Paulo Marcos Pereira
Paulo Marcos Pereira
Paulo Marcos Pereira
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À Ana Pereira de Jesus (in memorian) minha mãe e à Salviana
Maria da Conceição, ―mainha‖ (in memorian) minha vó.
AGRADECIMENTOS
Nos caminhos percorridos da pesquisa até a escrita dessa dissertação, muitas pessoas
participaram, ajudaram, contribuindo de forma direta ou indireta. Corremos o risco de
esquecer algum nome.
Agradeço imensamente a professora Maria das Graças de Andrade Leal pela paciência
e competência na condução da orientação dessa dissertação.
Agradeço à CAPES pela concessão da bolsa de estudos que foi imprescindível para a
realização da pesquisa.
Ao professor Josivaldo Pires de Oliveira, com quem tive as primeiras conversas sobre
meu desejo de estudar a obra de Querino, agradeço pelas sugestões de leituras e pelo interesse
em acompanhar o desenvolvimento das pesquisas, sempre contribuindo de alguma forma.
Agradeço a André Sacramento (poeta) meu irmão de coração pelas contribuições
durante a minha formação acadêmica, pelos tempos do NURENBA, por ter me acolhido na
cidade de Caetité, por aquelas primeiras conversas sobre temas como a questão racial,
identidade afro-brasileira, que, desde então, se tornaram caros para mim.
Agradeço a Rui Marcos Moura Lima, meu irmão, companheiro de viagem, pela escuta
atenta e por compartilhar comigo diversas experiências durante nossas trajetórias acadêmicas,
desde a graduação até o mestrado.
Agradeço a vários amigos que conheci em Caetité: Ana Cláudia, Lielva, Fernando
Dias, João Roberto, Waldisney, Thiago Luz, Thiago Peixoto, Jacson (Casé), Vinicius Toledo,
Poliana Gomes, Sebastião Magno, Edvagno Jorge, Fábio, Sinésio, Rogério, Clécio e Zé
Maria. Agradeço as amigas da republica Tcheca: Adriana, Laiane, Patrícia e Danielle.
Agradeço a minha família. Ao meu pai Florentino, minha mãe Ana (in memoriam)
minhas irmãs Rosimar e Rosilene, meus sobrinhos Sofia, Cibele, Kaique, Jerfeson e Lavínia,
que mesmo distantes me inspiram e incentivam. À Isaura Fontes, por tantas coisas que não
caberiam nesses agradecimentos, agradeço pelo acolhimento carinhoso, pela escuta e
orientação nos assuntos acadêmicos e por sonhar junto comigo. Agradeço ainda a Maria
Angélica e Alice Fontes.
Agradeço a Talita, minha companheira de todas as horas, amiga, mulher, pelo cuidado,
atenção constante, carinho e compreensão em ter minha atenção dividida com essa
dissertação. Agradeço por me oferecer o aconchego e um ambiente doméstico favorável para
a realização das leituras e escrita.
RESUMO
Este estudo analisa a produção intelectual do negro e baiano Manuel Querino (1851-1923)
com base na sua dimensão historiográfica e nos diálogos que travou com a intelectualidade
baiana e brasileira do final do século XIX e das primeiras décadas do XX. Além disso, analisa
comentários e críticas à sua obra, feitos por autores que o leram depois da década de 1930,
estabelecendo uma relação entre a obra de Querino e os estudos e debates atuais sobre as
contribuições dos negros africanos e afro-brasileiros à formação da sociedade brasileira. As
principais fontes utilizadas foram os textos produzidos por Querino - A raça africana e seus
costumes na Bahia (1916) e O colono preto como fator de civilização brasileira (1918), os
artigos Candomblé de Caboclo (1919) e Os homens de cor preta na história (1923). A
análise ancorou-se na história da historiografia e na história intelectual ou história dos
intelectuais. No intuito de identificar a dimensão historiográfica da obra de Querino, visando
ao reconhecimento acadêmico da sua produção intelectual, foram enfatizados os elementos
teóricos e metodológicos utilizados pelo autor em sua escrita. Analisou-se o processo de
institucionalização de um projeto historiográfico no Brasil tendo por base a criação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, combinando com a identificação dos perfis de
historiadores no tempo de Querino, a fim de compreendê-lo e reconhecê-lo como historiador.
Para tanto, foi estabelecida uma relação entre as obras de Querino e de autores como Sílvio
Romero, Manoel Bomfim, Nina Rodrigues e Gilberto Freyre, percebendo os diálogos,
convergências e divergências entre suas ideias. Foram analisados as críticas e os comentários
de Édison Carneiro e Arthur Ramos sobre a obra de Querino. Por fim, ao reconhecer a força
intelectual de Querino, tendo como referência o conceito de intelectual, levando em conta o
contexto em que viveu e elaborou sua obra, traçou-se, de forma sucinta, sua trajetória
intelectual, além de ter estabelecido uma relação entre sua obra e os debates atuais sobre a
história e cultura africana e afro-brasileira, no âmbito da Lei Federal n. 10.639, no ano de
2003.
This study analyzes the intellectual production of the black and ―baiano‖ man (from Bahia
State, Brazil), Manuel Querino (1851-1923) based on his historiographical dimension and the
dialogues that he had with Brazilian intellectuals of the last decades of the nineteenth century
and the beginning twentieth century. Moreover, it analyzes the comments and criticisms about
his work performed by authors who read it after the 1930s, and it seeks to establish the
relationship among the work of Querino and current studies and debates about the
contributions of black Africans and African-Brazilians for the formation of Brazilian society.
The main used sources were texts - A raça africana e seus costumes na Bahia (1916) and O
colono preto como fator de civilização brasileira (1918) - and articles -Candomblé de
Caboclo (1919) and Os homens de cor preta na história (1923). The analysis is based on
the history of historiography and intellectual history or history of intellectuals. It was given
focus on theoretical and methodological elements used by the author in his writing with
objective to identify the historiographical dimension of his work. It was identified how the
historiographical project was institutionalized with the creation of the Brazilian Institute of
Geography and Statistics, combined with the identification of historians‘ profiles at Querino's
epoch, as a way to understand until the point he can be recognized as a historian. It was
established relationship among the works of Querino and authors like Sílvio Romero, Manoel
Bomfim, Nina Rodrigues, and Gilberto Freyre, perceiving the dialogues and their ideas‘
convergences and divergences. The critics and comments from Édison Carneiro and Arthur
Ramos about the work of Querino were analyzed. Finally, the Querino‘s brainpower was
recognized, based on the intellectual concept, taking into account the context in which he
lived and developed his work, and his intellectual trajectory was drawn in a summarized form,
and the relationship among his work and the current debates about the African and Afro-
Brazilian history and culture, was established under the Act n. 10.639/2003.
Keywords: Manuel Querino. African and Afro-Brazilian history and culture. Black Africans.
Writing of the Brazilian history. Afro-Brazilian historiography. Black Intellectuals.
LISTA DE ABREVIATURAS
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO
1
SANTOS, Flávio Gonçalves dos. Os discursos dos afro-brasileiros face às ideologias raciais na Bahia 1889-
1937. 2001. 127f. Dissertação (Mestrado em História) –Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA, 2001.
2
LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas – Bahia: 1851-1923. São Paulo:
Annablume, 2009.
3
REIS, Carlos Antônio dos. Do convívio à colaboração das raças: elogio da mestiçagem e reabilitação do
negro em Manuel Querino. 2009.179f. Dissertação (Mestrado em História) – UNESP, Franca, 2009.
4
Arthur de Araújo Pereira Ramos nasceu em 1903 e era alagoano. Diplomado em Medicina pela Faculdade de
Medicina da Bahia, defendeu a tese Primitivo e loucura. Exerceu diversas atividades em instituições baianas,
atuou como Médico Legista e desenvolveu atividades científicas, escrevendo sobre criminologia, medicina
12
Carneiro5, que leram seus textos na década de 1930, poucos anos após sua morte. Para esses
dois autores, Querino seria um pesquisador honesto, mas desprovido de conhecimentos
científicos que o credenciassem a ser comparado aos intelectuais contemporâneos, como Nina
Rodrigues. Porém, antes desses autores, não identificamos nenhum comentário que
questionasse o caráter ―científico‖ daquelas obras. Homero Pires6 e Gilberto Freyre7 (1933,
1944) citam a obra de Manuel Querino sem esboçar a mesma preocupação que Carneiro e
Ramos. Pires citou a obra de Querino em uma nota de rodapé no livro Africanos no Brasil8,
que era composto de textos de Nina Rodrigues, que Pires organizou e publicou em 1932,
mostrando reconhecer a importância de Querino e de sua obra para os estudos sobre os
africanos, naquele contexto. Vale ressaltar que, naquele momento, estudos sobre os africanos
e afro-brasileiros estavam se consolidando no Brasil como campo de estudos. Do mesmo
modo, Gilberto Freyre também citou a obra de Querino em Casa-grande e senzala9,
legal e psicopatologia forense. Seus principais estudos foram: Primitivo e loucura (1926); A sordície nos
alienados: ensaio de uma psicopatologia da imundice (1928); Estudos de psicanálise (1931); Os horizontes
místicos do negro da Bahia (1932); Psiquiatria e psicanálise (1933?); A técnica da psicanálise infantil...
(1933); Freud, Adler, Jung: ensaio de psicanálise ortodoxa e herética (1933); O negro brasileiro: etnografia
religiosa e psicanálise (1934); Educação e psicanálise (1934); A higiene mental nas escolas: esquema de
organização (1935); O folk-lore negro do Brasil: demopsicologia e psicanálise (1935); Introdução à
Psicologia Social (1936); A mentira infantil (1937); Loucura e crime: questões de psiquiatria, medicina
forense e psicologia social (1937); As culturas negras no Novo Mundo (1937); Saúde do espírito: higiene
mental (1939); Pauperismo e higiene mental (1939); A criança problema: a higiene mental na escola
primária (1939); O negro brasileiro (1940); A aculturação negra no Brasil (1942); Guerra e relações de
raça (1943); Las poblaciones del Brasil (1944); As Ciências Sociais e os problemas de após-
guerra (1944); Introdução à antropologia brasileira (1943-1947, 2 v.); A organização dual entre os índios
brasileiros (1945); Curriculum Vitae (uma espécie de autobiografia, 1945); A renda de bilros e sua
aculturação no Brasil (com a colaboração da esposa Luiza Ramos, 1948). Postumamente, foram
publicados Estudos de folk-lore: definições e limites, teorias de intepretação (1951); Le métissage au
Brésil (Paris, 1952); O negro na civilização brasileira (1956) e A mestiçagem no Brasil (2004).
5
Édison Carneiro (1912-1972), baiano, foi jornalista, poeta, jurista, folclorista. Carneiro era diplomado em
Direito. Dedicou-se desde os 16 anos de idade à escrita. Desenvolveu vários estudos sobre o negro brasileiro,
tornando-se uma das maiores autoridades nacionais sobre os cultos afro-brasileiros. Publicou diversos livros e
artigos de periódicos nas áreas da etnologia e do folclore, da história e até da literatura, entre os quais podem
ser destacados: Religiões negras: notas de etnografia religiosa (1936); Negros bantus (1937); O quilombo
dos Palmares (1947); Trajetória de Castro Alves (1947); Candomblés da Bahia (1948); Antologia do
negro brasileiro (organizador, 1950); O folclore nacional, 1943-1953 (1954); A cidade do Salvador:
reconstituição histórica (1954); O negro brasileiro (1956); Decimália: os cultos de origem africana no Brasil
(1959); A insurreição Praieira, 1848-1849 (1960); Folklore in Brazil, tradução de Evolução dos estudos
de folclore no Brasil, com texto também em francês e alemão (1963); Ladinos e crioulos: estudo sobre o
negro no Brasil (1964); Dinâmica do folclore (1965); A sabedoria popular do Brasil: samba, batuque,
capoeira e outras danças e costumes (1968); Folguedos tradicionais (1974); Capoeira (1975).
6
PIRES, Homero. Prefácio. In: RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 5. ed. São Paulo, Ed.
Nacional. p. XII.
7
Cf. Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família sob o regime da economia patriarcal. Rio de
Janeiro: Editora Global, 1933. FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia. 3.
ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 7.
8
PIRES, Homero. Prefácio. In: RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 5. ed. São Paulo, Ed.
Nacional. p. XII.
9
Querino foi citado por Freyre nas seguintes páginas: 46, 141, 206, 395, 408, 472,478,479, 485, 542, 543, 546,
569, 570, 571, 615, 635. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família sob o regime da
economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.
13
publicada um ano depois, em 1933. Nos textos desses dois autores, não se observa nenhuma
menção ao caráter científico ou não da obra de Querino. Observamos, porém, que Édison
Carneiro e, especialmente, Arthur Ramos buscavam na figura de Nina Rodrigues um vínculo
que legitimasse a criação de uma ―escola‖, a qual teria herdado do médico legista o
pioneirismo e o poder de fala no âmbito dos estudos afro-brasileiros. Naquele contexto,
Carneiro e Ramos disputavam com Gilberto Freyre a hegemonia intelectual nesse campo de
estudos.
Além disso, alguns estudos recentes sobre a vida e obra de Querino dimensionam sua
importância intelectual. Primeiro, porque foi um dos poucos intelectuais negros a se
aproximar do mundo erudito e se apropriar de elementos discursivos com os quais se
instrumentalizou para se posicionar em relação ao tratamento ―racista‖ que os africanos e seus
descendentes recebiam por parte da intelectualidade brasileira.10 Em segundo lugar, tratava-se
de um sujeito dotado de múltiplas facetas, tais como a de ―professor‖, ―artífice‖, ―funcionário
público‖, ―pesquisador historiador‖, ―ilustre escritor e artífice baiano‖ e ―artista laborioso e
inteligente.‖11 Assim, com base nesses estudos, podemos apresentar algumas respostas sobre
quem foi o intelectual e historiador Manuel Querino e em que medida contribuiu para os
estudos sobre o negro no estado da Bahia e no Brasil.
Praticamente todos os autores que se debruçaram sobre suas obras se preocuparam em
responder a essa questão. Alguns se questionaram de forma sintética, e outros fizeram dessa
pergunta uma das questões centrais de seus estudos.12 Com o propósito de perseguir respostas
sobre tão importante questão, apresentamos alguns dados referentes à sua trajetória, os quais
contribuem para compreendermos sua obra e inseri-la como referência aos estudos históricos
sobre a influência africana e os descendentes do continente negro na formação da sociedade
brasileira.
Manuel Raymundo Querino nasceu em Santo Amaro da Purificação, em 28 de julho
de 1851, e viveu a maior parte de sua vida em Salvador, Bahia. Em sua trajetória, tal como
nos mostra a historiadora Maria das Graças de Andrade Leal13, Querino vivenciou mudanças
importantes pelas quais o Brasil passou e que foram decisivas para a configuração e a
constituição da sociedade brasileira. Manuel Querino experimentou a Guerra do Paraguai
10
SANTOS, Flávio Gonçalves dos. Os discursos dos afro-brasileiros face às ideologias raciais na Bahia
1889-1937. 2001. 127f. Dissertação (Mestrado em História) –Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA,
2001.
11
LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino, entre letras e lutas – Bahia: 1851 -1923. São Paulo:
Annablume, 2009.
12
Idem.
13
Idem.
14
Percebemos que, nesses textos, uma das principais preocupações esboçadas por
Querino foi com relação ao registro das experiências africanas que acreditava estarem em vias
de desaparecimento. Como sabemos, no início da República no Brasil, houve uma
mobilização por parte das elites dirigentes de colocar o país nos trilhos da modernidade e do
progresso. Um dos procedimentos era o apagamento dos rastros deixados pela monarquia e
escravidão. Para essas elites, os egressos do cativeiro não eram compatíveis com a nova
sociedade que se desejava. Nesse contexto, e isso se observa nos textos, Querino, ao
interpretar a sociedade brasileira de seu tempo, voltou os olhos ao passado monárquico,
colonial e escravista e identificou contradições no modo como intelectuais liam aquela
sociedade e tratavam os africanos. Querino desconstruiu essa ideia mostrando que não havia
incompatibilidade entre esses egressos do cativeiro e a civilização. Ele ainda foi além ao
analisar o processo de colonização e constituição histórica da sociedade brasileira,
defendendo que o Brasil no qual vivia era fruto do trabalho do africano e, portanto, foram os
africanos colonizadores, agentes mais importantes que os portugueses.
Desse modo, neste estudo, objetivamos analisar mais atentamente a atribuição que se
refere a Querino como historiador. Para isso, priorizamos a dimensão historiográfica da obra
desse intelectual. Observamos que essa dimensão pode ser evidenciada pela identificação do
referencial teórico e metodológico que utilizou em sua escrita. Esse referencial teórico e
metodológico é entendido como os suportes aplicados por Querino para sistematizar e
embasar sua obra, tais como textos de historiadores que ele tomou como referência para
fundamentar seus argumentos e os tipos de fontes utilizados. Seguimos as pistas deixadas pelo
próprio Querino em sua obra, pois ele se preocupou em apresentar os caminhos que trilharia
em sua pesquisa, estabelecendo o que poderia ser um roteiro de pesquisa. Buscamos, também,
identificar evidências no próprio texto, que vão aparecendo quando perguntamos sobre as
bases e com quais autores Querino fazia determinada afirmação e elaborava seus argumentos.
Este estudo se ancora na história intelectual e história dos intelectuais e história da
historiografia.14 A história intelectual é uma área da história, cuja definição tem alguns
14
Para pensarmos a historiografia do final do século XIX e início do século XX, dialogamos com alguns autores
que se utilizaram da historiografia como fonte ou como objeto de estudos e autores que estudaram intelectuais
tais como: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil 1838-1857. Rio de
Janeiro: Editora UERJ, 2011. IGLÉSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia
brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000. p. 94-95. ODÁLIA, Nilo. As
formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiografia) de Varnhagen e Oliveira Vianna. São
Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da
história em João Capistrano de Abreu (185-1927). 2006.183f. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. SANTOS-JÚNIOR, Valdir Donizete dos. A
trama das ideias: intelectuais, ensaios e construção de identidades na América Latina (1898 - 1914). 2013.
295f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. SANTOS, Ivan
16
problemas, não existindo um consenso na definição de suas bases. Alguns autores a vinculam
à história das ideias15 e observa-se a existência de várias vertentes dessa especialidade em
alguns países.16 No Brasil, entre os estudos dessa área, destacam-se o texto de Francisco
Falcon em História das ideias17, publicado no livro Domínios da história –Ensaios de
teoria e metodologia, organizado por Ciro Cardoso e Ronaldo Vaínfas18; o texto de Helenice
Rodrigues da Silva, Fragmentos da História Intelectual: entre questionamentos e
perspectivas19; e o livro organizado por Marcos Lopes, Grandes nomes da História
Intelectual.20 Já a história da historiografia tem por objeto de estudo a produção
historiográfica, constituindo um esforço de conhecer e reconhecer a historicidade presente na
produção dos historiadores ao fazerem história e tomá-la como objeto de estudos,
possibilitando uma melhor compreensão do papel que o historiador exerce em sua atividade
intelectual contextualizada no tempo e no espaço.
Norberto dos. A historiografia amadora de Rocha Pombo: embates e tensões na produção historiográfica
brasileira da Primeira República. 2009. 196f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de
Pós-graduação em História Social, Rio de Janeiro, 2009. SILVA, Taíse Tatiana Quadros da. A escrita da
tradição: a invenção historiográfica na obra História Geral do Brasil, de Francisco Adolpho Varnhagen (1854-
1857). 2006. 212f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2006. SILVEIRA, Cristiane da. (Re)leituras de Manoel Bomfim: a escrita da história do Brasil e o
ser negro na passagem do século XIX para o XX. 2011. 296f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. TIBURSKI, Eliete Lúcia. Escrita da história e tempo
presente no Brasil oitocentista. 2011. 146f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
15
Robert Darton afirma que ―[...] a história das ideias (o estudo do pensamento sistemático, geralmente em
tratados filosóficos), a história intelectual propriamente dita (o estudo do pensamento informal, os climas de
opinião e os movimentos literários), a história social das ideias (o estudo das ideologias e da difusão das ideias)
e a história cultural (o estudo da cultura no sentido antropológico, incluindo concepções de mundo e mentalités
coletivas)‖. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990. p. 112
16
Segundo Hahn, ―Nos Estados Unidos, ela é conhecida como Intellectual history, tendo nascido como oposição
a uma história política tradicional, que perdeu campo no início do século XX. Na Inglaterra, é mais conhecida
como history of ideas, apesar de apresentar, também, essa forma nos Estados Unidos. Na Alemanha, o termo
não existe, no entanto está presente, em um certo sentido, no campo denominado de Geistesgeschichte, apesar
de bastante combatido há várias décadas. Na Itália, predomina a storia della filosofia, apesar de existir o
termostoria intellettuale em menor escala. Já, na França, existe a Histoire intellectuelle, mas que, por muito
tempo, não havia conseguido um espaço significativo, devido à força avassaladora da Escola dos Annales.‖ Cf.
HAHN, Fábio André. História intelectual uma nova perspectiva. [2007] Disponível em:
<http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=professores&id=37>. Acesso em: 12 out. 2014.
17
FALCON, Francisco José Calazans. ―História das ideias ‖. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS,
Ronaldo. (org.). Domínios da história –Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
18
CARDOSO, Ciro Flamarion. & VAINFAS, Ronaldo. (org.).Domínios da história – Ensaios de teoria e
metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
19
SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da História Intelectual: entre questionamentos e perspectivas.
Campinas: Papirus, 2002.
20
LOPES, Marcos Antônio. Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo: Contexto, 2003.
17
21
―Alexandre José de Mello Moraes Filho (1844-1919) nasceu em Salvador em 23 de fevereiro de 1844, foi
jornalista, cronista, poeta e médico formado na Bélgica. Matriculou-se no seminário de São José no Rio de
Janeiro, mas não ficou até a ordenação, mesmo tendo pregado determinados sermões. Fez do jornalismo e da
literatura instrumentos para divulgar valores nacionais, pesquisas e estudos folclóricos. Redigiu o jornal Eco
Americano em Londres; foi diretor do Arquivo Municipal do Rio de Janeiro até 1918; animador cultural,
fazendo campanhas para valorizar as festas tradicionais, encenou cultos e bailes populares.‖ SILVA, Denize
Carolina Auricchio Alvarenga da. Folcloristas brasileiros no fim do século XIX e o pioneirismo de Alexandre
Mello Moraes na ciganologia brasileira. Revista Espaço Acadêmico, nº 84, maio de 2008. Disponível:
http://www.espacoacademico.com.br/084/84silva.pdf. Acesso em: 30 out. 2015. As principais obras de Mello
Moraes Filho são: Bailes pastoris na Bahia (1987), Os ciganos no Brasil e o cancioneiro dos ciganos
(1886), Cantores brasileiros (1900), Factos e memórias (1904), Festas do Natal (1895), Festas e tradições
populares do Brasil (1901, 1946, 1967), Festas populares do Brasil (1888), História e costumes (1904), A
véspera de Reis (1905).
22
Segundo Vellozo, Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) era natural de Recife. Filho de família aristocrática,
ainda jovem foi para Portugal onde realizou seus estudos e fez o Curso Superior de Letras de Lisboa. Integrou
o serviço diplomático brasileiro até 1913, servindo em Portugal, na Inglaterra, nos Estados Unidos, Alemanha,
no Japão, na Venezuela e na Bélgica. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e dos
Institutos Históricos de Pernambuco e São Paulo. Após aposentadoria deu palestras em várias universidades
em Portugal, nos Estados Unidos, na França, na Argentina, na Bélgica e foi professor em Harvard (1916-1917)
e de Direto Internacional da Universidade Católica de Washington (1928). Suas principais obras são Aspectos
da literatura colonial brasileira (1896), Sept ans de République au Brésil (1896), Nos Estados Unidos
(1899), O reconhecimento do Império (1901), No Japão, impressões da terra e da gente (1903), Machado
de Assis et son oeuvre littéraire (1909), O movimento da Independência; Aspectos da história e da
cultura do Brasil (1923). Cf. VELLOZO, Júlio César de. Um dom Quixote Gordo no deserto do
esquecimento. Oliveira Lima e a construção de uma narrativa da nacionalidade. 2012. 219f. Dissertação
(Mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 25.
23
Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845 - 1894) era português, foi sócio correspondente da Academia das
Ciências de Lisboa, presidente da Sociedade Comercial do Porto, além de ter sido diretor do Museu Industrial e
Comercial do Porto. Oliveira Martins dedicou sua vida a política e a ciência. É autor das obras: Biblioteca das
Ciências Sociais – Elementos de Antropologia (1880); As Raças Humanas e a Civilização
Primitiva (1881); Sistema dos Mitos Religiosos (1882); Quadros das Instituições Primitivas (1883);
Regime das Riquezas (1883); Tábua de Cronologia (1884). Obras históricas – Camões, Os Lusíadas e a
Renascença em Portugal (1872); História da Civilização Ibérica (1879); História de Portugal (1879); O
Brasil e as Colónias Portuguesas (1880); Portugal Contemporâneo (1881); História da República
Romana (1885); Os Filhos de D. João I (1891); A Vida de Nun'Álvares (1893); Perfis (obra póstuma,
1930).
24
José Francisco da Rocha Pombo (1857 - 1933) atuou como jornalista (fundando e dirigindo o jornal "O Povo")
professor, poeta e historiador. Foi eleito deputado provincial em 1886. Ingressou por concurso na congregação
do Colégio Pedro II e lecionou, também, na Escola Normal. Além disso, foi membro do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Publicou: Honra do Barão (1881), A religião do belo (1882), Dadá (1889),
Petrucello, (1889) Nova crença (1889) A supremacia do ideal (1889), O Paraná no centenário (1900),
História da América (1900), História do Brasil (1905), Contos e pontos (1911), Dicionário de sinônimos da
Língua Portuguesa (1914), Notas de viagem (1918).
18
25
Varnhagen nasceu em Sorocaba em 1816 e era filho do alemão Friedrich Ludwig Varnhagen com a portuguesa
Maria ‗‘1‘‘ Flávia de Sá Magalhães. Na infância, mudou-se para Portugal com a família. Varnhagen estudou
matemática na Real Academia da Marinha, fez quatro anos de estudos na Academia Real de Fortificação e, em
complementação, frequentou ainda aulas de alemão, curso de ciências naturais, os cursos de paleografia,
diplomacia e ciências políticas. Fez carreira militar e concluiu o curso de engenharia militar. A formação que
Varnhagen teve foi fundamental para definição dos rumos de sua vida, pois serviu no exercito português como
engenheiro militar e, vinculado ao Brasil, seguiu a carreira diplomática.
26
João Capistrano de Abreu nasceu em 1853 em Maranguape, no estado do Ceará. ―Foi criado com rigidez,
severidade e austeridade, em um ambiente marcado pelo trabalho pesado e contínuo e pelo dogmatismo
católico‖. Teve uma origem modesta e uma formação intelectual marcada pelo autodidatismo, passando por
dificuldades e fracassos. Como estudante, Capistrano de Abreu não teve êxito em exames em sua preparação
para entrar na Faculdade de Direito de Recife. Porém, adquiriu uma boa bagagem intelectual, pois ―[...] lia
francês e inglês, conhecia filosofia, literatura, história e geografia‖. Capistrano rompeu com o mundo em que
vivia com sua família e migrou para o Rio em 1875, adotando outra perspectiva de vida, buscando
reconhecimento intelectual. No Rio de Janeiro, trabalhou em uma livraria, foi professor e passou num concurso
para trabalhar na Biblioteca Nacional. Mas, ao que parece, foi com a publicação de seu Necrológio sobre
Varnhagen, escrito em 1878, que Capistrano começou a transitar em terreno que desejava e teve grande
repercussão no mundo intelectual. REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 1999,
p. 83.
27
João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (1860 - 1934) nasceu em Laranjeiras, província de Sergipe. Fez o
curso de Medicina trabalhou na Biblioteca Nacional, no Colégio Pedro II. Atuou nas áreas de filologia,
jornalismo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Entre as obras de João Ribeiro destacam-se:
Gramática Portuguesa (1887), Estudos Filológicos (1887), Dicionário Gramatical (1889) História Antiga
(1892), História do Brasil (1900), Páginas Estéticas (1905), Frases Feitas I (1908), Frases Feitas II (1909), A
língua nacional (1921), História Universal (1918), Notas de um estudante (1921), História da Civilização
(1932).
19
28
Bomfim nasceu em 1868 em Sergipe, era filho do vaqueiro Paulino José e da viúva Maria Joaquina. O pai
queria que administrasse a fazenda, mas Bomfim preferiu a Medicina. Formou-se na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro em 1890 e sonhava atuar como professor e desenvolver pesquisa na área médica. Em sua
trajetória, não se distanciou muito desse horizonte. Exerceu a medicina durante um período, mas abandonou a
carreira após a morte de uma filha em 1894. Essa decepção o fez dedicar-se a atividades ligadas ao campo
educacional. Em 1896, ―[...] foi convidado pelo então prefeito da cidade de Rio de Janeiro, Francisco Furquim
Werneck de Almeida, a ocupar o cargo de subdiretor do Pedagoguim, do qual se tornou diretor
posteriormente‖. Essa instituição tinha como função a coordenação e controle das atividades educacionais do
País. Em 1907, foi Deputado Federal, pelo Estado Sergipe. As principais obras de Manoel Bomfim são:
América Latina: males de origem, (1905); O Brasil na América (1929); O Brasil na história: deturpação
das tradições, degradação política (1930) e O Brasil nação (1931). SILVEIRA, Cristiane da. (Re)leituras de
Manoel Bomfim: a escrita da história do Brasil e o ser negro na passagem do século XIX para o XX. 2011.
296f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 43.
29
Romero nasceu em 1851, na cidade de Lagarto, em Sergipe. Aos 12 anos de idade, migrou para o Rio de
Janeiro e, em 1868, foi para o Recife fazer o curso de Direito. Tinha uma produção intelectual diversificada,
escreveu sobre vários temas e em diferentes gêneros, transitou pela poesia, história e crítica da literatura, e
outros. Além disso, tinha interesse pela história e etnologia do povo brasileiro.
