciosos estudos para verificar a reversibilidade das modificações acontecidas,
realizou entrevistas com os moradores e elaborou uma proposta de adequação da cidade às condições
atuais, preservando ao mesmo tempo sua arquitetura e urbanismo e as características que fazem da Vila
Serra do Navio uma cidade absolutamente singular.
1- Mapa de Urbanização, que registra a vila, tal como foi concebida originalmente;
2 - Mapa de Situação Atual, que acrescenta os acréscimos de edificações ditas extemporâneas, surgidas
em 2006 e 2007;
3 - Mapa de Tombamento e Delimitação de Áreas (área proposta para tombamento): o Setor A (Área
de Preservação da Paisagem), o Setor B (Núcleo Urbano Original) e o Setor C (Área de Expansão do
Núcleo Original);
22
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Vila Serra do Navio. Foto: Arquivo Iphan.
4 - Mapa de Uso do Solo Proposto, com as especificações de usos para os setores, sendo o Setor A
o mais envolvente e abrangente de todos, denominado Área de Preservação da Paisagem; o Setor B,
correspondente ao Núcleo Urbano Original, reservado para habitação, comércio, serviço, educacional,
institucional, religioso, saúde e lazer e de “preservação ambiental”; e o Setor C, definido como Área de
Expansão do Núcleo Original.
A referida cartografia, que espelha a proposição cuidadosamente preparada pelas equipes do Iphan, consta
também do dossiê de tombamento e é referenciada a uma aerofoto de 2007, que também consta do processo.
Em 2009 (13 de março), a gerente de Proteção encaminha, pelo Memorando n. 067/09, ao diretor do
Depam, a sua aprovação ao parecer do arquiteto José Aguilera, favorável ao tombamento federal da Vila
Serra do Navio, “Cidade de Companhia”, modernista. E lembra que: “A proposta de tombamento está
atrelada a um conjunto de diretrizes básicas para intervenções e de cuja implementação dependerá a
efetiva preservação do conjunto”.
Essas Diretrizes para Intervenções e Salvaguarda do Conjunto, que constam do item 7.3 do Anexo
III, especificam
que o tombamento deverá preceder a possível destinação dos imóveis a terceiros, de maneira
que, antes de recebê-los, os usuários tomem conhecimento das restrições existentes, visto que,
atualmente, embora estejam ocupados, todos eles pertencem à União. Define também a
necessidade de preparação prévia de área de expansão para transferência daqueles usos que são
incompatíveis com a preservação dos edifícios e da estrutura urbana.
Para regulamentar as intervenções no perímetro urbano tombado são estabelecidas normas e
propostas de soluções concretas como, por exemplo, para a construção de garagens, fechamentos e
divisão de lotes etc. Da mesma maneira, foram tomados cuidados com a preservação do sistema
viário e da paisagem.
23
I. Amapá
Em 2009 (20 de março), tem lugar na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal no
Amapá uma nova reunião, tendo como partes interessadas a União e o estado do Amapá, e a AGU como
mediadora. Essa reunião foi motivada por pedido do governador do Amapá, senhor Antônio Waldez
Góes da Silva.
Em 2009 (30 de abril), o governador do estado do Amapá, a prefeita do município de Serra do Navio
e o gerente regional do Patrimônio da União no Amapá assinam o Termo de Guarda Provisória que faz
a União Federal, por intermédio do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, ao município
de Serra do Navio e ao estado do Amapá, dos bens imóveis com suas respectivas benfeitorias, que
compreendem a Vila Serra do Navio.
Por meio desse instrumento legal, a União devolve provisoriamente, e sob condições especiais, aos
dois entes, estado e município, a guarda dos imóveis para utilização. Na cláusula oitava, o município
fica obrigado a obedecer integralmente às restrições legais do Iphan, inclusive no que diz respeito ao
tombamento histórico da Vila Serra do Navio.
Em 2009 (30 de abril), o doutor Antônio Fernando Alves Leal Neri, procurador-geral da Procuradoria
Federal/Iphan, solicita, por meio do Despacho n. 34/2009, a elaboração do parecer jurídico.
Em 2009 (30 de junho), está concluído o excelente parecer da Procuradoria Federal do Iphan, assinado
pela procuradora federal doutora Marcyene Lemos Fagundes Furtado, que, ao final, manifesta estar a
matéria do processo de acordo com as normas e os procedimentos e em condições de ser submetida à
apreciação deste Conselho Consultivo.
Em 2010 (12 de fevereiro), por meio do Despacho n. 09/2010, o procurador-geral do Iphan declara sua
aprovação ao parecer jurídico.
Em 2010 (22 de fevereiro), o senhor presidente do Iphan, como de praxe, e atendendo a exigências da
Portaria n. 11, de 11 setembro de 1986, encaminha as notificações de tombamento de ofício da Vila
Serra do Navio aos seguintes destinatários: Alexandra Reschke, secretária da Secretaria do Patrimônio
da União; Antônio Waldez Góes da Silva, governador do estado do Amapá; Francimar Pereira da Silva
Santos, prefeita do município de Serra do Navio; Simone da Silva Macedo, superintendente do Iphan
no estado do Amapá; Liely Gonçalves de Andrade, superintendente da Superintendência do Patrimônio
da União. Manda, ainda, publicar no Diário Oficial da União (em 23 de fevereiro) o respectivo edital de
Comunicação, bem como o Aviso de Comunicação, em jornal de grande circulação.
24
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Em 2010 (10 de março), o processo foi encaminhado a este Conselheiro, para análise e parecer.
Assim é que passo a registrar aqui as impressões que colhi da minha visita à cidade histórica de Vila Serra do
Navio e da avaliação desta rica coleção de documentos que compõe as quase setecentas páginas do dossiê que
tive o privilégio de apreciar.
Como nos demais exemplares de cidades que já são reconhecidas na lista do nosso patrimônio cultural, esse
acervo e sua história têm a face do indiscutível valor histórico, urbanístico, arquitetônico e paisagístico, mas, a
compreensão de sua gênese acaba revelando a presença de um conjunto de forças e de interesses expressivos para
o entendimento do paradoxo aparentemente inamovível das imensas contradições sociais e econômicas do país.
A face mais direta e que vem à tona é a história de uma pequena cidade, batizada de Vila Serra do Navio e
construída em plena selva amazônica, entre os anos 1955 e 1960, projetada pelo renomado arquiteto paulista
Oswaldo Bratke, natural de Botucatu, diplomado em Engenharia de Arquitetura pela Escola de Engenharia
Mackenzie, em 1930, autor de vários projetos de casas na capital e que, por seu turno, contou com os recursos
financeiros de uma grande empresa mineradora.
Por outro lado, a figura do empresário Augusto Trajano de Azevedo Antunes, pioneiro na indústria da mineração
brasileira. Não se pode negar que, ao garantir condições dignas de trabalho e moradia aos seus funcionários, ele
elevou uma atividade vulgarmente conhecida como garimpo, que normalmente reduz os garimpeiros à condição
de escravos, ao status de mineradores.
Azevedo Antunes acreditava no lema que enunciava: “Todo capital tem origem social. E sendo fruto da
acumulação de recursos da própria comunidade, a ela deve voltar”. E, associado ao arquiteto Bratke, procurou
aplicar, na prática cotidiana, os valores e as crenças dessa filosofia empresarial.
O fato é que uma cidade construída nos anos cinquenta do século passado foi dotada de atributos capazes
de fazer inveja a qualquer das nossas cidades contemporâneas; construída com o propósito de abrigar com
dignidade todos os funcionários da mineração, o que representa cerca de 2.500 pessoas, de todos os escalões.
Criterioso na escolha do sítio, o arquiteto Bratke visitou, antes, não só o lugar ainda vazio no meio da selva,
mas foi a vários países conhecer de perto experiências similares de cidades-acampamentos, já construídas por
empresas mineradoras, avaliando seus pontos fracos e falhas, para evitar repeti-los.
Utilizando conceitos modernistas oriundos de uma formação carregada de influências de Walter Gropius,
fundador da Bauhaus, com quem conviveu e de quem era amigo pessoal, Oswaldo Bratke imprimiu a marca de
um racionalismo objetivo no traçado urbano de sua vila modernista.
Na disposição das quadras e na hierarquização das moradias, entremeando as áreas que abrigavam as diferentes
estratificações sociais com áreas de convivência, centro cívico, clube, praça de esportes e uma escola que era
frequentada pelas crianças dos engenheiros e dos operários, criou as condições para a aproximação das famílias
dos diferentes escalões sociais no cotidiano da vila.
O território urbano de Bratke tinha, assim, o propósito de funcionar como fator de integração e agregação entre
as classes sociais daquele pequeno burgo. E mais do que isso, ele construiu uma máquina fantástica de morar e
conviver. Máquina no sentido cibernético do termo, que dá à expressão “máquina” uma organicidade, sendo a
cidade capaz de funcionar como organismo.
A área urbana, por seu turno, foi conectada a um engenhoso mecanismo de extração, beneficiamento e transporte
de minério, até uma distância de duzentos quilômetros. Um sistema industrial que, sem dúvida, é representativo
também de um capítulo importante da história da tecnologia do nosso país e, também, do primeiro momento
em que a tecnologia se instalou com êxito na floresta.
25
I. Amapá
A vila foi sendo dotada de todos os elementos de infraestrutura necessários ao conforto da vida em comunidade,
entre os quais chama atenção o sistema de tratamento de esgotos, ao ponto de ser capaz de devolver a água
completamente descontaminada para o rio Amapari, tal como certamente a cidade de São Paulo, mantidas as
proporções, necessitaria possuir para recuperar o Tietê.
Também cuidaram de dotá-la de sistema de tratamento da água potável para consumo seguro e sadio da
população. Coleta, destino e manejo dos resíduos sólidos. Subestações e grupos geradores com três grandes
máquinas em série, capazes de evitar qualquer possibilidade de apagão. Centro cívico e centro comercial, onde
se introduziu o conceito de compras do tipo “supermercado”, para o abastecimento de gêneros de boa qualidade.
Toda a sua população tinha direito e acesso a um sistema de saúde que abrigava um dos melhores hospitais do
país, à época, e um sistema de ensino dotado de escola de graça. A prevenção e o combate a incêndio na escala
urbana estava garantida através de uma eficiente rede de hidrantes, caso até hoje muito raro em áreas urbanas
brasileiras. A segurança pública eficiente tornava desnecessária a construção de muros e cercas entre as casas.
A segurança e a tranquilidade dos cidadãos estavam também no sistema de circulação e trânsito, de tal sorte
que, mesmo sob o advento do automóvel, o dimensionamento e a configuração das ruas era capaz de garantir o
livre trânsito de crianças e adultos entre as áreas de convivência e suas moradias, sem o risco de atropelamento.
Por todos esses atributos, Serra do Navio, mesmo tendo sofrido uma década de abandono, ainda nos surpreende.
A região parece constituir uma síntese perfeita de toda a história do Brasil. Na boca do rio Amazonas, sua capital,
que assistiu desde o século XVII a chegada dos colonizadores, foi e continua sendo testemunha e protagonista da
saga dos exploradores, em busca desenfreada pelas riquezas. Desde os anos cinquenta do século passado, tornou-
se cenário de um intenso ciclo de mineração.
É, pois, importante preservar o legado da sofisticada civilização de Serra do Navio, que nasceu e cresceu sob o
manto de uma natureza de beleza e força incomensurável. Sua gente usufruiu de um raro e efêmero momento da
economia local, baseado na exploração de recursos minerais cujo cerne foi a atividade de extração e exportação
do manganês, mas, pela primeira vez na história, sem o lado abjeto e degradante da escravidão.
26
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
É possível constatar isso ao ler, no corpo do dossiê de tombamento, os depoimentos dos antigos moradores,
aqueles que tiveram o privilégio de trabalhar e criar seus filhos ali, ou, ainda, como testemunhou a escritora
Rachel de Queiroz, em artigo na revista O Cruzeiro, de 8 de maio de 1965, texto várias vezes citado neste
processo, devido, sem dúvida, ao respeito e à admiração que todos devotam a essa grande cronista e romancista.
O que é a Icomi? A Icomi é um milagre dentro da região amazônica. Duas pequenas cidades que
parecem o sonho de um urbanista lírico. Duzentos quilômetros de estrada de ferro. Um porto
onde encostam transatlânticos. Nas cidades há escolas, hospital moderno, supermercado, clube,
piscina e cinema. As casas dos operários são tão boas e bonitas que a gente fica pensando com
melancolia naqueles arruados, tipo vila de conferência vicentina, que se constróem no Rio para
abrigar favelados. Água, esgotos, telefones e o que mais é preciso para garantir o conforto moderno
naquelas duas ilhas abertas no meio da mata. Você anda meio quilômetro para lá da Serra do
Navio e já está dentro da floresta onde, quinze anos atrás, só tinha onça e algum bugre. E doença
braba na água parada dos igapós. E quem paga tudo isso é a mina.
O arquiteto Bratke foi capaz de, com humildade profissional, respeitar os costumes e o modo de vida do
pessoal da terra e observar sua vocação natural, pesquisando soluções construtivas em suas moradias de palafitas
construídas às margens dos rios, para aliar essas observações com eruditos conhecimentos.
Dessa forma, adaptando materiais e técnicas construtivas, encontrou as soluções capazes de produzir um
ambiente de conforto climático sem necessidade de aparelhos de ar condicionado, só aproveitando a ventilação
e a posição dos raios solares. Na sua busca de perfeição, desceu à riqueza de detalhes dos mobiliários e tipos de
luminárias, produzindo casas apropriadas ao clima quente e úmido.
Ao ler a avaliação dos arquitetos sobre o estilo sóbrio das linhas retas e simples, do aproveitamento da luz, da
ventilação natural e dos espaços, não pude deixar de me lembrar do que reclamava o Eça de Queiroz, após visitar
o Brasil, em texto ferino de 1888, denominado A última carta de Fradique Mendes, dirigido ao paulista Eduardo
da Silva Prado, grande amigo, jornalista e também escritor, membro fundador da Academia Brasileira de Letras:
E o que eu esperava é que os brasileiros, desembaraçados do ouro imoral e de seu D. João VI, se
instalassem em seus vastos campos e aí lhe fossem brotando toda uma civilização harmônica e
própria, só brasileira (...) casas simples, caiadas de branco, belas só pelo luxo do espaço, do ar, das
águas e das sombras.
Então, o que me parece agora é que o grande feito de Bratke, no risco de seu traço límpido e reto, foi ter
produzido, nesta espécie de laboratório amazônico, uma célula de civilização, uma urbe em que o cidadão
de fato podia usufruir de segurança para suas famílias, onde os princípios básicos, os direitos fundamentais
que a nação brasileira promete, pela via da Constituição, garantir a seus filhos, trabalho, educação, moradia e
saúde, foram alcançados e garantidos por quase cinquenta anos, na vila idealizada pelo arquiteto e sua equipe e
construída pela Icomi, com “casas simples, belas pelo luxo do espaço, do aproveitamento do ar, das águas e das
sombras”, parodiando o Eça de Queiroz. Especialmente quando está sob forte questionamento o modelo de
cidades que estamos legando aos nossos descendentes. Onde a maior parte dos cidadãos brasileiros, literalmente
sem cidadania, vive enclausurada atrás de grades, entrincheirada atrás de muros e as crianças ficam sem
segurança para ir à escola. A maior parte das populações que habitam áreas urbanas congestionadas não possui
abastecimento de água ou tratamento de esgoto.
E para me amparar nessa afirmativa, fui buscar em alguns dados do IBGE de 2003 o dramático quadro das
cidades brasileiras: na questão específica do saneamento básico, 17,5% dos domicílios existentes no Brasil não
são ainda atendidos por redes de abastecimento de água e 52% do total não possuem acesso a redes coletoras de
esgoto. Desses dados, concluiu-se que cerca de noventa milhões de brasileiros vivem em domicílios desprovidos
de sistemas de coleta do esgoto sanitário.
27
I. Amapá
Essa é, a meu ver, outra grande motivação que também nos recomenda pela aprovação deste tombamento. Em
nossa modesta contribuição como integrantes do Conselho Consultivo do Iphan, precisamos lançar mão dos
recursos que estejam ao nosso alcance para salvaguardar esse exemplo tão raro e preservar o legado civilizatório
da Vila Serra do Navio.
Na rápida avaliação que fiz no local e pelos dados revelados nos estudos do Iphan, não obstante as preocupantes
descaracterizações já ocorridas em vários imóveis, pode-se constatar que a maioria está ainda bem caracterizada,
ou apenas parcialmente afetada por intervenções. Mas também se observa a urgência de socorrer uma área
que não está sendo incluída nesse perímetro de tombamento, que é a do setor industrial, onde se localizam
exatamente os grupos geradores e, sobretudo, as estações de tratamento de água e de esgotos, bem como sólidos
galpões industriais, com oficinas e uma ótima vocação para abrigar projetos de interesse social e cultural.
De tudo o que se informa neste dossiê, especialmente por sua importância estratégica no contexto do
desenvolvimento da região Norte, no papel de se haver constituído como território seguro de integração com
o interior da Amazônia, não seria justo, pois, que tal acervo de urbanismo e arquitetura urbana, testemunha
inconteste da saga de ocupação de vastas extensões do território brasileiro, permanecesse à margem das atenções
do Iphan, instituição nacional que visa a preservação da memória e da história do país.
Assim, entendo que, do ponto de vista formal, o processo está generosamente instruído e atende aos requisitos
técnicos, jurídicos e burocráticos exigidos pela regulamentação do Iphan, mais especificamente pela Portaria n.
11, de 11 de setembro de 1986.
Neste caso, almeja-se mais uma vez fazer do tombamento federal uma oportunidade de tratar a questão de
forma mais completa, consolidando a metodologia de uma visão sistêmica, do olhar para o todo, na ótica de
28
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
uma perspectiva integrada de um território que guarda os testemunhos de uma rica história, plena de episódios
importantes da ocupação da Amazônia.
Entretanto, não podemos esquecer de que esse ato representa mais uma grande responsabilidade a ser assumida
pelo Iphan, não só no sentido de não frustrar as expectativas daquelas comunidades, como objetivamente pelo
fato de que passa a ser administrativa e legalmente responsável pela preservação daqueles bens.
Torna-se, portanto, necessário envidar imediatos esforços para assegurar o atendimento às recomendações do
dossiê de tombamento, que foram criteriosamente amadurecidas pelas equipes técnicas que atuaram neste
processo, assim como as providências para a instalação da Casa do Patrimônio de Serra do Navio, garantindo
uma estrutura que venha permitir uma verdadeira integração com a comunidade, bem como a condução de
trabalhos de proteção do acervo, na medida em que favoreça parcerias entre os órgãos municipais, estaduais e
o Iphan.
Para concluir, gostaria de registrar a impressão que guardei após minha visita de reconhecimento. O conjunto
urbanístico arquitetônico da Vila Serra do Navio, imerso na paisagem da selva amazônica do vale do Amapari,
compõe um cenário de excepcional harmonia entre o patrimônio erigido pela mão do homem e o ambiente
natural que o cerca e a perfeita combinação desses elementos constitui um habitat saudável para a gente que ali
vive e trabalha, na criação de algo que muito se aproxima da utopia de uma civilização harmoniosa, em meio
a uma natureza incongênere, tal como recomendou um dia o Eça, e cem anos depois pôde celebrar a Rachel,
ambos de Queiroz, sábios e admiráveis escritores da língua portuguesa.
Sendo assim, e acompanhando as recomendações e os pareceres do Departamento de Patrimônio Material e da
Procuradoria Federal que integram os autos deste processo, declaro-me favorável ao tombamento e à consequente
inscrição nos Livros de Tombo 1) Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; 2) Histórico; e 3) das Belas Artes,
sob a denominação de “Núcleo Vila Serra do Navio, Município de Serra do Navio, Estado do Amapá”.
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II. Distrito Federal
30
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
II. Distrito Federal
Brasília-DF | 1990
31
II. Distrito Federal
A Portaria Sphan n. 4/1990 retoma ipsis litteris os termos do Decreto do Governo do Distrito Federal n. 10.829,
de 14 de outubro de 1987, redigido, por determinação do governador José Aparecido de Oliveira, pelo arquiteto
Ítalo Campofiorito, então coordenador de estudos e pesquisas da Fundação Pró-Memória. O decreto respaldou
a inscrição de Brasília no Patrimônio Mundial da Humanidade, pela Unesco (1987). Levado ao Conselho
Consultivo por Ítalo Campofiorito, já agora presidente da Fundação Nacional Pró-Memória e da Secretaria
da Sphan/MinC, o tombamento de Brasília pela União foi aprovado por unanimidade (1990) e tal aprovação
homologada pelo ministro da Cultura (José Aparecido de Oliveira), com a consequente publicação, no Diário
Oficial da União, a 12 e 13 de março de 1990 (Seção I, pág. 5.088). O tombamento do Conjunto Urbanístico
de Brasília passou a obedecer às definições e critérios da Portaria n. 4/1990, que segue o Decreto GDF n.
10.829/87 e é, naturalmente, assinada pelo mesmo autor: Ítalo Campofiorito.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
PORTARIA N. 4, DE 13 DE MARÇO DE 1990
33
II. Distrito Federal
Art. 4º - A escala residencial, proporcionando uma nova maneira de viver, própria de Brasília, está
configurada ao longo das alas Sul e Norte do Eixo Rodoviário Residencial e, para a sua preservação, serão
obedecidas as seguintes disposições:
I - Cada superquadra, nas alas Sul e Norte, contará com um único acesso para transporte de automóvel
e será cercada, em todo o seu perímetro, por faixa de vinte metros de largura, com densa arborização;
II - Nas duas alas, Sul e Norte, nas sequências de superquadras numeradas de 102 a 116, de 202 a 216
e de 302 a 316, as unidades de habitações conjuntas terão seis pavimentos, sendo edificadas sobre piso térreo em
pilotis livres de quaisquer construções que não se destinem a acessos e portarias;
III - Nas duas alas, Sul e Norte, nas sequências de superquadras duplas numeradas de 402 a 416,
as unidades de habitações conjuntas terão três pavimentes, edificados sobre pisos térreos em pilotis livres de
quaisquer construções que não se destinem a acessos e portarias;
IV - Em todas as superquadras, nas alas Sul e Norte, a taxa máxima de ocupação para a totalidade das
unidades de habitação conjunta é de quinze por cento da área do terreno compreendido pelo perímetro externo
da faixa verde;
V - Além das unidades de habitações conjuntas, serão previstas e permitidas pequenas edificações de uso
comunitário, com, no máximo, um pavimento;
VI - Na ala Sul, os comércios locais correspondentes a cada superquadra deverão sempre ser edificados,
em relação às referidas superquadras, na situação em que se encontram nesta data;
VII - As áreas entre as superquadras, nas alas Sul e Norte, denominadas entrequadras, destinam-se a
edificações para atividades de uso comum e de âmbito adequado às áreas de vizinhança próximas, como ensino,
esporte, recreação e atividades culturais e religiosas.
Art. 5º - O eixo rodoviário residencial, nas alas Norte e Sul, terá respeitadas suas características originais,
mantendo-se o caráter rodoviário que lhe é inerente.
Parágrafo único - O sistema viário que serve às superquadras manterá os acessos existentes e as
interrupções nas vias Ll e Wl, conforme se verifica na ala Sul, devendo ser o mesmo obedecido na ala Norte.
Art. 6º - A escala gregária com que foi concebido o centro de Brasília, em torno da intersecção dos
eixos Monumental e Rodoviário, fica configurada na Plataforma Rodoviária e nos setores de Diversões,
Comerciais, Bancários, Hoteleiros, Médico-Hospitalares, de Autarquias e de Rádio e Televisão, Sul e Norte.
Art. 7º - Para a preservação da escala gregária referida no artigo anterior, serão obedecidas as seguintes
disposições:
I - A Plataforma Rodoviária será preservada em sua integridade estrutural e arquitetônica original,
incluindo-se nessa proteção as suas praças atualmente implantadas defronte aos setores de Diversões Sul e
Norte;
II - Os setores de Diversões Sul e Norte serão mantidos com a atual cota máxima de coroamento,
servindo as respectivas fachadas voltadas para a Plataforma Rodoviária, em toda a altura de campo livre, para
instalação de painéis luminosos de reclame, permitindo-se o uso misto de cinemas, teatros e casas de espetáculos,
bem como restaurantes, cafés, bares, comércio de varejo e outros que propiciem o convívio público;
III - Nos demais setores referidos no artigo anterior, o gabarito não será uniforme, sendo que nenhuma
edificação poderá ultrapassar a cota máxima de sessenta e cinco metros, sendo permitidos os usos indicados
pela denominação dos setores de forma diversificada, ainda que se mantenham as atividades preconizadas pelo
Memorial do Plano Piloto.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Art. 8º - A escala bucólica, que confere a Brasília o caráter de cidade-parque, configurada em todas as áreas
livres, contíguas a terrenos atualmente edificados ou institucionalmente previstos para edificação e destinadas à
preservação paisagística e ao lazer, será preservada observando-se as disposições dos artigos subsequentes.
Art. 9º - são consideradas áreas non-aedificandi todos os terrenos contidos no perímetro descrito nos
parágrafos 1º e 2º do artigo 1º desta portaria que não estejam edificados ou institucionalmente destinados a
edificação, nos termos da legislação vigente, à exceção daqueles onde é prevista expansão predominantemente
residencial em Brasília Revisitada, que constituem os anexos I e II desta portaria.
§ 1º - Nas áreas referidas no caput deste artigo, onde prevalece a cobertura vegetal do cerrado nativo,
esta será preservada e as demais serão arborizadas na forma de bosque, com particular ênfase ao plantio de massas
de araucárias, no entorno direto da praça dos Três Poderes.
§ 2º - Nas áreas non-aedificandi poderão ser permitidas instalações públicas de pequeno porte que
venham a ser consideradas necessárias, desde que, apreciadas pelo Cauma, sejam submetidas à consideração da
Sphan.
Art. 10 - Será mantido o acesso público à orla do lago em todo o seu perímetro, à exceção dos terrenos,
inscritos em Cartório de Registro de Imóveis, com acesso privativo à água.
Art. 11 - Com o objetivo de assegurar a permanência no tempo, da presença urbana conjunta, das
quatro escalas referidas nos artigos anteriores desta portaria, em todas as áreas já ocupadas no entorno dos
dois eixos e contidas no perímetro delimitado no parágrafo único do art. 1º desta portaria, ficam mantidos os
critérios de ocupação aplicados pela administração nesta data, sendo que, nos terrenos destinados à recreação e
ao esporte, nenhuma edificação poderá ultrapassar a cota máxima do coroamento de sete metros, à exceção dos
ginásios cobertos, e, nos terrenos destinados a hotéis de turismo, nenhuma edificação poderá ultrapassar a cota
máxima de coroamento de doze metros.
Parágrafo único - Nos terrenos contíguos à Esplanada dos Ministérios, só serão admitidas as edificações
necessárias à expansão dos serviços diretamente vinculados aos ministérios do governo federal, não podendo ser
ultrapassada a cota máxima do coroamento dos anexos existentes.
Art. 12 - Para efeito de aplicação do disposto nesta portaria, são considerados setores institucionalizados
todas as partes da cidade de Brasília referidas no Memorial do Plano Piloto, ou criadas pela administração
durante a implantação da capital e consagradas pelo uso popular.
Art. 13 - Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação, sendo revogadas as disposições em
contrário.
Ítalo Campofiorito
Secretário do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Presidente do Conselho Consultivo da Sphan/MinC
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II. Distrito Federal
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Conjunto Urb an í s ti co d e B r a s ília – D F | 1 9 9 0
PROCESSO: 1.305-T-90
RELATOR: EDUARDO KNEESE DE MELLO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 9 DE MARÇO DE 1990
Recebi o referente processo n. 1.305-T-90 ao tombamento de Brasília, para o qual fui designado relator por
V. Sa. Considero essa designação sumariamente honrosa, pelo que apresento a V. Sa. os meus mais sinceros
agradecimentos.
Tive a grande satisfação de trabalhar na nossa capital durante dois anos, nos seus primeiros dias, no seu período
heroico. Sou um seu admirador apaixonado. As pessoas que trabalharam na construção de Brasília, ou que
de alguma maneira contribuíram para a transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília, eram
chamados na época de “candangos”.
Eu me orgulho de ter sido um modestíssimo candango da Novacap.
Do processo que acabo de receber, constam opiniões e pareceres de personalidades importantes, a começar pelo
autor do plano, o ilustre professor e arquiteto Lucio Costa.
Não me pareceria, portanto, necessário acrescentar mais palavras para justificar o tombamento que se pretende realizar.
Entretanto, honrado com a designação de relator, apresento alguns pontos de vista que me parecem importantes.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil sob o comando do almirante Pedro Álvares Cabral, instalaram-se
ao longo da costa brasileira, evitando as dificuldades de penetração do novo território, as florestas, os animais
selvagens, os índios hostis etc. e, ainda, forçados pelo Tratado de Tordesilhas, que impunha limitações aos
conquistadores. As entradas, as bandeiras que fugiam das areias de nossas praias, embora a capital da província
estivesse localizada junto ao mar, não tiravam da colônia o seu aspecto costeiro. Os bandeirantes ultrapassavam o
meridiano de Tordesilhas e conquistavam intensas terras, que atingem aproximadamente as raízes da Cordilheira
dos Andes. Todos esses territórios conquistados, entretanto, não conseguiram também modificar o aspecto
costeiro do país, devido às diminutas populações que os ocupavam.
Várias personalidades importantes no passado propuseram a interiorização da capital da República, com o
objetivo de levar populações para aqueles imensos territórios despovoados.
Em 1810, o chanceler Veloso de Oliveira recomendava a transferência da capital para um local “são, ameno,
longe do tropel das gentes indistintamente acumuladas”.
José Bonifácio, em 1823, recomendava aos deputados paulistas na corte de Lisboa que lutassem pela transferência
da capital para o centro geográfico do país, de onde deveriam ser abertas estradas para todas as províncias, de
modo a estabelecer-se o comércio entre elas.
A primeira Constituição do Brasil admitia a transferência da capital e todas as demais republicanas fazem
referência a mudanças.
Em 1892, Floriano Peixoto nomeou a comissão chefiada pelo engenheiro Luiz Carlos para localizar em mapa o
local em que deveria ser construída a nova capital. Em 7 de setembro de 1922, como parte das comemorações do
centenário da Independência, foi lançada a pedra fundamental da nova capital. O presidente Juscelino Kubitscheck,
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II. Distrito Federal
convencido da necessidade da transferência, aceitou corajosamente o desafio de transferir a capital durante o curto
período de seu governo. Em 21 de abril de 1960, Brasília passou a ser a sede do governo da República.
Atendendo às recomendações de José Bonifácio, as estradas vêm sendo abertas, ligando a capital às diversas
províncias. Antes de Brasília, uma viagem de São Paulo, ou Rio, a Belém só poderia ser feita por avião ou navio.
O Norte e o Sul estão ligados, hoje, por terra. O país costeiro, agarrado às areias da praia, transformou-se, graças
a Brasília, num país integrado.
Brasília é, sem dúvida, o grande monumento histórico nacional. Mas, Brasília é, também, o grande monumento
artístico brasileiro. Na opinião de William Holford, famoso urbanista inglês que participou do júri que selecionou
os projetos apresentados no concurso de escolha do plano de Brasília, o plano do Mestre Lucio Costa “é a mais
importante construção do século XX para teorias do urbanismo”.
Os edifícios projetados por Oscar Niemeyer, reconhecido internacionalmente como o maior arquiteto vivo
da atualidade, são considerados marcos da arquitetura contemporânea. As avenidas, as praças, os bosques, as
quadras residenciais são reconhecidas como propostas revolucionárias da arquitetura contemporânea.
No processo que me foi apresentado, há um ponto essencial, a meu ver, que deve servir de guia para o tombamento
da cidade. Refiro-me às páginas com o parecer de Lucio Costa, sobre como realizar o tombamento desejado, em
carta endereçada ao “Caro Ítalo”:
Para mim, como urbanista da cidade, importa o seguinte:
1º - Respeitar as quatro escalas que presidiram a própria concepção da cidade – a simbólica e
coletiva, ou Monumental; a doméstica, ou Residencial; a de convívio, ou Gregária; e a de lazer,
ou Bucólica –, por meio da manutenção dos gabaritos e das taxas de ocupação que as definem.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
2º - Respeitar e manter a sua estrutura urbana, que é original e tem garra, a partir da qual se
estabelece a relação entre essas quatro escalas.
3º - Respeitar e manter as características originais dos dois eixos e do seu cruzamento, ou seja:
manter o caráter rodoviário inerente à pista central do eixo rodoviário-residencial; para
tanto, as paradas de ônibus nas pistas locais devem ficar o mais próximo possível das
travessias de pedestres já construídas, com cercas vivas armadas impeditivas de um e de
outro lado;
manter non-aedificandi e livre o espaço interno gramado do eixo monumental, da praça
dos Três Poderes até a torre de TV;
manter a Plataforma Rodoviária como traço de união e ponto de convergência já
consolidado do conjunto do complexo urbano composto pela cidade político-administrativa
e pelos improvisados assentamentos satélites;
manter o gabarito deliberadamente baixo do centro de comércio e diversões, sendo as
fachadas dos dois conjuntos voltadas para a esplanada recobertas de fora a fora por painéis
luminosos de propaganda comercial;
preservar e cuidar das pequenas praças de pedestres fronteiras ao teatro e ao Touring, com
as fontes, bancos e plantas sempre funcionando e em perfeito estado, tal como o grande
conjunto de fontes ao pé da torre.
4º - A preservação do Eixo Monumental, da praça dos Três Poderes à praça Municipal. A
praça dos Três Poderes, complementada pela presença dos ministérios do Exército e da Justiça
na cabeceira da Esplanada, se constituiu, desde o nascedouro, numa serena e digna obra-prima.
5º - A manutenção do conceito de superquadra como espaço residencial aberto ao público,
em contraposição ao de condomínio privativo fechado; da entrada única do enquadramento
arborizado; do gabarito uniforme de seis pavimentos sobre pilotis livres, com os blocos soltos do
chão.
6º - A manutenção da hierarquização do tráfego nas áreas de vizinhança, graças à descontinuidade
nas vias de acesso às quadras.
7º - A presença do grande Parque Público projetado por Burle Marx.
8º - Resgatar e complementar os quarteirões centrais da cidade – o seu core –, de acordo com as
recomendações contidas em Brasília Revisitada.
E conclui:
Como vê, trata-se, em suma, de respeitar Brasília. De complementar com sensibilidade e lucidez
o que ainda lhe falta, preservando o que de valioso sobreviveu.
Estou de pleno acordo com essas recomendações do Mestre Lucio. Brasília é o mais importante Monumento
Histórico e Artístico Nacional. Tem que ser preservada. O único caminho eficaz para a sua preservação é o seu
tombamento.
Estou certo de que os senhores conselheiros, que sempre lutaram com desprendimento e coragem em defesa de
nossos monumentos históricos e artísticos, hão de concordar conosco e aprovar com entusiasmo o registro no
Livro do Tombo do extraordinário monumento nacional.
Rio de Janeiro, 3 de março de 1990.
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II. Distrito Federal
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
CARTA DE LUCIO COSTA AO GOVERNADOR JOSÉ APARECIDO DE OLIVEIRA
Obrigado pela cópia do belíssimo texto encaminhado ao ministro Abreu Sodré. Sensibilizado pelo teor das suas
palavras – cuja justeza, força e precisão muito me tocaram –, ele certamente agirá com a presteza que o caso
requer.
Acuso igualmente recepção do recado de Silvio Cavalcante, que teve a bondade de me transmitir.
Ocorre que, apesar da boa linguagem e da pertinência do que diz, a sua “visão sobre o tema”, ao pretender
insinuar que o meu juízo no Senado, em 74, foi um e agora é outro, está equivocada.
Não há contradição, são coisas diferentes. Num caso trata-se de “cidades” de um modo geral, no outro, de um
caso específico, ou seja, da possível inclusão de Brasília no elenco (na verdade, sem fim) dos bens dignos de
preservação.
O mundo está cheio de cidades apenas “vivas”, que não interessam à Humanidade preservar. Mas no caso
dessas cidades eleitas há sempre particularidades que precisam manter-se imunes a inovações e modismos, do
contrário, o que é válido nelas se perde e se esvai. Nas superquadras de Brasília, p. ex., é fundamental manter o
gabarito estabelecido e os prédios soltos do chão.
O que importará à Unesco – tal como já disse alhures – é a concepção urbanística original da cidade e a sua
versão arquitetônica – o “fiat lux” –, e não a Brasília que possa resultar dessa ganga urbanística que aos poucos
se vai aderindo a ela e a desfigurando.
Assim, este reproche incide na mesma falta de visão – no mesmo erro – do grupo que produziu o trabalho
destinado à Unesco, dividido em duas partes: uma tratando, com propriedade e correção, da coisa a ser
preservada, e a outra, de como preservá-la, só que, então, se demora e perde em minúcias que não vêm ao caso,
e omite o essencial – a preservação daquilo que importa.
E o curioso é que a ordem natural foi invertida na apresentação, figurando o objeto como II e, como I, o modo
de – “ou não” – preservá-lo.
Enfim, a minha Brasília é o PP – texto e riscos –, é a arquitetura do Oscar, é “Brasília 57-85, do plano piloto ao
Plano Piloto”, de Maria Elisa, a “Brasília revisitada”, com ela, é a Brasília que a legislação em boa hora proposta
por Ítalo Campofiorito, em parte, preservará.
Aceite, governador, o meu respeitoso abraço agradecido – para sempre.
Lucio Costa
4/X/87.
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Vila Serra do Navio | 2010
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Cidades Históricas e Conjuntos
Históricos e Arquitetônicos
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I. Alagoas
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I. Alagoas
PROCESSO: 1.397-T-97
RELATOR: NESTOR GOULART REIS FILHO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 3 DE AGOSTO DE 2006
O processo teve início com um ofício de 7 de fevereiro de 1996, encaminhado pelo prefeito João
Lima da Silva à coordenadora da 8ª CR do Iphan, doutora Eliane Fonseca. Foi acompanhado de
um abaixo- assinado com cerca de quinhentas assinaturas. Em abril de 2005, em face do pedido de
prioridade do deputado João Lira, o engenheiro e historiador de arte Marcos Tadeu Daniel Ribeiro
informa à gerente de Proteção, Jurema Kopke Arnaut, que os estudos para justificar a inscrição da
cidade nos Livros de Tombo do Iphan já se encontravam concluídos desde 2004, estando seu parecer
praticamente finalizado. A seguir, foram realizados os trabalhos de delimitação da poligonal. Às paginas
119 e seguintes do processo encontra-se o parecer 003-2005ZMTDR-GT-Depam-Iphan, datado do
Rio de Janeiro, de 10 de outubro de 2005. Depois disso, foram feitas as notificações aos proprietários
interessados, por edital.
Dois aspectos especiais devem ser destacados. Em primeiro lugar, observar que a poligonal envolve
áreas de dois bens já tombados pelo Iphan: a Casa do Marechal Deodoro da Fonseca e o Convento
e Igreja de São Francisco. A segunda observação é que a poligonal envolve três áreas descontínuas, a
saber: o Centro, a área do Carmo e a área de Taperagua, todas elas com seus elementos de interesse.
O parecer, favorável à solicitação, manifesta-se pelo tombamento, pela importância histórica desse
conjunto arquitetônico e urbanístico e por sua importância paisagística.
Vista da rua Dr. Tavares Bastos, com o antigo Cais das Lanchas ao fundo, na lagoa. Foto: Nelson Kon, 2012.
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I. Alagoas
IMPORTÂNCIA HISTÓRICA
Em 1591, a área em que hoje se localiza a cidade de Marechal Deodoro foi doada em sesmaria
a Diogo de Melo Castro, para a fundação de uma vila. Não houve ocupação efetiva, como
não houve a fundação da povoação. A iniciativa correspondia provavelmente a uma política
de expansão das áreas de povoação já existentes, estabelecida aos tempos da união das coroas
(1580-1640), que correspondia, na prática, à adoção de determinadas linhas estratégicas pelo
governo de Madri. Iniciativas semelhantes ocorreram em outras capitanias ao longo da costa,
no mesmo período.
Em 1611, constatada a inutilidade da iniciativa anterior, foi feita a concessão da mesma sesmaria
a Diogo Soares da Cunha, com a incumbência de construir uma casa assobradada no local
conhecido como Madalena, no prazo de um ano, dando-se ocupação efetiva ao povoado e ao
uso das terras. Os resultados foram positivos, tornando-se Madalena um dos pontos de apoio
no caminho aberto ao rio São Francisco, pelo qual se pretendia estabelecer uma ligação por terra
entre a Bahia e Pernambuco.
Em 1633, a região foi devastada por forças holandesas, com a destruição de casas e da primitiva
igreja matriz. Com o recuo das forças portuguesas, diante do avanço holandês, as povoações
mais importantes da região foram reforçadas e, em 1636, a povoação de Madalena do Sumaúma
foi elevada à categoria de vila, com o título de Santa Madalena da Alagoa do Sul, por ordem
de Duarte de Albuquerque Coelho, quarto donatário da capitania de Pernambuco. Depois,
frente ao avanço dos holandeses, as tropas lusitanas recuaram, caindo a região sob o controle
dos invasores. Na segunda metade do século XVII, depois da expulsão dos holandeses, a região
entrou em novo período de prosperidade, com as reconstruções necessárias.
Em 1684, tiveram início as obras do Convento de São Francisco. Em 1710, Santa Maria
Madalena da Alagoa do Sul foi elevada à condição de cabeça de comarca da parte sul da capitania
de Pernambuco, por alvará de Dom João V. Em 1719, teve início a construção da Igreja da
Ordem Terceira de São Francisco e, em 1722, a concessão para a fundação do Hospício dos
Carmelitas. Em 1730, Duarte Sodré Pereira, governador de Pernambuco, informava que a
comarca de Alagoas possuía 47 engenhos de açúcar e dez freguesias.
Para compreender essa prosperidade, é necessário recordar que durante a segunda metade do
século XVII e as primeiras décadas do século XVIII, em especial, a partir das descobertas de
ouro na região das Minas, houve uma tendência da administração portuguesa de recompra das
capitanias a seus donatários e fusão dos territórios de várias delas, sob controle das administrações
das mais importantes. Nessa época, a capitania de Pernambuco estendia-se para o interior em
direção a oeste, mas também, de modo destacado, em direção ao sul. Em sua expansão, ocupava
as áreas correspondentes aos atuais estados da Paraíba, ao norte, e de Alagoas, ao sul, estendendo-
se pela margem esquerda do rio São Francisco, até a região da atual cidade de Paracatu, hoje um
território do noroeste de Minas Gerais.
Com a prosperidade das áreas de mineração, tanto a Bahia quanto Pernambuco tornaram-se
centros importantes para o comércio com as minas, inclusive para o tráfico de escravos. O acesso
dos pernambucanos às regiões de mineração fazia-se pelo Vale do São Francisco, o qual se ligava a
Recife e Olinda pelo caminho terrestre que, passando por Madalena, chegava a Penedo, fundada
na mesma época que a atual Marechal Deodoro. A prosperidade do comércio com as Minas
teve papel relevante na importância da Vila de Madalena e sua comarca, na sua significativa
46
Convento e Igreja de São Francisco, Ordens Primeira e Terceira, Marechal Deodoro. Foto: Nelson Kon, 2012.
47
I. Alagoas
capacidade de arrecadação de recursos para a coroa, registrada pelo citado governador Duarte Sodré
Pereira como atingindo o valor anual de 3:800$00.
A Revolução de 1817, cujas lideranças estavam situadas em Olinda e Recife, teve consequências
políticas em toda a região. A capitania de Pernambuco perdeu o controle sobre a Paraíba e sobre a
comarca de Alagoas, que foi tornada independente, passando de Vila de Madalena a sede do governo,
capital da província de Alagoas, por ato régio de Dom João VI, em 16 de setembro daquele ano. Ao
sul, as regiões às margens do São Francisco foram anexadas à capitania da Bahia, menos a da região de
Paracatu, que foi incorporada à de Minas Gerais.
A autonomia da capitania, a seguir província de Alagoas, que poderia ser um motivo de especial
desenvolvimento para a Vila de Madalena, levou à sua prosperidade durante duas décadas e a seguir
à sua decadência, com a transferência do governo para a cidade de Maceió, ocorrida em 1839. Essa
mudança, responsável pela paralisação da vida daquele núcleo urbano, permitiu seu congelamento
no tempo, trazendo-a aos dias atuais, em boa parte, com a aparência dos tempos de sua grandeza.
Nas últimas décadas, com a construção de rodovias pavimentadas, facilitando-se a reintegração da
cidade na economia do estado, em novas condições, torna-se evidente a importância de um trabalho
de preservação, permitindo à população que busque transformar a atual cidade de Marechal Deodoro,
antiga Vila de Madalena, em local de atração turística.
A Vila de Madalena foi fundada num ponto elevado, de onde controlava a chegada à lagoa Manguaba
e ao rio Sumaúma e pelo qual tinha acesso ao chamado Porto dos Franceses. A lagoa facilitava também
o ingresso às terras interiores e permitiu a expansão da cultura da cana em toda a região. O porto
facilitava o escoamento da produção para o Recife e para a Europa.
O núcleo inicial foi fundado no ponto mais elevado, que corresponde à atual rua Capitão Bernardino
Souto, que podemos considerar mais adequadamente como uma praça, tendo ao sul a Igreja Matriz,
ao norte a Igreja do Rosário e, na lateral, o edifício da Câmara Municipal. Formou-se depois a rua
Ladislau Neto, acompanhando o caminho que levava ao porto, e formaram-se as ruas Barão de Alagoas,
Marechal Deodoro, Tavares Bastos e, finalmente, a rua Tenente José Tomé, que duplicava o acesso ao
local de fundação da vila.
Instalado em ponto privilegiado, o núcleo urbano foi sempre beneficiado com uma visão ampla sobre
o rio e a lagoa, como também sobre toda a paisagem circundante.
48
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
O sítio de fundação da vila, de 1611, era provavelmente o mesmo da reconstrução portuguesa, após
o ataque holandês, em 1633. Era, provavelmente, a mesma planta registrada por Barleus, alguns anos
depois, como nas vistas de Frans Post da mesma época, por volta de 1640. Em visita ao local no ano
2000, a convite de jovens arquitetos de Alagoas, pude constatar que o traçado da planta mostrada por
Barleus é exatamente o mesmo da atual rua Capitão Bernardino Souto; como é a mesma a posição das
igrejas em relação à paisagem, mostrada nos desenhos de Post; como é a mesma a vista sobre a lagoa,
então conhecida como Alagoa do Sul, para diferençar da outra, mais ao norte, a lagoa Mundaú.
Com base no que foi possível observar naquela ocasião, podemos afirmar que o núcleo original da
povoação de Santa Maria Madalena da Alagoa do Sul é exatamente o que encontramos hoje, 370 anos
após a sua reconstrução pelos portugueses, no ano de 1636, quando foi elevada à condição de vila. A
permanência desse espaço urbano, com suas proporções originais, suas igrejas nas extremidades, com as
mesmas características dos desenhos que registramos em Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial,
nos permite recomendar que os cuidados com a preservação do bem cultural em questão incluam
com destaque as atenções para com as proporções das edificações hoje existentes ao redor da praça, as
proporções das duas igrejas e do casario circundante.
Não é demais observar que essa parte original daquele núcleo urbano, com traçado aproximadamente
retilíneo, repete em parte o traçado do núcleo inicial da Vila de Olinda, não apenas por estar no ponto
mais alto de uma elevação, como por apresentar um traçado com retângulo alongado, como o que foi
definido por Duarte Coelho para sede de sua capitania, cem anos antes.
A segunda observação refere-se a uma peculiaridade dos arremates em pedra, junto às casas de algumas
de suas ruas, em especial a Ladislau Neto. Nessas vias, conservam- se detalhes de patamares e escadas de
pedra, para conciliar a inclinação do eixo da rua com o nivelamento das frentes dos imóveis, permitindo
o acesso aos mesmos, formando sucessivos terraços, com diferentes modalidades de ajustamento à
parte central da via. Em cada uma das casas a solução é diversa, mas no conjunto formam um sistema
extremamente pragmático, característico dos tempos que antecederam às formas mais atualizadas de
definição dos perfis das vias públicas. Soluções semelhantes podem ser observadas em fotografias antigas
de algumas ruas de Salvador, como na ladeira de São Bento e na ladeira da Gamboa, e em outras da
parte alta da cidade de Vitória, no Espírito Santo, hoje inexistentes.
Nessas condições, temos em Marechal Deodoro dois importantes documentos para a história do
urbanismo no Brasil: a praça de origem da vila, com a forma original do período 1611-1636, e os
remanescentes de ajustamento topográfico da arquitetura às variações de níveis dos leitos das ruas.
São documentos importantes que devem ser preservados, juntamente com os aspectos originais dos
edifícios. Será recomendável que, atendendo a pareceres do corpo técnico, sejam realizados trabalhos
de prospecção para restabelecimento das formas originais das fachadas, sempre que possível. Mas, em
qualquer caso, deverão ser preservadas com especial atenção as partes em pedra à frente das edificações
e as formas mais antigas de pavimentação das ruas.
Ao endossar o parecer do setor técnico do Iphan, favorável ao tombamento pelo valor histórico e
paisagístico, devemos ainda ressaltar a importância das contribuições de diferentes profissionais
do estado de Alagoas na elaboração de documentos que foram anexados ao processo, para melhor
fundamentação da proposta de tombamento.
Em 3 de agosto de 2006.
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I. Alagoas
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
P enedo – AL | 1994
PROCESSO: 1.201-T-86
RELATOR: AUGUSTO CARLOS DA SILVA TELLES
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 7 DE DEZEMBRO DE 1994
O relatório apresentado por nosso colega José Leme Galvão Júnior de justificativa, estudo morfológico
e demarcação da área a ser tombada como conjunto paisagístico, urbanístico e arquitetônico da cidade
de Penedo, Alagoas, está bem documentado, analisado e justificado.
Em 1986, a Assembleia Legislativa do Estado de Alagoas solicitou o tombamento, em nível federal,
do conjunto urbanístico de Penedo. O diretor regional, nosso colega Ayrton de Almeida Carvalho,
julgou que tal tombamento não seria necessário, já que o conjunto estava protegido em nível estadual,
conforme a Lei n. 4.450, de 3 de outubro de 1983, e, bem assim, pela existência de um elemento
agressivo à paisagem do conjunto urbano, representado pelo Hotel São Francisco.
Assim, o processo foi analisado pelo Setor de Tombamento da antiga DCR da Sphan, em 1987, que
descartou a hipótese do tombamento do conjunto em nível federal, mas sugeriu a inscrição, nos Livros
de Tombo, do Teatro Sete de Setembro, localizado na praça Floriano Peixoto, nas imediações da Igreja
de São Gonçalo Garcia, e onde se localiza um conjunto de sobrados de real valor arquitetônico.
Agora, a comunidade, por meio de um abaixo-assinado, encaminhado pelo prefeito municipal, volta
a se manifestar, solicitando ser o núcleo histórico de Penedo tombado em nível federal. Analisando o
processo, entendemos ser válido o atendimento do pedido, pelas razões expostas (extraoficialmente),
– da ausência de atenção por parte do Governo Estadual – e pelo real valor histórico, paisagístico
e urbanístico da referida cidade. Realmente, Penedo, localizada às margens do rio São Francisco,
51
I. Alagoas
Conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico de Penedo, com as torres da Igreja de São Gonçalo Garcia e o rio São Francisco ao
fundo. Foto: Anderson Schneider, 2005.
assentada inicialmente sobre uma elevação, uma penedia, aí existente, apresenta uma vista frontal sobre
o rio de excepcional valor paisagístico.
Sua trama urbana ainda é a original, demarcada pela Igreja de São Gonçalo, a oeste, pela rua Damaso
do Monte e praça Rui Barbosa, a leste – onde se localizam a Igreja de Nossa Senhora da Corrente e a
Igreja Matriz –, o Convento de Nossa Senhora dos Anjos, ao norte, e o rio São Francisco, ao sul. O
casario existente nos logradouros que formam sua trama urbana, aparentemente retangular, guarda,
ainda, bons exemplares dos séculos XVIII e XIX, juntamente com outros do ecletismo e poucos de
uma arquitetura recente, de caráter comercial. Os bens já tombados por este Instituto ainda sobressaem
no conjunto urbano: igrejas da Corrente e de São Gonçalo, Convento de Nossa Senhora dos Anjos e
Igreja dos Terceiros anexa.
A essas edificações devem ser acrescidos: o conjunto de sobrados da rua Damaso do Monte, onde se
destacam a Casa do Imperador e a que foi do barão de Penedo; o prédio da Câmara Municipal, o da
Prefeitura (esta, descaracterizada, mas que guarda duas ótimas portadas de calcário), a Igreja Matriz e o
Oratório, que, segundo a tradição, servia aos condenados à forca, na praça Rui Barbosa; os conjuntos
edificados da avenida Duque de Caxias (beira-rio) e da praça Floriano Peixoto, com o Teatro Sete
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
de Setembro e o Mercado Municipal; o acervo de construções das ruas Sete de Setembro e Siqueira
Campos e da avenida Nilo Peçanha – edificações do século XIX e do início deste. Acrescente-se a isso a
sequência de casas em meio de seus jardins, na rua Barão do Rio Branco e, principalmente, na avenida
Getúlio Vargas, entrada da cidade para quem vem da BR-101 e da AL-101 sul.
Sugerimos, no entanto, a retirada do conjunto de casas localizadas na rua Joaquim Nabuco, aos fundos
da Igreja de São Gonçalo, da área a ser inscrita nos Livros de Tombo, por se tratar de um acervo de casas
térreas, geminadas, semelhantes às encontradas em um sem-número de cidades brasileiras, e por se
tratar de um apêndice ao conjunto histórico. De qualquer forma, essas edificações continuarão na área
de entorno. Com esta alteração, o perímetro demarcatório da zona a ser inscrita sofreria uma pequena
alteração, no sentido de serem ligados diretamente os pontos S ao X, isto é, a linha que sai do ponto R
seguirá pelos fundos da Igreja de São Gonçalo até o ponto Z, à margem do rio São Francisco.
Outro aspecto que propomos à análise e decisão deste Conselho é o de definir que a edificação do Hotel
São Francisco, que representa uma agressão violenta à paisagem urbana, pelo seu volume – largura
e altura – e pelo seu colorido, rosa, seja considerada elemento não integrante do acervo tombado.
Assim, poderá ele, a critério dos proprietários, da municipalidade ou das autoridades governamentais,
ser suprimido ou alterado, de forma a melhor se enquadrar na paisagem da cidade de Penedo. Tais
alterações, se forem viáveis, deverão, no entanto, ser previamente submetidas à apreciação do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como elemento localizado nas imediações de bem
tombado.
Quanto à área de entorno que circunda o perímetro do núcleo a ser tombado, inclui: o bairro do
Camartelo, a jusante do rio São Francisco e aos fundos da Igreja de São Gonçalo; a várzea e a área do
Quebra-Frasco, ao sul da avenida Getúlio Vargas; a área da elevação ao norte da mesma avenida; a
lagoa do Catarrinho e o Barro Vermelho, a montante do rio S. Francisco. Inclui, igualmente, uma faixa
fronteira à cidade do leito do próprio rio S. Francisco.
Concluindo este relatório, voto pelo tombamento federal do centro histórico de Penedo, com
as indicações das alterações que acima estamos propondo ao estudo apresentado pelos técnicos do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Em 5 de dezembro de 1994.
Orla de Penedo, com a Igreja da Corrente à direita. Foto: Anderson Schneider, 2005.
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I. Alagoas
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Piranhas – AL | 2003
PROCESSO: 1.508-T-03
RELATOR: LUIZ PHELIPE DE CARVALHO CASTRO ANDRÈS
REUNIÃO DO CONSELHO: BRASÍLIA, 17 DE DEZEMBRO DE 2003
Foi com muita honra que recebi da senhora presidente do Iphan, doutora Maria Elisa Costa, por meio
da professora Anna Maria Serpa Barroso, a incumbência de examinar e opinar sobre este processo, que
trata do pedido de tombamento do Sítio Histórico e Paisagístico de Piranhas, estado de Alagoas.
Para tanto, tornou-se imprescindível, para mim, conhecer o sítio objeto dessa proposição. Ato
contínuo, solicitei condições para me deslocar até aquele município do sertão alagoano, o que me foi
prontamente atendido pelo Iphan.
Assim é que, em companhia do arquiteto José Aguilera, que por sua vez fora anteriormente encarregado
de realizar as competentes avaliações do Deprot (Departamento de Proteção, do Iphan), tive a
oportunidade de conhecer de perto a área geográfica onde se localiza o acervo em questão.
De fato, o município de Piranhas é um dos mais antigos de Alagoas e encontra-se situado no extremo
sudoeste do estado, sertão nordestino, e na região do cânion à margem esquerda do rio São Francisco,
a 280 km da cidade de Maceió e apenas 2 km a jusante da barragem da Usina Hidrelétrica do Xingó.
Fazem parte da proposta de tombamento a cidade de Piranhas, a vila de Entremontes, pertencente
ao município de Piranhas, e a paisagem histórico-cultural do sertão do Vale do Rio São Francisco,
representada por uma faixa que liga as duas localidades, com largura variável, indo do eixo do rio até o
cimo dos morros, considerando o perfil visível desde o rio.
Fomos atenciosamente recebidos pelo doutor João Batista Neto, secretário municipal de Cultura e
Turismo, que, juntamente com sua equipe e representando o prefeito Inácio Loiola Damasceno Freitas,
55
I. Alagoas
nos prestou todo o apoio logístico necessário para o êxito da missão de reconhecimento do sítio.
Posteriormente, recebi o conjunto do processo com a íntegra das informações e, ao examinar seus
originais, pude constatar a ótima qualidade do material que me veio às mãos.
Trata-se de um dossiê cuidadosamente preparado e que reúne documentos elaborados a partir do ano de
1999, quando a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf ), por meio do seu Departamento
de Meio Ambiente, e a Universidade Federal de Alagoas (Ufal) iniciaram o inventário do patrimônio
edificado dos núcleos históricos de Piranhas e Entremontes.
Logo a seguir, o governo do estado de Alagoas, em 27 de janeiro de 2000, cria o Grupo Especial
de Trabalho para a realização do Tombamento da Cidade de Piranhas, por meio da Portaria n. 37,
onde define as instituições envolvidas, com os seguintes representantes: o Governo do Estado, por
intermédio das secretarias de Cultura e Turismo, a Prefeitura da Cidade de Piranhas, a Universidade
Federal de Alagoas , a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, a Rede Ferroviária Federal S.A.
(RFFSA) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
O inventário foi concluído em 31 de julho de 2000 e, para dar continuidade aos estudos preparatórios,
a Chesf contratou, em setembro desse mesmo ano, o Centro de Conservação Integrada Urbana e
Territorial (Ceci), da Universidade Federal de Pernambuco. Coube ao Ceci consolidar os resultados dos
estudos anteriores, procurando atender às exigências para o tombamento em nível estadual e federal,
além de desenvolver um plano de gestão para a conservação dos bens a serem protegidos.
O documento resultante, denominado Tombamento de Piranhas e elaborado pela equipe do arquiteto
Sílvio Mendes Zanchetti, foi finalizado em julho de 2001. Os dois relatórios se complementam em
detalhadas informações sobre o acervo em questão. Mas, é importante frisar que sua elaboração implicou
a realização de dois seminários, em maio de 2000 e maio de 2001, com a presença das instituições
locais e nacionais, além de um habilidoso trabalho de envolvimento e participação da comunidade
local. O propósito era difundir a ideia de conservação da cidade, por meio de debates que contribuíram
decisivamente para o resultado final dos documentos que compõem a maior parte do presente dossiê.
Após o término do primeiro seminário, a Câmara Municipal sancionou a lei de tombamento da cidade
histórica de Piranhas e da vila de Entremontes. E, após a conclusão do segundo seminário, surgiu o
consenso de que o tombamento não deveria ser restrito aos núcleos urbanos, mas estendido ao ponto de
abranger a paisagem ao longo do rio São Francisco, situado entre as duas localidades e que as envolve.
O conjunto de estudos e propostas então elaborados, além de subsidiar o presente processo, apresenta
sugestões bastante objetivas sobre a definição de critérios e dos instrumentos básicos para que os organismos
responsáveis pela gestão possam iniciar sua ação protecionista, uma vez efetivado o tombamento.
A nosso ver, os trabalhos resultantes dessas iniciativas se constituem em ótimo modelo de preparação
técnica para um processo de tombamento e num exemplo de eficiência como resultado de ações que
integram instituições dos três níveis de poder, garantindo a participação da comunidade interessada e
da iniciativa empresarial, neste episódio, representada pela Chesf.
Em continuidade aos procedimentos, em setembro de 2002, os estudos foram encaminhados para
análise técnica ao Departamento de Proteção/Iphan, em Brasília, a pedido de seu então diretor, o
arquiteto Roberto Holanda.
