Documentação, Conservação E Restauração Conjunto Da Pampulha Entre Iepha E Icomos: A Lenta Difusão Dos Princípios Da Conservação
Documentação, Conservação E Restauração Conjunto Da Pampulha Entre Iepha E Icomos: A Lenta Difusão Dos Princípios Da Conservação
Documentação, Conservação E Restauração Conjunto Da Pampulha Entre Iepha E Icomos: A Lenta Difusão Dos Princípios Da Conservação
RESUMO
A partir da análise de dois episódios relacionados ao Conjunto Moderno da Pampulha, o trabalho
discute como reconhecer e conservar o patrimônio do século XX, no contexto do debate já
consolidado sobre o tema, em que se diferenciam ao menos duas posições: a defesa dos princípios
gerais da conservação; e a defesa de princípios próprios para os bens culturais do século XX. No
primeiro episódio, observamos o antigo Cassino da Pampulha ser tratado segundo os princípios
grosso modo ligados à Carta de Veneza, como parte das atividades habituais de licenciamento e
fiscalização do Iepha; vemos a cultura profissional de uma instituição se sobrepor a uma possível
perplexidade advinda da lida com um objeto tão diferente dos bens tombados mais comuns em Minas
Gerais. No segundo episódio, observamos o Conjunto Moderno da Pampulha ser considerado
exclusivamente por suas ideias originais, desconsiderando sua história, segundo princípios que se
difundiram juntamente com o Docomomo Internacional. Isto ocorreu no parecer do Icomos que
recomendou a inscrição da Pampulha como patrimônio da humanidade, ocasião em que o Conselho
atuou de forma surpreendentemente contrária aos seus próprios documentos norteadores –
especificamente, o Documento de Madri-Nova Déli (Abordagens para a conservação do patrimônio do
século XX). A partir dessas situações, exploramos questões que permanecem em aberto: a) até que
ponto a precoce proteção patrimonial de edifícios modernos no Brasil ajudou a naturalizar sua
conservação dentro dos princípios disciplinares? b) até que ponto a sedimentação de uma visão
restrita sobre como se deve preservar o patrimônio do século XX se cristalizou no próprio Icomos,
dificultando a implantação dos princípios do Documento de Madri-Nova Déli?
O estudo do Museu de Arte abarca dois momentos de concentração de interesse sobre essa
obra (1979-1984 e 1993-1997), que incluíram a realização de duas intervenções de vulto
considerável e novos reconhecimentos patrimoniais em âmbito estadual e federal. Da farta
documentação gerada por tais processos, exploramos essencialmente aquela presente nos
1Nesse período, Sylvio de Vasconcellos (Belo Horizonte, 1916 – Washington, DC, 1979) foi personagem central.
Enquanto diretor do Museu, coordenou esforços para levantar os recursos necessários à primeira intervenção de
maior escala realizada no prédio, em 1958 e 1959, (Relatório, 1960). Enquanto chefe do 3º Distrito da Dphan,
curiosamente, Vasconcellos recebeu o processo em fevereiro de 1959 e não lhe deu qualquer andamento.
Engenheiro-arquiteto formado na UFMG em 1944, autor de diversos livros sobre história da arquitetura e de
diversos projetos construídos na capital mineira. Ex-chefe da Diretoria Regional do Iphan em Minas Gerais,
professor catedrático e ex-diretor da Escola de Arquitetura da UFMG (Mello, 1979).
2 Seguindo posicionamento do Icomos e contribuições recentes sobre o tema (Carvalho, 2018), o objeto deste
texto se insere na ampla discussão do patrimônio do século XX – recorte puramente temporal. Contudo, ao tratar
especificamente do Conjunto da Pampulha ou do Docomomo, usaremos também os termos arquitetura moderna
e Movimento Moderno, que a eles podem ser aplicados com segurança.