20
30
LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas – Bahia: 1851-1923. São Paulo:
Annablume, 2009.
31
LEAL, Op. cit., p. 22, 31.
32
GLEDHILL, Sabrina. Manuel Querino: um pioneiro no combate ao ―racismo científico‖. Este texto é baseado
na dissertação de mestrado da autora, intitulada Afro-Brazilian Studies before 1930: Nineteenth-Century Racial
Attitudes and the Work of Five Scholars (1986). Disponível em:
http://www.brasa.org/Documents/BRASA_IX/Sabrina-Gledhill.pdf. Acesso em: 11 ago. 2014.
33
NUNES, Eliane. Manuel Raymundo Querino: o primeiro historiador da arte baiana. Revista Ohun, ano 3, n. 3,
p. 237-261, setembro 2007. Disponível em: <http://www.revistaohun.ufba.br/pdf/eliane_nunes.pdf>. Acesso
em: 12 ago. 2014.
22
34
Texto lido pelo próprio autor na sessão de homenagem a Nina Rodrigues, durante o II Congresso Afro-
brasileiro realizado na Bahia em 1937 e publicado em 1980 em livro intitulado Ursa Maior, composto por
textos de Carneiro escritos entre os anos de 1934 e 1949. CARNEIRO, Edson. Homenagem a Nina Rodrigues.
In: Ursa Maior. Salvador, Centro Editorial e Didático da Universidade Federal da Bahia, 1980.
35
RAMOS, Arthur. Prefácio. In: QUERINO, Manuel Raymundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed.
Salvador: EdUNEB, 2010. p. s/n. (1ª edição de 1938).
36
IGLÉSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, IPEA, 2000. p. 94-95.
23
suas ideias foram apropriadas pelos intelectuais reconhecidos pelas instituições culturais e
científicas do período. Intelectual negro, ou negro intelectual, se constitui em chave analítica
para compreendermos os percursos trilhados pela obra de Querino em mais de cem anos de
publicada.
37
Sobre esses autores Cf. RODRIGUES, José Honório. Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira. In.
ABREU, João Capistrano de. Correspondência de Capistrano de Abreu. v. I, 2. 1. ed. 1954. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977. CHATEAUBRIAND, Assis; Capistrano de Abreu. O Jornal, Rio de Janeiro, 14
ago. 1927. OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de
Abreu (185-1927). 2006.183f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2006. NASCIMENTO, Alba Cañizares. Capistrano de Abreu. O Homem e a obra. Rio de
Janeiro: Editora Briguiet & Cia, 1931. GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da
historiografia ao historiador. 2006. 335f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense,
Rio de Janeiro, 2006. VIANNA, Helio. Capistrano de Abreu. MEC, Rio de Janeiro, 1955. TIBURSKI, Eliete
Lúcia. Escrita da história e tempo presente no Brasil oitocentista. 2011. 146f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. SANTOS, Evandro. Tempos de
Pesquisa, Tempos da Escrita. A biografia em Francisco Adolfo Varnhagen (1840-1873). 2009, 137f. Porto
Alegre: UFGRS/Programa de Pós-Graduação em História, 2009. SILVA, Taíse Tatiana Quadros da. A escrita
da tradição: a invenção historiográfica na obra História Geral do Brasil, de Francisco Adolpho Varnhagen
(1854-1857). 2006. 212f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2006. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil 1838-1857. Rio de
Janeiro: editora UERJ, 2011. LESSA, Clado Ribeiro de. Vida e obra de Varnhagen: o polemista (continuação).
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo 227, p. 85-233, abril/junho
1955.
38
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil 1838-1857, Rio de Janeiro, editora
UERJ, 2011, p. 54.
24
39
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Op. cit., 2011, p. 54.
40
Idem.
41
Idem.
42
Segundo Guimarães, Maria Alice de Oliveira listou 46 brasileiros como membros do Instituto Histórico de
Paris entre eles 26 pertenciam ao IHGB. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Op. cit., p.102.
43
Cf. SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
44
Cf. CEZAR, Temístocles. Lições sobre a escrita da história e nação no Brasil do século XIX. Diálogos.
DHI/UEM, v. 8, n. 1, p. 11-29, 2004. GONÇALVES, Sérgio Campos. A escrita da história do Brasil: O
pensamento Civilizador no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. In: NICOLAZZI, Fernando, MOLLO,
Helena e ARAÚJO, Valdei (Orgs.). Caderno de resumos & Anais do 4º. Seminário Nacional de História
da Historiografia: tempo presente & usos do passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. ISBN: 978-85-288-0264-
1.
25
antiga e moderna do Império do Brasil (1863); e Rodrigo de Sousa da Silva Pontes, com
seu texto Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior número possível
de documentos relativos à história e geografia do Brasil? (1841). Entre esses intelectuais,
Cunha Barbosa, o secretário perpétuo do IHGB, merece destaque, tendo em vista ter, em seu
discurso, sintetizado os princípios que se tornaram os referenciais normativos e teóricos da
prática historiográfica do Instituto45, inaugurando uma nova historiografia sobre o Brasil.46 O
historiador, segundo Barbosa, deveria escrever a história do Brasil para tirar do esquecimento
fatos notáveis e mostrar
Barbosa refere-se às obras sobre história do Brasil de autores daquele tempo ou que
antecederam à fundação do IHGB como aqueles que ignoravam a questão da pátria. Ao se
referir à ideia de conhecimentos purificados, delega ao Instituto o poder de reescrever essa
história dentro de outra perspectiva, aquela que estava conectada aos interesses da construção
de uma história nacional. Barbosa defende a adoção do modelo de história proposto por
Cícero, a historia magistra vitae como referência. Segundo Barbosa, bastava ―[...] attendermos
ao que diz Cicero: a historia he testemunha dos tempos, a luz da verdade, e a escola da
vida.‖48 Nessa lógica,
Uma espécie de método crítico é proposto pelo secretário. As nuvens que impedem
uma boa visão da realidade, causadas sobretudo por obras de autores estrangeiros,
devem ser dissipadas pelos historiadores do Instituto. Contudo, não se trata de uma
proposição metodológica xenófoba. O problema não é o estrangeiro como tal, mas
sua opinião preconcebida que o priva da objetividade, ou sua ignorância a respeito
da nação sobre a qual ele se manifesta. Assim, os membros do IHGB têm por missão
desconstruir a lógica que perpetua um conhecimento incorreto do passado brasileiro,
depurando desses trabalhos algumas de suas manchas e, eventualmente, rejeitando-
49
os do campo histórico.
45
VALE, Renata William dos Santos. Lições de História: a produção historiográfica da primeira geração de
sócios do IHGB. In: VARELLA, Flávia Florentino; DA MATA, Ricardo; ARUJO, Valdei Lopes de. (Orgs.)
Anais do Seminário de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade. Ouro Preto:
EdUFOP, 2007. p. s/n.
46
CEZAR, Temístocles. Lição sobre a escrita da história historiografia e nação no Brasil do século XIX.
Diálogo, Maringá-PA, DHI/UEM, v. 8, p. 11-29, 2004.
47
Ibid, p. 13-14.
48
CEZAR, Op. cit., p. 14.
49
Ibid, p. 15.
26
Ainda, dentro desse projeto, Barbosa indicava alguns caminhos para definição da
periodização da história do Brasil, propondo modelos complexos que marcariam o início
histórico do Brasil50, afirmando que o historiador deveria se assemelhar a um naturalista.
Na condição de secretário, outra importante contribuição foi dada por Barbosa no
cenário de definição da historiografia brasileira quando, ―[...] instituiu um prêmio para o
melhor trabalho dedicado ao tema e que apresentasse um plano com base no qual se deveria
escrever a história do Brasil.‖51 Quem ganhou esse prêmio, como se sabe, foi o alemão Karl
Frederich Philipp von Martius, com o texto Como se deve escrever a história do Brasil,
publicado na revista do IHGB em 1848.
Segundo von Martius, qualquer um que se encarregasse de escrever a História do
Brasil nunca deveria ―perder de vista os elementos que aí concorreram para o
desenvolvimento do homem.‖52 Martius considerava serem os
três esses elementos de natureza bem diversa, tendo para a formação do homem
convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou
americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da
mescla, das relações mutuas e mudanças dessas três raças, formou-se a atual
população, cuja história por isso mesmo tem um cunho particular. 53
cada uma das particularidades físicas e morais, que distinguem as diversas raças,
oferece a este respeito um motor especial; e tanto maior será a sua influência para o
desenvolvimento comum, quanto maior for a energia, número e dignidade da
sociedade de cada uma dessas raças. Disso necessariamente se segue que o
Português, que, como descobridor, conquistador e senhor, poderosamente influiu
naquele desenvolvimento, o Português, que deu as condições e garantias morais e
físicas para um reino independente; que o Português, se apresenta como mais
poderoso e essencial motor. Mas também de certo seria um grande erro para com
todos os princípios da Historiografia pragmática, se se desprezassem as forças dos
indígenas e dos negros importados, forças estas que igualmente concorreram para o
54
desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da população.
50
CEZAR, 2004, p. 17.
51
GUIMARÃES, 2011, p. 128.
52
VON MARTIUS, Karl Frederich. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista de História de América,
nº. 42. dezembro, 1956, p. 441-442.
53
VON MARTIUS, Karl Frederich, 1956, p. 442.
54
Ibid, p. 442.
27
Martius assegura que ―jamais nos será permitido duvidar que a vontade da Providência
predestinou ao Brasil esta mescla. O sangue português, em um poderoso rio deverá absorver
pequenos confluentes das raças índia e etiópica.‖55 Portanto, os indígenas e negros para
Martius eram peças importantes nessa mescla, mas tinham um papel menor que o do
português.
Assim,
Quanto a isso, alguns membros do IHGB estavam de acordo e havia, nesse período,
uma mobilização de intelectuais em torno da definição de uma origem para o brasileiro, e
alguns viam no indígena essa possibilidade. Mas, com relação às
Com esse texto, von Martius inaugurou um modelo interpretativo, que lançou alicerces
para o chamado mito da democracia racial. Esse modelo foi rejeitado por Varnhagen,
Capistrano de Abreu e outros intelectuais de seu tempo59, embora se deva tomar por correta a
55
VON MARTIUS, Karl Frederich, 1956, p. 443.
56
GUIMARÃES, 2011, p. 130.
57
Ibid, p. 131-132.
58
VAINFAS, Ronaldo, Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da
historiografia brasileira. Revista Tempo. Niterói – RJ. v. 8. p. 7-22, 1999.
59
Vainfas afirma que esse modelo foi rejeito pelos historiadores que se dedicaram a escrita da história do Brasil
até década de 30, mas essa questão da mistura estava presente nas discussões de intelectuais e escritores que
tais como Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha. Varnhagen e os nativistas do IHGB se
resolveram contra esta apreciação negativa de Southey em relação à colonização portuguesa teria sido um
enorme feito, e o futuro estava aberto ao sucesso da nova nação. Cf. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Fardo
do Homem Branco: Roberto Southey, historiador do Brasil. (um estudo dos valores ideológicos do império do
comércio livre). São Paulo: CNN, 1974. p. 237.
28
influência de Martius nos escritos desses autores. Um dos primeiros a retomar esse modelo de
Martius foi Sílvio Romero, que, por sua vez, influenciou Gilberto Freyre na década de 1930.
Ainda nesse período, a historiografia brasileira recebia forte influência dos intelectuais
do IHGB, e o principal deles foi Francisco Adolfo Varnhagen.60 ―Ninguém pode se ocupar da
história do Brasil ou trabalhar com ela e, ao mesmo tempo, ignorar Varnhagen como
historiador.‖61 Aqueles que se debruçaram sobre suas obras o reconhecem como ―o criador da
historiografia brasileira‖ e ―o primeiro historiador do Brasil‖. Varnhagen passou mais tempo
no exterior do que em solo brasileiro, mas isso não o impediu de compor o IHGB. Em 1841,
era o primeiro secretário desta instituição. Os pontos centrais de sua obra foram: a questão da
nação e o entrelaçamento da ciência com atividade política.62
As principais obras desse historiador foram: História Geral do Brasil, em dois
volumes publicados em 1854 e 1857; História da Independência do Brasil, publicação
póstuma (na ocasião das comemorações de seu centenário em 1916); e História das Guerras
contra os Holandeses no Brasil, de 1871. A primeira é considerada pelos historiadores um
marco da institucionalização da historiografia brasileira, além de ter sido ―a obra de história
do Brasil independente mais completa, confiável, documentada, crítica, com posições
explícitas que superaram obras‖ de autores anteriores como Pero de Magalhães Gândavo63,
Frei Vicente do Salvador64, Sebastião da Rocha Pita65 e Robert Southey.66 Havia uma disputa
60
Varnhagen nasceu em Sorocaba em 1816 e era filho do alemão Friedrich Ludwig Varnhagen com a
portuguesa Maria Flávia de Sá Magalhães. Na infância, mudou-se para Portugal com a família. Varnhagen
estudou matemática na Real Academia da Marinha, fez quatro anos de estudos na Academia Real de Fortificação
e, em complementação, frequentou ainda aulas de alemão, curso de ciências naturais, os cursos de paleografia,
diplomacia e ciências políticas. Fez carreira militar e concluiu o curso de engenharia militar. A formação que
Varnhagen teve foi fundamental para definição dos rumos de sua vida, pois serviu no exercito português como
engenheiro militar e, vinculado ao Brasil, seguiu a carreira diplomática.
61
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado, 2011, p. 165
62
Ibid, p. 196.
63
As informações sobre Pero de Magalhães Gândavo (1540-1580) são escassas. Sabe-se que era português e que
esteve no Brasil 1560. Foi professor de latim e de português. Trabalhou na Torre do Tombo, em Lisboa, na
transcrição de documentos e foi nomeado provedor da Fazenda na Bahia, ali permaneceu por cerca de cinco
anos (1565-1570). Escreveu uma gramática com regras da língua portuguesa. Escreveu também: Regras que
ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa (1574) e Tratado da terra do Brasil:
história da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576).
64
Vicente Rodrigues Palha, também conhecido como Frei Vicente do Salvador (1564-1636), nasceu em Matuim,
localidade próxima a Salvador, Bahia. Pertencia à ordem dos Franciscanos. Em Coimbra, cursou direito e
doutorou-se em teologia. Escreveu Crônica da custódia da Bahia (1618) e História do Brasil (1627).
65
Sebastião da Rocha Pita (1660-1738) era baiano. Graduou-se mestre em artes. Frequentou a universidade de
Coimbra, onde obteve o grau de Bacharel em Cânones. Fazia parte da Academia Real de História Portuguesa e
da Academia Brasílica dos Esquecidos. Escreveu Breve Compendio, e Narraçam do Funebre Espectaculo,
que na insigne Cidade da Bahia (1709), O Summario Da Vida, & Morte da Excellentissima Senhora, A
Senhora Dona Leonor Josepha de Vilhena, e das Exequias que na Cidade da Bahia consagrou às suas
memorias A Senhora D. Leonor Josepha de Menezes, Esposa do Gonçalo Ravasco Cavalcanty &
Albuquerque,h Fidalgo da Casa de S. Majestade, Commendador da Ordem de Christo, Alcayde mòr da
Cidade de Cabo Frio, Secretario do Estado, & Guerra do Brasil, Offerecido Á Excellentissima Senhora,
A Senhora Dona Maria Francisca Bonifacia de Vilhena, Filha dos Excellentissimos Senhores, o Senhor
29
pelo título de ―Heródoto brasileiro‖, entre Varnhagen e Southey, este que nunca havia estado
no Brasil.67 A obra de Varnhagen estava em consonância com o projeto historiográfico do
IHGB, tinha restrita preocupação com as fontes e com a coleta de documentos sobre o Brasil.
Na função de diplomata, nas viagens que fazia pelo mundo, acabava tendo acesso a
documentos em arquivos estrangeiros. Com isso, desempenhava um duplo papel: o de
diplomata e o de historiador.
Apesar de Varnhagen ser reconhecido como ―pai dos historiadores brasileiros‖, sofreu
críticas de historiadores da posteridade.68 Capistrano Abreu foi um de seus maiores críticos,
que identificou
[...] numerosos problemas na obra dele: em sua história do século XVIII, deixou a
desejar; seu estilo tende mais a crônica, faltando-lhe a intuição, o espírito de
conjunto, perdendo-se em acontecimentos irrelevantes; uniformizou a história do
Brasil, tornando-a sempre igual, repetitiva, não percebendo o ritmo específico de
cada época, era irascível, matando moscas a pedradas; não tinha o espírito plástico e
simpático, compreensivo, que o tornasse confidente dos homens populares, rebeliões
69
e outros problemas maiores.
Mas reconhecia que a escrita da história do Brasil era tributária a Varnhagen, apesar
de ter sido também um dos historiadores importantes para a essa escrita do final do século
XIX e início do XX.70 Suas principais obras são: Necrológio de Varnhagen (1878), Ensaio
D. Rodrigo da Costa, & da Excellentissima Senhora, a Senhora D. Leonor Josepha de Vilhena (1721), e
Historia da America Portugueza desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e
setecentos e vinte e quatro (1730).
66
Segundo Reis, esses autores, antes da publicação da obra de Varnhagen, haviam escrito textos sobre a história
do Brasil, História da província de Santa Cruz (1576), História do Brasil (1730), História do Brasil
(1810). REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. p. 29.
67
Robert Southey (1774-1843) era britânico. Era escritor prosador e poeta. Dedicou-se à história do Brasil e de
Portugal. Escreveu: História do Brasil (1810), Joana d’Arc (1796) Poesias (1797) Cartas de Espanha e de
Portugal (1797) Palmerim de Inglaterra (1807) Cartas de Espriello (1807) Maldição de Keama (1811)
Poemas para os Soberanos Aliados (1814) Rodrigo, o Último dos Godos (1814) Sir Thomas More,
Colóquios de Estado e da Sociedade (1832). De acordo com J. Carlos. Reis. Ele pintou em sua
História do Brasil um quadro sombrio quanto às possibilidades futuras da colonização comercial no
Brasil: degeneração dos costumes, da religião e da moral, causada pela escravidão e pela falta de
agricultura – miséria, fome, turbulências, crimes, doenças.
68
ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico) de Varnhagen e Oliveira
Vianna. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
69
REIS, José Carlos, 1999, p. 30.
70
João Capistrano de Abreu nasceu em 1853 em Maranguape, no estado do Ceará. ―Foi criado com rigidez,
severidade e austeridade, em um ambiente marcado pelo trabalho pesado e contínuo e pelo dogmatismo
católico‖. Teve uma origem modesta e uma formação intelectual marcada pelo autodidatismo, passando por
dificuldades e fracassos. Como estudante, Capistrano de Abreu não teve êxito em exames em sua preparação
para entrar na Faculdade de Direito de Recife. Porém, adquiriu uma boa bagagem intelectual, pois ―[...] lia
francês e inglês, conhecia filosofia, literatura, história e geografia‖. Capistrano rompeu com o mundo em que
vivia com sua família e migrou para o Rio em 1875, adotando outra perspectiva de vida, buscando
reconhecimento intelectual. No Rio de Janeiro, trabalhou em uma livraria, foi professor e passou num concurso
para trabalhar na Biblioteca Nacional. Mas, ao que parece, foi com a publicação de seu Necrológio sobre
30
Sobre Visconde de Porto Seguro (1878) e Capítulos de História Colonial (1907). Esta
última, assim como a obra de Varnhagen, ocupa lugar entre os textos ―fundadores da
historiografia brasileira.‖71
Foi com base na leitura e crítica da obra de Varnhagen que Capistrano imprimiu uma
interpretação inovadora da história do Brasil.72 Chegou a ser membro correspondente do
IHGB, mas era contrário ao projeto historiográfico do qual Varnhagen era o principal
expoente.73 Além disso, se por um lado Capistrano não hesitara em dar provas de
reconhecimento à contribuição daquele a quem atribuía os títulos de ―mestre, guia e senhor‖
dos estudos de história pátria, por outro, referia-se com ironia à instituição que, oficialmente,
congregava aqueles que se dedicavam a esses trabalhos.
Além disso, Capistrano de Abreu participou do debate sobre a supremacia da
influência do negro ou do indígena na feitura do caráter nacional. 74 Nesse debate, chegou a
entrar em divergência com Sílvio Romero. Capistrano de Abreu defendia os indígenas,
enquanto Romero, os negros. Segundo José Carlos Reis, Capistrano foi um dos iniciadores do
pensamento histórico brasileiro como aquele que redescobriu o Brasil 75 por valorizar seu
povo, suas lutas, seus costumes, a miscigenação, o clima tropical e a natureza brasileira.
Atribuiu a este povo a condição de sujeito da sua própria história. O pensamento deste
historiador pode ser entendido como uma síntese da escrita da história do Brasil no início do
século XX.
Após a morte de Capistrano de Abreu em 1927, houve uma mobilização de um grupo
de intelectuais para a criação da Sociedade Capistrano de Abreu,
Varnhagen, escrito em 1878, que Capistrano começou a transitar em terreno que desejava e teve grande
repercussão no mundo intelectual. REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 1999,
p. 83.
71
OLIVEIRA, Maria da Glória. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de Abreu (1885-
1927). 2006.183f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2006.
72
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 1999, p. 88-89.
73
OLIVEIRA, Maria da Glória. 1999, p. 36.
74
Ibid, p. 43.
75
REIS, José Carlos. 1999, p. 95.
76
SILVA, Ítala Byanca Morais da. Anotar prefaciar a obra do ―mestre‖: reflexões de José Honório Rodrigues
sobre Capistrano de Abreu. História da historiografia: Ouro Preto, n. 3, p. 83-105, setembro 2009.
31
77
Romero nasceu em 1851, na cidade de Lagarto, em Sergipe. Aos 12 anos de idade, migrou para o Rio de
Janeiro e, em 1868, foi para o Recife fazer o curso de Direito. Tinha uma produção intelectual diversificada,
escreveu sobre vários temas e em diferentes gêneros, transitou pela poesia, história e crítica da literatura, e
outros. Além disso, tinha interesse pela história e etnologia do povo brasileiro.
78
BECHELLI, Ricardo Sequeira. Metamorfoses na interpretação do Brasil: tensões no paradigma racial.
(Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna). 2009. 420f. Tese (Doutorado em
História) – Universidade São Paulo, São Paulo, 2009. p. 64.
79
Segundo Ventura, Para Romero, ―em termos literários e artísticos, a consciência nacional se cria pela fusão das
raças e pela incorporação das ‗faculdades de imaginação e sentimentos dos selvagens do continente americano
e africano‘ a uma ‗expressão civilizada‘‖. Nesse sentido, Romero ―apoia-se na teoria de Gobineau de que a arte
e o refinamento estético nasceram do cruzamento entre a sensualidade do negro e a espiritualidade do branco‖.
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história tropical e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 48.
80
PEREIRA, Milena da Silva. Insultos e afagos Sílvio Romero e os debates de seu tempo. 2008. 120f.
Dissertação (Mestrado em História). UNESP, Franca, 2008.
81
BECHELLI, Op. Cit., p. 83-84.
32
Romero ainda é lembrado pelas polêmicas que travou com intelectuais de seu tempo, a
exemplo de divergência travada com Capistrano de Abreu e José Veríssimo, Teófilo Braga e
Manoel Bomfim.82 Este último, diferentemente de Capistrano de Abreu, não rebateu as
críticas deferidas por Romero.83 Bomfim, historiador, foi considerado, por alguns, um
rebelde84 e, por outros, uma voz dissonante no seio da intelectualidade de seu tempo.85
A produção intelectual de Bomfim dividiu-se entre a escrita de textos para jornais,
revistas e livros didáticos e um conjunto de livros, que contribuíram significativamente para a
história do Brasil, entre os quais podemos citar: A América Latina: males de origem (1905),
Através do Brasil (1910), este em parceria com Olavo Bilac. Além desses, destaca-se a
trilogia O Brasil na América (1929), O Brasil na História (1930) e O Brasil Nação (1931).
Uma das marcas de sua produção intelectual foi a crítica à escrita da história do Brasil
elaborada no início do século XX. Com respaldo nessas críticas, podemos identificar outra
perspectiva e caminho para a escrita da história daquele período. A historiadora Rebeca
Gontijo, ao analisar o livro O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação
política, afirma que:
É possível localizar, no livro em questão, articulações entre o modo como seu autor
pensava na história — como passado vivido e como narrativa deste passado —
elegendo temas, acontecimentos, personagens, intérpretes e chaves explicativas, a
partir dos quais ele compreendia a nação. Deve-se observar que a reflexão de
Manoel Bomfim não se apresenta como uma teoria da história ou um projeto
historiográfico organizado em torno de proposições metodológicas sistematizadas.
Seu texto apresenta considerações e posicionamentos sobre problemas de ordem
82
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história tropical e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 11.
83
Segundo Ventura, a polêmica de Silvio Romero contra Bomfim ocorreu em 1906, em função do livro A
America Latina, com uma série de 25 artigos, depois reunidos em um livro. ―Bomfim havia criticado a
transposição à sociedade de categorias darwinistas, como a luta pela existência e a lei da sobrevivência do mais
apto, com argumentação próxima, em alguns pontos, de Tobias Barreto. Ao se mostrar contrário ao
evolucionismo e ao darwinismo sociológico, Bomfim refutou as homologias e analogias entre a biologia, a
zoologia e a sociedade (...)‖.
84
AGUIAR, Ronaldo Conde. O rebelde esquecido: Tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2000.
85
Bomfim nasceu em 1868 em Sergipe, era filho do vaqueiro Paulino José e da viúva Maria Joaquina. O pai
queria que administrasse a fazenda, mas Bomfim preferiu a Medicina. Formou-se na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro em 1890 e sonhava atuar como professor e desenvolver pesquisa na área médica. Em sua
trajetória, não se distanciou muito desse horizonte. Exerceu a medicina durante um período, mas abandonou a
carreira após morte de uma filha em 1894. Essa decepção o fez dedicar-se a atividades ligadas ao campo
educacional. Em 1896, ―[...] foi convidado pelo então prefeito da cidade de Rio de Janeiro, Francisco Furquim
Werneck de Almeida, a ocupar o cargo de subdiretor do Pedagoguim, do qual se tornou diretor
posteriormente‖. Essa instituição tinha como função a coordenação e controle das atividades educacionais do
País. Em 1907, foi Deputado Federal, pelo Estado Sergipe. SILVEIRA, Cristiane da. (Re)leituras de Manoel
Bomfim: a escrita da história do Brasil e o ser negro na passagem do século XIX para o XX. 2011. 296f. Tese
(Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 43.
33
Bomfim era um homem do seu tempo e, assim como os intelectuais daquele período,
valorizava o saber científico como pressuposto legítimo e necessário para a compreensão da
realidade.87 Porém apresentou especificidades nesse quesito.
[...] o primeiro garantia sua identidade como historiador através de sua experiência
no trato com fontes documentais em arquivos – o que era fundamental num
momento em que se almejava conferir cientificidade à história. O segundo, através
90
de sua atividade docente.
86
GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim: "pensador da história" na Primeira República. Revista Brasileira de
História, São Paulo , v. 23, n. 45, p. 129-154, Julho 2003. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882003000100006&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 14 setembro de 2015. p. 130.
87
Ibid., p. 131.
88
Ibid., p. 132.
89
SILVEIRA, Cristiane da. 2011, p. 47.
90
GOTIJO, Op. cit., 2003 p. 134.
34
Nas primeiras décadas do século XX, momento em que Manuel Querino começou a
publicar seus escritos, podem ser listados vários nomes de historiadores, ligados ou não a
determinadas instituições, que estiveram em conexão, em constante debate e diálogo. De
modo que apresentaram especificidades que conferem à historiografia brasileira do período
uma multiplicidade de interpretações. Assim, historiadores como Varnhagen, Januário da
Cunha Barbosa, Capistrano de Abreu, Sílvio Romero e Manoel Bomfim podem indicar como
era a escrita da história do Brasil e qual era o lugar reservado aos negros africanos nessa
escrita. Varnhagen e Barbosa estavam vinculados a um projeto historiográfico sistematizado
no interior do IHGB, cuja principal preocupação era a criação de uma história nacional. As
produções desses historiadores ligados ao IHGB faziam elogio à colonização portuguesa.
Capistrano de Abreu, Romero e Bomfim faziam parte de outra geração de historiadores
brasileiros que, nas primeiras décadas do século XX, participaram ativamente dos debates
sobre a formação da sociedade brasileira.
Como se observou, embora autores como Sílvio Romero tivessem identificado a
participação dos negros na formação da sociedade brasileira, essa participação devia
restringir-se à ajuda ao português a se adaptar ao clima tropical e à oferta da força de trabalho
na condição escrava.
Entre esses historiadores, Bomfim era uma exceção. No que diz respeito à escrita da
história, apresentou críticas no âmbito teórico. Ao interpretar o Brasil, contestava a ideia da
inferioridade dos negros, com base em teóricos que refutavam as teorias raciais estrangeiras
muito utilizadas pela intelectualidade brasileira, ressaltando que o problema do negro era a
falta de instrução.
Diante desse quadro, observa-se que Manuel Querino participava dos respectivos
debates com relação ao papel dos negros africanos na formação da sociedade brasileira.
Assim, é feita, a seguir, uma análise da obra desse autor, buscando identificar os instrumentos
teóricos e metodológicos que utilizou em sua escrita e os diálogos que construiu com
91
SILVEIRA, Cristiane da. 2011, p. 134.
35
Os estudos mais recentes sobre a vida e obra de Manuel Querino mostram sua
importância para a compreensão da história da Bahia e do Brasil da virada do século XIX para
o XX. Um dos primeiros estudos desenvolvidos em programas de pós-graduação foi o de
Flávio Gonçalves Santos.92 Em sua dissertação, analisou os discursos de Manuel Querino e
Édison Carneiro, entendendo esse discurso como uma resposta ao modo ―racista‖ como os
negros africanos e afrodescendentes eram tratados pela maioria dos intelectuais de seu tempo.