Já em 11 de abril de 2003, o Iphan abriu o processo de tombamento federal, que foi em seguida
encaminhado à 8a Regional do Iphan/SE e AL, onde registramos a importante atuação de sua
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
superintendente, a museóloga Eliane Maria Fonseca Carvalho – eficiente nas gestões que tanto
contribuíram para a celeridade do mesmo, no sentido de aduzir os estudos complementares necessários
ao tombamento federal.
Mas, ao formalizar este parecer, entendo que é meu dever como relator o exercício de trazer, aos meus
pares conselheiros, um sumário desta coleção de documentos, explicitando valores por meio dos quais
se busca justificar a ação de tombamento solicitada, mas também procurando identificar possíveis
lacunas ou incongruências que possam eventualmente comprometer a força deste ato.
O estudo de origens e dos antecedentes históricos, desde a fundação dos povoados até os nossos
dias, que definem sua trajetória ao longo de mais de dois séculos e meio.
A descrição objetiva dos bens patrimoniais, incluindo a localização e característica do território
a ser tombado e aqui denominado “Território histórico cultural do sertão do Vale do Rio São
Francisco”, incluindo a cartografia, que nos permite visualizar a inserção do perímetro de
tombamento na região, bem como o memorial descritivo da poligonal de tombamento e as
plantas de situação.
Um cuidadoso memorial descritivo dos elementos da paisagem que definem uma rica diversidade
de cenários naturais, aos quais se integrou harmoniosamente o patrimônio construído.
Um memorial dos valores urbanísticos, com avaliação do traçado, delimitação de áreas e
classificação detalhada na definição de nove subconjuntos urbanos setorizados, conforme uma
certa ordem cronológica e morfológica bem orientada para o caso e acompanhada do registro
cartográfico que permite a visualização do estudo.
A delimitação do espaço urbano dos dois conjuntos (Piranhas e Entremontes) no contexto dos
cenários naturais que os cercam, por intermédio de documentação cartográfica, como as plantas
cadastrais urbanas definindo as quadras e os imóveis individualmente.
Um levantamento arquitetônico com definição dos valores, acompanhados de dados numéricos
que permitem avaliar precisamente a extensão do acervo construído. Foram 301 edificações
inventariadas e sua classificação, mediante os estilos ali identificados (vernacular, vernacular
tradicional, contemporâneo, neoclássico, eclético e moderno). Estudo das técnicas construtivas
e onde são aplicadas, como taipas, pau a pique, adobe e aquelas utilizadas após a implantação da
linha férrea, como a pedra e o “tijolo batido” em paredes dobradas.
A documentação registrando vários aspectos do patrimônio imaterial que preenche de vida todo
esse conjunto, por meio de atividades diversas que perpetuam as manifestações culturais populares
e dão continuidade à transmissão de conhecimentos tradicionais, dos quais são portadores os
habitantes do lugar. Aí se menciona a toponímia e um breve estudo genealógico das principais
famílias responsáveis pela ocupação inicial do sítio, o folclore, as festas religiosas e profanas, a
feira popular, o artesanato, a gastronomia e a literatura.
Todos esses aspectos estão enriquecidos no corpo do processo pela documentação fotográfica das
áreas urbanas, dos cenários naturais e das manifestações do patrimônio imaterial.
57
I. Alagoas
Outra parte do dossiê vem ressaltar o papel dos protagonistas locais, a começar pelas crianças e pelos
estudantes, que participaram de um concurso de pintura, tendo como motivo a cidade de Piranhas
e a vila de Entremontes e que revelaram passos importantes dados no sentido de consolidar uma
mentalidade de interesse e valorização do acervo por parte da comunidade municipal.
Quero chamar a atenção para uma peça que enriquece sobremaneira esse dossiê, que é o Plano
de Gestão, também elaborado pela equipe do Ceci, em conjunto com o Departamento de Meio
Ambiente da Chesf.
Uma ênfase especial merece ser conferida ao parecer do Deprot/Rio/04/03, de autoria do
arquiteto José Aguilera, que elaborou uma brilhante síntese de todo o problema, descrevendo
com sensibilidade emocional desde o contato inicial que se toma com o sítio à sua chegada
e complementando com uma precisa avaliação técnica dos valores históricos, arquitetônicos,
urbanísticos, paisagísticos, além de ter realizado uma série fotográfica que sintetiza em belas
imagens os aspectos que são objetos do estudo.
Finalmente, o competente parecer n. 022/03-Gab/Projur/Iphan, de autoria da procuradora-
chefe/Iphan, doutora Sista Souza dos Santos, reitera e corrobora o parecer do arquiteto José
Aguilera e enfatiza os limites da poligonal traçada na instrução processual. Entretanto, alerta para
a necessidade de que seja definida, o mais breve possível, a descrição da poligonal do entorno –
lacuna que, a nosso ver, não prejudica a conveniência deste ato, tendo em vista que as próprias
condições extremamente adversas da topografia local desestimulam, a curto e médio prazo, o
surgimento de novas construções nas proximidades dos sítios protegidos.
O processo se completa com as cópias das notificações exaradas pela excelentíssima senhora
presidente do Iphan, doutora Maria Elisa Costa, dirigidas ao prefeito do município de Piranhas
e à comunidade em geral, por meio de edital, conforme a praxe nesses casos.
Assim, entendo que, do ponto de vista formal, o processo atende aos requisitos técnicos, jurídicos e
burocráticos exigidos pela regulamentação do Iphan, mais especificamente pela Portaria n. 11, de 11
de setembro de 1986.
Faz-se necessário agregar, ao conteúdo deste parecer, as avaliações dos aspectos que se referem à
comprovação do valor cultural do bem e de sua relevância para a memória nacional, dos pontos de
vista histórico e paisagístico, urbanístico e arquitetônico, ambiental e social.
Neste ponto, é válido relembrar que a presente proposta não se restringe a uma cidade, mas
a um conjunto integrado e harmonioso, que compreende o núcleo urbano de Piranhas, a vila de
Entremontes e a paisagem histórica cultural do sertão do Vale do Rio São Francisco, localizada entre
os dois assentamentos. O que implica dizer o tombamento também de um trecho do próprio rio,
historicamente denominado como “da Integração Nacional”, por sua importância estratégica no
contexto do desenvolvimento das regiões Centro-Leste e Nordeste do país, ou ainda, de “Velho Chico”,
como é carinhosamente chamado por aqueles que a convivência cotidiana aproxima.
Citando o conteúdo do próprio documento do Ceci, que consta nos autos deste processo:
Do ponto de vista do valor histórico, o tombamento irá garantir a preservação do
testemunho material de dois processos civilizatórios do território nacional, em especial
do sertão nordestino: a ocupação humana e a modernização dos sertões. Ambos ainda
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
pouco representados nos acervos patrimoniais do Brasil, como fundadores da nossa
cultura e nacionalidade1.
Ao que nós acrescentaríamos a observação de que, até hoje, talvez pouquíssimos exemplares de cidades
que tiveram seu conjunto arquitetônico consolidado, graças a uma forte contribuição do movimento
ferroviário do século XIX, foram tombadas pelo Iphan.
Vamos, ainda, buscar nos documentos que integram o processo, no capítulo que trata do valor histórico-
cultural, suas origens mais remotas:
“Sertões”, “mares extintos” e “natureza torturada” são expressões reveladas por Euclides da
Cunha para descrever as condições geográficas de extensas áreas do território nordestino.
Ao tratar do sertão, do sertanejo e da campanha de Canudos, sua obra “Os Sertões”
afirma mais um tipo humano constituinte do povo brasileiro2. Portanto essa terra, esse
homem e esse conflito, marcos históricos do Brasil, têm na paisagem do sertão do Vale
do São Francisco, na cidade de Piranhas, na vila de Entremontes e no acervo de bens
patrimoniais imateriais, uma expressão.
Essa expressão objetiva-se na associação do sertão à caatinga, denominação dada à
vegetação da região, às fazendas e currais, própria do ciclo do gado do final do século
XVI ao início do século XVII, ao rio São Francisco que atravessa esse sertão possibilitando
a comunicação com o litoral, ao estabelecimento das atividades da pecuária(...)3.
1. Piranhas: proposta de tombamento e plano de gestão. Silvio Mendes Zancheti e Ricardo Cavalcante Furtado (coordenadores),Virgínia
Pontual, Ana Rita Sá Carneiro,
2. CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. Introdução de Wemeck Sodré. 27ª edição. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1963, p.20.
3. CHESF/CECI. Tombamento de Piranhas. 2001, p. 5-6.
4. José Aguilera, arquiteto, em seu parecer 04/03/ Iphan/Deprot, de 28/11/2003.
5. CHESF/CECI. Tombamento de Piranhas. 2001, p. 6-7.
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I. Alagoas
A consolidação daquele assentamento se deu justamente no período que vai da segunda metade do
século XIX até o início do século XX. Foi estratégica a visita de D. Pedro II,
em 17 de outubro de 1859, quando de sua ida à cachoeira de Paulo Afonso, o Imperador
pernoitou em Piranhas e constatou a necessidade da implantação de um posto fiscal
que controlasse a entrada e saída de produtos ali comercializados. Todavia, devido à
cachoeira, era necessário vencer os 250 metros de diferença de nível. D. Pedro decidiu
então impulsionar a construção de uma linha férrea ligando a sede de Piranhas até
Jatobá (hoje Petrolândia), já no Estado de Pernambuco.
A navegação a vapor começou em 1867, com o percurso Penedo na foz do rio até Piranhas,
impulsionando o comércio e proporcionando o crescimento das vilas que margeavam o rio.
Este intercâmbio com outras povoações ribeirinhas (o efeito da implantação da ferrovia)
favoreceu o florescimento do povoado, então um posto de abastecimento e repouso para
aqueles que cumpriam suas rotas de comércio6.
6. Roberto Costa Farias, arquiteto e urbanista, coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo do Cesmac, no Boletim n. 6-IAB/
AL, p. 4.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Antiga estação de trens de Piranhas. Foto: Arquivo Iphan.
Piranhas foi elevada à condição de freguesia em 1885, de comarca em 1910 e de cidade em 1930. Em
1964, o governo federal tomou a medida de desativar definitivamente a ferrovia, sob os argumentos
de que ela havia se tornado deficitária. Essa decisão veio agravar ainda mais a estagnação que já se fazia
sentir na economia local. Entretanto, assim como em outros sítios históricos brasileiros, esse período
de acentuada recessão econômica, paradoxalmente, ensejou a permanência do casario original, pela
insuficiência de meios que pudessem possibilitar um processo de renovação urbana.
A construção da Usina Hidro Elétrica do Xingó, de 1984 a 1994, alterou o território e
a sua organização. Com a influência de novos atores sociais e econômicos, aconteceram
diversas transformações, entre elas a coexistência de duas cidades: a nova, formada pelos
dois bairros que se formaram acima do platô para dar apoio à construção da usina; e a
cidade histórica, que se mantém íntegra, protegida pela sua peculiar implantação7.
Reconhece-se que a existência da barragem e as consequentes atividades da usina hidrelétrica
eventualmente poderiam ocasionar novas situações de risco para o acervo, não só pela possibilidade
de serem replicadas em trecho do rio que fica mais abaixo de Piranhas, possibilidade já aventada, mas
61
I. Alagoas
também pelo fenômeno bastante comum de ocorrência de expansão urbana desordenada e agressiva
especulação imobiliária nas cidades em cujas imediações se instalaram grandes projetos industriais.
Entretanto, o que se observa de fato é que o belíssimo lago formado pela represa do Xingó, que fica
muito próximo de Piranhas, tem se constituído em fator de atração e visitação e fonte de um turismo
bem-organizado e com cuidados de educação para a preservação ambiental.
A Chesf mantém um pavilhão equipado com maquetes detalhadamente elaboradas e painéis
fotográficos mostrando didaticamente ao visitante todas as etapas do gigantesco empreendimento e
o funcionamento da usina, além de oferecer, ao mesmo tempo, uma visão panorâmica da barragem.
Como parte desse complexo pedagógico, turístico e cultural, a empresa mantém ainda o Museu de
Arqueologia do Xingó e todo esse conjunto é muito frequentado por excursões de alunos de várias
regiões do país, em busca de aulas práticas sobre a tecnologia das grandes usinas para geração da energia.
Teve ainda a empresa o mérito de haver fundado boas escolas que hoje integram a rede municipal e,
no caso em questão da salvaguarda do patrimônio cultural pelo tombamento, tem proporcionado os
meios financeiros para subsidiar grande parte dos estudos que estão compondo o presente processo e
que em breve estarão sendo aplicados na criação dos mecanismos legais de proteção, bem como deverá
participar como parceira importante do processo de gestão que se propõe estabelecer.
Mas, se atividades turísticas crescem em função daqueles que se aproximam a montante da barragem,
também a jusante cresce a movimentação de “escunas” e “catamarãs”, provenientes da região do litoral do
estado e que sobem desde a foz do rio São Francisco, a partir de outra cidade histórica já tombada pelo
Iphan, que é Penedo, trazendo visitantes a Entremontes e Piranhas, reproduzindo assim o percurso dos
antigos vapores da segunda metade do século XIX, que, juntamente com a ferrovia, contribuíram para o
pequeno surto econômico responsável pela gênese dos conjuntos de arquitetura que se busca salvaguardar.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Sobre eles, podemos afirmar que os levantamentos já realizados pelos órgãos do estado, pelas universidades
e pelo Iphan evidenciam que o desenho urbano resultante, os materiais e as técnicas construtivas, assim
como a sua inserção na topografia e no espaço geográfico, são consequência natural dos desígnios de
uma cidade que nasceu a partir da beira do rio e que teve que galgar as íngremes encostas rochosas
das margens que haviam sido caprichosamente escavadas pela ação das águas caudalosas, ao longo de
milhões de anos.
Entretanto, com o passar dos anos e o surgimento das rodovias asfaltadas, a aproximação passou a
ser feita mais frequentemente pelo outro extremo. Inverteram-se os polos, ou seja, o que era antes a
retaguarda da cidade se tornou a principal entrada, e o rio, que foi a principal via de acesso nos séculos
passados, tornou-se o cenário de fundo para aqueles que se aproximam por terra.
Uma excelente descrição dessa forma de chegar é o memorial elaborado pelo arquiteto José Aguilera,
que técnica e poeticamente nos fala de como se descortina a paisagem natural e o patrimônio construído
sob a ótica de quem se aproxima:
Por terra, chega-se a Piranhas por uma estrada que atravessa um platô mais alto do que
a cota de 100 m acima do nível do mar. Apesar da aridez da paisagem alguma relva
viceja aveludando as colinas que parecem formar-se como conseqüência da fenda que
rasga o paredão rochoso.
Por causa da topografia, essas falsas colinas são vistas de cima enquanto se aproxima
da cidade. Aos poucos, vão aparecendo as torres da igreja e, vagarosamente, um casario
apinhado, que visto de longe parece de brinquedo.
Finalmente o grande espelho verde azulado do rio São Francisco e o talude dos morros da
outra margem do rio. A perfeita integração da cidade com a natureza evidencia com eloqü-
ência como a cidade faz parte da paisagem e como o rio e os montes fazem parte da cidade.
Apelidada de cidade “lapinha” ou cidade presépio, quando a viu desde o rio, o viajante
alemão Robert Ave-Lallemant, a ela assim se referiu, em 1859:
“A 1 hora já pudemos embarcar com nossos rocinantes e deixar a povoação de Piranhas,
pendurada como um ninho de andorinha, por cima do rio, ao longo da encosta...”8.
Aqueles que a construíram não brigaram com o sítio de implantação nem tentaram
modificá-lo. Talvez pela própria inflexibilidade do terreno, se adaptaram mansamente a
ele criando um complexo urbanístico arquitetônico orgânico que foi se acomodando ao
relevo da rocha. O resultado é um conjunto de grande beleza, com séries de edificações
construídas ao longo dos patamares paralelos ao vale, como que formando uma platéia
para contemplar o rio.
“A forma peculiar do tecido urbano, pela integração da topografia, parcelamento do solo
e edificações, condicionou as variações que a casa brasileira assumiu nessa localidade. A
edificação, em geral, está em um lote longo, que vai de uma rua a outra, em desnível. A
fachada principal está alinhada com o limite do lote e voltada para o fundo do vale não
8. AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagens pelas províncias da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe (1859). Belo Horizonte/São Paulo:
Editora Itatiaia/ Editora da Universidade de São Paulo, 1980, p.321.
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I. Alagoas
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Vista de Piranhas, com o rio São Francisco ao fundo. Foto: Arquivo Iphan.
A Vila de Entremontes
Pelo rio São Francisco, de Piranhas a Entremontes, há uma distância de aproximadamente
13 quilômetros, que são vencidos de barco a motor em mais ou menos meia hora. Por
terra, pela estrada, levam-se quase duas horas.
O pequeno barco desce a favor da corrente, esquivando redemoinhos e correntezas
e evitando as rochas que, de vez em quando, afloram perigosamente. Percorrendo o
Cânion do rio, impressiona a vastidão das perspectivas e a sensação de afastamento do
resto do mundo, tendo como horizonte somente o espelho d݇gua e o cimo dos morros.
Essa é a sensação que devem ter tido todos aqueles que por aí passaram desde os tempos
remotos, rio acima ou rio abaixo, nas pequenas embarcações movidas a vela.
A ocupação de Entremontes antecedeu a de Piranhas e teve como origem a sede de uma
das fazendas que se criaram no lugar. Também funcionou como entreposto comercial
perdendo a sua preponderância para Piranhas quando a navegação a vapor e a
ferrovia tornaram a feira desta última em um evento de importância regional. Ave-
Lallemant, geralmente um crítico mordaz dos lugares que visitou, assim se manifestou
a respeito de Entremontes:
“Só uma vez o lugarejo Entremontes nos deu mostra de civilização. No centro da
pequena povoação, eleva-se bonita igreja branca. Outra pequena capela branca,
na margem túmulo de distinta senhora muito estimada”.
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I. Alagoas
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Conforme registramos em parecer anterior, aqui também se pôde sentir uma forte expectativa pelo
tombamento por parte da comunidade, que desta forma apela para o reconhecimento nacional, porque
também compreende
que o tombamento não é somente um ato jurídico e burocrático, mas uma estratégia
de agregar valor, de tornar mais respeitado, de distinguir, de divulgar, de fortalecer
argumentos de defesa, solicitações de ajuda e, portanto, um caminho para consolidar as
perspectivas de continuidade para o futuro10.
Trata-se, mais uma vez, da confirmação de que
o ato de proteção, que está implícito na figura do tombamento, vai muito além do que
sugere a materialidade da questão, ele incide também sobre a autoestima das pessoas
diretamente envolvidas, bem como da comunidade envoltória, ele não atribui apenas
o poder de coerção, de vigilância, de fiscalização, mas também confere valor. E como
valoriza, ele eleva e estabelece uma aura de respeito sobre o bem que se pretende preservar11.
Entretanto, o ato do tombamento atribui mais uma grande responsabilidade ao Iphan, não só no
sentido de não frustrar as expectativas já levantadas junto àquelas comunidades como, objetivamente,
pelo fato de que passa a ser administrativa e legalmente responsável pela preservação daqueles bens.
E, neste ponto, eu gostaria de atentar para outro conteúdo deste processo, que é o Plano de Gestão
apresentado. Ele expõe em seu bojo a proposta de montagem de um escritório técnico local que parece
se afigurar como uma excelente oportunidade para tornar ainda mais efetiva a atuação do Iphan.
Aí está apresentado um modelo de estrutura que, uma vez implementado, permitirá uma verdadeira
integração nos trabalhos cotidianos de gestão do acervo a ser protegido, na medida em que consolida
as parcerias técnicas e administrativas entre os órgãos municipais, estaduais e o Iphan.
Nesses termos, seu funcionamento deverá possibilitar economia de meios e esforços, aumentando a rapidez
e eficiência das ações, com todos falando a mesma linguagem e trabalhando com critérios nivelados e mais
próximos da realidade local, constituindo-se numa excelente oportunidade para afirmação de alternativas
para tratar o patrimônio, quando ele se compõe de conjunto urbano associado ao patrimônio natural.
Para concluir, fica uma impressão geral de tudo que pudemos examinar em curto espaço de tempo.
O conjunto formado pela cidade de Piranhas, a vila de Entremontes e a paisagem natural do rio São
Francisco, no trecho que se localiza entre as duas aglomerações, compõe um conjunto de excepcional
harmonia entre o patrimônio erigido pela mão do homem e o ambiente que o cerca, e os três elementos
constituem um habitat perfeito para a gente que ali vive e trabalha e, assim, vem mantendo de forma
surpreendentemente pura e intacta um acervo de conhecimentos materiais e imateriais que são um
belo testemunho remanescente e revelador da alma do povo brasileiro.
Sendo assim e corroborando recomendações e os pareceres do Departamento de Proteção e da
Procuradoria Jurídica que integram os autos deste processo, declaro-me favorável ao tombamento e à
consequente inscrição nos Livros de Tombo 1) Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e 2) Histórico,
sob a denominação de “Sítio Histórico e Paisagístico de Piranhas, Estado de Alagoas”.
São Luís do Maranhão, 14 de dezembro de 2003.
10. Andrès, Luiz Phelipe, em seu Parecer sobre a Casa das Minas de São Luís do Maranhão. “Querebentan de Zomadonu”.
11. Idem.
67
II. Bahia
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II. Bahia
PROCESSO: 1.411-T-98
RELATOR: PAULO ROBERTO CHAVES FERNANDES
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 12 DE AGOSTO DE 1999
Igreja de São Sebastião. Construção em pedra, típica de Igatu. Foto: Tadeu Gonçalves, 2009.
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
número dessas construções, elas se localizam próximas ao núcleo urbano e a maioria
ainda continua sendo utilizada como habitação. Essas características particularizam o
sítio urbano de Igatu, justificando a sua preservação.
Nada é suntuoso ou excepcional, no sentido mais tradicional de conceituar o patrimônio de pedra
e cal; mas tudo é extraordinário e único, se considerarmos a unidade do conjunto, o contraste entre
a singeleza da arquitetura tão característica do início do século passado – em tantas vilas do interior
do Brasil – e a eloquência rústica da pedra, construindo casas, muros, pisos, guarnecendo grutas e
cavernas; onde a cumplicidade da natureza e do engenho humano, que lhe dá continuidade, confunde
o olhar; onde as ruínas testemunham a história que não quer morrer e simbolizam a resistência dos que
decidiram ficar.
São obras modestas, talvez, mas que adquiriram com o tempo indiscutível significação cultural. Um
traçado urbano simples, de meia dúzia de ruas e algumas vielas, conforma uma arquitetura despretensiosa
e predominantemente vernacular, tendo como fundo, mas ao mesmo tempo expressando-se como
forma, a exuberância de um cenário natural singular, onde a população remanescente, guardiã do seu
passado e de suas tradições, ela mesma e mais uma vez, com restos, pedras, ruínas e muita obstinação,
pede proteção para um patrimônio que é de todos nós.
Em síntese, confesso o meu orgulho em ter sido escolhido para este parecer e a honra em comungar
com as opiniões dos técnicos e especialistas, em várias áreas, que constam nos autos do processo de
tombamento. Ou seja, inteiramente favorável e sem nenhuma vacilação, de qualquer índole.
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
I taparica – BA | 1978
PROCESSO: 973-T-78
RELATOR: CYRO CORREIA LYRA
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 11 DE ABRIL DE 1978
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II. Bahia
Aspectos do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Itaparica. Fotos: Tadeu Gonçalves, 2007.
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Lençóis – BA | 1973
PROCESSO: 847-T-71
RELATOR: PEDRO CALMON
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 14 DE DEZEMBRO DE 1973
“Tudo, porém, não passou... Resta Lençóis”. É a frase, a um tempo melancólica e ufana, de Afrânio
Peixoto (Bugrinha, 10ª Ed., org. Fernando Sales, p. 249), transportando para a doce evocação do
romance a moldura pétrea da terra natal. Queremos agora que Lençóis não acabe – com louvável
estudo do arquiteto Fernando Machado Leal, enriquecido de ampla documentação fotográfica, sobe
a este Conselho de Patrimônio Histórico Artístico Nacional o processo, encaminhado por Godofredo
Filho, chefe do 2º Distrito do Iphan, em que se solicita, para os efeitos providenciais do Decreto-Lei
n. 25, de novembro de 1937, o tombamento, em conjunto, da cidade.
Nesse sentido pronunciou-se Lygia Martins Costa, chefe da Seção de Arte.
Não somente lhe homologamos o julgamento – porque Lençóis deve ser preservada na sua arcaica
e bela estrutura –, como lhe ajuntamos argumentos veementes: porque Lençóis deve ser conhecida
como um nobre e raro modelo da cidade feita, refeita, contrafeita ao sabor do povoamento ambicioso,
repetindo, no século romântico (o XIX), a aventura mineira do século barroco (o XVIII). Eis um
sugestivo polo turístico, instalado nas quebradas da serra, para onde se deslocou, em 1843, a paixão do
diamante, que um século antes explodira no “serro” de Minas; com a diferença de que ali eram minas
gerais e aqui foram minas restritas.
Não deram para estabelecer uma civilização, como a do ouro. Deram, contudo, para criar à sua
imagem uma sociedade adventícia em transição para uma cultura agarrada ao solo, nas alturas, ciosa
da tradição, fiel ao arraial, que se urbanizou ao léu da escalada, sem pretensões externas, o engenho
anterior à engenharia, com aquela amorável desarrumação do acampamento que se transformaria em
vila, conservando, na irregularidade do traço e na improvisação do casario, a história da conquista.
Ladeira de Lençóis, com Igreja de N. Sra. do Rosário ao fundo. Foto: Anderson Schneider, 2005.
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II. Bahia
Há por isso uma inevitável semelhança panorâmica com as velhas cidades mineiras. É a cidade típica
(exemplarmente representativa) da corrida às minas, que a decadência, pela exaustão, deixou quase
intacta nos seus aspectos inconfundíveis. O que a riqueza construiu, o empobrecimento salvou.
Lá estão os quarteirões contemporâneos da Matriz; ali e acolá, o sobrado de curiosas janelas em ogiva,
que lembram – na versão rústica – o apetite do gótico, generalizado na década de 1950; um nostálgico
sentido de atualização, a que a simplicidade sertaneja aliou a feição familiar das casas de fazenda.
Praças, vielas, ladeiras permanecem como as palmilhou, na fase dos “descobertos”, quando todo esse
rincão eram Lavras Diamantinas – a migração baiana, saída das mais longínquas terras; respeitadas do
povo, como se o progresso (na acepção de força irresistível, que faz da demolição do antigo a base do
moderno) tivesse hesitado em galgar as rampas, saltar as corredeiras, contornar os grotões, atingir a
povoação derramada pelas encostas, primitiva e solitária.
Poderá o núcleo magnífico da mineração de outrora desfigurar-se, ou perecer, sem o consequente
desfalque do patrimônio artístico e histórico da nação? Que contas daríamos à posteridade desse
tesouro da “memória” social, se não socorrêssemos com os recursos que a Constituição oferece e a
lei discrimina, em analogia com as medidas já prudentemente adotadas para a defesa de conjuntos
urbanos da importância de Ouro Preto, de Parati, de Cachoeira, na Bahia, para citar apenas três? Seria
perdoável esquecer Lençóis, na impressionante unidade de sua arquitetura tosca, na multiplicidade
formidável de suas condições retrospectivas e poéticas?
Respondemos resolutamente a tais interrogações com a opinião e o voto. Opinamos pelo tombamento
em conjunto. Votamos para que seja isso o ponto de partida na série de providências acauteladoras e
estimulantes de que necessita a cidade de Urbano Duarte e de Afrânio Peixoto.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Prefeitura Municipal de Lençóis. Foto: Anderson Schneider, 2005.
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Mucugê – BA | 1980
PROCESSO: 974-T-78
RELATOR: CYRO CORREIA LYRA
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 21 DE JULHO DE 1980
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Sobrado em Mucugê. Foto: Tadeu Gonçalves, 2009.
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Porto Seguro – BA | 1999
PROCESSO: 800-T-68
RELATOR: MAX JUSTO GUEDES
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 7 DE OUTUBRO DE 1999
Nenhum outro fato histórico do primeiro quarto de século da história brasileira pode ser tão bem
estudado e compreendido quanto o nosso Descobrimento, aos 22 de abril de 1500.
Isto pode ser afirmado com tal segurança porque os historiadores têm ao seu dispor as narrativas de
três testemunhas oculares do fato, duas delas, documentos autógrafos e datados – a carta de Pero Vaz
de Caminha a D. Manuel e a de Mestre João Faras, o astrólogo (astrônomo, se usarmos a moderna
nomenclatura) da armada, também endereçada ao rei de Portugal –, e a terceira, a chamada “Relação
do Piloto Anônimo”, embora conhecida por sua tradução para o italiano, publicada no Paesi noaumente
retrouati (Vicenza, 1507, coletânea de Fracanzano da Montalbodo), também de comprovada veracidade.
Cotejadas essas narrativas com as instruções de Vasco da Gama para a viagem de Cabral (primeira
página do borrão original), os roteiros antigos e atuais para as rotas atlânticas de navios de velas, e
examinadas as informações das cartas-piloto, para delas extrair-se o condicionalismo físico (ventos e
correntes marítimas) dos meses de março e abril, isto é, aqueles transcorridos desde a largada do Tejo (9
de março) até o fundeio na baía Cabrália (24 de abril), é perfeitamente possível ao especialista retraçar
rota muito aproximada daquela percorrida pela armada cabralina em 1500.
É, igualmente, possível banir as fantasiosas narrativas de cronistas e historiadores dos séculos XVI ao
XVIII sobre perdas de rumo, afastamento, em razão de calmarias, da costa africana, tempestades e
Igreja de Nossa Senhora da Pena, no centro histórico de Porto Seguro. Foto: Leo Quintino.
(Creative Commons - https://www.flickr.com/photos/leoquintino/4348862955)
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II. Bahia
quejandos: a armada cumpriu, sem percalços (exceto o inexplicável desaparecimento da nau de Vasco
de Ataíde), a rota possível para navios com a capacidade de velejar das naus do início dos quinhentos.
Isto posto, após avistados, no dia 21 de abril, os primeiros sinais de terra, decidiu Cabral verificar sua
existência, há anos suspeitada em Portugal; navegando com vento de sueste (era a monção que vigia),
a armada avançou no rumo noroeste e foi avistar, “a hora de véspera ... um grande monte, mui alto
e redondo; doutras serras mais baixas ao sul dele”, na sequência, foi divisada “terra chã, com grandes
arvoredos”. Logo Cabral denominou-os Monte Pascoal e Terra da Vera Cruz.
O mapa que anexo a este parecer mostra claramente que a costa baiana, desde a ponta Cumuruxatiba
até a baía Cabrália (o Porto Seguro de 1500), foi vista1 e reconhecida pelos capitães e pilotos da segunda
armada da índia, muito especialmente aquela compreendida entre o segundo ponto de fundeio – para
uns, a foz do rio Cai; para outros, a do rio do Frade (estando eu entre os partidários deste último), cerca
de meia légua de terra, pouco menos de uma milha náutica – e a dita baía Cabrália.
Isso posto, verifica-se que o “limite poligonal”, ora proposto para a rerratificação do conjunto
arquitetônico e paisagístico do município de Porto Seguro, contempla perfeitamente toda a costa ao
longo da qual velejaram naus e caravelas da armada de Cabral, mais os pontos conspícuos avistados
1. Observação importante: Convém ser feito estudo mais aprofundado sobre o chamado “Marco do Descobrimento”, pois, me parece
ser ele um marco divisório de capitanias, e não um dos marcos chantados por Gonçalo Coelho, em 1501-1502.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
do largo e aqueles dos primeiros contatos com os tupiniquins que habitavam a dita costa. Contempla,
igualmente, boa parcela do rio Buranhém e suas margens, muito provavelmente o “rio do Brasil”, de
onde, logo em 1501 e 1502, foi extraído pau de tinturaria que, em menos de uma década (lembremo-
nos do Livro da nau bretoa), principiaria a os nomes originais Terra da Vera Cruz e Terra da Santa Cruz
para o do nosso querido Brasil.
Cabe ainda lembrar que a largura proposta para a faixa litorânea tombada (média de três quilômetros,
a partir da preamar) é muito adequada, principalmente se for reflorestada, onde possível, para retomar
o aspecto de “terra chã, com grandes arvoredos”, da descrição caminiana.
Em face do exposto, sugiro aos ilustres membros deste egrégio Conselho que acolham a delimitação da
área tombada proposta na rerratificação do tombamento:
Inicia-se ao Norte, na interseção da linha divisória dos municípios de Porto Seguro e
Santa Cruz Cabrália com a linha de preamar (PONTO 1), seguindo por esta linha
divisória até a confluência com uma paralela de 3 km de largura – contados a partir da
preamar (PONTO 2), daí defletindo à esquerda, prossegue por esta linha paralela até o
cruzamento com a borda superior esquerda do vale que margeia o rio Buranhém (PON-
TO 3), defletindo à direita e acompanhando esta borda superior até o km 49 da BR-
367, no sentido Eunápolis – Porto Seguro, na altura da Estação Pau Brasil da CEPLAC
(PONTO 4); neste ponto deflete à esquerda, atravessando o vale do rio Buranhém até
encontrar, próximo ao povoado de Vale Verde, o entroncamento da antiga estrada para
o povoado de Vera Cruz (PONTO 5), defletindo à esquerda e contornando o povoado
de Vale Verde (incluído), onde continua acompanhando a rodovia BA-001 (excluída),
até a interseção com a linha paralela
a 3 km preamar (PONTO 6); nes-
te ponto deflete à direita e prossegue
por esta paralela, ao longo de todo o
litoral, até o limite Norte do Parque
Monte Pascoal (PONTO 7), contor-
nando, na direção Oeste/Sul/Leste,
os limites do Parque, até encontrar
a confluência, no limite Leste, com
a linha divisória dos Municípios de
Porto Seguro e Prado na linha de
preamar (PONTO 8), onde prosse-
gue pela linha de preamar na dire-
ção Norte, encontrando o PONTO l,
ponto inicial desta poligonal.
Além disso, proponho que se louve o belo
estudo realizado pelas arquitetas Helena Mendes
dos Santos e Cláudia M. Girão Barroso, para
plenamente justificar a delimitação da dita
rerratificação.
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Rio de Contas – BA | 1978
PROCESSO: 891-T-73
O chefe do 2º Distrito do Iphan, Godofredo Filho, pediu ao arquiteto Fernando Machado Leal,
em boa hora, um estudo da cidade de Minas do Rio de Contas, no estado da Bahia, em vista de
seu tombamento.
O trabalho executado por esse arquiteto consta de uma resenha histórica, não só da cidade, fundada
em 1745, como da região, desde o início da conquista do interior da Bahia e de Minas Gerais pelos
bandeirantes até hoje, além de considerações sobre os seguintes itens: sítio, clima, evolução urbana,
mão de obra e técnica construtiva, arquitetura civil e religiosa, infraestrutura urbana; proposições
iniciais para a preservação da cidade; e, finalmente, bibliografia. Tudo isso complementado de ótimas
fotografias de toda a cidade, algumas feitas de avião, além de plantas dos imóveis mais importantes;
enfim, um esplêndido trabalho feito com amor e competência, poucas vezes igualado no Iphan.
A cidade de Minas do Rio de Contas, situada na margem esquerda do rio Brumado, outrora rio de
Contas Pequeno, e cortada por dois pequenos riachos, teve origem pela mineração. Consta apenas de
umas seis ruas, duas praças, duas igrejas, uma Câmara e Cadeia típica do século XVIII, três ou quatro
casarões e casas de “porta e janelas”.
Igreja de N. Sra. de Santana, em Rio de Contas, construída por escravos no século XIX. Foto: Camila Aguiar.
(Creative Commons - https://www.flickr.com/photos/camilaaguiar/17592104620/in/photolist-2fCWXo-2fyu78-s9j3t8-wZ9ZW-xaW6C-t6mDqX-sNy8NC-
-wXgaK-yU9Jx-wJuxv-wZBLY-t3Nj53-yGwVw-x5TtJ-wGZnZ/)
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II. Bahia
Esse conjunto urbano harmonioso, do século XVIII, está quase intacto e a cidade teve um papel
civilizador durante toda a época de ouro e das lutas para a nossa independência. Spix e Martius, quando
ali passaram, em 18l8, assim se referiram à população: “pela educação e riqueza, se distingue dos outros
habitantes do interior da Bahia. O professor régio de latim, homem de ilustração verdadeiramente
clássica, patenteia que os frutos do espírito também amadurecem no mal afamado clima dos trópicos”.
Graças às dezenas de fotografias e plantas, pode-se ter logo uma ideia perfeita da cidade. Dora Monteiro
e Silva de Alcântara, da divisão de Estados, Pesquisas e Tombamentos do Iphan, com todas essas
achegas, elaborou um longo e perfeito parecer, pedindo e sugerindo ainda outros itens complementares
para o tombamento de toda a cidade. A chefe da seção, Lygia Martins Costa, sempre tão exigente e
meticulosa nesse gênero de tombamento, pôs o seu “De acordo”, com o que eu concordo, aprovando
o parecer tal qual.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Conjunto arquitetônico de Rio de Contas. Foto: João Vicente.
(Creative Commons - https://www.flickr.com/photos/jvc/351764996/in/photolist-2fCWXo-2fyu78-s9j3t8-wZ9ZW-xaW6C-t6mDqX-sNy8NC-
-wXgaK-yU9Jx-wJuxv-wZBLY-t3Nj53-yGwVw-x5TtJ-wGZnZ/)
Detalhe do casario de Rio de Contas. Foto: João Vicente. Igreja Matriz de Rio de Contas. Foto: João Vicente.
(Creative Commons - https://www.flickr.com/photos/jvc/352749366/in/ (Creative Commons - https://www.flickr.com/photos/jvc/350277065/in/
photolist-2fCWXo-2fyu78-s9j3t8-wZ9ZW-xaW6C-t6mDqX-sNy8NC- photolist-2fCWXo-2fyu78-s9j3t8-wZ9ZW-xaW6C-t6mDqX-sNy8NC-
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II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Cidade Baixa, Salvador – BA | 2009
PROCESSO: 1.552-T-2008
RELATORA: JUREMA MACHADO
REUNIÃO DO CONSELHO: BRASÍLIA, 15 DE OUTUBRO DE 2009
1. ANTECEDENTES
Este não me pareceu um caso de rotina, se é que existem casos rotineiros dentre os atribuídos a este
Conselho. Ao contrário, acredito que, além de oferecer um instrumento de proteção essencial ao
Centro Histórico de Salvador, estamos, Conselho Consultivo e Iphan, diante de uma real possibilidade
de contribuir com o aprofundamento da abordagem e dos instrumentos para a proteção de sítios
históricos urbanos.
A complexidade das questões suscitadas pelo Centro Histórico de Salvador sugere a formulação de
referências conceituais e metodológicas muito relevantes para a prática de preservação desses bens. Isso
se dá especialmente porque, mais do que na maioria dos casos, neste especificamente, a efetividade da
proteção não virá como decorrência imediata do tombamento, mas terá nele um marco referencial, a
partir do qual uma estratégia de gestão mais abrangente será exigida.
93
II. Bahia
Por outro lado, a documentação constante do Processo de Tombamento favorece a reflexão e assume
um sentido didático, uma vez que não omite o contraditório ao incorporar, além do formalmente
exigido, dois insumos fundamentais. O primeiro deles, a documentação que registra o debate que
acabou por se tornar causa imediata da abertura do presente processo, ou seja, a autorização, pelo
Iphan, em março 2008, de projeto para o Hotel Hilton, no entorno de bem tombado na Cidade Baixa.
Nesse caso, foi autorizada edificação com altura superior à prevista pelo Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano vigente à época, decisão apresentada pelo Depam como resultante da
ponderação de um conjunto de variáveis que indicou ser essa a melhor alternativa para a preservação
do conjunto. O segundo aporte ao processo, ainda mais relevante como insumo ao conhecimento da
área, é um alentado estudo de autoria do arquiteto Nivaldo Vieira de Andrade Júnior, da 7a SR/Iphan,
que adota uma visão diferente da do Depam quanto aos valores a serem protegidos, resultando em
limites da área tombada também diferentes.
Vale dizer que a somatória desses três elementos, ou seja, o acesso a uma decisão do Iphan sobre um
caso concreto e dois estudos aprofundados (7a SR e Depam), acaba problematizando o caso de forma
muito eficaz e, assim, oferecendo elementos para uma decisão consistente por parte deste Conselho.
O primeiro traçado de Salvador, capital do Brasil por 214 anos, é de autoria de Luís Dias, trazido de
Portugal por Thomé de Sousa para ser mestre das obras da Fortaleza e Cidade de Salvador. O sítio
escolhido para o núcleo original foi uma estreita faixa costeira, dividida longitudinalmente em dois
planos por uma falésia de cerca de sessenta metros de altura, ao longo da qual se estabelecem uma
Cidade Alta, centro administrativo e religioso, e uma Cidade Baixa, local do porto e dos estaleiros. No
início de uma nova fase do urbanismo colonial, Salvador é concebida à imagem e semelhança das suas
raízes históricas: as duas principais cidades portuguesas, Lisboa e o Porto.
À luz das políticas de preservação, a Cidade Baixa, apesar da sua importância histórica e paisagística,
figurou, até hoje, não como um valor em si, mas tendo um papel instrumental, tributário da proteção
da Cidade Alta, esta, sim, reconhecida como sendo o Centro Histórico de Salvador, por meio do
tombamento do Iphan, em 1959.
Uma vez considerada como entorno e não como tendo valor intrínseco, para a Cidade Baixa, a legislação
municipal e as diretrizes do Iphan limitaram-se apenas ao controle da volumetria, com vistas à preservação
do outro elemento – este, sim, considerado de efetivo interesse patrimonial, ou seja, a Cidade Alta. É
razoável afirmar que essa abordagem é compatível com orientações da política de proteção que vigoraram
especialmente até a década de 1980 e que tinham como foco, sobretudo, o monumental e as belas artes,
não atribuindo valor, entre outros, aos setores das cidades destinados às funções menos nobres, ainda que
formassem parte de uma concepção urbanística ou de uma paisagem urbana singular.
No caso da Cidade Alta, a notável manutenção do traçado urbano originário dos séculos XVI e XVII
e um conjunto arquitetônico de valor excepcional foram elementos mais do que suficientes para
motivar o seu tombamento federal, em 1959, mesmo que a área apresentasse marcas do processo
de perda de importância simbólica e funcional, que vinha acontecendo desde o final do século XIX.
Contraditoriamente, essa perda de funcionalidade e de papel no contexto urbano acabou por favorecer
a sua preservação, ao mantê-la à margem da dinâmica imobiliária da cidade. O mesmo não aconteceu
94
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
com a Cidade Baixa. A área portuária repercutiu, de forma marcante, os diversos momentos da
história econômica da cidade. Foi palco de transformações e rupturas muito mais abruptas, todas
inequivocamente registradas no espaço urbano.
O tombamento do Iphan de 1959 foi revisto em 1984, quando passou a incluir a encosta, a primeira
faixa de edificações coloniais no seu sopé e as ladeiras de acesso, ladeira da Misericórdia e ladeira
da Montanha, esta última notável na paisagem, com seus 23 arcos e novecentos metros de extensão
construídos entre 1878 e 1900.
A revisão do tombamento em 1984 se relaciona diretamente com as recomendações da Unesco.
Reconhecendo Salvador como um dos principais pontos de convergência de culturas europeias,
africanas e americanas e a sua vinculação histórica com o tema dos Descobrimentos, em 1985, a Unesco
inscreveu o Centro Histórico de Salvador na Lista do Patrimônio Cultural da Humanidade, com base
nos critérios: (iv) ser um exemplo excepcional de um tipo de edifício ou conjunto arquitetônico ou
tecnológico, ou de paisagem que ilustre uma ou várias etapas significativas da história da humanidade;
e (vi) estar associado diretamente ou tangivelmente a acontecimentos ou tradições vivas, com ideias ou
crenças ou com obras artísticas ou literárias de significado universal excepcional.
Registre-se que, na área em estudo, são tombados individualmente pelo Iphan a Igreja da Conceição da
Praia (1938), a Igreja de Nossa Senhora do Pilar (1938), o Palácio da Associação Comercial da Bahia
(1938), a Capela de São Pedro (1938), o Mercado Modelo (1966), o sobrado azulejado da praça Cairu
(1969) e o Elevador Lacerda (2006).
Ainda que não se possa dedicar aqui o tempo e o espaço necessários para encontrar uma resposta
fundamentada para essa pergunta, ao analisar a presente documentação é inescapável indagar por que,
em 1959, o Iphan não teria reconhecido, como patrimônio nacional, a outra parte daquele que pode
seguramente ser reputado como sendo o mesmo Centro Histórico de Salvador, ou seja, a porção da
Cidade Baixa correspondente à área ocupada até o final do século XIX.
Além do recorte temporal fundamentado, essa inclusão se justificaria, naquele momento ainda mais do
que hoje, pelo fato de que a belíssima relação visual entre os dois planos de cidade encontrava-se muito
mais preservada, estando presentes, inclusive, muitos daqueles exemplares a que Lucio Costa chamou
“arranha-céus” coloniais baianos. A mesma indagação vale para o órgão estadual de preservação (Ipac,
criado em 1967) e para a instância municipal afim, que também nunca chegaram a utilizar o instru-
mento do tombamento do conjunto urbanístico para a preservação dessa área, ou mesmo de parte dela.
Essa afirmação não desconhece a existência de legislação municipal de controle de gabaritos que
amenizou os efeitos de perda da relação visual Cidade Baixa/Cidade Alta (Decreto Municipal n. 1.355,
de 1954; leis e decretos posteriores que têm, em comum, a fixação de gabarito máximo de 45 metros,
como se verá adiante), assim como medidas de proteção de entornos de bens tombados isoladamente
pelo Iphan. Mesmo reconhecendo a importância dessas medidas, elas ainda não correspondem, como
dito, a uma atribuição de valor à área em si, enquanto parte do Centro Histórico de Salvador.
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II. Bahia
Igreja de N. Sra. da Conceição da Praia, Cidade Baixa, Salvador. Foto: Luiz Philippe Torelly, 2013.
retificações de alguns dos traçados mais remotos e, em menor escala, substituição de edificações. A
construção dos sucessivos aterros é um fenômeno presente desde o século XVI, quando pequenas
novas porções de terra eram acrescidas por iniciativa de ordens religiosas, de particulares e mesmo da
administração. Esse processo se intensifica em direção ao século XIX e atinge seu ponto máximo com
o grande aterro que, embora autorizado em 1891, viria a ser implantado a partir da década de 1910,
sendo ocupado paulatinamente ao longo de pelo menos mais cinco décadas.
Em uma primeira aproximação, e para facilitar a apreensão do conjunto, pode-se compreender essa
extensa faixa longitudinal a partir de três grandes porções, cuja morfologia e funções são indissociáveis
da sua gênese: uma frente, caracterizada por estreita faixa junto ao mar, ocupada por galpões portuários
de baixa altura; um meio, correspondente ao traçado urbano implantado no século XX e ocupado
predominantemente por edifícios em altura; e um fundo, cujo traçado e cujas edificações representam
o maior acervo sobrevivente do intenso processo de expansão e ocupação que se deu a partir do final
do século XIX.
96
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Essa é, como dito, apenas uma primeira aproximação, já que nenhuma dessas grandes faixas é
homogênea. No seu interior, identificam-se volumetria heterogênea, tipologias diversas, edifícios
isolados de maior ou menor valor arquitetônico e estados de conservação também diversos. Tanto
é assim que o citado arquiteto Nivaldo Andrade Jr., ao sugerir diretrizes de intervenção para a área
que propõe ser tombada, identifica oito subsetores distintos, resultantes da superposição dos dados
relativos à origem do traçado, à presença de exemplares arquitetônicos destacados e às características
tipológicas e estilísticas predominantes entre os edifícios.
Já o estudo do Depam aprofunda a descrição da atual diferenciação interna da área por meio da
identificação de predominâncias, no que se refere às Formas de Ocupação, ao Gabarito e à Arquitetura,
aos quais são agregados elementos descritivos das condições topográficas, dos referenciais urbanos e da
circulação viária.
Na qualidade de leituras da área, esses dois estudos em nada se contradizem; ao contrário, se comple-
mentam e denotam o grau de complexidade e de heterogeneidade que a Cidade Baixa apresenta hoje.
Por todos os ângulos que se possam observar, os valores em jogo, cuja avaliação irá redundar na proposta
dos limites da área a ser tombada e nas diretrizes para sua posterior ocupação e manejo, convergem
para três essenciais: a relação visual Cidade Baixa/Cidade Alta, os valores da arquitetura e os valores
do urbanismo. Embora a documentação não se detenha nesse aspecto, as festas, tradições e práticas e
os usos tradicionais do espaço urbano individualizam o Centro Histórico de Salvador, não apenas na
Cidade Alta, mas também na Cidade Baixa, em especial, pela sua relação com o mar.
Na ausência do tombamento de conjunto, a ocupação dessa área esteve parametrizada pela legislação
municipal e, em menor grau, pelas limitações impostas pelos entornos de edificações tombadas. A
documentação registra uma sequência de decretos e leis municipais que tem como marco inicial o citado
Decreto n. 1.355/54; como intermediário, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU),
de 2004 (Lei Municipal n. 6.586/04) e, como marco atual, o PDDU de 2008 (Lei Municipal n.
7.400/08), cujos efeitos sobre a área ainda não são observáveis.
Além de diferenciações internas mais restritivas, é notório afirmar que, entre 1954 e imediatamente
antes da Lei Municipal n. 7.400/08, a área esteve limitada ao gabarito máximo de 45 metros.
O PDDU de 2004 limitava, ainda, a ocupação da faixa imediatamente rente ao mar a seis metros de
altura e, a dezoito metros, o setor aqui referido como fundos – ou seja, aquele junto à encosta, onde se
encontra um conjunto eclético em estado precário de conservação, mas de grande unidade tipológica.
Essa legislação teve efeitos positivos, especialmente no que se refere à faixa de fundos, uma vez que,
além de impedir o crescimento excessivo em altura junto à falésia, certamente inibiu o adensamento
de uma área de armamento mais estreito e inadequado à concentração de tráfego. Além disso,
certamente desestimulou a demolição e a substituição desses edifícios, tornados menos interessantes
ao mercado imobiliário. Esse efeito, no entanto, trouxe consigo uma contradição perversa, uma vez
que, na ausência de outras medidas de valorização, o conjunto acabou sendo vítima de processo mais
intenso de deterioração.
97
II. Bahia
Elevador Lacerda, Salvador, com a Baía de Todos os Santos ao fundo. Foto: Luiz Philippe Torelly, 2013.
98
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Já o gabarito de 45 metros, aplicado predominantemente na faixa do meio – ou seja, sobre o traçado
urbanístico implantado e ocupado no século XX –, teve efeitos muito limitados, se não insuficientes,
para a preservação da relação visual Cidade Baixa/Cidade Alta. Além dele, a autorização, sobre os já
volumosos 45 metros (aproximadamente quinze pavimentos), de acréscimos de até seis metros (cerca de
dois pavimentes), não resultou, no meu entendimento, em “interessante e recortada silhueta resultante
de pequenos volumes de reservatórios de água e caixas de elevadores que ultrapassam o limite de forma
pontual e em trechos bem reduzidos”, como defende o estudo da 7a SR. A sucessão aleatória desses
volumes, vista do mar ou de pontos relevantes no interior do próprio conjunto, acaba se fundindo em
uma massa edificada única, fazendo com que o efeito final seja mais o de 45 + 6 metros do que o dos
já excessivos 45.
Uma sequência detalhada de visuais tomadas a partir do mar pela equipe do Depam, assim como
observações feitas diretamente na área, permite afirmar que a distinção entre os dois planos da cidade
encontra-se muito prejudicada, sendo observável, com valiosas exceções, apenas a praticamente mil
metros de distância da costa. No entanto, é fundamental ter em mente que, ao contrário de corroborar
uma eventual proposta de liberalização de gabaritos, por considerar a área irremediavelmente
prejudicada, essa constatação conduzirá, como se verá adiante, a afirmar a importância de se respeitar
as diferenciações internas e a preservar os vazios que penetram transversalmente as visuais da área,
buscando alternativas que favoreçam aberturas e descompressões na massa edificada.
Resulta, portanto, uma coletânea de importantes exemplares que vão do neoclássico e da arquitetura do
ferro, passando pelo ecletismo, até o Movimento Moderno na Bahia. Do ponto de vista das tipologias
funcionais, são notáveis as séries formadas por edifícios-sede de grandes empresas e de instituições
bancárias. Outro recorte resulta em séries representativas da produção de alguns autores, como é o caso
do arquiteto Diógenes Rebouças.
O estudo do arquiteto Nivaldo Andrade Junior aprofunda-se na descrição da expansão dos sucessivos
aterros, intensificada a partir do século XIX, com destaque para as intervenções empreendidas pelo
conde dos Arcos, entre 1810 e 1822. Salvador, apesar da mudança da capital para o Rio de Janeiro,
ainda mantinha sua atividade comercial e sua pauta de exportações, tanto é que, ainda no século XIX,
se dá a abertura da rua Nova das Princesas (atual Portugal), a construção da ladeira da Montanha e da
rede de ascensores. A área entre a Associação Comercial e a praça Cairu viria, um pouco mais tarde, a
ser objeto de retificações viárias, com demolições de edifícios ou parte deles.
O maior aterro, no entanto, é o que tem origem em projeto do início do período republicano, cuja
execução, no século XX, viria adicionar uma área muito maior do que a previamente existente na Cidade
99
II. Bahia
Baixa. Trata-se, segundo o estudo, de uma das maiores obras de engenharia do Brasil, conduzida sob
a liderança de José Joaquim Seabra, então ministro do Interior e Justiça e, posteriormente, de Viação
e Obras Públicas, tendo como presidentes, respectivamente, Rodrigues Alves e Hermes da Fonseca.
Se notável pela sua dimensão, do ponto de vista da solução urbanística, resultou no desenho que a
função portuária e a conformação da área impuseram – ou seja, duas grandes avenidas no sentido
longitudinal, um traçado em tabuleiro, lotes e quarteirões de grandes dimensões, ocupados hoje por
edifícios limitados pelo gabarito de 45 metros.
A transição do século XIX para o XX, inaugurando a República, foi justamente o período em que a
maioria das capitais brasileiras passou por obras notáveis de saneamento, de modernização portuária,
de reformas urbanas nas áreas centrais. Não só as intervenções tão conhecidas do Rio de Janeiro e de
São Paulo, mas também as de Belém e Manaus, São Luís e Recife, Vitória e Porto Alegre, e da própria
Salvador. É esse o período das notáveis atuações de Saturnino de Brito, de Pereira Passos, Agache,
Aarão Reis. É quando tem lugar até mesmo a construção de uma nova capital, Belo Horizonte, de
ideário positivista e republicano.
Nesse contexto, a intervenção na Cidade Baixa, em que pese seu valor histórico, não chega a se
destacar como excepcionalidade, nem mesmo como solução projetual capaz de conferir qualidade
ao espaço urbano. Para fundamentar a inclusão da solução urbanística do aterro da Cidade Baixa
numa lista de tombamento federal, seria necessário um estudo comparado de todo esse acervo de
soluções ainda muito presente e notório, levando a uma diretriz coerente e orgânica para a atuação
do Iphan nessas áreas.
100
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
3.4. TENDÊNCIAS
Admitindo esses como os principais valores, cabe refletir sobre perspectivas e tendências que possam
impactá-los. Diferente de décadas anteriores, em que predominou o abandono e o desinteresse pelo
frontispício de Salvador, é impressionante o número de empreendimentos hoteleiros, turísticos, de
lazer e de negócios em fermentação para a área em estudo e para a Cidade Alta. No perfil desses
empreendimentos, chama a atenção o valor que os empreendedores atribuem à ambiência de Salvador
e às visuais para o mar, considerados atrativos fortes o suficiente para motivá-los a superar enormes
desafios, como a presença de áreas degradadas, problemas fundiários, questões sociais e ambientais.
Permanecem muitas indagações sobre o papel do porto de Salvador, sobre a sua vocação logística
exportadora vis-à-vis a sua função turística e de lazer; estudam-se ligações viárias estruturantes, com
impacto sobre a área portuária; a Copa de 2014 trará transformações importantes na estrutura urbana,
no entorno do estádio da Fonte Nova, com possíveis reflexos até a Cidade Alta e a região portuária. Ou
seja, em que pesem as indefinições e as informações aqui insuficientes, não é descabido afirmar que, a
permanecer o ritmo de desenvolvimento do país, um profundo processo de transformação da área está
em gestação.
Como agravante, tem-se que grande parte dessa área se encontra em precário estado de conservação,
especialmente o conjunto mais próximo da encosta. Muitos dos edifícios de construção mais recente
acham-se subutilizados ou com usos que não favorecem a sua vitalidade, o que estimula ainda mais as
tendências de substituição e renovação.
A proposta do Depam adota como princípio limitar o polígono de tombamento às áreas aterradas até
o século XIX, ou seja, exclui a área do aterro do século XX, ocupada hoje pelos grandes edifícios, assim
como a estreita faixa ocupada pelos galpões portuários. Fundamenta essa proposição afirmando que
seu foco é a cidade que ainda guarda, na proporção urbana dos armamentos e da implantação, grandes
laços com a cidade colonial. Além disso, essa é a área que abriga o conjunto eclético mais significativo,
é vizinhança imediata da falésia e de várias edificações tombadas.
Já a proposta da 7a SR tem como pressuposto a valorização dos sucessivos períodos históricos de
formação da área e identifica no aterro dos séculos XIX/XX valor intrínseco e representatividade
suficientes para sustentar o reconhecimento em nível federal. Esta é, portanto, a pedra de toque da
diferença entre as duas abordagens.
Embora o princípio possa permanecer válido, parece inconsistente promover o tombamento de um
conjunto cuja implantação custou o quase aniquilamento da imagem da cidade em dois planos e que
não apresenta qualidade ambiental em grande parte das suas áreas. Ou seja, estaríamos conduzindo à
101
II. Bahia
categoria de bem simbólico de interesse patrimonial um conjunto para o qual, em uma situação ideal e
excluídos os exemplares de interesse, a diretriz seria demolir, descongestionar, abrir, fazer respirar. Essa
afirmação é também lastreada no que foi discutido em 3.3, ou seja, na inconsistência de se conferir
a condição de patrimônio nacional a essa solução urbanística sem referenciá-la ao grande processo
verificado no início do período republicano.
Diante da sua situação atual e, mais uma vez, excetuadas as edificações de interesse de preservação, a
diretriz de intervenção para esse conjunto deve ser a minimização dos seus impactos sobre a paisagem,
ou seja, uma condição típica de entorno e não de elemento de interesse intrínseco.
Para a proteção dos edifícios mais destacados, o Depam propõe uma medida pouco usual, mas
defensável e compreensível, que é o seu tratamento na qualidade de conjunto, fazendo com que resulte
um conjunto de perímetro descontínuo, formado pelos perímetros de cada edificação selecionada. Na
prática, a justaposição dos entornos certamente chegará a conferir continuidade à área protegida. O
sentido da medida é não tratar essa proteção como um tombamento individual, por entender que esse
não se justificaria em nível federal, mas também para evitar todas as complexidades que acarreta ao
oferecer limitações às intervenções, gerando dificuldades de adaptação para novos usos, tão necessários
à requalificação da área.
São os seguintes os bens inseridos no perímetro tombado: Edifício-sede do Instituto do Cacau, Edifício
Caramuru, Edifício Argentina, antigo Edifício da Firma Westphalen, Bach & Krohn, Edifício Manuel
Joaquim de Carvalho, Edifício de Tude, Irmão & Cia, Edifício do Bank of London & South America,
Edifício do British Bank of South America e a Agência Central dos Correios e Telégrafos.
Para o entorno proposto, são coincidentes as análises da 7a SR e do Depam, ressalvando-se que a área
entre a rua Miguel Calmon e o mar, sugerida pela 7a SR como integrante da área tombada propriamente
dita, agrega-se, no parecer do Depam, à área de entorno. Em linhas gerais, optou-se por uma área
de entorno bastante extensa, que acompanha toda a linha da encosta, da Bahia Marina até a região
portuária próxima a Água de Meninos.
O papel do entorno, como proposto, será o de resguardar a possibilidade do Iphan exercer controle
sobre novos volumes edificados nessas áreas, evitando a perda definitiva do perfil da encosta. Ressalte-se
102
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
que no caso das áreas mais distantes – em especial na região dos edifícios hoje ocupados pelos fuzileiros
navais e na região do porto, já próxima a Água de Meninos – ainda é possível perceber com clareza a
configuração da falésia e a relação Cidade Baixa/Cidade Alta.
Mesmo sendo atualmente utilizadas para funções portuárias, não se pode, conforme apontado em
3.4, desconsiderar as perspectivas de transformação de toda a região. Na hipótese de alterações do
perfil operacional do porto, tais áreas poderiam tornar-se interessantes para futuros adensamentos
construtivos, o que não deveria ser feito ao custo de interferir na visão da encosta.