4º Simpósio Cientifico do Icomos Brasil / 1º Simposio Científico Icomos-LAC
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arquivos do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) e
do Centro de Documentação e Conservação do próprio Museu (Cedoc/MAP). Não se
exauriram os acervos existentes, dentre os quais destacamos o Arquivo Público Municipal,
mas houve acesso a informações detalhadas e posicionamentos institucionais e
profissionais férteis para a análise.
Por sua vez, a visão da arquitetura moderna como integrada os princípios disciplinares da
preservação parte dos profissionais vinculados ao campo, que vêm defendendo a
importância da história e da materialidade desses bens culturais, especialmente Marco
Dezzi Bardeschi (1984; 1996), Giovanni Carbonara (1996), Simona Salvo (2016) e, fora da
Itália, Beatriz Kühl (2006) e Ascensión Martínez (2007). Segundo sua visão, o predomínio da
ideia original e do desempenho funcional deixaria esse patrimônio preso em um presente
Para além dessas visões voltadas ao patrimônio do século XX, a teoria da preservação na
contemporaneidade segue baseada na crítica ao que se convencionou chamar de teoria
moderna da conservação (Price et al, 1996). Há propostas, especialmente institucionais,
voltadas para a ampliação e a democratização do campo, em seus objetos, sujeitos,
cosmovisões, discursos e direitos envolvidos, o que resultou em textos conciliatórios e
inclusivos, como o do Documento de Nara sobre Autenticidade (Documento, 1994; Larsen,
1995). Por outro lado, viceja também uma rancorosa negação da disciplina, voltada para
pouco ou nada mais que a desconstrução da Carta da Veneza; desenvolvem-se reflexões
sofisticadas para concluir que o senso comum e a prática não-reflexiva são superiores às
teorias da conservação e restauração (Ashley-Smith, 2009) ou que as decisões de
intervenção são puramente subjetivas e baseadas no gosto pessoal dos envolvidos (Viñas,
2009).
Desse panorama, emergiu, como posição de síntese para a melhor prática contemporânea o
Documento de Madri-Nova Déli (Icomos -- ISC20C, 2017), do Comitê científico internacional
para o patrimônio do século XX do Icomos (ISC20C), cuja primeira versão é de 2011
(Icomos – ISC20C, 2011). Partindo da preservação baseada em valores, o documento
propõe que o patrimônio do século XX deve ser tratado de acordo com os princípios
disciplinares válidos, o que inclui a necessidade de reconhecimento dos valores e de seus
atributos, caso a caso. Como resultado prático, pode-se privilegiar a concepção ou a
matéria, conforme o bem em questão, porém partindo do pressuposto da máxima
preservação possível, sem excluir, a priori, valores e atributos para toda a produção de um
período.
De forma análoga ao que se dera entre 1957 e 1960, este foi um segundo momento de
concentração de interesse público pelo prédio, que levou à produção de documentação
variada, notícias de jornal, processo licitatório, execução de obra, além de medidas
institucionais – no caso, a abertura de processo de tombamento estadual, em 1981 (Martins,
2019, p. 3).
O projeto de 1979 não foi executado de pronto, mas a maioria das intervenções ali
propostas foi contemplada na obra de 1984, de responsabilidade da Prefeitura Municipal,
por meio da Sudecap, que contratou a empresa GGC Construções e Participações Ltda
(GGC, 1984).4 O escopo da obra incluiu manutenção de materiais e revestimentos em geral,
manutenção da cobertura, substituição de infraestrutura hidráulica e alterações pontuais de
organização espacial (figura 3).
3 Ivo Porto de Menezes (Belo Horizonte, 1928), engenheiro-arquiteto formado na UFMG em 1954, autor de
diversos livros sobre história da arquitetura. Ex-chefe do escritório do Iphan em Ouro Preto, ex-diretor do Arquivo
Público Mineiro, participante do primeiro Conselho DIretor do Iepha, professor assistente de Sylvio de
Vasconcellos e posteriormente professor emérito da UFMG (Werneck, 2018).