Segundo Santos, esses dois intelectuais, sujeitos advindos das camadas populares,
aproximaram-se dos padrões de cultura erudita e, por conseguinte, desconstruíram os
discursos racistas produzidos pela maior parte da intelectualidade brasileira, a qual teve em
Nina Rodrigues um de seus grandes representantes na Bahia.
A historiadora Maria das Graças de Andrade Leal, ao elaborar uma biografia e
preencher lacunas da trajetória de Manuel Querino, trouxe, à luz da história, as experiências
de outros sujeitos históricos com os quais Querino estabeleceu algum tipo de relação e
compartilhou experiências no âmbito político, social e intelectual. Tomou a obra de Querino
como ―autobiográfica‖, pois, apesar de não falar de si de forma direta, Querino acabou
revelando muito a seu respeito e sua compreensão da sociedade na qual esteve inserido. Visão
esta que pode ser identificada nas entrelinhas de seus textos jornalísticos, literários,
etnográficos, historiográficos e memorialísticos.93
Carlos Antonio dos Reis94 analisou as críticas de Querino aos projetos de
modernização de Salvador e seu papel junto a outros intelectuais de seu tempo. Reis focou
nos livros Bahia de outrora e O colono preto como fator de civilização brasileira, com
referência nos quais buscou situar o papel ocupado por Manuel Querino diante de outros
intelectuais.
92
SANTOS, Flávio Gonçalves dos. Os discursos dos afro-brasileiros face às ideologias raciais na Bahia
1889-1937. 2001. 127f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador-BA,
2001.
93
LEAL, Maria das Graças de Andrade, 2009, p. 15.
94
REIS, Carlos Antônio dos. Do convívio a colaboração das raças: elogio da mestiçagem e reabilitação do
negro em Manuel Querino. 2009.179f. Dissertação (Mestrado em História) – UNESP, Franca, 2009.
36
O que aponta uma distinção entre os dois: o critério que utilizam para a seleção dos
artistas mencionados em seus estudos. Vasari estabelece um juízo de valor com base
em categorias ―estéticas‖, enquanto Querino, imbuído de um espírito mais
enciclopédico, busca inventariar o maior número dos profissionais que atuaram no
espaço de Salvador, desenvolvendo atividades ligadas ao fazer ―artístico‖,
97
considerasse eles competentes ou não em seus ofícios.
Querino está para a periodização da arte baiana tal qual Vasari está para a do
Renascimento: os dois conceitos têm sólidas raízes na historiografia e chegaram até
nossos dias. Outra similitude entre os dois historiadores encontramo-la na ideia
98
evolutiva e progressiva de arte.
Contudo, esse tratamento dado a Querino como historiador da arte foi criticado por
Helena Flexor, estudiosa desta área.
95
NUNES, Eliane. Manuel Raymundo Querino: o primeiro historiador da arte baiana. Revista Ohun, ano 3, n. 3,
p. 237-261, Set. 2007. Disponível em: <http://www.revistaohun.ufba.br/pdf/eliane_nunes.pdf>. Acesso em: 12
ago. 2014.; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A história da arte de Manuel Querino. In: 19º ENCONTRO DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS – ―Entre Territórios‖, 2010,
Cachoeira – BA. Anais. Cachoeira – BA: Edufba, 2010. pp. 525 -539.
96
NUNES, Eliane. 2007, p. 241.
97
Idem.
98
Ibid., p. 245.
99
NUNES, Eliane. 2007, p. 245.
37
Luiz Alberto Freire explica essa aproximação entre esses dois historiadores da arte,
sugerindo que Querino, possivelmente, tivesse lido a obra de Vasari publicada em Florença
em 1550 e 1568.101 Observa que havia em Querino ―[...] uma estruturação metodológica e
uma consciência do trabalho que foi realizado, que podemos perceber desde o desdobrar do
título em ‗indicações biográficas‘, mostrando com isso plena consciência de que seu escrito é
incompleto.‖102 Portanto, Manuel Querino deu importantes contribuições à história da arte na
Bahia.
Esses estudos sobre Manuel Querino evidenciam que sua escrita da história resultava
de atividade de pesquisa orientada por um tipo de metodologia, com base num diálogo com
autores cujas obras estavam disponíveis em seu tempo. A comparação de Querino com o
historiador da Arte Giorgio Vasari, feita por Freire e Nunes, possibilitou inseri-lo entre os
historiadores da arte, inclusive sendo indicado como o primeiro historiador da arte baiana.
Freire mostra que Querino leu as obras do historiador italiano e se inspirou em suas pesquisas
sobre as artes e os artistas baianos.
Tendo em vista essa atribuição a Querino de historiador da arte, comparado a Vasari,
entre outras referências que o qualificam como historiador, a pergunta que orienta esse estudo
busca lançar luzes sobre suas características no conjunto de requisitos necessários para ser
considerado um historiador no período analisado. Como escritor e membro do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, como podemos situá-lo entre os historiadores de então?
Quais critérios, posições, instrumentos teóricos, metodológicos e políticos adotou para
escrever sua obra? Em que medida Querino se aproximou do modelo de escrita da história de
seu tempo e, simultaneamente, distanciou-se? Ele teria recebido, de alguma forma, bases
explicativas de Bomfim para escrever sobre o Brasil e o brasileiro?
Buscamos identificar esses elementos nos textos A raça africana e seus costumes na
Bahia (1916) e O colono preto como fator de civilização brasileiro (1918) e nos artigos
Candomblé de Caboclo (1919) e Homens de cor preta na história (1923). Esses trabalhos
100
FLEXOR apud NUNES, 2007, p. 245.
101
Freire afirmou que Querino teria tido ―[...] conhecimento das ‗Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e
escultores italianos desde Cimabue a nossos tempos‘ do pintor de Arezzo Giorgio Vasari publicada em
Florença em 1550, 1568, com 18 edições italianas e 8 traduções da segunda edição, ou mesmo alguma de
suas emulações como a do português Cirilo Wolkmar Machado, intitulada ‗Collecção de memórias relativas
as vidas dos pintores, e escultores, architetos, e gravadores portugueses e dos estrangeiros, que estiveram em
Portugal‘ publicado em 1823 e ‗Tratado de Arquitetura e Pintura‘‖. (FREIRE, 2010, p. 526)
102
FREIRE, Op. cit., p. 529.
38
103
Em nota de rodapé, a historiadora Maria das Graças de Andrade Leal chama atenção para o fato de esse texto
de Querino ter sido o único estudo de conteúdo racial e único trabalho apresentado naquele evento que não
tratava de temas das áreas de geografia, cartografia, hidrografia, climatologia e outras disciplinas próximas
da geografia. LEAL, 2009, p. 100.
104
Essa atitude precisa ser posta em debate, visto que Ramos se via herdeiro de Nina Rodrigues e fazia parte de
um grupo que se intitulava Escola Nina Rodrigues, e como Querino e Nina Rodrigues tinham pensamentos
divergentes em várias questões o que pode dotar o trabalho de Arthur Ramos de intencionalidades que
precisam ser questionadas.
105
NASCIMENTO, Jaime; GAMA, Hugo (Orgs.). Manuel R. Querino: seus artigos na Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, 2009.
106
SABINO, Maria de Fátima. Ensino de História e consciência histórica latino-americana. Revista Brasileira
de História. v. 31, p. 1-19, 2011. MEREGE, Ana Lúcia. Frei Camilo de Monserrate. Disponível em:
<http://bndigital.bn.br/projetos/200anos/freiCamilo.html>. Acesso em: 19 set. 2014.
39
[...] conviria muito, pois, antes da extinção completa da raça africana, no Brasil, e,
sobretudo, antes que desapareçam as variedades mais interessantes e menos
vulgarmente conhecidas, apanhar dos próprios indivíduos, que as representam,
informações que dentro de pouco tempo será impossível ou pelo menos muito difícil
de obter. Há, entre os negros transportados da África, indivíduos oriundos de regiões
do interior do continente, até onde nenhum viajante conseguiu ainda ir, e que não se
acham mencionados em nenhuma relação publicada. Podem-se ainda distinguir e
estudar os tipos diversos, constatar-lhes autenticamente a origem, interrogar os
indivíduos sobre suas crenças, suas línguas, seus usos e costumes, e recolher assim
da própria boca dos negros, tanto mais facilmente quanto é certo que eles falam a
língua comum, informações que os viajantes só a muito custo obtêm, correndo
107
grandes riscos em custosas expedições e ainda sujeitos aos mais graves erros.
O que Querino chamava de roteiro era um dos caminhos para ter acesso a informações
sobre costumes e memórias africanos. Esse caminho seria ―recolher da própria boca dos
negros‖ essas informações, antes que eles desaparecessem. Nisso, tinha-se uma vantagem em
relação aos pesquisadores e viajantes estrangeiros que se aventuravam no continente africano
para realizar estudos por correrem o risco de terem custosas expedições e ainda ―sujeitos aos
mais graves erros‖. Seria, nesse sentido, um roteiro hoje atribuído à história oral e à memória,
de um lado, e de outro, à preocupação com as interpretações possíveis, e equivocadas, dadas
por estrangeiros distantes da realidade africana, o que teria menos riscos de erros se
considerasse a proximidade com experiências africanas no território brasileiro. Neste caso, no
território baiano.
Apesar de reconhecer na fala de Monserrate um roteiro, Querino afirma que não se
propôs:
[...] empreender um trabalho nos moldes do monge, entre outros motivos, por nos
faltarem os requisitos indispensáveis a um estudo psicológico das tribos que por
largos anos conviveram entre nós, e, sobretudo, porque se extinguiram, precisamente
os africanos que, sendo aqui escravizados, ocuparam, na terra natal, posição de
prestígio social elevada, como guia dos destinos da tribo, ou como depositários dos
108
segredos da seita religiosa.
apesar da reserva, rigorosamente mantida pelos africanos com relação a suas práticas
feiticistas, conseguimos colher, nas melhores fontes, seguras informações acerca da
religião das tribos que aqui se extinguiram.
107
MONSERRATE apud QUERINO, p. 19-20.
108
QUERINO, 2010, p. 32.
40
Tanto quanto nos foi possível penetrar os misteriosos recessos do rito africano,
vencendo resistências oriundas da prevenção e da desconfiança, acreditamos haver
109
apreendido as principais cerimônias que formam o corpo da seita.
Com essas palavras, Querino indicou parte dos caminhos percorridos na pesquisa, que
podem ser entendidos como procedimentos metodológicos, e depois informava um dos tipos
de fontes que considerava serem as melhores para a pesquisa empreendida. Assim, pode-se
sugerir que as informações contidas no texto de A raça Africana sobre as práticas culturais
africanas foram colhidas pela observação e participação dos ritos e atividades nos terreiros e
de entrevistas com os próprios africanos. Para ter acesso a esses espaços, teve que vencer
―resistências oriundas da prevenção e da desconfiança.‖110 Possivelmente, Querino teve
acesso a ritos, considerados, pelos africanos e descendentes, secretos, proibidos a pessoas
desconhecidas, uma vez serem práticas proibidas pelo Estado, consideradas criminosas. Nessa
parte do texto, Querino indicou ainda os indivíduos que eram alvo de suas investigações: ―[...]
os próprios africanos e seus descendentes mais diretos, indivíduos sabedores das práticas
religiosas dos ascendentes.‖111 Além de estabelecer seu objeto de estudo – as práticas
religiosas de matriz africana.
Antes de avançar com a identificação dos procedimentos teóricos, é importante
registrar que, antes de apresentar esse roteiro sugerido por Monserrate, Querino tocou no
nome de Nina Rodrigues, afirmando que este roteiro havia ―[...] apenas iniciado pelo
malogrado professor Nina Rodrigues.‖112 Essa foi a única vez em que Querino se reportou ao
médico legista de forma direta. É possível identificar em sua escrita uma abordagem sobre
temas como a questão das sobrevivências africanas, que o colocava em contraposição ao
pensamento de Nina Rodrigues, sem, no entanto, declarar explicitamente que sua posição era
uma resposta ao médico legista. Por isso, essa menção e uso do termo ―malogrado‖ requerem
atenção e explicação. Nina Rodrigues era reconhecido como um dos pioneiros dos estudos
sobre os africanos no Brasil e Querino, por sua vez, concordava com isso. A ideia de
malogrado, que tem um peso negativo de algo que não teve êxito, algo que fracassou, pode ter
sido utilizada em função da morte prematura do professor da escola de medicina da Bahia,
tendo este deixado parte importante de sua obra inconclusa. Outras explicações podem ser
identificadas no próprio texto, quando Querino declara que seu trabalho era apenas um
esboço, pois não tinha empreendido realizar um trabalho nos moldes que Monserrate. Ao falar
109
QUERINO, 2010, p. 32.
110
Idem.
111
Ibid, p. 33.
112
Ibid, p. 31.
41
Querino, ao utilizar o termo ―raça africana‖, estava adotando uma abordagem diferente
daquela apresentada por intelectuais como Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Euclides da
Cunha. Para esses últimos, raça era um dado científico114 e usavam-na para classificar os seres
humanos, estabelecendo uma hierarquia entre eles. No caso de Manuel Querino, o uso do
termo era uma forma de se reportar aos africanos como população oriunda do continente
africano. Aqueles autores acreditavam que a raça correspondia a um estágio de evolução e que
os africanos corresponderiam a um tipo racial inferior ao europeu civilizado. Querino, por sua
vez, afirmou que os filhos do continente negro foram mais importantes na colonização e
civilização brasileira do que os portugueses, mostrando sua divergência teórica e política.
Segundo ele,
113
QUERINO, 2010, p. 31.
114
BECHELLI, Ricardo Sequeira. Metamorfoses na interpretação do Brasil: tensões no paradigma racial.
(Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna). 2009. 420f. Tese (Doutorado em
História) – Universidade São Paulo, São Paulo, 2009. p.54.
42
Para Querino, a influência africana nos costumes brasileiros era notória, mostrando
fortemente seu protesto. Percebe-se, nesse posicionamento, a reivindicação por melhor
tratamento a ser dedicado aos africanos, por considerar ―desdenhoso e injusto‖ por parte da
sociedade e da intelectualidade de então. Querino não acreditava na ideia de inferioridade
racial dos negros africanos propugnada pelas teorias racialistas e, por isso, considerava injusto
classificar os negros africanos de ―boçais‖ e ―rudes‖. Ao dizer isso, explicitou que tais
qualidades atribuídas como ―congênitas e comuns a todas as raças não evoluídas‖ eram
devidas à ―simples condição circunstancial‖, o que significa, para Querino, terem, os
africanos, sido subjugados à condição de escravos e viverem socialmente excluídos.
Não podemos deixar de levantar algumas questões com relação ao uso dos termos
―boçais‖ e ―rudes‖, que, segundo Querino, seriam qualidades congênitas de raças não
evoluídas. Nesse caso, Querino acreditava na existência de raças não evoluídas? Para
Querino, os africanos, como outras ―raças‖, seriam ―não evoluídos‖ apenas pelas
―circunstâncias‖ e não por serem características congênitas? Querino não esclarece essas
questões em seu texto. Mas é possível supor que considerasse os povos indígenas como raças
não evoluídas. Embora seja importante frisar que em nenhum momento tenha feito algum
comentário que esboçasse essa ideia em seus textos, o fato de não ter dito de forma clara
sobre o estágio evolutivo dos indígenas é um dado que pode ajudar a responder às questões
levantadas acima.
A principal preocupação de Queiro é a de desconstruir a ideia de inferioridade dos
africanos e da sua incompatibilidade com a civilização, por reconhecer e defender a
participação africana no processo de construção da sociedade brasileira. Nesse sentido, para
Querino, a civilização só foi possível no Brasil com a chegada dos africanos escravizados à
colônia. Antes disso, a tentativa de escravização dos indígenas teria sido um fracasso
português. Ao analisar o processo de colonização do Brasil, Querino colocou o indígena na
condição de vítima, afirmando serem estes indivíduos insubmissos e, por isso, teriam se
revoltado ―contra a tirania e injustiça de que fora[m] vítima[s], com a exploração da sua
atividade nos trabalhos da lavoura.‖116 Ao encarar o indígena como vítima da exploração
portuguesa, Querino os aproxima dos africanos, mas nota-se que seu interesse de pesquisa
voltava-se para esses últimos.
115
QUERINO, 2010, Op. cit., p. 33
116
Ibid, p 135.
43
Outro ponto que merece ser destacado é com relação ao termo ―fetichismo‖, presente
na obra de Querino. Possivelmente teria sofrido influência de Nina Rodrigues, cujo termo
aparece no livro publicado inicialmente em francês, no ano de 1900, e em português com
título O animismo fetichista dos negros bahianos, em 1935. Nessa obra, Nina Rodrigues
analisou as religiões africanas e as denominou de ―animismo fetichista‖, sem apresentar uma
explicação para esse conceito. Para Vanda Serafim,
[...] pensar o uso feito por Nina Rodrigues, dos termos ―fetichismo‖ e ―animismo‖
são pressupostos para o entendimento de seu pensamento. Rodrigues não traz
definições detalhadas sobre os conceitos que utiliza - o que é comum de se fazer no
meio acadêmico com conceitos que atingem certa notoriedade. Assim sendo, uma
hipótese sobre a não explicação pela adoção desses conceitos é de que fossem
117
recorrentes no tempo e espaço em que Nina Rodrigues escreve.
Por sua vez, Querino também não explica o uso do termo. Nesse sentido, pode-se
inferir que o uso daqueles conceitos seria recorrente no tempo em que escreveu sua obra e,
portanto, tivesse se apropriado do termo para se fazer entender pelos contemporâneos, embora
não concordasse com a forma de tratamento reservado às práticas religiosas africanas.
Voltando ao conteúdo do livro A raça africana, na segunda parte intitulada Nos
sertões africanos, Querino se propôs ―[...] a dar notícia resumida de como se ainda observam
em terras dos sertões do Níger e Congo, notícias que colhemos de velhos e respeitáveis.‖118
Querino descreveu ―[...] como, entre os nagôs, na África Central, se pratica com recém-
nascidos e como se batizam as crianças.‖119 Informou que havia a prática entre mulheres
grávidas de combinarem, caso dessem à luz no mesmo dia, se nascessem meninos, que seriam
amigos e, se uma menina e um menino, ambos se casariam. Querino informou ainda que, na
África Oriental, até meados do século XIX, usava-se a lei de Talião. Em seguida, falou das
formas de captura de adultos e crianças com o consentimento do governo local para serem
vendidos como escravos.
Segundo Querino, os árabes foram
117
SERAFIM, Vanda Fortuna. Os Conceitos ―Fetichismo‖ e ―Animismo‖ no Discurso de Nina Rodrigues. Em
Tempos de História - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília -
PPG-HIS, n. 15, Brasília, julho/dezembro 2009. ISSN 1517-1108. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/revistanures>. Acesso em: 4 abr. 2014.
118
Ibid. p. 34.
119
Ibid, p. 35.
120
Ibid, p. 38.
44
121
É possível que tenha sido um ex-traficante de escravos também conhecido como Dr. Cliff e Dr. Joseph Ciffer.
Cf. CARVALHO, José Flávio Santos de Tráfico de Escravos: Um crime complexo que alimentou um crime
bárbaro chamado escravidão – Parte I. Disponível em: http://cottidianos.blogspot.com.br/2015/11/trafico-de-
escravos-um-crime-complexo.html. Acesso em: 30 out. 2015.
122
QUERINO, Op. cit., p. 43.
123
Ibid, p. 46.
124
Ibid., p. 82.
125
Ibid., p.101.
45
atribuir aos africanos malês o levante de 1835, nesta capital.‖126 No geral, o texto apresenta
um conjunto de registro de usos e costumes, para usar os termos de Querino, que pode servir
de fonte para pesquisas sobre as religiões africanas e afro-brasileiras.
Essa preocupação com o registro das experiências africanas esboçada por Querino em
A raça africana também era observada em intelectuais como Sílvio Romero e Nina
Rodrigues. Em Africanos no Brasil, Nina Rodrigues reproduziu um fragmento do texto
Estudos sobre a poesia popular do Brasil, de Sílvio Romero. Nesse fragmento, Romero
alegou que era uma vergonha para a ciência no Brasil a pouca existência de trabalhos sobre as
religiões e línguas africanas. Segundo Romero, enquanto pesquisadores estrangeiros se
refugiavam por dezenas de anos no continente africano, ―[...] somente para estudar uma língua
e coligir uns mitos, nós temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas,
como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havendo produzido
nesse sentido! É uma desgraça.‖127 Romero chamava a atenção de seus pares para a
necessidade de pesquisas sobre os negros africanos e considerava isso uma ―desgraça‖.
Segundo Thomas Skidmore, nesse contexto, as pesquisas realizadas pelos museus e institutos
centravam-se no indígena. Assim ―o ―imigrante‖ africano e sua progênie afro-americana não
despertavam o interesse do pessoal dessas entidades para a pesquisa dos estudos etnográficos
a eles atinentes.‖128 Influenciado por esse apelo de Sílvio Romero, Nina Rodrigues ―[...] foi o
primeiro pesquisador a estudar a influência de maneira sistemática.‖129 Não se deve omitir a
participação de Manuel Querino nessa tarefa, uma vez ter assumido o lugar de pesquisador e
estudioso que, ao discorrer e analisar sobre a presença africana no Brasil e na Bahia, adotou
uma abordagem diferente de Romero e Rodrigues. Para o intelectual negro baiano, os
africanos tinham, efetivamente, participado de forma ativa da constituição de uma civilização
brasileira.
Essa mesma afirmação e constatação aparecem no texto O colono preto como fator
de civilização brasileira, cujo foco foi o desenvolvimento de uma argumentação sobre a
participação do africano na construção daquilo que, em seu tempo, compreendia ser a
civilização brasileira. O texto está organizado em seis capítulos conectados com base numa
narrativa do historiador que lança o olhar em direção ao passado, respaldado numa coleta de
elementos que o auxiliaram a elaborar uma interpretação da sociedade de seu tempo.
126
Ibid., p. 10.
127
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os Africanos no Brasil. 5. ed. São Paulo: Nacional, 1977. p. XV.
128
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento no pensamento brasileiro.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 74.
129
Idem.
46
[...] opera com ―O colono preto como fator da civilização brasileira‖ dois
importantes pontos de corte com a historiografia tradicional: primeiro, trata o
africano como ―colonizador‖, e não apenas como elemento passivo, mão de obra
escrava; segundo, aponta o seu papel civilizador, sua atuação como elemento que
cria e promove civilização, invertendo a tradicional associação do ―preto‖ com a
130
―barbárie‖ e como elemento objeto da obra civilizadora do branco português.
130
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Manuel Querino e a formação do ―pensamento negro‖ no Brasil,
entre 1890 e 1920. Comunicação apresentada no 28º Encontro Nacional da ANPOCS, em Caxambu,
outubro de 2004. Disponível em: <http://svn.br.inter.net/5star/blogs/mqpensamentonegro.pdf >. Acesso em
20 out. 2015.
47
O diálogo entre Querino e historiadores das primeiras décadas do século XX pode ser
identificado em seus textos considerando as citações de suas obras.132 Listamos alguns deles e
identificamos o modo como apareceram em sua escrita. Querino citou vários autores, desde
brasileiros a estrangeiros e de áreas diversas como poesia, romance, história, estudos ligados a
131
REIS, 1999, p. 85.
132
A historiadora Maria das Graças de Andrade Leal, em seu estudo, fez uma lista de autores que foram lidos por
Querino. LEAL, 2009, p. 59.
48
práticas religiosas e de viajantes europeus que estiveram em continente africano. Entre eles
destacamos os mais citados por Querino: Melo Morais Filho, Rocha Pombo, João Ribeiro e
Oliveira Lima.
De Melo Moraes Filho, Querino usou fragmentos do texto Festas e tradições
populares do Brasil (1901), como epígrafes de A raça africana e O colono preto. Moraes
Filho escreveu vários textos em diversificadas áreas e assuntos como folclore, costumes,
festas, tradições populares e ciganos. É considerado um dos precursores dos estudos sobre os
ciganos no Brasil133 e um dos primeiros intelectuais a estudar o folclore afro-brasileiro.134
O primeiro fragmento da obra de Moraes Filho usado como epígrafe em A raça
africana, no início do texto, tinha as seguintes palavras: ―Como pesquisa etnográfica
nenhuma das levas colonizadoras merece-nos mais atenção que as importadas da costa da
África e sua prole.‖135 O segundo fragmento aparece em O colono preto como epígrafe do
sexto capítulo de O africano na família, seus descendentes notáveis:
133
SILVA, Denize Carolina Auricchio Avarenga. Folcloristas brasileiros no fim do século XIX e o pioneirismo
de Alexandre Mello Moraes na ciganologia brasileira. Revista Espaço Acadêmico. n. 84 – Maio 2008.
Edição especial – 2001-2008 – Sétimo Ano – ISSN 1519.6186. Disponível em:
<http://www.espacoacademico.com.br/084/84silva.htm>. Acesso em: 14 ago. 2014.
134
SKIDEMORE, 1976, p. 74.
135
A primeira edição dessa obra é de 1901. MORAES FILHO, Alexandre José de Melo. Festas e tradições
populares no Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. p. 306..
136
QUERINO, 2010, p. 150.
49
Melo Morais Filho estava escrevendo no mesmo período em que Nina Rodrigues e
também registrou a falta de trabalhos sobre os africanos e reconhecia a influência dos
costumes africanos nos costumes brasileiros. Morais Filho, ao reservar alguns capítulos da sua
obra aos africanos, refere-se a eles como
(…) pobre gente que tanto amou e sofreu, derrubando florestas, fundando cidades,
acompanhando-nos em nossas alegrias e em nossos pesares, lineamentos étnicos de
sua vida de relação, antes de pararmos horrorizados em presença dos quadros de
138
seus martírios.
Essas palavras podem ter servido como uma das inspirações para que Querino
sistematizasse a ideia do africano ―colono‖ e ―civilizador‖, ao positivar o papel exercido pelos
africanos, que amaram, sofreram, construíram cidades e compuseram o delineamento étnico
do povo brasileiro.
Além da obra de Morais Filho, Querino leu História do Brasil, de Rocha Pombo.139
Por duas vezes, Querino referiu-se a Rocha Pombo como ―ilustre escritor patrício‖ e ―ilustre
historiador patrício‖. Nenhum outro autor citado por Querino recebeu tratamento parecido.
Esse tratamento e conteúdo das citações podem dar uma ideia da influência e importância
desse historiador para Querino.
José Francisco de Rocha Pombo morou no Rio de Janeiro, para onde se mudou ―[...]
no ano de 1897 com quarenta anos de idade, levando consigo uma trajetória intelectual que
incluía a publicação de contos, romances, poemas, ensaios crítico filosóficos, além de uma
vasta produção como articulista, homem de imprensa e professor.‖140 No Rio de Janeiro,
dedicou-se à escrita da história, o que possibilitou que fosse admitido como membro do
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro no ano de 1900. Foi um membro relativamente
atuante e publicou apenas dois textos pela revista do IHGB.141 As principais obras de Rocha
137
MORAES FILHO, Melo, 2002, p. 305-306.
138
Ibid, p. 306.
139
POMBO, José Francisco da Rocha. História do Brasil, ilustrada. vol. I. Parte primeira: O descobrimento;
Parte segunda: A terra. Rio de Janeiro: J. F. Saraiva editor, 1905. Além desses Querino citou: Viagens de
exploração no Zambeze e na África Central, de David Livingstone; Os herdeiros de Caramuru, de
Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho; A terra ilustrada, de Onesime Reclus; História do Brasil, de
João Ribeiro; Obras Póstumas, de Gonçalo Dias; O Muiraquitã, de Araripe Júnior; além de obras Gonzaga
Duque Joaquim Nabuco, Sotero dos Reis, Gregório de Mattos, Castro Alves e Barbosa Rodrigues.
140
SANTOS, Ivan Norberto dos. A historiografia amadora de Rocha Pombo: embates e tensões na produção
historiográfica brasileira da Primeira República. 2009. 196f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em História Social, Rio de Janeiro, 2009. p. 24.
141
Segundo Ivan Santos, ―no que se refere a trabalhos historiográficos, apenas dois textos de Rocha Pombo
foram publicados na Revista do IHGB: o artigo ‗A Maioridade‘, sobre os eventos que levaram o imperador
50
Quem havia de pensar que estes homens sem instrução, mas só guiados pela
observação e pela liberdade, foram os primeiros que no Brasil fundaram a república,
quando é certo que ainda naquele tempo ainda não se conhecia tal forma de governo,
142
nem dela se falava no país.
Nesse trecho, Rocha Pombo fez referência ao Quilombo dos Palmares, que teria sido a
primeira república fundada no Brasil, antes mesmo de se falar sobre essa forma de governo.
Essa citação foi feita por Querino no final da primeira parte do livro A raça africana, após
ter-se referido à luta heroica dos africanos em favor da liberdade. O trecho da obra de Rocha
Pombo apresentava informações que embasavam a ideia de Querino sobre o heroísmo dos
africanos. ―Palmares forma a página mais bela do heroísmo africano e de grande amor da
independência que a graça deixou na América.‖143
A citação seguinte, ainda em A raça africana, informou que:
Não se pode fazer uma ideia das conjunturas em que se viram as primeiras feitorias e
os primeiros núcleos da costa, aqui, à mercê, quase indefesos, de investidas
formidáveis dos gentios. Não fosse o braço forte do negro, o que teria sido daquelas
tentativas de fixação e domínio?
Quando começaram a entrar os africanos, a sua função principal foi a das armas, na
144
repulsa às temerosas agressões das hordas indígenas.
Essa citação foi feita na segunda parte de A raça africana, na qual Querino
apresentou uma abordagem sobre as experiências africanas, o que servia de argumento para a
sua defesa sobre a importância que tiveram para a colonização brasileira. Essa abordagem foi
retomada em O colono preto. Nesse texto, Querino voltou a recorrer à obra de Rocha Pombo
por duas vezes. A primeira, no primeiro capítulo, falando do perfil dos portugueses que
vieram para colonizar o Brasil, e a segunda, no terceiro capítulo, no qual Querino estava
tratando de práticas de resistência coletiva dos africanos à escravidão. Nesse sentido, o
Pedro II ao trono, publicado em 1925, e a monografia ‗A sucessão de Pedro I na coroa de Portugal‘, o qual
provavelmente foi o seu último trabalho historiográfico, no Segundo Congresso de História Nacional, em
1931‖. Cf. SANTOS, Ivan Norberto dos. 2009, p. 25.