A outra parte considerável da área de entorno incide sobre o espelho d›água, até o limite do Forte
São Marcelo e dos quebra-mares. O papel do Iphan na gestão dessa área de entorno seria o de inibir
interferências visuais danosas à paisagem, danosas à vista do e para o Forte São Marcelo. Ressaltem-se
ainda aquelas que limitem a fruição do mar como um bem de uso e acesso comum, indissociável da
vitalidade da área protegida e da prática de usos tradicionais de comércio marítimo, como o comércio
na Rampa do Mercado, para onde acorrem saveiros e barcos motorizados.
No caso da área de entorno localizada na região da Bahia Marina, registre-se que, a partir daí, se tem
mirantes privilegiados para pontos da Cidade Alta, como o Elevador Lacerda e a praça Castro Alves, o
que também deve ser protegido de construções de grande porte.
A presença ou não de Diretrizes de Intervenção como parte integrante dos processos de tombamento,
remetendo-as inclusive à deliberação deste Conselho Consultivo, é um tema que merece ser avaliado
mais detidamente e sugiro seja objeto de estudo pela Câmara Temática de Sítios Urbanos, em
colaboração com o Depam.
Considerando que tais diretrizes não faziam parte do processo, durante o trabalho de relatoria,
solicitei ao Depam tomar conhecimento dos estudos em andamento, não só por considerar que
esse é um elemento muito relevante, mas porque, no caso, a relação entre a proteção da área e os
instrumentos urbanísticos é vital. A possibilidade de acesso a esses estudos me foi muito valiosa para
a compreensão dos valores em jogo no interior da área e para a verificação das incompatibilidades
entre esses valores e as normas municipais vigentes. Além disso, contribuíram para identificar as
limitações do próprio tombamento como elemento necessário, mas não suficiente, para que se
alcancem os efeitos da proteção.
As diretrizes em estudo pelo Depam baseiam-se em setorizações, tanto do interior da área a ser tombada
quanto do entorno, explicitando mais detalhadamente os valores a preservar em cada caso. Ainda que
este Conselho não vá deliberar sobre elas, considero importante registrar o que delas se depreende,
no que se refere aos valores em cada subárea e quanto às incompatibilidades com o PDDU de 2008,
que passou a permitir o gabarito de 51 metros para a área mais próxima da encosta, onde se situa o
conjunto eclético de maior valor.
Além do aspecto determinante, que é a preservação da relação visual Cidade Baixa/Cidade Alta, as
diretrizes em estudo reconhecem a heterogeneidade interna da área quanto aos aspectos arquitetônicos,
urbanísticos e paisagísticos. Tais considerações indicam, para o “setor predominantemente eclético”, a
manutenção do gabarito existente e, para o “setor heterogêneo”, de transição para a área verticalizada,
103
Vistas da Cidade Baixa e Cidade Alta, em Salvador. Fotos: Nelson Kon, 2014.
a adoção de médias entre alturas muito díspares. Ambos os critérios implicam incompatibilidade com
o PDDU 2008.
O segundo aspecto que merece atenção é a menção à possibilidade de, no caso do novo projeto
contribuir para dinamização da área e para minimizar interferências negativas, o critério acima poder
ser flexibilizado, naturalmente, dentro de limites que não interfiram na visibilidade da encosta. Este
foi um dos aspectos levados em conta quando da autorização da intervenção do Hotel Hilton, citada
no início deste parecer.
Tal afirmativa remete a um aspecto-chave que me parece ser a grande particularidade do caso da
Cidade Baixa.
Toda análise de projetos de intervenção em bens considerados patrimônio cultural resulta de uma
ponderação entre impactos positivos e negativos, uma vez que nenhuma restauração se faz sem
prejuízos à estrita integridade e autenticidade do bem. Uma mudança de uso, a introdução de um
anexo contemporâneo, a substituição de técnicas construtivas, tudo isso resulta de uma ponderação
entre a permanência e a fruição do bem versus a estrita manutenção de suas características o mais
próximo possível de um estado considerado ideal. Essa é a difícil rotina de todos aqueles que atuam
na linha de frente dos órgãos de preservação, fonte de pressões, de críticas, de incompreensões, de
erros e de acertos.
A grande dificuldade, voltando ao caso de Salvador, é estabelecer tais critérios na ausência de um plano
abrangente, de um projeto de futuro, de um horizonte que se pretenda alcançar para a área em questão.
104
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Preparar tal instrumento norteador não é atribuição exclusiva do Iphan, ainda que se possa ter todo
o empenho em produzi-lo. Quando o município estabelece, de antemão, um gabarito superior
para os edifícios, já em patamares altamente satisfatórios para a viabilização dos empreendimentos
privados, como fez o PDDU 2008, abdica totalmente de qualquer possibilidade de condução da
dinâmica privada para uma requalificação integral da área. Abdica de obter as compensações que
viabilizariam investimentos nos espaços públicos ou nos edifícios para os quais não há interesse
privado; abdica de orquestrar uma estratégia que beneficiaria a todos – inclusive amplificaria o
retorno dos investimentos privados, na medida em que fosse sendo atingido o estágio futuro, no
qual a área estaria totalmente recuperada.
Já a vigência das normas do atual PDDU não servirá senão como fonte permanente de conflitos, como
alimentação de um embate projeto a projeto, intervenção a intervenção, metro a metro, com desgaste
para todos os envolvidos e com perdas para o patrimônio e para os investidores, mediante a morosidade
e a incerteza das decisões.
O alcance da situação desejada não se dará sem a conjugação de um elenco de ações, que devem partir
de um projeto de futuro e de instrumentos urbanísticos que o viabilizem. Não se dará sem a articulação
entre os entes, em especial entre o Iphan e o município.
VOTO
Diante do exposto, meu voto é favorável ao tombamento da Cidade Baixa de Salvador, conforme
delimitação perimétrica e de entorno proposta pelo Depam.
que a Câmara Temática de Sítios Urbanos analise, com o apoio de assessorias especializadas e do
Depam, a pertinência e a viabilidade de inclusão de diretrizes de intervenção nos processos de
tombamento, e em que bases;
que a Câmara Temática de Sítios Urbanos estude, com o apoio das assessorias especializadas e
do Depam, a possibilidade de se conceberem diretrizes para uma política de compensações de
impactos ao patrimônio urbano, considerando as analogias cabíveis com a legislação ambiental;
que o município seja comunicado da decisão final quanto ao tombamento da Cidade Baixa,
mencionando seus impactos e reiterando procedimentos e atribuições para aprovação de projetos; e
que o município seja estimulado a conceber, em parceria com o Iphan, um plano de futuro para
a área, plano esse que dê suporte a uma estratégia de operações urbanas, ou outro instrumento
urbanístico capaz de produzir efeitos análogos.
105
II. Bahia
106
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Corredor da Vitória , Salvador – BA | 2003
Conjunto Arquitetônico do
Corredor da Vitória, Salvador
PROCESSO: 1.451-T-99
RELATOR: SABINO MACHADO BARROSO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 14 DE AGOSTO DE 2003
Inspirado no projeto urbanístico de Haussman, implantado em Paris nos meados do século XIX,
e também no de Pereira Passos, que o adotou como modelo para o Rio de Janeiro, o interventor
J. J. Seabra, em sua primeira administração – 1912 a 1916 –, período denominado “renascença
baiana”, desenvolveu proposta urbanística e arquitetônica na área atualmente intitulada “Corredor
da Vitória” de tal relevância histórica e cultural que nos leva, hoje, ao exame do seu tombamento
como patrimônio nacional.
A feição original da Vitória era a de um bulevar de traçado retilíneo, ao longo da cumeada, com
largas calçadas arborizadas e amplos lotes de ambos os lados, com residências isoladas, de alto padrão,
cercadas de jardins e pomares.
A conformação urbana escolhida correspondia ao desejo da incipiente burguesia local de ocupar espaços
desvinculados da imagem da antiga capital colonial/imperial – escravista, acanhada, suja. O que se
queria era um traçado racional e higiênico, mais adequado aos novos tempos dos ideais iluministas
combinados à eficácia cartesiana, propagados pelos positivistas republicanos.
Dessa configuração original, infelizmente, pouco resta na atualidade: apenas o espaço urbanístico
de uma avenida fartamente arborizada com árvores robustas de copa densa, com tráfego intenso de
automóveis e edifícios de apartamentos com gabarito excessivamente alto, sobretudo do lado do mar.
107
II. Bahia
Na verdade, nos últimos trinta anos, e mais especialmente na última década, uma espécie de acordo
tácito, ainda que informal, fez surgir um tipo de ocupação combinada dos antigos casarões na frente
da rua com as novas edificações em altura na parte de trás dos lotes.
Se esse tipo de ocupação permitiu a preservação de alguns dos antigos palacetes de arquitetura eclética
– utilizados como equipamentos de uso comum dos condomínios –, por outro lado consolidou
lamentavelmente a altura dos novos edifícios.
É inegável o significado da permanência de antigos casarões como registro da memória de uma
época característica da adequação da antiga capital colonial às novas solicitações da República recém-
instaurada; e é inquestionável a oportunidade de se manter preservado esse testemunho urbanístico e
arquitetônico – visível, físico, concreto – de um modo de proceder com relação ao desenho da cidade.
Observa-se, ainda, que a área a oeste do largo da Vitória e da igreja, entre a cumeada e o mar, é o último
trecho onde se tem a vista livre para a Baía de Todos os Santos.
O PROCESSO DE TOMBAMENTO
Foi a louvável preocupação, por parte dos setores organizados da sociedade local, com esse conjunto
que representa uma referência histórica, artística e simbólica na configuração de sua cidade – a primeira
capital do Brasil –, que deu origem, em 1999, ao processo em pauta, por iniciativa do Sindicato dos
Arquitetos do Estado da Bahia, considerando que seria plenamente justificado seu reconhecimento e
qualificação como objeto a ser protegido pelo governo federal por meio do tombamento.
Analisando o processo desde o seu início, observa-se a dificuldade na definição de um ponto de vista
claro e consensual a respeito, revelando-se diferentes formas de entendimento e de abordagem do
problema. Em termos simplificados, pode-se caracterizá-lo por intermédio de três propostas nele
contidas:
Primeira - Instruída por Márcia Genésia Sant’Anna, na 7a SR. Propõe o tombamento de uma
grande extensão de área urbana, bem como o tombamento isolado de inúmeras edificações,
cuja preservação teria eventualmente interesse local, mas dificilmente poderiam ser vistas como
“patrimônio nacional”;
Segunda - Instruída também na 7a SR, por Luiz Fernando Rhoden. Reduz o tamanho da área
tombada da proposta anterior e vincula-se ao discurso da preservação do conjunto urbano, da
estruturação urbanística do Corredor da Vitória como representativa do momento de expansão
da cidade em áreas novas situadas ao sul da mancha original. Propõe o tombamento individual
de inúmeros imóveis, delimitando uma ainda extensa área de entorno;
Terceira - Trata-se da contestação da segunda alternativa, realizada pelo Deprot, por meio de
parecer assinado por José Leme Galvão Júnior.
Durante o processo de discussão e avaliação interna por parte do Iphan, acerca do mérito e da
abrangência do tombamento proposto, a Construtora Odebrecht obteve da Prefeitura Municipal de
Salvador a aprovação do projeto arquitetônico para construção de um edifício de apartamentos com
35 pavimentos, a ser erguido no imóvel de propriedade da Arquidiocese de Salvador, mantendo-se
preservadas as características físicas externas – volumetria, materiais, revestimentos – da edificação
existente, a Residência Arquiepiscopal.
108
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
A farta divulgação pela imprensa local da futura realização do novo projeto e sua localização
privilegiada e singular – não se trata propriamente de apenas mais um edifício alto entre outros já
construídos – alertou a população da cidade, potencializada pelo debate aberto, para a necessidade
de promover a agilização do processo de tombamento, com vistas a impedir, ou pelo menos inibir,
futuras atitudes semelhantes.
Nessa oportunidade, foi solicitado ao Deprot que promovesse a reavaliação das questões pendentes,
com o objetivo de viabilizar o mais rápido encaminhamento do processo a este Conselho. Daí resultou
uma quarta alternativa, também assinada por José Leme Galvão Júnior, que propõe o tombamento
de um conjunto formado por doze imóveis isolados, desvinculando-os da preservação da configuração
urbana, mantendo, contudo, a extensa área de entorno, conforme a proposta anterior de autoria de
Luiz Fernando Rhoden.
Esta última alternativa foi tornada pública na seção 3 do Diário Oficial da União do dia 16 de junho
de 2003. A notificação aos proprietários dos imóveis indicados para o tombamento, nos termos
da lei, provocou da parte de três deles a requisição da impugnação do tombamento, embasada no
questionamento das razões e da fundamentação técnica utilizada como justificativa e questionando
a real relevância da representatividade artística e histórica, em nível federal, das edificações, quando
consideradas individualmente.
Considerando que, nesse tipo de situação, há que se buscar alternativas possíveis em tempo útil, sob
pena de, enquanto se discute, os fatos consumados tomarem o poder;
Considerando que o que importa efetivamente preservar é a implantação e configuração urbana e
paisagística dos logradouros que integram o Corredor da Vitória – av. Sete de Setembro, Jardim do
Passeio Público, Passeio Público, Campo Grande, largo da Vitória –, sublinhada pela presença dos
casarões sobreviventes, que dão testemunho da escala urbana original; e
Considerando que a preservação da vista para a baía e da cobertura vegetal remanescente da mata
atlântica na encosta justificam o tombamento como patrimônio paisagístico do imóvel situado no n.
4 do largo da Vitória,
A proposta mais pertinente, no momento atual, seria o tombamento da implantação e configuração
urbana e paisagística dos logradouros que integram o Corredor da Vitória, acrescido do imóvel de n.
4 do largo da Vitória, considerando-se como entorno a faixa lindeira aos logradouros e ao referido
imóvel, com largura constante de 35 metros, contados a partir das testadas dos lotes e dos limites
laterais do imóvel supracitado.
Essa faixa configuraria uma área de preservação rigorosa da atual configuração volumétrica, mantidas as
mesmas alturas máximas das edificações na data do tombamento, nos casos de demolição e reconstrução.
A preservação da atual configuração arquitetônica externa seria assegurada àquelas edificações localizadas
nos seguintes lotes:
Avenida Sete de Setembro, 1.682 (antiga Residência Cardinalícia)
Avenida Sete de Setembro, 2.125 (Hotel Caramuru)
Avenida Sete de Setembro, 2.172 (Residência Jorge Calmon)
109
II. Bahia
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Museu de Arte da Bahia, Salvador. Foto: Ronaldo Silva/Secom/Agecom.
(https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Museu_de_Arte_da_Bahia.jpg)
VOTO
Em face do exposto, submeto este parecer à consideração deste Conselho Consultivo do Patrimônio
Cultural, recomendando, na hipótese do acolhimento da proposta, a inscrição do patrimônio em tela
no Livro do Tombo das Belas Artes, no Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico.
Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2003.
111
II. Bahia
112
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
São Félix – BA | 2010
PROCESSO: 1.286-T-89
RELATOR: EUGÊNIO ÁVILA LINS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 4 DE NOVEMBRO DE 2010
ANTECEDENTES
113
II. Bahia
114
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
O primeiro documento amplia a dimensão histórica da cidade, incorporando o conceito de território
cultural contínuo, introduzindo novos aspectos para a compreensão do sítio, tais como: o patrimônio
industrial vinculado à indústria fumageira e a diversidade de manifestações culturais existentes na
cidade. O segundo documento, relacionado com as questões arquitetônicas e urbanísticas, incorpora
novos elementos de análise do espaço natural e construído, que constam do Inventário Nacional de
Configuração dos Espaços Urbanos (Inceu), resultando em entendimento mais consistente sobre a
imagem da cidade.
O trabalho produzido pela 7ª SR foi encaminhado pelo superintendente regional, arquiteto Leonardo
Falangola Martins, em 10 de agosto de 2008, à Gerência de Proteção do Depam. Esses documentos,
sem dúvida alguma, complementam e ampliam a análise da cidade e subsidiam uma nova proposta de
poligonal de tombamento.
Vale ressaltar os estudos e pareceres realizados no âmbito da Gerência de Proteção do Depam, sob a
coordenação da arquiteta Jurema Kopke Eis Arnaut, realizados pelo estagiário de história Guilherme
Porciúncula Bresciani Cerqueira Linhares e pela arquiteta Helena Mendes dos Santos, ambos
extremamente consistentes e esclarecedores para o processo de tombamento.
O parecer é favorável à solicitação do tombamento, pela importância histórica e cultural do conjunto
arquitetônico e urbanístico e pelo seu valor paisagístico.
As primeiras notícias históricas referentes a São Félix estão diretamente ligadas ao rio Paraguaçu e à
cidade de Cachoeira. Por meio delas, sabe-se que a área foi desbravada em 1526, por Cristóvão Jacques.
Porém, deve-se ressaltar que, em 1504, já se tem referências de comércio estabelecido entre os índios
locais (Tupinambá) e os franceses, para venda de madeira.
Sua origem está vinculada ao aldeamento dos índios Tupinambá aí existentes, que, por volta de
1534, contavam com vinte palhoças habitadas por cerca de duzentos indígenas. Nesse período, eles
comercializavam o pau-brasil com os franceses, até a chegada dos colonizadores portugueses à região,
para explorar a terra e os índios, como escravos para o plantio da cultura da cana-de-açúcar. A sua não
submissão à escravidão fez com que os colonizadores passassem a utilizar os negros como escravos,
momento em que a cultura da cana-de-açúcar ganha expansão nessas terras.
Os índios se retiram para o sertão para fugir da escravidão e dos massacres, enquanto os colonizadores
expandem seus domínios pelas áreas baixas do Recôncavo, principalmente aquelas junto ao rio
Paraguaçu e aos demais rios da região.
Os conflitos com os índios na região perduram até quase a metade do século XVII. Somente na segunda
metade do XVII, o porto de Cachoeira, último ponto navegável do rio Paraguaçu, se consolida como
elo entre o litoral e o sertão, tendo início o crescimento da povoação situada na outra margem do rio,
que se estabelece à beira da estrada para a Aldeia de São Pedro da Muritiba, partindo do embocadouro
e subindo a encosta em direção a Muritiba – ponto de saída para o sertão e Minas.
Com a consolidação das atividades comerciais na região, ocorre o crescimento urbano de São Félix e
Cachoeira. Porém, no que se refere a São Félix, é possível afirmar que nesse período, segunda metade
do século XVII, sua configuração era a de um pequeno povoamento, sendo sua principal função a de
um “terminal tropeiro”, que se formou defronte ao porto de Cachoeira, núcleo principal. Cachoeira,
115
II. Bahia
o segundo principal porto do Recôncavo, foi elevada a vila, em 1698, passando São Félix a ser o seu
principal bairro, incluindo a ladeira para Muritiba na sua configuração urbana.
Com a função de terminal tropeiro estabelecida, o arraial de São Félix se colocou como o entreposto
de importação e exportação de produtos europeus e regionais, vindos respectivamente de Cachoeira e
do sertão, pela estrada das Minas que, passando por Muritiba e Rio de Contas, conectava Minas Gerais
e Goiás.
Inicia-se o século XVIII e, graças à sua posição geográfica, São Félix, situado no ponto de transbordo
entre as vias terrestres e fluviais, apresenta rápida expansão urbana. O bairro de São Félix passa a
receber maiores atenções por parte de autoridades e moradores, surgem solicitações de uma ligação
permanente entre as duas margens do rio, de maneira a facilitar o transporte das mercadorias que
partiam e chegavam do interior do país.
Contamos com o registro, no Termo de Vereação da Câmara de Cachoeira, de que, em 1754, verifica-se
a primeira manifestação oficial para a construção de uma ponte interligando as margens do Paraguaçu,
feita pelo procurador licenciado Feliciano de Abreu Souto Maior. A dificuldade para angariar fundos
para a construção impossibilitou a execução da ponte.
Notícias do início do século XIX informam que a posição de entreposto comercial do arraial de
São Félix propiciou inovações urbanas, possuindo edificações imponentes e ruas calçadas. Esse foi o
período, no século XIX, de maior desenvolvimento e crescimento da atividade comercial de São Félix;
em 1825, a população era de aproximadamente 2.500 habitantes, tendo o arraial um movimento de
10 mil mulas, que transportavam mercadorias entre o porto e a Chapada Diamantina.
Em 1822, São Félix luta ao lado de Cachoeira, à qual estava ainda vinculada administrativamente, nas
batalhas para a independência da Bahia. Fato histórico que marca profundamente a identidade das
duas cidades. Em 1838, a Lei Provincial criou uma primeira freguesia no território do atual município,
com a denominação de N. Sra. do Desterro do Outeiro Redondo.
São Félix continua progredindo até meados do século XIX, quando sofre os efeitos da chólera-mórbus e
ocorre um significativo esvaziamento populacional e, consequentemente, uma estagnação econômica.
Em 1857, uma nova freguesia foi criada com o título de “Senhor Deus Menino de São Félix” e, na
mesma data, criou-se o distrito de São Félix.
Em torno de 1867, a estrada de ferro chega a São Félix e uma estação de grande porte é construída
na cidade. O trem trazia para a região maior rapidez e segurança, significava o progresso chegando ao
Recôncavo e ao sertão baiano. Mais uma vez, São Félix desempenharia a sua principal função – a de
terminal terrestre ligado ao fluvial, situado em Cachoeira. A ponte D. Pedro II só vai ser inaugurada
em 1885, interligando as duas margens do rio.
A partir de 1870, aproximadamente, tem início o período áureo da freguesia de São Félix, com o
estabelecimento das indústrias fumageiras. A economia do distrito passa a girar em torno do tabaco e
de toda a sua linha de produção, destacando-se as fábricas de charutos Dannemann, Simas, Cardoso e
Suerdieck, entre outras.
São Félix torna-se uma cidade industrial, passando a ser a maior exportadora de charuto do Império e da
República. Esse desenvolvimento econômico provoca o surgimento de novas tipologias arquitetônicas
no local: armazéns, trapiches e vilas operárias. São Félix se destaca no cenário brasileiro por ser uma
cidade que oferecia trabalho, comércio e lucros com a cultura do fumo.
116
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Ponte Dom Pedro II, ligando Cachoeira a São Félix. Foto: Tadeu Gonçalves, 2007.
117
II. Bahia
O conjunto urbano de São Félix é detentor de uma paisagem extremamente representativa do processo
de ocupação do território brasileiro. Está ali registrado o papel que a povoação desempenhou, em
virtude de sua localização, no processo de ocupação do interior do Brasil.
A cidade, por estar linearmente distribuída em uma pequena faixa de terra entre o rio Paraguaçu e a
encosta, pode ser apreendida praticamente como um todo, se for observada a partir de outra margem
do rio, ou seja, a partir da cidade de Cachoeira. Podemos considerar que essa visual de São Felix é, em
termos de paisagem, um elemento emoldurador e caracterizador de Cachoeira. Em outras palavras,
constitui o seu entorno imediato.
118
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Dessa maneira, a possibilidade de percepção global da cidade está associada a esse distanciamento
da cidade em relação ao seu exterior através do rio e à forte relação existente entre o espaço natural
(montanha e rio) e o espaço construído.
Sobre a paisagem não edificada, tem-se a dizer que a proximidade entre a montanha e o rio gera uma
paisagem coesa e contínua, onde se destaca a feição de maciço e de “paredão” sobre o rio. Neste aspecto,
o rio Paraguaçu forma a base contínua desse conjunto paisagístico, onde a cidade se apoia, reforçando
a horizontalidade da maior parte da mesma.
A proximidade da cidade e da montanha com o rio Paraguaçu oferece uma imagem
de extrema beleza, quando se observa São Félix de Cachoeira, refletida nas águas do
rio: durante o dia, surge através do colorido do seu casario e durante a noite, através do
reflexo das luzes da cidade1.
No frontispício da cidade, destaca-se no perfil o bairro da Misericórdia, que desde o início do século XX
mantém sua configuração piramidal, sendo o “ponto focal”. A disposição verticalizante e ascendente
do seu casario multicolorido, ao longo das curvas de nível, que diminui gradativamente, na medida
em que sobe o morro, contrasta com a vegetação do maciço, o qual serve de pano de fundo. Outro
conjunto que sobressai na paisagem é o primeiro plano do perfil de São Félix, ou seja, as fachadas das
edificações que estão à beira do rio. Esse conjunto é valorizado pela homogeneidade volumétrica e pela
continuidade de seus imóveis.
Algumas edificações também contribuem na identidade da cidade, entre elas, a ponte D. Pedro II, as
igrejas com suas torres, o sobrado de oitão e o antigo galpão com dois frontões, rótulo dos charutos
Dannemann, ambos na margem do rio.
A imagem da cidade está constituída por um acervo arquitetônico que compreende edificações do
século XVIII (igrejas e sobrados); do século XIX (Estação Ferroviária, Casa do Oitão e Mercado); da
transição entre o século XIX e o século XX (Fábrica Dannemann, galpões e armazéns do porto, Solar
Guinle); e das primeiras décadas do século XX, com interessantes exemplares do estilo eclético.
CONCLUSÃO
Entendo que o patrimônio pode constituir-se como narrativas que permitem mapear conteúdos
simbólicos, visando ampliar o entendimento dos lugares, das regiões e do país, promovendo
sentimentos de pertencimento dos cidadãos e abrindo possibilidades para novas interpretações. O
reconhecimento de São Félix como patrimônio nacional contribui para uma revisão de atribuição
de valor histórico relacionado aos bens culturais distinta daquelas vinculadas a fatos memoráveis ou
à história oficial do Brasil.
A efetivação do tombamento da cidade de São Félix é o reconhecimento do seu valor histórico,
ambiental, cultural e paisagístico, assim como uma possibilidade de corrigir o tombamento da cidade
de Cachoeira, que, por fazer parte de uma mesma realidade urbana e regional, foi parcialmente tombada
em 1971, excluindo São Félix da sua área de preservação.
Salvador, 3 de novembro de 2010.
119
III. Ceará
120
III. Ceará
PROCESSO: 968-T-78
RELATOR: ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 2 DE DEZEMBRO DE 1997
121
III. Ceará
25 de outubro de 1974, o arquiteto Augusto Carlos da Silva Telles assinava um parecer favorável ao
tombamento, não só de Icó, como ainda de Aracati, destacando a integridade de seus conjuntos dos
séculos XVIII e XIX. A iniciativa parecia ligada ao I Seminário de Estudo sobre o Nordeste – Preservação
do Patrimônio Histórico e Artístico, realizado em Salvador (BA), poucos dias depois, em novembro
de 1974, no qual se esboçavam
planos que previam recursos, obras
e medidas protetoras, como o
tombamento em foco.
Em 1976, o arquiteto José Liberal
de Castro pedia ao diretor do Iphan,
Renato Soeiro, o tombamento do
Teatro Municipal de Icó, interessante
prédio neoclássico, projeto do
médico francês Pedro Théberge,
levando a consultora Lygia Martins
Costa a se pronunciar no sentido
de que tal medida aguardasse o
tombamento prévio do conjunto
urbano, que seria proposto pelo
arquiteto Silva Telles.
122
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Largo do Théberge, Icó. Foto: José Paulo Lacerda, 2005.
123
III. Ceará
124
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Sobral – CE | 1999
PROCESSO: 1.379-T-97
RELATOR: ANGELO OSWALDO DE ARAÚJO SANTOS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 12 DE AGOSTO DE 1999
Um dos mais graves fenômenos deste último quartel do século XX é constituído pela avassaladora
descaracterização dos espaços urbanos, transformados violentamente pela perda de identidade cultural.
Em curso em quase todo o mundo, o processo assume, no Brasil, as proporções de uma calamidade.
O êxodo rural, a migração para os centros de maior porte, o crescimento desordenado dessas cidades,
o empobrecimento da população, a massificação pela pobreza e pelo consumismo, com todas as
consequências perversas da sociedade de consumo, implicando a exacerbação do individualismo e a perda
dos valores coletivos, contribuíram para a radicalização do drama em que se envolveram as áreas urbanas.
Dominada pela especulação imobiliária e pela expansão agressiva do tecido urbano, a arquitetura
espontânea que veio habitar as cidades brasileiras perde os vínculos com a tradição vernacular, desliga-
se dos elementos históricos, abandona os materiais locais e regionais, negligencia usos e costumes,
para assumir as feições trágicas dos conflitos que a desenham. Repetem-se as mesmas formas e os
idênticos materiais, eliminando-se as características que, ainda há pouco, particularizavam as expressões
arquitetônicas, mesmo no quadro de padrões impositivos das diferentes épocas, sobretudo do estilo
colonial e do ecletismo. Demais, a poluição e a pobreza visuais confundem-se com a degradação dos
cursos fluviais e sítios naturais situados no território urbano, ampliando a degradação geral do ambiente.
Assim, o cenário urbano encontra-se hoje, no país, sujeito a violentas alterações paisagísticas, urbanísticas
e arquitetônicas. Prevalecem os equívocos, que se consagram como exemplos rotineiros. Mutilam-se
125
III. Ceará
edifícios de valor afetivo ou histórico, altera-se o traçado da malha, suprimem-se elementos naturais.
Impõe-se a aridez. A monotonia da forma e dos materiais parece advir do abafamento da criatividade
e da supressão das expressões genuínas. À violência estética, corresponde o crescimento da violência
social e da criminalidade.
Valorizar, portanto, o espaço urbano e a qualidade arquitetônica deve ser tendência capaz de gerar
contribuições altamente positivas à reabilitação da vida urbana em todos os sentidos.
É nesse contexto que se deve analisar o pedido de tombamento da cidade de Sobral, no estado do
Ceará, e o respectivo processo, competentemente montado pela IV Coordenadoria Regional e pelo
Departamento de Proteção do Iphan.
Torna-se extremamente significativo, melhor dizendo, excepcional e exemplar, como devem ser as
providências tomadas pelo Iphan, que se possa conferir a uma cidade como Sobral os instrumentos
de salvaguarda com que se protejam a sua identidade histórica e cultural e o meio ambiente urbano,
assegurando-se à cidade o direito de crescer disciplinadamente, em harmoniosa sintonia com o notável
patrimônio que sua parte central compreende.
Haverá quem diga que a medida protetora deveria contentar-se com a alçada municipal, limitando-se,
por exemplo, a leis locais de uso do solo, ou ao plano diretor, exigência da Constituição Federal. Outros
vão querer afirmar que a matéria é da competência do estado do Ceará, em se tratando de uma de suas
cidades mais importantes. Alguns ainda hão de pretender alegar que não cabe ao organismo nacional
de patrimônio cultural impor amarras e constrangimentos a uma cidade viva, em pleno dinamismo,
o que poderia gerar responsabilidades que, hoje, o Estado não deseja suportar, voltado que anda tanto
para a desestatização quando para a desnacionalização. Por fim, não faltarão aqueles que, por excesso de
zelo ou cautela, manifestarão o receio de que o tombamento em foco seja excessivamente penoso tanto
para a cidade quanto para o Iphan, pelas obrigações decorrentes. Pleiteariam a redução do perímetro,
de maneira a conceder proteção apenas ao que é óbvio e, assim, já protegido praticamente de ofício
(igrejas e prédios públicos, por exemplo).
As possíveis considerações desfavoráveis ao tombamento federal podem servir, no entanto, para
aprofundar em todos nós, membros deste Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, a convicção
de que o ato que nos é dado praticar viabiliza e consagra a proteção, a conservação, o ordenamento e a
valorização de uma cidade decidida a disciplinar-se
e a organizar-se como um bem cultural, que são,
em essência, todas as cidades.
É dever constitucional do Estado brasileiro
proteger e preservar os acervos nacionais de arte
e história. É missão deste Conselho e do Iphan
criar condições legais e operacionais no sentido de
concretizar o preceito constitucional e oferecer uma
estratégia exemplar ao poder público, aos cidadãos
e à sociedade. Cumpre, ao mesmo tempo, levar
em consideração a realidade plural da Federação,
de modo que se recolham nos Livros de Tombo
aqueles bens que, nos diversos estados, exprimam
de fato a diversidade dessa riqueza comum que é
o patrimônio cultural dos brasileiros. Numa união
Casarão antigo em Sobral. Foto: Arquivo Iphan.
126
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
federativa, o que tem importância máxima para um estado, pelo menos do ponto de vista histórico,
artístico e cultural, deve ter importância para toda a Federação. O interesse nacional não paira sobre
a realidade federativa, mas nasce da soma dos valores distintos e particulares que compõem essa
monumental diversidade.
Muitas vezes criticou-se o Dphan sob o pretexto de que o tombamento de conjuntos urbanísticos se
fixara apenas nas cidades setecentistas de Minas Gerais. Vale lembrar que uma dessas vozes é exatamente
a do ilustre intelectual e conservacionista cearense, arquiteto e professor Liberal de Castro.
Pouco tempo depois do tombamento da antiga Vila Real de Icó, realizado por este Conselho, estamos
agora diante de mais uma cidade do Ceará com todos os requisitos exigidos pela medida protetora
antes aplicada a Ouro Preto, Mariana, Serro, Tiradentes, Sabará, São João del-Rei ou Diamantina.
Nascida de um povoado setecentista surgido nas terras de uma fazenda, cresceu a Vila Distinta e Real
de Sobral pelo privilégio de se achar, junto ao rio Acaraú, no entroncamento de caminhos que ligavam
Pernambuco ao Piauí e Maranhão. Contrariamente a Icó e Aracati, traçadas segundo as normas das
cartas régias, Sobral possui desenho urbanístico espontâneo e irregular integrado ao traçado rígido e
ortogonal mais tarde adotado à volta do núcleo de origem. As edificações de interesse contam-se em
número compatível com uma demanda de tombamento federal.
Destacam-se a Igreja Matriz da Conceição, o Teatro São João, a Igreja do Menino Deus, a Igreja do
Rosário, a Câmara Municipal, a Igreja das Dores, além de sobrados e casas dos três últimos séculos
que oferecem densidade ao espaço patrimonial demarcado, garantindo-lhe uma atmosfera bastante
propícia ao tombamento. O casario se acha em estado razoável e sua adequação às normas patrimoniais
não parece, pelo que se constata no processo em exame, impor graves problemas, senão soluções de
certa forma fáceis e rotineiras. Sobral tem tudo para incluir-se no conjunto das cidades tombadas,
como uma expressão singular do Ceará representativa do fenômeno da urbanização brasileira.
Iniciado a partir do pedido de numerosos moradores da cidade, cujo memorial abre a documentação
reunida pelo Iphan, o processo de tombamento atraiu o apoio da Prefeitura Municipal e a atenção do
Governo do Estado. Parece merecer, de igual modo, o aplauso de amplos segmentos da comunidade.
Sublinha-se, dessa forma, a consciência local das consequências benéficas do tombamento e do rigor
das medidas a serem, em seguida, adotadas pelas autoridades municipais e pelos moradores, com vistas
ao cumprimento das normas que passarão a prevalecer no espaço protegido.
Registro congratulações às equipes do Iphan, no Ceará e na direção nacional, pelo belo trabalho
realizado. O processo dispõe, em verdade, de farto material que comprova a pertinência da medida
em análise, indicando, desde logo, um itinerário para as ações a serem desenvolvidas pelo Iphan, pela
Prefeitura de Sobral e pelo estado do Ceará, visando o cumprimento daquilo que o tombamento
deve estabelecer.
Manifesto-me, por conseguinte, favorável a que este Conselho aprove o tombamento do Conjunto
Arquitetônico e Urbanístico da Cidade de Sobral, no estado do Ceará, nos termos do processo submetido
à nossa apreciação. Proponho ainda que, simultaneamente, solicitemos ao Iphan seja rapidamente
apresentado a este Conselho o processo referente à cidade de Aracati, com o que o organismo federal
de patrimônio terá meios de complementar e consolidar, no Ceará, a participação devida na proteção
e valorização das áreas urbanas que retratam, de modo mais autêntico e profundo, a saga do estado, a
rica história do Nordeste e a força cultural do Brasil.
Belo Horizonte, 6 de agosto de 1999.
127
III. Ceará
128
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Viçosa do Ceará – CE | 2003
PROCESSO: 1.496-T-02
RELATOR: JOSÉ LIBERAL DE CASTRO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 14 DE AGOSTO DE 2003
ORIGENS E PASSADO
A cidade de Viçosa do Ceará deita raízes históricas nas tentativas jesuíticas de catequização de índios
que habitavam a serra da Ibiapaba, longo e elevado maciço orográfico que separa o Ceará do Piauí.
Localiza-se no trecho norte da serra, numa altitude média de setecentos metros, em sítio urbano dos
mais belos do Ceará, cercada por vegetação densa e gozando de clima ameno.
O primeiro contato lusitano com a Ibiapaba remonta aos planos de tardia colonização do Ceará,
infrutífera e tragicamente tentada pelo açoriano Pero Coelho de Sousa, em 1603. Apesar de fracassadas
129
III. Ceará
as operações em termos gerais, ainda assim atingiram parcialmente seus objetivos, pois conseguiram
rechaçar os franceses que procuravam conquistar a serra, expulsos para o Maranhão, onde permaneceram
por mais uma década, até 1615, quando deixaram o Brasil em definitivo.
OS JESUÍTAS
130
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
conjunto urbano, assinalando prédios significativos e indicando moradas das figuras locais de projeção
social. Todas as casas já eram então de tijolos e habitadas por brancos. Outras descrições de interesse
foram publicadas pelo senador Pompeu, em 1863, e por Antônio Bezerra, em suas Notas de viagem,
escritas em 1884, dois anos após a vila ter sido alçada à categoria de cidade.
A CIDADE
Desconhecem-se dados objetivos concernentes à posterior evolução urbana viçosense, talvez resumidos
a uma planta da cidade elaborada pelo Instituto de Terras e Colonização, em 1938, não citada no
presente processo. A comparação dessa planta com aquela traçada por Freire Alemão faz ver que não
fora vultosa a expansão urbana num arco temporal de oitenta anos, embora tal não implique dizer que
a aparência física da cidade se houvesse mantido imutável.
Viçosa provavelmente pagava por sua posição geográfica, meio afastada dos eixos de circulação traçados
após os anos centrais dos oitocentos, mas realmente definidos na primeira metade do século XX, quando
começou a se implantar a atual rede rodoviária cearense. Em seus dias iniciais, o sistema provincial
de transportes procurava interligar as fontes de produção agrícola de maior peso com a capital, ora
objetivando a exportação, ora beneficiando o consumo de uma Fortaleza em progresso, obsequiada
com a dupla condição de sede do governo e de porto de escoamento da produção algodoeira, fonte de
riqueza do Ceará até meados do século XX.
À parte de tais restrições limitadoras, agravadas com a distância de 350 quilômetros que separam Viçosa
do mercado fortalezense, acresça-se o relevo acidentado de boa parte do município, que dificultava a
produção agropecuária em escala. Na época da visita de Freire Alemão, em meados do século XIX,
apesar da fartura de frutas locais, era mínima a oferta de hortaliças e praticamente já não se cultivava
o algodão. A carne vinha dos sertões do Piauí e os cereais consumidos pela vila procediam das faixas
úmidas do interior ou chegavam por via de importação, quando em maior quantidade.
O cultivo do café conheceu ponderável desenvolvimento, entretanto, sem a importância atingida em
outras serras cearenses, nestas, aliás, praticamente desativado por volta da passagem do século. Desde
então, de modo gradativo, a agricultura do município voltou-se para a produção de doces e licores,
concentrando-se hoje principalmente no cultivo da cana-de-açúcar, destinada ao fabrico de requestada
aguardente, famosa no Ceará e nos vizinhos estados do Piauí e Maranhão.
ARQUITETURA VIÇOSENSE
Por distante que se localizasse, a pequena Viçosa oitocentista acabou absorvendo as mutações
arquitetônicas impostas pelos grandes centros, reproduzidas consoante o entendimento formal das
mensagens e aplicadas de acordo com as necessidades e as possibilidades do momento. A atual aparência
física da cidade constitui, portanto, um resíduo de transformações ocorridas no país e no estado, cujas
origens, no campo socioeconômico, são facilmente detectáveis.
Como se sabe, fatos políticos, sociais, econômicos e técnicos, imediatamente posteriores a 1850,
levaram a uma rápida transformação na vida urbana brasileira. Aos poucos, os espaços públicos das
cidades tornam-se palco montado para a exibição de uma burguesia em ascensão, exigindo consequente
recomposição da cena urbana. O Rio de Janeiro, sede da corte imperial, torna-se modelo para o país,
modelo perseguido pelas capitais das províncias e absorvido conforme as circunstâncias.
131
III. Ceará
As capitais, por sua vez, repassam às comunas interioranas novidades impregnadas de valores sociais,
comportamentos, formas arquitetônicas, mobiliário, modas, modismos tantas vezes enfim alheios ao
cotidiano modesto das pequenas cidades. Na realidade, em bom número, acabaram consumidos por
via de modificações, adaptações e reduções simplificadoras, quase sempre defasadas e embaralhadas.
É compreensível, pois, que a Viçosa, apesar do seu isolamento, por certo aparente, recebesse nítida
contribuição fortalezense, aliás, alastrada por toda a província mesmo antes do quartel final do
século XIX.
No campo específico da arquitetura, como elementos homogeneizadores do sistema, havia
parâmetros de emprego compulsório, exigidos pelas posturas municipais, tais como larguras das
vias e das calçadas, dimensões dos vãos de iluminação e de ventilação das casas, alturas das soleiras,
das cornijas, das platibandas. Cornijas e platibandas figuravam como apropriações do vocabulário
neoclássico postas a serviço do bem-estar público, evitando que as águas pluviais despencassem em
cortina sobre os passantes.
Por outro lado, a manutenção da aparência física das ruas e das praças figurava como meta administrativa
relevante, de tal modo que o cumprimento da lei exigia fossem as edificações feitas de tijolos, embora
apenas nas fachadas, visto que o restante da casa poderia permanecer de taipa ou até de palha. Os
próprios muros dos quintais das casas de esquina, voltados para as ruas, tinham dimensionamento
previsto nas posturas, as quais obrigavam o uso repetido de vãos cegos, a fim de conferir certo ritmo
aos paramentos, integrando-os esteticamente às fachadas de frente.
Esses sistemas de códigos urbanos, adaptados das normas vigentes na capital, eram aplicados com rigor
pelas câmaras municipais, do que resultava evidente unidade nos conjuntos arquitetônicos, mantida
mesmo quando as fachadas começaram a ganhar modificações “atualizadoras”. Eis porque, como ainda
hoje se pode perceber, a paisagem urbana da Viçosa oitocentista, tal como de outras cidades cearenses,
reflete o emprego daquela legislação padronizadora.
No século XX, as influências da capital na arquitetura viçosense afloram de modo ainda mais claro. Após
as conturbações políticas ocorridas entre 1912 e 1914, o Ceará encontrou perceptível desenvolvimento
econômico no governo de conciliação proposto pelo engenheiro João Thomé de Saboya e Silva, iniciado
em 1916. Desse modo, beneficiado com a retomada do comércio internacional, o estado se aproveitou
de circunstâncias proporcionadas pela Primeira Grande Guerra, procurando diversificar e ampliar o
leque de produtos exportados. As transformações materiais consequentes, verificadas naqueles dias
e nos anos seguintes, cedo imprimirão a Fortaleza nova aparência estética, notadamente pelo aceite
generalizado dos ditames do ecletismo arquitetônico.
Assim, o ecletismo e a posterior adoção do art nouveau e das realizações art déco, estas já depois da
década de 1930, acabarão por ecoar em todos os recantos do estado, fato que explica as obras novas e as
remodelações de obras antigas verificadas na Viçosa dos primeiros decênios do século XX. Até a época,
é bem verdade, a absorção das seguidas vogas arquitetônicas não alterava substancialmente a aparência
das cidades, pois se mantinham os traços mais característicos da paisagem urbana antiga, já que ficavam
preservados a volumetria e o sistema de implantação dos edifícios.
Ao apresentar estas e outras considerações, o relator buscou explicar origens e causas das transformações
da paisagem urbana de Viçosa, patentes na aparência atual da cidade, antiga por sua história, mas
de acervo arquitetônico relativamente novo. Alguns comentários por vezes ampararam-se em fontes
documentais ou bibliográficas omitidas no presente texto, mas que podem ser consultadas em livro de
sua autoria intitulado Igreja Matriz de Viçosa do Ceará: arquitetura e pintura de forro.
132
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
OS ESPAÇOS VIÇOSENSES
Como se viu, muito do aspecto externo do casario viçosense, e também de outras cidades cearenses,
imitou desde velhas datas às modas correntes na capital, modas cujas alterações formais, vale ressaltar,
restringiam-se praticamente à recomposição das fachadas, “modernizadas” com alguma periodicidade.
Este fato explica a razão por que, em Viçosa, apesar de os exteriores mostrarem evidente variedade
formal, as plantas das casas reproduzem as tipologias correntes no Ceará (e de certo modo, no Brasil),
claramente vinculadas aos modos de vida do século XIX.
Avultam, pois, as disposições resolvidas com sala de visitas à frente, sequência de alcovas ao longo
de um corredor e sala de refeições no fundo, seguida de compartimentos de serviço. Salvo nas casas
menores, de meia-água, nas demais prevalecem as cobertas de duas águas, com telhas de canudo
assentadas em cangalha. Repetem-se muitas das soluções fortalezenses, variando apenas as dimensões,
ou melhor, a largura da morada, sempre ligada às posses dos proprietários e consequente na disposição
dos corredores de circulação da casa, laterais ou centrais. Em Viçosa, como particularidade, pode-se
perceber que os lotes de muitas casas, às vezes bem estreitas, cruzam de rua a rua, recebendo pequenas
edículas na parte dos fundos, utilizados que eram os quintais para secar o café e as edículas, como
pontos de venda do produto.
133
III. Ceará
O trecho da cidade para o qual é pleiteado tombamento cobre área limitada, contando, pois, com um
número relativamente reduzido de edificações. Felizmente, as dimensões e a aparência característica
da área restringem ab initio a possibilidade do surgimento de problemas oriundos da aplicação do
dispositivo legal ora solicitado. Dificilmente, portanto, a 4a Superintendência Regional do Iphan
deparará com dificuldades que têm surgido em setores de outras cidades cearenses hoje tombados,
cujas poligonais de contorno foram traçadas de modo alheio a certas realidades locais.
No processo de tombamento, merece encômios a proposta de introdução de uma faixa de transição,
disposta entre a poligonal de envolvência da área tombada e as partes restantes da cidade. Trata-se
de uma espécie de moldura de amortecimento, usual na legislação de outros países. Em Portugal,
denomina-se “zona de proteção”, constituindo um trecho onde as exigências de preservação se
afrouxam, mantendo-se orientadas mais no sentido de evitar efeitos negativos de uso indevido do solo,
seja quanto à volumetria das obras novas, seja quanto às possibilidades de degradação social.
No que tange ao texto da solicitação de tombamento, o relator apenas discorda do emprego do vocábulo
entorno, para designar a faixa de transição. Trata-se de palavra espanhola que encontrou acolhida
entre arquitetos e afins, conquanto não conste dos dicionários de idioma português. Talvez fosse mais
apropriado recorrer a expressões tais como poligonal circunjacente, faixa circunjacente, contorno,
redor, vizinhança, termo este último, aliás, usual na linguagem jurídica. Em instância final, seria o
caso de se usar a nomenclatura “zona de proteção”, corrente em Portugal. Ou “zona de transição”,
aceitando-se oficiosamente esta terminologia.
134
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Qualquer que seja, todavia, o vocábulo empregado, impõe-se providenciar a imediata aprovação de
legislação específica, cujo texto, conquanto amparado em conceitos gerais, destina-se a reger a situação
particular da zona de transição sugerida. Essa legislação complementa o estatuto legal de tombamento,
que deve ser redigido em comum acordo com as autoridades municipais e estaduais, respeitando as
particularidades de cunho local.
Apesar de proposto para Viçosa, convém seja esse aditivo legal estendido, com as necessárias adaptações,
a outras cidades cearenses que possuem áreas tombadas pelo governo federal. Como se admite a
possibilidade de rápido atendimento ao presente pedido de tombamento, a cidade deverá preparar,
já neste ano, ou quando muito no próximo, um plano diretor que tanto considere a situação atual
da cidade como tente prever solução de novos problemas, por certo advindos do incremento das
atividades turísticas.
Como metodologia de trabalho, o processo ora em exame inventaria todas as edificações contidas na
poligonal de tombamento, devidamente cadastradas e documentadas fotograficamente, além de incluir
levantamentos gráficos – plantas, cortes, elevações e esquemas de coberta das obras mais significativas.
E mais: as folhas de cartografia urbana, inseridas no processo, assinalam a localização de todas as
unidades consideradas, bem como apresentam as frontarias das ruas, marcadas pela inclinação (grade)
do terreno. Trata-se de trabalho meticuloso, que permite visualizar em pormenores o acervo e avaliar o
valor da área urbana proposta para efeito de tombamento.
Não se deve, porém, julgar a aparência das edificações pelos desenhos inseridos no processo. Estão
apresentados em escala bastante reduzida e, de certo modo, prejudicados, quer pelo emprego de
levantamentos digitalizados, quer pelo uso de computadores, instrumentos estes que reconhecidamente
desenham de modo uniforme e duro, já que lhes falta a sutileza gráfica do risco artesanal. A premência
de tempo pareceu, aliás, justificar a opção. Para a devida avaliação visual, melhor será recorrer à
documentação fotográfica incluída no processo, ou, como se trata de arquitetura e de espaços urbanos,
visitar a própria cidade.
135
III. Ceará
uma casinha de sobrado, e de bom aspecto (janelas de sobrado envidraçadas), que pertence ao vigário,
Padre Beviláqua”.
Subsistem, é fato, algumas fachadas de aparência mais à antiga, com predominância dos cheios,
mostrando vãos pequenos, de vergas retas, à parte algumas casas, ao que se presume, erguidas em lotes
de trinta palmos de frente (6,60 m). Estas eram as dimensões solicitadas pela legislação pombalina que
geria as “vilas de índios”, talvez aplicadas eventualmente em Viçosa, no correr do século XVIII, por
algum membro do “diretório”, cioso do cumprimento das normas reais.
No geral, entretanto, bom número de casas da cidade revela traços mais recentes, reformas com marcas
residuais influenciadas pelo ecletismo arquitetônico ou reminiscências art nouveau, a par de alguns
exemplares reverentes ao sistema art déco. A aceitação dessas novidades deve ter seguido a ordem
cronológica com que as modas foram difundidas – ecletismo, art nouveau e art déco, no caso local,
sempre transcrevendo de maneira ingênua, e às vezes popular, as mensagens emanadas da capital, esta,
como se assinalou, empolgada pelo progresso material verificado após a Primeira Guerra Mundial, já
no século XX.
Apesar da relativa diversidade formal dos exteriores, o conjunto de Viçosa se revela singelo e equilibrado
na volumetria, significativamente valorizado pelos cuidados que a população espontaneamente
devota à sua aparência, o que o torna agradável e simpático aos visitantes. Apenas uma ou outra
obra mais recente se pauta por soluções destoantes, supostamente modernas. As duas ou três casas
inseridas na área, erguidas segundo a versão brasileira dos bangalôs, quebram a continuidade das
fachadas, o que é uma pena, pois a justaposição das casas constituía uma das marcas da paisagem
dos centros urbanos antigos.
Vale, entretanto, ressaltar que os exemplares representativos de tipologias arquitetônicas de importação
contemporânea localizam-se no exterior da poligonal de tombamento. Na verdade, a decisão de excluí-
los interferiu diretamente na definição dos limites da área relativamente reduzida para a qual foi
solicitado o tombamento.
Infelizmente, algumas das unidades pouco integradas à aparência da cidade se encontram na praça da
Matriz. Talvez, exatamente por força da exposição visual do logradouro, tomado como centro simbólico
da cidade, muitos proprietários se serviram das reformas de suas casas como um meio de demonstrar
atualização ou sintonia com a capital, nem sempre logrando êxito em seus objetivos.
São poucos os prédios públicos, ou de uso público, envolvidos pela poligonal de tombamento. Como
edifício de maior valia, sobressai a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, monumento, como
se assinalou, já arrolado nos Livros de Tombo do Iphan. Acrescentem-se o longo e estreito Teatro D.
Pedro II e a Câmara Municipal, que se apresentam como obras de interesse. Nesta última edificação,
resolvida com planta de rigorosa simetria axial, funcionou o Gabinete Viçosense de Leitura, hoje
desativado, cujo programa de atividades tinha amplo alcance cultural.
O Ceará, no período de transição do século XIX para os novecentos, conheceu alguns desses gabinetes
interioranos, inspirados em instituição homônima fortalezense similar, que reproduzia em escala
menor os objetivos do Real Gabinete Português de Leitura, fundado no Rio de Janeiro em 1837, até
hoje entidade de sólido prestígio e cuja meritória ação disseminativa já se alastrara antes de inaugurada
a sede magnífica, em 1888.
136
Palácio Monsenhor Carneiro, onde funciona a Câmara Municipal de Viçosa do Ceará. Foto: Moacir Ximenes.
(https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Palácio_Monsenhor_Carneiro.JPG)
Um imóvel de uso privado, o Sobrado da Marcela, foi recentemente adquirido pela Prefeitura
Municipal. Está situado na praça da Matriz e, embora ainda não recuperado, já tem função pública
definida. Outras aquisições semelhantes bem que poderiam ser tentadas pela municipalidade, entre as
quais a da vasta edificação térrea, em quadro, localizada ao lado da Matriz, em parte desocupada, em
parte abrigando armazéns e lojas comerciais, com sua quase meia centena de portas encimadas por
padieiras de arco quebrado e com seu amplo pátio interno, outrora destinado à secagem de café.
137
III. Ceará
Os espaços do Teatro D. Pedro II, conquanto façam prever difícil adaptação a funções mais complexas,
podem perfeitamente ser utilizados para representações de cenografia simples, para concertos ou,
eventualmente, ajustados a projeções cinematográficas. As dificuldades impostas à montagem de
atividades dramáticas mais complexas procedem do fato de estar a caixa cênica do teatro postada no
alinhamento, o que impede a introdução e o funcionamento de coxias em um dos lados do palco,
acréscimo que fatalmente invadiria a rua.
Embora o ato de tombamento condicione o futuro cumprimento integral das recomendações propostas
no processo, o relator insiste em enfatizar a necessidade da recomposição de alguns marcos urbanos
destoantes, ora eliminando, ora neutralizando as partes que interferem na harmonia do conjunto. A
propósito, vale lembrar que a remoção de revestimentos de pedra, postos em algumas casas à guisa de
defesa de paramentos externos sujeitos à umidade, figura como medida a ser examinada com o devido
cuidado, já que Viçosa conhece altos índices de queda pluviométrica.
As prospecções arquitetônicas tornam-se imprescindíveis, em favor de dirimir dúvidas quanto à origem
do traçado urbano e de esclarecer certas formas originais de algumas edificações. A praça Clóvis Beviláqua
(da Matriz) deve ser tratada paisagisticamente por via de soluções singelas, que complementem o
conjunto edificado, sem jamais criar contrastes desagregadores. A continuidade dos pisos das praças
figura como uma tradição cearense, mesmo em cidades de relevo ondulado.
A propósito, não deve ser esquecido o fiasco da reforma da praça do Ferreira, em Fortaleza, realizada em
1968. O repúdio veemente e generalizado da população somente se acalmou quando aquele logradouro
voltou a mostrar uma forma semelhante à primitiva, embora não igual de todo, evidentemente.
A lembrança do fato vem a pelo, não obstante se saiba que a praça do Ferreira acusa caimento de
aproximadamente 2%, enquanto na praça Clóvis Beviláqua sobe a uns 5%.
Tratamento especial deve ser conferido à pavimentação das ruas e dos pisos das calçadas na área
tombada, selecionando-se materiais de aparência discreta, que proporcionem segurança aos transeuntes.
A iluminação pública e a iluminação dos exteriores dos edifícios devem seguir os padrões preconizados
para os sítios tombados, evitando-se tanto a fiação à vista como soluções “folclóricas” na posteação e
nas luminárias. As especificações devem admitir o emprego de equipamentos modernos, aceitando
contudo propostas que os neutralizem, sem no entanto os esconder.
Apesar do aspecto agradável da cidade, resultante dos cuidados dispensados pelos viçosenses, as
fachadas das casas, quando de ocasionais recomposições nas pinturas, pedem sejam submetidas a
rápida prospecção, necessária à reconstituição das cores antigas. Nos trabalhos de pintura, devem ser
evitadas decisões meramente pessoais, feitas sem quaisquer critérios históricos e técnicos. Escusam-se,
pois, as fantasias cromáticas recentemente aplicadas em trechos de algumas cidades brasileiras, cuja
cena urbana se transformou em verdadeiro mostruário dos fabricantes de tintas, muitos dos quais
interessados nas decisões.
Deve ser rejeitado o emprego de tintas produzidas industrialmente à base de emulsão de borracha
sintética ou de plásticos, obtidas por polimerização. Esses materiais retêm a “transpiração” da umidade,
provocando bolhas ou descasques que comprometem a aparência do casario e obrigam a seguidos
refazimentos das pinturas. Aconselha-se o uso preferencial de tintas produzidas artesanalmente,
cuja gama de cores é a tradicional, com suas limitadas variações cromáticas. Convém lembrar que,
comumente, as edificações mais antigas eram brancas, apenas caiadas, mantendo velhas tradições
mediterrâneas ditadas pelo clima, embora tivessem vindo a receber pigmentação mineral de ocre, em
geral, amarela, mesmo porque era a mais resistente ao sol forte do Ceará.
138
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Tornou-se então comum o jogo de uso da cal pura e do ocre, pondo em destaque o relevo da modenatura
sobre os paramentos de fundo amarelo. Eventualmente, as paredes conheceram a aplicação de outras
cores, porém não tão firmes quanto aquelas, enquanto as madeiras contrastavam, mostrando os tons
fortes dos verdes, dos azuis e dos vermelhos-sangue-de-boi. Na verdade, no ocre das paredes e na cor
festiva das esquadrias ainda ecoava, em terras distantes e muito tempo depois, o utilitarismo iluminista
das especificações pombalinas formuladas para a reconstrução de Lisboa, abalada por terremoto em 1755.
O estacionamento e o tráfego de veículos devem ser disciplinados com o rigor da lei. Também impõe-
se examinar as possibilidades de superar, com criatividade, os problemas advindos da introdução de
garagens nas edificações integrantes do circuito tombado, pois, sem dúvida, os entraves ao acesso
motorizado avultam como um dos problemas mais graves com que se deparam as áreas antigas de
nossas cidades.
A legislação deve dedicar artigos especificamente voltados para os problemas causados pela poluição
visual e sonora, pormenorizando taxativamente as punições aos infratores contumazes.
Os arquitetos e seus colaboradores, encarregados da recomposição arquitetônica e paisagística da
área tombada, hão de pautar-se pelo maior rigor profissional, respeitando duplamente o povo e a
cidade, já que essa é uma obra coletiva. Devem, portanto, reverenciar uma estrutura urbana de origens
quadrisseculares, de cujo projeto e de cuja construção não participaram.
Como é sabido, as tarefas de contextualização arquitetônica ou urbana são muito complexas, requerendo
árduo desempenho porque exigem rigor de pensamento e de ação. Amparam-se em sólida base teórica,
constituindo um enfrentamento intelectual de problemas que não podem ser solucionadas ao talante
do projetista, enfim, fruto de decisões pessoais subjetivas ou discricionárias. Nem de devaneios. A
criatividade disciplinada, a qualificação técnica, o conhecimento da história da edificação e dos espaços
que a cercam, bem como as opções norteadas pelo bom senso e pela ética, constituem o caminho
correto para o êxito dos trabalhos.
Já se afirmou que a malha rodoviária cearense por bom tempo excluiu Viçosa de suas vias mais
solicitadas. Se a medida isolou a cidade, por outro lado livrou-a da degradação física e social a que
muitas cidades têm sido submetidas.
Preservada por força de lei em seus trechos mais significativos e valorizada com a condição de Cidade
Monumento Nacional, Viçosa pode agora abrir suas portas às correntes turísticas, vaidosa da condição
de terra natal de dois dos mais ilustres brasileiros – o jurista Clóvis Beviláqua (1859-1944) e o general
Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa (1837-1885). À parte de sua excepcional condição paisagística e
climática, imune às estiagens periódicas, a cidade ficará altamente favorecida pelo status cultural que
lhe empresta o tombamento.
Nos dias atuais, a expansão consolidada da rede rodoviária estadual e a sua pavimentação modificaram
a situação antiga, interligando Viçosa tanto a uma fila de cidades implantadas no alto da serra da
Ibiapaba como ao próprio sistema viário federal, já que o trecho Fortaleza-Teresina, da BR-222, cruza
a serra por Tianguá, cidade situada a trinta quilômetros ao sul.
139
III. Ceará
Por tais razões, Viçosa participa hoje de um circuito amplo de visitação turística, que contempla suas
cercanias, no Ceará e no Piauí. Presentemente, na própria serra da Ibiapaba, prospera ativa cultura
de hortaliças e frutos, abastecendo vasta área que se estende de Fortaleza a Teresina. Desenvolve-
se o cultivo de flores para exportação, enquanto vêm sendo implantados equipamentos hoteleiros,
beneficiados com a proximidade de banhos de rios e pequenas cachoeiras, alinhando-se, como atrativo
maior, a conhecida Gruta de Ubajara, cujo acesso faz-se por meio de um teleférico. No litoral, ao pé da
serra, espalham-se as praias do noroeste do Ceará e o Delta do Parnaíba, zona de manifesto interesse
dos programas federais de desenvolvimento turístico. Mais a oeste, no território do vizinho Piauí,
ergue-se o conjunto monolítico das Sete Cidades, espécie de cidade de pedra, de visita recomendada.