4 Comparando as pranchas de 1979 e as planilhas de serviço de 1984, concluímos que se trata do mesmo
escopo, voltado para a conservação física e melhoria de instalações, mas não do mesmo projeto (GGC, 1984;
Menezes, 1979b; Sudecap, 1984).
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Figura 1. Museu de Arte da Pampulha. Transformações espaciais 1942-1979, organizadas
pela pesquisa a partir da comparação entre Macedo (2008) e Menezes (1979a).
Essa abordagem fora escolhida ainda em 1979 – antes de qualquer pedido de proteção
legal, o que se observa nos serviços especificados e na própria denominação Projeto de
Restauração (Menezes, 1979b). Esta foi mais uma ocasião em que o caráter especial da
arquitetura da Pampulha foi publicamente reconhecido – como fora pela imprensa, quando
de sua inauguração, pelo Iphan, com o tombamento da Capela de São Francisco de Assis, e
pela Prefeitura Municipal, quando do pedido de tombamento federal em 1959.
A obra em questão aponta para a passagem suave entre a lida com objetos de um passado
mais distante e a lida com objetos do século XX; aos últimos foi aplicado, com naturalidade,
o mesmo repertório de princípios consolidado para os primeiros. Apontando na mesma
direção, observe-se que, em 1981, uma vez iniciado o processo de tombamento, as fichas
de inventário produzidas pelo Iepha seguiam o padrão rotineiro do Instituto – sem registro de
questionamento quanto à sua pertinência para aquele edifício não rotineiro (figura 2).
5 A documentação do arquivo do Iepha permite acompanhar os debates, cobertos pelos jornais locais,
envolvendo aquele órgão de preservação, o Iphan, a direção do Museu, a Secretaria Municipal de Meio
Ambiente, o Instituto Estadual de Florestas e o IAB-MG. Foram consideradas as alternativas de manutenção,
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O diagnóstico, o projeto de intervenção e a maioria dos projetos complementares foram
desenvolvidos por meio de contrato da Secretaria Municipal de Cultura com o escritório
Século 30 Arquitetura e Restauro, tendo à frente as arquitetas Zenobia Grzybowski e Maria
Carmen Perilo (Grzybowski; Perilo, 1994a, 1994b). O escopo incluiu ainda a eliminação do
telhado que fora sobreposto à laje impermeabilizada na década de 1970, o que implicou em
projeto específico (Marques, 1996). Embora formalmente adequada, a solução não foi capaz
de solucionar as infiltrações recorrentes, o que levou à repetição das obras nos anos
seguintes.
As obras foram iniciadas em 1995 e concluídas em 1996, contratadas pela Sudecap junto à
Construtora Mohallem Ltda., com financiamento conjunto da Prefeitura Municipal, da
Fundação Roberto Marinho e do Banco Real (MAP, 1996). Observamos, aí, um terceiro ciclo
de entusiasmo pelo prédio, que dessa vez se traduziu nas obras, no financiamento de
grandes entes nacionais e em mais um tombamento, desta vez federal, por meio de
processo aberto em 1994 e concluído em 1997 (Iphan, 1994).
No início das obras, quando se percebeu a gravidade da interferência das raízes das
árvores adjacentes ao prédio, ganhou força a ideia da recomposição do paisagismo de Burle
Marx de 1942, que fora profundamente comprometido ao longo das décadas. Os projetos
(Mourão, 1995; Ono, 1995) se incorporaram ao escopo das obras e foram executados em
1996, configurando a restauração completa que interessava aos agentes nacionais
envolvidos.
poda ou eliminação dos espécimes de Ficus elastica e Delonix regia, incorporados à paisagem da lagoa, mas
prejudiciais à visibilidade do edifício e à integridade do projeto paisagístico. Eles foram erradicados em 1996,
durante a restauração dos jardins.