142
POMBO apud QUERINO, 2010, p. 34.
143
Ibid, p. 146.
144
Ibid, p. 47.
51
Quilombo dos Palmares teria sido uma dessas práticas. Ao falar de Palmares, Querino citou
novamente Rocha Pombo, ao destacar que ―Palmares forma[va] a página mais bela do
heroísmo africano e o grande amor da independência que a raça deixou na América.‖145
Além de Rocha Pombo e Melo Moraes, outros autores foram citados por Querino,
entre os quais, destacamos dois historiadores, João Ribeiro e Oliveira Lima, que apareceram
menos na obra de Querino do que os dois primeiros.
O sergipano João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes era formado em direito pela
Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Atuou como jornalista, funcionário público,
professor, polígrafo e historiador. Ribeiro escreveu História Antiga: Oriente e Grécia (1890),
História do Brasil: Curso Superior (1900), História do Brasil (1905), História Universal
(1918) e História da Civilização (1932). Entre esses livros, Querino leu História do Brasil.
Esse livro era uma obra dedicada ao curso superior e possibilitou que Ribeiro fosse incluído
nos anais da historiografia brasileira146, pois Ribeiro foi um dos membros do IHGB.
A História do Brasil, de João Ribeiro, era ―[...] a obra mais citada por aqueles que se
apropriaram das ideias do autor, sobre a nação e a nacionalidade brasileira para desenvolver
seus próprios argumentos e interpretações‖147, quando foi lida por Querino. Os fragmentos do
texto de Ribeiro usados por Querino foram retirados deste parágrafo da primeira edição de
História do Brasil:
A parte em destaque não aparece na citação feita por Querino em seu livro. Então, por
que teria omitido essas informações? Podemos supor que Querino as tenha julgado
irrelevantes para o propósito que tinha em mente. Ao longo da escrita, a maioria das citações
dos autores que leu se reporta ao africano e aquelas que se referiam aos portugueses
apresentavam algum tipo de crítica.
145
QUERINO, 2010, p. 146.
146
FREITAS, Itamar. João Ribeiro e o ofício do historiador: seus leitores, suas prescrições. In: ANPUH – XXII
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2003, João Pessoa – PB. Anais. João Pessoa – PB: ANPUH,
2003. CD-ROM, 2003.
147
HANSEN, Patrícia Santos. João Ribeiro, historiador. Revista do Instituto Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, v.173, n. 454, pp. 11-360, janeiro/março 2012. p. 19.
148
RIBEIRO, João. História do Brasil: curso superior. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Crus Coutinho, 1901. p.
70-71. Grifo nosso.
52
Oliveira Lima também foi citado por Querino em sua obra. Lima morou boa parte de
sua vida em Portugal, onde concluiu o curso Superior de Letras de Lisboa.
Lima era um dos intelectuais mais importantes do Brasil no início do século XX. Sua
experiência como diplomata possibilitou que exercesse a função de historiador, pois teve
acesso a arquivos em diferentes partes da Europa. Nesses arquivos, compilou documentos, tal
como Varnhagen. ―Foi seu trabalho de historiador que distinguiu Oliveira Lima como
intelectual importante.‖150 Assim como os outros já citados, Lima foi membro do IHGB, além
do Instituto Histórico de Pernambuco e o de São Paulo. Foi professor em diversas
universidades em Portugal, nos Estados Unidos, na França, Argentina e na Bélgica. Escreveu
Pernambuco, seu Desenvolvimento Histórico (1895) e Aspectos de Literatura colonial
brasileira (1896). Este último pode ser adicionado à lista dos livros lidos por Querino. A
citação aparece no segundo capítulo de O colono preto e foi retirada de um parágrafo do
primeiro capítulo de Aspectos da literatura colonial brasileira, intitulado Português,
indígena e negro. Nesse capítulo, Oliveira Lima reportou-se à literatura portuguesa como
―[...] poderosa influência étnica que pesa sobre todas as manifestações de vida do país.‖151
Afirmou ainda que ―[...] na formação do forte produto mestiço, tipo diferenciado que forma o
brasileiro, entra o português como fator preponderante.‖152 Verificamos, assim, que as
informações coletadas por Querino faziam parte do seguinte parágrafo:
Para a feição diferenciada – mais imaginativa e mais ardente, diz o Sr. Silvio
Romero – acusada pelo brasileiro em suas manifestações literárias particulares,
vimos que contribuiu, além do indígena, o negro, igualmente dotado de certo sestro
musical e poético, e de justeza de entonação no acompanhamento de suas danças
lúbricas. Foi sobre o negro, importado em escala prodigiosa, que o colono
especialmente se apoiou para o arrotear dos vastos territórios conquistados no
Continente sul-americano. Robusto, obediente, devotado ao serviço, o africano
tornou-se um colaborador precioso do português nos engenhos do norte, nas
fazendas do sul e nas minas do interior. Na mestiçagem que infalivelmente se
dava nos campos, e também nas cidades, onde o serviço doméstico andava
exclusivamente confiado aos negros, buscou o europeu a energia fisiológica bastante
para resistir em sua descendência à ação enervante do clima tropical o vestígio
149
VELLOZO, Júlio César de. Um dom Quixote Gordo no deserto do esquecimento. Oliveira Lima e a
construção de uma narrativa da nacionalidade. 2012. 219f. Dissertação (Mestrado em Culturas e
Identidades Brasileiras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 24.
150
VELLOZO, Júlio César de. Op. cit., 2012, p. 25.
151
LIMA, Manoel de Oliveira. Aspectos da literatura colonial brasileira. Rio de Janeiro: F. Alves, 1984. p.
58.
152
Idem.
53
constante dessa raça dócil e laboriosa, com a qual tardia, mas honrosamente
saldamos uma dívida de gratidão nacional, encontra-se não só na poesia, na
novelística e na música populares, como também na língua, na cozinha e nas
153
superstições vulgares do país.
A parte em destaque foi citada por Querino, no segundo capítulo de O colono preto,
no final de um parágrafo em que falava:
153
LIMA, 1984, p. 83. Grifo nosso.
154
QUERINO, Op cit., 2010, p. 140.
54
raça africana no Brasil.‖155 É bem provável que Ribeiro tivesse tido acesso ao texto de
Querino pelos anais do V Congresso Brasileiro de Geografia, realizado em 1916, em
Salvado156, ou pela publicação de 1917. É possível que a apresentação de Querino, nesse
evento, tivesse chamado a atenção dos participantes pelo fato de ser uma das únicas que
tratavam de uma temática diferente da maioria dos trabalhos apresentados. O congresso
contou com a participação de pouco mais de mil pessoas, entre os quais, intelectuais como
Louis Agassiz, von Martius, Euclides da Cunha e outros.
Além da conexão entre Querino e intelectuais de seu tempo, outra questão que se
pretende delinear neste estudo diz respeito aos procedimentos metodológicos que orientaram a
sua pesquisa e escrita. Antes disso, é importante ressaltar que Manuel Querino era autodidata
e trabalhava com independência metodológica, como afirmou Arthur Ramos157, embora este
tivesse dito que faltava a Querino rigor metodológico. Como já foi apresentado, Querino
debruçou-se sobre a bibliografia existente que, de alguma forma, abordava o tema sobre o
qual pesquisava. Observa-se, contudo, que, além dos autores lidos, também lançou mão de
outros tipos de fontes para os estudos que fez. Assim, propõe-se, neste capítulo, ampliar a
análise do processo de escrita de Querino, identificando outros instrumentos que utilizou.
Em A raça africana, têm-se indícios de como era essa metodologia independente.
Querino usava vários tipos de fontes – o que denominamos de fontes são suportes nos quais
buscou informações. A metodologia usada por Querino era diferente daquela usada pelos
historiadores de então. Na época, as fontes históricas eram muito bem definidas, deveriam ser
documentos escritos, oficiais, de onde emanaria a história.158 Querino utilizou-se de vários
155
RAMOS, Arthur. Prefácio. In: QUERINO, Manuel Raimundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed.
Salvador: Eduneb, 2010. s/n.
156
―Em 1916, na cidade de Salvador, sob a presidência de Teodoro Sampaio, aconteceu o 5o Congresso
Brasileiro de Geografia, mais tarde considerado um dos mais importantes do período que se estende de 1909
a 1926 (Souza, 1941, p.16). Reuniu um total de 1.057 participantes. Paralelamente ao congresso, que
pretendia traçar um grande painel da geografia pátria consoante o ideário nacionalista então difundido,
promoveu-se uma exposição de 104 documentos, entre cartas, mapas e fotografias, e inaugurou-se uma
galeria com os 19 vultos nacionais e estrangeiros que mais contribuíram para o desenvolvimento da
disciplina no Brasil. À guisa de informação, cabe mencionar que a coleção era composta dos seguintes
nomes: Peter Lund, Louis Agassiz, Frederic Hartt, Orville Derby, almirante Ernest Mouchez, Henri
Coudreau, Élisée Réclus, von Martius, Teodoro Sampaio, Euclides da Cunha, Cândido Rondon, Couto de
Magalhães, João Barbosa Rodrigues, Cândido Mendes de Almeida, João Severiano da Fonseca, Antônio
Rebouças, Alfredo Moreira Pinto e barão Homem de Mello‖. Cf. CARDOSO, Luciene Pereira Carris. Os
congressos brasileiros de geografia entre 1909 e 1944. História, ciências, saúde, Manguinhos, Rio de
Janeiro, v. 18, n. 1, p. 85-103, janeiro-março 2011. p. 86.
157
RAMOS, In QUERINO, 2010, s/n.
158
A escrita da história nesse período não era homogênea, mas seguia-se o projeto historiográfico do IHGB.
Entre os membro desse grupo havia uma preocupação com a ―veracidade dos acontecimentos narrados, o que
poderia ser garantido com a utilização de fontes fidedignas, bem como o comprometimento com a escrita de
uma história unificadora, que colaborasse para a construção da nação. O principal compromisso do IHGB,
presente desde a sua proposta de criação, era com a compilação, divulgação e organização de um arquivo de
documentos relativos à história do país, que pudesse servir de referência para a escrita da história e da
55
tipos de suportes e materiais, que não eram reconhecidos como fontes, tais como a memória
oral, jornais, cartas, relatório de chefe de polícia, processos crimes, poesia, romance e
imagens.
A memória acessada nos depoimentos dos próprios africanos e descendentes era a
principal fonte de Querino. Aquele roteiro proposto por Fr Camilo de Monserrate identificava
ser essa a melhor forma de acessar informações sobre os costumes africanos. Outra forma de
se ter acesso a essas informações eram as expedições pelo continente, como fizeram vários
europeus. Porém, essas expedições eram perigosas e custosas. Além disso, entrevistar os
africanos tinha uma vantagem, pois, no Brasil, encontravam-se ―[...] indivíduos oriundos de
regiões do interior do continente [africano], até onde nenhum viajante conseguiu ainda ir, e
que não se acham em nenhuma relação publicada.‖159 Segundo Ramos,
Muita coisa mesmo que tinha passado despercebida ao próprio Nina Rodrigues não
escapou ao olhar investigador do modesto professor negro, que nos desvãos
ignorados do candomblé do Gantois ou diretamente em sua residência no Matatu
Grande, se rodeava de velhos africanos, pais e mães de santo que o fizeram senhor
dos mistérios das suas práticas religiosas e mágicas, das tradições do Continente
Negro aqui diluídas, ou dos segredos dessa culinária esquisita que impressionou,
160
desde a infância, o paladar do brasileiro.
Ramos acrescentou ainda que ―Manuel Querino ouvia-os com imensa simpatia
humana.‖161 Analisando a fundo esses comentários de Arthur Ramos, compreende-se que esse
recurso utilizado por Querino tinha eficácia e teve resultados inéditos. Ramos diz que através
desse processo de escuta atenta de Querino, dos ―velhos africanos, pais e mães de santo‖
fizeram dele ―senhor dos mistérios das suas práticas religiosas e mágicas, das tradições do
continente‖. Com isso, Ramos reconhecia o valor dos estudos de Querino. Assim, um dos
suportes que dava base à escrita de Querino era a memória das experiências africanas
coletadas em entrevistas e conversas com os próprios africanos, além da observação das
práticas religiosas, e isso rendeu a ele o título de etnógrafo prático. Essa atribuição foi dada a
Querino por Raul Lody, no prefácio da segunda edição de Costumes africanos no Brasil, de
1988, traduzindo a ―postura do investigador.‖162 Vagner Gonçalves da Silva163 apresentou
geografia nacionais. Pretendia-se criar no Brasil um corpo documental equivalente àqueles organizados na
Europa, inspirados no movimento de procura de fontes que marcou o século XIX, assim como a percepção da
história como caminho para a construção de laços de identidades‖. RODRIGUES, Neuma Brilhante. Os
trabalhos do IHGB: a busca por um discurso com efeito de verdade no Brasil Império. In. Anais do XXII
Simpósio Nacional de História da ANPUH, História Acontecimento e narrativa, João Pessoa. Disponível
em: http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/ANPUH.S22.pdf. Acesso dia 10 out. 2015.
159
QUERINO, Manuel Raymundo. A raça africana na Bahia. In: Costumes africanos no Brasil. Brasil.
Salvador: Eduneb, 2010. p. 125.
160
RAMOS, In QUERINO, 2010, s/n.
161
Ibid., s/n.
162
LEAL, 2009, p. 33.
56
Querino como ―o primeiro etnógrafo negro que escreveu sobre os costumes africanos na
Bahia‖164, reconhecendo a obra de Querino como tão importante quanto a de outros
intelectuais da época.
Além da memória de africanos, Querino utilizou-se do depoimento do Dr. Cliffe,
apresentando-o como ―testemunha ocular dos horrores do tráfico.‖165 Reproduziu as
descrições de Dr. Cliffe, detalhando o transporte do continente negro para o Brasil:
A citação é longa e toma quase duas páginas. Querino teve acesso a esse depoimento
numa citação feita por Aureliano Cândido Tavares Bastos em seu livro Cartas do solitário:
estudos sobre reforma administrativa, ensino, africanos livres, tráfico de escravos, liberdade
de cabotagem, abertura do Amazonas, comunicações com os Estados Unidos, etc. publicado
em 1861.167 Segundo Bastos, esse depoimento de Dr. Cliffe havia sido publicado pela revista
da Anti-Slavery-Society de Londres e tem uma riqueza de detalhes, de informações
minuciosas de como era a travessia dos africanos e dos sofrimentos pelos quais passavam.
Querino também se utilizou de alguns jornais. Na segunda parte de A raça africana,
ao tratar da continuação do comércio escravo após a lei de 1831, citou os jornais: Argos
Pernambucano, de 3 de janeiro de 1850; o Argos Sant’Amarense, de 21 de janeiro de 1849;
e o Argos Baiano. O primeiro denunciava à nação, o que era ―notório‖ ―[...] o escândalo com
que se tem introduzido, na Bahia, reduzidos à escravidão, africanos livres, com a mais
evidente conivência do governo.‖168 Querino continua:
163
SILVA, Vagner Gonçalves da. O Antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e Texto Etnográfico nas
Pesquisas Antropológicas sobre Religiões afro-brasileiras. 1. ed. reimp. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2006.
164
Ibid. p. 74.
165
QUERINO, Op. cit., 2010, p. 39.
166
BASTOS apud QUERINO, 2010, p. 39.
167
A primeira é de 1861, a segunda foi publicada em 1863, a terceira em 1938 e a quarta em 1975 de acordo com
o Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro. Disponível em:
<http://www.cdpb.org.br/dic_bio_bibliografico_bastosaureliano.html> Acesso em: 20 jan. 2015. A terceira
edição de Cartas do solitário está disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/obras/cartas-do-solitario>
Acesso em: 10 jan. 2015. Cf. BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do solitário : estudos sobre a
reforma administrativa, ensino religioso, africanos livres, tráfico dos escravos, liberdade de cabotagem,
abertura do Amazonas, communicações com os Estados-Unidos, etc. Rio de Janeiro: Typ. do Correio
Mercantil, 1861.
168
QUERINO, Op. cit.. 2010, p. 43.
57
Fragmentos dos jornais citados foram incorporados ao texto por Querino, registrando
que houve a prática ilegal de comércio de escravos na Bahia, depois da lei de proibição e que
o governo era conivente com isso.
Reportando-se ainda ao tráfico de escravos, Querino fez uso de uma missiva que o
arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide escreveu a D. João V. A citação ilustrava a ideia de
que depois da proibição ―o tráfico negreiro avultava assombroso‖. Outra correspondência
usada por Querino foi a do ―[...] padre Vieira de Melo, referindo-se aos naturais da ilha de
Cabo verde em carta dirigida ao confessor de S. S. Altezas, em 25 de dezembro de 1652‖ 172,
na qual o padre fazia referência à existência de clérigos e cônegos negros que o próprio
definiu como compostos, grandes músicos, entre outras coisas. Querino ligou essa informação
à fala de Rocha Pombo sobre a fundação da república de Palmares. Com isso, Querino queria
mostrar o valor do africano e desconstruir a imagem de barbárie ligada a este.
Ao tratar da Revolta dos Malês173 de 1835, na Bahia, Querino valeu-se do relatório do
chefe de polícia, Dr. Francisco Gonçalves Martins, dos processos dos revoltosos e de um
boletim. Querino estava defendendo a ideia de que não havia ―[...] razão ou fundamento de
verdade no fato de atribuir aos africanos malês‖174 o referido levante. Querino afirmou que
durante o ―[...] domínio colonial, vinham os escravizados reagindo, por meio de insurreições,
169
ARGOS SANT‘AMARENSE apud QUERINO, p.43. Aspas do autor.
170
Idem.
171
Idem. Aspas do autor.
172
VIEIRA apud QUERINO, 2010,p.34.
173
Cf. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. MELLO, Priscila
Leal. O Islã Negro no Brasil, século XIX. 2009. 298f. Tese (Doutoramento em História) – Universidade
Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.
174
QUERINO, 2010, p. 101.
58
Em seguida, Querino argumenta que o fato de a proclamação dos insurretos ter sido
escrita em grafia arábica não significava que somente os malês poderiam redigir. Mais à
frente, Querino relacionou a fala do chefe de polícia aos processos, reclamando que ―[...] no
arquivo público existem 234 processos de revoltosos africanos, sendo: 165 nagôs, 21 hauçás,
6 tapas, 5 bornos, 4 congos, 3 cambidas, 3 minas, 2 calabares, 1 ige-bu e 1 mendobi, não se
encontrando, porém, um só de malê.‖177 Depois, buscou a confirmação disso no boletim dos
revoltosos, traduzido pelo Padre Etienne.178 Com respaldo nesse boletim, verificou que ―[...]
caíram em combate mil e quinhentos africanos (1500); pois bem: não se apurou nesse um só
representante da seita maometana.‖179 Com isso, Querino concluía sua ideia de que o levante
não poderia ser atribuído aos malês. Nesse caso, além das citações feitas por Querino, outro
dado importante foi o cruzamento de informações de suportes diferentes, mas que tratavam do
mesmo assunto, para desenvolver suas ideias.
Querino também fez uso da poesia de Castro Alves, citando um fragmento de Navio
Negreiro, após reproduzir o depoimento do Dr. Cliffe sobre o tráfico de escravo. Querino
afirmou que, durante a travessia, ―[...] a vigilância era rigorosa a fim de evitar que eles se
175
MARTINS apud QUERINO, 2010. p. 101.
176
Idem.
177
QUERINO, Op. cit.,. 2010, p. 102.
178
Esse texto em questão trata-se de uma monografia do Padre Etienne Ignace Brazil, intitulada OS Malês
(1907) sobre a Revolta dos Malês. Foi professor do Seminário Arquiepiscopal da Bahia. Além desse texto,
escreveu O fetichismo nos negros do Brasil (1911).
179
QUERINO, 2010, p. 102.
59
atirassem ao mar, como, por vezes, acontecera, sendo que os mais perigosos eram presos a
fortes argolas, cravadas no madeiramento do navio.‖180 Querino citou dois fragmentos:
Por fim, Querino usou ainda o romance de José de Alencar, O tronco do Ipê (1871), e
algumas fotografias. A referência a José de Alencar foi feita após Querino ter comentado
sobre o geógrafo Theophilo Lavallé182, que teria escrito que ―[...] o Brasil é um país sem
riquezas reais, sem indústria. A população se compõe de pobres orgulhosos e semibárbaros,
de comerciantes ávidos, de nômades selvagens e de negros que sofrem o peso rigoroso da
escravidão.‖183 Querino afirmou que, de fato, era assim mesmo e que
[...] vinte e três fotografias, sendo quinze retratos de homens e mulheres negras,
cinco fotografias de objetos votivos, três fotografias de esculturas e duas gravuras.
Destaca-se o valor documental da coleção, pois alguns retratos somente são
conhecidos por intermédio da publicação do ensaio. Em particular, as fotografias da
escultura dos orixás, a cascata da sereia – Pegi do Candomblé do Gantois, o altar
mor do Pegi, o santuário de Humoulu e os instrumentos musicais de origem africana
constituem um registro inédito da cultura material do candomblé. São reproduzidas
180
Ibid, p. 40.
181
ALVES, apud QUERINO, 2010, p. 40-41.
182
QUERINO, 2010, p. 44.
183
Idem.
184
Idem. Aspas do autor.
60
abaixo as imagens do ensaio na mesma ordem que aparecem no texto. Todas elas
receberam o termo ―estampa‖, foram numeradas com algarismos romanos e
185
identificadas seguindo a terminologia etnográfica da época.
185
VASCONCELLOS, Christianne Silva. O uso de fotografias de africanos no estudo etnográfico de Manuel
Querino. Sankofa – Revista de História da África e de Estados da Diáspora Africana, n. 4, p. 88-111,
dezembro 2009. p. 87.
186
SILVA, Aldo José Morais. Instituto Geográfico e Histórico da Bahia: origem e estratégias de consolidação
institucional 1894-1930. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal da Bahia, 2006. p. 82.
187
LEAL, 2009, p. 75.
61
Além do novo instituto baiano (IGHB), surgiram vários outros espalhados pelo
território brasileiro, que tinham no IHGB um modelo a seguir e suas formatações locais.
Assim, as produções desses institutos locais buscavam,
Numa avaliação inicial do conjunto dos 134 nomes, já é possível identificar com
precisão o perfil profissional de 53 deles. Nesse grupo, é notável a acentuada
predominância de profissionais liberais de formação acadêmica, entre os quais
profissionais de direito eram os mais comuns. Seguiam-nos em igual número os
médicos e, como segunda categoria mais presente, os clérigos, confirmando a
191
influência da Igreja na instituição.
188
SILVA, Aldo José Morais. Op., cit., 2006, p. 100.
189
SILVA, Aldo José Morais. Op. cit., 2006, p. 79.
190
Ibid, p. 126-127.
191
Ibid, p.108.
192
Ibid, p. 154
62
questão racial e migração europeia. A discussão sobre a questão racial entre os intelectuais do
IGHB era fortemente influenciada pelas ideias de Nina Rodrigues.
Manuel Querino também participou desse debate, mas num caminho contrário às
ideias de Nina Rodrigues. Enquanto este via o negro como um problema para o
desenvolvimento de uma civilização brasileira, Querino, como já tratamos, defendia-os como
agente importante na formação desse processo.
Querino publicou 12 artigos pela revista do IGHB194, entre os quais escolhemos dois:
Candomblé de Caboclo (ligeiras notas a propósito de uma oferta feita ao Instituto pelo
Coronel Arthur Atahyde de objetos pertencentes a um famoso Candomblé de caboclo da
cidade do Salvador) (1919) e Os Homens de Cor preta na História (1923). Os artigos de
Querino, publicados na revista do IGHB, foram, em 2006, organizados em um livro por Jaime
Nascimento e Hugo Gama.195
Um texto de Jeferson Afonso Bacelar196 introduz a parte onde constam os dois artigos
em questão. Nesse texto, Bacelar chama atenção para a possibilidade de encarar Manuel
Querino como um dos fundadores da antropologia brasileira. Comenta que isso não seria um
exagero, pois, ao contrário daquilo que disse Arthur Ramos, de que Querino teria sido um
exemplo de muitos outros negros ilustres do Brasil, que desejou conhecer as raízes de sua
193
SILVA, 2006, p. 166.
194
Listados em ordem cronológica são Os Artistas Baianos – indicações biográficas (1905), Contribuição
para a história das artes na Bahia – José Joaquim da Rocha (1908), Teatros da Bahia (1909),
Contribuição para a História das Artes na Bahia – Notícia biográfica de Manuel Pessoa da Silva
Salvador (1910), Contribuição para a História das Artes na Bahia – os quadros da Catedral (1910),
Episódio da Independência (1913), A Litografia e a Gravura (1914) Primórdios da Independência
(1916), Candomblé de Caboclo (ligeiras notas a propósito de uma oferta feita ao Instituto pelo Coronel
Arthur Atahyde de objetos pertencentes a um famoso Candomblé de caboclo da cidade do Salvador
(1919), Notícia Histórica sobre o 2 de Julho de 1823 e sua comemoração na Bahia (1923), Um bahiano
ilustre – Veiga Murici (1923) e Os Homens de Cor preta na História (1923). Cf. LEAL, 2009, p. 476.
195
NASCIMENTO, Jaime; GAMA, Hugo (Orgs.). Manuel R. Querino: seus artigos na Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, 2009.
196
BACELAR, Jeferson Afonso. De candomblés e negros ilustres. In.: NASCIMENTO, Jaime; GAMA, Hugo
(Orgs.). Manuel R. Querino: seus artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador:
IGHB, 2009. p. 177-183.
63
própria filiação étnica197, na verdade, ―[...] não existiu nenhum negro a construir uma obra do
porte e forma desenvolvida [...]‖198, tal como o fez Querino.
O artigo Candomblé de caboclo foi publicado em 1919, no 45º número da revista do
IGHB. Como subtítulo, trazia a informação de que se tratava de: ―[...] ligeiras notas a
propósito de uma oferta ao instituto pelo Coronel Arthur Atahyde de objetos pertencentes a
um famoso candomblé de caboclo da cidade do Salvador.‖199 O artigo é curto e, nos dois
primeiros parágrafos, Querino reportou-se aos indígenas, afirmando que estes admitiam
grande número de superstições e que, por isso, tinham sido catequisados com facilidade. Em
seguida, comentou que
197
RAMOS, In QUERINO, 2010, s/n.
198
BACELAR, Jeferson Afonso. Op., cit,. 2009, p. 177.
199
NASCIMENTO, Jaime; GAMA, Hugo (Orgs.). Manuel R. Querino: seus artigos na Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, 2009. p.185
200
QUERINO, Manuel Raymundo. Candomblé de Caboclo. In: NASCIMENTO, Jaime; GAMA, Hugo (Orgs.).
Manuel R. Querino: seus artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB,
2009. p. 185. Grifos do autor.
201
Idem.
202
Idem.
203
QUERINO, Op. cit.,2009, p. 186.
64
204
Ibid, p. 186.
205
BACELAR, Jeferson Afonso. De candomblés e negros ilustres. In.: NASCIMENTO, Jaime; GAMA, Hugo
(Orgs.). Manuel R. Querino: seus artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador:
IGHB, 2009. p. 181.
206
QUERINO, Manuel Raymundo. In.: NASCIMENTO, Jaime; GAMA, Hugo (Orgs.). Manuel R. Querino:
seus artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Salvador: IGHB, 2009Op. cit., 2009, p. 187
207
Idem.
65
208
BACELAR, Jeferson Afonso. Op. cit., 2009, p. 186.
209
Idem.
66
210
Nesse estudo tomamos como referência os textos: América Latina: males de origem (1905), de Manoel
Bomfim e A raça africana e seus costumes na Bahia e O colono preto como fator de civilização
brasileira (1918) de Manuel Querino.
67
Bomfim esteve em Salvador, onde iniciou seu curso de medicina em 1885, o qual foi
concluído no Rio de Janeiro.
As teorias raciais estavam em desuso na Europa, mas influenciavam o debate travado
pela maioria dos intelectuais sobre a identidade nacional, no final do século XIX e primeiras
décadas do século XX. Esses intelectuais, como Nina Rodrigues, Sílvio Romero, Euclides da
Cunha e outros, apropriaram-se das ideias de teóricos como Galton, Agassiz, Gobineau,
Buffon, Le Bom e outros.211 Cada um, a seu modo, elaborou interpretações diversas sobre a
realidade brasileira daquele período. Mas, na contramão dos discursos racialistas presentes
nessas interpretações,
Bomfim situou-se em outra vertente, que pensou a partir dos diferentes estágios de
cultura e a tentativa de estabelecer outro olhar, que não apenas o da depreciação do
sujeito negro. Por isso se configura como um contradiscurso. Como já dito, Bomfim
não era voz única, havia a de outros escritores como Lima Barreto e João Querino
212
(sic).