Em Viçosa, a valorização cultural conferida pelo tombamento, a produção agrícola regional e o turismo
de repouso imbricam-se, como um todo, à beleza do sítio urbano e à amenidade do clima. A propósito,
acresce lembrar que as dádivas da natureza da região noroeste do Ceará e vizinhanças do Piauí têm
merecido interesse governamental, traduzido pela criação de uma Área de Proteção Ambiental da serra
da Ibiapaba, com sede na própria Viçosa, instrumento oficial de preservação da natureza, regido por
legislação específica. Minuciosas informações relativas à matéria foram, aliás, incluídas no processo.
CONCLUSÃO
Examinado o processo e nada havendo a obstar tecnicamente quanto à sua aprovação, aventou,
entretanto, o relator fossem ultimadas algumas providências que lhe pareceram necessárias. Assim,
permitiu-se solicitar à 4a Superintendência Regional do Iphan o esforço por conseguir respaldo prévio
e explícito ao tombamento, quer por parte da população da cidade, quer por parte dos proprietários
dos imóveis nominados. Também foi sugerida a anuência preliminar da prefeitura local e da respectiva
câmara municipal ao tombamento da área. Como contrapartida, o Iphan deveria divulgar, explicar,
discutir e orientar antecipadamente a população sobre o significado do tombamento de trecho da área
da cidade e de suas relações consequentes na vida dos habitantes.
A solicitação do relator amparou-se nas seguintes considerações:
> A necessidade de envolvimento da população no processo de tombamento e o devido
conhecimento de seu significado
A participação dos habitantes das cidades em decisões que interferem na organização física
da forma e da aparência urbana parece marco essencial para o futuro êxito para a aplicação
deste ou de outros estatutos legais. O item 35 da Carta de Nairobi, redigida por ocasião da 19a
Conferência Geral da Unesco, em 1976, concita:
A ação de salvaguarda deveria associar a contribuição da autoridade pública à dos
proprietários particulares ou coletivos e à dos habitantes e usuários, isoladamente ou
em grupo, cujas iniciativas e participação deveriam ser estimuladas.
No presente caso, a solicitação do relator figura como medida democrática que elimina, no
nascedouro, quaisquer interpretações cavilosas de terceiros, às vezes traduzidas por acusações
infundadas, segundo as quais os tombamentos concretizam decisões autocráticas de intelectuais
alheios às realidades sociais e econômicas dos núcleos urbanos.
140
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
> A aplicação do recentemente aprovado Estatuto da Cidade
Este novo instrumento de controle participativo confere às populações urbanas o direito de
opinar e decidir sobre o futuro das cidades em que vivem. Nada mais justo informar cabalmente
da legislação há pouco aprovada e de suas relações com o Decreto-Lei n. 25, de 30.11.1937
(Cap. III), que trata dos efeitos dos tombamentos.
Consideradas que foram as solicitações do relator pelas autoridades municipais e pela 4a Superintendência
Regional Iphan, devolvo à Presidência deste Conselho do Patrimônio Cultural o processo n. 1496-T-
02, cujo pleito, dele constante, pode e deve ser atendido sem embargos. Portanto, opino favoravelmente
ao tombamento da área da cidade de Viçosa do Ceará contida na poligonal constante do presente
processo, área cuja preservação material deve observar a legislação federal pertinente. Os efeitos
colaterais do tombamento também contemplam a zona de transição, indicada no processo, para a
qual será proposta legislação específica. E, porque o processo trata de preservação de paisagem urbana,
tanto a área definida pela poligonal de tombamento como a respectiva zona de transição devem ser
registradas no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.
141
IV. Goiás
142
IV. G oiás
PROCESSO: 345-T-42
RELATOR: PAULO BERTRAN
REUNIÃO DO CONSELHO: BRASÍLIA, 17 DE DEZEMBRO DE 2003
Esta estranha e exótica Cidade de Goiás, Vila Boa, Goiás Velho, é hoje Patrimônio da Humanidade,
talvez, graças a um transporte onírico da conselheira Suzana Sampaio.
Teria Suzana seus três ou quatro anos de idade (confidenciou-me certa vez em um almoço na pequena
Paris Tropical da Cinelândia), quando o pai engenheiro e urbanista deixou-a sentadinha nos patamares
de uma igreja barroca, assistindo ao revoar de centenas de pássaros sobre o branco-verde cenário de
uma antiga cidade, enquanto discutia com o staff do interventor Pedro Ludovico, instalado no velho
palácio dos capitães-generais de Goiás, os planos de eletrificação da surgente Goiânia.
Anos e anos depois, alguém convidou Suzana para visitar Goiás, que ela pensava não conhecer, e eis
que chegando, a recebe uma revoada de pássaros sobre o casario branco-verde e acende-se na memória
a condição proustiana inigualável. Escreve Suzana em sua agenda: ver com Icomos o tombamento
de Goiás, Patrimônio Mundial. Meio caminho andado: a emoção dentro da história. Desculpe-me a
inconfidência a conselheira Suzana, mas histórias bonitas assim precisam ser contadas, pois melhoram
a vida sobre a Terra. E hoje aqui trataremos do tombamento dos ninhos dos pássaros de Suzana, no
colar verde das chácaras que embalaram nas noites antigas os sonhos de Vila Boa de Goiás.
Nesse processo também me reencontro, quase vinte anos passados, assinando textos, sozinho ou com o
arquiteto José Galvão Jr., tentando sempre entender como evoluirá o espaço urbano de Goiás. Consultor
de História da Sphan, passava dias e dias lendo o Arquivo do Museu das Bandeiras, particularmente
Casarão antigo, Cidade de Goiás. Foto: Wagner Araújo, 2005.
143
IV. Goiás
interessado nas décimas urbanas, e dessa leitura atenta começavam a pulular gentes, valores de casas,
nomes antigos de ruas, a cidade morta que renascia na minha imaginação voyeurista. E que se formatava
como que um livro na minha cabeça, acho que o único livro que peno de não ter escrito antes que não
se esgotasse aquela consultoria com a Sphan, com seu prazo indelével, sem renovação, esgotado.
Dos armários de minha casa, retiro três grossas pastas de plástico que há vinte anos eram de um vermelho
escandaloso e que hoje não passam de um sanguinho nulo. Até os plásticos envelhecem. Dali retiro,
dentre dezenas de notas, as que diziam respeito a este tombamento: a história de antigas chácaras de
Goiás, naquilo que a arquiteta Fátima Macedo, em seu belo relatório, chama de paisagem cultural e que
estou convicto de que para sedimentar-se precisa da pesquisa histórica, pois, nos cenários que evoca,
iluminam-se as sagradas paisagens e abrem-se os incunábulos fundacionais da cultura de um povo.
Retiro algumas anotações avulsas: rua Direita, porque direitas deviam ser as pessoas, e porque foi na rua
Direita de Damasco que se hospedou São Paulo, cego três dias depois de ver o Cristo, até que o Senhor
envia-lhe o discípulo Ananias, para aquela cegueira abrir-se às luzes do espírito. Complicadíssimo
imaginário coletivo daquelas profundezas auríferas do século XVIII.
Já de pleno entendimento contemporâneo é a rua das Flores, aquela em que mais havia mulheres
bonitas no vilarejo, ora, pois, a rua das Flores. Hoje se chama Americano do Brasil, o historiador meu
antepassado, que me sussurrou fizessem-lhe uma placa de onde pudesse ver as flores da rua das Flores,
que foi do que mais gostou em sua bonita e trágica vida.
Abro o velho processo de tombamento iniciado em 1942. As letrinhas de Rodrigo Melo Franco de
Andrade e de Carlos Drummond de Andrade, Eduardo Soeiro, a valorosa Dra. Belmira Finfejeiev,
Marco Antônio Galvão, Fernando Madeira e Cristina Portugal, que conseguiu que eu lesse o arquivo
da Prefeitura de Goiás e ainda obteve-me prestimosa secretária e doceira para limpar os papéis.
Das pesquisas de Goiás surgiu o historiador maduro, com régua e compasso, diria Gilberto Gil, pronto
para decifrar (ou desafiar?) outros arquivos no Brasil e no exterior, a distrair-me da incômoda paixão
da pesquisa inacabada.
144
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Mas vamos ao relatório das grandes áreas culturais e ambientais levadas agora a tombamento, antes que
o livro inacabado tente se apossar de minha mão. Livros inacabados são crianças mimadas que causam
dores no fundo da cabeça.
Teremos aqui um roteiro de visitação dos novos tombamentos inteiramente surrealista, em que se
misturam um administrador de índios, alguns bispos, uma matriarca integral, o presidente Juscelino, um
general suíço, dois preservacionistas goianos, o avô de Mário de Andrade, um engenheiro francês, vários
pianos franceses, um desembargador boêmio, dois caciques políticos e uma coorte de anjos e pássaros.
São objetos de tombamento nesta rerratificação:
CHÁCARA DO BISPO
Até onde conseguia apurar, pertenceu ao major Pacífico Xavier de Barros (Pacificão), militar
de carreira, tradição nesta família de origem paulista desde o século XVIII e ali residente por
volta de 1870, década em que se inaugurou a Barreira do Norte, novo acesso à capital goiana,
criado pelo governo provincial para conjugar dois fins: uma barreira sanitária para quarentena de
pessoas vindas do norte, repouso de tropas cansadas e arrecadação fiscal.
Talvez administrasse essas funções o major Pacificão, um herói de tempo antigo, administrador
que fora do perigosíssimo estabelecimento de pacificação dos índios que existiu no forte (de
pedras) de Santa Maria do Araguaia retratado pelo casal Coudreau em suas explorações naquele
rio, cerca de 1890, hoje no extremo norte do Tocantins. Ali perdeu o major Pacificão, de fome
e de ataques, por vários dias assediado pelos índios, metade de seus homens, e na sofrida volta à
pé, à capital (cerca de mil km), morreram sua mulher e dois filhos.
É quase certo também que na chácara, hoje chamada do Bispo, aconselhasse os viajores mercantis
a negociar pacificamente com grupos de índios que encontrassem pelo caminho, tentando evitar
males maiores aos transeuntes, bem como a conflagração das guerras indígenas. Presentes de
miçangas, paetês e ferramentas e sal, em vez de armas, como se fizera no século XVIII. Os goianos
foram os últimos sertanistas do país e por isso é que, desde fins do século XIX, contratasse-os
o marechal Rondon para suas grandes marchas humanitárias através da Amazônia. “Morrer se
preciso, matar, nunca”, dizia.
Pacificão foi pai do alferes Pacifiquinho, celebérrimo em Goiás por ter se casado umas dez vezes,
em suas andanças de militar do exército através das guarnições do país, deixando, além de em
Goiás e no Tocantins, grande família no Paraná.
Tenho impressão, pelos mapas de tombamento, que um trecho da Estrada da Barreira do Norte foi
tombado nesse ato. No futuro, depois de se configurarem melhor suas obras de arte em pedra seca,
às vezes grandes, de pontes de pedras sobre bocainas, recomendo uma extensão norte desse tomba-
mento até uns cem metros acima da Chácara do Bispo, de forma a compreender a antiga estrada.
Ignoro a data e as circunstâncias em que a Chácara do Bispo foi adquirida pela Igreja para o
repouso dos prelados de Goiás.
Queria dispensar-me de comentá-la, porquanto pertence à minha mulher, Graça Fleury. Mas
como conhecer melhor a mulher amada sem conhecer melhor sua casa de infância? De sua mãe,
avó, afinal de sua bisavó, a famosa Dona Sinhá Cupertino.
145
IV. Goiás
CHÁCARA BAUMAN
Foi intenso ali o processo de mineração no século XVIII, existindo ainda visíveis, apesar de
erodidas, áreas de escavação de minérios com mais de quinze metros de profundidade e uns
duzentos metros de extensão, como se vê logo em frente da magnífica casa.
A chácara tem esse nome porque ali tinha residência o general suíço João Jacomo Bauman,
segundo governador de armas da Província de Goiás, sucessor no cargo ao grande geógrafo e
historiador brigadeiro Cunha Mattos, sócio fundador do Instituto Histórico e Geográfico. Ali
faleceu o general Bauman nos anos de 1830, deixando porém geração na família dos Bauman
cariocas. O naturalista Auguste de Saint-Hilaire o conheceu quando residia em São Paulo, onde
também tinha uma chácara com os melhores requisitos de modernidade da época. Fizera carreira
militar no exército português desde jovem, acompanhando Dom João VI ao Brasil.
O construtor, porém, da bela mansão que hoje existe, foi o notável doutor Sebastião Fleury
Curado, deputado constituinte de 1891, jurista e historiador de méritos de sua Vila Boa natal,
anotando diversos episódios ali registrados no fim do período colonial.
Seu sucessor foi o filho, doutor Augusto da Paixão Fleury Curado, procurador da Fazenda
Nacional e um dos principais apoiadores da ação do Iphan no tombamento de Goiás naqueles
turbulentos anos de 1950, quando alguns cidadãos, apoiados pelo prefeito de então, começaram,
de propósito, a demolir velhos casarões e a propor ações judiciais contra o recente tombamento
de uma ínfima parte do atual centro histórico.
146
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Existem cartas do doutor Augusto no volume I deste processo, uma delas relatando como
disporá em embrulhos a documentação fazendária colonial e imperial de Goiás, então doada ao
Patrimônio Histórico, e que D. Ieda Sócrates do Nascimento organizou com rara inteligência.
O ato simples da fundação do delicioso arquivo do Museu das Bandeiras, que devia ter uma
sala com o nome do doutor Augusto. E outra em homenagem ao doutor Edgard Jacintho, cujo
relatório precursor do tombamento de Goiás não esconde certo pasmo com a exótica cidade,
meio imperial, meio republicana, meio bandeirantista, assim inusitadamente cravada e gestada
nos profundos sertões do Brasil e da brasilidade. E outra para D. Ieda Sócrates. Afinal, lá temos
muitas portas, e temos de criar a cultura de honrar as pessoas que lutaram pelo patrimônio
histórico neste país.
MATADOURO
Grande quadrado de altos muros de pedra em junta seca, com repartições parecidas. Estava
então na extremidade oeste da cidade, ali por fins do império, quando o concluiu o presidente
da província, Leite de Moraes – e aqui já estamos em casa –, avô de Mario de Andrade, escritor
também, como o neto. É o monumento público mais maltratado e esquecido da cidade de
Goiás e, no entanto, um dos mais espaçosos e interessantes por sua beleza rústica, com o entorno
imediato em uma bela praia do Rio Vermelho. É certo que nossos brilhantes arquitetos no Iphan
promovam para ali um belo projeto de revitalização, voltado talvez para reuniões populares,
participando do calendário festivo da cidade.
CHÁCARA DE D. LHULHU
Curiosa goianização do nome de Dona Astulieta Caiado, gentil anciã que conheci há uns
quinze anos e me disse que sua casa fora construída por um engenheiro francês, cujo nome
não lembrava. Mas eu sabia, pois tinha visto (nos meus saudosos meses lendo o Arquivo do
Museu das Bandeiras) vários relatórios com belos desenhos à prancheta do engenheiro geral da
província, doutor Ernesto Vallé (achei o francês de D. Lhulhu), ali pelos anos de 1870.
Vallé deixou também uma memória otimista sobre Goiás, talvez por participar da belle époque
que começara a despejar-se sobre a velha cidade nos vinte finais anos do imperador bonachão e
amante das artes e, depois, da superação da maldita Guerra do Paraguai, que enlutou mais de
trezentas famílias goianas, principalmente no dramático episódio da Retirada da Laguna.
Depois, a cada ano, voltavam à cidade uma dezena de goianos formados em direito no paulistano
largo de São Francisco, engenheiros da Escola de Ouro Preto, imigrantes portugueses, árabes,
italianos e franceses, médicos formados no Rio de Janeiro ou na Bahia, jovens de todo o país,
doutores ou não, em busca de novos horizontes. Uma associação civil deles criou um gabinete
literário aberto ao público, com centenas de livros e jornais. Em certo momento, nada menos
que sete jornaizinhos semanários circulavam pela cidade.
E a música. Uma orquestra filarmônica com cinquenta instrumentos, três coros de igreja, cinco
bandas marchadeiras pelas ruas e todos esses músicos tocando por partituras. A bem dizer, em
cada rua morava um poeta e um compositor e, quando se viam, eis que brotava uma lírica
modinha, logo exportada, se popular, nas dezenas de tropas mercantis de longo curso que, ainda
ricas em ouro, diamantes e especiarias, atingiam remotos confins – pois os sertanejos foram
147
IV. Goiás
os maiores contrabandistas desses gêneros em toda a história do Brasil. Em todas essas belas
chácaras que vimos, cada nobre sala tinha piano e as sinhazinhas se revezavam em tocá-lo.
Vindo de Goiás, o meu velho Érard de cauda, um dos três existentes no Brasil, patente de 1850,
fabricação de 1858, olha-me do fundo da sala, testemunho vivo da História. Ainda toca bem o
piano que Liszt e Chopin usaram. Umas trinta outras sinhás por toda Vila Boa faziam cantar seus
pianos a cada noite de lua dos sertões de Goiás, o que devia ser um tipo de apoteose.
Comandavam essa brilhante sociedade de abolicionistas e loucos os jovens Bulhões Jardim, tendo
à frente o desembargador, poeta, compositor e boêmio Antônio Felix de Bulhões, que voltara à
terra com sua rede e guitarra, depois de exercer a magistratura máxima no Tribunal da Relação de
Ouro Preto, no posto em que um século antes assistira o ouvidor Tomás Antônio Gonzaga e que,
dizem, deixara aquele futuro pavimentado, barbas da corte, pela paixão proibida de mocidade,
sua própria meia-irmã.
Do lado, suas primas Xavier de Barros entregavam-se à música de corais e concertos no Teatro
São Joaquim, sob os cuidados do negro, neto de padre, geólogo, jornalista, maestro e compositor
José Patrocínio Marques Tocantins. A bela e branca Ana Xavier de Barros apaixona-se e casa-se
com o maestro gordo, feio e genial alguns anos antes da abolição. Bulhões morreu de bebedeiras,
não tinha muito mais que quarenta anos, mas fundou três jornais e uma oligarquia de gente
esclarecida e pacífica.
Na belle époque vilaboense, morava lá o pai de Totó, o senador do império Antônio José Caiado,
fazendeiro abonado que no entanto era um abolicionista e abriu sua discreta chácara para as
reuniões do Clube Liberal, fundado pelos Bulhões, cuja casa em frente ao Chafariz não tinha a
requerida privacidade para grandes conversas políticas. No fim, o temperamento forte do filho
Totó ajuda no rompimento com os Bulhões, que em sua maioria se retiram para o Rio de
Janeiro, onde exercem cargos importantes, inclusive, por três vezes, o Ministério da Fazenda, ao
longo do século XX. São hoje uma família carioca.
Totó Caiado fundou o caiadismo em Goiás e, apesar da esquerda acadêmica jogar-lhe certas
pedras indevidas, omite seu neto Emival Caiado, que, apesar de udenista roxo, foi o principal
colaborador de JK no Congresso, quando se trataram das seríssimas questões legais envolvendo
a criação de Brasília.
Também apresenta sinais evidentes de mineração na sua face leste e na pedreira de trás do atual
prédio da Prefeitura. Não conheço infelizmente sua história. Sei somente que pertenceu a
Sinhá Camargo e anteriormente a Moisés Lopes Zedes. Ambas as famílias, de origens paulistas,
encontro seus nomes desde que os bandeirantes fundaram Vila Boa.
Pena que tenha ficado fora desta retificação a Chácara Costa Campos, apenas separada da Chácara
Camargo pelo asfalto que demanda ao Araguaia, depois de sobrepassar o último trevo de acesso à
cidade. Fica para o futuro o tombamento da bela Chácara Costa Campos, em terreno cheio de história,
onde existiu, até 1803, a maior mansão particular de que se tem notícia nos sertões ocidentais, a
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Chácara do Moinho, do cirurgião-mor Lourenço Antônio da Neiva, que em seus vinhedos produzia
bom vinho, para a alegria de Vila Boa, em 1780. E ao lado, o grande túnel de mineração dito da Furna,
em bom estado de conservação, inteiramente esquecido de seu valor histórico e turístico.
Fica também de fora desta vez o bairro do Bacalhau, ou Bacalhau da Barreira, ou Barreira do Sul,
com as mesmas funções já descritas da Barreira do Norte, na Chácara do Bispo, só que esta voltada
para o sul, com sua rica estrada para São Paulo, Rio de Janeiro, as Gerais e Bahia. Dista uns três km
de área tombada, possui uma interessante ermida de Nossa Senhora da Guia, patrona dos antigos
viajores, um casario vernacular de antigas chácaras, o mais belo ribeirão de grandes pedras da região
e as mais preservadas e extensas ruínas de mineração das proximidades de Goiás. Está submetido
hoje a intenso processo de parcelamento ao qual não assiste outro planejamento a não ser o do
topógrafo particular.
Uma pena. Mas sabemos que não existe ainda uma filosofia clara para esses tombamentos pontuais.
Isto, em um momento em que já devíamos estar envolvidos, como mestre Jean-Pierre Halevy, na noção
de planejamento urbano e ambiental, integral, das cidades tombadas, vítimas de um ciclo perverso,
no qual, quanto mais se reabilitam seus centros históricos, mais geram serviços, que mais atraem
trabalhadores, por fim jogados em periferias inqualificáveis.
É mais que hora de propugnarmos por uma lei federal que estabeleça alguma supervisão do Iphan ou
de outra área federal para o planejamento integral, inclusive microambiental, de nossas belas cidades
históricas, excetuando talvez as capitais, onde tudo é mais complexo.
Fico feliz pensando que esta rerratificação da área histórica de Goiás, com o tombamento das seis
chácaras e do Matadouro antigo, enfim, garanta continuarem suas velhas funções de pulmões
ambientais, além das importantes funções culturais que exerceram, como vimos, e maiores ainda
exercerão no futuro da cidade.
E desde já registro também meus cumprimentos para os arquitetos da Casa, Cristina Portugal e José
Galvão, por serem os mais novos cidadãos honorários de Vila Boa de Goiás, conforme nos avisou
há dois dias o brilhante e jovem vereador Rodrigo Santana, por propositura dele ao velho Senado da
República de Vila Boa de Goiás, para que os informasse neste encontro.
E por falar neles, cujos textos e assinaturas compõem dezenas de páginas deste e de outros processos,
projetos e ações e muito mais serão os indizíveis de amor e dedicação, encerremos com o que escreve
o nosso velho amigo e coautor, arquiteto Galvão Júnior, o famoso Soneca, conforme consta em sua
tese acadêmica:
O espaço construído de Goiás constitui-se em geometria telúrica... Essas arquiteturas
são obedientes à raiz de parede, têm parentes míticos entre anjos e meninos verdes, sacis,
caiporas, anhangueras, com saudades portuguesas, banzos africanos e correrias de bugres.
E acrescentaríamos: os pássaros de Suzana Sampaio cortando o pó de ouro das tardes de
Vila Boa, capital dos goiases.
É o parecer, totalmente afirmativo quanto a esta rerratifícação do tombamento da cidade de Goiás, e
com menções a futuras ações de melhoramento.
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IV. Goiás
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Pirenópolis – GO | 1988
PROCESSO: 1.181-T-85
RELATOR: FRANCISCO IGLESIAS
REUNIÃO DO: RIO DE JANEIRO, 1º DE DEZEMBRO DE 1988
Esta é uma reunião especial do Conselho da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Sphan), não só pela importância do assunto como pelo fato de ser realizada fora de sua sede. Não é
primeira vez que o fato se verifica – reunião em local diverso, em outros edifícios do Rio de Janeiro ou
mesmo em outra cidade.
Este Conselho sente-se feliz de estar em Pirenópolis1, no interior de Goiás. Feliz por encontrar-se no
próprio núcleo, objeto agora de seus cuidados. Deve-se a oportunidade ao convite de autoridades do
estado, que quiseram assim dar pompa ao ato de tombamento da cidade. A Sphan, por sua vez, sente
valorizado o encontro, pelo convívio direto com o bem em questão. Em contato com a terra goiana,
com a paisagem natural e urbana de Pirenópolis, com sua boa gente, este Conselho sente viver aqui e
agora um dos momentos capitais de sua trajetória de órgão zelador do patrimônio brasileiro.
Vamos dividir o nosso parecer em duas partes: o presente tombamento; depois, em breves linhas, a
importância deste ato e o exame do viver no interior, na tentativa de captar o significado das pequenas
ou médias cidades no quadro nacional.
1. Nota dos organizadores: conforme a ata da 135ª reunião do Conselho, de 1º de dezembro de 1988, no Rio de Janeiro, a leitura do
parecer deveria ter sido feita em reunião que seria realizada em Pirenópolis em data anterior, o que não ocorreu.
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IV. Goiás
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
batalhas, rebeliões populares, sede de algum órgão administrativo ou religioso, igrejas ou edificações
notáveis –, mas também os centros que conservam característica de uma época ou de uma área.
Do exame atento das peças apresentadas, é possível concluir, para encaminhamentos, que a região
desenvolveu-se em decorrência da exploração mineral, cuidado da administração portuguesa desde
os primeiros dias de sua aventura americana, em busca do Eldorado. Desejava-se ouro, ou prata, ou
pedras preciosas – razão de entradas pelo interior, desde o século XVI. O ouro e a prata, revelados com
abundância aos espanhóis, não apareciam em quantidades justificadoras da empresa econômica. As
entradas se multiplicaram, até a revelação do metal em números expressivos no fim dos seiscentos, no
Vale do Tripuí. Começa a corrida para o interior, a ponto de exigir providências do governo português,
proibitivas da vinda para as Minas Gerais – nome expressivo. Como a riqueza parecia farta, surgem os
conflitos de posse e a necessidade de organização do Estado no Brasil, o que se dá em 1709, com a capi-
tania de São Paulo e Minas do Ouro, logo seguida em 1720, pela capitania autônoma de Minas Gerais.
As disputas entre portugueses e paulistas, ou entre paulistas e quaisquer outros, levaram a entradas mais
profundas, como se dá, ainda no começo dos setecentos, com a busca de áreas distantes. Chegar-se-á
às terras de Goiás e de Mato Grosso, nas quais também se encontra o ouro, e não tarda a organização
administrativa, com as capitanias de Goiás e Mato Grosso. Os paulistas haviam chegado ainda no
século anterior, vindos diretamente de São Paulo, no anseio expansionista. Não é certo dizer que eles
foram ao Centro-Oeste pelo malogro em Minas Gerais, pois já iam antes da revelação do ouro no
Tripuí; mesmo no primeiro século, verifica-se a ocupação de faixas dessas terras pelos espanhóis, depois
desalojados pelos bandeirantes.
Como em Minas Gerais, também antes se encontrara a desejada riqueza, mas de modo episódico,
sem a segurança de exploração contínua e rendosa. No século XVIII, entre outras partes do território
goiano, destaca-se o das Minas de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte, origem do arraial. A
povoação surgiu em 1727, da bandeira de Manoel Rodrigues Tomás, companheiro de Bartolomeu
Bueno da Silva, o filho do Anhanguera. O distrito de Meia Ponte é de 1732, o arraial e a freguesia
são de 1736. Pretendeu os foros de capital, mas perdeu para Vila Boa. Meia Ponte continua a crescer.
Entroncamento de caminhos, estava predisposta a ser objeto de atração.
O empenho no ouro logo revelou sua falácia, pois este não era abundante como se pensava. E já
na oitava década se confirmava a decadência, como se dera em Minas. Era preciso partir para outra
economia, impondo-se a agrícola. Labores agropastoris, comércio e cruzamento de caminhos garantiam
a sobrevivência de Meia Ponte. A estagnação, ou até a regressão, vira norma para a capitania de Goiás.
Meia Ponte, contudo, conseguiu sobreviver. Agora, há a dispersão pelos campos, pelas áreas rurais, em
fazendas ou sítios baseados na autossuficiência.
O arraial, construído em planície cercada de montanhas, estende-se às margens do rio das Almas, em
encosta prolongamento dos Montes Pireneus. Tem muitas casas e algumas igrejas. Estas chamam a aten-
ção do viajante Saint-Hilaire em sua passagem, em 1819 – ele elogia o terreno, o clima, o bom-gosto das
edificações, o traçado das ruas e praças. Chega a falar que na área fronteira à Igreja de N. Sra. do Rosário
se descortina um panorama, talvez o mais belo de quantos contemplou em suas viagens. Essa igreja mere-
ce atenção, pois foi construída no começo do arraial, entre 1732 e 1736, guardando as características da
época dos bandeirantes. Por sua importância, já foi tombada pelo órgão federal, em 1941.
Meia Ponte foi elevada a vila em 1832. Além de economia e organização social estáveis, conhece a
contar daí vida cultural expressiva. Lembre-se a fundação da Biblioteca Pública, em 1830. Se antes
havia aulas isoladas, começa o ensino regular para meninos e meninas. De 1830 é também o primeiro
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IV. Goiás
jornal – A Matutina Meia Pontense –, pioneirismo em Goiás. Tem bandas de música e até orquestra.
As festividades religiosas ganham fulgor e se multiplicam. Aqui, como em outros pontos do país, o
sincretismo se impõe, pela presença de brancos e de negros.
Meia Ponte passa à categoria de cidade em 1853. O povo pedia a mudança do nome, consagrando-se o
de Pirenópolis, em 1890, por causa da cadeia de montanhas mais importante, próxima do centro urbano.
Seu desenvolvimento decresceu pela falta de boas condições de suas estradas ou de pontes, impondo o
desvio das rotas. A inauguração de Goiânia nos anos 1930 acelerou o processo. Há esperanças de novo
surto, com a construção de Brasília e o florescimento do Centro-Oeste. Pirenópolis conservou seus
traços com relativa fidelidade, por muitas décadas.
A contar de 1960, contudo, tem início certa descaracterização, que pode agravar-se, se as autoridades
municipais, estaduais e federais não ficarem alertas. Em boa hora, pois, é proposto o tombamento,
que poderá impedir a deterioração de um patrimônio valioso em nome do imediatismo do lucro, da
incúria ou da insensibilidade. Espera-se a justa compreensão de que preservar não é deter, impedir o
desenvolvimento, mas dar-lhe um sentido orgânico, racionalidade. Só assim se evita o aviltamento
do que somos. Não se repitam aqui condições que tornem a vida impossível em futuro próximo,
pela destruição de recursos naturais ou edificações já feitas, em nome de proveito momentâneo
incompatibilizador do futuro, como é denunciado com lucidez pelos ecologistas, urbanistas, cientistas
de diversas especialidades.
O turismo crescente e a aquisição de edifícios por gente de Brasília, se representam um bem para a
cidade, podem também pervertê-la, na desfiguração de seu sentido. Pirenópolis já tem uma legislação
de defesa de suas coisas e vem estabelecendo contatos com os governos de Goiás e com a Sphan
para racionalidade de seu desenvolvimento, de modo a prever os prejuízos da improvisação ou os
atentados de mau gosto. Além de dois tombamentos federais (a Matriz de Nossa Senhora do Rosário e
a Fazenda Babilônia), há três estaduais (a cadeia pública, o teatro e a Igreja do Bonfim). Esse cuidado
dos habitantes é digno de louvor e deve-se esperar que prossiga, quanto mais agora, quando se faz um
tombamento maior, no nível federal, pelo Ministério da Cultura e pela Sphan.
Pirenópolis tem fisionomia urbana agradável, pelo traçado e pelas construções. Estas formam conjunto
harmonioso, digno de ser preservado. Demais, a paisagem circundante é de grande beleza, justificando
o encantamento provocado em Saint-Hilaire e em quantos têm sensibilidade. Justo realçar, pois, no
tombamento a ser aprovado, não só a área bem definida, mas o seu entorno natural, que deve ser objeto
de cuidados permanentes das autoridades da 8ª Diretoria Regional, da Sphan em geral, da administração
da Prefeitura e, sobretudo, de seu povo, o maior usuário do bem e naturalmente seu zelador mais fiel.
A proposta de inscrição no Livro de Tombo Histórico do Centro Histórico de Pirenópolis e seu entorno
é bem fundamentada e diz bem do alto nível da equipe da 8ª Diretoria Regional. Ela vem sendo objeto
de atenções desde 1985 aos dias de hoje, como se pode acompanhar pelo processo em diferentes
fases. Louve-se o trabalho lúcido, criterioso, de refinado sentido social e estético. Estudo, reflexão e
rigor aparecem nas sugestões do Polígono de Tombamento da Área Histórica e da delimitação das
áreas de entorno. Assim, nas páginas 44 a 47, do volume I, como decorrência de análises históricas
ou urbanísticas e arquitetônicas, constantes do mesmo volume (p. 5-48), em 1985, ou constantes do
volume IV (p. 54-55), decorrente do estudo evolutivo do núcleo – de 1727 a 1731, de 1732 a 1750,
e de 1750 a 1830 – em três momentos bem determinados (p. 29, 50), realizado em 1987. Como se lê
aí, “dentro do perímetro que demarca a cidade anterior a 1930, as transformações subsequentes foram
poucas e de pequena monta”.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Residência em Pirenópolis. Foto: Isabella Henrique, 2013.
Documento básico é o Relatório da Viagem, em dezembro de 1987, assinado por José Simões Pessoa
e Márcia Regina Romeiro Chuva, arquiteto e historiadora da Coordenadoria de Proteção da Sphan,
concluído pela Informação n. 028/1988, dos mesmos técnicos, datada de 29 de março de 1988 (p. 58-
73, do volume IV). A descrição do Perímetro da Cidade, a ser tombado como Conjunto Arquitetônico,
Urbanístico, Paisagístico e Histórico, é a referida no edital de notificação aos proprietários, do secretário
Osvaldo José de Campos Melo, divulgado oficialmente e pela imprensa (p. 92-94 e 97-98, do mesmo
volume IV). Ofício do secretário ao prefeito municipal e documento básico (p. 101 a 104).
Lidas e estudadas todas as peças, a matéria parece-nos suficientemente esclarecida e o processo n.
l.l8l-T-85, em seus quatro volumes, pode ser submetido a este Conselho para o indispensável exame
e aprovação. Designado relator – designação que muito me honra –, com proveito e prazer o estudei,
achando-o fundamentado com rigor. Sua aprovação – estou convencido – vai representar muito para a
cidade, para os seus dirigentes e, sobretudo, para o seu povo, que têm assim reconhecida oficialmente
a importância, ou o significado, de sua urbe, da qual justamente se orgulham.
O presente tombamento se tem alto sentido para Pirenópolis, tem ainda alto significado para o órgão
incumbido do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A Sphan cumpre mais uma vez o seu papel
de guardiã do mais notável, não como simples apego ao passado e ao presente – o que já não seria
pouco, diga-se de passagem –, mas sobretudo como garantia de futuro inovador e criativo, só possível
com o respeito às origens e às linhas naturais do desenvolvimento de qualquer objeto, cidade, nação,
homem ou sociedade.
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IV. Goiás
Se esta é uma reunião especial, não pode cingir-se ao aspecto técnico, que o relator espera ter feito,
destacando as partes essenciais do processo. Parece-lhe necessário dizer algo mais, por estar reunido este
Conselho em Pirenópolis, cujo tombamento é objeto do encontro.
O Brasil não é importante só por suas metrópoles, mas por seu todo, assim como a literatura, o
pensamento filosófico, uma arte não é feita apenas de seus nomes supremos, mas do conjunto em
que aquela arte ou pensamento se realiza, em sua totalidade: os nomes maiores resultam de uma
constelação de muitos outros, menores e até pequenos. Assim é nos sistemas filosóficos e em quaisquer
outros, no pensamento ou na criação artística. Da multiplicidade de autores emergem os gênios, que
não existiriam isolados. A literatura, por exemplo, não é só de expoentes, mas exige o conhecimento
da média, pedindo então sejam tidos em conta os grandes e os medianos, como a cordilheira não é só
de cimos, mas exige sejam considerados os vales e a depressões: só o todo permite explicar e realçar os
cumes. Também assim na História, não mais feita de vultos ou eventos singulares, mas do cotidiano na
teia anônima do dia a dia em suas ações ou nas formas de comportamento, nos processos de produção,
nas lutas entre os vários segmentos sociais, no fluxo silencioso e imperceptível das mudanças.
Pirenópolis é cidade do interior distante, surgida em condições especiais da trajetória do país,
desenvolvendo um tipo de vida e de urbanização. Estes lhe conferem importância e expressividade, de
modo a ser preservada não só pelo que é, mas como representativa de certa forma urbana, certo modo
de ser nacional.
Iludem-se quantos pensam só no Rio ou em São Paulo, ou, mais sofisticados e favorecidos, em
Londres, Paris. Pode haver plenitude de vida e mesmo sentido criativo na província, como pode haver
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
mentalidade pequenina e estreita no Rio ou em São Paulo. E como há! Em delicioso livro de crônicas
de 1937 – intitulado expressivamente Crônicas da Província do Brasil –, o grande poeta recifense
Manuel Bandeira dizia que o Brasil todo é ainda província, concluindo: “Que Deus o conserve assim
por muitos anos”. Gostaria de acrescentar: seja assim conservado para sempre.
Talvez eu esteja falando em causa própria, ilustrando o que os sociólogos chamam ideologia particular:
sou do interior, das Minas Gerais, de tanta afinidade com Goiás. Mais: orgulho-me de ter nascido no
interior desse interior, na cidade de Pirapora, às margens do rio São Francisco, como os pirenopolinos
nasceram ou nascem às margens do rio das Almas. Contra a massificação dos grandes núcleos – hoje
mais que metrópoles, mas verdadeiras megalópoles –, em que não se vive, mas apenas se corre, se
angustia, se neurotiza e até se enlouquece, em certa forma de viver vegetativo, as cidades de porte
médio ou mesmo pequenas podem apresentar um padrão mais condizente de humanidade. O destino
natural dos centros urbanos, contudo, é o crescimento, até atingir o dinamismo em que as pessoas se
perdem no barulho e na falta da privacidade ou da intimidade. Não há como fugir.
Que Pirenópolis cresça com harmonia, fiel às suas raízes, alerta ao novo sem o deslumbramento
ingênuo ou mesmo tolo das novidades, quase sempre impostas pela propaganda, pelo marketing do
consumismo, com vistas só ao lucro imediatista. Este é o interesse de certos empresários agarrados à
sua contabilidade, como é também o de políticos despreparados, ou até de pretensos estudiosos da
realidade – filósofos e sociólogos novidadeiros.
Esta é uma reunião singular na história do Conselho da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, repito. Dela acredito poder falar, levamos todos uma lembrança muito grata, pelo acolhimento
recebido, pela expressão de simpatia do povo, que é o melhor em Goiás e no Brasil. No mundo, acredito.
Mais em países novos como o Brasil, no qual o povo ou a sociedade é bem superior às elites ou aos
governos. Que este tombamento signifique uma fase positiva na trajetória da cidade é o nosso desejo,
esperança e certeza. Seja ponto de partida, abertura e incentivo, como prega e tenta fazer a Sphan, que não
tolhe, não imobiliza, não terá uma fórmula limitadora, mas somente uma palavra de alerta e estímulo.
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V. Maranhão
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V. Maranhão
Foi com muita honra que recebi do senhor presidente do Iphan, doutor Carlos Henrique Heck, por
intermédio da professora Anna Maria Serpa Barroso, a tarefa de examinar e opinar sobre este processo
de Rerratificação da Área de Tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico de Alcântara, cuja
trajetória venho acompanhando de perto, desde que me radiquei em São Luís do Maranhão, há 25 anos.
A antiga aldeia Tapuitapera foi um ponto estratégico na disputa pelo território maranhense. Em 1648,
os portugueses a elevaram à categoria de Vila de Santo Antônio de Alcântara, com a implantação do
Pelourinho, da Casa de Câmara e Cadeia e da Igreja Matriz. Durante o século XVIII, impulsionada
pela ascensão econômica do estado devido às atividades da Cia. do Grão-Pará e do Maranhão, a vila
transformou-se na sede da aristocracia rural agroexportadora de algodão, consolidando um importante
conjunto da arquitetura colonial luso-brasileira. Do apogeu à decadência experimentada no final do
século XIX, a vila se manteve preservada pelo seu isolamento.
Em 1948, quando a cidade completava trezentos anos, foi erigida em monumento nacional, por meio
do Decreto-Lei n. 26.077-A, de 22 de dezembro de 1948, atendendo a apelos da comunidade e
reconhecendo o inegável valor histórico e arquitetônico de seu conjunto.
A questão ora em análise, que trata da rerratificação da área de tombamento do Conjunto Arquitetônico
e Urbanístico de Alcântara, na verdade, é a conclusão de uma providência prevista no art. 2° do referido
decreto, que ressaltava a importância da demarcação da área tombada.
Ruínas da Igreja Matriz de São Matias e pelourinho, em Alcântara. Foto: José Paulo Lacerda, 2005.
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V. Maranhão
Decorridos 54 anos do tombamento e baseado na análise deste processo, observa-se que um conjunto
de esforços foi empreendido em diferentes momentos, no sentido de demarcar a área tombada. Embora
o processo tenha sido paralisado nos períodos de 1948 a 1980 e de 1990 a 2000, quando mais uma
vez foram acrescidos novos documentos, vamos resumir aqui algumas ações que foram fundamentais
ao seu lentíssimo andamento.
Os estudos e as pesquisas realizados em Alcântara, na década de 1960, pelos arquitetos Pedro e Dora
Alcântara, ambos da Sphan/RJ, foram fundamentais para a identificação do conjunto e resultaram
no relatório intitulado Recuperação de Alcântara – 19631 e na primeira proposta de delimitação do
perímetro de tombamento.
Na planta contida nesse relatório, observa-se que na década de 1970, em Alcântara, embora houvesse
um processo de arruinamento lento e gradual que contribuía para a deterioração do conjunto
arquitetônico, o tecido urbano da cidade histórica estava cristalizado pela letargia e decadência
econômica que assolavam o município.
No entanto, em 1980, grandes transformações urbanas começariam a ocorrer decorrentes do Decreto-
Lei n. 7820, que declarou de utilidade pública, para fins de desapropriação, uma área de terra equivalente
1. “Recuperação de Alcântara-1963”, de autoria de Pedro e Dora Alcântara, foi publicado na revista Acrópole, n°384, de abril de 1971.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
à metade do município, 52 mil hectares, para implantação pelo Ministério da Aeronáutica de uma base
espacial militar.
O Centro de Lançamento de Foguetes foi construído juntamente com instalações administrativas,
residenciais e militares, ocupando uma parte do litoral do município onde muitos povoados se
localizavam. Esse processo levou ao deslocamento compulsório2 de mais de duas mil famílias de
povoados localizados à beira-mar para agrovilas no interior do município, gerando desagregação social
e econômica.
Essa transformação modificou as formas de sobrevivência do município, incentivando o êxodo rural e
atraindo para a sua sede muitos trabalhadores de outras regiões, dando início ao processo de inchamento
da periferia do centro histórico.
Incapazes de enfrentar tamanho desafio, a municipalidade e o estado, preocupados com a gravidade do
processo de Alcântara, solicitaram apoio ao Ministério da Cultura, que criou em 1980 o GT-Alcântara,
grupo de trabalho para elaborar um diagnóstico da situação da cidade, face às externalidades.
Um dos objetivos do GT foi proceder a uma revisão do processo de tombamento e propor um plano
estratégico para o município. Nesse momento, diversos relatórios foram produzidos após as reuniões
técnicas pelos consultores e estudos específicos foram realizados, como o do arqueólogo Deusdedit
Carneiro Leite filho e da arquiteta Andréa Curi Zarattini, subsidiando a proposta de delimitação da
área tombada, elaborada pelo arquiteto Pedro Alcântara, que definia um perímetro para o tombamento.
Em 1990, a proposta de delimitação do arquiteto Pedro Alcântara foi analisada pela arqueóloga Maria
da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão e submetida e aprovada na 138ª reunião deste Conselho
Consultivo do Patrimônio, de acordo com ata da reunião de 9 de março de 1990.
Em seu parecer, a conselheira ressalta que a delimitação do sítio histórico considerou não somente os
bens de natureza urbana, arquitetônica e arqueológica, como ainda os de patrimônio natural e aqueles
bens de natureza imaterial e material que constituem o patrimônio da comunidade local (fls. 84 e 85
do processo).
Ainda em 1990, a arquiteta Dora Alcântara3 solicitou à Coordenadoria Geral de Documentação e
Proteção a averiguação da adequação da inscrição original do conjunto arquitetônico e urbanístico
de Alcântara nos Livros do Tombo, face aos valores paisagísticos e históricos melhor evidenciados na
explicitação da área tombada (9 de outubro de 1990).
O processo, parafraseando o conselheiro Campofiorito4 sofreu uma paralisação de dez anos,
devido a “vicissitudes administrativas e contingências políticas” que adiaram, até os dias de hoje, a
complementação exigida no decreto de tombamento, considerando-se que a delimitação proposta
havia sido aprovada por este Conselho, em 1990.
Entraves jurídicos são ainda apontados no parecer da Projur5, de 27 de agosto de 1999, onde o
Departamento Jurídico do Iphan acusa que o referido processo “não passou pelo crivo do setor e
2. FERNANDES, Carlos Aparecido. Deslocamento compulsório de trabalhadores rurais. In: Cadernos Práticas de Pesquisa. Universidade
Federal do Maranhão, São Luís. 1998.
3. Fls. 88 do processo, ofício de 28 de setembro de 1990.
4. Conselheiro Ítalo Campofiorito, parecer sobre a proposta de rerratificação da poligonal de tombamento do Sítio Burle Marx. 2000.
5. Memo. Projur-Iphan/RJ n. 195/1999, de Teresa Beatriz Miguel para Sista Souza dos Santos.
161
V. Maranhão
que não foi feita a averbação da delimitação da referida área”, ressaltando a necessidade de análise do
processo original, que, até aquele momento, não havia sido localizado, e nesse sentido, vários ofícios
são encaminhados aos acervos da Instituição para sua localização.
Além da paralisação e do impasse jurídico, observa-se no parecer da arquiteta Helena Mendes Santos6 a
dificuldade em encontrar uma base cartográfica em escala adequada à identificação gráfica da poligonal
proposta, que estava prejudicando novamente o andamento do processo.
Enquanto isso, em Alcântara, os problemas decorrentes da implantação e do funcionamento do
Centro de Lançamentos, especialmente com relação ao reassentamento das famílias residentes na área
desapropriada, geravam na sede o êxodo rural e o inchamento do centro histórico.
A ocupação das áreas de mangue, do Baixão do Lobato e do entorno da avenida de Anel do Contorno
deu início a um processo de favelização das encostas, alterando a estrutura da malha urbana, ocupando-
se desordenadamente áreas de interesse ambiental e arqueológico.
Diante disso, foi elaborado, em 1997, o Plano de Preservação da Cidade, por meio de parceria da
3a SR/Iphan com a Prefeitura Municipal de Alcântara, transformado em Lei Municipal n. 224/97,
de 10.10.1997, constituindo-se em um importante instrumento para o planejamento urbano e a
preservação do conjunto arquitetônico, no sentido de conter e regular as novas construções.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Diante do exposto, observa-se ao final que toda a documentação necessária foi reunida e que todas
as recomendações do Departamento Jurídico e Deprot/Iphan, quanto à redação e às providências
legais – como a publicação do edital de notificação aos proprietários, para efeito da rerratificação
do tombamento do conjunto – que se constituíam em obstáculos, foram sanadas, inclusive a base
cartográfica, em escala adequada, foi encontrada.
Relembrando, oportunamente, o decreto de tombamento de 1948, que finaliza considerando:
em Alcântara se conservam, no todo e na parte, valiosas edificações de caráter civil, religioso
e militar a atestarem a ancianidade de sua história e o alcance de sua contribuição para
o desenvolvimento da comunidade nacional, e que tais vestígios devam ser apreciados e
protegidos em seu conjunto, de modo a manter a característica feição da paisagem em
que se integram.
Pode-se constatar que, ao longo do processo, as questões relativas à delimitação da área tombada
foram aperfeiçoadas. Portanto, consideramos muito oportuno, decorridos 54 anos do tombamento
e após tantas idas e vindas, que finalmente seja feita a rerratificação do perímetro de tombamento,
estendendo a proteção federal não apenas ao conjunto urbano, mas aos seus limites geográficos,
igarapés e Ilha do Livramento, incluindo-se dessa forma o patrimônio natural, paisagístico, cultural,
urbano e arquitetônico da cidade.
Igreja do Carmo e ruínas do Convento das Carmelitas, Alcântara. Foto: José Paulo Lacerda, 2005.
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VI. Minas Gerais
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VI. Minas Gerais
PROCESSO: 1.342-T-94
RELATOR: ÍTALO CAMPOFIORITO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 7 DE DEZEMBRO DE 1994
Examinei o processo em pauta e quero demonstrar a maior admiração pelo trabalho conjunto dos
técnicos desse Instituto, com participação solidária da Prefeitura Municipal e da comunidade local
em todos os níveis em que foi ouvida e memorizada. A informação histórica, artística, cartográfica, as
citações selecionadas e, sobretudo, o convincente panorama do universo visual envolvido – tudo me
pareceu o melhor possível.
Trata-se de tombar o “centro histórico», eu diria melhor: o sítio histórico central da cidade de Cataguases,
na Zona da Mata, estado de Minas Gerais. A proteção seria alcançada pelo arrolamento de dezesseis
bens imóveis, sete dos quais acompanhados por bens móveis e integrados que lhes pertencem.
Ao contexto urbanístico que identifica as relações históricas e artísticas entre os referidos indivíduos
arquitetônicos – justamente considerado, nas palavras dos técnicos do Iphan, “área de interesse cultural”
– é que se chamaria de sítio ou “centro histórico” para um tombamento devidamente amenizado, a
fim de que a fiscalização administrativa do Iphan fique reduzida à proteção dos bens tombados e, além
disso, as demolições, reformas ou novas construções sejam subordinadas, “tão somente, às posturas
municipais”.
Basta ler o farto relatório técnico para se convencer do valor excepcional do conjunto para a história
da arte moderna brasileira. O valor geral é mais do que excepcional, é único. É arte moderna no
mais amplo sentido da expressão, abrangendo poesia, prosa e edição gráfica de literatura; arquitetura,
painéis, murais, revestimentos, mobiliário, quadros, esculturas e arquitetura de jardins; e mais o cinema
Painel de Anísio Medeiros (1954), no Educandário Dom Silvério, Cataguases. Foto: Arquivo Iphan, 2007.
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VI. Minas Gerais
do Ciclo de Cataguases. Vale dizer, manifestações da melhor arte moderna brasileira, acontecidas entre
as décadas de 1920 e 1940, na maior densidade verificada no país em qualquer época.
É impossível referir tudo aqui, mas sei que se trata de velhos conhecidos nossos, alguns em pleno
gênio, ou vigor criativo, como Oscar Niemeyer, Francisco Bolonha e Anísio Medeiros, por exemplo.
Os outros, que já partiram, deixaram-nos em tal força de modernidade que, culturalmente, ainda
vivem entre nós. Sobretudo neste Palácio da Cultura, onde há lembranças de todos eles: Portinari,
Bruno Giorgi, Roberto Burle Marx e Carlos Perry, Goeldi e Guignard, Jan Zach e Pedrosa, Marcier,
Joaquim Tenreiro e Carlos Werneck. Integram-se, assim, em Cataguases, à arquitetura de Niemeyer, de
Aldary Toledo ou dos irmãos Roberto, os murais, azulejos e mosaicos de Portinari, Anísio e Werneck,
os jardins de Roberto e Perry, as esculturas de Bruno, Zach e Pedrosa.
No caso particular da Casa Peixoto, que visitei há alguns anos, no âmbito dos presentes estudos, o
que se vê é, pelo menos no Brasil, inaudito. Duas gerações mantiveram a casa que Niemeyer projetou
em 1940, com o equipamento e a ambientação interior originais, intactos. Não só a estrutura e o
espaço – jovem, moderno e vernacular a um só tempo, com seus pilares brancos e telhas vãs –, mas os
revestimentos de madeira e os quadros nas paredes, como se tivessem sido pendurados ontem. Devem
ser um testemunho raríssimo, no mundo do gosto e do zeitgeist modernistas.
Mas, além da arquitetura e das obras de arte, houve a revista Verde e o Ciclo Cinematográfico de
Cataguases, ainda na década de 1920. Também no caso da revista Verde, nomes como Enrique de
Resende e Rosário Fusco ou de seus “padrinhos”, Mario e Oswald de Andrade, são velhos amigos.
“Verde, revista moderna”, disse Mario de Andrade. Com ela comunicaram-se Manuel Bandeira,
Cassiano Ricardo, Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire... Quanto ao Ciclo Cinematográfico de
Cataguases, é proeza ainda maior do que a da arquitetura ou das artes trazidas do Rio, ou mesmo do
que a Verde dos jovens literatos que se dispersaram, ainda em botão, nos anos trinta (“quando Verde
não saiu mais, quando os meninos se espalharam...” – diz Marques Rebelo, in: “Cataguases 1937”, p.
27 e 28 do vol. 2 deste processo).
O “surto” de produção cinematográfica que revelou Humberto Mauro, Pedro Comello e Eva Nil é, na
verdade, o primeiro capítulo, e não o menor, da história do cinema no Brasil.
Confirma-se, portanto, que há em Cataguases um “lugar da modernidade” que se deve proteger,
comemorar e reviver. Daí o tombamento solicitado, que eu proponho que se aprove hoje.
Sabemos todos que, ao tombar, preservamos valores, mas o que arrolamos nos livros são objetos
sólidos que aqueles valores tingem ou «cavalgam», como dizem os axiólogos. Por isso, proponho que
esse tombamento seja enunciado na ordem inversa da que vem no esplêndido relatório do arquiteto
Antônio Luiz Dias de Andrade (p. 48 e 56 do vol. 2).
Em vez de um “centro histórico” – como ele diz numa livre extensão semântica, e em cujo interior
se destacariam os imóveis de valor individual, e depois de ler suas profundas considerações sobre a
complexidade cultural e urbanística em causa –, eu prefiro pensar, primeiro, nos bens sólidos (imóveis,
móveis e integrados) tombados no Livro Histórico, para posterior exame de quais também merecem
ir ao Livro das Belas Artes.
E quanto ao contexto urbano, definido pelos técnicos do Iphan, concordo em preservá-lo, sim, e,
nos termos do relatório, como “Área de Interesse Cultural” e “Lugar da Modernidade”. Ou seja, não
como núcleo de um desenvolvimento urbano em diferentes épocas históricas (à imagem de Olinda,
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Casa-mural, Cataguases. Foto: Zonda Bez.
(Creative Commons - https://www.flickr.com/photos/zondabez/4870098343/in/photolist-8qpBoE-8qmvMR-8qmwyP-8qp3k5-8qp4XQ-8qkRDT-8qp2uU-8qkUPx-8qpBPS/)
São João del-Rei, Florença ou Roma), mas como trecho de escrita urbana, segmento, ou sítio central
do tecido urbano, aonde há sinais, traços, pegadas, possíveis releituras da modernidade que se quer
preservar. Creio que só a noção de um “ecomuseu” levaria, no âmbito do perímetro protegido, à
continuidade e revitalização permanente dessa memória. Em sua concepção mais avançada, o ecomuseu
será, justamente, a celebração cotidiana, intelectual e lúdica, comunitária e cidadã, do bairro cultural
central, do core modernista de Cataguases.
Proponho, então, de acordo com a manifestação do Departamento de Proteção às fls. 3 e 4 do vol. l
e nos termos do relatório do arquiteto Antônio Luiz Dias de Andrade, que transcrevo ipsis litteris, a
descrição do perímetro a ser protegido, bem como a lista de bens imóveis, móveis e integrados que
se seguem:
O perímetro que acreditamos abranger os setores principais da cidade compreende quatro
zonas distintas, espelhando o processo de formação e desenvolvimento urbano.
A primeira zona está delimitada pelo baixo terraço que se eleva junto ao Rio Pomba e
seu tributário Meia Pataca, definindo o sítio escolhido para a implantação do primitivo
núcleo, a zona antiga da cidade.
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VI. Minas Gerais
Chácara Granjaria
Arq. Oscar Niemeyer
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Paisagismo, Roberto Burle Marx
Escultura O pensador, Jan Zach
Painel de pastilhas, Paulo Werneck
Mobiliário original, Joaquim Tenreiro
Propriedade: Governo do Estado de Minas Gerais
3. RESIDÊNCIA A. O. GOMES
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VI. Minas Gerais
6. HOTEL CATAGUASES
7. CINE-TEATRO EDGARD
8. EDIFÍCIO “A NACIONAL”
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
11. PONTE METÁLICA SOBRE O RIO POMBA
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VII. Mato Grosso
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VII. Mato Grosso
PROCESSO: 1.180-T-35
RELATOR: GILBERTO VELHO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 19 DE AGOSTO DE 1988
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VII. Mato Grosso
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Igreja de N. Sra. do Rosário, Cuiabá. Foto: Diane dos Santos Oliveira.
Museu Histórico de Mato Grosso, Cuiabá. Foto: Diane dos Santos Oliveira.
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VIII. Mato Grosso do Sul
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VIII. Mato Grosso S ul
Corumbá – MS | 1992
PROCESSO: 1.182-T-85
RELATOR: AMÉRICO JACOBINO LACOMBE
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 2 DE OUTUBRO DE 1992
O processo sob exame refere-se à área constituída e consolidada no período de 1860 a 1940, que
corresponde à implantação e ao desenvolvimento e apogeu da cidade como centro mercantil de toda
a região sul de Mato Grosso, especialmente da região do Pantanal. Pode-se sintetizar esse período por
duas fases da economia local/regional: na primeira, ressalta-se o papel da cidade como polo mercantil-
fluvial, com o maior desenvolvimento e enriquecimento; na segunda, acentua-se o seu papel como
entreposto ferroviário.
Embora ocupem uma área reduzida em relação à área global da cidade, os seus trechos ribeirinhos,
onde se inclui o Porto de Corumbá, definem um plano específico da morfologia urbana, justamente
porque se amoldam à topografia mais acidentada dos barrancos e pequenos trechos de área baixa
mais seca.
O porto e o casario contíguo constituem exceção ao restante dessa ocupação, tratando-se de área de
ocupação e urbanização no período mercantil, caracterizado pelas construções de grandes galpões e lojas
dos atacadistas exportadores e importadores. A fase agora é de resistência e transformação do comércio
ligado ao sistema do rio Paraguai e Pantanal, reduzido por enquanto às atividades de transporte de
gado, de alguns gêneros de comercialização regional e, mais recentemente, dedicando boa parte das
inversões econômicas ao turismo crescente no Pantanal.
A proposta inicial de proteção referia-se exclusivamente ao casario do Porto de Corumbá, mas, com
o desenvolvimento das decisões, a proposta evoluiu para o conjunto de maior referência histórica e
Instituto Cultural Luiz de Albuquerque, com Catedral de N. Sra. da Candelária ao fundo, em Corumbá. Foto: Wagner Araújo, 2005.
177
VIII. Mato Grosso do Sul
EXTENSÃO SUGERIDA
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
entre as funções habitação e comércio. Tombar apenas o casario eminentemente
mercantil (na história), seria parcial e incorreria no mesmo equívoco de vários
tombamentos individuais que privilegiam o excepcional, perdendo elementos
importantes para a sua contextualização e seu referenciamento. Nesse caso existe
harmonia, equilíbrio; cada componente maior do conjunto depende dos demais.
Por essa razão, a área tombada deve incluir o porto, as ruas, o casario da rua
Manoel Cavassa e o casario da av. Mal. Rondon, em toda a extensão do antigo
porto, delimitando histórica e paisagisticamente o conjunto. O limite do rio é claro.
Os limites laterais estão referenciados. O limite interno à malha urbana deve passar
pelas divisas dos fundos dos lotes, por dentro da primeira quadra da “cidade alta”.
CONCLUSÃO
Voto pelo tombamento a que se refere este processo, conforme nele se encontra exposto e documentado.
E ao fazê-lo, lembro que os procedimentos concernentes a tombamento estão definidos na legislação
sobre a matéria, a qual se sustenta no § 1° do art. 216 da Constituição Federal: “O Poder Público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio
de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e de outras formas de acautelamento
e preservação”.
Dita legislação, com esse embasamento constitucional, legitima restrições, de interesse social, ao
exercício pleno do direito de propriedade. Mas a legitimidade desta não resulta desconhecida. Tanto
que, por exemplo, o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), instituído pela Lei n. 8.313,
de 23.12.1991, admite, entre as hipóteses de dedução do imposto de renda para fins culturais, aquela
em favor do próprio contribuinte que seja proprietário de imóveis tombados. E sempre todos os
procedimentos que digam respeito a tombamento estarão sujeitos ao exame do Poder Judiciário, que
velará pela exata incidência da lei, se isso for questionado por proprietário de imóvel tombado.