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Figura 4. Museu de Arte da Pampulha. Transformações espaciais 1994-2013, organizadas
pela pesquisa a partir de Macedo (2008), Grzybowski e Perilo (1994a) e Santiago et al
(2013).
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1. “Harmonização tipológica”, que consistiu na eliminação de coletores pluviais
externos, de uma escada externa e de outras adições no pavimento térreo,
justapostas aos volumes principais. O entendimento de projeto, aprovado pelo Iepha,
foi de que eram “elementos apostos, identificados como descaracterizadores” – ou
seja, prejudicavam a apreensão do edifício, afetando seu valor estético (Grzybowski;
Perilo, 1994b).
2. “Harmonização funcional”, que consistiu em reforma completa das áreas de serviço
para adequá-las às funções requeridas pelo museu, incluindo, ainda, nas áreas de
público, reforma do antigo bar, com substituição do balcão e ampliação do volume
dos sanitários, para comportar uma unidade masculina e outra feminina.
(Grzybowski; Perilo, 1994b).
3. Saneamento de “problemas de degradação física”, que consistiu na compactação do
terreno na área afetada (sem necessidade de atuação direta nas fundações), a
recuperação de esquadrias e acabamentos e a substituição de instalações elétricas,
telefônicas e hidrossanitárias (Grzybowski; Perilo, 1994b).
O tratamento diferente dado às áreas de público e de serviço não se baseou apenas no
aspecto funcional. Tal diferença remonta à intenção projetual de separação física e de
hierarquia entre esses grupos de espaços, o que se traduziu, desde a concepção, em
espaços de maior investimento arquitetônico em paralelo a espaços mais corriqueiros. A
fronteira entre os grupos de espaços é a grande parede de espelhos rosados – que não
separa duas realidades simétricas, mas, ao contrário, reflete os espaços de público sobre si
mesmos, e os separa das áreas de serviço. Isto foi tacitamente reconhecido nas obras
realizadas ao longo do tempo, de forma que o projeto de 1994 encontrou o edifício em
situação não incomum: combinando um conjunto de espaços (de público) com forte
continuidade ao longo do tempo e um conjunto de espaços (de serviço) onde a tônica foi a
transformação.
Focadas em elementos que de fato mais prejudicavam os valores do prédio do que a eles se
somavam, as eliminações propostas enquanto harmonização tipológica tornaram mais clara
a leitura volumétrica do edifício e, ao não refazerem os pilotis das áreas de serviço,
preservaram as funções do térreo (importantes para o museu) e escaparam de uma
repristinação acrítica. É mérito deste aspecto da intervenção ter previsto soluções projetuais
para as eliminações, sem incidir no engano de que, uma vez demolidos os acréscimos, o
resultado estaria resolvido. No pequeno pátio criado, foi previsto um banco curvo, que dá
caráter próprio ao espaço; em lugar da escada foi previsto um piso rampeado – solução
formal adequada para o problema funcional dado (figura 6).
Figura 6. À esquerda, novo pátio em área descoberta recriada. À direita, nova rampa,
substituição à escada demolida.
Por sua vez, a solução volumétrica para ampliação dos banheiros pretendeu-se nova
criação integrada à preexistência, sem pretensões de mimese nem de invisibilidade, com
resultado também adequado.
A reestruturação geral das áreas de serviço, por sua vez, foi aprovada sem maiores
questionamentos, o que entendemos se dever às diferenças já apontadas entre as elas e as
áreas de público. Mesmo assim, algumas divergências pontuais no licenciamento e na
execução permitem discutir como o edifício foi interpretado e valorado pela equipe de
projeto e pela equipe de fiscalização – viabilizando a discussão da própria cultura da
preservação presente, objeto do presente texto.