Querino se posicionou demonstrando, através dos seus escritos, indignação para com
o desprezo com que eram tratados os africanos e seus descendentes e o povo
trabalhador. Através do seu depoimento, foi possível mostrar o discurso de quem
211
Francis Galton (1822-1911) era primo de Charles Darwin e é considerado o criador do termo ―eugenia‖, com
o propósito de os pressupostos da teoria da seleção natural ao ser humano. Esse termo passou a indicar as
pretensões galtonianas de desenvolver uma ciência genuína sobre a hereditariedade humana que pudesse,
através de instrumentação matemática e biológica, identificar os melhores membros - como se fazia com
cavalos, porcos, cães ou qualquer animal -, portadores das melhores características, e estimular sua
reprodução, bem como encontrar os que representavam características degenerativas e, da mesma forma,
evitar que se reproduzissem. Seus principais estudos forma: Talento e caráter hereditários (1865), O gênio
hereditário (1865) e A variação de animais e plantas domésticos (1868). Cf. DEL CONT, Valdeir. Francis
Galton: eugenia e hereditariedade. Scientiæ zudia, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 201-18, 2008. Para Agassiz, a
humanidade, fruto da criação divina e formada por diferentes espécies, independentes e jamais mescláveis
entre si. Como para ele a cadeia dos seres vivos estava organizada segundo uma linha hierárquica de ordem
complexa crescente, os seres supostamente menos evoluídos estariam condenados à inferioridade eterna. O
naturalista tinha o propósito de comprovar, observando escravos e seus descendentes, que negros e brancos,
pertencentes a raças diferentes, não podiam habitar o mesmo espaço. Incapazes de se civilizar, os negros
deveriam se manter apartados da civilização. Os principais estudos de Agassiz foram: Viagem ao Brasil:
1865 –1866 (1867); Peixes do Brasil (1829). Cf. GRINBERG, Keila. O racismo de Louis Agassiz. Brasil
Escola. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/em-tempo/o-racismo-de-louis-agassiz,
acesso em: 7 nov. 2014. Para Gobineau, a mistura de raças era inevitável e levaria a raça humana a graus de
degenerescência física e intelectual. A obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855) é
considerada um dos estudos pioneiros sobre temas como racismo e eugenia. Cf. SOUSA, Ricardo A. S. de.
Agassiz e Gobineau – as Ciências contra o Brasil Mestiço. Dissertação (mestrado) História das Ciências da
Saúde. FIOCRUZ. 2008.
212
A autora escreveu ―João Querino‖, mas trata-se Manuel Querino conforme a nota de rodapé de número 94.
SILVEIRA, Cristiane da. (Re)leituras de Manoel Bomfim: a escrita da história do Brasil e o ser negro na
passagem do século XIX para o XX. 2011. 296f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 58-59.
68
213
LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas – Bahia: 1851-1923. São Paulo:
Annablume, 2009. p. 29-30.
214
QUERINO, 2010, p. 33.
215
BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. 4. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. p. 264.
216
Idem.
217
LEAL, 2009, p. 264.
69
Querino afirmou que ―[...] somente a falta de instrução destruiu o valor do africano‖. E
que, apesar disso, se observava na sociedade brasileira que ―os descendentes da raça negra
têm ocupado posições de alto relevo, em todos os ramos do saber humano.‖218 Ou seja, se o
africano não ocupou posições de alto relevo, foi pela falta de instrução, não tendo o mesmo
ocorrido com seus descendentes que tiveram acesso a ela. Assim, o valor atribuído por
Querino à educação pode ter uma de suas explicações em sua própria experiência de vida,
como afrodescendente que teve acesso à instrução, diplomando-se desenhista e, depois,
durante um tempo, cursando arquitetura. Sem falar que Querino foi professor e funcionário
público, ocupações que foram possíveis em função da sua formação escolar. Portanto, pode
ter visto a si mesmo como um exemplo vivo de que a educação poderia instrumentalizar os
negros e seus descendentes para ocupar diversos espaços sociais.
Outro ponto em comum entre Bomfim e Querino foi com relação ao uso da ideia de
―parasitismo social‖ ao interpretarem a colonização portuguesa. Em Querino, encontramos
apenas menções.
Querino usou o termo parasitismo por duas vezes no texto O colono preto. A
primeira, ao se referir à colonização portuguesa iniciada com a tentativa de escravização dos
―pobres íncolas americanos‖ que, em resposta, refugiaram-se ―entre os animais bravios‖, e
como resultado disso, Querino afirmou:
O parasitismo alçou o colo, deu combate em campo raso com o apoio do governo,
que participava dos lucros auferidos. Por isso, o colono branco vinha com o espírito
atormentado pela ganância, repetindo o estribilho da mãe-pátria:
―Toda a prata que fascina
Todo o marfim africano
Todas as sedas da China‖ (...).219
218
QUERINO, Manuel Raymundo. A raça africana e seus costumes na Bahia. In: Costumes africanos no
Brasil. Salvador: Eduneb, 2010. p. 34.
219
QUERINO, Manuel Raymundo. O colono preto como fator de civilização brasileira. Costumes africanos
no Brasil. Salvador: Eduneb, 2010, p. 136. Grifos do autor.
220
Idem. Grifos do autor.
70
[...] a analogia entre o parasita e o colono português, visto por ele como um
―aventureiro‖, seduzido pela ―ideia de riqueza fácil‖, mas sem ―amor ao trabalho‖,
pois o considerava ―uma função degradante‖, e que, por isso se apoiou sobre o negro
―para arrotear os vastos territórios conquistados no Continente sul-americano‖,
enquanto fartava-se ―em banquetes de extraordinárias iguarias‖, por vaidade e
ostentação, ―pois o reino acostumara-se a gozar o fruto do trabalho sem sentir-lhe o
peso‖, nos parece bem apropriada. Para Querino, somente o trabalho do negro
―parasitado‖ possibilitou o gozo do branco português. 221
Na primeira vez em que Querino usou o termo parasitismo, citou três versos o poema
Sagres, escrito por Olavo Bilac em 1898222, fazendo referência ao fascínio português por três
tipos de mercadorias valiosas: a prata, o marfim africano e a seda da China.
Coincidentemente, esse trecho aparece como epígrafe do capítulo Parasitismo heroico: o
―pensamento ibérico‖, do livro América Latina, de Bomfim. Este chegou a escrever com
Bilac, e Querino demonstrou conhecer a obra do poeta, evidenciando que tinham leituras em
comum, uma vez que ambos leram a obra de Oliveira Martins (1845-1895)223, que também foi
lida por Olavo Bilac, Sílvio Romero e Nina Rodrigues. O referido poema foi inspiração
presente no livro O Brasil e as Colónias Portuguesas, escrito por Martins em 1880.
Bomfim, por sua vez, sistematizou essa ideia em América Latina Males de origem.
Nesse livro,
[...] a tese acerca do ―parasitismo social‖ como ―origem dos males‖ latino-
americanos foi, em linhas gerais, edificada por Manuel Bomfim a partir de quatro
pressupostos principais: a analogia entre ―parasitismo biológico‖ e ―parasitismo
social‖; a afirmação do ―parasitismo‖ como característica do povo ibérico; a noção
da existência de um ―parasitismo ibérico‖ como característica do povo ibérico; a
noção da existência de um ―parasitismo ibérico‖ sobre as colônias americanas; e por
fim, a tese de que esse ―parasitismo‖ afetou o desenvolvimento das nacionalidades
221
REIS, Carlos Antônio dos. Do convívio a colaboração das raças: elogio da mestiçagem e reabilitação do
negro em Manuel Querino. 2009.179f. Dissertação (Mestrado em História) – UNESP, Franca, 2009. p.
119-120.
222
Bilac escreveu o poema em homenagem aos portugueses na ocasião das comemorações do quarto centenário
do descobrimento das índias. BILAC, Olavo. Sagres. Rio de Janeiro: 1898. p. 13. Disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00292500>. Acesso em: 10 ago. 2014.
223
Joaquim Pedro de Oliveira Martins era português, dedicou sua vida à política e à ciência. É autor das obras:
Biblioteca das Ciências Sociais – Elementos de Antropologia (1880); As Raças Humanas e a Civilização
Primitiva (1881); Sistema dos Mitos Religiosos (1882); Quadros das Instituições Primitivas (1883);
Regime das Riquezas (1883); Tábua de Cronologia (1884). Obras históricas – Camões, Os Lusíadas e a
Renascença em Portugal (1872); História da Civilização Ibérica (1879); História de Portugal (1879); O
Brasil e as Colónias Portuguesas (1880); Portugal Contemporâneo (1881); História da República
Romana (1885); Os Filhos de D. João I (1891); A Vida de Nun'Álvares (1893); Perfis (obra póstuma,
1930)
71
Para Bomfim, o parasitismo poderia ser observado em toda América Latina. Essa ideia
tinha por base a medicina, a biologia e o positivismo de Comte. Do ponto de vista biológico,
tratava-se de uma relação entre organismos diferentes, um organismo simples e outro
complexo, em que um utiliza o outro para sobreviver, e, consequentemente, isso representava
uma doença a ser medicada. Assim, sob a influência do positivismo, Bomfim via a sociedade
como organismo vivo. Respaldado nessa ideia, acreditava que os processos que se davam
entre organismos observados pela biologia poderiam ter equivalência na sociedade. Nessa
lógica, os portugueses e espanhóis eram parasitas, do mesmo modo que também eram as elites
locais das antigas colônias depois dos processos de emancipação, que viviam à custa do
trabalho do africano e do indígena.
Nina Rodrigues é o nome que mais aparece em estudos sobre temas aos quais Querino
se dedicou. Por vezes, o nome de Querino também é citado, destacando o pioneirismo dos
dois nos estudos sobre o negro no Brasil. Embora não haja comprovação de que ambos
tenham mantido algum tipo de contado mais direto, de uma aproximação efetiva em que
pudessem debater sobre os temas pesquisados, Nina Rodrigues e Querino realizaram
pesquisas nos mesmos espaços e fizeram parte do IGHB. Ambos pesquisaram sobre costumes
africanos, práticas religiosas, entendidas como fetichismo, a participação do africano na
composição social brasileira. Contudo, sob perspectivas diferentes. No IGHB, Querino foi um
dos sócios fundadores em 1894, e Nina Rodrigues passou a fazer parte do grupo de
intelectuais desse Instituto em 1896. Supõe-se, portanto, que tenham participado de reuniões e
atividades da instituição.
Jorge Amado traçou uma relação entre Querino e Nina Rodrigues, de forma indireta,
no romance Tenda dos milagres, publicado em 1969, com base nos personagens Nilo Argolo
e Pedro Arcanjo. Amado baseou-se em algumas personalidades baianas, especialmente
Manuel Querino, para compor o Pedro Arcanjo, e Nina Rodrigues, para compor o Nilo
224
SANTOS-JÚNIOR, Valdir Donizete dos. A trama das ideias: intelectuais, ensaios e construção de
identidades na América Latina (1898 - 1914). 2013. 295f. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 124.
72
225
Alguns autores que escreveram sobre a vida e obra de Querino trataram dessa presença de traços da figura de
Querino no referido personagem e do romance amadinho. Cf. LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel
Querino entre letras e lutas – Bahia: 1851-1923. São Paulo: Annablume, 2009. SANTOS, Flávio
Gonçalves dos. Os discursos dos afro-brasileiros face às ideologias raciais na Bahia 1889-1937.
Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal da Bahia. 2001.
226
BECHELLI, Op. cit., 2009, p. 147.
227
Ibid., p. 148.
73
segundo Rodrigues, poderia desenvolver uma psicose ou loucura coletiva. ―A ideia geral de
Rodrigues é que os negros e os mestiços, compondo um grupo ou multidão inferior, seriam
facilmente conduzidos, através da sugestão, a um grau de histeria coletiva.‖228 Estudou
também o caso de Lucas de Feira,
Na análise que fez de seu crânio, com o objetivo de encontrar os caracteres que
buscassem justificar-lhe o comportamento, Rodrigues nada achou de anormal,
evidenciando que ele possuía um crânio superior, o que levou o autor a um
paradoxo: como justificar a inferioridade de Lucas se ele apresentava caracteres
superiores e era mestiço?229
A resposta formulada por Nina Rodrigues a essa questão foram suposições de que
―[...] só poderia ser, nesse caso, negro crioulo, ou pelo menos mulato, carregado com uma
dose mínima de sangue branco.‖230
Bechelli231 identificou uma mudança de comportamento de Nina Rodrigues no último
de seus livros, Os africanos no Brasil, publicado quase trinta anos após a morte do autor.
O racismo científico continuava por toda a obra, mas aqui ele é contrabalanceado
pelo estudo da vida do negro, do seu comportamento, suas línguas, seus costumes e
sua história. Aqui, as tensões que incomodavam e ficavam mais evidentes que na
obra de Sílvio Romero vêm à tona com toda a intensidade, mostrando a preocupação
232
do autor em adequar a teorias raciais ao estudo empírico do negro .
228
BECHELLI, Op. cit, 2009, p. 148.
229
Ibid, p.162.
230
Idem.
231
BECHELLI, 2009, p. 215.
232
Ibid, p. 189.
74
Bem arredio do meu espírito andava, por certo, o pensamento de que os modestos
ensaios, tentados em 1890 a benefício da clínica sobre imunidades mórbidas das
raças brasileiras e, mais tarde, prosseguidos nas suas aplicações médico-legais às
variações étnicas da imputabilidade e da responsabilidade penal, viessem colocar-me
um dia face a face com essa esfinge do nosso futuro — o problema ―o Negro‖ no
Brasil. Mas a ampliação do quadro não fez ao médico perder de vista o seu objetivo.
Ao contrário foi este que, como fio condutor, o levou a sentir e a tocar, no âmago de
uma população de aparências juvenis e vigorosas, possíveis germes de precoce
decadência que mereciam sabidos e estudados, em busca de reparação e profilaxia.
Ao restrito e primitivo intuito do perito, forrava agora uma transcendente questão de
higiene social. E numa e noutra face o problema deixava ao médico a sua inteira
liberdade de ação.234
Desse modo, Rodrigues sugeriu que o problema ―o negro‖ no Brasil, naquela altura
dos estudos realizados, se trava de um caso de higiene social. Essa ideia estava relacionada à
crença do médico legista na associação entre biologia e análise social. Nina Rodrigues tocou
num assunto que foi a primeira questão abordada por Querino em O Colono preto como
fator de civilização, quando o médico legista afirmou que
233
PIRES, Homero. Prefácio. In: RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 5. ed. São Paulo, Ed.
Nacional. 1977. p. XII.
234
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 5. ed. São Paulo, Ed Nacional. 1977. p. 1.
235
Ibid, p. 2.
75
Nina explicou que essa injustiça era compreensível por se tratar de uma animosidade
contra os portugueses, na condição de ―[...] resquício da estratificação dos sentimentos de
oposição e antagonismo que elaboraram e fizeram a emancipação política da antiga
Colônia.‖236 Nesse caso, a ideia de injustiça defendida por Nina Rodrigues foi justificada
indiretamente na defesa da importância dos portugueses para o Brasil.
Afora a terra e os Indígenas, tudo era português, aqui, civilização como habitantes.
Forçoso volver ao Índio que, para a Metrópole como para a Colônia, tinha sido em
todos os tempos o elemento estranho a combater e a dominar. Então não eram tidos
em conta os Negros, que se consideravam simples máquinas de trabalho. Nem
estava formada a consciência da intervenção e influência futuras do Mestiço, a
quem, aliás, ficava reservado papel tão culminante. Daí a animosidade, a
depreciação do Português; a simpatia e a exaltação do Índio considerado o elemento
nacional por excelência. Para a luta da independência, mestiços e brancos se
mascaravam mesmo de índios, tomando ao tupi-guarani os seus cognomes e
apelidos de família.237
Nessas palavras, fica clara a defesa do autor com relação ao valor do papel exercido
pelos portugueses na colonização e civilização, processos nos quais os índios e africanos
estavam num segundo plano: o índio visto como o elemento estranho a ser combatido, e os
africanos como simples máquinas de trabalho. Quanto aos mestiços, eram alvo das críticas de
Nina Rodrigues, porque não representavam um tipo específico e ela acreditava que a
mestiçagem gerava um tipo de indivíduo que herdava os piores genes de duas raças.
Manuel Querino apresentou um conjunto de argumentos que desconstruiu essas ideias
de Nina Rodrigues. Em O colono preto, logo no início, Querino reportou-se aos portugueses
como os piores elementos da metrópole, gananciosos, que buscavam enriquecer às expensas
do trabalho escravo do africano. Com isso, Querino desqualificou a colonização portuguesa e
mostrou que os africanos foram mais que ―simples máquinas de trabalho‖, defendendo que
eles também civilizaram o Brasil. A leitura que Nina Rodrigues fazia do passado colonial
reproduzia a perspectiva dos senhores de escravo, no que tange à função dos africanos.
Quanto a Querino, observa-se uma visão crítica da história. Nina Rodrigues, ao estudar os
africanos, partia de pressupostos de teorias raciais que o influenciavam nas conclusões a
respeito da inferioridade desse grupo. Em contraposição a esse paradigma, Querino tinha por
base a experiência dos africanos, seus costumes, seus saberes, sua força econômica, cultural e
social na formação cultural brasileira, possibilitando criar argumentos contra a inferioridade
do negro africano. Assim, ao elegê-los como principais fatores da civilização brasileira,
reconhecia o valor do trabalho africano, a influência que os negros exerceram nos costumes
236
RODRIGUES, Raymundo Nina, Op. cit. p. 2.
237
Ibid, p. 2-3.
76
brasileiros, com base nas práticas religiosas (fetichismo), na culinária, dança, música, arte, na
língua e em outros elementos.
Nina Rodrigues, por sua vez, era incisivo:
A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis
serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a
cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos
exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa
inferioridade como povo.238
Rodrigues reconhecia que a ―raça negra‖ havia contribuído muito para a civilização
brasileira, embora representasse um fator de inferioridade do povo brasileiro. Apesar disso,
Nina Rodrigues concordava com Sílvio Romero ao reconhecer os africanos como objeto de
estudo da ciência, referindo-se a um texto específico que o médico legista compilou e trouxe
antes da introdução de Africanos no Brasil.239 Havia passado mais de vinte anos daqueles
comentários de Romero, e Nina Rodrigues constatava que não havia surgido, até aquele
momento, ―o especialista que devia satisfazer o apelo, justo e patriótico‖ de Romero.240
Rodrigues apresentou pretensões de satisfazer a esse apelo, justificando o estudo pelas
E continua:
Hoje é a Bahia talvez a única província ou estado brasileiro em que o estudo dos
Negros africanos ainda se pode fazer com algum fruto. Mas, ou esse estudo se faz de
pronto, ou a sua possibilidade em breve cessará de todo. São todos os africanos de
idade muito avançada e tal a mortalidade deles que dentro de poucos anos terão
desaparecido os últimos.
Assim me pareceu esforço útil e meritório coligir, para o estudo da Raça Negra no
Brasil, os documentos históricos e científicos referentes às colônias africanas que a
introduziram no país.242
238
RODRIGUES, 1977, p. 7.
239
Ibid, p. xv.
240
Ibid, p.17.
241
Idem.
242
Idem.
77
científicos‖.243 Ao informar isso, Nina Rodrigues sugeria serem esses ―documentos históricos
e científicos‖ oriundos dos próprios africanos que estavam em idade avançada e,
consequentemente, estavam morrendo e, por isso, deveria se apressar naqueles estudos.
Querino e Nina Rodrigues estavam inseridos numa mesma sociedade e viam-se
motivados a estudar os africanos, mesmo que em perspectivas diferentes. Além disso,
compartilharam algumas leituras de obras de autores contemporâneos, tais como: João
Ribeiro, Oliveira Martins, Dr. Caldas Brito, Alexandre de Melo Morais Filho.244 Isso
dimensiona o quanto Querino estava embrenhado no universo da intelectualidade de seu
tempo ou o quanto se esforçava para tal.
O próprio Homero Pires reconheceria a importância de Querino ao introduzir uma nota
de rodapé no texto de Nina Rodrigues, no sexto capítulo, no qual Nina Rodrigues tratava das
sobrevivências africanas, com o foco no que chamava de festas populares e folclore.
Rodrigues tinha dito que devia confessar terem sido infrutíferos seus esforços para descobrir,
naquela época, na Bahia, a denominação de Cucumbis.‖245 Em nota, Homero Pires informou
que Manuel Querino ―descreve com pormenores a festa do Cucumbis na Bahia‖246,
reconhecendo, dessa forma, o método criativo de Querino de ―coligir‖ informações através da
oralidade, método não reconhecido pela intelectualidade da época como garantidor da
―verdade‖ científica.
O ponto de ligação entre as obras de Querino, Sílvio Romero e Gilberto Freyre pode
ser identificado na ideia do ―africano como civilizador‖. Sílvio Romero influenciou muitos
intelectuais de seu tempo, como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e até Gilberto Freyre.
Querino e Romero nasceram no mesmo ano de 1851, embora em partes diferentes do Brasil:
um na Bahia e outro em Sergipe. De algum modo, puderam experienciar as transformações
daquele período, como a oficialização do fim do sistema escravista e o advento da república,
cada um em sua medida, partindo de trajetórias diferentes, principalmente, se levarmos em
consideração que Querino era negro e buscava conquistar o reconhecimento intelectual. Por
243
RODRIGUES, 1977, p. 17.
244
Leituras em comum de Querino e Rodrigues: História do Brasil, de João Ribeiro (1900); O Brasil e as
Colónias Portuguesas, de Oliveira Martins (1880); Levantes de preto na Bahia, de Dr. Caldas Brito
(1903); Festas e tradições populares do Brasil, de Melo Morais de Melo Filho (1901).
245
RODRIGUES, Op. cit., p. 174.
246
PIRES, Homero. Prefácio. In: RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 5. ed. São Paulo, Ed.
Nacional. 1977. p 174.
78
mais que Querino e Romero transitassem por espaços de prestígios, o lugar que ocupavam
estava influenciado pela origem étnica de cada um.
O principal ponto de aproximação entre Querino e Romero residiu na defesa do valor
do trabalho africano para a constituição da sociedade brasileira, embora seja necessário
ressaltar que divergiam quanto aos argumentos e à própria visão que cada um tinha a respeito
dos africanos. Romero chamava a atenção de seus pares para a necessidade de estudos sobre
os negros africanos no final do século XIX. Nina Rodrigues, posteriormente, em Africanos
no Brasil (1932), em uma página, antes da introdução, reproduziu um trecho do livro de
Romero em que ele fazia um apelo aos intelectuais para que se dedicassem ao estudo do negro
africano no Brasil, pois acreditava que estes se encontravam em vias de desaparecimento.
Romero encarava os africanos como objeto de estudo da ciência e valorizou o seu trabalho
como um fator importante para a construção da civilização brasileira. Mas, por outro lado,
considerava-os raça inferior. É nesse ponto que Querino se distancia de Romero. Como já foi
dito, Querino rejeitava a ideia de inferioridade racial dos africanos. Em seu posicionamento,
existia uma apologia ao ―africano como civilizador‖. E, nessa leitura, o africano havia
exercido o papel de colono mais habilitado à promoção da civilização brasileira do que o
colono branco, o português. Já em Romero, o reconhecimento da importância do trabalho
africano, na condição de escravo, era colocado em um plano secundário em relação ao papel
exercido pelos portugueses, que eram considerados principais agentes da cultura brasileira.
Romero apresentou algumas contradições e ambiguidades no seu pensamento. Por um
lado, valorizou o trabalho do africano; mas, por outro, colocou-o em um patamar inferior ao
português. Reconheceu que ―o papel do escravo teria agido assim como um ‗agente
civilizador‘‖, como sugere Bechelli247 ao interpretar a afirmação de Romero, defendendo que
―[...] o cruzamento modificou as relações do senhor e do escravo, trouxe mais doçura aos
costumes e produziu o mestiço, que constitui a massa de nossa população e, em certo grau, a
beleza de nossa raça.‖248 Dessa forma,
[...] ao enfatizar o papel do negro e do mestiço, Romero faz aqui uma defesa do
modelo da escravidão implantado no Brasil (algo que Gilberto Freyre faria mais
tarde), procurando mostrar que ela foi ―mais‖ leve do em outros locais (...) e que
249
ajudou a formar a população, a cultura e os traços do ―caráter brasileiro.‖
247
BECHELLI, Ricardo Sequeira. Metamorfoses na interpretação do Brasil: tensões no paradigma racial.
(Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna). Tese (Doutorado em História)
Universidade São Paulo. 2009. p. 71.
248
ROMERO apud BECHELLI, Ricardo Sequeira. Op. cit., p. 71.
249
BECHELLI, Ricardo Sequeira . Op. cit., p. 72.
79
Em Romero, observa-se uma apologia ao mestiço, que também foi feita por Querino,
embora o intelectual negro tenha feito numa perspectiva diferente. Querino via os africanos
como agentes civilizadores e como principais elementos que possibilitaram a colonização da
América Portuguesa. Afirmou que sem esses filhos do continente negro, seria difícil ou
impossível, ―[...] pegar no País a colonização com o elemento europeu.‖250 Finalizou sua
defesa do papel civilizatório dos africanos, ressaltando que um dos legados desses povos
foram seus descendentes, afirmando que ―[...] o Brasil tem duas grandezas reais: a uberdade
do solo e o talento do mestiço.‖251 Para Romero, a fusão das raças, a superior branca, o
africano e o índio inferiores, resultava no mestiço. E este era visto como um intermediário
entre o branco e um tipo genuinamente brasileiro, sendo o mestiço ―[...] a condição desta
vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habitá-lo aos rigores do clima. É uma forma
de transição necessária e útil que caminha para aproximar-se do tipo superior.‖252
Desse modo, observamos que Romero e Querino tratavam de questões muito
próximas, sob olhares diferentes. Romero afirmou que ―[...] o negro influenciou toda a nossa
vida íntima e muitos de nossos costumes nos foram por ele transmitidos.‖253 Em Querino,
podemos identificar um posicionamento similar a essa ideia. Para o intelectual negro, uma vez
que o escravo se encontrava no desempenho de serviço doméstico na casa grande, havia a
possibilidade de estar em convívio com seus senhores. Desse contato, ―[...] resultaram as
diversas modalidades do serviço mais íntimo, surgiram então a mucama de confiança, o lacaio
confidente, a ama de leite carinhosa, os pajens, os guarda-costas e criados de estima.‖254 Essas
informações foram usadas por Querino na construção de uma imagem do africano como
agente civilizador, uma das ideias centrais de seu pensamento que possibilitou um caráter de
especificidade de sua leitura a respeito da formação da sociedade brasileira.
Essa ideia do africano como civilizador também aparece em Casa grande e Senzala,
de Gilberto Freyre. Publicada em 1933, essa obra é considerada um marco na historiografia
brasileira e foi alvo de críticas pela abordagem que o autor deu à escravidão, retomando as
discussões de von Martius sobre a mistura das três raças. As ideias de Freyre nessa obra são
associadas à criação do mito da democracia racial por historiadores contemporâneos.
Observa-se uma valorização do papel do africano na formação da sociedade brasileira, apesar
de fazer um elogio à colonização portuguesa.
250
QUERINO, Manuel Raymundo. O colono preto como fator de civilização brasileira. Costumes africanos no
Brasil. Salvador: Eduneb, 2010. p. 139.
251
Idem..
252
ROMERO apud BECHELLI, Ricardo Sequeira. Op. cit., 2009, p. 77.
253
Ibid, p. 72.
254
QUERINO, Op. cit., 2010. p. 151.
80
A relação que pode ser identificada entre Freyre e Querino é diferente daquela que se
observou em relação a Romero, Nina Rodrigues e Manuel Bomfim. Querino e Freyre viveram
em diferentes períodos e contextos. É possível que também não tenham tido contatos. Quando
Freyre lançou Casa-grande e Senzala, havia passado uma década do falecimento do
intelectual baiano. Freyre leu suas obras. Em Casa grande e senzala, citou Querino várias
vezes no corpo do texto e em notas de rodapé.255 No capítulo O escravo negro na vida
sexual e de família do brasileiro (continuação), Freyre, ao falar das contribuições dos
africanos ao regime alimentar brasileiro e da ―[...] extrema especialização de escravos no
serviço doméstico das casas-grandes‖256, reportou-se à obra de Querino.
Se é certo que no Rio de Janeiro fidalgos reinóis mantiveram por muito tempo
cozinheiros vindos de Lisboa, nas cozinhas tipicamente brasileiras - as dos engenhos
e fazendas, as das grandes famílias patriarcais ligadas a terra - quem desde o século
XVI preparou os guisados e os doces foi o escravo ou a escrava africana. "Os
senhores de épocas afastadas" diz-nos Manuel Querino no seu estudo sobre A arte
culinária na Bahia, "muitas vezes, em momentos de regozijo, concediam cartas de
liberdade aos escravizados que lhes saciavam a intemperança da gula com a
diversidade de iguarias, cada qual mais seleta, quando não preferiam contemplá-la
ou dar expansão aos sentimentos de filantropia em algumas das verbas do
testamento... Era vulgar nos jantares da burguesia uma saudação, acompanhada de
cânticos, em honra da cozinheira, que era convidada a comparecer à sala do festim e
assistir à homenagem dos convivas.‖257
Embora não tivesse citado O colono preto como fator de civilização brasileira, texto
no qual Querino desenvolveu a ideia do africano civilizador, leu A Bahia de outrora (1916),
A raça africana e seus costumes na Bahia (1927)258 e A arte culinária na Bahia (1928).
Freyre voltou a reportar-se a Querino no prefácio que escreveu para o livro O negro na Bahia,
de Luiz Viana Filho, publicado em 1946. O prefácio foi escrito em 1944 e nele Freyre incluiu
o nome de Querino entre os nomes de Nina Rodrigues, Sá Oliveira e Braz do Amaral, ao
considerar terem sido os pesquisadores que abriram ―os caminhos para a análise e
interpretação da história mais íntima do negro na Bahia.‖259
Ronaldo Vainfas e Elide Rugai Bastos fizeram referência ao africano civilizador na
obra de Gilberto Freyre. Vainfas afirmou que Gilberto Freyre,
255
Querino foi citado por Freyre nas seguintes páginas: 46, 141, 206, 395, 408, 472, 478,479, 485, 542, 543,
546, 569, 570, 571, 615, 635. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família sob o
regime da economia patriarcal. 48. ed. São Paulo: Global, 2003.
256
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família sob o regime da economia patriarcal. 48.
ed. São Paulo: Global, 2003, p. 542.
257
Idem. Grifos do autor.
258
QUERINO, Manuel Raymundo. A raça africana e seus costumes na Bahia. In: Revista Academia Brasileira
de Letras. Rio de Janeiro, 25(9):126-8, set. 1927; 25(70):131-199, outubro 1927.
259
FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988. p. 9.