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IX. Pará
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IX. Pará
PROCESSO N. 1.026-T-80
No estudo do processo em pauta avultam, em minha opinião, dois temas distintos – o debate sobre a
constitucionalidade da Lei Estadual n. 4.855, de 3 de setembro de 1979, e o tombamento, por parte
da Sphan, dos prédios da av. Governador José Malcher.
É evidente que me faltam os requisitos de especialização para debater o primeiro tema, razão pela qual
deixo de analisar as duas primeiras conclusões (que, a um leigo, parecem perfeitamente lógicas) emanadas
do estudo efetuado pela Dra. Denise Pereira Freitas e referendado pela Dra. Sônia Rabello de Castro:
I. Que a Lei Estadual n. 4.855, de 3 de setembro de 1979, é inconstitucional, pois o
estado ou o município têm, também, competência para promover o tombamento dos bens
culturais que se encontrem em sua esfera jurídica.
II. Além disso, uma lei estadual não pode atribuir deveres e obrigações a órgãos federais,
tendo em vista o que preceitua o artigo 10 da Constituição Federal.
181
IX. Pará
Além de claudicar no vernáculo (emprego incorreto da crase, idem do futuro do pretérito – antigo
condicional – e falta do sujeito do verbo atribuir), a conclusão em apreço entra em terreno alheio,
quando se antecipa à decisão deste Conselho, ao estabelecer que o conjunto de prédios da av. Governador
Malcher carece de “valor histórico ou artístico que justifique o tombamento a nível federal”, repetindo
literalmente afirmação do diretor regional da 1ª DR/ Sphan, este sim, em posição de opinar.
É meu pensamento – contrariando a Dra. Freitas e o arquiteto Derenji – que a Sphan tem o dever
princípio de estar atenta a todos os aspectos relativos à preservação da memória nacional, sejam quais
forem os níveis em que eles se apresentarem. Porquanto, além da inexistência ou incorreção de leis
estaduais ou municipais, há sempre maior possibilidade de pressões e jogos de interesses, à proporção
que decresce o nível de tombamento. É evidente que o prefeito de determinado município está bem
mais afeto às influências locais do que determinado governador de estado ou que o secretário da
Cultura do MEC.
Destarte, quando houver impossibilidade de tombamento na escala adequada, parece-me lógico que
atue a instância superior, até mesmo quando o bem a ser tombado tiver apenas expressão municipal
ou estadual, o que não é, aliás, em meu pensamento, o caso do presente processo, conforme será
mostrado adiante.
Quanto ao tombamento propriamente dito, reputo perfeito o parecer da Dra. Dora Monteiro e Silva
de Alcântara (22 de junho de 1981), ao afirmar que o conjunto de edificações ora em estudo tem
“o mérito de confirmar a existência de uma linguagem oitocentista nacional, indicativa da unidade
política que se reafirmou com o Império e, a seguir, com a República”.
Também é corretíssimo quando a autora patenteia que
a presença de um casario com vocabulário neoclássico, acrescido de algumas particularidades
de gosto luso brasileiro, como o azulejamento de fachadas, do Rio Grande do Sul até
Manaus, deveria, melhor dizer, deve ser garantida por meio desses últimos conjuntos que
ainda restam, de vez que o sentido dos mesmos transcende o simples valor arquitetônico
que individualmente possuam.
Finalmente, é irretocável quando, concordando com o engenhiro Euler Arruda, opina pela inclusão,
no tombamento, dos “prédios remanescentes do mesmo período, que lhes ficam fronteiros ou vizinhos,
embora sem o mesmo valor, mas indispensáveis para a manutenção do entorno dos conjuntos”.
Fazendo minhas as razões atrás transcritas, julgo procedente o tombamento do conjunto da av.
Governador Malcher inicialmente proposto, isto é, o lado par (prédios 584, 592, 598, 606 e 614),
bem assim o entorno correspondente ao lado ímpar (prédios 563, 583, 622, 1.063, 1.069, 1.071,
1.079 e 1.083).
PROCESSO N. 1.027-T-80
Os estudos elaborados pelos órgãos técnicos da Sphan para o presente processo vinculam-se, como
é natural, ao de n. 1026-T-80, uma vez que objetivam ambos preservar conjuntos de construções
neoclássicas bastante semelhantes existentes em Belém do Pará.
Pelas razões já expostas anteriormente, julgo necessário o tombamento do conjunto da av. Nazaré
(prédios 427, 435, 441, 449, 457, 463 e 489).
182
Casario da Avenida Nazaré, Belém. Foto: Maria Dorotéa de Lima. Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Devo acrescentar, no entanto, que no interior do processo surge, sem qualquer explicação, o palacete
de n. 482 (Nazaré, esquina da travessa Benjamin Constant), relacionado como pertencente a Atina
Margarida F. de Castro.
Foi possível verificar, assim, que se trata de excelente exemplar de construção neoclássica,
possivelmente fronteira ao conjunto que vimos de opinar favoravelmente pelo tombamento.
Parece-me, em decorrência, indispensável incluí-lo no conjunto a ser tombado, ao mesmo tempo
em que solicito informações sobre o entorno ao referido conjunto, para análise da conveniência de
sua manutenção.
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IX. Pará
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Ver -o-Peso, Belém – PA | 1977
PROCESSO: 812-T-69
RELATOR: PAULO F. SANTOS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 5 DE SETEMBRO DE 1977
O pronunciamento da professora Lygia Martins Costa, chefe da Seção de Arte, é penetrante, conciso e,
como habitualmente, preciso nas suas conclusões. Endosso-o por inteiro, palavra por palavra, que faço
minhas no presente parecer. Tanto mais porquanto, embora se trate de um tombamento em Belém
do Pará, a professora fez, in loco, um minucioso exame, que, dada a complexidade da questão, confere
grande validade ao seu pronunciamento.
Ressalto a importância do que termina por sugerir:
A articulação do Iphan com a Codem (Companhia de Desenvolvimento de Área
Metropolitana de Belém do Pará) e a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo,
que acaba de criar um serviço de proteção do patrimônio estadual, a fim de, juntos,
acertarem a fiscalização da área a ser tombada e o restabelecimento possível da harmonia
ambiental do valioso conjunto.
Por meio dos projetos apresentados ao Iphan pela Codem, posteriormente ao pronunciamento da
professora Lygia, fica-se com ideia bastante clara da importância do remanejamento das áreas interessadas
no tombamento, assim como da remodelação arquitetônica de cada prédio existente no local.
Permita-me sugerir que o Iphan aproveite, como já vem fazendo, a colaboração arquitetônico-
urbanística do professor Augusto Silva Telles, que tem conferido às suas realizações uma categoria
técnica de grande relevo, dadas não só as credenciais do professor como as proposições urbanísticas que
185
IX. Pará
já tem feito e que resultam do conhecimento direto da questão, que, como representante do Iphan,
tem, tanto quanto professora Lígia, estudado no local.
E que não se deixe de incluir, nas mesas redondas que se fizerem, o professor Mario Barata, ilustre e
esclarecido conhecedor da questão, sobre o que tem ideias próprias, como se pode ver pela carta que
me escreveu – a qual, ainda que particular, só versa matéria de interesse público e merece ser incluída
no processo, dadas as credenciais do professor como grande autoridade nos problemas paraenses, sobre
os quais tem numerosos trabalhos de valor, alguns até premiados pelo governo local.
É o seguinte, o pronunciamento da professora Lygia Martins Costa:
Tombamento do Ver-o-Peso, solicitado pelo Conselho Estadual de Cultura do Pará, por
iniciativa do historiador Ernesto Cruz, em 1968, foi insistido recentemente ante a onda de
demolições que sofre a parte antiga de Belém.
A visita que fiz, no sentido de verificar a conveniência de seu tombamento, demonstrou a
necessidade de proteção desse conjunto do maior interesse, mas também de outros logradouros
que, embora apresentem elementos descaracterizados, mutilados ou de construção recente e
agressiva, se impõem ainda, quer como patrimônio histórico-artístico, quer como ambientação
imprescindível aos monumentos tombados.
Belém está estudando, através da Codem (Companhia de Desenvolvimento da Área
Metropolitana), um remanejamento da área antiga, sobre um projeto encomendado em boa
hora à Desenvolvimento e Sistemas S.A., que revela o propósito de manter e valorizar seu
patrimônio cultural. Em boa hora, porquanto trechos que não serão tombados, mas que merecem
sobreviver como “memória urbana”, estão arrolados entre os bens a serem protegidos, e os que
serão garantidos pelo tombamento federal terão assim sua preservação duplamente assegurada.
Conjunto de docas, cais, mercados, ruas com casario oitocentista, Ver-o-Peso é apontado no
referido projeto como “o sítio turístico mais importante de Belém”. Constitui de fato elemento
único na feição pitoresca e é, ao mesmo tempo, centro vital da cidade e síntese do caráter
arquitetônico e paisagístico que o século passado lhe imprimiu.
É enseada remanescente do aterro de um igarapé, agenciada nas três faces num complexo de
docas de grande movimento, mas é também trama urbana. Nela se incluem a avenida Portugal
que, tendo início no bem posto Mercado Bolonha, apresenta sucessão de sobrados de conservação
variada; a bela rua Marquês de Pombal, que lhe faz face com seu casario quase intacto; e a
praça do Relógio, de topo, com o alto e elegante relógio de ferro que lhe dá o nome, e vegetação
que se liga ao arvoredo da praça D. Pedro 119.
As fotografias tiradas da baixa-mar enfatizam a sensação negativa da lama que aflora e dos
detritos. No local, a impressão é outra pela beleza das proporções, pela luminosidade que
ressalta as fachadas da rua Marquês de Pombal, pelo perfil dos barcos adornados, e das torres
pontiagudas do mercado, enfim, pelo colorido das velas, da população que comercia e dos carros
que circulam. É claro que na maré-alta a impressão ainda é mais forte.
Recomenda-se, pois, o tombamento arquitetônico-paisagístico da área do Ver-o-Peso, com
menção individuada do Mercado Bolonha do Peixe, estrutura de ferro de fabricação inglesa
do final do século, que, pela presença das quatro torres angulares, poligonais, se diferencia dos
mercados de ferro encontráveis no país.
Por extensão, recomenda-se o tombamento de mais dois conjuntos:
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Mercado de Ferro, Belém. Foto: José Paulo Lacerda, 2005.
> da praça D. Pedro II, continuação natural do Ver-o-Peso, que congrega três grandes
monumentos tombados que exigem um mínimo de ambiência – o Palacete Azul, o Palácio
do Governo e a Casa do Barão de Guajará. Tivesse sido tombada a praça, não se teria
cometido o engano lamentável de nela se implantar o edifício da Assembleia Legislativa,
construção que fere não só o velho Palácio de Landi como as casas antigas vizinhas,
da rua Tomázia Perdigão e travessa de Vigia, que, por se integrarem visualmente ao
conjunto, devem constar do registro de tombamento;
> do Boulevard Castilhos de França, que se desenvolve do outro lado do Ver-o-Peso e
que é geralmente sua via de acesso. A despeito das afrontas, mantém-se bastante íntegro,
pois um quarteirão semidemolido tem respaldo em trecho da rua Gaspar Viana que lhe
fica atrás. Seus sobrados conjugados, e de porte, denunciam a riqueza do Pará do fim do
século e o caráter burguês-comercial dominante.
Há a assinalar, na área, a nobre fachada posterior do Convento das Mercês e, junto ao Ver-o-
Peso, o Mercado da Carne, anterior ao do Peixe, que deve receber também um tombamento
individuado. Externamente, é construção de alvenaria simplória, mas contém no pátio interno
importante estrutura de ferro, elegante e elaborada. Composta de quatro corpos iguais e
autônomos – onde se situam lojas –, separadas por duas vias que se cruzam, dispõe ainda de
pequeno pavilhão e precioso mirante circular, solto, com escada em espiral de muita graça.
Os ornatos, de desenho ferro, mostram-se em dois padrões que se repetem, e lambrequins servem
de remate, apresentando-se em rica franja no mirante. Nas lojas, definidas por grades altas
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IX. Pará
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Mercado de Peixe, Ver-o-Peso, Belém. Foto: José Paulo Lacerda, 2005.
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X. Paraíba
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X. Paraíba
PROCESSO: 1.489-T-02
RELATOR: PAULO ORMINDO DE AZEVEDO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 11 DE AGOSTO DE 2005
O presente parecer contém uma súmula do Processo 1.489-T-02, para conhecimento dos senhores
conselheiros e juízo de valor sobre o mérito do tombamento proposto.
OBJETO
Tombamento do núcleo central da cidade de Areia, no estado da Paraíba, localizada a 6°58’12” lat.
sul e 35°42’15” long. oeste, latitude que é corrigida pelos 618 m sobre o nível do mar, o que lhe
proporciona um clima civilizado, entre 15° e 29°C. A cidade está implantada sobre um espigão da
Serra da Borborema que lhe plasmou a forma urbana e proporciona o desfrute da visão da serrania
e vales úmidos circundantes. O Brejo d›Areia lhe envolve não só com fios d›água como com véus
de bruma, nas invernadas. Em volta da cidade preservam-se os testemunhos de seu período áureo –
engenhos como Bujari, Tapuio, Quati e Várzea, onde funciona o Museu da Rapadura, pertencente à
UFPB, além da Reserva Ecológica da Mata do Pau-Ferro.
A região foi explorada por holandeses e portugueses ainda em meados do século XVII, mas os primeiros
registros de ocupação permanente datam de 1725. Originalmente a cidade era um pouso, um oásis,
em meio ao caminho que ligava o litoral ao desertão ou, simplesmente, sertão dos currais do Velho
Chico. É no século XIX, quando a cana-de-açúcar substitui a pecuária, que a povoação se consolida
e se expande. Sucedem-se as culturas do algodão e café. Em 1818, a Vila Real do Brejo de Areia se
emancipa do município de Monte-Mor da Preguiça, hoje Mamanguape.
Vista aérea do conjunto histórico, urbanístico e paisagístico de Areia. Foto: Rafaela Mabel, 2002.
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X. Paraíba
A partir de 1824, Areia se transforma em um polo econômico, político e cultural, cuja área de influência
extravasava a Província da Paraíba, o que explica sua participação em movimentos insurgentes liderados
por Pernambuco, como a Confederação do Equador e, com maior força, a Revolução Praiana. Areia
foi berço dos pintores Pedro Américo e Aurélio de Figueiredo, do escritor e político José Américo de
Almeida, fundador do romance regional, e de intelectuais como Simeão Leal e Horácio de Almeida.
Em 2000, o município tinha 13.471 habitantes na zona urbana e metade, provavelmente, vivendo
no sítio proposto para tombamento. Ma,s entre 1991 e 2000, a taxa de crescimento do município foi
negativa, -0,82%. Sua economia atual está associada aos serviços, à produção e à transformação de
insumos agrícolas e pecuários, como a aguardente, a rapadura e a farinha de mandioca.
Distando apenas 125 km de João Pessoa, num desvio da BR-230, que conduz a Campina Grande,
e com monumentos de interesse na área rural, a cidade possui um grande potencial turístico. Mas,
devido aos caprichos da topografia, sua expansão é complicada e exige planejamento preventivo.
O sítio tombado, que corresponde aproximadamente à cidade do início do século XIX, tem uma
extensão de cerca de 900 m, no eixo leste/oeste, e 350 m, no norte/sul, e está inscrito dentro de uma
mancha de entorno que inclui a cidade e áreas rurais, medindo 3 km de nascente a poente e 1,8
km na transversal. A cidade se desenvolveu ao longo das cumeadas em forma de cordel, com ruas
corredores formadas por casas térreas, de meia-parede, corredor lateral e platibandas, casas populares
e uns raros sobrados, dentre os quais se destacam o de José Rufino, construído em 1818, que abriga
atualmente o Fórum e o Teatro Minerva (1857-59). O conjunto se destaca por sua homogeneidade
edilícia, rompida apenas por duas torres, a da Matriz de N. Sra. da Conceição e a do Ginásio Santa
Rita (1907-11). Vielas, largos e becos rompem o bloqueio das fachadas para revelar vistas insuspeitas
sobre os vales vizinhos.
Morfologicamente a cidade se estruturou ao longo da rua da Gameleira, com extensão de cerca de 400
m, que ligava dois nós de caminhos de tropeiros, o da Igreja de N. Sra. do Rosário dos Pretos (1865-94)
e o da praça João Pessoa, onde se situa a Matriz de N. Sra. da Conceição, anterior, mas reformada em
1902. Ali, a orografia forma um pequeno platô, o que permitiu a criação de uma segunda rua recuada.
Na primeira, ainda se concentram as funções centrais da cidade e dela se irradiam ruas secundárias,
seguindo as cumeadas dos contrafortes da serra.
JUSTIFICATIVA
Na Justificativa de Tombamento (p. 161-167), o arquiteto José Leme Galvão Jr., diretor do Protec/
Deprot, destaca:
...Assim é mister reconhecer em Areia os valores próprios de um sítio urbano que compôs
historicamente o povoamento do Nordeste brasileiro. Valores comuns à maioria das
cidades, mas que, pela permanência, destacam-se e representam a rede de sítios que desde
o século XVII vem constituindo o universo urbano nordestino...
O século XIX consolidou a urbe enquanto polo regional. Os testemunhos arquitetônicos
daquele século, principalmente nas igrejas e nos diversos sobrados, além do traçado
urbano, atestam seu enriquecimento e sua evolução constante, até o ciclo algodoeiro,
quando sua posição e geomorfologia não a favoreceram para o plantio e, principalmente,
para o novo sistema ferroviário implantado...
192
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Casario de Areia. Foto: Rafaela Mabel, 2002.
Assim sendo, entendemos que Areia merece ser reconhecida como parte destacada da alma
nacional, não só pela história que se pode contar, mas pela história da qual apresenta
testemunhos físicos...
O Entorno englobará uma área parcialmente urbana, complementada nas áreas rurais
lindeiras. Com isso está completo o caráter que se pretende para o tombamento, isto
é, histórico e urbanístico. Como tais características diluem-se no propósito amplo de
“proteger a área tombada”, resta prevalente o caráter paisagístico visto no contexto maior
do sítio, ficando claro que a Serra é divisa natural, além de símbolo maior da cidade...
(p. 161-4.)
PROCESSO
As primeiras medidas de preservação da cidade de Areia datam de 1979, com o seu tombamento pelo
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep), ratificado pelo Dec. N.
8.312, de 4.12.1979, do governador do estado. Já a iniciativa de requerer a proteção federal se deve
à sociedade civil, ou melhor, à Associação dos Amigos de Areia (Amar), que logo recebeu o apoio da
prefeitura e do governador do estado em cartas, de agosto de 2001, ao ministro da Cultura (p. 3-15).
Após uma avaliação prévia, é aberto processo, em 31.01.2002, que toma o número 1.489-T-02. A
instrução processual, nos termos da Portaria n. 11/1986, correu na 5a SR do Iphan, em Recife, com o
193
X. Paraíba
Aspecto do conjunto histórico, urbanístico e paisagístico de Areia. Foto: Rafaela Mabel, 2002.
apoio técnico da 4a SubR/Iphan, que elaborou o bem fundamentado e ilustrado Estudo de Tombamento
do Conjunto Histórico e Urbanístico da Cidade de Areia (PB, out.02, coordenado pelo seu titular, Sr.
Umbelino Peregrino de Albuquerque.)
Na ficha resumo do Deprot, o sítio recebe a denominação de Conjunto Histórico e Urbanístico da Cidade
de Areia, estado da Paraíba, na categoria Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico, tendo
como motivação de tombamento seu valor histórico e paisagístico. O sítio é definido e caracterizado
como: “Acervo correspondente ao ambiente cultural, à estrutura morfológica remanescente da antiga
Vila do Brejo de Areia, composta da natureza preexistente, das arquiteturas e dos processos urbanísticos
relatados no processo” (p. 160).
Enviado à Projur/Iphan, a Dra. Sista S. Santos assinala a necessidade de definir, precisamente, a área
de entorno. De retorno à 4a SubR/Iphan, a exígua faixa de 100 m que envolvia o sítio se transforma
em uma dilatada poligonal (p. 186). Mas, a então presidente do Iphan, Sra. Maria Elisa Costa, solicita
que “a definição do entorno e dos referidos critérios sejam reexaminados com o possível bom senso e
sem perder de vista a realidade da situação, no que é atendida” (p. 188 e 193). A Dra. Sista dá o parecer
final (p. 198-200), enquanto o presidente do Iphan comunica o tombamento provisório ao prefeito de
Areia (p. 208-9) e o publica no DOU, de 04.02.2005 (p. 208-10).
194
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
SUGESTÕES
Embora não caiba rever o processo, neste ponto, gostaria de fazer algumas sugestões para outros da
mesma natureza, no futuro:
Que se promova uma clara definição da aplicabilidade dos tombamentos municipal, estadual,
federal e eventualmente mundial (Unesco) e a coordenação dos órgãos envolvidos, em
conformidade com o previsto no art. 23 do Dec.-Lei n. 25/1937.
Que, para efetivação do tombamento federal, se solicite previamente dos governos municipal
e estadual interessados, como no caso, um compromisso formal de cooperação ativa na sua
preservação, à semelhança do que exige a Unesco dos países membros para declaração de um
sítio como Patrimônio Mundial.
Que se exija a vinculação entre a categoria de tombamento (Livro de Tombo) e a denominação
oficial do sítio.
Que se dê maior precisão à delimitação dos sítios e de seus entornos, incluindo o
georreferenciamento dos vértices dos polígonos (GPS), dimensões e área e que se publique,
em anexo ao ato de tombamento, mapa ilustrativo com escala gráfica legível e coordenadas
geográficas.
Que se inclua nos processos de tombamento um relatório preciso e conciso sobre o estado de
conservação do sítio – natural e/ou cultural – que sirva de marco referencial para avaliações
futuras da evolução do mesmo.
Que, como primeira medida de preservação do sítio tombado, se promova, com a participação
do governo local e das comunidades envolvidas, a elaboração de um Plano de Preservação e
Desenvolvimento Sustentado do sítio e seu entorno. Não é demais relembrar que o tombamento,
por si só, não promove a preservação.
PARECER
Pelas razões constantes do processo e acima resumidas, especialmente pelo exemplar arranjo de
implantação urbana na cumeada de um espigão da Serra da Borborema, representativo de uma das
formas de urbanismo colonizador nordestino, e por sua morfologia e arquitetura vernacular, recomendo
a inscrição do sítio em análise, com o nome de Conjunto Histórico, Urbanístico e Paisagístico da
Cidade de Areia, no Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
195
XI. Paraná
196
XI. Paraná
PROCESSO: 1.309-T-90
RELATOR: DALMO VIEIRA FILHO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 8 DE DEZEMBRO DE 19921
1. Nota dos organizadores: parecer aprovado em reunião de 8 de dezembro de 1992, mas problemas jurídicos forçaram nova análise
pelo Conselho, conforme Ata da 11ª reunião, realizada no Rio de Janeiro, em 28 de abril de 1997, com parecer do Conselheiro
Augusto Carlos da Silva Telles, quando foi novamente aprovado o tombamento em questão.
197
XI. Paraná
Ressalto que, no momento em que o Brasil se prepara para comemorar os seus quinhentos anos de
história, a proteção de áreas notáveis como a do Centro Histórico da Lapa não pode deixar de figurar
no conjunto de bens sob especial proteção nacional.
O sítio urbano da Lapa é depositário de bens individualmente de grande valor e cenário de
acontecimentos que dignificam o povo brasileiro.
O núcleo que se pretende tombar foi criado no contexto do Ciclo Tropeiro, que, por intermédio
do “Caminho das Tropas”, interligou os campos gaúchos às minas gerais e ao centro econômico do
Brasil colonial.
Nenhum dos antigos pousos que pontilharam o planalto guarda tão bem as marcas desse ciclo quanto
o Centro Histórico da Lapa.
Somando-se a esse fato, em si mais do que suficiente para a salvaguarda e o reconhecimento do bem
a que se refere o processo em análise, há ainda o riquíssimo episódio do “Cerco da Lapa”, de grande
significação na história da Revolução Federalista e na consolidação da República.
É importante destacar que o tombamento representa um triunfo na luta empreendida por brasileiros
ilustres, que há décadas se batem pela preservação e valorização do Centro Histórico.
198
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Devemos citar os nomes de Newton Carneiro, David Carneiro, Sérgio Leoni, Cyro Correia Lyra, José
La Pastina Filho, Rosina C. Parchen, Ruy Wachowicz, Oldemar Blasi, Sérgio Pires, Rener A. Dotti e
José Bigarella, entre outros.
Assim, a Lapa deve ser monumento do Brasil, por sua significação no conjunto de fenômenos que
explicam o desenho do território sul do país e por sua participação no memorável cerco de 1894, além
do rico acervo urbano-arquitetônico do qual é detentora.
Mais do que protegida, entendo que a Lapa deve ser tratada como símbolo vivo da esperança e da
crença no futuro do Brasil.
Florianópolis, 8 de fevereiro de 1992.
199
XI. Paraná
200
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Paranaguá – PR | 2009
PROCESSO: 1.097-T-83
RELATORA: ROSINA COELI ALICE PARCHEN
REUNIÃO DO CONSELHO: SÃO JOÃO DEL-REI, 3 DE DEZEMBRO DE 2009
O PROCESSO
Este processo é composto de quatro volumes, o primeiro deles com capa do Serviço Público Federal,
contendo os documentos iniciais e de tramitação, iniciado em 1983. Os outros três volumes são
encadernados com espiral e capas plásticas e contêm a instrução do processo propriamente dita, com
histórico, legislações, descrição arquitetônica e urbanística, fotos, mapas e plantas e a proposta de
proteção da área e da área envoltória, elaborados em 2007.
A INSTRUÇÃO DO PROCESSO
Em outubro de 1983, foi feita a primeira solicitação de tombamento, ao Iphan, pela Sociedade Brasileira
de Heráldica e Medalhística. A 9a DR/Sphan e os arquitetos Dora Alcântara e Luiz Antônio Dias de
Andrade pronunciaram-se quanto ao conjunto arquitetônico de Paranaguá, detentor de significativos
valores culturais.
Entre 1984 e 1988, o processo tramitou internamente. Em 1988, houve novo pedido da Prefeitura
Municipal, ao Iphan, para o tombamento do Centro Histórico de Paranaguá.
Em 1998, em caráter de urgência, o Deprot solicitou à 10a CR/PR instrução de processo de tombamento.
Em 2006, a Gerência de Proteção, do Depam, solicitou à 10a SR estudos minuciosos sobre o Centro
Histórico de Paranaguá, para a instrução do processo de tombamento, visando a sua conclusão. Em
Igreja de N. Sra. do Rosário, Paranaguá. Foto: Márcio Vianna, 2009.
201
XI. Paraná
As ações de proteção em Paranaguá tiveram início em 1938, com os primeiros tombamentos nacionais,
o do Antigo Colégio dos Jesuítas e o da Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, na Ilha do Mel.
Em 1967, receberam o reconhecimento do governo federal as igrejas da Ordem Terceira de São
Francisco das Chagas e da Irmandade de São Benedito.
O Iphan, por meio da 10a SE/PR, está investindo em projetos e obras de restauração de inúmeros
bens que integram a área tombada pelo estado, tais como a Casa Dacheux, o Mercado do Artesanato,
a antiga Agência de Rendas e a Estação Ferroviária. Também está realizando o Inventário Nacional de
Referências Culturais de Paranaguá.
A instituição estadual de Patrimônio Cultural do Paraná é a segunda mais antiga do país. O Conselho
Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico foi instituído por lei, em 1948, e a Lei Estadual de
Proteção ao Patrimônio Histórico Artístico e Natural do Paraná foi sancionada em 1953.
O estado do Paraná estabeleceu suas ações iniciais a partir de 1962, com a primeira inscrição de
tombamento – Igreja de São Francisco, seguida da Igreja de São Benedito, com seu acervo de bens
móveis. Em 1965, o estado promoveu a restauração da Igreja de São Benedito, sob a coordenação do
arquiteto Cyro Correia Lyra, então diretor do Patrimônio Cultural do Paraná.
202
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Aspecto do centro histórico de Paranaguá, com o Mercado de Artesanato à direita. Foto: Márcio Vianna, 2009.
Nesse mesmo ano, iniciou-se a elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Paranaguá,
sob a coordenação do arquiteto Cyro Correia Lyra. O Plano foi concluído em 1969, quando suas
principais propostas foram votadas pela Câmara Municipal e resultaram na Lei de Zoneamento,
com a delimitação do Centro Histórico, dotado de parâmetros urbanísticos para a sua proteção. A
implantação do Plano Diretor foi fundamental para a manutenção da escala e do traçado urbanos desse
Centro Histórico.
A importância de Paranaguá no contexto do Patrimônio Cultural do Paraná é evidente, pois lá se
encontra o segundo maior número de bens protegidos no estado, suplantado apenas por Curitiba.
São tombados pelo estado do Paraná, em Paranaguá: Casa Elfrida Lobo, casa onde moraram Brasílio
Itiberê e monsenhor Celso, Estação Ferroviária, Fonte Velha, Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres,
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Santíssimo Rosário, Ilha do Mel, Instituto de Educação Caetano
Munhoz da Rocha, jazigo da Família Corrêa, original da obra Memória Histórica da Cidade de Vieira
dos Santos, palacete Visconde de Nácar, o prédio da Antiga Alfândega.
A maior iniciativa estadual de proteção ao patrimônio cultural paranaguara se deu em 1990, com o
tombamento do Centro Histórico da cidade.
A partir desse tombamento, em uma ação conjunta do estado, do município e do governo federal, foi
estabelecido o Plano de Ação para a recuperação da área, que teve início em 1993 e continua até hoje.
203
XI. Paraná
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Estação de trem em Paranaguá. Foto: Márcio Vianna, 2009.
PARECER
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XII. Pernambuco
206
XII. Pernambuco
PROCESSO: 674-T-62
RELATOR: EDUARDO KNEESE DE MELLO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 18 DE NOVEMBRO DE 1985
Cumprindo, com muito prazer, ordens superiores, estive em Olinda para examinar o processo de
rerratificação de seu tombamento.
Em primeiro lugar quero registrar e agradecer as gentilezas e a colaboração que recebi do nosso
Escritório Técnico, sem as quais o meu objetivo seria dificilmente atingido. Destaco os nomes dos
arquitetos Vital Pessoa de Mello, Abel Acioly, Armando Tenório, Cremilda Martins de Albuquerque,
Ernesto Lucas Vilaça, Maria Helena Costa Pinto e do advogado Dr. Nelson Lacerda Soares.
A planta que estou anexando ao processo foi executada pelo Escritório Técnico de Olinda durante os
poucos dias que passei naquela cidade histórica.
Em 24 de janeiro de 1967, o arquiteto Augusto Silva Telles propôs a inscrição do conjunto urbano
e paisagístico de Olinda nos Livros do Tombo, criados pelo Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro
de 1937.
A área proposta por aquele ilustre arquiteto era a seguinte, aprovada por unanimidade:
partindo da orla marítima pelas ruas Santos Dumont e Joaquim Nabuco até encontrar o
prolongamento do rumo que passa pelas Igrejas de N.Sª do Monte e S. João Batista, por
esse rumo seguindo-se até a Igreja do Monte; daí seguindo rumo, passando pelo Farol até
a orla marítima – daí até o início da Rua Santos Dumont (ver mapa).
207
XII. Pernambuco
A proposta de Silva Telles foi apresentada a este Conselho pelo arquiteto Paulo Santos e aprovada, por
unanimidade, em 12 de março de 1968.
Olinda é Monumento Nacional pela Lei n. 6.863, de 26 de novembro de 1980. Foi fundada, em 1535,
por Duarte Coelho. Os índios chamavam a colina de Marim. Seu armamento é espontâneo. Teve início
no alto, onde Duarte Coelho construiu a primeira igreja (depois Matriz e Sé) e o castelo-fortificação de
defesa contra índios. Em 1540 fundou-se a Misericórdia. Em 1551, N. Sra. da Graça dos jesuítas. Em
1577, N. Sra. das Neves dos franciscanos. Em 1580, Carmelitas. Ermida dedicada a N. Sra. do Monte,
criada por Duarte Coelho e doada aos monges de S. Bento. Em 1592, Capela de S. João Batista.
Frase do inspetor Michel Parent, da Unesco, em 1967: “Olinda não é uma cidade: é um jardim recheado
de obras-primas de arte”.
O conselheiro Luiz Delgado propõe a este Conselho e é unanimemente aprovada a preservação da
área entre Olinda e Recife, na qual não fossem consentidas construções – de forma a permitir a visão
desembaraçada da paisagem e das velhas construções de Olinda, seus montes, suas casas, suas igrejas,
suas vegetações – e o visitante, ao aproximar-se da cidade-mater da civilização portuguesa em todo o
Nordeste brasileiro, percebesse desde então a importância histórica e artística da antiga capital.
O conselheiro José Antônio Gonsalves de Mello propõe incluir-se a planície de aproximação da cidade,
na área tombada.
Em longo parecer o arquiteto José Luiz Mota Menezes define a área a ser tombada (ver mapa).
208
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Em 2 de outubro de 1975, o arquiteto Silva Telles propõe o tombamento de acordo com o perímetro
proposto pelo arquiteto Mota Menezes, que se segue:
Começando no molhe de Olinda, segue os limites do Município de Olinda até a Avenida
Agamenon Magalhães, de onde prossegue novamente, segundo os limites do Município, até
atingir a Avenida Corrêa de Brito, seguindo por esta e pela Avenida Antônio da Costa até
o encontro com a Avenida Presidente Kennedy. Daí inflete-se para leste ao longo da mesma,
até a Avenida Agamenon Magalhães, pela qual prossegue até encontrar a PE-I e continua
pela Avenida Joaquim Nabuco até encontrar a Estrada Bultrins, pela qual inflete até a
Estrada Velha do Rio Doce, de onde segue até o litoral pela Rua Alberto Lundgren; ao longo
da orla marítima, retorna até atingir o molhe de Olinda, por onde se iniciou.
Os jornais comunicam com destaque: “Olinda aumenta em cinco vezes seu patrimônio”.
O trabalho efetuado pelo Escritório Técnico de Olinda é magnífico e demonstra a preocupação de seus
autores em preservar Olinda, “o jardim recheado de obras-primas de arte”. Preocupam-se ainda e com
razão, os seus autores, em preservar também o visual daquele monumento, regulamentando as áreas de
aproximação de quem vem de Recife, impedindo construções que possam prejudicá-lo.
Além de impedir as obras que possam dificultar a vista do molhe de Olinda, nessa área de ligação
das duas cidades haverá um parque projetado pelo nosso grande paisagista Roberto Burle Marx, para
valorizar ainda mais aquele visual.
Obviamente, para dar uma opinião pessoal minuciosa, seria necessário, para mim, passar um longo
tempo em Olinda examinando cada pequeno detalhe do projeto ora proposto.
Entretanto, com base em toda a vasta documentação que examinei e em todas as informações que
recebi do Escritório Técnico de Olinda, não tenho dúvida em recomendar a este Conselho a aprovação
da presente proposta de rerratificação do polígono de tombamento do núcleo histórico de Olinda e da
definição do seu entorno e das normas de edificação para as duas áreas.
209
XII. Pernambuco
210
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Antigo Bairro do Recife – PE | 1998
PROCESSO: 1.168-T-85
RELATOR: JOAQUIM FALCÃO
REUNIÃO DO CONSELHO: PETRÓPOLIS, 14 DE MARÇO DE 1998
211
XII. Pernambuco
Incluo, em anexo a este parecer, um estudo histórico realizado por Leonardo Dantas, o maior
historiador do patrimônio pernambucano, bem como dois depoimentos, de Barbosa Lima Sobrinho e
Josué Montello, ambos também favoráveis ao tombamento. Também dele faz parte um vídeo realizado
pela Fundação Roberto Marinho. Contribuíram decisivamente para a elaboração deste parecer Silvia
Finguerut e Maria Eduarda Marques. A ambas agradeço.
O PARECER
A Constituição Federal estabelece que a proteção ao patrimônio cultural é dever do Estado, nos seus
três níveis: federal, estadual e municipal. Trata-se, pois, de competência concorrente. O desafio consiste
em delimitar o que é pertinente para cada nível da federação. O Bairro do Recife já foi considerado pela
legislação municipal como patrimônio cultural. A questão que agora se coloca é se estamos diante de
um bem cultural que, além de ser culturalmente relevante para o município, o é também para o Brasil.
Ou seja, além de patrimônio municipal, deve ser considerado patrimônio federal também?
O que está em discussão é a relevância nacional do Bairro do Recife. Quais seriam então os critérios
que nos informam se um bem cultural tem relevância, além de local, também nacional?
Em nosso entender, no caso, são três as relevâncias de caráter nacional do Bairro do Recife: a relevância
paisagística, a relevância arquitetônica e urbanística e a relevância histórica. Vejamos uma a uma.
RELEVÂNCIA PAISAGÍSTICA
Gostaria de citar apenas três argumentos em favor da relevância paisagística do Bairro. Primeiro, a
beleza natural do porto, ou da barra do Recife, onde se situa o Bairro, não é recente. É o de sempre. É
o argumento da permanência. Não se desassocia o Recife da formação territorial do Brasil. Em 1601,
Bento Teixeira dizia que a Barra do Arrecife era um porto natural «quieto e seguro». Na sua Prosopopeia
já assim a descrevia: “Uma cinta de pedra inculta e viva / ao longo da soberba e larga costa”.
Essa beleza natural é tão relevante e marcante que forja o que é incomum. O próprio nome da cidade
que o cerca: Recife, de arrecifes. E aqui se desdobra o segundo argumento, da especificidade. A maioria
das cidades brasileiras de então são nomeadas a partir de valores religiosos, São Luiz, São Paulo, São
Salvador, São Vicente, São Sebastião. Uma toponímia essencialmente religiosa e católica. Mas, no caso
do Recife, a natureza se impôs.
Finalmente, considere-se também o que nos foi agudamente observado por Sérgio Buarque de Holanda,
em Raízes do Brasil:
Recife é antiacrópole, porque não foi construída como era costume na época, nos topos de
colinas, como por exemplo Olinda, São Salvador e Rio de Janeiro Era o sentido medieval
de defesa. Recife foi construída na planície. Foi para um terreno arenoso que não permite
o florescimento da Mata Atlântica. Das águas do Capibaribe que banham a restinga do
oeste, surge um manguezal muito verde e rico em sua fauna e flora. Recife aí floresceu.
Os rios e os manguezais e a proximidade do mar formam o Recife com seus canais, diques
e pontes. É o argumento da surpreendente adequação entre a natureza e a cidade, entre
o dado e o construído. No fundo, inventa-se dos mangues, uma cidade, com os quais
convive e molda.
João Cabral de Melo Neto assim a descreve:
212
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Praça do Marco Zero, no antigo Bairro do Recife. Foto: Anderson Schneider, 2005.
A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.
No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.
Recife é uma cidade simultânea. O Bairro do Recife também. Explico melhor. Algumas cidades
brasileiras são datadas, como por exemplo Tiradentes, Ouro Preto e Brasília. Aquelas se mantiveram
fiel à arquitetura colonial brasileira, esta, à arquitetura modernista. Recife, não. Nela convivem vários
213
XII. Pernambuco
estilos, épocas arquitetônicas e urbanísticas se entrelaçam como camadas geológicas, mais do que
superpostas, interpenetradas, concomitantes. Sua relevância arquitetônica e urbanística nacional reside
exatamente nessa simultaneidade.
No caso do Bairro do Recife, convivem pelo menos duas épocas representativas de estilos, mais do
que locais, nacionais. Ambos tropicalmente adaptados da Europa: o colonial português, que se fez
brasileiro, e o reformismo brasileiro, que se pretendeu francês. Recife foi quase Paris. Sem falar que
dos tempos holandeses, enquanto Mauritsstadt que foi, o bairro guarda ainda a influência em vários
de seus sobrados.
A arquitetura colonial ainda está presente em vários sobrados, sobretudo nas ruas da Guia e do
Observatório. Tem na Igreja Madre de Deus um de seus monumentos mais importantes, já tombado
inclusive pelo Iphan. Os atuais armazéns do Cais do Apolo, com seus telhados coloniais, ainda
desenham a visão aérea do Bairro.
Mas é a reforma modernizadora de 1910 a principal marca do atual Bairro do Recife. Feita ao gosto
do Barão de Haussmann, e que deu origem ao então Novo Recife, teve como eixo estruturado o porto,
para onde convergem os dois grandes boulevards, Marquês de Olinda e Rio Branco. Este novo traçado
urbanístico, tipo ferro de engomar, que resultou na demolição de grande parte da cidade colonial, é
enriquecido por grandes prédios em estilo eclético, que ainda podem e devem ser preservados.
O que não é mais possível, por exemplo, no Rio de Janeiro. A avenida Rio Branco, o maior e mais rico
exemplo de influência haussmanniana no Brasil, foi inaugurada em 1906, tendo todos os seus prédios
construídos nessa época. Encontra-se hoje, neste final de século, toda destruída. E reconstruída como
arquitetura moderna. Exceção feita a uns sete ou oito prédios, entre eles o Teatro Municipal, o Clube
da Marinha, a Casa da Moeda, a Biblioteca Nacional e a sede da regional do Iphan, testemunhas
solitárias. Preservar o Bairro do Recife, mais do que preservar uma arquitetura local, é preservar um
momento histórico da arquitetura brasileira não mais possível em outras cidades.
Essa preservação, digamos, espontânea da arquitetura eclética do Recife, deve-se também a uma
simultaneidade. O Recife não somente foi de dia importante centro financeiro regional, mas também
foi de noite uma efervescência de bares, pensões e boates, onde se misturavam estudantes, políticos,
intelectuais, empresários e prostitutas. O Bairro do Recife foi por muitos anos zona da prostituição, o
que, como em São Luiz, muito colaborou para a preservação de nosso patrimônio. Carlos Pena Filho
ressaltou em sua poesia essa simultaneidade:
Aí é que é o Recife
mais propriamente chamado
com seu pecado diurno
e seu noturno pecado
mas tudo muito tranquilo
sereno e equilibrado.
214
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
sobrevivem ao fluir do tempo, têm uma dignidade própria, que se converte em obras de arte. Recife
guarda em si esse privilégio”. Esse conjunto é singular no Brasil.
A RELEVÂNCIA HISTÓRICA
Alguns fatos históricos evidenciam a importância nacional do Bairro. O primeiro é que, durante
o século XVII, Recife foi o porto mais importante das Américas, por onde era exportado o açúcar
dos mais de cem engenhos pernambucanos. Não se pode separar o Brasil Colônia da produção, da
exportação do açúcar. E nessa civilização, o porto e incipiente bairro que o cerca foram fundamentais.
Gilberto Freyre gostava de brincar dizendo que quem fundou Nova York foram os recifenses. Quase
verdade. O fato é que na rua do Bom Jesus, antiga rua dos Judeus, foi fundada pelo rabino Isaac
Aboab da Fonseca, a primeira sinagoga das Américas, Zur Israel, graças à liberdade de culto possível no
período holandês. Quando os judeus deixam o Recife, vão para a América, para a província de Nova
York, lá encontram uma colônia em formação e fundam então a primeira sinagoga nova-iorquina.
A simultaneidade arquitetônica não é, repito, exclusiva. No Recife prevaleceu também, e até hoje, a
simultaneidade religiosa, sincretismos, diríamos. Eis aí outro fato histórico que em muito ultrapassa o
meramente local.
Finalmente, nestes últimos séculos abrigou o Bairro do Recife as principais associações de empresários
da região nordestina, a saber, entre outros: a Associação dos Plantadores de Cana, novo nome dos
senhores de engenho, a Cooperativa dos Usineiros, a Associação Comercial, que aí permanece com seu
imponente prédio de estilo eclético.
Antes de terminar, gostaria de acrescentar duas citações de dois ilustres pernambucanos que considero
pertinentes. Diz Barbosa Lima Sobrinho:
Não sou contra o progresso, mas o gestor municipal deve preocupar-se em manter as
referências básicas de uma cidade. Quando tudo vem abaixo com as demolições, perde-se
um pouco da história, do patrimônio e até o habitante perde sua identidade.
VOTO
Pelo exposto, voto pelo tombamento do Bairro do Recife, nos termos da solicitação da Prefeitura
do Recife, devendo o tombamento ser inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico, bem como no Livro de Tombo de Belas Artes, pelos valores arquitetônico e urbanístico.
A citação derradeira é de Carlos Pena Filho, quando diz sobre o Recife: “Hoje, serena flutua, metade
roubada ao mar, metade à imaginação, pois é do sonho dos homens que uma cidade se inventa”.
215
XII. Pernambuco
216
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Áreas de Entorno de Monumentos Tombados
Recife – PE | 1984
PROCESSO: 08/SPHAN-84
RELATOR: ROBERTO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE
REUNIÃO DO CONSELHO: OLINDA, 30 DE AGOSTO DE 1984
217
de Santo Antônio; a Basílica e Convento de Nossa
Senhora do Carmo; a Concatedral de São Pedro dos
Clérigos e o conjunto arquitetônico do Pátio de São
Pedro; o Teatro Santa Isabel; o Mercado de São José
e a Fortaleza das Cinco Pontas.
Encontra-se em exame, para tombamento, nessa
área, o Liceu de Artes e Ofícios. Essa área central do
Recife abriga um dos mais importantes conjuntos
de arte religiosa barroca do Brasil, além de manter,
em alguns sítios, a feição urbana própria do Recife
dos séculos XVIII e XIX, com seus sobrados magros,
seu casario alongado, suas estreitas e sinuosas ruas.
É de lamentar-se que, em nome do progresso,
algumas cirurgias dilacerantes do tecido urbano
tradicional do Recife tenham sido praticadas em
passado recente – a exemplo do prolongamento da
avenida Dantas Barreto, que, adentrando-se pelo
bairro de São José, sacrificou a Igreja dos Martírios
e comprometeu, irremediavelmente, a fisionomia
urbana e a harmonia e o equilíbrio paisagístico
das cercanias do Pátio de São Pedro, da Basílica
de Nossa Senhora do Carmo e da Igreja de Santa
Teresa da Ordem Terceira do Carmo.
A Área 2 envolve dois monumentos tombados: o
Palácio da Soledade, grave e austera construção do
século XVIII, que foi, até 1917, sede do arcebispado
de Olinda e do Recife, e a Casa Oliveira Lima,
monumento assobradado onde, em 1867, nasceu o
eminente historiador e diplomata brasileiro.
A Área 3 envolve a sede da Academia de Letras,
Igreja de N. Sra. do Terço, Recife. Foto: Nelson Kon, 2012.
prédio de estilo francês que pertenceu aos barões
Rodrigues Mendes, restaurado, em inícios dos anos
1970, pelo então presidente da Academia, Marcos Vinícios Vilaça, no dizer de Gilberto Freyre, àquela
época – como, de resto, ainda hoje – tão jovem e tão presidente, e a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição (Capela da Jaqueira), pequena obra-prima da arte religiosa no Recife.
A Área 4 envolve o Sobrado Grande da Madalena, antiga, azulejada residência do conselheiro João
Alfredo, que abriga o Museu da Abolição e a sede da Sphan, em Pernambuco.
A Área 5 contém a Faculdade de Direito do Recife, o harmonioso prédio, de inspiração clássico-
renascentista, que abriga, desde 1911, os cursos jurídicos aqui fundados em 1827, neste mesmo
Mosteiro, desta mesma Olinda.
A Área 6 envolve a Igreja de Nossa Senhora da Assunção das Fronteiras, que se originou da capela
votiva que Henrique Dias ergueu na sua Fronteira da Estância, que lhe fora confiada em 1645.
218
A Área 7 contém o Sítio Histórico e Paisagístico do Arraial Novo do Bom Jesus, de tanta importância
nos duros anos da Restauração.
A Área 8, finalmente, envolve o Conjunto Paisagístico do Sítio da Trindade – no local onde, entre 1630
e 1635, existiu o Forte Real do Bom Jesus, o Arraial Velho do Bom Jesus, hoje aprazível parque, de
mangueiras e jaqueiras centenárias.
Ao todo, as oito áreas cuja delimitação se propõe, contém 23 monumentos tombados. Constam do
processo em exame mapa da cidade do Recife com indicação da localização, no espaço urbano, das oito
áreas, bem como pranchas com plantas detalhadas de cada uma das áreas estudadas, com a localização
dos monumentos tombados, o traçado da poligonal de entorno e as recomendações e restrições de
natureza urbanística devidamente indicadas. A descrição pormenorizada das poligonais de entorno
propostas consta também do processo para as sete primeiras áreas e está sendo ultimada a descrição da
relativa ao Sítio da Trindade.
Os estudos procedidos permitiram, ainda, a delimi-
tação precisa dos limites de tombamento de quatro
monumentos: a Igreja de São Pedro dos Clérigos e
o Conjunto Arquitetônico do Pátio de São Pedro, a
Capela da Jaqueira, o Arraial Novo do Bom Jesus e
o Sítio da Trindade.
A delimitação de três outras áreas de entorno não
foi possível em decorrência de novos monumentos
cujo tombamento o estudo recomenda e de ou-
tros aspectos técnico-urbanísticos relevantes. Essas
áreas são o Bairro do Recife, a área que envolve o
Ginásio Pernambucano e conjunto arquitetônico
da rua da Aurora – que margeia o rio Capibaribe
– e a área do bairro da Boa Vista, que já abriga três
monumentos tombados.
A conclusão desses estudos ê considerada importante
para a melhor compreensão do conjunto urbano da
cidade do Recife e para ensejar medidas eficazes de
proteção de seu patrimônio cultural e paisagístico.
Pelo que se pode depreender do que se expôs
sobre o processo ora em exame, trata-se de matéria
vária e complexa e de grande importância para a
preservação do ambiente da paisagem urbana de
múltiplas e vastas áreas da cidade do Recife.
Não se trata, a rigor, de matéria nova para este
Conselho. Em reunião do ano passado, o Conselho
aprovou, por unanimidade, a delimitação da
área do Morro da Conceição, na cidade do
Rio de Janeiro, envolvendo nove monumentos Igreja de Santa Tereza, Ordem Terceira do Carmo, Recife.
tombados, delimitação estabelecida para fins Foto: Nelson Kon, 2012.
219
XII. Pernambuco
semelhantes das que ora se examina, isto é, com vistas à defesa da vizinhança, da ambiência e
da visibilidade de bens integrantes do patrimônio histórico e artístico nacional – matéria que
também tive a satisfação de relatar.
Ao emitir meu parecer sobre este processo n. 08/Sphan-84, quero destacar o seguinte:
Primeiro, quanto ao mérito da proposta de delimitacão das oito áreas de entorno de monumentos
tombados na cidade do Recife, não tenho dúvidas quanto a sua conveniência e oportunidade.
Já disse, noutra oportunidade, neste Conselho, que considero que as cidades brasileiras vêm
passando, nos últimos anos, por um preocupante processo de criação destrutiva.
Tudo se passa como se, compulsivamente, os centros urbanos de nossas cidades devam, a cada
geração, ser reconstruídos no mesmo lugar, verticalizando-se, densificando-se, no mesmo núcleo
central, a urbanização. Em muitos casos, a antiga estrutura urbana unipolar não mais se justifica,
econômica ou funcionalmente. Ao contrário: em vez de se favorecer a congestão urbana, dever-
se-ia estimular a descompressão urbana, buscando-se estruturar as cidades de forma multipolar,
desconcentrando-as, racionalizando, evitando-se a excessiva força centrípeta, sobre os fluxos
intraurbanos, do gigantismo de núcleos centrais hipertrofiados.
Essa forma policêntrica de organizar as cidades – que, diga-se, a bem da verdade, já é perseguida
aqui, no planejamento da Região Metropolitana do Recife – é compatível com a preservação da
feição urbana dos antigos centros urbanos, de valor cultural e paisagístico inestimável, e concilia a
inovação e a mudança do perfil urbano, ditados pelo crescimento das cidades, com a conservação
de seus centros históricos tradicionais. E é a solução urbanística mais funcional, mais econômica,
mais compatível com a dimensão metropolitana, com a grandeza dos problemas gerados pelas
modernas concentrações urbano-industriais.
Segundo, os aspectos de ordem legal. Este Conselho já reconheceu anteriormente que, tanto o
artigo 29, §29, quanto o artigo 18 do Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, dão base
legal ao ato de delimitação de perímetros em torno de monumentos tombados. Mas é preciso
relembrar aqui, mais uma vez, que a competência para legislar sobre o uso do solo urbano
é municipal e que, para assegurar a implementação, nas áreas delimitadas, das restrições de
natureza urbanística indicadas, é imprescindível o concurso do município.
No caso em exame, preexiste legislação municipal citada no processo que estabelece, para cada
área que se propõe delimitar, detalhado zoneamento do uso do solo, com o estabelecimento,
na vizinhança imediata dos bens tombados, de zonas de preservação rigorosa (ZPA), onde é
assegurada a manutenção das características essenciais do conjunto urbano quanto à ocupação,
ao gabarito e à forma, e as zonas de preservação ambiental (ZPA), que determinam, para outras
áreas incluídas nas poligonais de entornos propostas, restrições à urbanização (gabaritos, tipos de
cobertura e outras recomendações).
No entanto, em seis das oito áreas delimitadas no estudo em exame, há ampliações – em um caso,
há redução das áreas propostas como de entorno aos monumentos tombados, sendo necessários
entendimentos com a Prefeitura da Cidade do Recife, com vistas ao estabelecimento, mediante
ato próprio, dos condicionamentos julgados necessários ao uso do solo.
Terceiro, o estudo conjunto do Sphan-URB precisa a delimitação mais rigorosa de quatro
monumentos anteriormente tombados, que considero seja necessário formalizar, encaminha
220
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
proposta de novos tombamentos em duas áreas da Cidade do Recife e relaciona três áreas para
delimitação do entorno de monumentos tombados ou propostas para tombamento, que julgo
devam merecer a atenção deste Conselho.
Diante do exposto, meu voto é no sentido de:
1. que este Conselho aprove, para as oito áreas de entorno de monumentos tombados na
Cidade do Recife, a delimitação, estabelecida pelas poligonais de entorno descritas e mapeadas,
proposta no processo n. 08/Sphan-84, em exame, para efeito de resguardar a vizinhança, a
ambiência e a visibilidade dos bens tombados nelas contidas, adotadas as restrições quanto ao
uso de solo recomendadas;
2. que, nas parcelas de seis das áreas delimitadas que excedem as áreas de proteção estabelecidas
legalmente pelo município do Recife, sejam mantidos entendimentos entre a Sphan e a Prefeitura
da Cidade do Recife no sentido de especificar as restrições ao uso do solo necessárias e de adotar
as providências para estabelecê-las, legalmente;
3. que, para efeito de complementar e de melhor instruir o processo em exame, seja a ele anexada
a legislação municipal citada e relativa ao zoneamento das áreas delimitadas;
4. que a descrição proposta para a poligonal de entorno da Área 8 – Sítio da Trindade – passe a
integrar o presente Processo;
5. que se recomendem as medidas necessárias a ratificar a delimitação precisa proposta para os
seguintes monumentos já tombados: Igreja de São Pedro dos Clérigos e Pátio de São Pedro;
Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Capela da Jaqueira); Sítio Histórico e Paisagístico do
Arraial Novo do Bom Jesus e Conjunto Paisagístico do Sítio da Trindade, fazendo-se constar, dos
respectivos processos de tombamento, os limites precisados;
6. que sejam procedidos ou concluídos os estudos necessários pela Sphan, para o encaminhamento
a este Conselho, das propostas de tombamento dos seguintes conjuntos de bens: Conjunto
Arquitetônico do Bairro do Recife (imediações do Cais do Apoio) e Teatro Apoio, na rua do
mesmo nome, no Bairro do Recife e Conjunto Arquitetônico da Boa Vista (sobrados azulejados
da rua Barão de São Borja);
7. que, concomitante e consistentemente com o que se propõe no item anterior, sejam
concluídos os estudos para delimitação das três áreas de entorno de monumentos tombados
ou a tombar – Bairro do Recife, Área do Ginásio Pernambucano e Conjunto Arquitetônico
da Rua da Aurora e Área do Bairro da Boa Vista –, adotadas as providências e mantidos os
entendimentos necessários com a Prefeitura da Cidade do Recife e com o Governo do Estado
de Pernambuco;
8. que, se aprovado este voto por este Conselho, no ato do Secretário da Cultura a ser expedido
sobre a delimitação das oito áreas de entorno a que se refere o item l deste voto, se definam
os mecanismos de articulação entre a Sphan e a Prefeitura da Cidade do Recife, com vistas à
execução das normas e regulamentos do uso do solo estabelecidos.
221
XII. Pernambuco
222
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
I greja de São Pedro dos Clérigos e
Pátio de São Pedro , Recife – PE | 1984
A matéria sujeita a exame é a “Proposta de Extensão de Tombamento da Igreja de São Pedro dos
Clérigos, com a inclusão do Conjunto Arquitetônico do Pátio de São Pedro, como lanços de casas que
o envolvem e os que ladeiam a igreja, até as de nºs 63 e 146. PE”.
Portal da Igreja de São Pedro dos Clérigos, Recife. Foto: Nelson Kon, 2012.
223
XII. Pernambuco
Igreja de São Pedro dos Clérigos e conjunto arquitetônico do Pátio de São Pedro, Recife. Foto: Nelson Kon, 2012.
Incorpora-se, por isso, no próprio processo de tombamento, iniciado com a inscrição do monumento
no Livro do Tombo das Belas Artes, em 20 de julho de 1938, e as providências antecedentes para esse
fim. E diz textualmente:
A Igreja de São Pedro dos Clérigos do Recife, edificada conforme o risco do “mestre,
pedreiro e arquiteto” Manuel Ferreira Jácome, uma das mais importantes edificações
religiosas brasileiras, tem sua monumentalidade, em grande parte, conferida pelas
edificações que a cercam e que formam, à sua frente, o Pátio de São Pedro. Casas térreas
e assobradadas, de frente de rua, coladas umas às outras, guardam, ainda hoje, marcante
caráter das construções antigas, apesar de umas poucas terem sofrido reparos deformantes
que, no entanto, não chegaram a interferir nos seus volumes edificados e no ritmo dos
vãos de janelas e portas.
O Pátio é suficientemente grande para permitir a visão global da Igreja e, com a moldura
de suas edificações de pequeno porte, confere escala ao templo, valorizando devidamente
sua nobre e alta frontaria.
O projeto de urbanização, aprovado há pouco mais de ano pela Prefeitura Municipal
do Recife, graças ao pioneiro trabalho do 1º Distrito desta repartição, estabeleceu
para este logradouro o gabarito de um e dois pavimentos. Resolvendo essa medida, o
224
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
problema da escalada da visibilidade do momento não resolveria o da ambiência, pois,
com a ocorrência de reformas de frontarias e coberturas das várias edificações, visando
modernizá-las, perder-se-ia por completo a harmonia ainda existente, e que urge tudo se
fazer para preservar.
Além disso, dada a proximidade desse conjunto com o prolongamento da av. Dantas
Barreto, obra em execução no momento, haverá no local, dentro de pouco tempo, forte
pressão imobiliária, que poderá comprometer as restrições conseguidas no plano de
gabaritos referido, aprovado pela Administração Municipal.
Em anexo, planta do Pátio de São Pedro e fotos da Igreja de São Pedro dos Clérigos e das
edificações que a circundam. As fotos são do arquiteto José Luiz Mota Menezes.
Ouvido o Chefe da Seção de Arte, arquiteto Paulo Thedim Barreto, assim se manifestou:
É de toda conveniência preservar-se o Pátio de São Pedro, onde a igreja deverá continuar
a surgir de surpresa, para garantia de sua aparente monumentalidade. Tombá-lo com
o conjunto arquitetônico subsistente torna-se necessário, pois, como assegura o arquiteto
Silva Telles, é o meio de conservar a ambiência, já prejudicada em parte por interferências
mal havidas, mas de fácil recuperação.
225
XIII. Piauí
226
XIII. Piauí
PROCESSO: 1.554-T-2008
RELATOR: LUIZ PHELIPE DE CARVALHO CASTRO ANDRÈS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 11 DE SETEMBRO DE 2008
Foi com muita honra que recebi, por intermédio da professora Anna Maria Serpa Barroso, a
incumbência de examinar e opinar sobre este processo, que trata do pedido de tombamento do
Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba, mas que traz essa designação significativamente
precedida pelo título complementar – Cidades do Piauí, testemunhas de ocupação do interior do
Brasil durante o século XVIII.
Minha tarefa foi realizada por meio dos procedimentos de visita ao local e análise dos autos do processo.
Em primeiro lugar, me veio a obrigatoriedade de conhecer in loco o sítio objeto desta proposição. Solicitei
ao Iphan as condições para me deslocar de São Luís do Maranhão até aquele município do litoral
piauiense, o que me foi prontamente atendido pelas superintendências regionais do Maranhão e Piauí.
A rota das estradas que segui, na paralela da linha costeira do meio norte, percorre o caminho que traçavam
os viajantes, desde o século XVII, e nos introduz na paisagem de campos e cocais de babaçu, carnaúba e,
onde há uma vereda, de buritizais, passando pela única região do país onde o cerrado brasileiro avança
até próximo ao mar e encontra a vegetação litorânea nas proximidades do Parque Nacional dos Lençóis
Maranhenses. A viagem em si é um belo introito ao território que vamos percorrer na história.