Iepha, 1995
Para além do valor documental, há valores estéticos e de memória nesses espaços. O
inusitado toucador do banheiro feminino tem origem incerta, dado que não aparece nos
projetos iniciais publicados, mas evoca claramente os usos noturnos anteriores à
implantação do museu. Além disso, ambos os banheiros apresentavam um conjunto de
louças, metais, revestimentos cerâmicos e luminárias de datação também incerta, mas de
6 A ordem de serviço fora emitida pela Sudecap em janeiro de 1995 (SUDECAP, 1995).
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aparência indefinidamente antiga, que formava um conjunto que viabilizava a experiência do
passado.7
Durante a execução, não foi possível aproveitar a maioria das louças e metais, apenas os
lavatórios e suas torneiras. As novas peças instaladas foram escolhidas pelo design que
remetia ao passado. Como resultado, tanto em seus elementos reaproveitados, como
naqueles inseridos em 1995-1996, os banheiros continuaram apresentando um aspecto
formal decididamente antigo, parcialmente preservado e parcialmente refeito durante a obra.
O projeto previa a eliminação completa das calotas e das pastilhas, por não se integrarem
ao novo projeto, e a transformação de parte das esquadrias, por razões funcionais. O
parecer do Iepha aprovou a alteração das esquadrias (que tinham justificativa) e a
eliminação das calotas (talvez por não mais fazerem sentido com a nova iluminação), mas
determinou a permanência das pastilhas – presumimos que pela ausência de justificativa
clara para sua retirada (Iepha, 1995).
Durante as obras, a fiscalização tentou manter também as calotas embutidas nas lajes, no
esforço era de “manter a originalidade da matéria” (Lins, 2020), mas a equipe de projeto as
via como desprovidas de valor: “Do ponto de vista da preservação, qual a relevância de se
7A discussão sobre a conceituação de valores culturais escapa ao presente artigo. Perceba-se, contudo, que o
valor desse banheiro, ao permitir uma experiência direta do passado, se aproxima ao valor de antiguidade de
Alois Riegl (2013) e ao historic value conforme definido em alguns países de língua inglesa, concebido como
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manter algumas cavidades para iluminação incandescente em ambientes totalmente
reformulados quanto ao uso, agenciamento e materiais de acabamento?” (Perilo, 1996).
O interesse do Iepha pelas pastilhas e pelas calotas semiesféricas não nos parece mera
curiosidade arqueológica por fragmentos. Ao contrário, embora relativamente
descontextualizados, esses elementos podem ser valorizados, criticamente, considerando
seu efeito naquele lugar: sua discreta dissonância na nova unidade (contemporânea) de
espaços sem maior valor, traz ao observador uma nota de interesse, de outra forma
inexistente.
diferenciado do documental value, e ligado à experiência subjetiva do passado (English Heritage, 2008; CHP,
2010).
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Na documentação da segunda obra, que ocorria em paralelo à expansão do debate no
Brasil, esses argumentos não se apresentam, evidenciando, nessa disjunção temporal, a
forma lenta como se difundem, se incorporam e se aplicam os debates conceituais sobre a
preservação do patrimônio cultural.
Em síntese, são positivos os resultados da atuação narrada. Em que pese a crônica falta de
manutenção cotidiana do Museu – que tem contribuído para sua lenta degradação e, mais
grave, para seus recorrentes problemas de estanqueidade na cobertura, nas esquadrias e
nas instalações – os princípios de obra e de execução utilizados nas intervenções
analisadas conseguiram resguardar os aspectos fundamentais de sua espacialidade, sua
materialidade e sua fruição – seus valores históricos, estéticos e sociais. Ou seja, foi bem-
sucedido o Iepha ao tratar o Museu de Arte da Pampulha com a complexidade própria do
patrimônio cultural que ele é – e não como mera representação construída de um projeto
arquitetônico.
8 O parecer apresentado pelo Icomos baseia-se na documentação brasileira e na visita realizada pela
especialista, mas é institucional, e não pessoal. María Eugenia Bacci, arquiteta formada na Universidade Central
da Venezuela em 1977, diretora do Conselho de Preservação e Desenvolvimento da Universidade Central da
Venezuela.