81
[...] valorizou a fusão das três raças ou a interpenetração das culturas portuguesa,
indígenas e africanas na formação do Brasil e seu povo. Se é certo que Freyre
atribuiu ao português (ao caráter português e à sua formação histórico-cultural) a
iniciativa pela construção de uma sociedade ―amolengada‖ e cotidianamente frouxa
quanto aos rigores do preconceito racial, ressaltou igualmente a contribuição da
África, chegando mesmo a falar do negro como o ―colonizador africano do
Brasil.‖260
A tese tem importância central na análise freyriana, não só porque diz respeito às
formas de organização da sociedade brasileira, mas também porque lhe permite a
construção da tese do negro como civilizador na sociedade formada pelos
portugueses, indígenas e africanos, afirmação defendida em Casa-grande e
senzala.262
260
VAINFAS, Ronaldo, Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da
historiografia brasileira. Revista Tempo, Niterói, v. 8, p. 7-22, 1999, p. 6.
261
BASTOS, Elide Rugai. O iberismo e a democracia na obra de Gilberto Freyre. Pro-Posições, v. 17, n. 3 (51)
set./dez, p. 37-55. 2006. p. 40. Disponível em: <http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/textos/51_dossie_
bastoser.pdf.> Acesso em: 12 out. 2015.
262
Idem. Grifos do autor.
263
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família sob o regime da economia patriarcal. 48.
ed. São Paulo: Global, 2003. p. 368.
264
Idem.
265
PEIXOTO, Afrânio. Minha terra e minha gente. Rio de Janeiro: Livraria Alves, 1916.
266
FREYRE, Op. cit., 2003, p. 368.
82
considerava um ―[...] absurdo negar-se ao negro sudanês, por exemplo, importado em número
considerável para o Brasil, cultura superior a do indígena mais adiantado.‖ Além disso, disse
que poderia ―[...] juntar, a essa superioridade técnica e de cultura dos negros, sua
predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos.‖267 Isso, segundo
Freyre, deve-se, em parte, ao
Freyre continua:
Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento
ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil;
degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas
animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam
uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os
índios, e sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda. E não só da
formação agrária.269
[...] destaca dois aspectos da colonização africana que deixam entrever superioridade
técnica do negro sobre o indígena e até sobre o branco: o trabalho de metais e a
criação de gado. Poderia acrescentar-se um terceiro: a culinária, que no Brasil
271
enriqueceu-se e refinou-se com a contribuição africana.
Com isso, Freyre indica ter tido acesso a autores que endossam sua ideia sobre o papel
do africano na civilização brasileira. Freyre retomou essa questão da influência africana no
267
FREYRE, 2003, Op. cit., p. 368.
268
Ibid, p. 372.
269
Idem.
270
Etnólogo alemão que viveu entre os anos 1874-1950. Tinha formação em direito e voltou-se para estudos
etnológicos, vinculado ao Museu de Etnologia de Berlim. Realizou estudos na região que hoje são os estados
de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul onde realizou três expedições etnológicas nas primeiras décadas do
século XX, que resultou no livro Estudos de Etnologia Brasileira: peripécias de uma viagem entre 1900 e
1901. Ver OLIVEIRA, Jorge Eremites de. Os primeiros passos em direção a uma arqueologia pantaneira: de
Max Schmidt e Branka Susnik a outras interpretações sobre os povos indígenas mas terras baixas do
Pantanal. Revista de Arqueologia, 20: p 83 -115, 2007. BALDUS, Herbert. 1951. Max Schmidt: 1874-1950.
Revista do Museu Paulista (Nova Série), São Paulo, 5:253-260.
271
SCHMIDT apud FREYRE, Op. cit., 2003, p. 391.
83
prefácio de O negro na Bahia. Nesse texto, elogia o estudo feito por Luís Viana Filho272,
ressaltando que se tratava de um trabalho baseado em um conjunto de documentos que
fundamentaram o autor a ―retificar em mais de um ponto afirmativas de mestres
respeitáveis.‖273 Segundo Freyre, Viana Filho, em seu estudo sobre o negro na Bahia, havia
apresentado algumas evidências a respeito da ―importância numérica e mesmo cultural do
contingente banto na população negra da Bahia‖. E mesmo com essas evidências, Freyre
defendeu que houve uma predominância sudanesa no passado afro-baiano, pelo menos,
presente naquilo chamou de setor revolucionário. Para Freyre, a predominância dos africanos
sudaneses era superior aos bantos porque,
Freyre estabeleceu comparações entre o sudanês e o banto na Bahia. O banto teria sido
um elemento passivamente rústico, enquanto o sudanês, dinamicamente urbano, que se
impunha ao respeito dos brancos. As mulheres, por sua vez, eram mais belas do ponto de vista
europeu. O sudanês, para Freyre, era considerado elemento aristocrático da população escrava
na Bahia e em outras partes do Brasil, sendo o mais capaz de ascender socialmente numa
―sociedade estruturalmente europeia que era a América Portuguesa.‖275 Com isso, observa-se
em Freyre a defesa de que os sudaneses foram o grupo africano que mais contribuiu no
processo de formação da sociedade brasileira. Nesse sentido, os africanos de um modo geral
não teriam também colonizado o Brasil, e sim aqueles de cultura adiantada, como havia
afirmado em Casa grande e senzala que ―os escravos vindos das áreas de cultura negra mais
adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na
colonização do Brasil.‖276 Além disso, os critérios que usou na comparação dos sudaneses e
bantos foram referências e padrões estéticos e culturais dos europeus, ou seja, o grupo que
mais se aproximava desses padrões seria superior aos que deles se distanciavam. Freyre
272
VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
273
FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988. p. 7.
274
Ibid, p. 8.
275
Ibid, p. 9.
276
FREYRE, Gilberto. Op. cit., 1977, p. 390
84
Contudo, essas ideias também podem ser identificadas na obra de Querino cunhadas
em outros termos e antes de Freyre. O que nos faz perguntar se o intelectual laureado não teria
sofrido algum tipo de influência de Querino. Querino acreditava na superioridade do negro
africano em relação ao indígena na constituição de uma civilização. O envolvimento dos
indígenas numa primeira tentativa de colonização não teve êxito, segundo Querino. A
civilização só foi possível com o trabalho do africano, ou seja, este foi o principal fator desse
processo. Essa ideia de superioridade técnica pode ser comparada à defesa que Querino fez
dos africanos, pois, ao serem trazidos para a América Portuguesa, já estavam aparelhados com
os saberes necessários para as atividades a serem desenvolvidas. Embora sejam indícios de
proximidade entre esses autores, eram ideias que resultavam de processos de pesquisa e
investigações de contextos históricos diferentes, do mesmo modo que eram distantes os
instrumentos teóricos e metodológicos usados.
Antes de Freyre, Manuel Querino havia apresentado uma leitura do ―africano
civilizador‖ em dois de seus livros: A raça africana e seus costumes na Bahia e O colono
preto como fator de civilização brasileira. No primeiro, afirmou categoricamente que
277
Em relação a esses métodos, Freyre explica: ―Se insisto em sugerir para o estudo da história do negro na área
urbana de Salvador e nos seus arredores um critério ecológico – no sentido lato de ecologia – e ao mesmo
tempo psicológico, que tome em justa consideração, além dos prováveis motivos predominantes na seleção
de negros para essa área, as condições que não só favoreceram o desenvolvimento, o prestigio e a influencia
extraordinária dos africanos nesse trecho do Brasil como orientaram a invasão da mesma área e de suas
margens por negros aparentemente ‗caucásicos‘ e na realidade mais ‗africanos‘ que os depois predominantes
noutras áreas, é por me parecer que nem aqueles motivos ne essas condições de meio social e espaço físico
podem ser desprezados em qualquer esforço mais profundo de reconstituição e interpretação do passado afro-
baiano‖. Cf. FREYRE, Gilberto. Prefácio. In: VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia. 3. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1988. P. 07-17.
278
Ibid, p. 16.
85
incessante e não raro sob o rigor dos açoites tornou-se a fonte da fortuna pública e
particular.279
Essa ideia foi posta em primeiro plano no texto O colono preto como fator de
civilização brasileira, como sugere o título. Primeiro, considerou os africanos como colonos,
ou seja, os ―filhos do continente negro‖ foram agentes promotores da colonização da América
Portuguesa e, em seguida, deram significativas contribuições no processo de construção de
civilização brasileira. Ao considerar o papel do africano na condição de colonizador, Querino
ia de encontro à historiografia que atribuía a colonização da América Portuguesa somente aos
portugueses. Nessas leituras feitas por historiadores como Varnhagen, os africanos e os
indígenas foram ignorados ou colocados em segundo plano, considerados simplesmente mão
de obra.
Mas antes de nos aprofundarmos nesse ponto, Querino reportou-se ao início da
colonização portuguesa, referindo-se aos portugueses como ―os piores elementos da
metrópole‖, que teriam fracassado na tentativa de colonizar o índio. Considerando esse
insucesso,
[...] a metrópole mudou o rumo, e, a exemplo de outras nações da Europa, e,
de parceria com o árabe, firmou o seu detestável predomínio no celeiro
inesgotável que fora o Continente Negro, arrancou dali o braço possante do
africano para impulsionar e intensificar a produção de cereais e cana-de-
açúcar e desentranhar do seio da terra o diamante e metais preciosos.280
279
QUERINO, Manuel Raymundo. O colono preto como fator de civilização brasileira. In.: QUERINO, Manuel
Raymundo. Costumes africanos no Brasil. Salvador, Eduneb, 2010. p. 136.
280
Ibid, p. 135.
281
Ibid, p. 137.
282
Ibid, p. 151.
86
africano, tanto em relação à força produtiva, quanto à força social e cultural que
impulsionaram a civilização brasileira, e um melhor tratamento aos descendentes dos filhos
do continente negro. Por representar um dos descendentes do continente negro, comprovava a
sua teoria por ser um dos que ocupavam ―posições de alto relevo‖, uma vez ter tido a
oportunidade de acesso à instrução, tornando-se artista, professor, político, funcionário
público e intelectual, conforme argumentou em A raça africana. Com isso, Querino, nas
entrelinhas de sua obra, estava lutando pelo reconhecimento de seu valor e pela legitimidade
de sua intelectualidade. Em função disso, sua obra pode ser tomada como ―uma escrita de si‖
por carregar elementos de uma autobiografia.283 Com a intenção de recuperar sua tese
civilizatória do africano, a obra de Querino merece ser incluída, tal qual a dos demais
intelectuais citados anteriormente, na história da historiografia brasileira, com destaque para a
historiografia afro-brasileira.
283
LEAL, Op. Cit., 2009, p. 132
284
Édison Carneiro (1912-1972), baiano, foi jornalista, poeta, jurista, folclorista. Carneiro era diplomado em
Direito. Dedicou-se desde os 16 anos de idade à escrita. Realizou vários estudos sobre o negro brasileiro,
tornando-se uma das maiores autoridades nacionais sobre os cultos afro-brasileiros. Publicou diversos livros
e artigos de periódicos nas áreas da etnologia e do folclore, da história e até da literatura, entre os quais
podem ser destacados: Religiões negras: notas de etnografia religiosa (1936); Negros bantus (1937); O
quilombo dos Palmares (1947); Trajetória de Castro Alves (1947); Candomblés da Bahia (1948);
Antologia do negro brasileiro (organizador, 1950); O folclore nacional, 1943-1953 (1954); A cidade do
Salvador: reconstituição histórica (1954); O negro brasileiro (1956); Decimália: os cultos de origem
africana no Brasil (1959); A insurreição Praieira, 1848-1849 (1960); Folklore in Brazil, tradução de
Evolução dos estudos de folclore no Brasil, com texto também em francês e alemão (1963); Ladinos e
crioulos: estudo sobre o negro no Brasil (1964); Dinâmica do folclore (1965); A sabedoria popular do
Brasil: samba, batuque, capoeira e outras danças e costumes (1968); Folguedos tradicionais (1974);
Capoeira (1975).
285
Arthur de Araújo Pereira Ramos nasceu em 1903 e era alagoano. Diplomado em Medicina pela Faculdade de
Medicina da Bahia, defendendo a tese Primitivo e loucura. Exerceu diversas atividades em instituições
baianas, atuou como Médico Legista e desenvolveu atividades científicas, escrevendo sobre criminologia,
medicina legal e psicopatologia forense. Seus principais estudos foram: Primitivo e loucura (1926); A
sordície nos alienados: ensaio de uma psicopatologia da imundice (1928); Estudos de
psicanálise (1931); Os horizontes místicos do negro da Bahia (1932); Psiquiatria e psicanálise (1933?); A
técnica da psicanálise infantil... (1933); Freud, Adler, Jung: ensaio de psicanálise ortodoxa e
herética (1933); O negro brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise (1934); Educação e
psicanálise (1934); A higiene mental nas escolas: esquema de organização (1935); O folk-lore negro do
Brasil: demopsicologia e psicanálise (1935); Introdução à Psicologia Social (1936); A mentira
infantil (1937); Loucura e crime: questões de psiquiatria, medicina forense e psicologia social (1937); As
culturas negras no Novo Mundo (1937); Saúde do espírito: higiene mental (1939); Pauperismo e higiene
mental (1939); A criança problema: a higiene mental na escola primária (1939); O negro
brasileiro (1940); A aculturação negra no Brasil (1942); Guerra e relações de raça (1943); Las
poblaciones del Brasil (1944); As Ciências Sociais e os problemas de após-guerra (1944); Introdução à
87
Espanta a atividade deste homenzinho miúdo, que não somente abriu caminho para
uma verdadeira escola médico-legal no Brasil, mas ainda iniciou os estudos
africanos na América, ao lado do batalhador cubano Fernando Ortiz. E espanta
principalmente, - numa terra onde a retórica, a frase bonita e vazia sempre tomaram
o lugar do estudo sério, do estudo construtor e definitivo, - e espanta a honestidade
com que Nina Rodrigues sempre conduziu a sua atividade intelectual, seja no
terreno da Antropologia, no da Etnografia Religiosa, no da crítica histórica, no da
Demopsicologia, no da Medicina Legal ou menos na Filosofia. Espanta a modéstia
desse homem precioso, não querendo nada além do direito de trabalhar por uma
melhor compreensão entre os homens. E espanta, ainda mais, que tenha aprofundado
tanto, não só os estudos sobre a raça negra no Brasil, mas toda e qualquer espécie de
trabalho que tentasse.286
Para completar seus espantos, Carneiro afirmou que ―[...] Nina Rodrigues foi a mais
alta organização de estudioso do seu tempo.‖287 Com essas palavras, Carneiro buscou
legitimar a existência da Escola Nina Rodrigues, que se vinculava à figura de Nina Rodrigues,
embora, tanto Carneiro como Ramos reeditassem algumas ideias de seu mestre,
principalmente quanto ao uso da noção de ―raça‖. Além disso, defendia-o como pioneiro nos
estudos sobre os africanos na América, ao lado de Fenando Ortiz. Mas Carneiro não ignorava
que os africanistas brasileiros do final da década de 1930 tivessem restrições à obra de Nina
Rodrigues. Segundo Carneiro,
Antes de tudo, Nina Rodrigues foi unilateral. Para ele, o problema do negro na
América Portuguesa se resumia no problema dos negros nagôs e jejes, no problema
dos negros sudaneses. Os negros bantos, os negros sul-africanos, foram por ele
subestimados nos seus estudos, hoje merecidamente clássicos. Não conheceu o
samba, a capoeira, o batuque, uma série de festas populares de procedência banto.
Culpa de Nina Rodrigues? Talvez não, foi o governo provisório da República que
mandou queimar os arquivos da escravidão... Outro grande erro de Nina Rodrigues –
que foi, aliás, como acentua bem Arthur Ramos, um erro de seu tempo, – foi a
escola de antropologia de Lombroso e Ferri, que endeusou a raça branca, reduzindo
o problema da cultura a uma questão de simples pigmentação da pele e de medidas
craniométricas. Esta escola reacionária – hoje desmascarada como uma simples
justificação intelectual da dominação dos brancos europeus sobre os povos de cor da
África e da Ásia, – muito atrapalhou o curso claro e certo raciocínio de Nina
Rodrigues. Felizmente, suas tendências pessoais contrabalançavam os defeitos da
teoria. Daí não ter ele nenhuma vergonha de se ombrear com negros, – segundo
Lombroso e Ferri, ―inferiores‖ ao branco, – nem se sentir diminuído ou humilhado
com sua amizade ou com sua colaboração.288
Essas últimas palavras de Carneiro soam como uma tentativa de justificar aquilo que
considerava erros cometidos por Nina Rodrigues, ao se vincular à escola antropológica de
Lombroso e Ferri. Além disso, busca justificar também o fato de seu mestre não ter conhecido
o samba, a capoeira e batuques bantos. Para Carneiro, Rodrigues não tinha culpa em não
conhecer essas manifestações, em função do governo provisório ter mandado incendiar os
arquivos da escravidão. Carneiro via o vínculo de Nina Rodrigues à Escola de Antropologia
italiana como um erro recorrente no final do século XIX e início do XX. Quis dizer que Nina
Rodrigues não teria sido o único. Esse vínculo, segundo Carneiro, atrapalhou o ―[...] curso
claro e certo do raciocínio de Nina Rodrigues.‖ Carneiro não informou que curso seria esse,
mas é possível supor que se tratasse do raciocínio que adotara na Escola Nina Rodrigues, em
rejeitar a ideia de raça em detrimento da noção de cultura. Carneiro tentou minimizar o ―erro‖
de seu velho mestre com a informação de que suas ―tendências pessoais contrabalançavam‖.
O que Carneiro colocou em termos de tendências pessoais se referia ao fato de Nina
Rodrigues não ter tido ―nenhuma vergonha de se ombrear com os negros‖, e muito menos de
se sentir ―diminuído‖ ou ―humilhado‖ com amizade e colaboração desses que considerava
inferiores.
288
Ibid, p. 56-57.
89
Manuel Querino foi mencionado nessa homenagem logo depois que Édison Carneiro
sugeriu que a dívida dos africanistas de seu tempo, para com Nina Rodrigues, ―era maior do
que se pode supor‖, afirmando que ―[...] talvez fossem hoje impossíveis sem ele os estudos
afro-brasileiros, pelo menos os estudos de Etnografia religiosa.‖289 Dito isso, Carneiro
afirmou que
Tendo sido um grande teórico, Nina Rodrigues foi também um grande recolhedor de
Material, um grande pesquisador, um grande desenterrador de mortos. Nem
mesmo Manuel Querino, que nasceu do ventre de uma negra, que tinha a cor a
ajudá-lo, que viveu num ambiente fetichista toda a sua vida de pequeno
burocrata da secretaria de agricultura, nem mesmo Manuel Querino põe à
disposição dos estudiosos tão grande documentário, tanto material a estudar.290
Desse modo, percebemos que o pioneirismo de Manuel Querino nos estudos sobre o
negro no Brasil foi descartado por Édison Carneiro. Querino foi posto à sombra de Nina
Rodrigues, como um sujeito que tinha a seu favor o fato de ter a pele preta, algo que facilitaria
ter acesso a espaços onde pudesse coletar material tão rico quanto o de Nina Rodrigues,
porém, mesmo tendo isso a seu favor, não teria conseguido tanto êxito quanto o seu velho
mestre.
Ari Lima analisou essa questão e explicou que, por trás dessas palavras de Carneiro,
estava um ―anseio pela filiação a uma ciência branca, objetiva, paternalista e
pretensamente imparcial, que explica ‗a extrema severidade, às vezes no limite mesmo da
injustiça crítica‘ com que Édison se refere ao ‗pequeno funcionário público‘, Manuel
Querino‖ [...]292. Além disso,
Pior do que Nina foi Manuel Querino, que nem sabia dessas divisões dos negros da
África. Ele foi noticiando o que via em torno de si, com a falta de inteligência que
sempre o caracterizou, sem indagar nada, mas tentando explicações pueris para os
casos observados. De maneira que a gente, hoje, apenas pôde utilizar o material
eterno por ele trazido à etnografia e à psicologia social do afro-brasileiro,
289
CARNEIRO, Op. cit, 1980, p. 57.
290
Idem. Grifos do texto original.
291
LIMA, Ari. A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro: negação de identidade,
confronto ou assimilação intelectual? Revista Afro-Ásia vol. 25-26 (2001), 281-312. p. 295-296.
292
Ibid, p. 296.
90
Não há mais quem se lembre do nome de Obatalá. Incumbido de funções por assim
dizer administrativas, o maior dos ôrixás, - ôrixá-nlá, no mais puro nagô, - os negros
da Bahia o conhecem hoje claramente. Isto contra a opinião de Manuel Querino, que
pretende derivar a palavra de Och-Allah, invocando uma possível influência dos
nomes malês...296
293
CARNEIRO apud LIMA, 2001, p. 197. Grifos do texto original.
294
CARNEIRO, Édison. Religiões negras: notas de etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1936. p. 9.
295
CARNEIRO apud LIMA, Op. cit., 2001, p. 197.
296
CARNEIRO, Op. cit., 1936, p. 34-35.
91
Mais à frente, ao tratar de Xangô, no momento em que descrevia alguns ritos seguidos
por aqueles que cultuam esse orixá, usou o termo ―cavalo‖ e, sobre o termo, ao explicar em
nota de rodapé, reportou-se a Querino dizendo que este
Estou a escrevê-lo aqui em Mar Grande, neste ano da graça de 1936, já tendo
mesmo escrito dois capítulos. Não pasme! (estou desocupado) naturalmente, V. será
mais do que citado nesse O fetichismo negro na Bahia, V., o velho Nina e esse
incrível Mané Querino.298
Aqui fica clara a implicância que Carneiro tinha com Querino. Embora tivesse usado o
termo ―incrível‖ para se referir ao intelectual negro, ao escrever seu nome foi jocoso em
chamá-lo de Mané. Como se tratava de uma correspondência à fala, o missivista ficou mais à
vontade para se referir a Manuel Querino, e é bem provável que não usasse esses termos em
seus textos destinados ao público, que, possivelmente, conhecia Querino. Em outra carta,
escrita algumas semanas depois daquela, Carneiro voltou a reportar-se a Querino.
A biblioteca vai dar o segundo volume dos Estudos Afro-brasileiros? E por que você
não tenta a segunda edição do livro de Manuel Querino?
297
Idem. Grifos do texto original.
298
CARNEIRO, Édison; OLIVEIRA, Waldir Freitas; LIMA, Vivaldo da Costa. Cartas de Edison Carneiro a
Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987. p. 79. Grifos do
texto original.
92
O texto de Querino era ―mal escrito‖, segundo Carneiro, mas servia para ser reeditado
e publicado. Mesmo assim, Carneiro sugeriu a Ramos a publicação da obra de Querino.
Ramos seguiu o conselho do amigo e publicou-a com o título Costumes africanos no Brasil,
em 1938. O prefácio desse livro foi escrito pelo próprio Ramos, no qual, também, estabeleceu
relação entre Querino e Nina Rodrigues. Ramos iniciou dizendo:
Nesse movimento de atual interesse pelo problema do negro, no Brasil, não pode ser
esquecida a contribuição de Manuel Querino. Dentro do longo período de silêncio
que desabou sobre a obra de Nina Rodrigues, quase dois decênios! – a única voz que
se levantou, cheia de entusiasmo e de emoção, em defesa do negro brasileiro, foi a
de Manuel Querino, na Bahia, falando da contribuição do africano à civilização
300
brasileira.
A princípio, o leitor desse texto pode pensar que se tratava de uma contradição de
Arthur Ramos em ter-se dado ao trabalho de organizar e publicar um livro com textos de
Manuel Querino, principalmente levando em consideração o que afirmou a seguir.
Referindo-se à obra A raça africana e seus costumes na Bahia, texto que compõe a
coletânea, Ramos disse ainda:
Porque, apesar das falhas, e algumas de certa gravidade, que tiram a esse o cunho
rigorosamente científico, ele permanece como um dos marcos mais sólidos de
documentação honesta sobre o negro no Brasil.
Muita coisa mesmo que tinha passado despercebida ao próprio Nina Rodrigues, não
escapou ao olhar investigador do modesto professor negro, que nos desvãos
ignorados do candomblé do Gantois ou diretamente em sua residência no Matatu
Grande, se rodeava dos pais e mães de santo, que o fizeram o senhor dos mistérios
das práticas religiosas e mágicas, das tradições do continente negro aqui diluídas ou
299
CARNEIRO, Édison; OLIVEIRA, Waldir Freitas; LIMA, Vivaldo da Costa. Cartas de Edison Carneiro a
Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987. Grifos do autor.
300
RAMOS, Arthur. Prefácio. In: QUERINO, Manuel Raimundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed. -
Salvador: Eduneb, 2010. p. s/n.
301
Idem.
93
dos segredos dessa culinária esquisita que impressionou, desde a infância, o paladar
brasileiro.302
302
RAMOS, Arthur. Prefácio. In: QUERINO, Manuel Raimundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed. -
Salvador: Eduneb, 2010. p. s/n.
303
Idem.
304
Idem.
305
Idem.
94
brasileiro de Salvador, realizado em 1937. Com esse evento e sua edição anterior, que tinha
acontecido em Recife, três anos antes, organizado por Gilberto Freyre, consolidavam-se os
estudos africanos no Brasil e as relações raciais sob novas bases. ―Do ponto de vista teórico-
metodológico, tal processo se deu, fundamentalmente, através da recepção de modelos
analíticos que permitiram a substituição da noção biológica de ―raça‖ pelo conceito de
‗cultura‘.‖306 A realização do II Congresso Afro-brasileiro de Salvador representou
Naquele contexto, Ramos lutava pelo seu reconhecimento e de seus pares no cenário
dos estudos afro-brasileiros e estabelecia certa disputa com Gilberto Freyre. No prefácio dos
anais do Congresso de Recife, Roquette-Pinto omitiu os nomes de Arthur Ramos e dos
componentes da Escola Nina Rodrigues ao fazer alusão ao pioneirismo de Nina Rodrigues.
Roquette-Pinto citou apenas os nomes de Braz do Amaral e Manuel Querino. Isso pode
explicar o fato de Édison Carneiro ter-se referido a Querino de forma dura e áspera. Arthur
Ramos, ao publicar os textos de Querino, um ano depois daquele evento, estabelecendo uma
relação com Nina Rodrigues, colocando-o em um patamar de importância intelectual inferior
ao de seu mestre, teria sido endereçado a Roquette-Pinto.
Olívia Maria Gomes da Cunha apresentou algumas informações que podem nos ajudar
a compreender melhor os comentários de Arthur Ramos e Édison Carneiro e o fato de Ramos
ter publicado o livro de Querino.308
Cunha, citando Mariza Correa309, trouxe a seguinte informação:
306
SILVA, Sarah Calvi Amaral. Africanos e afro-descendentes nas origens do Brasil: raça e relações raciais
no II Congresso afro-brasileiro de Salvador (1937) e no III Congresso Sul-rio-grandense de História e
Geografia do IHGRS (1940). 2010. 276f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. p. 39.
307
Ibid, p. 14-15.
308
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Minha adorável Lavadeira: etnografia mínima em torno do edifício tupi.
In: Anais da biblioteca Nacional – Vol. 119. 1999.
309
CORRÊA Mariza. As Ilusões da Liberdade. A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. 2. ed.
Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001. apud CUNHA, 2010, p. 64.
95
Cunha chama de manuscrito ao se referir aos escritos e obra de Querino. Segundo ela,
esses manuscritos teriam sido usados por Ramos na constituição de um livro, passando a
informação de que se tratava de textos inéditos. Mas, ao que se sabe, Ramos usou o texto
original das primeiras edições das obras de Querino. A autora se baseou numa carta que o
médico Hosanah de Oliveira escreveu a Arthur Ramos em 1936, informando sobre a
negociação com o genro de Querino.
No penúltimo parágrafo do prefácio que escreveu para Costumes Africanos no
Brasil, Ramos afirma, se referindo à obra de Querino, que ela estava sendo publicada sem
retoques, ―apenas, aqui e ali, sem nenhuma alteração do texto‖311, colocando somente
algumas notas de rodapés.
No último parágrafo desse prefácio, Ramos apresenta informações que confirmam as
negociações ente Hosanah de Oliveira e a família de Querino, nas seguintes palavras:
310
CORRÊA apud CUNHA, 2010, p. 64.
311
RAMOS In QUERINO, 2010, s/p.
312
Idem.
96
Assim, com base no que foi exposto, entendemos que a obra de Querino era, desde
então, considerada tão importante quanto a de Nina Rodrigues e que os intelectuais que a
leram na década de 1930 reconheciam esse valor, apesar dos qualificativos depreciadores
sobre a cientificidade do seu trabalho. Portanto, identificamos que os comentários de Carneiro
e Ramos, que colocavam Querino à sombra de Nina Rodrigues, circunscrevendo a obra e o
próprio Querino em um lugar específico no âmbito da intelectualidade brasileira, têm
influenciado leituras realizadas na atualidade, não obstante os avanços interpretativos que
buscam trazer à cena intelectual sua legitimação de pesquisador e historiador de vanguarda
sobre a participação ativa do africano e descendentes na história do Brasil.
97
Manuel Querino foi um intelectual negro que, ao escrever sobre a população africana e
descendentes, contestou o modelo interpretativo racialista em voga. Além de ser negro, esse
aspecto se constitui em marca distintiva de Querino em relação aos intelectuais de seu tempo.
A maioria dos intelectuais contemporâneos a Querino eram brancos, ou seja, nenhum, entre
aqueles que foram citados nos capítulos anteriores, como Nina Rodrigues, Sílvio Romero,
Manoel Bomfim, era negro. Mas isso não quer dizer que não tenham existido negros que
atuassem como intelectuais. Querino foi um dos poucos negros entre os intelectuais da
segunda metade do século XIX e início do XX que, além de ter produzido uma obra
antirracialista, atuou social e politicamente a favor da inclusão cidadã das populações
excluídas da história e da memória nacional. Intelectuais, como Querino, enfrentaram o
racismo no seio da sociedade brasileira nos diversos espaços por onde transitaram, inclusive,
no meio intelectual.
Com o propósito de discutir sobre a inserção de Querino na história e cultura afro-
brasileira, neste capítulo será compreendida sua trajetória intelectual, visando a identificá-lo
na categoria de intelectual negro, ao analisar em que sentido podemos usá-lo para nos
referirmos ao sujeito em questão. Serão analisados, também, as leituras e os comentários de
autores a respeito de Querino e sua obra que, por sua vez, indicam o lugar ocupado por ele e
pela sua produção nos espaços acadêmicos e culturais no Brasil e na Bahia, em particular. E,
por fim, estabelecer a relação entre sua produção intelectual e os estudos sobre história e
cultura africana e afro-brasileira.