Assim é que visitei a cidade, sob a orientação da arquiteta Diva Maria Freire Figueiredo, superintendente
da 19a SR/Iphan, que por sua vez participara das atividades de coordenação e elaboração do dossiê e nos
prestou todo o apoio técnico e logístico necessário para o êxito da missão de reconhecimento do sítio.
Dias antes, havia recebido o conjunto do processo com a íntegra das informações e ao examinar seus
originais pude constatar a qualidade do material técnico. Trata-se de um dossiê cuidadosamente preparado
227
XIII. Piauí
e que reúne documentos elaborados entre outubro de 2006 e março de 2008, como fruto de profícua
colaboração entre os técnicos da 19a SR/Piauí e o Departamento de Patrimônio Material (Depam).
Passo a me ocupar desse dossiê, com o intuito de oferecer aos senhores conselheiros uma síntese fiel
das informações, que lhes permita estabelecer um juízo sobre a proposta de tombamento, explicitando
valores por meio dos quais se busca justificar a ação solicitada, mas também procurando identificar
possíveis lacunas ou incongruências que possam eventualmente comprometer a força deste ato.
Entretanto, como um verdadeiro alento para enfrentar a tarefa, outra revelação do valor do acervo
que estava prestes a examinar me chegou às mãos na mesma semana. Foram três volumes da obra
monumental do arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho, denominada Carnaúba, pedra e barro na
capitania de São José do Piauhy.
Após realizar o melhor estudo já editado sobre a arquitetura luso-brasileira no Maranhão, Olavo nos
surpreende agora com esta contribuição memorável à história do Piauí, e consequentemente do Brasil,
contada através dos fatores políticos, sociais e econômicos que deram origem a uma peculiar forma de
ocupação das largas extensões de uma região brasileira carente de pesquisas mais aprofundadas.
Aqui ele comparece com um estudo minucioso, do qual é autor não somente dos textos, mas também
das belas ilustrações em fotos e desenhos primorosos, que lançam luzes e contornos irretocáveis sobre
a importância do patrimônio cultural representado no acervo de arquitetura urbana, rural e sobre o
urbanismo no território piauiense – incluindo um capítulo sobre Parnaíba, que deve ser levado em
consideração na avaliação que faremos.
Gostaria ao mesmo tempo de sugerir que a referida obra fosse anexada como parte integrante deste e
de futuros processos de tombamento dos demais centros urbanos e fazendas daquele estado.
Já nos quatro volumes do processo, encontrei os seguintes itens técnicos exigidos: inicia-se com o
documento protocolar assinado pelo presidente do Iphan, Dr. Luiz Fernando de Almeida, em 31 de
março de 2008, ao qual se juntam o parecer técnico do Depam, da arquiteta Anna Eliza Finger, e o
parecer jurídico da Procuradoria Federal – órgão executor da Procuradoria Geral Federal no Iphan,
assinado pelo procurador geral substituto Antônio Fernando Leal Néri.
Segue-se o edital e o aviso de notificação do tombamento, contendo a descrição técnica minuciosa da
poligonal da área de tombamento e do entorno, bem como as cópias de suas publicações em tempo
hábil, no Diário Oficial da União, em 8 de agosto de 2008.
Também já foram devidamente encaminhados e recebidos os ofícios dando ciência do processo em
curso ao governador do Piauí, Dr. Wellington Dias e ao gerente regional do SPU/Piauí, bem como foi
publicado em jornais locais o competente aviso de notificação.
Já no primeiro anexo, pude encontrar os seguintes e valiosos estudos:
> Uma descrição geomorfológica contextualizando o sítio urbano que se pretende como área
a ser tombada. O município de Parnaíba hoje abriga uma população de 150 mil habitantes.
Encontra-se no litoral do Piauí, no espaço geográfico do delta do rio. A cidade está assentada à
margem do Igaraçu, o primeiro dos cinco braços de rio que conformam o delta, e distante 339
km da capital Teresina. É a segunda maior e mais rica cidade do estado.
> Um estudo de origens e dos antecedentes históricos da conquista do Piauí, com informações
sobre a forma como se processou a implantação das diversas vilas e dos povoados, como estratégia
228
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
da coroa portuguesa no sentido de obter maior controle sobre as populações e as atividades
econômicas que aí se desenvolviam.
O referido estudo nos mostra, em consistente documentação iconográfica e cartografia de
época, como surgiu o núcleo urbano, desde antes da fundação da primitiva Vila de São João de
Parnaíba, por meio de uma carta régia, em 1761, que determinava a criação formal de sete vilas,
incluindo esta, a partir de povoações já existentes e prosseguindo até aos nossos dias, definindo
sua trajetória ao longo de mais de três séculos.
> A descrição objetiva dos bens patrimoniais, sua localização na malha urbana escalonada através
do tempo, permitindo uma leitura didática do acervo e do plano urbanístico, caracterizando o
sítio histórico a ser tombado.
> Uma análise da morfologia urbana em seu contexto atual, descrevendo em detalhes as condições
em que se encontra o acervo e como ele se comporta diante da expansão urbana acelerada
ocorrida após a segunda guerra mundial.
> Segue-se a análise das tipologias arquitetônicas aí presentes, que são um testemunho das
contribuições de cada período da história da arquitetura, na forma peculiar como se adaptaram
aos usos regionais e locais. Neste caso, o documento evidencia a leitura das tipologias a partir
do núcleo do assentamento original do Porto das Barcas, ainda no final do século XVII, em
direção à praça que se abre diante do conjunto da Estação Ferroviária, datada dos anos 1920,
caracterizando seis áreas diferenciadas pelos estilos e pelas intervenções ocorridas ao longo dos
séculos. De fato, a evolução da cidade produziu alguns conjuntos arquitetônicos que, embora
integrados no conjunto maior, podem ser reconhecidos em separado como representativos de
uma ou outra fase da ocupação urbana.
Os levantamentos já realizados enfatizam que o desenho urbano resultante, os materiais e as técnicas
construtivas, assim como a sua inserção no espaço geográfico, são muito próprios de uma cidade que
nasceu de um porto à beira-rio e, com o passar dos séculos e o surgimento da ferrovia e rodovia, teve o
seu fluxo de acessibilidade invertido. Ou seja, o que era antes a retaguarda da cidade se tornou principal
entrada e o rio, que foi a porta de chegada, nos séculos passados, tornou-se o cenário de fundo.
Ainda neste primeiro anexo, uma análise da legislação de proteção existente, onde se verifica uma
tomada de consciência da importância do acervo no âmbito da administração local, que através da Lei
Orgânica do Município, datada de 5 de abril de 1990, já enfatizava:
O Município cuidará para que a área considerada, na forma da lei, Patrimônio Histórico-
Cultural do Município, receba a manutenção e o cuidado devidos, zelando para que as
suas características físicas não sejam depredadas pela ação do desenvolvimento econômico
ou de devastação irresponsável.
E ainda que, a partir de 11 de março de 2003, a municipalidade sancionou a Lei n. 1.908, que institui
o tombamento e cria o Conselho Consultivo Municipal do Patrimônio Cultural e Natural de Parnaíba.
Neste ponto da análise, parece alvissareiro, como manifestação do interesse da administração pública
local, que o Plano Diretor, aprovado em 5 de janeiro de 2007 (Anexo IV), faça incluir a questão
relativa à “recuperação e valorização dos patrimônios arquitetônicos, urbanísticos e ambientais,
particularmente o Centro Histórico da Cidade de Parnaíba” como uma das diretrizes para o
desenvolvimento econômico da cidade.
229
XIII. Piauí
Mas, por outro lado, fica evidente que os dois instrumentos de proteção legal, criados na esfera do
poder local, ainda não foram de fato aplicados e que a municipalidade confia na atuação do Iphan como
entidade prestigiosa e capaz de fazer frente às forças do mercado imobiliário e das eventuais pressões
de interesses econômicos, transferindo para o nível federal as principais expectativas de proteção do
acervo, pois assim reza explicitamente o texto do plano diretor:
Finalmente, essa zona deve ter monitoramento contínuo dos órgãos oficiais responsáveis
pela preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural brasileiro (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – 1phan). Sendo que isso deverá ocorrer em
conjunto com a gestão de todas as secretarias municipais e a integração das associações de
moradores e de outras entidades comunitárias existentes em Parnaíba.
Ainda no primeiro anexo, há o texto que contém a proposta de proteção com justificativa do valor histórico
e cultural do conjunto a ser tombado, seguida das descrições do perímetro da área de tombamento e da
área de entorno, que estabelece uma faixa bem definida e regular de amortecimento dos impactos que
poderiam advir da rápida expansão da cidade contemporânea. O primeiro volume dos anexos se encerra
com acervo iconográfico que nos permite uma visualização do conjunto da obra urbana.
O segundo anexo, em sua introdução, nos sugere toda uma estratégia inovadora que objetiva corrigir
uma lacuna que o patrimônio histórico nacional guarda em relação ao estado do Piauí. Nesse volume,
os técnicos do Iphan buscam contextualizar a formação histórica e cultural do estado, constituindo
uma base sobre a qual se apoia a presente proposta de tombamento, que inicia uma série concatenada
de outros tombamentos em fase de estudo, a fim de se estabelecer um sistema patrimonial piauiense
coerente e interrelacionado.
Diz o texto do dossiê:
A partir dessa abordagem, propomos o tombamento das cidades do Piauí testemunhas
da ocupação do interior do Brasil durante o século XVIII, que se inicia agora pelo
conjunto histórico e paisagístico de Parnaíba, e que ao mesmo tempo abre caminho para
a incorporação de outras cidades do território piauiense e mesmo nordestino, além de
manifestações de caráter tradicional e simbólico, importantes na integração material dos
domínios nacionais.
Ou ainda, como nos lembra o arquiteto Dalmo Vieira Filho, diretor do Depam:
Para o Iphan, além da significância cultural, o tombamento inicialmente de Parnaíba
representa o arranque na implantação da rede de patrimônio cultural no Piauí, visando
sua ampla compreensão. Quando se estabelece um sentido de conjunto ao patrimônio a
ser preservado, amplia-se o potencial de entendimento dos bens, pois se incorpora a eles
novos significados. A valorização sistêmica do território pode ser tomada como a chance
de se reviver o desenvolvimento da história do Brasil a partir de novo enfoque, baseado
na articulação ideal de conjuntos urbanos e viabilizada por meio de temáticas específicas.
Para tanto, o texto nos traz a caracterização de todo o território do Piauí, em cuidadoso memorial. Essa
descrição é seguida de notícias históricas sobre o seu desbravamento, com as necessárias contribuições
para o entendimento de como se formaram as diversas vilas e atuais cidades. Aí se apresentam as
pesquisas envolvendo o Conjunto Histórico e Paisagístico de Parnaíba e as Fazendas Nacionais, no que
diz respeito à compreensão do atual estado, ressaltando a importância da pecuária para a ocupação do
interior do Brasil, marcada principalmente pelas rotas traçadas pelos rebanhos bovinos provenientes
230
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Porto das Barcas, Parnaíba. Foto: Margareth Leite, 2007.
231
XIII. Piauí
Em suma, o documento enfatiza a adoção de uma estratégia segundo a qual a proteção federal seja
implementada compreendendo o território piauiense a partir de seu sítio natural, da rede de cidades ali
implantadas e das influências culturais presentes, considerando esses aspectos como interligados entre
si e que, apesar de pouco explorados até então, guardam uma vinculação lógica e de respaldo histórico
e urbanístico.
O terceiro anexo nos apresenta, finalmente, uma completa e muito bem elaborada cartografia, em
escala referenciada em levantamento aerofotogramétrico recente, digitalizada, contendo as informações
indispensáveis à análise, com as seguintes pranchas:
Prancha 01/09 - Limites e Topografia da Área Urbana: oriunda dos arquivos cartográficos
recentes da Prefeitura, esta planta, dotada de curvas de nível, permite uma perfeita visualização
dos limites territoriais do município no contexto do delta do Parnaíba, na escala de 1:50.000,
assim como das áreas urbanizadas, na escala 1:25.000.
Prancha 02/09 - Sistema Viário – Aerofotos: ilustrada com fotos aéreas e também fornecida pela
municipalidade, esta planta, em escala 1:20.000, nos mostra com clareza como estão dispostas
as vias de acesso e como ainda, no início do século XX, a engenharia de transportes promovia a
integração intermodal entre as rodovias, as vias de transporte fluvial e a estrada de ferro, facilitando
a leitura de como se processou a evolução urbana a partir do núcleo original do Porto das Barcas.
Prancha 03/09 - Planta de Gabaritos: planta cadastral na escala l:2.500, elaborada segundo
levantamento recente, de 2006-2007, pelas equipes técnicas do Iphan. Nela se pode observar a
delimitação do espaço urbano no cenário natural que o cerca, definindo as quadras e os imóveis
individualmente, bem como a homogeneidade do conjunto, no que se refere à predominância das
edificações de um a dois pavimentos. Sem dúvida, um valor relevante a ser preservado no perfil
das áreas urbanas que ainda não tiveram sua infraestrutura comprometida pelo adensamento
oriundo da verticalização.
Prancha 04/09 - Planta de Usos: idem, onde se observa o valor igualmente importante para a
preservação, que é a ocorrência de usos heterogêneos com um misto predominante de comércio,
serviços e habitação no mesmo espaço urbano, uma vez que essa diversidade assegura maior
intensidade de uso cotidiano e, portanto, de aproveitamento dos investimentos aí convertidos
em infraestrutura.
Prancha 05/09 - Planta de Tipologias: idem, onde se confirma a evolução dos estilos
arquitetônicos de forma didática, em percurso agradável que se faz a partir do Porto das Barcas
em direção à praça da Estação Ferroviária, destacando-se nesta ordem o estilo colonial do
século XVIII; o eclético, presente nos séculos XIX e XX; e chegando ao art déco e modernista,
a partir dos anos 1920. O resultado atual do conjunto faz de Parnaíba um livro aberto, onde
se pode fazer uma leitura da história da arquitetura, como a confirmar o dizer de Araújo Porto
Alegre: “Cada pedra colocada pelo homem na construção das cidades é uma letra no alfabeto
da civilização”.
Prancha 06/09 - Planta de Estado de Caracterização: idem, onde se pode constatar que a
grande maioria dos imóveis está contida nas categorias dos que são considerados ainda “bem
caracterizados”, ou apenas parcialmente afetados por intervenções.
Prancha 07/09 - Planta de Estado de Conservação: idem, por meio da qual se observa a
urgência de socorrer as áreas extremas – a do Porto das Barcas, onde se localiza a maior parte das
232
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
ruínas dos antigos galpões industriais e trapiches, e aquela da praça da Estação, onde se quedam
sem uso as antigas instalações ferroviárias.
Prancha 08/09 - Planta de Delimitação de Perímetros para Proteção: idem, onde se pode
ver o trabalho cuidadoso de se estabelecer uma área de proteção rigorosa, contida no perímetro
proposto para tombamento, e uma segunda área generosa, bem-traçada, claramente definida
como área do perímetro proposto para entorno, a funcionar como uma zona de amortecimento.
Prancha 09/09 - Planta de Zoneamento, conforme definido no Plano Diretor de Parnaíba:
esta última planta revela integração de propósitos com os princípios e necessidades da preservação.
Todos esses aspectos estão enriquecidos no corpo do processo pela documentação fotográfica das áreas
urbanas, dos cenários naturais e, pontualmente, das edificações.
Assim, entendo que, do ponto de vista formal, o processo está generosamente instruído e atende aos
requisitos técnicos, jurídicos e burocráticos exigidos pela regulamentação do Iphan, mais especificamente
pela Portaria n. 11, de 11 de setembro de 1986.
Uma ênfase especial merece ser conferida ao parecer n. 004/2008, do Depam, datado de 16 de
julho de 2008, da arquiteta Anna Eliza Finger, que realiza uma brilhante síntese de toda a questão,
descrevendo-a com sensibilidade e complementando com uma precisa avaliação técnica dos valores
históricos, arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos. Extraio do seu parecer o excerto a seguir:
Em 1761, outra Carta Régia eleva a Vila da Mocha à condição de cidade, alterando seu
nome para Oeiras, e determina a criação de mais sete vilas também a partir de povoações
existentes. Utiliza para a construção dessas o mesmo modelo implantado inicialmente
em Aracati, no Ceará (fundada em 1747 e já tombada pelo Iphan) – baseado em
valores como retidão, salubridade, harmonia e uniformidade –, considerado de grande
êxito e recomendado oficialmente como modelo a ser seguido para a construção de outras
cidades. Dentre essas sete novas cidades estava Parnaíba, criada a partir de uma povoação
existente na região do delta do rio que lhe rendeu o nome.
Esse texto nos revela um interessante desígnio; as cidades, cujo tombamento se pretende pela primeira
vez realizar de forma articulada e integrada, também nasceram integradas e em “rede”, unidas pela
determinação da Carta Régia de adoção de um modelo comum de traçado urbano.
Mas é curioso ainda notar, na página 15 do terceiro volume, denominado Urbanismo, da trilogia do
arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho, uma ilustração onde o registro de singelos croquis urbanos
originais de cada uma das vilas – a saber, Oeiras, Campo Maior, Piracuruca, Valença, Parnaíba,
Paranaguá, Jerumenha e Teresina – evidencia a inequívoca similitude de projetos, lembrando-nos
sempre que: a presença dos veios d’água foi o elemento catalisador para a localização geográfica no
assentamento das nucleações.
Observa-se também no texto de Olavo que, até mesmo antes da Carta Régia, ainda no século XVII,
a ação catequética empreendida na região pelos jesuítas, que haviam sido, a partir de 1711, os
proprietários da maior parte das fazendas de gado do Piauí, já induzia uma configuração uniformizante
nos aglomerados característicos das reduções: “Para isto, uma composição de ordenação ortogonal,
com a praça fronteira à morada de Deus, supostamente ladeada pela casa do padre, cemitério, escola,
oficinas e um renque de taperas cercando o entorno”. Ou seja, em sua gênese mais profunda, as sete
cidades do Piauí foram portadoras da unicidade que a forma deste tombamento pretende resgatar.
233
XIII. Piauí
De tudo que se informa neste dossiê, e para além das associações possibilitadas pela natureza, pelo
povoamento de terras inóspitas e distantes do litoral e pela formação social, as cidades do Piauí estão,
sem dúvida, ligadas a fatos históricos determinantes na formação nacional. Especialmente por sua
importância estratégica no contexto do desenvolvimento da região Nordeste, no papel de se haver
constituído como território seguro de integração entre os dois estados coloniais então existentes – o
estado do Brasil propriamente dito e o estado do Maranhão e Grão-Pará.
De fato, toda essa rica história se iniciou na Costa do Descobrimento, num ponto ao norte da Baía de
Todos os Santos, na foz do rio Pojuca. Ali, até hoje se localizam simbolicamente as ruínas remanescentes
do primeiro castelo construído no Brasil quinhentista, ainda no tempo de Tomé de Souza (1549), sede
da sesmaria dos Garcia d’Ávila, e que se tornou conhecida como a “Casa da Torre dos Garcia d’Ávila”,
que no dizer de Clarival do Prado Valladares, em sua obra Nordeste histórico e monumental, foi “o centro
estratégico e econômico das entradas e da conquista do sertão, até o Piauí!”.
Dali partiam os rebanhos de gado, cujo deslocamento em busca incessante de novas pastagens e água,
pontos de paragem e descanso, saiu semeando povoações, estabelecendo por mais de dois séculos um
traço de união na forma de ocupação e conquista das vastidões de terra que hoje abrigam os estados
do Nordeste brasileiro.
Aos bandeirantes do ciclo baiano devem-se a exploração e a colonização do Nordeste. O São Francisco
e grandes partes de Pernambuco, Piauí, Maranhão e Ceará foram devassados. E, quase sempre, a
iniciativa e o êxito de tão grandes empresas os levaram à Casa da Torre, a mais audaz e poderosa do
Brasil colonial.
Ao que replicam os historiadores do Norte: só que, em pouco mais de cem anos, e já no início do século
XVIII, as fazendas piauienses haviam se tornado grandes produtoras de gado e passaram a fornecer seus
rebanhos para a Bahia, devolvendo os benefícios.
Não seria justo, pois, que tal acervo de arquitetura rural e urbana, testemunha inconteste da saga
de ocupação de grande parte do território brasileiro, permanecesse à margem das atenções da maior
instituição nacional que visa a preservação da memória e da história do país.
A nosso ver, do ponto de vista do valor histórico, o tombamento irá também garantir a preservação
do testemunho material de dois processos civilizatórios do território nacional, em especial do sertão
nordestino: a ocupação humana e a modernização dos sertões. Ambos ainda pouco representados, nos
acervos patrimoniais do Brasil, como fundadores da nossa cultura e nacionalidade.
A navegação, que estabeleceu linha regular entre as cidades de Parnaíba e aquelas localizadas no interior
do estado, e a Estrada de Ferro, que mudou as condições de comunicação entre o litoral e o sertão, são
acontecimentos modernizadores, propiciados pelo desenvolvimento tecnológico, relativos ao final do
século XIX e à primeira metade do século XX.
Neste ponto do parecer, sinto necessidade de renovar meu auto de fé no instituto do tombamento,
cuja aplicação é nosso mister de conselheiros, que costumamos votar por ele ou pelo registro de bens
patrimoniais representativos da cultura nacional, quando os mesmos se justificam, reafirmando que:
o tombamento não é somente um ato jurídico e burocrático, mas uma estratégia de agregar valor, de
tornar mais respeitado, de distinguir, de divulgar, de fortalecer argumentos de defesa, solicitações de
ajuda e portanto, um caminho para consolidar as perspectivas de continuidade.
Senti neste caso, e mais uma vez, que o ato de proteção implícito na figura do tombamento vai muito
além do que sugere a materialidade da questão – ele incidirá também sobre a autoestima do povo do
234
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Piauí. Pois, não atribui apenas o poder de coerção, de vigilância, de fiscalização, mas também confere
valor. E como valoriza, ele eleva e estabelece uma aura de respeito sobre o bem que se pretende preservar.
Entretanto, não podemos também nos esquecer de que o ato do tombamento representa mais
uma grande responsabilidade ao Iphan, não só no sentido de não frustrar as expectativas daquelas
comunidades, como objetivamente pelo fato de que passa a ser administrativa e legalmente responsável
pela preservação daqueles bens.
Torna-se, portanto, necessário envidar imediatos esforços para consolidar o que está sugerido no Plano
Diretor de Parnaíba, garantindo aos técnicos locais uma estrutura que venha permitir uma verdadeira
integração nos trabalhos cotidianos de gestão do acervo a ser protegido, na medida em que propicie
parcerias técnicas e administrativas entre os órgãos municipais, estaduais e o Iphan.
Nesses termos, seu funcionamento deverá possibilitar economia de meios e esforços, aumentando
a rapidez e a eficiência das ações, com todos falando a mesma linguagem e trabalhando com
critérios nivelados e mais próximos da realidade local. Estamos nos referindo à forma de instalação
de um Escritório Técnico do Iphan na cidade de Parnaíba e que seja fortalecido de recursos
humanos e materiais.
Para concluir, gostaria de sintetizar a impressão geral que guardei, ao me despedir, após minha visita de
reconhecimento. O conjunto formado pela cidade de Parnaíba e a paisagem do rio Igaraçu compõe um
cenário de excepcional harmonia entre o patrimônio erigido pela mão do homem e o ambiente que o
cerca. E esses elementos constituem um habitat perfeito para a gente que ali vive e trabalha e que, de
toda forma, o mantiveram até os nossos dias como provas materiais e imateriais de que são também um
belo testemunho remanescente e revelador da alma do povo brasileiro.
Sendo assim, e corroboran-
do as recomendações e os Exemplar da arquitetura civil de Parnaíba. Foto: Margareth Leite, 2007.
pareceres do Departamento
de Patrimônio Material e
da Procuradoria Federal
que integram os autos
deste processo, declaro-me
favorável ao tombamento
do acervo denominado “Ci-
dades do Piauí, testemunhas
de ocupação do interior
do Brasil durante o século
XVIII – Conjunto Histórico
e Paisagístico de Parnaíba” e à
consequente inscrição nos Li-
vros de Tombo l) Arqueológi-
co, Etnográfico e Paisagístico
e 2) Histórico.
235
XIV. Rio de Janeiro
236
XIV. R io Janeiro
PROCESSO: 833-T-71
RELATOR: GILBERTO FERREZ
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 25 DE NOVEMBRO DE 1971
Mais uma vez, temos aqui a repetição da incompreensão, do desamor à natureza, da falta de conhecimento
da história, de tradições locais, e da falta total de censo estético de vários prefeitos deste país.
Nestes últimos dez anos, com o surto do progresso, da industrialização e da pressão demográfica,
tornou-se hábito dos prefeitos, para demonstrar seu “dinamismo”, construir escolas, playgrounds ou,
em nome do turismo, uma estação rodoviária ou fonte luminosa-cantante em suas cidades. Até aí não
teríamos objeções a fazer; entretanto, como tudo é feito com intenção de propaganda pessoal, política
demagógica, quando não por pura inépcia, não se dão ao trabalho de procurar local adequado para
esses fins, mas a solução simplista de destruir, em nome do progresso, o que já existe de bem-feito por
nossos antepassados, porque é velho e tido como antiprogresso.
Daí se destruírem o Bosque e o Jardim do Palácio Cristal, em Petrópolis – agora, após anos da luta
do Dphan, finalmente reconstituídos em toda sua primitiva beleza, mas à custa de quanto dinheiro
público?
Em Joinville, quiseram lotear o cemitério primitivo da cidade, onde estão enterrados os fundadores da
cidade, que descansam sombreados por árvores também centenárias, salvas, no último minuto, ainda
pela ação protetora do Dphan. Mas há ainda outros casos tão clamorosos onde nada se pode fazer,
como em Sabará, onde se destruiu a praça para construir uma horrível escola pública de cor verde-
berrante; em São Luís, se arrasou com a arborização de todas as praças. E aqui paramos, porque esses
exemplos são alguns entre dezenas de que temos conhecimento.
237
XIV. Rio de Janeiro
Faculdade de Odontologia de Nova Friburgo. Foto: Inepac/Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.
(http://www.inepacnovo.rj.gov.br/modules.php?name=Guia&file=consulta_detalhe_bem&idbem=150)
Foi por esses fatos e outros mais contra o patrimônio histórico e artístico, que se multiplicam por todo
o país, que a Revolução, em boa hora, organizou um simpósio de todos os secretários de Educação dos
estados, para se tomarem medidas positivas à salvaguarda desse patrimônio, que inclui, é preciso não
esquecer, a paisagística.
É com toda razão que Burle Marx, a maior autoridade nesse campo, tanto clama em vão contra a
devastação de nossas matas e dos próprios parques e jardins de nossas cidades. É fácil imaginar o que por
esse Brasil afora está acontecendo, quando aqui na Guanabara a devastação de matas continua impune.
Agora, temos este de Nova Friburgo, aqui ao lado, onde um prefeito, em nome do turismo e do
bem-estar das crianças, arrasa esplêndidos exemplares de árvores centenárias, em perfeita saúde, como
atestam as fotos aqui reproduzidas, para transformar uma parte da linda praça daquela cidade num
deserto de cimento para crianças brincarem, sem nenhuma sombra.
Esse gênero de atentado ao bem público não pode continuar impune, e só podemos concluir com o
laudo do mestre Lucio Costa. Portanto, achamos de obrigar Nova Friburgo a fazer o que se fez com
tanto sucesso em Petrópolis – isto é, reconstituir a parte devastada da praça Getúlio Vargas como era
primitivamente e tombá-la inteira, para preservar às novas gerações o ambiente paisagístico tão típico
e característico daquela cidade.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Vista de Nova Friburgo. Foto: Brandaogu.
(https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nova_Friburgo.JPG)
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XIV. Rio de Janeiro
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Praça XV de Novembro, Rio de Janeiro – RJ | 1990
PROCESSO: 1.213-T-86
RELATOR: GILBERTO FERREZ
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 9 DE MARÇO DE 1990
Tendo recebido a incumbência de relatar o processo que trata do tombamento da Área Central da Praça
XV de Novembro e Imediações, nesta cidade do Rio de Janeiro, cumpre-me tecer as considerações que
se seguem.
O processo encontra-se bem instruído, cabendo destacar a informação técnica de n. 20, de 12 de abril
de 1989, lavrada pela arquiteta Helena Mendes dos Santos e corroborada pela informação técnica de
n. 34, da coordenadora de Proteção, Dra. Jurema Kopke Eis Arnaut.
É de se considerar também o primoroso estudo desenvolvido sob a coordenação da arquiteta Dora
Alcântara, que tem como um dos objetivos estipular os critérios de intervenção para a área objeto deste
tombamento, a partir de farto estudo tipológico do local.
As formalidades de ordem legal encontram-se atendidas nos termos do Parecer CJ n. 40, de 22 de
novembro de 1989, da advogada Tereza Beatriz da Rosa Miguel, aprovado pela coordenadora Jurídica,
Dra. Regina Coeli Lisboa Soares, culminadas com a publicação de editais na imprensa oficial e
comercial, em 11 de janeiro de 1990, e comunicação à prefeitura local.
De forma que sou de parecer favorável ao tombamento do notável conjunto da área da Praça XV de
Novembro e Imediações, nos termos da delimitação constante dos autos, como decorrência de seu
valor histórico, arquitetônico e paisagístico, amplamente aduzido nos trabalhos técnicos citados.
241
XIV. Rio de Janeiro
Paço Imperial, na Praça XV, Rio de Janeiro. Foto: Carlos Luis M. C. da Cruz.
Manifesto-me igualmente de modo favorável à aprovação do entorno definido para a área, conforme
poligonal traçada, e à adoção dos critérios de intervenção para o local.
Por fim, considero que a Área Central da Praça XV de Novembro e Imediações foi durante quase três
séculos a sala de visitas da nossa cidade e, por meio da retrospectiva de sua história, é possível rever-se
a história do país.
242
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Chafariz de Mestre Valentim, na Praça XV de Novembro, Rio de Janeiro. Foto: Carlos Luis M. C. da Cruz.
Vue de la Place du Palais, à Rio de Janeiro. Aquarela de Jean Baptiste Debret, c. 1830.
243
XIV. Rio de Janeiro
244
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Vassouras – RJ | 1958
PROCESSO: 566-T-57
RELATOR: PAULO F. SANTOS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 3 DE JUNHO DE 1958
Opinamos favoravelmente sobre o projeto de tombamento, elaborado pelo arquiteto Augusto Silva
Telles, do Conjunto Urbanístico e Arquitetônico da Cidade de Vassouras, formado pela praça Barão de
Campo Belo, Igreja Matriz de N. Sra. da Conceição, praça Sebastião de Lacerda, rua Barão de Tinguá,
até o Cemitério de N. Sra. da Conceição, inclusive, e ruas marginais:
Trata-se de um conjunto urbanístico e arquitetônico do século XIX, de valor apreciável, merecendo ser
preservado nos termos do Decreto-Lei n. 25.
A área indicada para tombamento expressa sentido de urbanização ordenada no respeito à topografia,
à localização dos centros comercial, residencial, cívico, administrativo, religioso, de assistência social,
funerário e paisagístico.
Na concepção urbanística de Vassouras manifesta-se, com clareza, a correspondência lógica e sincera
do viver e morrer em coletividade organizada.
A praça, outrora da Concórdia, hoje Barão de Campo Belo, é um quadrilátero com forte aclive e tem
a distingui-la, logo na entrada, no canto, à mão direita, a Casa de Câmaras e Cadeia; pelos lados
maiores, renques de palmeiras imperiais; ao centro, um chafariz de cantaria, de vulto, cora tanque
e taça; e no topo, no alto da praça, a Igreja Matriz de N. Sra. da Conceição, foco da composição
urbanística.
A praça ainda é servida, ao longo de sua frente, pela rua Barão de Vassouras, antiga rua do Comércio;
pelos lados estão lançadas, à direita, a rua Barão de Capivari, onde se localizou a Santa Casa de
Misericórdia, nas proximidades da igreja; e à esquerda, a rua Custódio Guimarães.
Casa da Hera, Vassouras. Foto: Marlino Soares.
245
XIV. Rio de Janeiro
O traçado dessas duas últimas ruas que ladeiam as praças evidencia o propósito de valorizar ainda
mais a igreja, inclusive pelo expediente de efeitos óticos. Há que se notar não só as convergências
imaginária e real de ambas as ruas, bem além da Matriz, como também seus alargamentos, logo no
final do jardim, antes mesmo de atingirem a igreja – que assim se demonstra deslumbrada, ao redor.
A rua Custódio Guimarães, a partir do alargamento no alto da praça, toma o nome de Barão de
Tinguá e ladeia a Matriz pelo lado do evangelho.
Por trás da Matriz situava-se a praça triangular Sebastião de Lacerda, resultante da confluência das
ruas Barão de Capivari e Barão de Tinguá, que, prosseguindo com deflexões e magnífica arborização
de “figueiras religiosas”, vai findar na praça fronteira ao Cemitério de N. Sra. da Conceição.
Do lado oposto às figueiras, aproveitando o desnível do terreno, distingue-se em um trecho da rua um
paredão rematado com varandas de ferro e ornado com o Chafariz Pedro II, parietal, de cantaria.
Situando-se ainda o observador nessa mesma rua Barão de Tinguá, com as costas voltadas para o
Cemitério, é surpreendente a perspectiva da Matriz, surgindo então, numa única visão, todos os
seus volumes, o da capela-mor e dependências, o do corpo da igreja e o das torres, emoldurados pelo
arvoredo.
O plano urbanístico de Vassouras contém unidade na variedade de soluções.
As construções, públicas e particulares, existentes na área proposta para tombamento devem merecer
igual atenção. Em sua maioria, tais construções conservaram as características originais. Alguns
prédios já foram modificados, mas no futuro poderão ser restaurados, pouco a pouco. Com o tempo,
poder-se-ão também corrigir certas construções lastimáveis.
O conjunto arquitetônico da cidade de Vassouras, além de apreciável, é de fácil conservação. Trata-se
da preservação de significativo acervo do século XIX, dos mais interessantes.
ASSUNTO
HISTÓRICO
O processo é instruído com um relatório de autoria do arquiteto Augusto da Silva Telles, acompanhado
de uma planta e de 29 fotografias, de um “pronunciamento” do embaixador Raul Fernandes, a pedido
da Dphan, e de um parecer do arquiteto Paulo Thedin Barreto.
246
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
PARECER
247
XV. Rio Grande do Sul
248
XV. R io Grande S ul
PROCESSO: 1.248-T-87
RELATOR: ROBERTO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 1º DE DEZEMBRO DE 1988
A Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) submete a este Conselho Consultivo
o Processo n. 1.248-T-87, em que se propõe o tombamento, nos termos do Decreto-Lei n. 25, de 30
de novembro de 1937, do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico constituído pelo núcleo central da
cidade de Antônio Prado, no estado do Rio Grande do Sul.
DO MÉRITO
A cidade de Antônio Prado, localizada na região de imigração italiana, situada a nordeste do estado
do Rio Grande do Sul, abriga na sua parte central o que é considerado como o maior e mais bem
preservado conjunto arquitetônico e paisagístico representativo das primeiras décadas de vida dos
imigrantes italianos no Brasil.
Com efeito, estudos competentemente desenvolvidos pela 10ª Diretoria Regional da Sphan (RS), em
colaboração com a Universidade de Caxias do Sul, nos dão conta de que, em 1886 – decorridos já
até dez anos dos inícios da imigração italiana no nordeste do Rio Grande do Sul – chegam naquela
região, localizada no aprazível Vale do Rio das Antas, os primeiros colonizadores italianos, fundando
o povoado, hoje cidade, de Antônio Prado, que apresenta rápido desenvolvimento como núcleo
manufatureiro e polo prestador de serviços à região circunvizinha.
Já nos inícios deste século, o núcleo urbano, elevado à categoria de cidade em 1899, possui um
“comércio florido”, que abastece inclusive a região pecuária de Vacaria, e “tem 183 casas de madeiras,
Residência em Antônio Prado. Foto: Bento Viana, 2009.
249
XV. Rio Grande do Sul
vinte de dois pisos e dez de alvenaria”, além de sua Igreja Matriz, “o mais belo monumento do lugar”
(Vittorio Bucelli, visitante e escritor italiano).
Por volta de 1914, já existiam na cidade mais de cem estabelecimentos voltados à produção de
manufaturados, vinte casas de comércio, dez hotéis, cinco agências bancárias. Sua fase áurea de centro
urbano manufatureiro e comercial deu-se entre 1920 e 1930.
A partir de então, bloqueada pelas dificuldades de acesso – a ponte de ferro, trazida da Alemanha,
para assegurar travessia do rio das Antas fora deslocada, por motivos políticos, para outra localidade –,
Antônio Prado foi definhando, isolada, involuindo e estagnando. A esse fato se deve a preservação de
seu importante acervo arquitetônico e urbanístico.
O referido acervo – cujo tombamento se propõe –, construído no final do século passado e nas primeiras
décadas do atual, constituía-se de 46 edificações localizadas em sua área central e de duas outras, isoladas.
São, em sua maioria, construções de madeira, com alguns traços rurais, mas de feições predominantemente
urbanas, em contato direto com as ruas, com dominância do uso comercial-residencial, espacialmente
concentradas. Muitas delas destacam-se pela harmonia, pelo colorido, pelas proporções avantajadas, pela
simplicidade, pela discrição dos seus elementos decorativos – lambrequins frisando beirais e sacadas, leves
e graciosos balcões de ferro, emoldurados pela verdura dos quintais dos jardins.
Mas o conjunto inteiro, hoje composto de 47 casas, que no seu todo sobressai, representando
sinergicamente muito mais do que os elementos que o compõem – mais ao modo de Ouro Preto, com
seus arruados harmoniosos, que de Olinda –, nos surpreende no detalhe e no requinte interior de suas
igrejas e conventos, e no destaque dessa ou daquela fachada de sobrado ou arremate de chafariz, que
se recortam sobre o verde do mar.
250
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Em Antônio Prado é o conjunto que nos fala mais, encadeado, contextual (Mesentier), de volumetria
homogênea, suas cores pastéis, algo degradadas, onde apenas se destacam a igreja e o moinho. É o
conjunto, em suma, que exprime a imagem da colonização italiana no nordeste gaúcho, de significativo
valor histórico e artístico.
DAS DIFICULDADES
PARECER
Somos favoráveis ao tombamento – na forma proposta pelo arquiteto Leonardo Mesentier e endossada
pela então coordenadora de Proteção da Sphan, Dora M. S. de Alcântara.
Com relação às impugnações oferecidas, estamos também de pleno acordo com os argumentos
expostos em todas as informações contidas no processo, sejam as de natureza técnica, apresentadas
pelos arquitetos Leonardo Mesentier e Dora Alcântara, sejam as de natureza jurídica, elaboradas pela
advogada Tereza Beatriz da Rosa Miguel.
Proponho, no entanto, que a Sphan, em articulação com o Governo do Estado e com a Prefeitura
Municipal, busque intensificar esforços de esclarecimento da população quanto às vantagens do tom-
bamento e estimule as ações visando à recuperação e à utilização, para fins turísticos, de Antônio Prado.
Na verdade, agora que a cidade estará Igreja Matriz Sagrado Coração de Jesus, Antônio Prado.
ligada por asfalto à BR-116, numa região Foto: Bento Viana, 2009.
polarizada por Caxias do Sul, que já tem
vocação turística, Antônio Prado pode vir
a orgulhar-se de ser um monumento vivo
da colonização italiana no Sul do Brasil,
redinamizando-se pela exploração do
turismo e atividades de apoio.
Antônio Prado, hoje praticamente ignorada
pelo turismo, poderá e deverá incorporar-se
rapidamente a ele, como uma indispensável
complementação dos que demandam a
serra gaúcha e a região vinícola adjacentes.
251
XV. Rio Grande do Sul
252
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Vila de S anto Amaro,
General Câmara – RS | 1998
PROCESSO: 1.376-T-96
RELATOR: AUGUSTO CARLOS DA SILVA TELLES
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 5 DE NOVEMBRO DE 1998
Edificação residencial, na Vila de Santo Amaro, General Câmara. Foto: Paulo Vaz.
253
XV. Rio Grande do Sul
Conjunto histórico da Vila de Santo Amaro, General Câmara. Foto: Eneida Serrano, 2005.
das edificações residenciais e da Igreja Matriz, assim como com a definição de entorno do conjunto
urbano. Essa vila é característica dos assentamentos da segunda metade dos setecentos, feitos por casais
açorianos em solo gaúcho: núcleo com trama reticulada, à beira do rio, com polo focal definido pela
matriz, tendo uma área livre em seu entorno, assente em uma elevação, à semelhança de outros que,
lamentavelmente, descaracterizaram-se com o desenvolvimento – como os de Triunfo, Rio Pardo,
Cachoeira do Sul e o de Taquari, que visitamos há cerca de dez anos.
Julgamos, no entanto, salvo melhor juízo, que se deva acrescentar aos objetos de tombamento
específico toda a área em volta da Matriz e igualmente a praça fronteira, contornadas ambas pelas
ruas Demétrio Ribeiro, Thomás Pereira, Liberdade e Ernesto Alves. Estamos propondo isto, apesar de
estes logradouros já fazerem parte da área a ser definida como entorno, pelo significado da área como
centro e núcleo da vila e que constitui o espaço envoltório e valorizador da Matriz e da maior parte das
edificações a serem tombadas.
254
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Casario no centro histórico da Vila de Santo Amaro, General Câmara. Foto: Eneida Serrano, 2005.
Na última reunião deste Conselho, em 9 de novembro último, foi aprovada a inscrição, nos Livros
do Tombo do Iphan, do conjunto urbano arquitetônico de valor histórico da Vila de Santo Amaro,
do município General Câmara (RS). No relatório que apresentei na ocasião, sugeri que se acrescen-
tasse aos imóveis arrolados no processo a serem tombados – Igreja Matriz e catorze residências – a
área envoltória da Matriz e a praça fronteira à mesma. Essa proposta foi acolhida e aprovada por
este Conselho.
O senhor presidente do Iphan recebeu, no último dia 16, ofício do coordenador da 12ª Regional,
informando que naquela praça existem montados uma cancha de futebol de salão e um playground,
que não eram de nosso conhecimento por não constarem do processo.
Sugiro, agora, que este Conselho mantenha o tombamento como aprovado; isto é, incluindo a praça
central da vila e fronteira à igreja, mas que se acrescente a seguinte indicação: Os elementos assentes na
praça – cancha e playground – não estão incluídos no tombamento, podendo portanto ser retirados ou,
melhor, transferidos para local na periferia da vila, de forma a atender à população e permitindo que o
espaço urbano central da vila e frontal da matriz seja tratado paisagisticamente.
255
XV. Rio Grande do Sul
256
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Porto Alegre – RS | 2000
PROCESSO: 1.468-T-00
RELATOR: NESTOR GOULART REIS FILHO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 9 DE NOVEMBRO DE 2000
ANTECEDENTES
O processo está bem fundamentado, tendo sido informado por uma série de documentos, encaminhados
ao relator pelo ofício n. 368, enviado pela 12ª SR/Iphan, de 29 de agosto de 2000. O dossiê inclui os
seguintes documentos:
> Instrução de Tombamento;
> Parecer da 12ª Superintendência Regional do Iphan;
> Minuta de portaria e disciplinamento do entorno;
> Relatório das vistorias técnicas nos bens tombados em nível federal e estadual, na área do sítio
histórico.
Foram ainda anexados uma publicação do Museu de Porto Alegre (Porto Alegre - Uma história em três
tempos) e um livro, para informar sobre as obras escultóricas contidas na área de tombamento (Porto
Alegre - 1900-1920 – Estatuária e ideologia, de Arnoldo Walter Doberstein).
Foi enviado também, a 27 de outubro, um estudo de alternativa do perímetro de tombamento e de
proteção, elaborado pela Dra. Louise Ritzel, chefe do Departamento de Proteção.
É necessário registrar um elogio ao trabalho realizado pelas equipes de profissionais de Porto Alegre,
responsáveis pelos órgãos de proteção, em nível federal, estadual e municipal, com diversos autores,
sob o título Instrução para o Tombamento dos Conjuntos Urbanos da Praça da Matriz e da Praça da
Alfândega – Porto Alegre. O mesmo se pode dizer do Parecer sobre a Solicitação de Tombamento, da
arquiteta Ana Lúcia G. Meira, da 12a SR/Iphan, bem como dos autores dos demais documentos que
informam o processo.
Edifício residencial da rua Riachuelo, na área central de Porto Alegre. Foto: Edu Lyra, 2006.
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XV. Rio Grande do Sul
CARACTERIZAÇÃO FÍSICA
A proposta tem em vista o tombamento de dois conjuntos urbanos interligados, na área central de
Porto Alegre, compreendendo:
Praça da Matriz – a própria praça, o edifício do Teatro São Pedro, o Palácio Piratini, o
Monumento a Júlio de Castilhos, no centro da praça, e o prédio da Biblioteca Pública do Estado
do Rio Grande do Sul;
Praça da Alfândega – a própria praça, o portão central do Cais de Porto Alegre, o prédio dos
Correios e Telégrafos, a avenida Sepúlveda e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul.
A minuta de portaria inclui também proposta de tombamento de armazéns do Cais do Porto e da Casa
do Visconde de Pelotas (Solar dos Câmara). Do parecer da vistoria técnica, assinada pela arquiteta
Elizabeth Schoenardie, se depreende que os armazéns laterais são os que se situam junto ao pórtico
central do antigo Cais do Porto, ao qual “complementam e dão sentido, bem como escala”.
Essa relação inclui um conjunto de bens culturais que, na sua grande maioria, pertencem ao poder
público e, apenas no caso do Solar, há uma propriedade privada.
Os perímetros de tombamento, como proposto, incluem uma articulação entre os dois conjuntos,
passando pela rua General Câmara.
CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA
Ambas as praças se constituem como centros de conjuntos urbanísticos, que correspondem às áreas
de origem da cidade de Porto Alegre. A praça da Alfândega e a rua da Praia (rua dos Andradas) são
referências espaciais da instalação de alguns dos primeiros povoadores. Ao que consta, ali teria sido
erigida uma pequena capela, dedicada a São Francisco de Chagas (na rua da Praia e de frente para o
terreno que depois foi a atual praça da Alfândega), desde 1747, por iniciativa de colonos fugidos dos
ataques espanhóis à Colônia do Sacramento, como lembra o parecer da arquiteta Ana Lúcia G. Meira.
A colonização foi reforçada com a chegada de famílias açorianas, em 1752. Em 1773, o governador
transferiu a capital de Rio Grande para o Porto de São Francisco dos Casais (depois Porto Alegre).
Nessa ocasião, a área denominada Alto da Praia, correspondente à atual praça da Matriz, foi escolhida
para construção dos primeiros edifícios da administração civil e religiosa, a saber: a Igreja Matriz, a
Casa da Junta (Casa da Câmara) e o Palácio do Governador.
No lado oeste desse espaço aberto, por volta de 1794, teria sido construído um barracão, no qual
foi instalada a Casa da Comédia, que alguns anos depois passaria a se chamar Casa da Ópera, como
lembra a arquiteta Nara Helena Naumann Machado, em um dos textos que constituem a Instrução
para o Tombamento. Na parte mais alta, junto à atual rua Duque de Caxias, ficavam o antigo Palácio
dos Governadores (conhecido depois como Palácio de Barro) e a primitiva Matriz, que aparece, em sua
simplicidade, em desenhos antigos e fotografias de época.
Na parte mais baixa da praça, do lado norte, em terrenos com vista para o Guaíba, iniciou-se em 1833
a construção de um teatro. As obras foram interrompidas durante a Revolução Farroupilha (1835-
1845) e retomadas em 1849, com projeto e construção sob responsabilidade do arquiteto alemão
Georg Karl Philip Theodor von Normann (1818-1862). O teatro, denominado São Pedro, teve suas
obras concluídas em 1858. Ao seu lado, formando um conjunto, foi construído o prédio destinado
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Praça da Matriz, Porto Alegre. Foto: Edu Lyra, 2006.
à Câmara Municipal, inaugurado em 1874. Os edifícios eram quase idênticos, em evidente simetria.
Entre eles, o eixo da atual rua General Câmara assegurava uma vista sobre a rua da Praia e, ao seu lado,
sobre a praça da Alfândega, junto ao porto.
A praça da Matriz foi ajardinada entre 1878 e 1881. Com a República, a praça passou por uma
reforma, com a construção do Palácio Piratini e do Monumento em Homenagem a Júlio de Castilhos,
no centro da praça, cujo paisagismo foi totalmente remodelado. Do lado leste da praça, na esquina
da rua Jerônimo Coelho, foi construída a Biblioteca Pública do Estado. O projeto foi elaborado, em
1912, pelo engenheiro Affonso Hebert, e o edifício, ampliado entre 1919 e 1922, com projeto do
mesmo engenheiro.
A velha Matriz, cujas obras haviam sido inauguradas em 1794, foi concluída com sua forma definitiva
em 1846 e demolida em 1929. As obras foram realizadas em períodos diferentes, mas, tendo a praça
como centro, seus projetos foram elaborados considerando, sempre, que estariam fazendo parte de um
conjunto: as obras iniciais, na parte mais alta, com a antiga Matriz e o Palácio do Governador, com seus
anexos posteriores, o conjunto do teatro e a Casa da Junta (Casa de Câmara), assim como a biblioteca
e os projetos de paisagismo da própria praça – o que se pode comprovar pelo exame de fotografias e
desenhos antigos. O edifício da Casa da Junta foi destruído por um incêndio, por volta de 1950, mas
o Teatro São Pedro se conserva, com suas formas neoclássicas, depois de uma restauração.
259
XV. Rio Grande do Sul
Trata-se de um conjunto de evidente interesse histórico, não apenas em âmbito regional, como em
âmbito nacional. Os edifícios remanescentes, a praça como sítio urbano, bem como os desenhos e as
fotografias que nos revelam suas feições anteriores, fazem desse conjunto um documento fundamental
para a compreensão da história da vida urbana e da arquitetura urbana no Brasil.
O valor desse conjunto é ressaltado quando compreendemos sua relação com o conjunto da praça
da Alfândega.
Em 1803, foi criada a Alfândega de Porto Alegre, instalada no ano seguinte no espaço aberto que era,
então, conhecido como praça da Quitanda. A primeira alfândega ficava provavelmente instalada no
alinhamento da rua 7 de Setembro. Foi depois substituída por outro edifício, construído no centro da
praça, como nos informa Gunter Weimer, em um texto incluído na Instrução para o Tombamento e
ilustrado com um desenho que mostra a forma do edifício, em 1865. Ao seu lado, foi construído um
prédio para a Delegacia Fiscal, que Weimer supõe ter sido concluído no fim do Império; a edificação
foi demolida em 1910. Os terrenos à frente da alfândega foram preservados, formando o principal
logradouro público, no centro da cidade, junto ao rio.
Em 1910, foi elaborado um projeto de autoria do arquiteto Wilhelm Ahrons, para a realização de um
aterro que ampliaria as áreas de construção da cidade junto ao rio, com a construção de um cais de
granito para a instalação do porto. A área entre a antiga praça da Alfândega e o novo cais foi utilizada para
a construção de vários edifícios públicos; os dois primeiros foram destinados ao Correio e a uma nova
sede para a Delegacia Fiscal (ambas, repartições federais) e outros dois edifícios para abrigar repartições
estaduais, mais ao norte, em direção ao rio. Os edifícios da Delegacia Fiscal e do Correio foram projetados
pelo arquiteto Theodor Wiederspahn, que trabalhava nessa época no escritório de Ahrons.
Os dois edifícios foram construídos com características arquitetônicas semelhantes, sem serem
rigorosamente simétricos e apresentando, ambos, torres nas esquinas, junto à nova avenida que os
separava, denominada Sepúlveda – que passou a constituir um eixo entre a rua da praça e o cais. Nesse
ponto, foi situado o grande pavilhão metálico, com os portões de entrada para o cais de atracação
de navios destinados a passageiros. Formou-se assim um eixo monumental, bem como um conjunto
arquitetônico, que conferiu uma nova dimensão urbanística à praça da Alfândega.
O projeto inicial da avenida Sepúlveda pretendia estabelecer uma ligação com o chamado Alto da
Praia, isto é, a praça da Matriz, que era o outro grande conjunto urbanístico da cidade. A obra não foi
completamente realizada, mas, ainda assim, a relação espacial é evidente.
CARACTERIZAÇÃO DO VALOR
VALOR HISTÓRICO
O valor histórico desses dois conjuntos urbanísticos, com suas praças e seus edifícios, é evidente. Ambos
são os cenários de origem e formação de uma das principais cidades brasileiras e os seus edifícios,
documentos importantes de cada uma das etapas dessa formação e desenvolvimento. A excelente
documentação anexada à proposta examina circunstanciadamente esses aspectos. Seria recomendável,
talvez, que tivessem sido anexados outros documentos referentes às edificações, nas fases mais antigas.
O desaparecimento dessas obras, enquanto arquitetura, é apenas relativo, pois permaneceram os mesmos
sítios urbanos, com valores sociais equivalentes, de tal modo que as novas edificações ocuparam os
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Biblioteca Pública do Estado, Porto Alegre. Foto: Edu Lyra, 2006.
lugares das antigas, e a compreensão mais circunstanciada dessa continuidade de usos, com diferentes
formas no tempo, apenas reforça o reconhecimento da importância histórica desses conjuntos. Nas
decisões sobre o tombamento, deve pesar significativamente essa continuidade.
VALOR CULTURAL
A primeira dimensão a ser reconhecida é a qualidade dos projetos arquitetônicos. No largo da Matriz,
a principal obra é sem dúvida a do Teatro São Pedro. Não tanto por suas características específicas,
como pelo fato de ser remanescente de um conjunto que se destacava, no cenário nacional, como uma
solução arquitetônica original, que concretizava um enquadramento perfeito para uma grande praça.
Os outros dois edifícios, o Palácio Piratini e a Biblioteca Pública, cada um deles com monumentalidade
adequada para suas finalidades de uso, apresentam qualidades estéticas mais limitadas, sobre as quais
não seria oportuna uma avaliação subjetiva.
Paralelamente, é preciso reconhecer, nessas obras, suas qualidades como parte de um projeto urbanístico
que incluía necessariamente uma relação entre cada um deles e o conjunto da praça. E, nesse sentido, o
conjunto é de indiscutível excepcionalidade. É impossível avaliar os projetos arquitetônicos sem reconhecer
a importância que tiveram, em cada caso, as relações urbanísticas para definição desses projetos.
Ou seja, não é possível discutir apenas o valor cultural dos projetos arquitetônicos; é necessário avaliar
também o valor cultural do conjunto urbanístico.
A essa avaliação deve ser acrescida a do projeto paisagístico, principalmente o que corresponde à situação
atual da praça. A Instrução para o Tombamento prevê o tombamento apenas do Monumento a Júlio
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XV. Rio Grande do Sul
de Castilhos, sem se reportar ao projeto paisagístico, alterado pelas reformas sucessivas. Nosso ponto
de vista é que, ressalvadas certas limitações, o conjunto paisagístico, como se encontra, tem pelo menos
uma importância histórica que recomendaria sua preservação ou, pelo menos, o estabelecimento de
limites rigorosos para quaisquer alterações futuras.
Uma linha de raciocínio quase idêntica deve ser estabelecida no que se refere à praça da Alfândega. Os
dois edifícios de Wiederspahn, que estabelecem uma referência direta com as duas obras de Normann,
felizmente se conservam ambos. Foi também preservado o pavilhão de passageiros, com seu portão.
Também aqui é necessário reconhecer que o valor cultural da arquitetura, respeitado o seu contexto,
é indiscutível. Mas, também nesse caso, os edifícios foram projetados como partes de um conjunto
urbanístico, cujo valor supera o de suas partes.
O quadro se completou com a construção de outros edifícios importantes, na face oposta da praça,
junto à rua da Praia (rua dos Andradas), numa fase em que esse setor da cidade se tornou o centro social
indiscutível para as classes de mais alta renda, com cinemas, confeitarias etc. A preservação de alguns
dos edifícios públicos, como partes do cenário desse conjunto urbanístico, deve conduzir, em breve, a
uma discussão equivalente, a propósito do valor de outros edifícios da área, que já vêm sendo objeto de
medidas de proteção dos órgãos do estado e do município. Não se trata, no caso, de discussão sobre o
valor arquitetônico em âmbito estadual e municipal, ou em âmbito nacional. Mas de discussão sobre
sua participação, ou não, em um conjunto urbanístico, de interesse nacional.
262
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
O PARECER
Os critérios de caráter doutrinário, que orientaram no passado os processos de proteção dos bens culturais,
dificilmente eram utilizados para o reconhecimento do valor cultural de conjuntos urbanísticos. Os
critérios de tombamento se extremavam, quase sempre, na proteção e no tombamento de edifícios
isolados ou de cidades, ou mesmo de bairros inteiros, em algumas delas. As análises estavam, de início,
extremamente vinculadas às discussões sobre o valor artístico, como base para as discussões sobre o
valor cultural, o que promovia um estreito engajamento dos responsáveis, segundo as correntes críticas,
às quais se vinculavam.
Os vazios deixados por esse tipo de análise começaram a ser preenchidos a partir dos anos 1970, com
as análises do valor dos edifícios como partes de um patrimônio ambiental urbano. Essas análises
conseguiram um nível de neutralidade que permitiu a superação dos radicalismos anteriores, baseados
na discussão do valor artístico dos edifícios. Foram importantes, na difusão desses critérios, as
contribuições de alguns arquitetos, como o professor Carlos Lemos. Esses procedimentos entraram em
uso no momento em que as questões relativas à preservação dos bairros mais antigos tiveram que ser
incorporadas pelas práticas de planejamento urbano.
As mudanças na linguagem revelavam as mudanças nos critérios. De início, os tombamentos se
referiam às “cidades históricas”, revelando os limites dos critérios adotados: limite de um lado,
porque todas as cidades são históricas, todas são produtos humanos, organizadas no tempo. Não
existem cidades fora da História. De outro, porque essa expressão estaria enfatizando o que se
poderia entender como “cidades de valor histórico”, o que significava o reconhecimento de seu valor,
não no plano cultural, mas no plano histórico. A excepcionalidade jamais era analisada em termos
urbanísticos, pois não se reconhecia o urbanismo como critério de valor cultural. Ou, utilizando esse
critério com suas características extremadas, teríamos cidades pouco históricas ou muito históricas,
o que seria um absurdo.
Com o uso do critério de patrimônio ambiental urbano, foi possível abrir caminho para o reconhecimento
do valor de áreas edificadas como partes de um patrimônio urbano. Mas, no caso, a dificuldade maior
era (e continua a ser) estabelecer uma escala de valor, pois se tende a extremar a subjetivação desses
critérios que, em alguns casos, poderiam estar sendo estabelecidos a partir da votação “democrática”
dos habitantes do local. Nesse caso, se os habitantes de Ouro Preto ou Olinda deixassem de considerar
esses conjuntos urbanísticos como dotados de valor ambiental, os demais brasileiros estariam privados
do contato com essa parcela do patrimônio cultural do país. Ou, teremos que reconhecer, o valor
ambiental tem que ser estabelecido a partir de critérios mais objetivos.
O que estamos querendo destacar aqui é a possibilidade de realizarmos análises baseadas no valor
estético, partindo de projetos urbanísticos.
Em outros trabalhos, já temos discutido o conceito de conjuntos urbanísticos, geralmente denominados
conjunto urbanos. Nos últimos quarenta anos, desenvolveu-se sistematicamente uma discussão sobre
a existência ou não de projetos urbanísticos no Brasil colonial. Nesse caso, as discussões tendiam a
considerar que esses projetos urbanísticos estariam sendo limitados ao traçado do sistema viário, das
quadras, ruas e praças, com um conceito de urbanismo que poderíamos chamar de bidimensional.
Hoje, superado esse debate, é fundamental desenvolvermos estudos para o reconhecimento da história
dos projetos intraurbanos no Brasil, em suas três dimensões físicas e em suas dimensões simbólicas,
não apenas no Período Colonial, como no Império, na Primeira República e após 1930. O não
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XV. Rio Grande do Sul
reconhecimento da importância desses conjuntos não se deve apenas a uma desinformação, mas
também à falta de uma perspectiva histórica adequada, sobre a continuidade do desenvolvimento
urbano no Brasil.
A partir dos anos 1930, com a aceleração do processo de urbanização, a objetividade de análise foi
substituída pela miragem de um crescimento urbano contínuo, de abertura sempre crescente de novos
bairros, da chegada contínua de novos habitantes. Segundo esse ponto de vista, os bairros mais antigos
estariam sendo abandonados, como as terras foram sendo abandonadas pela agricultura itinerante,
principalmente nas regiões de cultura do café, na região Sudeste.