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partir das primeiras décadas do século XX” (Iphan/ FMC-BH, 2014, p. 18). Para caracterizar
essa nova síntese excepcional, recapitulam-se, essencialmente, argumentos relacionados
aos saberes disciplinares da arquitetura e do paisagismo, absorvendo a bibliografia
brasileira e internacional sobre a Pampulha e sobre as figuras excepcionais de Oscar
Niemeyer e de Roberto Burle Marx.
A consequência mais evidente da visão do parecer foi que, na versão revisada do dossiê,
aprovada pela Unesco, foi incluído um conjunto de propostas de refazimento da arquitetura
e da paisagem conforme o original, sem que seja citada qualquer perspectiva crítica, desde
a escala dos jardins do Iate Clube e da Praça Dino Barbieri, passando pelo interior da sede
do Iate Clube e alcançando a entrada da Casa do Baile. Trata-se exatamente dos elementos
que configuram a debilidade na autenticidade apontada no parecer do Icomos, que geraram
um plano de intervenções “preparado de acordo com as necessidades identificadas durante
o processo de candidatura, considerando as análises e considerações apresentadas pelo
Icomos/Unesco” (Iphan/ FMC-BH, 2016, p. 388).
Nas duas obras do Museu de Arte, vimos a continuidade de uma prática do Iepha, com
orientação claramente definida pela intenção de preservação da matéria e da imagem (cf.
Bierrenbach, 2017), consideradas também a história e as necessidades funcionais – o que
pode ser lido, grosso modo, como continuidade à Carta de Veneza. O projeto de intervenção
de 1994-1996 é mais restrito em sua leitura de quais elementos mereceriam
preservação, mas compartilha dos princípios gerais descritos. A pequena escala das
divergências identificadas mostra como ambas as equipes, compartilhavam um
entendimento profissional sobre como conservar o patrimônio.
No parecer do Icomos sobre a mesma candidatura, evidencia-se uma terceira visão sobre a
preservação do patrimônio cultural, que em sua busca por um estado ideal remonta, em
última análise, ao século XIX, mas que foi impulsionada, nas últimas décadas, por duas
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correntes de pensamento referidas na Introdução – aquela que defende uma preservação à
parte para o patrimônio do século XX e aquela que advoga o puro subjetivismo em lugar da
reflexão disciplinar.
O caso da Pampulha não indica, evidentemente, que esta é a posição do Comitê do Século
XX do Icomos; uma afirmação generalizante seria impossível a partir de um único caso, e o
próprio Documento de Madri-Nova Déli demonstra outro caminho. O parecer institucional
que orientou a versão final do Dossiê indica, contudo, que os processos internos do Comitê
não são suficientes para consolidar uma posição institucional mais coesa.
Por sua vez, as atuações locais do Iepha e da Comissão de candidatura, embora com
matrizes conceituais diferentes, são afirmações do campo da conservação e demonstrações
da sua capacidade de tratar com segurança do patrimônio do século XX. Além disso, a
manutenção de posicionamentos coerentes por diferentes técnicos, nas diferentes obras do
Museu de Arte, aponta para uma atuação institucional coesa em relação a este edifício.
Lembremos também que, nas obras do Museu de Arte, o descompasso entre e atuação do
Iepha e as concepções de intervenção em difusão na década de 1990 garantiu uma
prudente preservação a mais. Já nas atuais propostas para o Conjunto da Pampulha, o
descompasso entre o parecer do Icomos e os avanços conceituais próprio Conselho pode
vir não somente a eliminar valores históricos relevantes, como também a desviar os
esforços da preservação dos objetos construídos, plenos de valores, para a produção de
réplicas com valor meramente ilustrativo – o que não parece uma operação proveitosa.
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