313
Dentre os quais destacamos: BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de
cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1997. CARVALHO, José Murilo de.
História Intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, p. 123-152, 2006.
FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Gaal, 1979.
GONZALEZ, Horácio. O que são intelectuais? São Paulo: Brasiliense, 2001. GRAMSCI, Antônio. Os
intelectuais e a organização da cultura. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. HAHN, Fábio
André. História intelectual uma nova perspectiva. [2007] Disponível em:
<http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=professores&id=37>. Acesso em: 12 out. 2015. LIMA,
98
sociedade. Com relação aos indivíduos, a quem se atribui como intelectual, percebe-se que
existe uma dificuldade proporia comunidade de intelectuais em atribuí-la aos negros.
Historicamente, os negros exerceram e exercem funções de intelectuais, mas até os dias atuais
estes indivíduos lutam pelo reconhecimento de sua intelectualidade.
Mas quem são os intelectuais? Que função exercem na sociedade? Indivíduos negros,
como Manuel Querino, podem ser considerados intelectuais? Quais denominações podemos
utilizar para nos referirmos aos negros que exerceram funções intelectuais na sociedade
brasileira e baiana do pós-abolição?
Para pensarmos o conceito de intelectual, nos apoiamos em autores que discutem
sobre esse assunto, tais como Gramsci, Foucault, Bobbio e Said. 314 No caso específico dos
negros, o trabalho de Rosemere Ferreira da Silva315 nos ajuda a refletir sobre a trajetória
intelectual de indivíduos de cor que atuaram no meio intelectual.
O termo intelectual, segundo Norberto Bobbio, foi difundido inicialmente na França
no final do século XIX em decorrência do caso Dreyfus.316 Bobbio assegura que os
intelectuais sempre existiram em todas as sociedades com denominações diferentes. Assim, a
quem chamamos de intelectual hoje, ―em outros tempos foram chamados de sábios, doutos,
Ari. A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro: negação de identidade, confronto ou
assimilação intelectual? Revista Afro-Ásia vol. 25-26 (2001), 281-312. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão
chamado Brasil. Intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de janeiro: Renan;
IUPERJ; UCAM, 1999. LOPES, Marcos Antonio. Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo:
Contexto, 2003. OLIVEIRA, Evaldo Ribeiro. Negro Intelectual, Intelectual Negro ou Negro-Intelectual:
considerações do processo constituir-se negro-intelectual. 2014. 205f. Tese (Doutorado em Educação)
Universidade Federal de São Carlos – UFSCAr. 2014. SAID, Edward. Representações do intelectual: as
conferências de Reith de 1993. Trad. Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SILVA,
Cintia Rufino Franco da. O caso Dreyfus, Emile Zola e a imprensa. Contemporâneos Revista de Artes e
humanidades. nº 11 novembro 2012, abril 2013. Disponível em:
http://www.revistacontemporaneos.com.br/n11/dossie/Dossie4-dreifus.pdf. Acesso em: 30 set. 2015. SILVA,
Rosemere Ferreira da. Trajetórias de dois intelectuais negros brasileiros: Abdias Nascimento e Milton
Santos. 2010. 233f. Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos) Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da Bahia. 2010. SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais in:
RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996.
314
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. 4. Ed.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
SAID, Edward. Representações do intelectual: as conferências de Reith de 1993. Trad. Milton Hatoum. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005. BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos
homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1997. FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. Trad. & Org. Roberto Machado. 18. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
315
SILVA, Rosemere Ferreira da. Trajetórias de dois intelectuais negros brasileiros: Abdias Nascimento e
Milton Santos. 2010. 233f. Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos) Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. 2010.
316
O caso Dreyfus foi um episódio, segundo Silva, em que um oficial de artilharia do exército francês, de origem
judaica, Alfred Dreyfus, foi acusado de vender segredos aos alemães no contexto da Guerra Franco-
Prussiana. Sua condenação foi baseada em documentos falsos, e o escritor Emile Zola redigiu uma carta
aberta ao presidente francês, defendendo a inocência de Dreyfus. SILVA, Cintia Rufino Franco da. O caso
Dreyfus, Emile Zola e a imprensa. Contemporâneos Revista de Artes e humanidades. n 11 novembro
2012, abril 2015. Disponível em: http://www.revistacontemporaneos.com.br/n11/dossie/Dossie4-dreifus.pdf.
Acesso em: 30 set. 2015.
99
317
BOBIO, 1997. p.11.
318
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. 4. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1982, p. 03.
319
Ibid, p. 03-04
320
Ibid, p. 05.
321
Ibid, p. 06.
322
Ibid, p. 25.
323
SAID, Edward. Representações do intelectual: as conferências de Reith de 1993. Trad. Milton Hatoum. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005. p 25.
100
o em risco. Saber como usar bem a língua e saber quando intervir por meio dela são
duas características essenciais da ação intelectual. 324
Michel Foucault contribui para o debate sobre a função e o papel dos intelectuais em
Microfísica do poder, especificamente no capítulo Os intelectuais e o poder – conversa
entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. Em um momento da conversa, Foucault comenta:
Há muitos anos que não se pede mais ao intelectual que desempenhe esse papel. Um
novo modo de ―ligação entre teoria e prática‖ foi estabelecido. Os intelectuais se
habituaram a trabalhar não no ―universal‖, no ―exemplar‖, no ―iusto-e-verdadeiro-
para-todos‖, mas em setores determinados, em pontos precisos que os situavam, seja
suas condições de trabalho, seja suas condições de vida (a moradia, hospital, asilo,
laboratório, a unidade, as relações familiares ou sexuais). Certamente com isso
ganharam uma consciência muito mais concreta e imediata das lutas. E também
encontraram problemas que eram específicos, ―não universais‖, muitas vezes
328
diferentes daqueles do proletariado ou das massas (sic).
324
SAID, 2005, p. 33.
325
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade
contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 32.
326
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. & Org. Roberto Machado. 18. ed. Rio de Janeiro: Graal,
2003. p. 42.
327
Ibid, 2003, p. 42.
328
Ibid, p. 8.
101
O intelectual não tem mais que desempenhar o papel daquele que dá conselhos.
Cabe àqueles que se batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projeto, as
táticas, os alvos de que necessitam. O que o intelectual pode fazer é fornecer os
instrumentos de análise, e é este hoje, essencialmente, o papel do historiador. Trata-
se, com efeito, de ter do presente uma percepção densa, de longo alcance, que
permita localizar onde estão os pontos frágeis, onde estão os pontos fortes, a que
estão ligados os poderes – segundo uma organização que já tem cento e cinquenta
anos − onde eles se implantaram. Em outros termos, fazer um sumário topográfico e
geológico da batalha... Eis aí o papel do intelectual. Mas de maneira alguma dizer:
eis o que vocês devem fazer!329
Esses autores citados acima ajudam a entender o papel que os intelectuais exercem na
sociedade. Entre eles, Gramsci chega a se reportar aos intelectuais negros, mas sem apresentar
uma reflexão aprofundada. Após comentar que nos Estados Unidos não houve intelectuais do
tipo tradicional, Gramsci comenta:
Uma manifestação interessante deve ainda ser estudada nos Estados Unidos; trata-se
da formação de um número surpreendente de intelectuais negros, que absorvem a
cultura e a técnica americanas. Pode-se pensar na influência indireta que estes
intelectuais negros podem exercer sobre as massas atrasadas da África, e na
influência direta que verificaria se ocorresse uma destas hipóteses: 1) se o
expansionismo americano se servisse dos negros nacionais e na extensão a eles do
próprio tipo de cultura (algo similar já ocorreu, mas ignoro em quais proporções); 2)
se as lutas pela unificação do povo americano se agudizassem o êxodo dos negros e
o retorno à África dos elementos intelectuais mais independentes e enérgicos e,
portanto, menos a sujeitar-se a uma possível legislação ainda mais humilhante do
330
que o costume atualmente difundido.
Sem perder de vista o tom eurocêntrico da fala de Gramsci ao se referir aos africanos
como ―massas atrasadas da África‖, percebe-se que o autor sugere que a formação de
intelectuais negros e negras nos Estados Unidos é um processo importante a ser estudado.
Com isso mostra uma lacuna que vem sendo preenchida aos poucos por pesquisas sobre a
trajetória de negros que exerceram funções intelectuais.
O trabalhos de Rosemere Ferreira da Silva é um exemplo desse esforço de preencher
essa lacuna, pois ajudam a pensar na trajetória de intelectuais negros no Brasil. Silva propôs
traçar as trajetórias intelectuais de Abdias Nascimento e Milton Santos e analisa o processo
em que esses dois negros se constituíram intelectuais, com base em dados biográficos.
329
GRAMSCI, 1982, p.86.
330
Ibid, p.20.
102
Segundo Silva,
Para Silva, o intelectual negro vive um dilema e, citando Cornel West, afirma que
Este dilema está relacionado às suas atuações entre viver em um mundo, cuja
organização e exercício da estrutura de poder são prioritariamente brancos e, ao
mesmo tempo, nesta mesma estrutura, promover um trabalho de intervenção que
sugestione mudanças a partir de dinâmicas que envolvem diferentes realidades do
mundo negro, da cultura negra. Não há escolha para aqueles que assumem o papel
de intelectuais negros. Os intelectuais negros são chamados às suas funções através
de uma autoimposição crítica à condição marginal, o que lhe assegura status junto à
333
comunidade negra.
está fundado numa experiência negra explícita ou não explícita, colocada como
ponto de partida para as formas de intervenção pública que o intelectual escolhe
proceder na sociedade. O intelectual experimenta um tipo de atuação sobre as coisas
que lhe permitem entender a sua realidade e a realidade do mundo à sua volta,
intermediada pelo pensamento crítico que reconhece, através dessa própria
331
SILVA, 2010, p .42.
332
Ibid, p. 42-43.
333
WEST, apud SILVA, 2010, p. 43.
103
A maioria dos autores que se interessaram pela trajetória e obra de Manuel Querino o
reconhecem como intelectual. Diante disso, ao tomarmos essa denominação como referência
para discutir a respeito das contribuições de Querino para a história dos negros no Brasil, é
importante conhecermos os processos que ele viveu para se tornar um intelectual e, com base
nesses processos, identificarmos que tipo de intelectual ele foi.
Os autores que se referem a Querino como intelectual não discutiram o conceito de
―intelectual‖ ou apresentaram justificativas para a utilização do termo em relação a esse
sujeito. Acreditamos que, para atribuir o título de intelectual a um homem negro, que viveu na
segunda metade do século XIX e início do XX, no Brasil escravista e do pós-abolição, requer
uma explicação que possa ampliar o entendimento sobre o que é ser um ―intelectual‖ e até que
ponto se pode atribuir essa denominação a um negro, naquele contexto. Naquele período, que
lugar os negros africanos e afrodescendentes ocupavam na sociedade brasileira? Exerciam
funções correspondentes às de um intelectual à época? Eram reconhecidos como tais pela
sociedade e pela intelectualidade dominante? São algumas questões a serem analisadas.
É difícil responder a essas questões, dada a complexidade das relações entre os
indivíduos naquele período em que se dava o processo de desmonte do sistema escravista, que
era um dos pilares da sociedade brasileira. Com o desmonte desse sistema, os negros eram
encarados como elementos incompatíveis com os projetos de nação que as elites dirigentes
pensavam para o Brasil. Esses negros tiveram bem definidos os lugares que ocupariam
naquela sociedade com o processo de recomposição das hierarquias sociais, que usavam a
ideia de raça como um dos critérios para efetuar tal recomposição. Os negros eram vistos
como um problema que poderia ser resolvido com o branqueamento, pela entrada de
imigrantes europeus no país para suprir a necessidade de mão de obra. Esse desmonte não se
334
SILVA, 2010, p 44.
104
deu de forma harmoniosa ou com uma postura passiva dos negros. Segundo Wlamyra
Albuquerque,
335
ALBUQUERQUE, Wlamyra. ―A vala comum da ‗raça emancipada‘‖: abolição e racialização no Brasil, breve
comentário. História Social (UNICAMP): Campinas, n. 19, p. 63-90, 2010. p. 92-93.
336
Esses indivíduos eram chamados de Homens de Letras, mas optamos por tratar de Querino como intelectual
visto que este termo corresponde aquele usado no contexto. Nesse sentido, tomando como referência a afirmação
de Bobbio de que os intelectuais sempre existiram em todas as sociedades com denominações diferentes.
BOBIO, 1997. p.11.
337
LEAL, 2009, p 49.
105
338
Ibid, 2009, p.75.
339
BARROS apud LEAL, 2009, p.75.
340
Ibid, 2009, p. 82.
341
Ibid, 2009, p. 85.
342
Ibid. p. 85.
343
Idem.
106
A imprensa foi um dos meios alternativos que negros intelectuais como Querino
usaram como estratégia para expor suas ideias, de modo que é possível falar de uma imprensa
negra.
A imprensa negra é um fenômeno que se observa em diversas partes do Brasil em
diferentes épocas. Ana Flávia Magalhães Pinto se debruçou sobre oito títulos de regiões
diferentes e construiu um panorama da imprensa negra no país, buscando identificar quem
eram os grupos de pessoas que estavam por trás desses jornais.348
Os jornais analisados pela autora foram: O Homem de Cor ou O Mulato, Brasileiro
Pardo, O caribe e O Lafuente, do Rio de Janeiro, do ano de 1833; O homem:
constitucional ou Dissolução Social, de Recife, datado de 1876; A Pátria – Orgam dos
Homens de Côr, de São Paulo, de 1889; O Exemplo, de Porto Alegre, de 1892; e Progresso
– Orgam dos Homens de Côr, de São Paulo, em 1899. A autora organizou sua análise
usando como referência o local de publicação para agrupar os jornais. Por trás dos jornais
publicados no Rio de janeiro em 1833, a autora identificou homens de cor livres ou libertos
que usavam ―as letras tipográficas‖ para fazer protestos, denúncias, reivindicações em prol da
população negras livre, tendo em vista que lhes eram negados direitos previstos pela
Constituição de 1824.349 Segundo a autora, 43 anos depois ―o mote das denúncias e
344
LEAL, Op. Cit., 2009, p.86.
345
Ibid, p.86.
346
Ibid. p. 91
347
Ibid. Grifos da autora.
348
PINTO, Ana Flávia Magalhães. De pele escura e tina preta: a imprensa negra do século XIX (1833-1899).
2006. 197f. Dissertação (Mestrado em História ) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006.
349
Ibid, p. 26.
107
350
Ibid, p. 27.
351
PINTO, 2006, p. 27.
352
Ibid, p. 28.
353
Ibid, 2006, p. 32.
354
LEAL, 2009, p. 47.
108
Segundo Leal, ―a obra produzida por Manuel Querino, considerada em suas dimensões
etnológica, histórica, política, sociológica, antropológica, expressou a seriedade do cientista, a
sensibilidade do artista e o engajamento do político.‖356 Todas essas dimensões precisam ser
levadas em conta ao analisar a trajetória intelectual de Querino. Mas devemos ressaltar que
neste estudo a ênfase está na dimensão histórica, ou melhor, historiográfica, da sua obra,
como explicitado no primeiro capítulo desta dissertação.
As primeiras elaborações intelectuais de Querino se deram no campo da arte.
Os títulos desses estudos eram: Desenho Linear das Classes Elementares, de 1903;
e Elementos de Desenho Geométrico – compreendendo noções de perspectiva linear,
teoria da sombra e da luz, projeções e arquitetura, de 1911. A consagração intelectual de
Querino se deu quando ajudou a fundar o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia em 1894.
Vinculado a essa instituição, Querino erigiu sua produção intelectual que versa a respeito de
variados temas: história da arte, do trabalho, usos e costumes africanos e afro-brasileiros,
culinária, religiosidade, história do Brasil, da Bahia e outros.
Entre os textos que compõem o conjunto de sua obra, podemos destacar: As Artes na
Bahia – escorço de uma contribuição histórica (1909); Artistas Baianos – indicações
biográficas (1909); Bailes Pastoris (1914); A Bahia de Outrora – vultos e fatos populares
(1916,); A Raça africana e os seus costumes na Bahia (1916); O colono preto como fator
de civilização brasileira (1918); Candomblé de Caboclo (1919); Os homens de cor preta
na história (1923); e A arte Culinária na Bahia (1928).
Com respaldo nessas obras e na trajetória intelectual, Manuel Querino é tratado em
publicações recentes como ―intelectual negro‖. A primeira trata do prefácio escrito por
Marluce Macêdo e Wilson Roberto Mattos para o livro Costumes africanos no Brasil, que
355
Idem.
356
Idem.
357
LEAL, Op. cit. p. 341.
109
foi reeditado em 2010.358 Os autores chamam Querino de ―intelectual negro baiano‖ para falar
da importância de sua obra para os estudos sobre o negro no Brasil. A intenção dos autores foi
apresentar a obra, por isso não explicaram o uso do termo.
A outra produção é de Alessandra Frota Martinez de Schuler359. Trata-se de uma
pesquisa em que Schuler investiga os projetos de educação e de reformas sociais de alguns
sujeitos, que ela chama de ―destacados intelectuais negros‖, que viveram a segunda metade do
século XIX e início do XX. Estes destacados intelectuais negros estiveram em disputa no
processo de abolição e pós-abolição no Brasil. A autora se refere a Manuel Querino, José do
Patrocínio e André Rebuças.360
O conceito de intelectual que Schuler tem em vista é tomado emprestado de François
Sirinelli361, que caracteriza o intelectual segundo seu engajamento político e cultural em
espaços e redes plurais e diversificadas e afirma que:
[...] o intelectual engajado é tanto aquele que escreve e produz conhecimento, ideias
e representações sobre o mundo social, quanto aquele que atua no sentido de
intermediar, divulgar e intervir em prol de determinadas questões e concepções no
362
contexto em que se move.
A autora explica em que sentido usa o termo ―negro‖. Do ponto de vista teórico, a
autora toma como referência o conceito contemporâneo “conforme o termo tem sido
construído pelos movimentos negros no Brasil, como marca da escravidão africana e de
reivindicação identitária.‖363
Segundo Schuler,
358
MACÊDO, Marluce de Lima e MATTOS, Wilson Roberto. Prefácio da 3ª Edição. In: QUERINO, Manuel
Raimundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed. Salvador: Eduneb, 2010. p. s/n.
359
SCHUELER, Alessandra. Intelectuais negros, reformas sociais e educação no Rio de Janeiro (1870-
1910). Projeto de pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa História Social da
Educação, Campo Diversidade, desigualdades sociais e educação, julho 2011.
360
SCHULER, Alessandra Frota Martinez de. Intelectuais negros e projetos de educação (1870-1910):
experiências docentes de André Rebouças, José do Patrocínio e Manoel Querino. Palestra proferida pela
autora em 5 jun. 2014.
361
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais in: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996.
362
SIRINELLI Apud SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de. ―Fazer artes e viver de ofício‖: trabalho,
liberdade e educação no pensamento de Manuel Querino (1851-1923). In: Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História. Conhecimento Histórico e Diálogo Social, Natal – RN, 22 a 26 jul. 2013.
363
SCHULER, Alessandra Frota Martinez de. ―Fazer artes e viver de ofício‖: trabalho, liberdade e educação no
pensamento de Manuel Querino (1851-1923). In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História.
Conhecimento Histórico e Diálogo Social, Natal – RN, 22 a 26 jul. 2013.
110
364
Ibid, s/p.
365
Ibid, s/p.
366
Ibid, s/p.
367
SCHULER, 2013, s/p.
368
LEAL apud SCHULER, 2013, s/p.
369
GLEGHILL, 2008; LEAL 2009; REIS, 2009; SANTOS, 2004.
111
leituras no sentido de reafirmar o valor das contribuições de Querino através de pesquisas que
vêm se sucedendo. Desse modo, a seguir, nos propomos identificar algumas leituras e
representações de Querino no transcorrer dos tempos até chegarmos aos dias atuais, tendo por
base as reedições de algumas de suas obras.
A obra de Querino é datada, e a sua leitura deve ser feita levando em conta o contexto
em que foi produzida e a trajetória do autor. A compreensão das leituras e dos comentários a
respeito da sua escrita contribui para entender sua trajetória intelectual, que pode ser
identificada nos prefácios e notas de rodapés de algumas de suas obras reeditadas em
momentos específicos, com motivações compatíveis com o horizonte de interesses de
divulgação e demandas de pesquisas sobre temas que escreveu.
Um exemplo é a organização do livro Costumes africanos no Brasil, de 1938, feita
por Arthur Ramos, um dos nomes importantes entre os estudiosos da cultura negra no Brasil.
Essa obra foi reeditada em 1988 e em 2010.
Nessa obra, constam quatro textos de Querino que tinham sido publicados
separadamente entre os anos 1916 e 1928. Ramos intitulou como Costumes africanos no
Brasil, mas, apesar de não justificar a escolha desse título no prefácio que escreveu, entende-
se que um dos principais critérios usados por Ramos tivesse sido a temática. Nesses textos,
predomina mais a preocupação esboçada por Querino em relação aos usos e costumes
africanos. É possível que Ramos tivesse tentado estabelecer um paralelo entre os textos de
Querino e o livro Africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, publicado dois anos antes de
Costumes africanos. Além disso, no texto A raça africana e seus costumes na Bahia
(1916), que se tornou a primeira parte do livro organizado por Ramos, o foco de Querino
foram os africanos e descendentes na Bahia, tal como aparece no título, não os africanos de
todo o Brasil. O ―Brasil‖ no título pode representar o reconhecimento de Ramos de que os
textos de Querino, embora se reportassem aos africanos na Bahia, servissem de referência
para estudos sobre os africanos no Brasil naquele contexto. Além disso, chamou atenção para
os olhares de um público de leitores mais abrangentes do que poderia ser se fosse pensado
apenas no âmbito de Bahia.
112
Existem indícios de que Ramos tivesse se dedicado a esse trabalho por sugestão de
Édison Carneiro, conforme missiva de 1936.370 Nela, Carneiro o aconselhava a reeditar o
texto A raça africana e seus costumes na Bahia (1916). Ramos, no entanto, fez mais do que
isso, organizou um livro, que reuniu, além do texto sugerido por Carneiro, outros como O
colono preto como fator de Civilização brasileira (1918), A arte culinária na Bahia
(1928) e Notas de folclore negro (excertos de A Bahia de outrora) (1916).
Quando Costumes africanos no Brasil foi publicado no final da década de 1930,
tratou-se de um contexto em que Ramos se lançava em uma disputa intelectual com Gilberto
Freyre na conquista da hegemonia no campo de estudos sobre o negro no Brasil, denominado
de estudos africanos371 ou de estudos afro-brasileiros372, que, naquele momento, passavam por
um processo de consolidação.373 Essa disputa foi observada pela realização de dois eventos
conhecidos por I e II Congresso Afro-Brasileiro. O primeiro foi organizado por Gilberto
Freyre em 1934 e realizado em Recife. O segundo ocorreu em Salvador em 1937 e foi
organizado por Ramos. Roquette Pinto, nos anais do I Congresso Afro-Brasileiro, fez
referência ao pioneirismo de autores como Nina Rodrigues e Braz do Amaral e de Manuel
Querino.374
Portanto, a obra de Querino tinha um lugar específico entre os estudos sobre os negros
no Brasil, próxima à produzida por Nina Rodrigues. Mas isso foi redimensionado por Ramos,
com a publicação de Costumes Africanos no Brasil em 1938. Mesmo reconhecendo o
pioneirismo de Querino, Ramos o considerou um pesquisador desprovido de rigor
metodológico, quando comparado a Nina Rodrigues.
Os comentários elaborados por Arthur Ramos no prefácio de Costumes Africanos no
Brasil em que cobrava rigor metodológico aos textos de Querino, possivelmente,
influenciaram a leitura que outros estudiosos fizeram, posteriormente, de sua obra.
Podemos identificar essa influência em Soares que, ao tratar dos estudos sobre o negro
na Bahia, ao comentar sobre a obra de Nina Rodrigues, referiu-se a Querino, afirmando que,
370
CARNEIRO, Édison; OLIVEIRA, Waldir Freitas; LIMA, Vivaldo da Costa. Cartas de Edison Carneiro a
Artur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987. p. 90.
371
SILVA, Sarah Calvi Amaral. Africanos e afro-descendentes nas origens do Brasil: raça e relações raciais
no II Congresso afro-brasileiro de Salvador (1937) e no III Congresso Sul-rio-grandense de História e
Geografia do IHGRS (1940). 2010. 276f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. p. 14.
372
SILVA, Júlio Cláudio da. Os estudos Afro-Brasileiros, o movimento negro e a trajetória intelectual de Arthur
Ramos (1934-1949). In: Anais de XI Encontro Regional de História ANPUH 2004, 2004, Rio de Janeiro.
www.uff.br/ichf/anpuhrio/Anais/2004/Simposios, 2004. Acesso em: 30 out. 2015. p. 02.
373
SILVA, 2010, p. 14.
374
Ibid, p. 76.
113
Manoel Querino, por seu turno, descreveu aspectos relevantes do quotidiano dos
negros baianos, sem se preocupar com rigor metodológico e a erudição científica
de seu antecessor [Nina Rodrigues]. Refletindo-se as mulheres negras, além dos
comentários acerca da vida religiosa, enfatizou as características das ―diversas
tribos‖ importadas, destacando essencialmente as qualificações para empenho de
determinadas funções ocupacionais, no que foi seguido por diferentes autores depois
375
de sua matéria.
Após um silêncio de duas décadas sobre estudos de Nina Rodrigues, a única voz que
teria se erguido a falar sobre o negro brasileiro foi a de Manoel Querino, que
descreveu aspectos relevantes do cotidiano dos negros baianos, sem se preocupar
com rigor metodológico e a erudição científica de seu antecessor. Procurou,
sobretudo, estudar o cotidiano dos negros e mulatos, na época em que fez seus
registros, informando-nos numa linguagem simples e memorialística as práticas
religiosas, culturais e da culinária africana presentes na sociedade baiana de então.
Querino pôde pela sua origem social viver de perto muitos dos problemas que
envolviam a população negra na Bahia, revelou-se um sociólogo e psicólogo na
descrição desse cotidiano, conforme escreveu Arthur Ramos no prefácio de
378
Costumes africanos no Brasil.
Soares refere-se à obra de Manuel Querino tomando por base o prefácio escrito por
Ramos em Costumes africanos no Brasil. Não consta nas referências e nem se observa no
375
SOARES, Cecília Conceição Moreira. Mulheres negras na Bahia do século XIX. Salvador Eduneb, 2006.
p. 19. Grifos nossos.
376
QUERINO, 2010, p.31.
377
SOARES, Cecilia Conceição Moreira. Encontros, desencontros e (re)encontros da identidade religiosa de
matriz africana: a história de Cecília do Bonocô Onã Sabagi. 388f. Tese (Doutorado em Antropologia).
Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2009.
378
SOARES, 2009, p. 46-47.
114
corpo da tese que tenha usado alguma das produções sobre a vida e obra de Querino mais
recente e que apresenta uma leitura diferente daquela feita por Ramos.
Para Soares, Querino se revelou um ―sociólogo‖ e ―psicólogo‖, ao considerar o modo
como foi descrito por Arthur Ramos. A autora está se referindo à passagem em que Ramos
está apresentando o texto A Bahia de Outrora, quando afirma que Querino o escreveu ―sem
preocupações de sociólogo‖, mas que se tratava ―de um magnífico repositório de observações
de todo um passado da vida social baiana.‖379 Desse modo, a interpretação de Soares sugere
que Ramos, embora não tivesse reconhecido o trabalho de sociólogo efetuado por Querino, o
considerava importante ao adjetivá-lo como ―magnífico.‖
Nessa primeira edição de Costumes africanos no Brasil, Ramos compilou os textos
originais de Querino e acrescentou apenas algumas notas de rodapé que julgou
―indispensáveis à compreensão de certos pontos, hoje familiares aos afri-canólogos
brasileiros, mas que poderia lançar certa confusão no espírito dos leitores despreocupados.‖380
Com essas notas de rodapé, Ramos tentava efetuar um processo de atualização dos temas
tratados por Querino, indicando autores da época que traziam informações de pesquisas
recentes. Mas, por outro lado, aproveitava para divulgação de suas ideias, sugerindo a leitura
de seus livros e tecendo críticas a alguns pontos dos textos de Querino.
Vejamos algumas dessas notas. Na pagina 33, de Costumes Africanos no Brasil
encontra-se a nota de número 5. Nessa página, no segundo parágrafo, Querino faz um protesto
―contra o modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano, acoimando-o
constantemente de boçal, rude, como qualidade congênita de e não simples condição
circunstancial, comum, aliás, a todas as raças não evoluídas.‖381 Em nota, Ramos comenta:
Essa é a única nota em que o conteúdo da fala de Ramos toma aspecto de elogio, ao
chamar atenção do leitor para o fato de que Querino havia se posicionado contrário à ideia de
inferioridade racial do negro. Com isso, destaca o pioneirismo de Querino ao buscar
explicações de ordem social e cultural para compreender as experiências dos africanos no
Brasil. Ao destacar a insurgência de Querino contra o ―preconceito de inferioridade
379
RAMOS In: QUERINO, 2010, p. s/n.
380
Idem.
381
QUERINO, 2010, p. 33.
382
RAMOS In: QUERINO, 2010, p. 106.