O reconhecimento do valor é o reconhecimento de uma responsabilidade, como é o reconhecimento de
um direito. O reconhecimento do valor histórico e cultural dos projetos urbanísticos implica também
necessariamente a compreensão da existência de sucessivos projetos para as mesmas áreas, socialmente
relevantes, com o reconhecimento da capacidade de integração entre os projetos dessas diferentes
épocas, de tal modo que as diferenças arquitetônicas puderam ser superadas pela reelaboração das
relações entre os espaços públicos e os espaços privados. E o controle dessas relações é necessariamente
um projeto. E esses projetos podem ser avaliados. Isto é, podemos estabelecer escalas de valor para a
identificação de suas qualidades culturais, assim como de suas qualidades técnicas.
As análises de valor devem nos permitir o reconhecimento da diversidade dos projetos urbanísticos, dos
espaços intraurbanos, dos conjuntos urbanos. Um critério importante há de ser o de separar o valor
arquitetônico dos edifícios que se integram em um conjunto do valor do projeto urbanístico. De um
lado, podemos ter conjuntos de edifícios extremamente simples, como os sobrados que existiram no
século XVIII, na Bahia, formando muitas quadras com soluções semelhantes, nas quais cada um dos
edifícios tinha pouca relevância arquitetônica, mas os conjuntos adquiriam caráter monumental.
De outro lado, são frequentes os exemplos como o da praça XV, antigo pátio do Carmo, no Rio de
Janeiro, bem como os das praças da Matriz e da Alfândega, em Porto Alegre, em que as referências
principais eram constituídas por edifícios de caráter monumental, cujos arquitetos pretendiam que
tivessem, em si mesmos, qualidades arquitetônicas independentes do projeto urbanístico em que
estavam inseridos.
As áreas das praças da Matriz e da Alfândega em Porto Alegre devem ser reconhecidas, sem dúvida,
como conjuntos urbanísticos, cujo valor supera os limites do valor arquitetônico de suas partes. À
semelhança do caso do conjunto da área da Luz em São Paulo, cujo processo foi recentemente aprovado
pelo Conselho Consultivo do Iphan, devemos propor o tombamento com base no valor cultural desses
conjuntos, bem como no seu valor histórico, pelo reconhecimento da sua excepcionalidade.
Esse dois conjuntos urbanísticos e suas respectivas praças, por um lado, são característicos das tradicionais
“cidade alta e cidade baixa”, de tantos núcleos urbanos brasileiros dos tempos coloniais. Por outro lado,
são certamente um caso excepcional. Nas vilas e cidades mais antigas, principalmente nas fundadas até
1650, o caso mais comum era a instalação da Matriz e da Casa de Câmara junto a uma praça, em local
elevado, dando origem à “cidade alta”, a partir da qual se desenvolvia a povoação. Depois de algum
tempo, com a ampliação das atividades econômicas voltadas para a exportação, tornava-se necessária a
instalação de uma área urbana em local adequado para atividades portuárias, onde terminavam por se
definir ruas e praças, com a formação da “cidade baixa”.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
No caso de Porto Alegre, foi o contrário. A povoação se formou de início ao redor da área da praça
da Alfândega e ao longo da rua da Praia, junto às instalações portuárias, com o trapiche e a alfândega.
Depois, com a elevação à condição de vila e sede da capitania, foram instaladas as sedes tradicionais
do poder civil e religioso, a Matriz, a Casa de Câmara e o Palácio do Governador, ao redor de outra
praça, em local elevado, dando origem à “cidade alta”. Essa inversão talvez se explique pela ameaça
constante de ataque dos castelhanos, inclusive porque a maior parte da população que ali se reunia
era proveniente de regiões próximas, como a Colônia do Sacramento e a Vila do Rio Grande de São
Pedro, que haviam sido tomadas pelos castelhanos. A escolha do sítio da praça da Matriz corresponde
certamente aos padrões das vilas em acrópole, fundadas pelos portugueses desde o século XVI.
O exame das plantas e das fotografias antigas permite perceber que a área escolhida não era apenas um
sítio elevado, mas confrontava com desníveis acentuados, em três de seus lados: o lado norte, que se
voltava para as ladeiras, que despencavam para a área da rua da Praia, a partir da rua do Riachuelo, em
cujo alinhamento foram depois construídos o Teatro São Pedro e a Câmara (Casa da Junta).
Na parte superior, pelo cume da colina, em cujos limites foram construídos o Palácio dos Governadores,
a Igreja Matriz e a Igreja do Espírito Santo. Do lado oeste, por um desnível tão acentuado que não
permitiu a ampliação da área da praça desse lado, como foi intenção da administração estadual durante
um período. Ficava, portanto, apenas um lado para ser defendido militarmente, com mais facilidade,
no caso de ataque castelhano. Esse mesmo esquema foi adotado por Luís Dias, ao tempo da fundação
da cidade de Salvador, em 1549, que se valeu, mesmo na cidade alta, de um sítio inicial cercado de três
lados por desníveis acentuados.
Trata-se, portanto, de uma solução típica de construção de núcleos urbanos ao redor de praças em
sítios muito específicos, de “cidade alta”, cercados por desníveis acentuados; e a construção de praças de
comércio, na “cidade baixa”, frente ao porto. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de exemplo excepcional,
de uma significativa inversão da ordem, na qual a praça de comércio antecedeu à construção da praça
na acrópole.
Ficam ainda umas poucas dúvidas. Nas iniciais dos processos, estariam sendo incluídas algumas obras
particulares, como o Solar dos Câmara (Casa do Visconde de Pelotas). A exclusão dessas obras, nos
termos dos perímetros sugeridos no parecer da doutora Louise Ritzel, permite uma rápida decisão sobre
o processo. Tratando-se no caso de conjuntos urbanísticos, como foi observado, seria possível uma
discussão posterior do interesse de inclusão de outros edifícios, também como partes dos conjuntos.
Considerações semelhantes podem ser feitas em relação às qualidades paisagísticas de parte das duas
praças, que poderiam ser objeto de estudos posteriores.
Outra dúvida que nos fica é a da conveniência de explicitação ou não, no caso Palácio de Piratini,
do pavilhão anexo, onde atualmente está instalada a casa civil do governo estadual. O prédio foi
construído a partir de 1773 para sediar a Tesouraria da Real Fazenda e, entre 1835 e 1967, ali funcionou
a Assembleia Provincial, depois a Assembleia Legislativa do Estado. No processo, não há referência
explícita a esse edifício. Seria conveniente que houvesse.
Discussões sobre esses tópicos não devem retardar a discussão sobre o fundamental, que neste
momento é a proposta de tombamento dos conjuntos urbanísticos, sobre a qual este relatório se
manifesta favoravelmente.
Em novembro de 2000.
265
XV. Rio Grande do Sul
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Santa T ereza – RS | 2010
PROCESSO: L.568-T-08
RELATOR: LUIZ PHELIPE DE CARVALHO CASTRO ANDRÈS
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 4 A 6 DE NOVEMBRO DE 2010
Foi com muita honra que recebi do senhor presidente do Iphan, Dr. Luiz Fernando de Almeida, por
meio da professora Anna Maria Serpa Barroso, no último dia 19 de outubro de 2010, a incumbência
de examinar e opinar sobre este processo, que trata do pedido de tombamento do “Núcleo Urbano de
Santa Tereza, Município de Santa Tereza, Estado do Rio Grande do Sul”.
Meu primeiro passo foi conhecer a cidade e os sítios no entorno. Solicitei ao Iphan as condições para
me deslocar de São Luís do Maranhão até aquele município, havendo sido solicitamente acolhido pela
equipe da superintendência local, através de sua titular, a arquiteta Ana Lúcia Goelzer Meira.
Na viagem, contei com a orientação dos arquitetos Ana Maria Beltrame e Geraldo Vieira da Costa, que
me conduziram de Porto Alegre até Santa Tereza. A rota das estradas que percorremos, distante 147
quilômetros da capital, nos introduz na esplêndida paisagem do Vale dos Vinhedos, para finalmente
descortinarmos a serra verdejante, onde se intercalam resquícios da mata original e de áreas agricultadas,
incluindo-se as extensas plantações de videiras e áreas urbanas de cidades que tiveram origem no século
XIX, período da colonização pelos imigrantes.
O trajeto que fizemos em apenas duas horas de carro por autoestradas de asfalto substitui o antigo
percurso dos rios, por sua vez, então utilizados como vias de acesso pelos desbravadores desse território,
em vários dias de sacrificada viagem a bordo de pequenos vapores que subiam desde Porto Alegre,
contrariando a correnteza dos rios. É esse vale que serpenteia o rio Taquari, em cujas margens se assenta
a cidade de Santa Tereza, o objeto desta proposição.
E como a se confirmar simbolicamente a relação entre paisagem e cultura, chamou-me a atenção logo
de início a presença marcante de um tipo de árvore – os plátanos, espécie milenar, cuja ocorrência se
267
XV. Rio Grande do Sul
perde na névoa dos tempos: as notícias mais antigas dos compêndios de botânica nos informam que
algumas mudas haviam sido levadas para a Itália, cerca de 340 anos A.C.
Pois bem, surpreendi-me de aí encontrar os plátanos, normalmente de grandes copas e sombra
acolhedora, que podem ser observados na paisagem urbana de metrópoles europeias como Londres
e Roma e em cidades de Portugal e Espanha. Aqui, trazidos e aclimatados pelos colonos italianos,
tiveram sua função original adaptada para se tornarem úteis ao plantio das uvas, escorando e marcando
a linha dos parreirais, funcionando como que sentinelas ou baluartes das videiras.
O gentílico é santa-terezense, brasileiros que até hoje ainda têm no talian um idioma alternativo, que
representa uma versão sul-brasileira do vêneto e que ainda é falado principalmente em Caxias do Sul,
Garibaldi, Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul, Santa Tereza e outras cidades e lugarejos da região
denominada “italiana” do Rio Grande do Sul.
De início, ainda na metade do século XIX, a colonização havia sido de origem predominantemente
alemã, mas se expandiu apenas nas terras baixas. Em 1875, chegaram os primeiros grupos de poloneses
e italianos. Estes últimos vindos principalmente da região do Vêneto, mas também do Trentino e do
Friuli, e que passaram a povoar a chamada Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul.
Ali os novos colonos passaram a viver da plantação de milho, trigo e outros produtos agrícolas, mas,
sobretudo introduzindo a vinicultura, que é hoje a base da economia de diversos municípios gaúchos.
De 1875 a 1914, cerca de cem mil imigrantes se estabeleceram no Rio Grande do Sul. Em 1916, foi
criado o distrito de Santa Tereza de Bento Gonçalves, somente emancipado como município em 1992.
Ao lado da agricultura, outra forma de atividade, de cunho fabril e artesanal, trazida pela vocação
individual e influenciada pela formação de origem de muitos dos imigrantes, também se tornou presente
e foi marcada em especial pela produção de vinho e pelo beneficiamento de produtos agropastoris,
como couro, banha, milho, trigo e fumo.
O rio Taquari, que banha Santa Tereza, foi uma das principais vias de acesso dos imigrantes, ao lado dos
rios Caí, Gravataí e Guaíba. De fato, a questão do acesso fluvial será fundamental para o entendimento
da evolução urbana da cidade, que logo se tornou um núcleo mais desenvolvido do que os demais,
pela qualidade das terras férteis e, principalmente, por estar situada em sítio próximo ao último porto
acessível aos imigrantes, como entreposto por onde circulavam as produções agrícolas das demais
colônias localizadas rio acima.
Em Santa Tereza, fomos inicialmente recebidos pelo Sr. César Augusto Prezzi, descendente de uma das
antigas famílias de colonizadores. Atualmente, entre tantas atividades, é um dedicado pesquisador, que
há décadas realiza um esforço pessoal, em várias esferas nacionais e internacionais, pelo reconhecimento
do patrimônio cultural de sua terra.
O fato é que, já nesse primeiro contato, o Sr. Prezzi nos forneceu minuciosas explicações sobre os
conceitos de “linha” e de “colônia”, no contexto da estrutura fundiária adotada pelo governo brasileiro
na ocupação das terras reservadas para a colonização.
Logo chegamos até o gabinete do prefeito Diogo Segabinazzi Siqueira, que por sua vez nos aguardava
para uma reunião de trabalho, com a participação da secretária de Educação do município, Sra.
Maristela Titton Prezzi, e da diretora do Departamento de Turismo, Sra. Nadia Panizzi.
Encontrar a administração municipal instalada em um dos mais tradicionais e imponentes edifícios da
cidade, devidamente restaurado, adaptado e bem conservado, nos confirma a alentadora informação
de que o poder público local não só está afinado com os propósitos de preservação do patrimônio
arquitetônico como participa de um verdadeiro clamor da comunidade pelo tombamento.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
A tarefa de elaborar o parecer foi mais uma vez facilitada pela qualidade dos estudos que se encontram
no Dossiê de Tombamento. No entanto, é minha obrigação oferecer, aos conselheiros e às conselheiras,
uma síntese o mais possível fiel do que me foi dado examinar nas mais de oitocentas páginas do
processo, bem como do que pude testemunhar, durante minha visita ao local, de forma a contribuir
para que possam avaliar e estabelecer um juízo sobre esta proposta.
Inicio pela resenha do dossiê. Organizado com participação de técnicos do Depam e da 12a SR do
Iphan, é amparado em minuciosos estudos, como aqueles elaborados pela Universidade de Caxias do
Sul, na pessoa da professora Cleodes Maria Piazza Ribeiro, pesquisadora do Projeto Ecirs – sigla que
significa Projeto dos Elementos Culturais das Antigas Colônias Italianas no RG do Sul –, que, entre
outros elementos valiosos, registrou a história da criação da Vila de Santa Tereza de Bento Gonçalves,
contada por meio dos aspectos geográficos, políticos, sociais e econômicos que deram origem a uma
peculiar forma de ocupação.
No dossiê sobressaem ainda as contribuições das equipes lideradas pelos professores Sandra Fávaro Barella,
Paulo Rogério de Mori e Dóris Baldissera, integrantes do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de Caxias do Sul, e a participação especial das arquitetas Marina Cañas Martins e Terezinha
de Oliveira Buchebuan, integrantes do Escritório Técnico do Iphan em Antônio Prado.
Também se revelaram fundamentais os estudos realizados pelo Taliesem – Escritório Modelo de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Caxias do Sul, com sua equipe competente e dedicada de
acadêmicos de arquitetura e urbanismo.
Trata-se de uma coleção de documentos, ilustrados com rica iconografia de fotos, mapas e desenhos,
que traduzem a importância do patrimônio cultural representado no acervo de arquitetura, urbanismo,
ambiental e paisagístico, dos quais passo a me ocupar.
O primeiro volume contém o processo propriamente dito (com 224 páginas), que se inicia em 1º de
outubro de 2001, com a solicitação de tombamento, na forma do ofício n. 213/2001, datado de 9
de agosto de 2001, assinado pelo então prefeito municipal de Santa Tereza, Sr. Luiz Carlos Riboldi, e
dirigido à Dra. Débora Regina Magalhães da Costa, então superintendente regional da 12a SR/Iphan,
no Rio Grande do Sul. Portanto, estamos tratando de um processo que se iniciou há exatos nove anos.
A solicitação se referia ao tombamento “do conjunto arquitetônico do município de Santa Tereza” e
manifesta desde então “todo o interesse em preservarmos nosso patrimônio histórico”.
Segue-se a pronta resposta de acatamento por parte da 12a SR, datada de 8 de outubro de 2001, onde a
superintendente informa sobre a abertura de processo administrativo para a finalidade do tombamento
e propõe ações conjuntas Município/Iphan, a fim de coligir documentos e dados necessários à instrução
do processo e elaboração do dossiê.
Em 8 de janeiro de 2003, novo ofício do prefeito Luiz Carlos Riboldi dirigido à SR/Iphan vem reiterar
o forte interesse dos munícipes no reconhecimento nacional a ser conferido pelo Iphan e em reclamar
por maior agilidade nos procedimentos.
A resposta ao apelo do prefeito surge no processo em 26 de agosto de 2005, com o encaminhamento ao
Depam do dossiê de “Estudos para o Tombamento do Conjunto Histórico, Arquitetônico e Paisagístico da
Cidade de Santa Tereza, Estado do Rio Grande do Sul”, por parte do arquiteto José Leme Galvão Jr. Em
01.09.2005, cópia da mesma documentação foi encaminhada à 12a SR, a título de colaboração do Depam.
Segue-se no corpo do processo a coletânea de estudos a que se refere o arquiteto José Leme Galvão,
sob o título de “Relatório Parcial em agosto de 2005”, e também o “Relatório Impressionista do
Sítio Histórico da Cidade de Santa Tereza”, do mesmo autor, que realizou duas viagens ao local para
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XV. Rio Grande do Sul
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Patrimônio Histórico, em parceria com o Iphan; ou ainda sua participação no concurso público de
valorização turística, realizado pelo IAB para a cidade. Todas essas iniciativas, bem como a própria
existência da Aphat-ST, soam como mais um inequívoco testemunho de protagonismo da sociedade
local, por intermédio de ações não governamentais em prol da preservação do acervo.
Na sequência encontramos, já com a data de 27 de abril de 2007, novo ofício de César Augusto
Prezzi, dirigido ao presidente do Iphan, Dr. Luiz Fernando de Almeida, agradecendo pela visita à
cidade, sem perder o ensejo para mais uma vez solicitar a agilização do tombamento, “que é aguardado
ansiosamente pela população, proprietários e comunidade descendente de italianos de toda a Serra
Gaúcha”. O ofício ressalta ainda a importância da assinatura de um tratado de “Gemellaggio”, com San
Biaggio di Callata, na província de Treviso, região do Vêneto, Itália.
Sobre esse tratado e a escolha da cidade, cabe informar que, na vista panorâmica do centro da cidade,
destaca-se a torre da Matriz da Igreja de Santa Tereza, de 45 metros de altura, possuindo um relógio e
encimado por um campanário com três sinos e uma cruz. Trata-se da réplica de uma torre da cidade
de San Biaggio di Callata, aqui erigida, em 1927, pelo arquiteto Massimiliano Domenico Cremonese,
em homenagem a sua terra natal.
Em todo o estado do Rio Grande do Sul, essa torre tornou-se reconhecida como um dos exemplares
mais significativos da arquitetura religiosa de influência italiana e, daí, o acordo de cidades irmãs, que
representa sempre um tratado de cooperação entre cidades de países diferentes, em uma relação que
assume a forma de intercâmbio sociocultural.
Em 3 de outubro de 2008, o diretor do Depam, no memorando n. 259, solicita formalmente à gerente
de Documentação Arquivística e Bibliográfica, Sra. Francisca Helena Barbosa Lima, a abertura do
processo de tombamento do “Núcleo Urbano de Santa Tereza”. Solicitação esta reiterada no dia 5 de
novembro de 2008.
Em 28 de novembro de 2008, o memorando n. 281 da Gedab/Copedoc informa a abertura do
processo, ao tempo em que foram providenciadas algumas medidas que se tornaram necessárias para a
reordenação da documentação, conforme as normas vigentes.
Segue-se o excelente “Parecer Técnico sobre Proposta de Tombamento da Paisagem Urbana de Santa
Tereza”, elaborado por Maria Regina Weissheimer, arquiteta e urbanista do Depam. Apoiada em sólida
base cartográfica referenciada e documentação fotográfica de alta qualidade, ela trabalha com base em toda
a documentação do dossiê, mas enriquecendo-a e complementando-a com suas avaliações e sugestões.
Em seu detalhado parecer, a arquiteta apresenta uma síntese histórica da imigração no Brasil, realiza
um apanhado dos estudos de acautelamento e tombamentos federais relativos à imigração e trata da
evolução histórica. Descreve minuciosamente todas as etapas da evolução urbana da cidade, utilizando-
se de uma sequência de mapas perfeitamente escalonados no tempo. Avalia em detalhes o meio natural
e toda a paisagem no entorno e as suas relações com o conjunto de arquitetura urbana.
Trata da caracterização morfológica, urbanística e arquitetônica. Faz uma análise da proposta e elabora
as considerações gerais em que, de forma bem objetiva, apresenta uma proposta de adequação do
polígono de tombamento e o redesenho da poligonal do entorno, concluindo com sua indicação
favorável ao tombamento. Portanto, a definição dos perímetros de tombamento e poligonal do entorno
é fruto de demorados estudos e avaliações em vários momentos por parte do Iphan, em colaboração
com os técnicos das demais instituições parceiras na construção do dossiê.
Segue-se o encaminhamento do processo ao procurador federal junto à 12a SR/Iphan, Dr. Oscar
Tomasoni Monteiro de Barros, que, após minuciosa análise dos autos, elabora seu parecer,
271
Vista de Santa Tereza. Foto: Arquivo Iphan.
confirmando aprovação ao tombamento proposto, pelos méritos das manifestações técnicas nele
contidas e pela integral observância dos aspectos legais e jurídicos do processo. E conclui pelo seu
encaminhamento a este Conselho Consultivo, submetendo-o antes à consideração do procurador-
chefe e do presidente do Iphan.
Em 29 de junho de 2009, a superintendente Ana Lúcia Goelzer Meira encaminha o processo ao Dr.
Antônio Fernando Leal Alves Nery, procurador-geral do Iphan em Brasília, já com as competentes
minutas de aviso de notificação, a serem publicadas em jornais de grande circulação.
Em 14 de agosto de 2009, o senhor procurador-geral aprova o parecer do procurador Dr. Monteiro de
Barros e salienta que os valores a serem reconhecidos no Tombamento da Paisagem Urbana de Santa
Tereza, são o histórico, o etnográfico e o paisagístico.
Seguem-se os comprovantes de publicação do edital de notificação aos proprietários das áreas que são
abrangidas pelo polígono de tombamento.
Essa comunicação encontra-se comprovada também através das cópias dos ofícios dirigidos em 31 de
agosto de 2009 pelo presidente do Iphan, Dr. Luiz Fernando de Almeida, dando ciência aos seguintes
destinatários: Sra. Rose Carla Silva Corrêa, gerente regional da Secretaria de Patrimônio da União-RS;
Sra. Yeda Rorato Crusius, governadora do Rio Grande do Sul; Sr. Diogo Segabinazzi Siqueira, prefeito
de Santa Tereza.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Em 1° de setembro de 2009, o processo é encaminhado à
secretária deste Conselho, professora Anna Maria Serpa
Barroso, incluindo-se nele um último e significativo
documento: um Livro de Atas, que foi entregue
formalmente na 12a SR do Iphan pela Associação de
Moradores de Santa Tereza, contendo centenas de
assinaturas recolhidas na comunidade em apoio ao
tombamento federal do centro histórico, desde que
houve notícia na imprensa.
Em 19 de outubro de 2010, o processo foi encaminhado
pela senhora secretária do Conselho Consultivo do Iphan
a este conselheiro, com a solicitação de análise e parecer
Passo a descrever agora, na forma resumida, o conjunto
de anexos ao processo e que traduzem importantes
aspectos da questão. No primeiro encontramos excelente
documento do projeto Ecirs e do Taliensem, preparado
em conjunto pelas equipes da 12a SR/Iphan-RS e da
Universidade de Caxias do Sul, que resume em apenas
38 páginas, de forma objetiva, todo o conjunto de
informações contidas no dossiê.
Esse mesmo Anexo l é enriquecido pelo conteúdo dos
tomos l, 2, 3 e 4, a saber:
> O Tomo l contém “Paisagem Urbana de Santa Tereza”:
trata-se de excelente registro fotográfico dos principais
monumentos e logradouros. Datado de julho de 2005
com o selo da 12 SR/Iphan, apresenta fotos de autoria de Eduardo Hahn e Marina Cañas
a
273
XV. Rio Grande do Sul
274
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Em Porto Alegre, sobrevinha novo embarque em pequenas e precárias embarcações para a derradeira
viagem de subida dos rios em direção às terras prometidas. E, finalmente, ao chegarem ao último porto
fluvial, enfrentavam a última etapa, subindo a serra a pé ou em lombo de burros para atingir a colônia
designada, onde os esperavam novamente galpões ou pequenas casas de madeira e improvisados
barracos, precariamente construídos para as famílias.
Portanto, o caso em epígrafe é precioso para a compreensão de todo o fenômeno sociológico e
humano da formação de Santa Tereza. Como uma família, após passar por todas essas provações,
chega a construir uma edificação cuja história hoje reproduz a trajetória de superação que muito
se repetiu? O caso da família Amadeo Stringhini e desse exemplar de casa típica da região são
emblemáticos. Quase um padrão, de tão similar, para dezenas de famílias imigrantes.
Assim, estão aí pesquisadas as funções que a casa teve ao longo desses anos, de uso misto residencial
e comercial, mas se destacando das demais pelo fato de que o Sr. Stringhini abrigou também em
sua casa comercial a sede de um estabelecimento bancário, para o atendimento às famílias da
colônia, onde a palavra do dono era a garantia dos depósitos em dinheiro a ele confiados.
A pesquisa detalha com rigor as características da casa, de porão alto, com base de grossas paredes
de alvenaria de tijolo artesanal e pedra basáltica encontrada na região, assoalhos de madeira, bem
como trata de seu estilo arquitetônico de influência neoclássica. O estudo é ainda revelador de
hábitos e costumes que se generalizaram e amadurecem nesse processo radical de transposição
de comunidades inteiras de um país a outro, em relativo pouco tempo. Mas, sobretudo, revela
a alma dessa casa, identifica antigos pertences, objetos de uso cotidiano, utensílios domésticos
que agora são peças de um museu ali instalado e que contam como se fazia a rotina no dia a dia
daqueles novos brasileiros.
Esse trabalho enriquece e lança luzes esclarecedoras sobre o assunto do dossiê. Realizado no
âmbito da Universidade Luterana do Brasil, da cidade de Canoas, em 2006, traz 95 páginas de
textos, iconografia e cartografia, e é assinado por Amarilda Maria Casagrande Zorzi, Matheus
Pretto, Olavo de Oliveira Caruccio e Wladimir Lampert.
> O Tomo 4 contém um DVD com dois documentários sobre a cidade de Santa Tereza e a
região, mostrando com ótima narração e excelente qualidade de imagens aspectos da atualidade,
do que resultou de fato dessa rica experiência humana. Assim, está aí focalizada a próspera e bem-
sucedida experiência das cantinas ou de pequenas vinícolas artesanais e caseiras que funcionam
nos porões altos, produzindo vinhos “nacionais” de excelente qualidade.
Esses documentários, além dos aspectos da arquitetura e do urbanismo, mostram a riqueza do
patrimônio imaterial, das festas populares, sempre animadas pelo som dos acordeões. Também
revelam aspectos da habilidade artesanal herdada dos imigrantes, com obras em tecido, madeira e
vime; das práticas de gastronomia da culinária típica de tradição italiana, adaptada e influenciada
pela abundância de produtos que foram cultivados no período da colônia, preparados em fogões
a lenha, como a polenta, o raditi, o pão, a sopa de capeletti.
São duas produções de ótima qualidade de imagens. O primeiro para o programa da série Rota 36,
da TVCom, de Porto Alegre; o segundo, denominado Uva e vinho: região turística e patrocinado
pelo Sebrae, foi produzido pela empresa Videomakers.
Já o Anexo 2 do processo apresenta documentação diversa, mas nem por isso de menos importância,
como as cópias de publicações produzidas na Itália e que são noticiários das realizações dos emigrados.
Revelam o olhar na perspectiva dos que ficaram na Itália, mostrando que eles acompanhavam com
orgulho as realizações de seus descendentes que vieram para o Brasil.
275
XV. Rio Grande do Sul
Pelos textos, é possível constatar que também lá eles procuram recuperar a trajetória dos que vieram.
Têm os nomes das famílias, mas já não os encontram de verdade. O que há por aqui é uma nova
gente, brasileira. Seus traços originais e hábitos cotidianos passaram por um processo de adaptação e
mudanças. Por mais que a saudade e a nostalgia busquem as referências de origem, o que encontram é
uma cultura de aclimação. E assim como mudaram, eles gravaram na natureza a marca de sua presença
laboriosa e de seu forte vínculo com a nova terra.
Assim como ocorreu na paisagem natural, em que os “plátanos» passaram a ter uma nova função e se
alteraram na forma, os imigrantes construíram uma cultura nova e inédita. Não é mais a Itália, não é
mais Alemanha, nem a Polônia e nem Portugal. É diferente do que foi na sua terra natal e diferente do
solo bruto que encontraram no final do século XIX. Estamos tratando de algo novo, do resultado de
todos esses povos reunidos, uma mistura que contribuiu para o surgimento de uma nação nova, rica
pela sua diversidade cultural, que é o Brasil.
Também no Anexo 2 encontra-se a valiosa pesquisa realizada por César Prezzi sobre a origem das
gaitas (acordeons), que se tornaram como espécie de símbolo musical da região e instrumento oficial,
pois em Santa Tereza foi localizada a “Casa Diane Ferri”, que abrigou, em 1910, a primeira fábrica
desse instrumento no país, de propriedade de Cesar Appiani e Maria Savoia, que se notabilizaram pela
excelência dos instrumentos que fabricavam.
O estudo reconstitui a origem dessa tradição na cidade de Cremona, onde tradicionalmente eram
fabricados os Acordeões Savoia, famosos em toda a Europa. Depois de Cesar e Maria em Santa Tereza,
surgiram nos municípios vizinhos as fábricas Veronese, Somenzi, Todeschini e Scala, que se tornaram
mundialmente reconhecidas pela qualidade dos seus instrumentos, culminando com a fábrica de
acordeons Universal Sá, que se tomou a primeira grande exportadora do país, consolidando de vez na
região da serra gaúcha um polo de fabricação desses instrumentos de música.
O Anexo 2, com 167 páginas de excelentes documentos, se encerra com um estudo sobre a caracterização
geológica do núcleo histórico do município de Santa Tereza. Realizado pela equipe do Laboratório
de Geologia da Universidade de Caxias do Sul, por requerimento da Aphat-ST, com a finalidade de
fundamentar esse dossiê, apresenta ao final os dados conclusivos sobre a geologia, a geomorfologia, os
recursos hídricos e os solos da cidade.
Cidade esta que se revela solidamente assentada sobre camadas de rochas de origem vulcânica
denominadas de «basalto», grandemente utilizadas nas estruturas das casas e também nos calçamentos
de paralelepípedos. Seus habitantes não se esqueceram de reconhecer o papel estratégico de aplicação
dessa matéria-prima valiosa. Bem ao lado da torre do campanário está fixado um enorme menir de
basalto, à guisa de monumento megalítico.
O Anexo 3 consiste em um livro de Mario Lepore e Cecília Santinelli, que registra o conteúdo do Curso
de Turismo Ambiental, Patrimônio Histórico, realizado em Santa Tereza no ano de 2006, financiado
pela Direção Geral para a Cooperação ao Desenvolvimento do Ministério de Assuntos Exteriores da
Itália, no âmbito do Programa de Tutela, Gestão e Valorização do Patrimônio Cultural dos Países
Latino-Americanos, em parceria com a Prefeitura de Santa Tereza, Aphat e Instituto Ítalo-Latino-
Americano (IILA), sediado em Roma.
O Anexo 4 também consiste em uma publicação, onde se reporta o Encontro Anual do Fórum Mundial
de Turismo para a Paz e Desenvolvimento Sustentável, ocasião em que Santa Tereza despontou como
um polo promissor e se inseriu em uma rede nacional.
E para finalizar, o Anexo 5, composto de uma coleção de folhetos e outros materiais impressos que
apresentam referências importantes a eventos de grande significado para a cidade.
276
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Assim, é que passo a registrar aqui as impressões pessoais que colhi da minha visita à cidade histórica
de Santa Tereza.
Como nos demais exemplares de cidades que já são reconhecidas na lista do nosso patrimônio nacional,
esse acervo tem a face do indiscutível valor histórico, urbanístico, arquitetônico e paisagístico. Contando
com menos de 1.800 habitantes, Santa Tereza, como a grande maioria das cidades tombadas, deve (de
forma paradoxal) às décadas de recessão econômica o fato de haver conservado a sua estrutura urbana
e as edificações. De haver mantido certas qualidades ambientais que se perderam para sempre na maior
parte de nossas cidades.
Pois, ao tempo em que foi dotada de todos os elementos de infraestrutura necessários ao conforto da vida
em comunidade, a segurança e a tranquilidade dos cidadãos, tornava, e torna até hoje, desnecessária a
construção de muros e cercas entre as casas, e isto determina um cenário urbano de qualidade difícil de
encontrar na grande maioria das cidades brasileiras, em que vivemos enclausurados por detrás de muros,
grades e toda forma de barreiras arquitetônicas que nos tolhem a visão e as possibilidades de convivência.
Dentre as razões para o tombamento, podemos atentar para a qualidade do conjunto de arquitetura
urbana, onde se destaca a preservação do gabarito original, que resulta na manutenção da horizontalidade,
tendo como pano de fundo, em qualquer direção que se olhe, a paisagem verdejante das encostas e dos
morros que a limitam entre o rio Taquari e os arroios Marrecão e Vinte e Dois, além de possuir um
traçado urbano intocado, com sua malha orientada no sentido dos pontos cardeais. Ao mesmo tempo,
na avaliação dos inventários e dados revelados nos estudos, não obstante algumas descaracterizações
já ocorridas em alguns dos imóveis, pode-se constatar que a maioria está ainda bem-caracterizada, ou
apenas parcialmente afetada por intervenções.
Exemplos hoje cada vez mais raros, como o de Santa Tereza, enfatizam que as questões relacionadas à
preservação do patrimônio ambiental urbano nos levam a outro nível de motivação para a preservação
do patrimônio cultural. Trata-se da questão da qualidade de vida como argumento para a preservação
e reforçando a necessidade do tombamento, especialmente quando está sob forte questionamento o
modelo de cidades que estamos legando aos nossos descendentes.
Por outro lado, há uma série de iniciativas que demonstram o excelente nível de consciência que a
comunidade possui e manifesta em relação ao acervo do patrimônio cultural, dentre as quais vale
mencionar o forte protagonismo das instituições municipais, das entidades não governamentais e da
sociedade civil, ao reivindicar com ênfase a conclusão deste processo de tombamento.
No que se refere ao bom aproveitamento de suas potencialidades turísticas, a cidade, desde 2004, integra
uma rede de destinos formalmente estabelecida pelo Fórum Mundial de Turismo, ao lado de outras
marcantes cidades que são integrantes da lista do Patrimônio Nacional, como Paraty, Diamantina,
Goiás Velho, Salvador, Olinda e São Luís, entre outras.
Em 2006, a cidade foi escolhida para as gravações do premiado filme de Jorge Furtado denominado
Saneamento básico, cuja produção envolveu dezenas de cidadãos santa-terezenses, que assim se orgulham
de haver contribuído para a divulgação de sua terra em todo o país.
Nas últimas décadas, a região tornou-se cenário de um intenso plantio de uvas. As vinícolas gaúchas
são premiadas internacionalmente, em razão da alta qualidade de seus vinhos e espumantes. O estado
é privilegiado pela sua condição geoclimática, estando situado no início da faixa entre os paralelos 30°
e 50°, considerada ideal para a produção de uva vinífera. Isso lhe permite a produção de cepas nobres
de uvas europeias, como merlot, chardonnay e cabernet sauvignon, entre outras. A uva e o vinho gaúchos
são produzidos sob as melhores técnicas disponíveis e condições tecnológicas avançadas, a exemplo das
melhores regiões vinícolas da Europa.
277
XV. Rio Grande do Sul
Tudo isso atrairá doravante e cada vez mais intensamente a movimentação turística. Entretanto,
cidadãos e autoridades locais possuem a percepção de que este processo pode representar também
uma ameaça e reconhecem como serão importantes os mecanismos de proteção capazes de preservar o
legado de sua rica trajetória, que nasceu e cresceu sob o manto de uma natureza de rara beleza e força.
Neste ponto, podemos celebrar a opção recomendada para o perímetro de tombamento do núcleo
urbano e a proteção de uma larga extensão definida na poligonal do entorno, ao tomar como exemplo
(que certamente estará sendo evitado em Santa Tereza) o caso de algumas das cidades históricas de
Minas Gerais. Estas – cujas magníficas paisagens de casarios originalmente emoldurados pelas verdes
matas que recobriam as montanhas de ferro – foram sendo rapidamente desfiguradas sob a ocupação
desordenada das áreas lindeiras por uma invasão de lajes de concreto e antenas parabólicas, ficando
perdida para sempre sua paisagem, que hoje pode ser contemplada apenas nas telas de Guignard. O
suficiente para que Carlos Drummond de Andrade, natural de lá, pudesse um dia constatar: “Itabira
é um quadro na parede/ Mas como dói!”. Ou, ainda, em seu lamento mais nostálgico: “Quero voltar
para Minas, Minas não há mais!”.
A pequena Santa Tereza é lição de civilidade e de civilização, e ainda conserva o que já perdemos na maior
parte de nossas cidades. Esta talvez seja a razão subjacente de todo esforço e empenho na preservação
do patrimônio cultural. Mais uma grande motivação que também nos recomenda pela aprovação deste
tombamento. Reitero aqui, mais uma vez, que, em nossa modesta contribuição como integrantes do
Conselho Consultivo do Iphan, precisamos lançar mão dos recursos que estejam ao nosso alcance para
salvaguardar exemplos tão raros e preservar o legado civilizatório de cidades como Santa Tereza.
De tudo que se informa nesse dossiê, não seria justo que tal acervo de urbanismo, arquitetura e paisagem
natural, testemunha inconteste da saga de ocupação de extensões do território brasileiro, permanecesse à
margem das atenções do Iphan, instituição nacional que visa a preservação da memória e da história do país.
Entretanto, não podemos esquecer que este ato representa mais uma grande responsabilidade a ser
assumida pela instituição, não só no sentido de não frustrar as expectativas daquelas comunidades, como
objetivamente pelo fato de que passa a ser administrativa e legalmente responsável pela preservação
daqueles bens.
Torna-se, portanto, necessário envidar esforços para assegurar o atendimento às recomendações do
Dossiê de Tombamento, especialmente no que tange às áreas que foram criteriosamente definidas
como de tombamento e de entorno, bem como na condução de trabalhos de proteção do acervo,
na medida em que favoreça parcerias entre a comunidade, organizações não governamentais, órgãos
municipais, estaduais e o Iphan.
Assim, entendo que, do ponto de vista formal, o processo está generosamente instruído e atende aos
requisitos técnicos, jurídicos e burocráticos exigidos pela regulamentação do Iphan, mais especificamente
pela Portaria n. 11, de 11 de setembro de 1986.
Neste caso, almeja-se mais uma vez fazer do tombamento federal uma oportunidade de tratar a questão
de forma mais completa, consolidando a metodologia de uma visão sistêmica, do olhar para o todo, na
ótica de uma perspectiva integrada de um território que guarda os testemunhos de uma rica história,
plena de episódios importantes da ocupação da região Sul do país.
Para concluir, gostaria de registrar a impressão que guardei ao final de minha visita de reconhecimento,
assim como os meus agradecimentos pela oportunidade de haver conhecido a cidade de Santa Tereza.
Foi uma breve estada de dois dias, mas tive a oportunidade de conversar com autoridades e também
com as pessoas com quem ia encontrando em minha caminhada. Um grupo de pequenos estudantes
ou uma família que se preparava para subir a serra. A senhora dona da pousada, o proprietário do
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
restaurante ou o dono da venda. Mas, ficou para sempre, tenho certeza, gravada em minha memória
afetiva, a longa conversa com o jardineiro Sr. Cerilo Baggio, que dedicou muitos anos de sua vida a
cuidar da praça principal, aos pés do campanário.
Disse a ele que o procurara pela certeza de que, no depoimento do jardineiro, iria encontrar o apreço
que tem um cidadão pela natureza e pela história de sua cidade. Revelei em tom de segredo o que estava
fazendo ali. Era uma última visita de reconhecimento e eu teria a enorme responsabilidade de preparar
um relatório para solicitar a este egrégio Conselho a necessária aprovação para que, finalmente, sua
cidade fosse reconhecida como algo tão importante, que o seria para todo o Brasil.
Caminhamos juntos pela praça e ele me falou com emoção sobre sua família, uma das que chegaram
primeiro da Itália em busca de um sonho. Pude perceber em seu semblante que, aos quase setenta anos,
é um homem com as marcas de muitas lutas, mas, ainda com um lampejo de alegria nos olhos, contou
sobre os longos anos em que cuidou de canteiros e jardins.
Ao fazê-lo, apontava com discreto orgulho cada uma das árvores que plantou (a cerejeira, a canela,
o cedro, o araçá, a gabiroba, o cipreste, a amora e a figueira, a castanha e a oliveira) e as espécies
de pássaros que as frequentam (o chupim, o joão-de-barro, o sabiá ferreiro, o canarinho da terra, o
pintassilgo e o tico-tico).
Disse-me que também foi o sineiro da Matriz. Então, escalamos devagar os degraus de madeira da torre
até os altos do campanário, onde, retomando o fôlego da subida, no ar frio e puro do vale, descreveu
reanimado como eram os toques de sinos para os diversos momentos de dor ou de alegria. Depois, nos
calamos, e de cima pude olhar para os quatro cantos do mundo, colher minhas próprias lembranças
fotográficas e me impressionar com o silêncio, o sossego e a beleza do cenário.
Pude também melhor compreender como o conjunto urbanístico e arquitetônico da pequena cidade
de Santa Tereza, imerso na paisagem do vale do rio Taquari, na confluência dos arroios Marrecão e
Vinte e Dois, compõe um cenário de excepcional harmonia entre o patrimônio erigido pela mão do
homem e o ambiente natural que o cerca, e a perfeita combinação destes elementos constitui um
habitat saudável para a gente que ali vive e trabalha.
Sendo assim, e acompanhando
as recomendações e os pareceres
do Departamento de Patrimônio
Material e da Procuradoria Federal
que integram os autos deste
processo, declaro-me favorável ao
tombamento desse acervo e à sua
consequente inscrição nos Livros
de Tombo: 1) Arqueológico, Etno-
gráfico e Paisagístico; 2) Histórico,
sob a denominação de “Núcleo
Urbano de Santa Tereza, Municí-
pio de Santa Tereza, Estado do Rio
Grande do Sul”.
Rio de Janeiro,
5 de novembro de 2010.
Aspecto do núcleo urbano de Santa Tereza. Foto: Arquivo Iphan.
279
XVI. São Paulo
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XVI. São Paulo
PROCESSO: 1.584-T-2009
RELATOR: LUIZ PHELIPE DE CARVALHO CASTRO ANDRÈS
REUNIÃO DO CONSELHO: SÃO JOÃO DEL-REI, 3 DE DEZEMBRO DE 2009
Foi com muita honra que recebi do senhor presidente do Iphan, Dr. Luiz Fernando de Almeida, por
intermédio da professora Anna Maria Serpa Barroso, a incumbência de examinar e opinar sobre este
processo, que trata do pedido de tombamento do “Núcleo Urbano Histórico de Iguape, no Município
de Iguape, Estado de São Paulo”.
Em primeiro lugar, veio a obrigatoriedade de conhecer in loco a cidade e os sítios no entorno do objeto
desta proposição. Solicitei ao Iphan as condições para me deslocar de São Luís do Maranhão até aquele
município do litoral sul de São Paulo, onde fui gentilmente acolhido pela equipe da Superintendência
de São Paulo, através de sua titular, a arquiteta Anna Beatriz Ayrosa Galvão.
A rota das estradas que segui, da capital paulista até o município de Iguape, percorre o caminho inverso
ao que traçavam os desbravadores deste território no início do descobrimento, no século XVI, e nos
introduz na magnífica paisagem do Vale do Ribeira: descendo pelas vertentes que hoje se cobrem de
extensas plantações de bananeiras, em seguida descortinarmos o baixio verdejante por onde serpenteia
o rio Ribeira do Iguape, em cujas margens inundáveis e férteis vicejaram os campos de plantio de arroz,
no século XIX.
O trajeto nos aproxima da única região do país onde a Mata Atlântica tem sido preservada em razoáveis
proporções e até próximo ao mar, onde encontramos a vegetação litorânea do complexo lagunar de
Cananeia e Iguape que irá nos conduzir até o Parque Nacional da Jureia, já reconhecido pela Unesco
na lista do patrimônio natural da Humanidade. A viagem em si é um introito ao território que vamos
percorrer na história.
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XVI. São Paulo
Em Iguape, fomos recebidos pela prefeita Maria Elizabeth Negrão Silva, que assinou o pedido
formal do tombamento feito em junho de 2008. Após reunião com sua equipe de governo, seguimos
acompanhados em toda a visita pelo diretor do Departamento de Cultura do município, Carlos Alberto
Pereira Júnior, e pela arquiteta Carina Mendes dos Santos Melo, da Superintendência do Iphan, que
nos prestaram o apoio técnico e logístico na missão de reconhecimento do sítio.
Carlos Alberto é também o organizador da excelente publicação denominada Iguape, princesa do litoral,
que registra a história do município sob os aspectos arqueológicos, geográficos, políticos, sociais e
econômicos que deram origem a uma peculiar forma de ocupação das largas extensões do litoral sul de
São Paulo.
Trata-se de um texto didático, ilustrado com fotografias, mapas e gravuras de época, que traduz a
importância do patrimônio cultural representado no acervo da arquitetura urbana, rural e do
patrimônio imaterial do Vale do Ribeira e do território lagunar, e que foi levado em consideração na
avaliação que fizemos.
Foi nessa ocasião que recebi o dossiê e pude constatar a qualidade do conjunto de estudos cuidadosamente
preparados entre junho de 2008 e fevereiro de 2009, como fruto de estreita colaboração entre a
Prefeitura de Iguape e técnicos da Superintendência do Iphan e do Departamento de Patrimônio
Material (Depam). Dele passo a me ocupar, com o intuito de oferecer uma síntese fiel das informações,
que lhes permita estabelecer um juízo sobre a proposta de tombamento.
Anexos ao processo estão quatro volumes, onde se pode notar o crescente aperfeiçoamento técnico
na elaboração dos dossiês para as candidaturas ao título de Patrimônio Histórico Nacional – neste
caso, pela equipe da Superintendência de São Paulo, sob a coordenação da arquiteta Flavia Brito do
Nascimento e da geógrafa Simone Scifoni.
O procedimento inicia-se com o Ofício Especial da prefeita municipal de Iguape, Maria Elizabeth
Negrão Silva, dirigido ao diretor do Depam, em que, após uma breve e articulada exposição de motivos,
solicita “o tombamento do Centro Histórico de Iguape, de seu entorno, de imóveis históricos isolados
e de áreas naturais, assim como expressões intangíveis ligadas a tradições caiçaras, essência da formação
cultural deste povo”.
Seguem-se documentos protocolares de encaminhamento até a Presidência do Iphan, que incluem
o parecer técnico do Depam, assinado pela arquiteta Maria Regina Weissheimer, coordenadora de
Paisagem Cultural, e o parecer jurídico da Procuradoria Federal – órgão executor da Procuradoria
Geral Federal no Iphan, datado de 11 de novembro de 2009 e assinado por Antônio Fernando Leal
Néri, procurador-geral.
Estão aí anexados o edital e os avisos de notificação do tombamento, contendo a descrição técnica
minuciosa da poligonal da área de tombamento e do entorno, bem como as cópias de suas publicações
em tempo hábil, no Diário Oficial da União.
Também constam as comprovações de que já foram devidamente encaminhados e recebidos os ofícios
dando ciência do processo em curso ao governador de São Paulo, José Serra, à superintendente do SPU
do estado de São Paulo, Evangelina Almeida Pinho, e à senhora Maria Elizabeth Negrão Silva, prefeita
de Iguape, bem como de que foi publicado em jornais locais o competente Aviso de Notificação.
Quanto ao dossiê, é composto de quatro volumes, com mais de 1.850 páginas de estudos do acervo,
assim organizados: o volume do dossiê propriamente e três anexos; os Anexos I e II contêm as fichas
do Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão, e o Anexo III, o Relatório da Oficina Mapa do
Patrimônio de Iguape.
282
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Já no primeiro volume, pude examinar os seguintes capítulos:
> Uma descrição geomorfológica, localizando o sítio urbano que se pretende como área a ser
tombada no contexto mais amplo de todo o vale do rio Ribeira do Iguape e descrevendo o seu
patrimônio natural. Sua história e os aspectos socioeconômicos estão aí apresentados, bem como
a dinâmica populacional e as práticas de produção agrícola que tanto determinam a interferência
humana na paisagem.
Especificamente no que tange ao município de Iguape, o documento apresenta descrição dos
aspectos históricos, descreve sua paisagem original e as primeiras formas de ocupação humana:
Um misto de terra e águas qualifica a paisagem original e atual da costa sul paulista,
setor onde se encontram localizadas as cidades de Iguape e Cananeia. Trata-se de um
amplo setor denominado de Complexo Estuarino-Lagunar, que se estende até Paranaguá,
composto por um conjunto de canais, braços de mar cercados por ilhas e mangues,
estuários de rios e baías, restingas e morros isolados. O complexo estuarino é considerado
um dos mais importantes ecossistemas costeiros, um dos mais produtivos do planeta e com
uma parcela considerável de manguezais bem preservados, razão pela qual foi incluído
nas Reservas de Mata Atlântica do Sudeste, consideradas Patrimônio da Humanidade
pela Unesco, em 1999.
Para tanto e melhor compreensão do processo de transformações, o dossiê retrocede ao
pleistoceno, com base em estudos de Aziz Ab’Saber que, juntamente com Wladimir Besnard, já
no final dos anos 1940, pesquisou e registrou as ocorrências de vestígios do passado geológico
da região de Cananeia e Iguape, ou se baseia em estudos realizados pelo naturalista alemão
Ricardo Krone, que ainda no século XIX viveu durante trinta anos na região e, em 1914,
publicou as primeiras informações etnográficas sobre o vale do rio Ribeira do Iguape.
Registra também os estudos de Petrone publicados em 1966 sobre a geografia, confirmando
evidências de atividades humanas há cerca de 12 mil anos. Todos esses autores se orientaram
pelas evidências colhidas em sambaquis localizados ao longo do vale, acervos arqueológicos
de valor inestimável e reconhecida importância, motivando importantes trabalhos de eruditos
pesquisadores. Hoje estão cadastrados cerca de 140 sítios, datados de milhares de anos.
Esses esforços têm sido continuados nas pesquisas realizadas pelas equipes do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, cujos resultados estão didaticamente
expostos no Museu Histórico e Arqueológico de Iguape.
> Segue-se análise sobre o sítio urbano e sua relação com o modelo de urbanismo português,
considerando a localização, a escolha do sítio e a sua posição no território; descreve os elementos
estruturantes do traçado e sua relação com a arquitetura, avaliando inclusive a questão dos
quarteirões e loteamentos e a posição estratégica das praças.
Enriquece ainda mais o dossiê um histórico da fundação do povoado, oficialmente datada em 3
de dezembro de 1538, originalmente batizado de “Igoapé”, e os diversos ciclos econômicos, que
vão desde o período da exploração do ouro (1630 a 1760), passando pela fase de concentração
de riquezas geradas na produção e na exportação de arroz (1780 a 1910).
Fica evidenciado que o primeiro assentamento foi na barra do rio Icapara, então considerada
uma posição estratégica para assegurar o controle da região da laguna e do acesso às terras
interiores, e provavelmente se fez a partir de 1519, por iniciativa de Cosme Fernandes –
personagem ao qual se atribui o perfil de haver sido um homem erudito que caiu em desgraça
283
XVI. São Paulo
na corte portuguesa e aqui chegou na condição de degredado, trazido em 1502 pela armada
de Américo Vespúcio.
A ele se aliou o castelhano Ruy Garcia de Mosquera, também reconhecido pelos historiadores
locais como liderança responsável pelas principais ações que resultaram na defesa e colonização
dessa vasta região. O fato é que, em 1531, quando de sua expedição, Martin Afonso de Souza se
valeu da intermediação dos dois precursores aqui estabelecidos e que já se entendiam com os índios.
Entre 1600 e 1614, no entanto, a pequena população estabelecida no Icapara se ressente da
escassez de água potável, bem como da vulnerabilidade do local contra ataques corsários, e
decide transferir-se para um sítio mais protegido e aos pés do Morro da Espia, que recebeu essa
denominação exatamente por permitir a vigilância de toda a extensão de praias e prevenir a
aproximação de possíveis invasores.
O novo local se situa em terreno protegido do mar por faixa de terra conhecida por Ilha Compri-
da, que se estende por mais de 70 km na paralela da costa e forma um canal de águas abrigadas
denominado Estuário Lagunar do Mar Pequeno, integrando a região do Lagamar, entre si e o con-
tinente, e que passa a se constituir em porto seguro para todo o movimento de navios, favorecendo
assim o acesso e a comunicação que então se fazia exclusivamente pela via marítima e fluvial.
Ao mesmo tempo, ao pé desse morro encontravam-se as fontes de água pura que tanto buscavam
os primeiros habitantes. Essas vantagens estratégicas determinaram o sucesso da mudança para
o local atual. Em 1577, foi oficialmente criada a Freguesia de Nossa Senhora das Neves de
Iguape e, em 1619, elevada à condição de Vila, segundo documento encontrado pelo historiador
e engenheiro Ernesto Guilherme Young, natural da Inglaterra e que se radicou em Iguape,
tornando-se um dos maiores estudiosos de sua história.
> Acompanha essa análise uma série de mapas que detalham a expansão urbana de Iguape como
consequência de sucessivos momentos da economia local, que aqui se inicia com um ciclo de
exploração de ouro no início do XVI e, como em outras partes da colônia, fora sempre baseada
na mão de obra escrava para o extrativismo ou para a prática de monoculturas – no caso, o arroz,
já no século XIX, como produto de exportação – e prossegue até aos nossos dias, definindo a
expansão da malha urbana ao longo de mais de quatro séculos.
Informa-nos sobre o grande centro de construção naval que ali se estabeleceu desde os primórdios
do XIX, e nos traz para o cenário de modernização representado pela presença da navegação a
vapor, que aí se instalou também a partir de 1839, até a primeira metade do século XX.
Registra o papel importante da navegação marítima, que fazia a ligação com os portos de Santos
e o Rio de Janeiro e a fluvial, que estabeleceu linha regular entre Iguape e as povoações do
interior, e subsistiu até o início do século XX, quando se perderam os últimos navios de cargas e
passageiros, falindo as empresas que os exploravam.
> Há também um estudo de origens e dos antecedentes históricos da conquista do território do
Vale do Ribeira, com informações sobre a forma como se processou a implantação das diversas
vilas e dos povoados, como estratégia da coroa portuguesa no sentido de obter maior controle
sobre as populações e atividades econômicas que aí se desenvolviam.
Apresenta os aspectos geográficos, clima, hidrografia, relevo e vegetação, e segue descrevendo os
bens patrimoniais, sua localização na malha urbana escalonada através do tempo, permitindo uma
leitura didática do acervo e do plano urbanístico e caracterizando o sítio histórico a ser tombado,
tudo devidamente acompanhado de rica e detalhada documentação fotográfica e cartográfica.
284
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Igreja Matriz de N. Sra. das Neves, no núcleo urbano histórico de Iguape. Foto: Sônia Florêncio, 2009.
Descreve um episódio marcante para a economia da região, representado pela obra de escavação
de um canal de três quilômetros de comprimento por nove metros de largura média, denominado
Valo Grande, ainda no início no século XIX (1827-1847) – uma demorada obra pública de
engenharia hidráulica, que teve os objetivos de diminuir em 23 quilômetros o percurso da
navegação fluvial e de favorecer a exportação do arroz e demais mercadorias que escoavam pelo
porto marítimo.
Entretanto, a obra que chegou a ser considerada como pioneira da engenharia hidráulica do país
logo se revelou como um grande equívoco. A ação erosiva das fortes correntezas do rio Ribeira,
atuando com intensidade sobre o solo friável e arenoso da baixada, fez corroer as margens do
canal e ampliar suas dimensões, a tal ponto que o mesmo passou dos nove metros de largura
iniciais para quase trezentos metros, em 1914.
Essa consequência da ação do homem sobre a natureza acarretou ao mesmo tempo a destruição
de largas extensões de suas margens e o completo assoreamento do porto marítimo, impedindo
o acesso das embarcações de maior porte e, aí sim, inviabilizando o porto e levando a economia
da cidade a um longo período de recessão, já pelos anos quarenta do século XX.
Minucioso em seus detalhes técnicos, o dossiê, que na verdade contém o próprio Inventário
de Conhecimentos do Patrimônio Edificado no Vale do Ribeira, realizado sob os auspícios da
Superintendência do Iphan em São Paulo, setoriza o centro histórico, descrevendo-o rua por rua e
identificando cada imóvel no contexto da georreferência das plantas cadastrais, com informações
completas sobre a natureza da propriedade, uso atual, estado de conservação, categoria, e explicitando
as características dos antigos bairros, das zonas portuárias e dos entornos.
285
XVI. São Paulo
Os exemplares de edificações nas fichas de inventário exibem tipologias arquitetônicas que são um
testemunho das contribuições de cada período da história da arquitetura, na forma peculiar como se
adaptaram aos usos regionais e locais.
Os levantamentos aí realizados enfatizam que o desenho urbano resultante, os materiais e as técnicas
construtivas, assim como a sua inserção no espaço geográfico, são muito próprios de uma cidade que
nasceu das navegações e esteve fortemente vinculada ao movimento de seus dois portos, um à beira-rio,
denominado Porto do Ribeira, e o outro à beira-mar, denominado Porto Grande e que, com o passar
dos séculos e o surgimento das rodovias, teve o seu fluxo de acessibilidade invertido.
Prosseguindo com a avaliação dos estudos que compõem este processo, os Anexos I e II do dossiê,
cada um deles com mais de seiscentas páginas, apresentam as fichas técnicas produzidas durante o
Inventário do Conhecimento do Patrimônio Edificado do Vale do Ribeira, com informações sobre o
território no contexto histórico e geográfico, geológico e socioeconômico, características morfológicas,
sempre acompanhadas de preciosa documentação iconográfica, incluindo mapas originais dos séculos
passados, fotografias de época e atuais e identificação de cada imóvel.
Sobre o aparato institucional que compõe o sistema de proteção cultural e ambiental já em vigor, há
nesse dossiê informações completas sobre farta legislação existente nos âmbitos municipal, estadual
e federal, mostrando logo de início que as áreas envoltórias constituem-se em Reserva da Biosfera da
Mata Atlântica Sudeste, reconhecida pela Unesco em cinco fases sucessivas, entre 1991 e 2002.
O dossiê registra uma série de instrumentos legais:
Decreto Federal n. 90.347, de 23 de outubro de 1984, e o Decreto n. 91.892, de 06 de novembro
de 1985, que criaram a Área de Proteção Ambiental de Cananeia – Iguape – Peruíbe;
Portaria Federal n. 136, da Sema, que em 11 de julho de 1986 criou a Área de Proteção da Jureia;
Decreto Federal n. 84.976, de 29 de julho de 1980 e o Decreto Estadual n. 24.646, de 20 de
janeiro de 1986, que estabeleceram a Estação Ecológica Jureia-Itatins;
Decreto Estadual n. 26.719, de 06 de fevereiro de 1987, que criou a Estação Ecológica dos Chauás;
Lei Municipal n. 937-A/87, que em 24 de novembro de 1987 criou o Parque Florestal Municipal
do Morro da Espia.
No que se refere à proteção no âmbito estadual, há o registro dos tombamentos efetuados pelo
Condephaat:
Inicia-se com o processo datado de 17 de fevereiro de 1975, registrando em seu Livro do Tombo
Histórico o patrimônio arquitetônico do centro histórico, e estabelece categorias de proteção,
identificando determinados imóveis dentro de «Graus de Proteção», assim discriminados: GP-1
– Proteção integral; GP-2 – Proteção limitada a fachadas, cobertura e ornamentos externos; GP-3
– Proteção de referência que incide apenas sobre a volumetria e a harmonização arquitetônica; e
GP-4 – Imóveis sujeitos às disposições do Plano Diretor Municipal;
No ano de 1986, o Condephaat inscreveu, no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, o
Maciço da Jureia e Rio Verde, bem como a Serra do Mar e Paranapiacaba.
Neste ponto da análise, parece alvissareiro, como manifestação efetiva do interesse e do compromisso
da administração pública local, que o Plano Diretor do Município de Iguape, elaborado de forma
participativa em 2006, em audiências públicas e oficinas, em seu texto final tenha incluído e contemplado
amplamente a preservação de bens culturais:
286
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Em seu art. 15 do capítulo I, que dispõe sobre os planos e estratégias de desenvolvimento
municipal, item LXXIV, diz: «Preservar, recuperar, sustentar as regiões de interesse histórico,
paisagístico, cultural e ambiental”;
Na Seção II, artigos 18 a 20 – Do Plano Estratégico-Centro Histórico, há o direcionamento
para a Lei Municipal de Tombamento e Lei de Criação do Conselho Municipal do Patrimônio
Histórico, além da possibilidade de ações conjuntas com o órgão de defesa e regulação do
patrimônio em nível nacional. E menciona “recuperação e valorização dos patrimônios
arquitetônicos, urbanísticos e ambientais, particularmente o Centro Histórico da Cidade de
Iguape” como uma das diretrizes para o desenvolvimento econômico da cidade.
