Senhor Das Moscas - William Golding
Senhor Das Moscas - William Golding
Senhor Das Moscas - William Golding
DE ODINRIGHT
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Sobre nós:
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Converted by ePubtoPDF
© William Golding, 1954
Todos os direitos desta edição reservados à
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Rio de Janeiro — RJ — Cep: 22241-090
Tel.: (21) 2199-7824 — Fax: (21) 2199-7825
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Título original
Lord of the Flies
Capa
Retina_78
Imagem de capa
© Gary John Norman / Getty Images
Revisão
Cristiane Pacanowski
Ana Kronemberger
Taís Monteiro
Coordenação de e-book
Marcelo Xavier
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Sumário
Dedicatória
Capítulo um
O som da concha
Capítulo dois
Fogo na montanha
Capítulo três
Cabanas na praia
Capítulo quatro
O monstro da água
Capítulo seis
O monstro do ar
Capítulo sete
Até a morte
Capítulo dez
A concha e os óculos
Capítulo onze
A Pedra do Castelo
Capítulo doze
Ao pé do outro lado da montanha ficava uma plataforma de floresta. Mais uma vez,
Ralph surpreendeu-se fazendo o mesmo gesto com as mãos em concha.
“Ali, a gente pode pegar toda a lenha que quiser.”
Jack concordou com a cabeça e beliscou o lábio inferior. A partir de mais ou
menos trinta metros abaixo do ponto onde estavam, na encosta mais íngreme da
montanha, aquele trecho podia ter sido posto ali especialmente para fornecer-lhes
madeira. As árvores, oprimidas pelo calor úmido, encontravam um solo escasso
demais para lhes permitir um crescimento pleno, caíam cedo e apodreciam: eram
cobertas por trepadeiras e cipós, e novos rebentos procuravam um lugar para se
desenvolver.
Jack virou-se para os meninos do coro, que estavam a postos. Usavam seus
barretes pretos caídos sobre uma das orelhas, como se fossem boinas.
“Vamos empilhar essa lenha.”
Encontraram o melhor caminho de descida e começaram a recolher pedaços
das árvores mortas. E os meninos menores que tinham chegado ao alto do morro
também desceram escorregando para lá, até que todos os garotos, menos Porquinho,
estavam envolvidos no trabalho. A maior parte da madeira caída estava tão podre
que, quando tentavam pegá-la, desfazia-se numa chuva de fragmentos, insetos e pó;
mas alguns dos troncos continuavam inteiros. Os gêmeos, Sam e Eric, foram os
primeiros a localizar uma bela tora, mas não conseguiram fazer nada com ela até
Ralph, Jack, Simon, Roger e Maurice arranjarem espaço para agarrar também o
tronco. Então foram empurrando centímetro a centímetro a grotesca árvore morta
morro acima, até estendê-la no topo da montanha. Cada grupo de meninos ia
acrescentando uma contribuição, menor ou maior, e a pilha crescia. De volta aos
troncos, Ralph viu-se sozinho num galho com Jack e os dois trocaram um sorriso,
dividindo o peso da carga. Mais uma vez, em meio ao vento, aos gritos, à luz
inclinada do sol no alto da montanha, difundia-se aquele encantamento, aquela luz
estranha e invisível da amizade, da aventura e da satisfação.
“Quase pesado demais.”
Jack sorriu de volta.
“Não para nós dois.”
Juntos, congregados no esforço pelo peso da carga, subiram lentamente o
trecho final da montanha. Juntos, contaram “Um! Dois! Três!” e jogaram o galho na
pilha de lenha. Então deram um passo atrás, rindo de triunfo e prazer, de modo que
Ralph precisou imediatamente plantar uma bananeira. Abaixo deles os meninos
ainda se esforçavam, embora alguns dos menores tivessem perdido o interesse pela
fogueira e saído pela floresta desconhecida à procura de frutas. Em seguida os
gêmeos, demonstrando uma inteligência que nem aparentavam, chegaram ao alto da
montanha trazendo braçadas de folhas secas, que jogaram em cima da pilha. Um a
um, à medida que iam sentindo que a fogueira estava pronta, os meninos paravam
de voltar a descer em busca de mais lenha e ficavam parados, tendo ao redor o topo
da montanha, rosado e fragmentado. A respiração voltou a ficar regular, e o suor
secou.
Ralph e Jack trocaram um olhar quando o grupo todo parou para descansar à
volta deles. A descoberta constrangedora foi tomando corpo nos dois, e não sabiam
como confessar seu erro.
Foi Ralph quem falou primeiro, com as faces muito vermelhas.
“Você primeiro?”
Limpou a garganta e continuou.
“Você acende o fogo?”
Agora que a situação absurda se revelava, Jack também corou. E começou a
murmurar vagamente.
“A gente esfrega dois pauzinhos. Esfrega—”
Olhou para Ralph, que deixou escapar a admissão final de incompetência.
“Alguém tem fósforos?”
“A gente fabrica um arco e faz a flecha girar”, disse Roger. E esfregou as mãos,
imitando o processo. “Psss. Psss.”
O ar se deslocava por sobre a montanha. Porquinho chegou com a brisa, de
cueca e camisa, avançando laboriosamente para fora da floresta com o sol da tarde a
refulgir nos seus óculos. Trazia a concha debaixo do braço.