115
antropológica‖ do africano, Ramos revela que Querino havia percebido, a seu modo, algo que
ganha especificidade com a influência da antropologia cultural. Por outro lado, esse ponto
levantado por Ramos tem forte ligação com a perspectiva teórica e metodológica de suas
obras. Ramos propôs a troca da noção de raça pela noção de cultura, influenciado pela
antropologia cultural norte-americana da década de 1930. Édison Carneiro comenta sobre a
mudança que ocorre no pensamento de Ramos em função dessa influência. Segundo
Carneiro383, no livro O negro no Brasil, publicado em 1934, Ramos ainda fala em ―raça‖ e
―fetichismo‖, que foram corrigidas na segunda edição de 1940.384
A questão da religiosidade africana foi o principal foco das notas de Ramos. Na nota
33385, por exemplo, Ramos se refere à afirmação de Querino de que ―o culto religioso aqui
professado pelos africanos era uma variante do sabeísmo.‖386 Ramos afirma que, ―sem
estudos etnográficos aprofundados, Manuel Querino avançou afirmações como esta, que não
correspondem à realidade.‖ Ramos critica a falta de aprofundamento dos estudos etnográficos,
mas não explicou por que a afirmação de Querino não correspondia à realidade e nem indicou
a leitura de nenhuma obra da época.
Na nota 50387, Ramos critica quando Querino afirma que ―o africano é espírita de
natureza e, como tal, provoca invocações.‖388 Segundo Ramos, essa ―é uma afirmação que
não pode ser generalizada. As práticas espíritas negro-brasileiras foram resultantes de um
sincretismo secundário.‖389 E de modo similar, ocorre na nota 65390, após Querino descrever o
processo de ―cair em santo‖ como é chamado por ele a possessão.391 Em nota, Ramos chama
de ―estado de santo‖ e sugere a leitura dos livros O animismo fetichista dos negros baianos,
de Nina Rodrigues, e de Negro brasileiro, de sua autoria, para o ―estudo científico‖ desse
assunto.392 Percebe-se, nessas notas, que Ramos segue a mesma lógica do prefácio ao tratar a
obra de Querino, perseguindo a ideia da falta de rigor científico, que observava nas
produções de Nina Rodrigues.
A segunda edição de Costumes africanos ocorreu em 1988, no contexto do centenário
da abolição da escravidão no Brasil. Os textos continuaram os mesmos da primeira edição,
383
CARNEIRO, Édison. Ursa Maior. Salvador: Centro Editorial e Didático da Universidade Federal da Bahia,
1980. p. 50.
384
RAMOS, Arthur. O Negro brasileiro: etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934.
385
RAMOS In.: QUERINO, Manuel R. Op., cit. p. 114.
386
QUERINO. 2010. p.49.
387
RAMOS In: QUERINO, Manuel R. Op., cit. p. 119.
388
QUERINO, Op., cit., 2010. p.59.
389
RAMOS In.: QUERINO, 2010, p. 119.
390
Ibid, p.123.
391
QUERINO, 2010, p. 71.
392
RAMOS In.: QUERINO, Manuel R. Op., cit. p. 123.
116
com acréscimos de um prefácio e de notas de Raul Lody393 e uma apresentação redigida por
Thales de Azevedo.394 No prefácio, Lody fez uma avaliação do texto de Querino, que merece
ser destacada aqui.
Manuel Querino nos seus escritos conseguiu reunir de maneira memorialista parcela
da vida social e cultural da Bahia, notadamente da cidade do São Salvador.
Como homem negro, de formação intelectual nos moldes exigidos à época, segundo
padrões europeus, especialmente franceses, não se afastou do cotidiano afro-
soteropolitano de um mundo marcado e indivisível de matrizes africanas e
portuguesas.
O olhar e a sensibilidade de Querino fizeram com que passasse para o papel um
vigoroso e rico registro etnográfico, embora sem a base teórica hoje exigida,
compreensível para uma época onde a literatura sobre esta área do saber era
395
parquíssima.
[...] com cor, emoção e estilo, momentos das festas populares, dos cortejos e autos,
dos alimentos, do candomblé de orixá e de caboclo, dos ―ganhos‖, dos tipos sociais,
das roupas e tudo mais que descortinou pelo cotidiano urbano do Salvador, e assim
396
foi vendo e anotando com sensibilidade e detalhamento humanista.
393
Raul Geovanni da Motta Lody é carioca, formado em Etnografia e Etnologia pelo Instituto de Antropologia
da Universidade de Coimbra. Tem doutorado em Etnologia pelo Instituto de Antropologia da Universidade
de Paris. É membro da Academia Brasileira de Belas Artes e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Lody tem estudos na área das religiões afro-brasileiras, especialmente na Bahia. Entre suas obras
destacamos: Santo Também Come (1979), Devoção e Culto a Nossa Senhora da Boa Morte (1981),
Artesanato: uma visão complexa (1985), Coleção Perseverança: um documento de Xangô alagoano
(1985), Um Documento do Candomblé na Cidade do Salvador (1985), Afoxé. Cadernos de Folclore
(1976), Pano da costa (1977), Tem Dendê, tem Axé, (1988) Pencas e Balangandãs da Bahia, Um estudo
etnográfico das jóias e amuletos (1988) O Povo de Santo (1995) Jóias de Axé (2001) Dicionário de Arte
Sacra e Técnicas Afro-Brasileiras, (2003) e Cabelos de Axé - identidade e resistência (2004).
394
Thales de Olympio Góes de Azevedo viveu entre 1904 a 1995, era baiano. Formado em Medicina, era
jornalista e professor de Antropologia e Etnografia. Seus principais textos são: Povoamento da cidade de
Salvador (1949), História do Banco da Bahia (1969), Italianos e gaúchos: os anos pioneiros da
colonização italiana no Rio Grande do Sul (1975), Italianos na Bahia e outros temas (1989), A Filha do
Alferes: nas redondezas das Guerras do Sul (1993), Os italianos no Rio Grande do Sul: cadernos de
pesquisa (1994).
395
LODY, Geovanni da Motta Raul. Prefácio da 2ª edição. In: QUERINO, Manuel Raymundo. Costumes
africanos no Brasil. 3. ed. Salvador: Eduneb, 2010. p. s/n.
396
LODY. Raul Geovanni da Motta. Prefácio da 2ª edição. In: QUERINO, Manuel Raymundo. 2010, p. s/n.
Aspas de Lody.
117
A nova edição – por muito que valha como homenagem a um dos desbravadores da
temática – justifica-se principalmente pela importância que a obra tem até o
presente. Todos os antropólogos, historiadores, sociólogos que trabalham a matéria
reconhecem o valor das contribuições de Querino, comentando-as, rejeitando-as ou
as adotando, dada sua consistência científica. Aquele centenário, qualquer que seja a
abordagem que receba, ganha nessa reedição um alto marco. É para esperar que tal
releitura por alguns e descoberta por muitos sirva para atualizar as discussões da
variedade de questões de permanente interesse científico e humano postas naquelas
399
páginas.
397
Idem.,
398
Idem.,
399
AZEVEDO, Thales. Apresentação. In: QUERINO, Manuel Raimundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed.
Salvador: Eduneb, 2010. p. s/n.
118
400
AZEVEDO In: QUERINO, 2010, p.27-28.
119
quadro da realidade, mas recorda e considera as determinações dos modos de vida, crenças e
mitos das estruturas sociais das terras de origem‖. Com isso, Azevedo está estabelecendo um
vínculo entre Querino e os africanos e considerando o próprio Querino portador de memórias
dos negros africanos, de crenças, mitos, das estruturas sociais do continente negro.
Essa postura de Querino, para Azevedo, resulta da utilização de um método que teria
assumido por intuição. Azevedo afirma que esse método revela uma percepção ―da medida
diacrônica, histórica, dos processos sociais e culturais, como estudioso e testemunha na
condição de participante sensível e militante da causa abolicionista.‖401 Essa afirmação de
Azevedo, por um lado, traz os termos ―estudioso e testemunha‖, ―participante‖ e ―militante da
causa abolicionista‖, que podem ajudar a entender em que sentido Azevedo considera o
tratamento de Querino como verdadeiro; por outro, os termos medida diacrônica e histórica,
que contribuem para pensar no Manuel Querino historiador.
Ao considerar Querino testemunha e participante dos processos sociais e culturais que
pesquisou, Azevedo estava valorizado o vínculo de Querino com os ancestrais africanos e o
próprio fato de ele ser afrodescendente, como elementos que caracterizam o seu tratamento
como verdadeiro. Considerando esse vínculo, Querino conseguiu ir além do retrato da
realidade, ao pesquisar os processos sociais e culturais dos negros africanos e seus
descendentes.
E ao se referir à ―medida diacrônica e histórica, na condição de testemunha,
participante, militante da causa abolicionista‖, Azevedo traz elementos para pensarmos o
Manuel Querino como historiador, mesmo sem se referir a ele usando esse termo. Ao usar
esses termos, Azevedo nos diz, nas entrelinhas, que Querino tinha preocupações de
historiador ao pesquisar o que chamou de processos sociais e culturais. E relacionando essa
preocupação de historiador esboçada por Querino aos termos ―estudioso‖, ―testemunha como
participante sensível‖, ―militante da causa abolicionista‖, temos uma noção do tipo de
historiador que Querino foi com base em Azevedo. Nesse caso, seria um historiador que se
debruçou sobre a história dos negros africanos na condição de estudioso e testemunha.
Após tratar dessa questão do método aplicado por Querino, Azevedo faz referência à
causa abolicionista da qual o considerava um militante. Segundo Azevedo, Querino teria
servido a essa causa no ―protesto e no empenho em mostrar as características e o valor da
mundivivência, bem como os motivos da luta em que se achavam seus irmãos pela herança
étnica.‖402 Em seguida, explica que,
401
Ibid, p. 28.
402
LODY In.: QUERINO, 2010, p. 28.
120
O despretensioso autor não assume falsos ares de teórico, mas se junge ao visto e
verificado e opina com experiência de observador reto, fixa aspectos essenciais dos
fenômenos que acompanhava: as divergentes características das culturas em contato
e confronto, as condições sociais do convívio das etnias, os condicionamentos da
404
escravatura, sobre as ocorrências, tendências das mudanças em marcha.
Em outros termos, Azevedo está dizendo que, mesmo tendo domínio daquilo que
podemos chamar de instrumentos intelectuais, Querino não tinha a pretensão de ser um
teórico. A explicação de Azevedo é a de que, na sua produção intelectual, Querino se junge,
ou seja, se submete ―ao visto e verificado.‖405 E essas informações coletadas nas entrevistas
com os próprios africanos e descendentes sobre a religiosidade, por exemplo, e na observação
das práticas nos terreiros possibilitavam verificar o que era dito: Querino ―opina com
experiência de observador.‖406 Para Azevedo, essa experiência de observador possibilitava a
Querino ―fixar aspectos essenciais dos fenômenos‖ acompanhados, tais como ―as divergentes
características das culturas em contato e confronto, as condições sociais do convívio das
etnias, os condicionamentos da escravatura, sobre as ocorrências, tendências das mudanças
em marcha.‖407
Como exemplo da percepção de Querino tinha desses ―aspectos essenciais‖, Azevedo
sugere que vejamos as indicações do autor ―sobre a origem dos africanos trazidos à Bahia,
403
Idem.
404
Idem.
405
LODY In.: QUERINO, 2010, p. 28
406
Idem.
407
Idem.
121
sobre o sincretismo nos domínios mítico e ritual, a importância que atribui a esse elemento
central da cultura, que é a religião.‖408 Além disso, segundo Azevedo, Querino, mesmo,
Nessa interpretação da obra Querino feita por Azevedo, nota-se uma defesa do seu
pioneirismo ao tratar de questões referentes à história dos negros africanos que,
posteriormente, foram tomadas como objeto de estudo por antropólogos, sociólogos e
historiadores.
Azevedo conclui afirmando que Querino foi um dos fundadores da antropologia
brasileira, uma vez que se antecipava, em suas observações, ―ao que a Antropologia
começava a dever a Taylor, a Boaz, a Kreober, a diversos pioneiros, e confirmava, com seus
dados e suas explicações.‖410 Azevedo dá ênfase à ideia da antecipação de Querino em suas
observações sobre as questões referentes às práticas religiosas, usos e costumes dos povos
africanos, que, posteriormente, foram estudadas por antropólogos, colocando-o na condição
de um dos fundadores da antropologia no Brasil.
Vinte e dois anos depois dessas duas edições, Costumes africanos no Brasil recebeu
sua terceira edição.411 Foi acrescentado apenas um prefácio escrito por Marluce Macêdo e
Wilson Roberto de Mattos412, que, ao iniciarem a descrição sobre Manuel Querino, o
caracterizam como ―intelectual negro baiano‖. Os autores justificam esta reedição afirmando
ser
408
Idem.
409
LODY In.: QUERINO, 2010, p 28.
410
Ibid. p. 28-29.
411
QUERINO, Manuel Raymundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed. Salvador: Eduneb, 2010.
412
Marluce Macêdo e Wilson Roberto de Mattos são professores da Universidade do Estado Bahia. Macêdo tem
doutorado em Educação e Contemporaneidade (UNEB). Atualmente exerce as funções de Pró-Reitora de
Ações Afirmativas e Coordenadora do Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos – CEPAIA. É
também Presidenta da Associação de Pesquisadores Negros da Bahia-APNB. Mattos é doutor em História
(PUC/SP) e tem pós-doutorado em História Comparada (UFRJ). É membro fundador da Associação
Brasileira de Pesquisadores Negros - ABPN.
122
Com isso, Macêdo e Mattos chamam atenção para uma questão importante com
relação às contribuições de negros intelectuais, como Querino, além de escritores, jornalistas,
artistas, poetas intelectuais negros contemporâneos para esse processo de reconfiguração dos
pressupostos teóricos que fundamentam a prática acadêmica e a formação de professores.
Portanto, nos propomos, nessa direção, estabelecer a relação entre a obra de Querino e a
história e cultura africana e afro-brasileira, conforme está disposto na Lei 10.639/03, alterada
pela Lei 11.645/2008.
Manuel Querino foi um dos pioneiros nos estudos sobre os negros africanos e seus
descendentes. Sua obra, bem como a sua interpretação do Brasil nas primeiras décadas do
século XX, iam de encontro aos estudos realizados por intelectuais consagrados de sua época.
Querino tratou das práticas, usos e costumes africanos, ressaltando a importância que tiveram
na formação da sociedade brasileira, enquanto seus contemporâneos, como Nina Rodrigues,
embora se preocupassem em estudá-los, os viam como um problema, um empecilho para o
desenvolvimento de uma civilização brasileira. Na interpretação feita por Querino, o africano
exerceu papel principal no processo de constituição do Brasil. A sua obra contribui para os
debates atuais sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana.
A valorização das contribuições dos africanos na formação do Brasil tem sido
reivindicada por negros desde o pós-abolição e ainda hoje é uma das pautas da população
negra no Brasil. Vários grupos da sociedade brasileira têm debatido sobre essa pauta e
pensado em medidas e estratégias a serem adotadas como forma de resolver a questão da
valorização, bem como de reparação das mazelas sofridas pelas populações negras, em função
do racismo no país, desde a escravidão aos dias de hoje.
Nesse sentido, tem-se pensado em Ações Afirmativas como políticas públicas voltadas
a essa população para garantir a ela o acesso à educação de nível superior e um lugar no
mercado de trabalho. O sistema de cotas tem sido uma das melhores formas de promover
413
MACEDO e MATTOS In.: QUERINO, Op. cit., p. s/n.
123
esses acessos, na medida em que uma porcentagem das vagas nas universidades é destinada
aos negros, possibilitando-lhes acesso à formação superior.
Nesse caminho, encontra-se a Lei nº 10.639, sancionada em 2003, que obriga a
inclusão de conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e africana no currículo
escolar da Educação Básica. Em 2008, essa Lei foi alterada pela Lei nº 11.645, acrescentando
os povos indígenas.414 Por um lado, a lei e o sistema de cotas para negros representam
importantes conquistas dos movimentos negros e resultam de um longo processo de lutas e
reivindicações.415 Por outro, desafia os profissionais da área de educação a refletirem sobre as
formas de aplicação da lei no cotidiano escolar.
Mas antes de discutirmos sobre as formas de aplicação desta lei, é preciso
compreendê-la na trajetória das populações negras no Brasil. Esse grupo tem enfrentado a
discriminação racial e os problemas sociais dela decorrentes, como miséria, violências e
desigualdade social, desde o período colonial, seja na condição de escravos ou livres, até os
dias atuais. Contudo, esse percurso é marcado pela resistência, por lutas e enfrentamentos, e
pequenas conquistas individuais e coletivas.
Durante o sistema escravista, os negros criaram estratégias de negociação, resistências
e lutas contra essa discriminação das mais variadas formas, desde revoltas, fugas, suicídio,
constituição de quilombos, entre outras formas de enfrentamento. A abolição não representou
o fim desses problemas, muito menos a inclusão desses indivíduos na sociedade brasileira. Ao
contrário disso, o negro representava um problema para o Estado brasileiro, na interpretação
de membros das elites intelectuais, desde o pós-abolição. Uma das posturas do Estado foi
apostar no branqueamento da população. Para tanto, foi incentivada a entrada, no território
brasileiro, de europeus para suprir a necessidade de mão de obra. Escritores como Silvio
Romero chegaram a afirmar que esse processo de branqueamento, caracterizado como
eugenia, levaria 200 anos.
Muito tempo se passou desde essa afirmação de Romero e o contingente de negros e
mestiços que compõem a população brasileira continou crescente. A maioria dos indivíduos
414
Ao longo deste texto nos reportaremos a Lei nº 10.639/2003 pelo fato de nossa reflexão dar ênfase à história e
cultura afro-brasileira e africana.
415
Cf. PEREIRA, Amilcar Araujo. A Lei 10.639/03 e o movimento negro: aspectos da luta pela ―reavaliação do
papel do negro na história do Brasil‖ – DOI: 10.5752/P.2237-8871.2011v12n17p25. Cadernos de História,
Belo Horizonte, v. 12, n. 17, p. 25-45, maio 2012. ISSN 2237-8871. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoshistoria/article/view/P.2237-8871.2011v12n17p25>.
Acesso em: 02 nov. 2015. doi: 10.5752/P.2237-8871.2011v12n17p25. SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei
nº 10.639/2003 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. In: Educação anti-racista: caminhos
abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 / Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. –
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p.
21-37.
124
que compõem a parcela da população negra vive os reflexos daquelas políticas excludentes
adotadas pelo Estado, reflexos das práticas racistas que influenciavam as relações entre os
indivíduos na sociedade. Portanto, as populações negras resistiram e têm sobrevivido desde
então, na luta cotidiana por seus direitos, na melhoria das condições de vida.
No pós-abolição, essa luta foi travada por negros intelectuais como Querino, que, ao
terem acesso à educação, se utilizavam da imprensa como forma de denunciar os problemas
enfrentados pelos indivíduos de cor, ou na composição de associações, de grupos de caráter
político. E ao longo da história do Brasil, em diversas partes do país, surgiram vários
movimentos sociais negros com objetivos e estratégias de lutas, mas apresentando como
característica comum o combate ao racismo.
Um dos grupos que marcaram a história dos movimentos negros no Brasil foi a Frente
Negra Brasileira (FNB). Fundada em 1931, em São Paulo, reivindicava os direitos sociais e
políticos dos negros. Segundo Petrônio Domingues416, a organização político-administrativa
desse grupo era complexa e diversificada, havia centralização do poder e predominava uma
rígida estrutura hierárquica. No decorrer de sua trajetória, a agremiação teve dois presidentes.
Era composta por indivíduos que, em sua maioria, eram de origem humilde, como
funcionários públicos, trabalhadores de cargos subalternos e de serviços braçais. 417 Uma das
questões centrais da atuação desse grupo foi a defesa da educação para os negros, vista como
um dos caminhos de resistência contra o racismo.
Outro movimento importante foi o Teatro Experimental do Negro (TEN). Este grupo
foi fundado por Abdias Nascimento em 1944. A proposta do TEN, segundo o próprio Abdias
Nascimento, era o resgate de
416
DOMINGUES, Petrônio. Um ―templo de luz‖: Frente Negra Brasileira (1931-1937) e a questão da educação.
Revista Brasileira de Educação. v. 13 n. 39 set./dez. 2008. p. 517-596. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v13n39/08.pdf. Acesso em: 10 out. 2015.
417
DOMINGUES, Petrônio. 2008, p. 521.
418
NASCIMENTO, Abdias. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões . Estudos Avançados, São
Paulo, v. 18, n. 50, p. 209-224, abril 2004. ISSN 1806-9592. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9982>. Acesso em: 31 out. 2015. doi:
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000100019.
125
Com esse intuito, foi formado um elenco composto por uma gama diversificada de
indivíduos. Eram operários, empregadas domésticas e favelados sem profissão definida.419
Alguns deles eram analfabetos, para tanto foi criado um curso de alfabetização para que eles
pudessem ler os textos das peças.
Segundo Nascimento,
[...] em que havia no Brasil uma pressão crescente da sociedade civil pela
redemocratização do país e pelo fim da Ditadura Militar. A discriminação racial de
três atletas do time juvenil do clube Tietê e a morte de um homem negro dentro de
uma delegacia geraram um sentimento de revolta que culminou com um ato público
em São Paulo no qual se deu a fundação do Movimento Unificado Contra
Discriminação Racial (MUCDR).421
Segundo Domingues, o MUCDR teve seu nome simplificado para Movimento Negro
Unificado (MNU).422 Para este autor, o nascimento do MNU
419
Ibid, p. 211.
420
Ibid, p. 223.
421
SILVA, Marcelo Leolino da. A História no discurso do Movimento Negro Unificado: os usos políticos da
História como estratégia de combate ao racismo.132f. Dissertação de Mestrado (em História). Programa de
Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. 2007. p. 40.
422
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Niterói, v.
12, n. 23, p. 100-122, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_pdf&pid=S1413-
77042007000200007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 30 out. 2015.
423
Ibid, p.124.
126
424
SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei nº 10.639/2003 como fruto da luta anti-racista do Movimento Negro. In:
Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/2003/Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 21-37.
425
Ibid, p. 24.
426
Idem,.
427
SANTOS, 2005, p. 25-26.
127
aprovação da Lei, Macêdo e Mattos, no prefácio que escreveram para a terceira edição de
Costumes africanos no Brasil, levantaram um ponto importante. Os autores afirmam que
428
MACÊDO, Marluce de Lima; MATTOS, Wilson Roberto de. Prefácio da 3ª Edição. In: QUERINO, Manuel
Raimundo. Costumes africanos no Brasil. 3. ed. Salvador: Eduneb, 2010. p. s/n.
128
Como exemplo de negros que passaram por essa situação em suas trajetórias
intelectuais, Silva430 lista os nomes de Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Solano
Trindade, mas o nome de Querino pode ser acrescentado a eles. Em sua trajetória, Querino
exerceu diversas funções (professor, intelectual, artista, político, funcionário público) e
ocupou diferentes lugares sociais. Quando funcionário da Secretaria de Agricultura, Viação,
Indústria e Obras Públicas, teve uma passagem
[...] marcada por perseguições de cunho político, o que lhe provocou a permanência
no cargo de 3o oficial, sem conseguir promoção. Segundo Gonçalo de Athayde
Pereira, companheiro de repartição que escreveu sobre a sua trajetória, Querino teria
sido, em função de reforma administrativa de 1916, colocado à disposição, com a
garantia dos vencimentos integrais, o que significou o seu afastamento do serviço
público e dedicação exclusiva ao magistério, ao Instituto Geográfico e Histórico da
431
Bahia e à produção de conhecimento.
429
SILVA, Rosemere Ferreira da. Trajetórias de dois intelectuais negros brasileiros: Abdias Nascimento e
Milton Santos. 2010. 233f. Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos) Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. 2010. p. 62-63.
430
Idem.
431
LEAL, Maria das Graças de Andrade. Manuel Querino entre letras e lutas – Bahia: 1851-1923. São Paulo:
Annablume, 2009. p. 96.
129
brasileira, os negros intelectuais ainda enfrentam nos dias atuais preconceito de cor e têm suas
trajetórias marcadas pela cor da pele e situação de classe. Silva, ao estudar a trajetória de dois
intelectuais negros brasileiros, Abdias Nascimento e Milton Santos, mostra como foram
marcados pelo preconceito de cor.
O medo deles era que não seria conveniente que um negro fosse presidente de uma
associação tão importante, porque ele iria ter dificuldade de discutir com as
435
autoridades. E eu, menino, tolo e inexperiente, acabei perdendo a eleição.
Este foi um dos episódios entre os muitos vividos por Milton Santos. Trata-se de uma
realidade vivenciada por um intelectual negro contemporâneo. No tempo de Querino, esse
432
SILVA, Rosemere Ferreira da. Op. cit., 2010, p. 63.
433
Ibid, p. 61.
434
SILVA, Rosemere Ferreira da. Op. cit., 2010, p. 61.
435
SANTOS, Milton, 2006, p. 4 apud SILVA, 2010, p. 64.
130
436
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e História e Cultura Afro-
brasileira e Africana, p. 22.
131
Nesse sentido, a obra de Querino pode ser levada para sala de aula e incorporada ao
material do professor como fonte de estudo da história e cultura africana e afro-brasileira, uma
vez que ela, do ponto de vista do conteúdo, corresponde ao que a Lei nº 10.639/2003
determina.
437
Na lista, aparecem os seguintes nomes: ―Zumbi, Luiza Nahim, Aleijadinho, Padre Maurício, Luiz Gama, Cruz
e Souza, João Cândido, André Rebouças, Teodoro Sampaio, José Correia Leite, Solano Trindade, Antonieta
de Barros, Edison Carneiro, Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Milton Santos, Guerreiro Ramos, Clóvis
Moura, Abdias do Nascimento, Henrique Antunes Cunha, Tereza Santos, Emmanuel Araújo, Cuti, Alzira
Rufino, Inaicyra Falcão dos Santos, entre outros‖. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
438
LEI nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003.
132
na condição de colonizadores e civilizadores. Isso nos mostra que a preocupação com relação
ao reconhecimento da participação dos negros na história do Brasil e as tentativas para a
construção de uma imagem positiva destes sujeitos não correspondem a uma inquietação
restrita aos contemporâneos. Ao ler o texto de Querino, percebe-se essa preocupação
esboçada desde o início do século XX.
Acreditamos que a leitura do texto O colono preto como fator de Civilização
brasileira possa ser feita pelo estudante das séries finais da Educação Básica na disciplina
História ou em atividades que se proponham tratar da história e cultura afro-brasileira e
africana.
Porém, a leitura desse texto por parte desses estudantes deve ser estimulada e
orientada pelo professor, conforme sua escolha metodológica. É preciso que os estudantes
façam uma leitura crítica e contextualizada do texto de Querino.
Além disso, em decorrência da diversidade dos assuntos abordados em O colono
preto como fator de Civilização brasileira e do tema de interesse do professor, a leitura
pode ser feita de uma parte específica. Neste texto, Querino faz uma síntese da história da
sociedade brasileira em seis capítulos, cuja principal preocupação é demonstrar o
protagonismo dos negros africanos nesse processo, começando com uma descrição do início
do processo de colonização do Brasil no século XVI. Nessa descrição, Querino desqualificou
a ação colonizadora portuguesa. Em seguida, trata da chegada dos africanos arrancados do
continente negro. Nos capítulos seguintes, mostra, de foram gradual, como as reações dos
africanos no cativeiro, desde as primeiras ideias de liberdade, suicídios, violências cometidas
contra senhores, passando pelas resistências coletivas como as fugas, constituições de
quilombos, juntas de alforrias e terminado com a defesa de que esses indivíduos
influenciaram na vida familiar brasileira e enfatizando os descendentes notáveis dos povos
africanos no Brasil. Portanto, nesse texto, Querino trata de colonização, de tráfico de
escravos, escravidão. Caso o professor tenha interesse em trabalhar um desses assuntos em
específico, pode encontrar em Querino uma interpretação que pode suscitar debates e
reflexões importantes em sala de aula sobre a história dos negros no Brasil.
Com relação à cultura africana e afro-brasileira a que se refere à Lei 10.639/2003, o
texto A raça africana e seus costumes na Bahia é uma das obras que têm elementos
interessantes para se trabalhar essa temática, embora Querino não tenha usado o termo
cultura, o que chamou de usos e costumes africanos. Neste texto, Querino apresenta um
conjunto significativo de práticas culturais dos africanos com riqueza de detalhes.
133
CONSIDERAÇÕES FINAIS
intelectualidade brasileira das primeiras décadas do século XX, faz-se necessário inserir seu
nome entre os intelectuais brasileiros reconhecidos como referência para a escrita da história
do Brasil. A obra de Querino é pouco lida na academia atualmente, embora muitos estudiosos
da história dos negros no Brasil reconheçam seu pioneirismo junto a Nina Rodrigues, a
importância de sua obra para estudos sobre várias temáticas, religiosidade, cultura, culinária,
artes, artistas, os africanos e descendentes, entre outros.
Querino foi um ―negro intelectual‖ que discutiu os negros em seus textos de uma
forma que ia de encontro àquela conduzida por autores como Nina Rodrigues, com base no
modelo racialista em vigor. Diferentemente, Querino afirmou e positivou a presença africana
e de seus descendentes na formação da nação brasileira. Essa é uma das distinções entre
Querino e os intelectuais de seu tempo. É possível que, pelo fato de ser negro, apresentar tal
posicionamento em suas produções, valorizando as experiências de sua gente, tenha sido uma
das razões que motivaram as críticas e comentários, já que seu texto não carecia de rigor
metodológico.
Esse trabalho se inclui aos estudos mais recentes sobre a produção intelectual de
Querino, com o objetivo de divulgar as obras desse autor, de estimular sua leitura e de obras
de outros negros. Além disso, estudos como o que apresentamos podem contribuir para
debates atuais a respeito do lugar dos negros e suas produções na academia, sobre políticas
públicas de combate a práticas racistas.
Assim, uma vez que reconheçamos a importância da obra de Manuel Querino, suas
contribuições para a história do Brasil, história da cultura africana e afro-brasileira, torna-se
necessária a inclusão do seu nome entre os autores que são referência para esses estudos e que
seja feita uma análise crítica das leituras e comentários que foram feitos a seu respeito e sobre
sua obra.
Portanto, a produção intelectual de Querino deve ser encarada como um conjunto de
fontes para pesquisa histórica sobre diversos temas, desde a história da Bahia, história da
cultura africana, da religiosidade, da arte, dos artistas, e dos trabalhadores no final do século
XIX e início do XX.
137
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