De fato, verifica-se que duas recomendações do Plano Diretor foram em seguida implementadas:
Em 23 de novembro de 2006, foi sancionada a Lei Complementar n. 04, que “dispõe sobre o
Tombamento do Patrimônio Cultural, Material e Imaterial, bem como o conjunto arquitetônico
do centro de Iguape, a zona de transição, as zonas de entorno, os imóveis históricos isolados
e as áreas naturais”, na qual está previsto o reconhecimento do município como de relevante
importância histórica. A lei prevê incentivo fiscal com abatimento de até 80% do valor do IPTU
devido, dependendo do grau de conservação.
Em 20 de junho de 2007, veio a aprovação da Lei n. 1.927, que criou o Conselho Municipal de
Defesa do Patrimônio Histórico de Iguape, na qual o órgão recebe prerrogativa de deliberativo,
contribuindo para a continuidade das ações de forma participativa com a comunidade, com
vistas a um processo de gestão integrada.
Outro aspecto relevante é que a iniciativa de educação patrimonial realizada pelo Iphan correu
simultaneamente ao processo de tombamento municipal, envolvendo a comunidade e propiciando a
oportunidade de apropriação do conhecimento. O resultado é que o instituto do tombamento tornou-
se hoje um instrumento legal bem aceito e compreendido, devolvendo ao cidadão comum o sentimento
de orgulho e valorização.
Transparece nos registros acima mencionados que, embora já existam instrumentos de proteção legal
criados na esfera do poder local, a municipalidade confia na atuação do Iphan, na expectativa de se
fortalecer por meio da parceria e do apoio das instituições de nível federal.
Já no terceiro anexo do dossiê, encontramos os resultados da Oficina «Mapa do Patrimônio de Iguape», finalizada
em dezembro de 2008, como parte integrante do projeto Paisagem Cultural: Inventário de Conhecimento do
Patrimônio Cultural do Vale do Ribeira, também desenvolvido pela Superintendência Regional do Iphan.
A realização da oficina propiciou o envolvimento da população na construção de estratégias de
preservação e nos processos de identificação segura daquilo que a própria comunidade reconhece como
bens de seu patrimônio cultural. Tornou-se experiência valiosa, ao ensejar a elaboração de uma lista de
bens que foram então destacados em edição de coletâneas de cartões postais, em que são divulgados
para o conjunto da sociedade como forma de socialização do conhecimento e valorização.
Entretanto, o cerne da nossa questão é a avaliação da proposta de tombamento. E é no quarto e último
capítulo do dossiê que se apresenta a mesma, com o mapa demonstrativo.
A proposta compreende uma setorização em três unidades – Setor Núcleo Urbano, Setor Morro
da Espia e Setor Portuário –, seguida das descrições da poligonal da área de tombamento e da área
de entorno, que estabelece uma faixa regular de amortecimento dos impactos que poderão advir
da expansão da cidade contemporânea, reconhecendo as especificidades espaciais no interior desse
perímetro e a necessidade de normalização.
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XVI. São Paulo
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
manutenção da dinâmica natural, no que diz respeito ao Setor Morro da Espia (garantia de
insolação, ventilação, permeabilidade do solo, escoamento hídrico, entre outros).
No que se refere às intervenções nos bens e imóveis localizados nas áreas de entorno, as mesmas deverão
ser submetidas à análise prévia, tal como os bens que se encontram nas áreas tombadas.
Nota-se o esmero na elaboração desta proposta de tombamento, com a preocupação de se estabelecer
a setorização das áreas de proteção rigorosa contidas na poligonal e uma segunda área, claramente
definida como área de entorno, a funcionar como zona de articulação e amortecimento.
O tombamento de Iguape representa a oportunidade de corrigir uma lacuna que o patrimônio histórico
nacional guarda em relação a essa região do estado de São Paulo. Contextualizar a formação histórica e
cultural da região, constituindo uma base sobre a qual se apoia a presente proposta, com possibilidades
de outros tombamentos que se encontram em fase de estudo, com intuito de se estabelecer um sistema
patrimonial do Vale do Ribeira coerente e inter-relacionado.
Neste caso, almeja-se fazer do que seria uma dívida, expressa na ausência do tombamento federal,
uma oportunidade de tratar a questão de forma mais completa: consolidando a metodologia de uma
visão sistêmica, do olhar para o todo, na ótica de uma perspectiva integrada do território que guarda
testemunhos de uma rica história, plena de episódios importantes da formação do Brasil colonial e
imperial.
Todo o documento enfatiza a adoção de uma estratégia de proteção federal implementada a partir do
sítio natural e das influências culturais presentes, considerando esses aspectos como interligados, que
guardam uma vinculação lógica e de respaldo histórico e urbanístico.
Em suma, registro aqui as impressões que colhi da minha visita à cidade histórica de Iguape e ao Vale
do Ribeira, bem como da avaliação desta rica coleção de documentos, que compõe as quase duas mil
páginas do dossiê que tive o privilégio de apreciar.
Iguape surpreende. A região parece constituir uma síntese perfeita de toda a história do país. Moradia
dos caiçara; na era das grandes navegações assistiu à chegada dos europeus; foi testemunha e protagonista
da saga dos exploradores, em busca desenfreada pelas riquezas; foi cenário de um ciclo de ouro, antes
das Minas Gerais; abrigou milhares de escravos negros; atravessou o período do império como grande
fornecedora de arroz e de outros produtos agrícolas para exportação.
No século XX, recebeu as primeiras levas de imigração japonesa, que nos legaram a sofisticação de
sua cultura milenar na agricultura do chá e na arquitetura de suas casas de madeira desmontáveis e
portáteis. Iguape nasceu e cresceu sob o manto de uma natureza de beleza e força incomensurável. Sua
gente resistiu aos embates de um modelo de economia cujo cerne sempre foi a concentração da riqueza,
com suas mazelas que atingem até hoje a nação.
Nos dias atuais, é também um repositório de cultura popular dos mais ricos em nosso país. Seu
patrimônio imaterial é diverso, nas formas de expressão como a Congada, a Reisada, o Fandango e
a Marujada, no modo de fazer os objetos de cestaria, produzida a partir de uma grande variedade de
fibras, ou de madeiras entalhadas como a gaxeta, assim como de cerâmica utilitária, com as panelas
de barro de suas paneleiras, em tudo semelhantes na técnica com aquelas do Espírito Santo, ou as
rabecas de cocho, que são equivalentes à viola de cocho, ambas (panelas de barro e violas de cocho) já
consagradas como patrimônio cultural brasileiro. É forte também a herança das culturas caiçara e negra
na culinária e na fala do povo.
Ao lado de sua fundação oficial, Iguape teve também sua fundação anímica, no episódio de surgimento
das imagens sacras de N. Sra. das Neves, sua padroeira, e no achado milagroso de Bom Jesus da Cana
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XVI. São Paulo
Verde. Esta imagem, cuja confecção em Portugal havia sido encomendada por um usineiro do norte
do país, foi lançada ao mar, na costa de Pernambuco, pelo comandante do navio que a conduzia em
fuga de ataque de piratas, como forma desesperada de evitar que fosse profanada. Assim, foi trazida até
a costa paulista pela força das correntes oceânicas e finalmente resgatada por dois índios caiçara, que a
chantaram na praia de Iguape.
O fato é que as notícias desses fatos se espalharam pela região, despertando grande devoção das
povoações vizinhas, e hoje suscitam a afluência anual de milhares de romeiros à Basílica de Iguape.
Dessa riqueza de relatos, que vem da tradição oral e da memória dos velhos, são pródigas as lendas que
povoam o imaginário de seu povo e que também devem ser reconhecidos como marcos fundadores. A
sala de ex-votos da Basílica é um testemunho belo e impressionante da dimensão da fé.
De tudo que observei, me resulta a certeza do valor excepcional de seu centro histórico, que permanece
vivo e apropriado pela comunidade e mantém uma característica fundamental: a variedade de usos,
com um misto de comércio, instituições, serviços, atividades ligadas ao turismo e lazer e, sobretudo,
habitação no mesmo espaço, uma vez que essa diversidade assegura maior intensidade de uso cotidiano
e portanto aproveitamento dos investimentos aí convertidos em infraestrutura – o que certamente
contribui para o bom estado de conservação de muitos de seus edifícios.
Pude confirmar que sua população, hoje, com quase trinta mil habitantes, já internaliza a preocupação
com a necessidade de preservar a cultura e o meio ambiente como valores identitários e insubstituíveis
e se tornou protagonista de muitas dessas lutas. Mais de oitenta por cento de seu território está contido
dentro de áreas naturais já protegidas.
A ONG SOS Mata Atlântica, localizada em imponente casarão do centro histórico, vem realizando
trabalho emblemático em defesa da reserva natural e guarda em sua sede uma obra de arte na forma de
grande maquete, que registra com beleza e precisão as diversas etapas de transformação do sítio natural,
na medida em que foi sendo apropriado e transformado pela mão do homem.
Da mesma forma, são exemplares, por sua objetividade didática e seu papel na educação patrimonial
da nova geração de cidadãos iguapenses, o Museu de Arqueologia, instalado na casa que abrigou a
primeira fundição de ouro do país, e o Museu de Artes Sacras, instalado na Igreja de N. Sra. do Rosário
dos Homens Pretos.
A ocorrência de tipologias diversas confirma a evolução dos estilos arquitetônicos de forma didática,
em percurso que se faz a partir da rua do Funil até a praça da Igreja do Rosário dos Homens Pretos,
passando pelo largo da Matriz, a praça monumental da Basílica de Bom Jesus de Iguape, ou no sentido
transversal, partindo do Porto Grande até a Igreja de São Benedito, verificando-se no trajeto a ocorrência
de casas de estilo colonial do século XVII, sobradões do XIX, fachadas do eclético e chegando ao art
déco e modernista, a partir dos anos 1920, ou ainda, um casario de arquitetura vernacular.
Na avaliação que fiz no local, constata-se que a maioria dos imóveis está ainda bem caracterizada, ou
apenas parcialmente afetada por intervenções. Mas também se observa a urgência de socorrer algumas
das áreas extremas, como a margem do Valo Grande e a do Porto do Ribeira, onde se localizam ruínas
de antigos galpões industriais com ótima vocação para abrigar projetos de interesse social e cultural.
Assim, entendo que, do ponto de vista formal, o processo está generosamente instruído e atende aos
requisitos técnicos, jurídicos e burocráticos exigidos pela regulamentação do Iphan, mais especificamente
pela Portaria n. 11, de 11 de setembro de 1986.
De tudo que se informa neste dossiê, especialmente por sua importância estratégica no contexto do
desenvolvimento da região Sul, no papel de se haver constituído como território seguro de integração
entre o litoral e o interior, não seria justo, pois, que tal acervo de arquitetura urbana, testemunha
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
inconteste da saga de ocupação de parte significativa do território brasileiro, permanecesse à margem
das atenções da maior instituição nacional que visa à preservação da memória e da história do país.
Neste ponto do parecer, embora repetindo o que tenho registrado em processos anteriores, sinto-me
na obrigação de reafirmar meu auto de fé no instituto do tombamento, cuja aplicação, sempre que
houver o mérito, é nosso mister de conselheiros, que costumamos votar por ele ou pelo registro de bens
patrimoniais representativos da cultura nacional. Que o tombamento deva ser sempre fortalecido como
estratégia de valorização, de tornar mais respeitado, de distinguir, de divulgar, de consolidar argumentos
de defesa e, portanto, entendido como alternativa para garantir as perspectivas de continuidade.
A exemplo de tombamentos anteriores de cidades para os quais fui convocado a contribuir, senti, neste
caso, durante os contatos com as pessoas da comunidade iguapense e com seus representantes, que mais
uma vez o ato de proteção implícito na figura do tombamento apresenta-se muito além do que sugere
a materialidade da questão e passa a incidir também sobre a autoestima do povo do Vale do Ribeira.
Pois não se restringe apenas ao poder de coerção, de vigilância, de fiscalização, mas também confere
valor. E como valoriza, eleva e estabelece uma aura de respeito sobre o bem que se pretende preservar.
Entretanto, não podemos esquecer de que representa mais uma grande responsabilidade assumida pelo
Iphan, não só no sentido de não frustrar as expectativas daquelas comunidades, como objetivamente
pelo fato de que passa a ser administrativa e legalmente responsável pela preservação daqueles bens.
Considerando que o ato do tombamento em si compreende aplicação de procedimentos, cuja
metodologia pode e deve estar sendo permanentemente aperfeiçoada, é que este caso em especial pode
representar mais um passo no sentido dos necessários ajustes para o seu aperfeiçoamento metodológico
e a oportunidade de consolidação do conceito de paisagem cultural.
Torna-se, portanto, necessário envidar imediatos esforços para fortalecer a pioneira experiência que
ali se verifica, a da criação da Casa do Patrimônio de Iguape, garantindo aos técnicos locais mais uma
estrutura que venha permitir uma verdadeira integração com a comunidade, bem como na condução
de trabalhos de proteção do acervo, na medida em que favoreça parcerias entre os órgãos municipais,
estaduais e o Iphan.
Nesses termos, seu funcionamento ao lado de um futuro Escritório Técnico do Iphan deverá possibilitar
economia de meios e esforços, aumentando a rapidez e a eficiência das ações, com todos falando a
mesma linguagem e trabalhando com critérios nivelados e mais próximos da realidade local.
Para concluir, gostaria de sintetizar a impressão geral que guardei ao me despedir, após minha visita
de reconhecimento. O conjunto formado pela cidade de Iguape e a paisagem do Vale do Ribeira
compõem um cenário de excepcional harmonia entre o patrimônio erigido pela mão do homem e
o ambiente que o cerca. Esses elementos constituem um habitat perfeito para a gente que ali vive e
trabalha e, de toda forma, o mantiveram até os nossos dias, como provas materiais e imateriais de que
são também um belo testemunho remanescente e revelador da alma do povo brasileiro.
Não posso olvidar o fato simbólico que genericamente costumamos creditar ao insondável universo
das coincidências. É que precisamente hoje, 3 de dezembro, o povo de Iguape celebra os 471 anos de
existência de sua cidade. Que possam comemorar esta data como uma promessa de futuro.
Sendo assim e acompanhando as recomendações e os pareceres do Departamento de Patrimônio Material
e da Procuradoria Federal que integram os autos deste processo, declaro-me favorável ao tombamento e à
consequente inscrição nos Livros de Tombo 1) Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; 2) Histórico, sob
a denominação de “Núcleo Urbano Histórico de Iguape, no Município de Iguape, Estado de São Paulo”.
291
XVI. São Paulo
292
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Vila F erroviária de Paranapiacaba,
Santo André – SP | 2002
PROCESSO: 1.252-T-87
RELATOR: NESTOR GOULART REIS FILHO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 22 DE AGOSTO DE 2002
O pedido de tombamento foi apresentado ao então diretor regional da 9ª DR, arquiteto Antônio Luiz
Dias de Andrade, pela Comissão Especial Pró-Paranapiacaba, com data de 21 de setembro de 1985. Em
ofício de 15 de outubro seguinte, n. 329/87, o diretor da 9ª DR encaminhou documentação relativa
ao bem cultural, informando que o assunto estava sendo examinado em conjunto pelos membros da
referida comissão (composta com representantes de várias instituições do estado de São Paulo).
O diretor comprometeu-se a encaminhar em breve prazo parecer técnico quanto à conveniência e
propriedade do tombamento em apreço. Em memorando Deprot 149/95, o historiador Adler Homero
Fonseca de Castro informava, em 24 de abril de 1995, que, ao realizar pesquisas para informação
do processo referente à Estação da Luz em São Paulo, havia encontrado uma série de informações
referentes aos planos inclinados na serra do Mar que constituíam base técnica da ferrovia naquele
trecho, bem como sobre a Vila Ferroviária de Paranapiacaba.
Em memorando Deprot 184/95, o historiador de arte Marcos Tadeu Daniel Ribeiro sugeria ao arquiteto
Sabino Barroso, diretor do Deprot, que os bens culturais da Estação da Luz e da Vila Ferroviária de
Paranapiacaba fossem estudados separadamente, o que de fato foi feito.
Em memorando Deprot 333/95, o historiador Adler Homero Fonseca de Castro sugeria que se iniciasse
a instrução do processo referente à Vila Ferroviária de Paranapiacaba, já sob a proteção do Condephaat,
órgão estadual, tendo proposto alguns critérios para organização dos trabalhos.
294
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
A dúvida principal seria referente à necessidade de especificação das construções desfiguradas ou
descaracterizadas, citadas no parecer do historiador Adler Homero e do arquiteto Ronaldo Ruiz, da
Deprot, que deveriam ser excluídas do tombamento por falta de valor estético e arquitetônico, o que
não consta do processo.
Em expediente de 16 de abril de 2002, o diretor do Deprot, Roberto de Hollanda, manifesta seu ponto
de vista de que, se o tombamento é justificado pelos excepcionais valores históricos e paisagísticos
(além dos estético-arquitetônicos) da vila, “não há razão para exclusão de quaisquer elementos que
registram sua trajetória ao longo do tempo”.
O processo é em seguida encaminhado à Procuradoria Jurídica, que em 25 de abril de 2002 inclui novo
parecer da procuradora-chefe, Dra. Sista Souza dos Santos, destacando os pontos que seguem:
Em primeiro lugar, explicitando que o procedimento foi instaurado por força do pedido para
“reconhecimento do valor histórico da vila de Paranapiacaba”. Para maior clareza, a autora do
parecer lembra que os autos são formados por dois volumes e dois anexos (estes com cópia do
processo de tombamento do Condephaat), listando o seu conteúdo.
A seguir, a procuradora enfatiza a importância da explicitação da chamada “motivação”,
que estabeleça as características de excepcionalidade dos bens tombados. Nesse caso, registra
a carência, no processo, de motivação que explicite os excepcionais valores paisagísticos e
artísticos do conjunto, não havendo argumentos que exaltem estes valores. Lembra que a
poligonal proposta é “conformada pela conjugação de várias áreas, inclusive Reserva Biológica
do Alto da Serra de Paranapiacaba e do Parque Estadual da Serra do Mar”, e que não há nos
autos justificativas técnicas suficientes para sustentá-la. Termina por concluir que, em termos
de demonstração processual, “o bem a ser tombado tem para a União um valor histórico
e que a proteção se estenderá indistintamente a todos os imóveis inseridos na poligonal
determinada pelo Departamento de Proteção, estejam eles descaracterizados ou sejam de
construção recente”. Além disso, presume que “os bens móveis (...) estarão excluídos da
tutela especial (...)”.
Assim, conclui que “considera-se que o bem a ser tombado é aquele que está nos limites da
poligonal traçada e determinada pelo Departamento de Proteção (...) com exclusão dos bens
móveis”. E conclui que, pela instrução processual, “ (...) entende que a motivação para o
tombamento está voltada ao valor histórico do conjunto, contido e delimitado pela referida
poligonal, excluídos os bens móveis, máquinas, equipamentos, locobreques, locomotivas e
vagões e, em razão disso, sugere que seja mantida sua denominação inicial ‘Vila Ferroviária de
Paranapiacaba’, a ser inscrita no livro do Tombo Histórico”.
Ressalva depois a possibilidade do tombamento se estender aos bens móveis, desde que sejam
inventariados. Da mesma forma, “ressalva a possibilidade de virem a ser apontados de forma
expressa e suficientemente motivada os excepcionais valores artísticos e paisagísticos”.
Havendo na poligonal imóveis não pertencentes à Rede Ferroviária Federal, é recomendado que
se adote a notificação por edital.
O edital foi publicado no Diário Oficial de 2 de fevereiro de 2002.
No exame do mérito da proposta de tombamento, procuraremos nos manter distantes das dificuldades
constatadas para a completa informação do processo.
295
XVI. São Paulo
Mercado no centro urbano da Vila Ferroviária de Paranapiacaba, Santo André. Foto: Hugo Mori, 2008.
Nosso ponto de vista é que a Vila Ferroviária de Paranapiacaba apresenta evidente interesse histórico,
como bem fica demonstrado no processo. Em parte do mesmo, levanta-se a hipótese de existência de
valor artístico e paisagístico. Todavia, o assunto merece discussão mais circunstanciada. Paranapiacaba
era uma vila tipicamente construída por empresa, para solução de seus problemas. Além de ter servido
de apoio para obras na serra, consolidou-se como uma vila de operadores, em apoio aos trabalhos de
funcionamento da ferrovia.
Sua arquitetura, com padrões que fogem às características correntes das edificações em todo o Brasil,
chama a atenção dos observadores e sugere a possibilidade da existência de valor artístico. Mas,
nesse caso, seria necessário especificar o caráter desse valor artístico e, para fins de tombamento, a
sua excepcionalidade. Acreditamos que essa excepcionalidade não existe. Excepcionalidade existe em
termos construtivos, em termos técnicos, por não se tratar de um padrão técnico corrente. Mas não
existe excepcionalidade artística, isto é, não existe qualidade de projeto arquitetônico e urbanístico que
justifique ou que possa justificar um tombamento nesses termos.
Para nós, o valor artístico, na arquitetura e no urbanismo, está na lógica do projeto e não no estilo. Os
projetos em Paranapiacaba são muito simples. Em processos por nós relatados recentemente, temos
296
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
utilizado o conceito de conjuntos urbanísticos para fundamentar o valor artístico de determinados
grupos de obras e de espaços públicos, em diversas cidades do Brasil (como na área da Luz, em São
Paulo, e nas praças da Matriz e da Alfândega, em Porto Alegre). Nesses casos, sempre insistimos na
existência de uma qualidade do projeto de conjunto, que supera a qualidade do projeto de cada um
dos edifícios. No caso da Vila de Paranapiacaba, o traçado urbanístico, muito simples, não chega a
apresentar características de excepcionalidade. Ao mesmo tempo, não reconhecemos no projeto as
preocupações de exploração do valor simbólico, encontradas em geral nas áreas das cidades que se
tornam representativas das comunidades, ou de setores sociais significativos dessas comunidades.
Uma vez registradas essas restrições à possibilidade de se fundamentar o tombamento pelo
reconhecimento do valor artístico, cumpre esclarecer alguns aspectos referentes ao valor histórico.
A Vila Ferroviária de Paranapiacaba é um exemplo excepcional entre os numerosíssimos conjuntos
residenciais construídos por empresas de vários tipos no Brasil, a partir de meados do século XIX, para
abrigar e disciplinar seus trabalhadores. As vilas permitiam um controle estreito das empresas sobre os
trabalhadores, em termos de horários, comportamento e dedicação ao trabalho, e sua importância não
pode ser devidamente reconhecida sem que se destaque essa relação.
297
XVI. São Paulo
Vista aérea e Clube União Lyra-Serrano, em Paranapiacaba. Fotos: Hugo Mori, 2015.
Trata-se, portanto de um aspecto fundamental da vida urbana nas cidades brasileiras há um século e
meio, com indiscutível interesse histórico. Entretanto, como reiteradamente tem observado em suas
manifestações o professor Ulpiano Bezerra de Meneses, da USP, os órgãos de patrimônio cultural do
Brasil, sempre empenhados na preservação de edifícios monumentais, pertencentes ao Estado, à Igreja,
aos grandes proprietários rurais e urbanos, sempre se mantiveram distantes das responsabilidades de
tombamento de edifícios representativos dos locais de trabalho urbano e da vida dos trabalhadores
urbanos e rurais. Muito numerosas foram as fazendas de açúcar e café tombadas no Brasil, poucos
foram os vestígios das senzalas preservados.
É como se houvesse no Brasil nobreza de sangue e nobreza de locais de trabalho. Nobres seriam os
locais de trabalho nas fazendas, mas não os alojamentos dos escravos. Sem nobreza seriam as fábricas
e as casas dos trabalhadores urbanos. Tombamos igrejas, palácios e palacetes. Tombamos fazendas de
café e engenhos de açúcar. Tombamos as casas-grandes e as instalações dos engenhos. Hoje tombamos
cidades e até pensamos em tombar “ideias”, preservar patrimônios abstratos. Mas não tombamos
fábricas, escritórios e exemplos das casas dos trabalhadores, como não foram tombados, no passado,
a não ser raramente, exemplos de alojamentos de escravos. Uma casa de fazenda como a Resgate, em
Bananal (SP), abrigava ao seu redor cerca de seiscentos escravos. Mas não há vestígios deles. Parece que
toda a riqueza da casa-grande nasceu no mato ou apenas das ações dos seus proprietários.
Agora, discutimos o tombamento de uma vila de trabalhadores, como parte de um empreendimento
técnico da maior importância para a história do estado de São Paulo e algumas outras partes do Brasil,
conjunto técnico sem paralelo em todo o país. O perímetro estabelecido inclui partes das instalações
técnicas e a vila dos trabalhadores, com sua paisagem original na área envoltória, em meio à Mata
Atlântica, desaparecida apenas em uma das áreas do horizonte, pela instalação, em uma elevação, de
uma área urbanizada sem as mesmas características.
Nosso parecer é que se trata de um bem cultural de valor histórico excepcional, em cuja preservação
devemos nos empenhar, preservando inclusive a integridade da área envoltória da vila, como parte
do conjunto. Mas devemos reconhecer, nesse exemplo, um precedente importante de tombamento
de documento histórico correspondente às condições de organização do trabalho e condições de
vida dos trabalhadores das grandes empresas no Brasil da segunda metade do século XIX e da
Primeira República.
298
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
As questões levantadas acima, referentes às dificuldades de instrução do processo, bem como à lentidão
de seu andamento, semelhantes a tantos outros, comprovam a limitação dos recursos com que tem
contado o Iphan, em que pese o grande empenho de seus quadros técnicos e chefias.
Procurando superá-las, solicitamos o retorno do processo à SR para novas diligências – o que foi feito.
Em visita à área, com a superintendente da SR, a arquiteta Tâmara Roman e o arquiteto Ronaldo Ruiz,
tivemos oportunidade de acompanhar os trabalhos e verificar os pontos de dúvida. Assim, com base
nas informações técnicas e nos desenhos fornecidos pelo citado arquiteto, podemos observar:
O perímetro de tombamento proposto exclui a chamada “Vila Alta”;
Os desenhos indicam com exatidão os edifícios construídos em época mais recente pela Rede
Ferroviária Federal, que não devem estar incluídos no ato de tombamento, por não se relacionarem
às obras oficiais e por serem destituídos de interesse histórico;
Os desenhos incluem, entre os bens a serem preservados, grupos de casas construídas pela antiga
Estrada de Ferro Santos-Jundiaí e pela Rede Ferroviária, que deram continuidade à vila de
operadores, com nova feição. Nesse caso, cabe uma observação especial: por se integrarem aos
objetivos do projeto inicial e ao conjunto, concordamos que esses grupos de casas devam ser
preservados pelo seu interesse histórico, com os demais;
O perímetro de tombamento inclui um trecho da ferrovia na Serra, até o chamado 4° Patamar,
com sua casa de máquina, e os restos de um dos viadutos da famosa Grota Funda;
O desenho da poligonal da área envoltória e o memorando correspondente incluem apenas os
trechos da serra do Mar e das matas que são alcançadas pelas visuais ao redor do conjunto, para
preservar sua ambientação. Ficam excluídas, portanto, as partes da reserva biológica e da reserva
estadual, que não se incluem nessa poligonal, por não serem pertinentes ao objeto do ato de
tombamento.
Ficam também excluídos os bens móveis, que poderão ser objeto de estudo especial. Entretanto,
consideramos pertinente a inclusão de todos os elementos que se integram às obras civis – e não
são móveis –, como é o caso dos remanescentes das máquinas dos planos indicados e as grandes
caixas d’água metálicas.
Mesmo reconhecidas essas dificuldades, os elementos de informação presentes nos autos, com os novos
esclarecimentos, nos permitem manifestação favorável ao tombamento, pelo valor histórico.
299
XVI. São Paulo
300
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Bairro da Luz , São P aulo – SP | 2000
O projeto tem em vista o tombamento de um conjunto de bens culturais no bairro da Luz, na cidade
de São Paulo, incluindo, nos termos no parecer 067/2000, de Adler Homero, pág. 6:
Jardim da Luz, criado em 1798 e construído em 1828, que passou por diversas reformas e
reconstruções, inclusive uma entre 1899 e 1910;
Pinacoteca do Estado, antigo Liceu de Artes e Ofícios, prédio incompleto, projetado por Ramos
de Azevedo e iniciado em 1897;
Edifício Paula Souza, antigo pavilhão dos Laboratórios Gerais da Escola Politécnica, projeto de
Ramos de Azevedo, edificado entre 1895 e 1898;
Edifício Ramos de Azevedo, antigo Gabinete de Eletrotécnica da Escola Politécnica, projetado
por Ramos de Azevedo, edificado em 1920, sobre obras iniciadas em 1908;
Quartel da Luz, projeto de Ramos de Azevedo, iniciado em 1888 e concluído em 1892;
Antigo Armazém Central da Estrada de Ferro Sorocabana, projeto de Ramos de Azevedo,
inaugurado em 1914;
Federal Paulista e do Comércio, com data de construção e autor desconhecidos, construídos no
final do século XIX;
Hotel Queluz, com autor do projeto desconhecido e data de 1903 em sua fachada.
A essa relação deve-se acrescentar o edifício da Estação da Luz, já tombado pelo Iphan, cujo tombamento
seria reiterado como parte integrante do conjunto, bem como a chamada Vila Inglesa, situada à rua
Maná, n. 836 a 846.
Estação da Luz, São Paulo. Foto: Mônica Zarattini, 2005.
301
XVI. São Paulo
Esse processo vem dar forma, no plano federal, a tentativas anteriores de definição de uma área de
interesse cultural no bairro da Luz, a começar pelo estudo de Cerqueira César, Carvalho Franco e
Paulo Bruna, de 1977, ao qual se seguiu um estudo realizado no plano estadual por iniciativa do então
secretário de Cultura, Jorge da Cunha Lima (1986), com participação da professora Regina Meyer. A
área deverá ser beneficiada também com aplicação de recursos financeiros oriundos do Programa de
Reabilitação do Patrimônio Cultural Urbano (PRPCU), segundo consta do processo.
O processo teve início na 9a Superintendência Regional do Iphan, em São Paulo, com data de 19 de
maio de 2000, por meio de ofício assinado por Reinaldo Francisco Mora, encaminhando documentos
técnicos assinados por Marcos Carrilho.
O Deprot/RJ inclui laudos e um parecer do historiador Adler Homero Fonseca de Castro, no qual
se demonstra que o perímetro previsto no projeto elaborado para o Programa de Reabilitação do
Patrimônio Cultural Urbano envolve número muito grande de edificações e de espaços públicos sem
interesse histórico ou cultural, sendo portanto inadequado para a instrução do presente processo.
Os edifícios pertencem todos a uma determinada área da cidade e são sistematicamente tratados como
um conjunto (razão pela qual se reitera o tombamento da Estação da Luz como parte desse conjunto).
Mas, como não há uma definição clara do que seria o perímetro desse conjunto, nem uma explicitação
do caráter urbanístico que permitiria definir seus limites, o parecer técnico de Adler Homero recomenda
que o tombamento se faça, tendo em vista o interesse histórico do conjunto desses edifícios.
Muito prudentemente, o parecer evita discutir o valor arquitetônico desses bens culturais, vale dizer o
seu valor artístico. No caso, trata-se de um conjunto de edifícios de caráter eclético e de um jardim com
peças de mobiliário também de caráter eclético, o que conduz, no parecer, a uma discussão, igualmente
prudente, da possibilidade de serem incluídas em processos de tombamento obras de caráter eclético,
em contraste com as diretrizes que vigoravam no Iphan, em sua origem.
Ao parecer foi acrescentada uma manifestação da arquiteta Cláudia Girão Barroso, chefe da Divisão
de Estudos de Acautelamento, na qual a questão das resistências ao tombamento das obras de caráter
eclético foi retomada. Mas, em nenhum dos casos, foi feita recomendação para tombamento em função
das características de valor arquitetônico. O parecer destaca a importância, nesse conjunto, das obras
do arquiteto Ramos de Azevedo, como destaca a importância desse arquiteto na história da arquitetura
em São Paulo. Mas o tombamento é proposto com base na importância histórica do conjunto.
Em informação à Dra. Louise Ritzel, diretora do Deprot, a coordenadora de proteção, Emilia Stenzel
observa que
o historiador Fonseca de Castro faz, de forma clara e desprovida de antigas amarras
institucionais, uma revisão da compreensão institucional do ecletismo, com base na ação
desenvolvida em casos precedentes. A posição do historiador Adler, afinada com a historiografia
recente, sinaliza um entendimento mais diferenciado de valor artístico das obras produzidas no
período, distanciando-se dos julgamentos sumários produzidos outrora.
Assim sendo, manifesta-se no sentido de que “a indicação de inscrição do bem unicamente no Livro de
Tombo Histórico deriva da impossibilidade, apontada pelo historiador, de realização de estudos mais
profundos, dado o curto prazo disponível”.
O eixo da argumentação se fundamenta na importância do desenvolvimento econômico da província,
e depois estado de São Paulo, no final do Império e ao longo da Primeira República, com a economia
do café, a imigração e a industrialização. Com toda razão, o parecer indica a importância do bairro
e desse conjunto de edifícios como documentos dessa etapa histórica e de sua importância, seja para
302
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
o estado de São Paulo, seja para toda uma etapa histórica do Brasil, na qual o estado de São Paulo
desempenhou um papel fundamental.
Essa linha de argumentação nos parece adequada ao fim a que se destina, justificando plenamente a
proposta de tombamento. Mas há um outro aspecto que consideramos importante abordar, em função
dos problemas que estão surgindo nas cidades maiores, em todo o país. É a questão dos conjuntos
urbanos. Paralelamente à discussão sobre o adjetivo “histórico”, gostaríamos de aprofundar a discussão
sobre o substantivo “conjunto”. Se pudermos esclarecer melhor o que entendemos por conjunto,
poderemos encontrar critérios para estabelecer o seu valor e, com base nesses critérios, contribuir de
algum modo para estabelecer os limites da área correspondente ao conjunto e fundamentar melhor os
critérios de tombamento.
Tanto o parecer quanto a manifestação da Dra. Sista Souza dos Santos, chefe da Procuradoria Jurídica,
consideram que a delimitação da “área, chamada de entorno”, poderá ser estabelecida mais tarde, após
a decisão do Conselho, o que, ainda uma vez, é um critério de prudência. Mas, algumas observações
de ordem geral poderão contribuir para a busca de alguns critérios gerais por parte do Conselho
Consultivo, em casos da espécie.
A expressão “conjuntos urbanos”1 tem sido utilizada para indicar os grupos de edifícios com
características semelhantes, construídos na Europa a partir do Renascimento. Em sua origem, quase
sempre, esses edifícios dispunham-se ao redor de praças. Os exemplos mais antigos são provavelmente
a Galleria Degli Uffizi, em Florença, e a Place Dauphine, em Paris. A primeira característica desses
conjuntos é a semelhança entre os edifícios. A segunda é a integração desses edifícios em conjunto que
assume caráter monumental, ainda que, tomados isoladamente, os edifícios possam ser considerados
como relativamente simples.
Em um trabalho sobre conjuntos urbanos no Brasil colonial e no século XIX, procurávamos
mostrar como essa forma de organização da paisagem urbana correspondia a uma forma burguesa
de organização social, de integração das partes para formação de um conjunto mais complexo, em
contraste com a base de monumentalidade das obras isoladas, características das afirmações de poder
aristocrático2.
No final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, em Londres e Paris, tornaram-se comuns
bairros inteiros com uma solução urbanística de conjunto, integrando muitas quadras (como a Rue de
Rivoli, em Paris), várias praças e ruas (como Bloomsbury e New Kensington, em Londres) e grandes
parques e ruas, como na cidade de Bath. Mas, com a reforma de Paris, realizada por Haussmann, entre
1850 e 1870, o modelo de uso dos edifícios comuns, para formar um quadro urbanístico monumental,
foi estendido a grande parte dos bairros de uma metrópole.
A arquitetura quase neutra, dos edifícios de Paris, tornou-se como um pano de fundo para construção
de um grande cenário burguês, com seus bulevares e seus edifícios públicos monumentais, em pontos
destacados. Aqueles antigos critérios de organização urbanística eram estendidos a todo o conjunto
da cidade. Mas há um detalhe importante a ser destacado, no caso de Paris: é que as praças e ruas
dos antigos conjuntos, que haviam sido as únicas partes bem-organizadas antes da reforma, foram
integradas por esta e preservadas, com destaque.
1. Em nossos trabalhos mais recentes, temos preferido utilizar a expressão conjuntos urbanísticos, que nos parece mais adequada, pois
urbanos são todos os que se incluem nas cidades e urbanísticos são aqueles que apresentam alguma coerência.
2. REIS FILHO, Nestor Goulart. “Notas sobre o urbanismo barroco no Brasil”. In: Cadernos de Pesquisa do LAP, n. 3.
303
XVI. São Paulo
Edifício Ramos de Azevedo, antigo Gabinete de Eletrotécnica da Escola Politécnica, São Paulo. Foto: Mônica Zarattini, 2005.
Essa integração foi tão perfeita que quem visita Paris em nossos dias dificilmente consegue perceber
que a Place des Vosges, a Place de La Concorde e a Rue de Rivoli, tão bem integradas, não faziam parte
da reforma do terceiro quartel do século XIX. Quase todos os pontos focais dessa reforma urbanística
correspondem a remanescentes de projeto urbanísticos anteriores, realizados em áreas muito mais
restritas, que foram preservados e revalorizados pela reforma de Haussmann.
Um paralelo pode ser estabelecido com nossas cidades. Com exceção provável do Rio Janeiro, as
reformas realizadas nas principais cidades brasileiras corresponderam sempre a intervenções localizadas,
envolvendo pequenos setores urbanos, que em determinados períodos mereceram atenções por parte
das autoridades e intervenções de caráter pontual.
Em 1930, o Brasil apresentava um índice de urbanização de cerca de 30%, com uma população de
menos de quarenta milhões de habitantes, e São Paulo teria apenas novecentos mil habitantes. Nos
setenta anos que se seguiram, o Brasil se transformou em uma das nações mais populosas da Terra e a
região metropolitana de São Paulo, em um dos quatro maiores centros urbanos do mundo.
O modo acelerado como os espaços urbanos foram construídos e reconstruídos, destruídos ou
reformados, nos situa hoje em posição semelhante à de Paris nas etapas iniciais da industrialização da
França, antes das grandes reformas urbanísticas unificadoras de Haussmann e de seus seguidores, nas
várias regiões da Europa. Nesse quadro, conservam-se alguns conjuntos de edifícios e determinados
bairros – que são partes de cenários urbanos com suficiente representatividade histórica em suas
304
Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
épocas e com suficiente consistência enquanto quadros urbanísticos bem-realizados –, para justificar
sua preservação e integração no quadro geral de soluções mais coerentes, que devem ser elaboradas
para o futuro.
No caso brasileiro, as características desses conjuntos urbanos ou conjuntos urbanísticos exigem algumas
explicações. Os conjuntos urbanísticos europeus sempre se caracterizaram por uma forte disciplina
geral, que existia no Brasil no século XVIII e início do século XIX, como existiu em Lisboa, com a
construção da Baixa Pombalina, a partir da segunda metade do século XVIII. Mas, no final do século
XIX e ao longo do século XX, foi implantada no Brasil uma outra linha urbanística, de caráter liberal,
mais próximas dos padrões norte-americanos. No início do século XX, com a construção da avenida
Central no Rio de Janeiro e a reforma do Vale do Anhangabaú em São Paulo, ainda se conservava certo
sentido de uniformidade nos edifícios que compunham esses cenários urbanos.
Esses padrões se mantiveram também, de modo implícito, nos gabaritos estabelecidos para as ruas
e avenidas abertas em São Paulo, durante a administração de Prestes Maia, no final dos anos 1930
e início da década de 1940. Mas, depois da Segunda Guerra Mundial, com a crescente influência
americana e os estímulos oficiais à liberalização do mercado imobiliário, multiplicaram-se os arranha-
céus, com diferentes alturas.
Essas tendências, em termos urbanísticos, encontraram um paralelo e um complemento na difusão
dos padrões de arquitetura eclética, que se impuseram de modo mais consistente quando, nos bairros
em formação (como Campos Elíseos, Higienópolis e avenida Paulista, assim como no bairro da Luz),
começaram a ser construídas residências, bem como edifícios públicos, de caráter monumental, todos
isolados no centro dos terrenos, recuados em relação ao alinhamento das ruas, com jardins ao seu
redor, cada um deles como uma obra isolada, como uma negação formal dos rígidos princípios até
então seguidos nas chamadas “rua corredor”, com normas de uniformização das fachadas, que eram a
essência dos conjuntos urbanos de tipo tradicional.
Nesse quadro, seria possível a alguns afirmar que não poderiam existir os chamados conjuntos urbanos
ou, como queremos nós, conjuntos urbanísticos. Ou talvez possamos encontrar outros critérios para
identificar, nesse novo contexto, a presença de conjuntos que a realidade nos obriga a reconhecer que
existiram. Será, portanto, necessário rever e complementar os conceitos que utilizamos. Seria como
reconhecer que, afinal, a liberalização dos padrões urbanísticos e a liberalização estilística não reduziram
o tecido urbano a uma simples soma de suas partes. E reconhecer a existência, também nesses casos, de
determinadas diretrizes, conscientes ou inconscientes, de relação entre as partes e o conjunto.
O caso da área da Luz, em São Paulo, é bem um exemplo dessa situação. O velho jardim foi o ponto
de partida. Quase todos os edifícios incluídos no projeto se dispuseram ao seu redor ou sobre sua área
original. Para compreender essa relação, devemos retomar duas referências históricas fundamentais.
A primeira é que, à época da carta régia de criação do primitivo Horto Botânico, em fins do século
XVIII, um governador da capitania determinou que a área do antigo Campo da Luz fosse utilizada para
realização de uma feira semanal. Essa iniciativa respondeu muito provavelmente pela preservação da
grande largura mantida por aquela via, muito além das necessidades que nessa época eram reconhecidas
para uma via pública de qualquer tipo, ou seja, permitir a conservação de uma avenida com proporções
monumentais.
A segunda observação é que, à época da demarcação inicial, em 28 de setembro de 1799, “o senado da
câmara concedeu 20 datas de terra com testada de 273 braças”, para implantação do Jardim Botânico,
como observa Antônio Egídio Martins. Ora, 273 braças correspondiam a seiscentos metros de frente,
a partir da esquina da rua Mauá com a avenida Prestes Maia. Isso significa que a testada do primitivo
305
XVI. São Paulo
terreno incluía não apenas o atual Jardim da Luz, mas também o espaço que foi ocupado pelo antigo
presídio e pelas instalações da Policia Militar, ao seu lado, até a praça Fernando Prestes, após a qual se
iniciavam os terrenos em que esteve instalado o palacete do marquês de Três Rios, mais tarde adquirido
para a instalação da Escola Politécnica. O terreno inicial foi sendo sucessivamente recortado, de várias
formas, para instalação de serviços públicos. A primeira obra projetada na área foi o antigo Hospital
Militar, nunca concluído, que ficava no início dos terrenos do Horto Botânico, no local em que,
depois, foi instalada a primeira estação da São Paulo Railway, em 1865.
Em qualquer cidade, há sempre interesse em instalar edifícios públicos ao redor ou no interior dos
parques e jardins e junto a grandes avenidas, para conferir monumentalidade a essas obras. Os edifícios
construídos a partir da instalação do Jardim da Luz não fugiram a essa regra. Entre 1860 e 1865,
quando foi construída a São Paulo Railway, o governo provincial cedeu cerca de cinquenta metros do
jardim, de frente para o Campo da Luz, para ali ser instalada a nova estação. A área alcançava toda
a profundidade do parque, isto é, várias vezes os cinquenta metros de frente, provavelmente quase
duzentos metros de fundo.
O local era certamente privilegiado e, quando a Estrada de Ferro Sorocabana foi fundada, pouco anos
depois, sua primeira estação foi instalada na esquina da rua da Estação (hoje rua Maná), exatamente
no ponto em que terminavam as instalações da SPR. Ao fundo, ficavam os seus armazéns. Por volta de
1913, quando a Sorocabana esteve sob controle de Farquhar, foi na outra extremidade dessa área que se
construiu o novo edifício dos armazéns gerais, incluído agora como uma parte deste conjunto. E, nos
anos seguintes, quando foi construída a nova estação (Júlio Prestes), com o novo edifício de escritórios
de Sorocabana, este foi instalado no terreno ao lado, como uma continuação das obras anteriores,
definindo-se claramente como um conjunto.
A importância social desse conjunto, em fins do século XIX e nos primeiros anos do século XX, deve ser
registrada. Naqueles anos, os terrenos das ruas Brigadeiro Tobias e Florêncio de Abreu, mais próximos
da estação, foram ocupados por alguns dos mais importantes palacetes construídos na época, alguns
deles com projetos e sob direção de obra do Escritório Técnico Ramos de Azevedo. As fotografias
dessa época nos mostram também várias casas na avenida Tiradentes, nas proximidades da Escola
Politécnica, com importância equivalente. Ou seja, nos primeiros anos, a presença da estação e dos
serviços que ela atraía (como a implantação da primeira linha de bondes) conferiu prestígio social ao
bairro e constituiu fator de atração para as residências das camadas mais abastadas.
Importância semelhante adquiriram determinados setores do bairro de Santa Ifigênia, que foram
escolhidos para residência de famílias de prestígio, como Álvares Penteado, Guedes Penteado e Sampaio
Moreira. Importância que se estendeu ao bairro seguinte em formação, Campos Elíseos, que se inicia
exatamente onde termina o conjunto das estações, a seguir à Estação Júlio Prestes. Já o bairro de Bom
Retiro, que ficou isolado pela ferrovia e mais próximo da várzea do Tietê, se caracterizou como área
industrial e de habitação de classes mais pobres, o mesmo acontecendo com as quadras a leste da
avenida Tiradentes, em direção à Várzea do Tamanduateí.
Ou seja, na época em que os principais edifícios foram construídos ao redor do Jardim da Luz, entre
1890 e 1920, este era utilizado por famílias que residiam a pequena distância, que não dispunham
então de outro espaço público de convivência. E o sentido monumental da arquitetura de todos os
edifícios corresponde ao reconhecimento da importância social desse cenário para usufruto das classes
de renda mais alta.
É inegável, portanto, que o jardim e os edifícios ao seu redor formavam uma área de conjunto não
aleatório, que explorava as possibilidades de monumentalidade nessa parte da cidade. Antes da refor-
ma do Anhangabaú, que se estendeu entre 1913 e 1918, não havia em São Paulo um espaço público,
306
de importância equivalen-
te, que pudesse funcionar
como cenário para en-
contro social das famílias
das classes dominantes.
O que explica também
o empenho da adminis-
tração municipal em re-
formar frequentemente
o local, mantendo-o com
cuidados especiais. Depois
disso, o foco de atenções
deslocou-se para o Anhan-
gabaú, para Higienópolis
e avenida Paulista.
Os remanescentes desse
conjunto correspondem
ao que tem sido consi-
derado como patrimô-
nio ambiental urbano:
um conjunto de espaços
abertos e de edifícios
públicos e privados, com Hotel Queluz, São Paulo. Foto: Mônica Zarattini, 2005.
uma relativa coerência
entre si, que constituem
um marco nos espaços de vivência coletiva da população, em várias épocas. E que, por suas qualidades
e reconhecimento público, cabe preservar e integrar sem descaracterização, no quadro dos novos
espaços urbanos.
Com isso, queremos dizer que o conceito de patrimônio ambiental urbano corresponderá provavelmente
ao de conjuntos urbanos organizados em um quadro imobiliário e arquitetônico de caráter liberal,
mais fortemente diferenciado, que consegue manter algumas características gerais, permitindo o seu
reconhecimento como um conjunto.
Ou seja, a importância histórica dessa série de edifícios e espaços abertos pode e deve ser reconhecida
como formando um conjunto, do ponto de vista urbanístico, cuja característica principal não é a
homogeneidade, mas a presença de todos eles em um espaço público que se pretendia monumental,
com uma importância que terminou por estabelecer critérios para organização da arquitetura dos
edifícios privados ao seu redor, como demonstram os remanescentes.
Por razões de ordem prática, com a mesma prudência dos pareceres dos quadros técnicos do Iphan,
recomendamos o tombamento com inscrição no livro de bens de interesse histórico. Mas, nosso parecer
é que, no momento de ser elaborado, a posteriori, o estudo para delimitação da área, que se faça de forma
a enfatizar tratar-se de um conjunto de interesse histórico mas certamente de um conjunto urbanístico,
cuja importância supera o valor de cada um de seus edifícios, se tomados isoladamente. E, no futuro, que
se pense na possibilidade de tombamento de conjuntos urbanísticos, pelo seu valor cultural.
307
XVII. Sergipe
308
XVII. Sergipe
PROCESSO: 1.288-T-89
RELATOR: AUGUSTO C. DA SILVA TELLES
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 11 DE SETEMBRO DE 1995
Gostaria de abordar, no momento em que o núcleo histórico de Laranjeiras está sendo indicado para
inscrição nos Livros de Tombo deste Instituto, o problema da Capela de Nossa Senhora da Conceição
de Comandaroba. Edificada pelos jesuítas na década de 1730 (1734 é a data inscrita na elegante e rica
portada de cantaria de entrada da nave), é bem tombado desde 1943. Igreja de peregrinação, apresenta
um partido nato raro em edifícios congêneres, onde galerias abertas contornam a nave, pela frente e
pelos lados.
Exemplar semelhante, igualmente requintado nos elementos arquitetônicos, é a igreja setecentista de
Nossa Senhora da Encarnação, localizada em um outeiro fronteiro ao Castelo de Leiria, em Portugal.
Com caráter mais simples, encontramos em município vizinho a Laranjeiras a Capela de Nossa Senhora
da Conceição, em Santo Amaro das Brotas. Podemos citar igualmente a Igreja de São Miguel, em São
Miguel Paulista e a Capela de Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes, ambas em São Paulo.
Essa capela rural de Comandaroba localiza-se em propriedade particular, onde se cultiva a cana-de-
açúcar, já tendo sido beneficiada por obras do Iphan por diversas vezes – obras extensas, nas coberturas,
esquadrias e na rede elétrica. Agora, segundo relatório enviado pela municipalidade, encontra-se
novamente “em mau estado de conservação e processo de ruína cada vez mais agravado, com goteiras,
trincaduras, madeiramento etc.”.
Sugerimos então – e já expressamos isto à Sra. coordenadora regional de Sergipe – a definição de uma
área envoltória que seria considerada de tombamento ou de entorno, visando facilitar um entendimento
Aspecto do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Laranjeiras. Foto: Anderson Schneider, 2005.
309
XVII. Sergipe
com a municipalidade de Laranjeiras, no sentido de ser a capela desapropriada ou adquirida pelo poder
público. Uma das hipóteses seria, para a obtenção de recursos, a mobilização da Empresa Votorantim,
que tem uma de suas fábricas localizada no município e é a proprietária e mantenedora da capela, da
casa grande e das senzalas da Fazenda Retiro.
PARECER
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Vista do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de Laranjeiras. Foto: Anderson Schneider, 2005.
acentuada no local, e nas faldas dos outeiros localizados ao sul. É uma trama irregular, não ortogonal,
como a da quase totalidade das cidades brasileiras. Nesses logradouros, as edificações com um ou dois
pisos se sucedem, definindo os alinhamentos e colando-se umas às outras. Essas casas, que definem ruas
e praça, não se apresentam enfaticamente. Ao contrário, formam ritmos contínuos, com seus vãos de
portas e janelas, alguns com balcões sacados ou entalados, seus cunhais, suas cimalhas com os telhados
formando beirais.
O Mercado, à beira do rio – edificação de meados do século XIX –, é ainda hoje elemento polarizador
do núcleo urbano. Deve-se notar também, como elemento diferenciado, a ponte do Açougue, também
denominada ponte Nova, próxima à Igreja da Nossa Senhora da Conceição, obra de cantaria. A
observar ainda o grande número de largos e praças, incomum nas demais cidades brasileiras, alguns
ladeando as igrejas ou servindo de adro às mesmas.
Em Laranjeiras, o acervo de arquitetura civil, residencial e comercial se sobressai do conjunto das
edificações religiosas, diferentemente do que acontece à quase totalidade das cidades brasileiras, como,
por exemplo, em São Cristóvão, sua vizinha.
Com a decadência ocorrida no final do século passado e início deste, perdeu-se número considerável
de edificações, que, ruindo parcial ou totalmente, formaram vazios ao longo dos logradouros, o que
demandará estudo acurado quanto ao seu preenchimento ou não.
Concluindo este relatório, sugiro a aprovação, por este Conselho, da inscrição da Cidade de Laranjeiras nos
Livros de Tombo deste Instituto – Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, Livro das Belas Artes e
Livro Histórico – e, bem assim, a definição da área de entorno, conforme está proposto neste processo.
Rio de Janeiro, 8 de setembro de 1995.
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XVIII. Tocantins
312
XVIII. T ocantins
PROCESSO: 1.117-T-84
RELATOR: GILBERTO VELHO
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 13 DE JANEIRO DE 1987
Ruínas da Igreja de N. Sra. do Rosário dos Pretos, Natividade. Foto: Wagner Araújo, 2005.
313
XVIII. Tocantins
314
Exemplar da arquitetura civil de Natividade. Foto: Heitor Reali, 2009.
Rio de Janeiro, 2 de
dezembro de 1986.
315
XVIII. Tocantins
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Porto Nacional – TO | 2008
PROCESSO: 1.153-T-08
RELATOR: MARCOS CASTRIOTO DE AZAMBUJA
REUNIÃO DO CONSELHO: RIO DE JANEIRO, 27 DE NOVEMBRO DE 2008
A busca incessante do ouro – cada vez mais distante da costa e encontrado quase sempre em menores
quantidades – explica em parte a expansão do Brasil em direção ao Oeste, no correr do século XIX, ao
longo de rios e trilhas, à beira dos quais se criavam assentamentos cada vez mais modestos e remotos.
O ouro, tão abundante nas primeiras décadas de sua exploração em Vila Rica e seu entorno nas Minas
Gerais, se faz mais escasso e é mais rapidamente esgotado em lavras sucessivas, como foi o caso na Vila
Boa de Goiás (a atual Goiás Velho), e vai ficando ainda mais rarefeito quando se chega às margens do
Tocantins, àquele fim de linha que representava o grande rio em cuja margem se fundou um Porto,
primeiro Real, depois Imperial, e agora – e isso já por muitas décadas republicanas – Nacional.
O impulso desbravador e bandeirante em Porto Nacional perde o fôlego e faz pausa. Mais que o ouro,
vai ser o gado – que caminhou tanto quanto os homens, desde as costas de Pernambuco e da Bahia
–, que será a matriz mais duradoura da sobrevivência e da prosperidade da gente que até lá chegou.
Depois virá a agricultura, e da época do ouro só ficam as lembranças e, no antigo arraial, o testemunho
de um traçado urbano e de algumas poucas edificações.
O que em Porto Nacional avulta hoje é a Catedral, construída pelos missionários dominicanos franceses
que se estabelecem naquelas paragens na última quadra do século XIX.
Onde ela se ergue hoje, havia antes uma capela dedicada a N. Sra. das Mercês, que, pelos desenhos feitos
por Burchell, em 1829, se harmonizava e se integrava com seu largo e com o casario baixo que a circundava.
Porto Real teria então um aspecto semelhante ao das vilas mineiras e goianas, nas quais, entre a sociedade
civil e o mundo eclesiástico, guardava-se um equilíbrio brasileiramente risonho e harmonioso.
Detalhe da Catedral de N. Sra. das Mercês, Porto Nacional. Foto: Heitor Reali, 2009.
317
XVIII. Tocantins
Os padres dominicanos franceses, ao decidir pela demolição da antiga capela e pela construção da nova
igreja, mostravam que vinham de uma outra matriz cultural. A catedral das antigas cidades francesas
não se integra, a rigor, à paisagem urbana. Impõe-se como um poder maior e como expressão de uma
ascendência. O objetivo era provocar nos fiéis um temor reverencial inspirado por edificações que,
pelas suas próprias dimensões, demonstravam a supremacia do sagrado sobre o profano.
Era de certo modo natural que assim fosse na Idade Média, e mesmo nos séculos imediatamente
seguintes, mas já no fim do século XIX e começo do XX – quando a Catedral de Porto Nacional é
planejada e edificada – já seria na França uma anomalia e um anacronismo procurar estabelecer, de
forma tão evidente, o domínio do espiritual sobre o temporal. Isso contrastaria até mesmo com o
caráter laico da Revolução Francesa e o espírito republicano que a definiu.
As dimensões e a situação da Catedral de Porto Nacional, no coração do Brasil central, vão encontrar
assim referência na própria França pré-revolucionária, e essas circunstâncias acrescentam uma dimensão
de relativo anacronismo e de curiosidade histórica, e mesmo política, a essa destacada edificação.
Essa singular Catedral à beira-rio, dominando a paisagem urbana que a cerca, tem inegável interesse,
como testemunho de um momento da história brasileira e da presença e influência dos missionários
religiosos franceses no Centro-Oeste do Brasil, assim como teve importância decisiva uma outra missão
francesa – essa civil e artística – que aportou no Rio de Janeiro, em 1816.
Ao ler a documentação que informa o processo, fiquei impressionado (e de maneira muito favorável)
pelo interesse do jovem estado de Tocantins e da Prefeitura de Porto Nacional em ter resgatada sua
memória e fortalecidas as bases de sua história. Porto Nacional se oferece, com excelentes credenciais,
como a capital cultural – ou pelo menos como um grande polo cultural do estado –, e é no seu centro
histórico que a gente da terra e os alunos e professores das duas universidades que ali funcionam irão
buscar os motivos de orgulho do passado e o impulso para a construção de um futuro que preserve a
memória da comunidade.
É, também, para essa fixação da memória e para resgate e conservação dos esforços passados da nossa
gente que estamos aqui neste Conselho.
Em toda a excelente documentação de que me servi na preparação deste parecer não encontrei voz
discordante sobre o mérito do tombamento e seu efeito benéfico para o cuidado do Centro Histórico
de Porto Nacional e para a autoestima do estado de Tocantins, que – novo na sua denominação e na
autonomia administrativa atual – é contudo herdeiro de uma vigorosa tradição que remonta aos fins
dos século XVIII e, sobretudo, ao início do século XIX.
Concentrei-me até agora, nesses comentários, na Catedral e em seu tombamento porque ela é o
que mais se destaca na paisagem. O processo, entretanto, trata do tombamento dela no contexto do
Centro Histórico de Porto Nacional e a descrição da poligonal da área a ser tombada consta, de forma
minuciosa, da folha 37, assim como a poligonal de entorno é definida na página 38, ambas do anexo
II do “Dossiê de Tombamento do Centro Histórico de Porto Nacional”.
Dentro da área a ser tombada, estão (e cito um trecho da página 35 do dossiê) “localizados, além
das edificações vernaculares, os edifícios mais singulares do Centro Histórico. Estão aí a Catedral,
o Seminário, a Cúria, o Caetanato, ou o antigo colégio de freiras (...), a outrora Casa de Câmara e
Cadeia, o casarão dos Ayres e dos Maya”.
A argumentação aduzida pela arquiteta Anna Elisa Finger na elaboração do processo é valiosa e
pertinente e foi assim reconhecida nos pareceres do procurador-geral substituto Antônio Fernando
Alves Leal Neri e da procuradora-geral Lúcia Sampaio Alho.
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Pareceres do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural – Volume 1
Catedral de N. Sra. das Mercês, Porto Nacional. Foto: Heitor Reali, 2009.
Observo, ainda, que o presidente do Iphan enviou oportunamente ao governador do estado de Tocantins,
ao prefeito de Porto Nacional e à gerente regional do SPU no estado do Tocantins a correspondência
devida sobre o processo de que ora me ocupo.
Nessas condições, submeto a este Conselho minha recomendação de que o Centro Histórico de Porto
Nacional tenha o seu tombamento inscrito no Livro do Tombo Histórico, conforme disposto no artigo
4º do Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937.
Permito-me argumentar a contrario sensu. O não tombamento sinalizaria uma indiferença, que seria o
sentimento oposto daquele que move este Conselho, e desestimularia comunidades dispersas dentro
de nossa imensa extensão territorial em lutar pela causa de construir o novo sem sacrifício das raízes,
sobre as quais esse mesmo progresso se deve assentar.
Peço licença para uma digressão de caráter intensamente pessoal. Conheci na minha infância e
primeira mocidade um sacerdote dominicano francês – Dom Alano du Noday –, que era o bispo
de Porto Nacional. Era amigo de minha avó, Carlota Castrioto, que o ajudava regularmente, e ao
longo de muitos anos, a conseguir recursos e donativos para sua diocese. Foi bispo de Porto Nacional
por mais de trinta anos. Ao atingir a idade do afastamento compulsório, continuou nas margens do
Tocantins cumprindo uma missão que, para ele, nunca acabaria. Foi homem de coragem, de virtude
e de exemplar humildade. Escrevi este parecer com essas lembranças muito presentes e não podia
deixar de fazer a Dom Alano uma comovida referência e, através dele, honrar aqueles padres e freiras
franceses, cuja obra no Brasil central hoje ajudamos a preservar.
Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2008.
319
P ATR I M Ô N I O C ULT UR AL
DO
P ARECERES DO C ONSELHO C ONSULTIVO DO
P ATRIMÔNIO C ULTURAL
DO
P A RE CE RE S
VOL