Resenha O Mez Da Grippe

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Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários UFPR

Resenha apresentada à disciplina de “Redes Literárias Nômades”


Prof.: Isabel Jazinski Abril/junho 2021 Mestranda: Luciana Cañete Madeira

A comunidade da epidemia: reedição de “O Mez da Grippe” de Valêncio


Xavier

“Um homem eu caminho sozinho


Nesta cidade sem gente
As gentes estão nas casas
A grippe.”

O trecho citado aparece logo no início da obra do escritor, jornalista e


fundador da cinemateca de Curitiba, o vanguardista Valência Xavier, e cabe
como uma luva na descrição da atual situação da capital paranaense, apesar
de transcorridos 40 anos da publicação da obra e mais de um século do tempo
no qual se passa a narrativa: a Curitiba de 1918, tomada pela epidemia de
gripe espanhola. Porém, no mesmo trecho, não passa desapercebida a grafia
arcaica da palavra gripe com dois pês, e são essas marcas sutis que
constroem um estranhamento anacrônico que permeará todo o texto.
O livro, publicado em 1981, bebe inegavelmente em fontes
vanguardistas – como a ideia de ready-made, plasmada e iconizada pela obra
“A fonte” de Duchamp –, ao constituir-se de diversas formas literárias (cartas,
poemas, diário) e não-literárias (notícias de jornais, boletins sanitários, tabelas
de dados, anúncios publicitários) para formar um amalgama narrativo
desconcertante e singular. A obra, escrita em formato de diário, contempla os
três meses finais do ano de 1918, quando a epidemia de gripe espanhola
chegou às terras paranaenses trazida por imigrantes sírios que moravam na
então capital brasileira, o Rio de Janeiro. A reedição do livro em 2020, pela
curitibana Arte e Letra, lança luz sobre a literatura como costura também da
ideia de comunidade, e nesse sentido, da comunidade como nos traz Blanchot
em “A comunidade inconfessável”: a vivência da morte tida como a experiência
comunitária por excelência. A realidade da epidemia de 1918 nos coloca em
comunhão comunitária, por meio da doença e da morte, com a Curitiba de
2020, através dessa literatura feita de “não-literatura” que instaura uma
narrativa-kinema, para usar o termo de Luci Collin no texto de contracapa da
mais recente edição da obra. O que aqui, há mais de um século, se viu é o que
se vê agora, e se distingue do hoje quase que somente pelo uso da ortografia
arcaica e pelas cifras reduzidas, constituindo com isso identidade de uma
Curitiba que viaja através do tempo e se reencontra consigo mesma.
À exceção de seu nome na capa, Valêncio Xavier não se preocupa em
“sujar de autoria” sua obra, porque no pacto que se estabelece ao ingressar na
narrativa, não há intenção alguma de distinguir claramente o que é autoral ou
apropriação, num jogo detetivesco de imaginação que, se por um lado instiga,
por outro não se configura como único caminho de leitura que valorize a
narrativa. Ou seja, saber a autoria de cada trecho – se de fonte jornalística ou
reprodução ficcional de um texto jornalístico, se anúncio publicitário de época
(por exemplo, do xarope Bromil) ou criação valenciana, se depoimento real ou
ficcional de Dona Lúcia – não se configura como questão-chave. Permitir-se
viajar no tempo e espaço por meio de um fio narrativo disforme, inconstante e
nada homogêneo, exigindo do leitor fôlego interpretativo para flanar entre o
anúncio funerário e o poema erótico sem desfazer-se do ambiente epidêmico
de 1918, parece ser, este sim, o grande trajeto que a obra propõe ao ser lida
em 2020 ou 2021.
Além de “restaurar” a literatura paranaense e devolvê-la ao público,
profanando agambianamente o lugar sagrado que o livro de Valêncio Xavier
havia adquirido (os exemplares antigos chegavam a custar 300 reais), a
reedição de 2020 cria uma ponte temporal que amplifica e reverbera a Curitiba
de 1918. Dessa forma, a cidade passa a configurar um espaço comum que une
não só o leitor de qualquer parte do Brasil no atual momento, mas de qualquer
lugar do mundo, caso por meio de traduções a obra transpusesse fronteiras.

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