Ralph gritou para ele.
“Porquinho! Você tem fósforos?”
Os outros meninos começaram a repetir a pergunta, até a montanha inteira
ressoar: Porquinho abanou a cabeça e se aproximou da fogueira.
“Caramba! Vocês empilharam todo esse monte de lenha?”
De repente, Jack apontou.
“Os óculos dele — a gente pode usar a lente!”
Porquinho se viu cercado antes que conseguisse recuar.
“Me larga!” Sua voz adquiriu o tom de um grito de terror quando Jack
arrancou os óculos do seu rosto. “Para com isso! E me devolve aqui! Não estou
enxergando nada! Vocês vão quebrar a concha!”
Ralph afastou-o para o lado com o cotovelo, e ajoelhou-se ao lado da fogueira.
“Saia da luz.”
Empurrões, puxões, e gritos. Ralph deslocava as lentes de um lado para o outro,
para a frente e para trás, até uma imagem concentrada e muito luminosa do sol
aparecer num pedaço de madeira podre. Quase na mesma hora, um filete de fumaça
se ergueu e o fez começar a tossir. Jack se ajoelhou também, soprando de mansinho,
a fumaça começou a se afastar para um lado, cada vez mais densa, e uma pequena
chama apareceu. As chamas, de início quase invisíveis à luz clara do sol, logo
engolfaram um graveto mais fino, cresceram, assumiram cores mais ricas e
alcançaram um galho que explodiu com um estalo seco. As chamas adejaram mais
altas e os meninos prorromperam em vivas.
“Meus óculos!”, berrou Porquinho. “Devolve os meus óculos!”
Ralph se afastou da fogueira e pôs os óculos nas mãos ávidas de Porquinho,
cuja voz se reduziu a um murmúrio:
“Tudo borrado, só isso. Eu mal conseguia ver a minha mão—”
Os meninos dançavam. A lenha estava tão apodrecida, e tão seca, que toras
inteiras eram devoradas pelas chamas amarelas, que se lançavam para o alto e faziam
uma imensa barba de chamas sacudir-se até cinco metros de altura. Por vários
metros, a toda volta, o calor era como uma pancada, e a brisa se transformava numa
torrente de fagulhas. Troncos se desfaziam em pó branco.
Ralph gritou.
“Mais lenha! Vocês todos, tragam mais madeira!”
A vida virou uma corrida contra o fogo, e os meninos se espalharam pelos
trechos mais altos da floresta. Manter uma bandeira de fogo drapejando no alto da
montanha era o objetivo imediato, e ninguém pensava em mais nada. Mesmo os
meninos menores, quando não estavam atrás de frutas, traziam pedaços de lenha
que jogavam no fogo. A brisa ficou um pouco mais intensa e se transformou num
vento fraco, surgindo uma diferença clara entre os lados a favor e contra o vento. De
um lado o ar estava fresco, mas do outro o fogo estendia um braço enfurecido de
calor que esturricava os cabelos no mesmo instante. Os garotos que sentiam o vento
do entardecer no rosto úmido foram parando para aproveitar seu frescor e então
descobriram que estavam exaustos. Lançavam-se ao chão em meio às sombras que se
distribuíam pelas pedras espalhadas. A barba de fogo logo diminuiu; e em seguida a
fogueira desabou para dentro com um som abafado e cinéreo, lançando para cima
um jorro de fagulhas que foi se afastando aos poucos, levado pelo vento. Os
meninos ficaram ali parados, ofegando como cachorros.
Ralph levantou a cabeça que tinha apoiado nos antebraços.
“Não adiantou muita coisa.”
Roger cuspiu com eficiência no pó quente.
“O que você quer dizer?”
“Não fez muita fumaça — só fogo.”
Porquinho tinha se instalado no espaço entre duas pedras, sentado com a
concha nos joelhos.
“A gente nem fez uma fogueira que preste”, disse ele. “A gente podia tentar
quanto quisesse que não ia conseguir manter aceso um fogo como esse.”
“Até parece que você estava tentando”, disse Jack com ar de desprezo. “Só ficou
aí sentado.”
“A gente usou os óculos dele”, lembrou Simon, espalhando o negrume do seu
rosto com o antebraço. “Foi esse o jeito dele ajudar.”
“A concha está comigo”, replicou Porquinho, indignado. “Vocês precisam me
deixar falar!”
“A concha não faz diferença no alto da montanha”, disse Jack, “e pode ir
calando a boca”.
“A concha está na minha mão.”
“Galhos verdes”, disse Maurice. “É a melhor maneira de fazer fumaça.”
“A concha—”
Jack virou-se, furioso.
“Cala a boca!”
Porquinho murchou. Ralph tirou a concha das suas mãos e correu os olhos pelo
círculo de garotos.
“A gente precisa ter pessoas encarregadas de cuidar da fogueira. Qualquer dia
um navio pode aparecer” — gesticulou com o braço na direção do fio tenso do
horizonte — “e, se a gente tiver um sinal aceso, eles encostam pra nos resgatar. E
mais uma coisa. A gente precisa de mais uma regra. Aonde a concha vai, está
acontecendo uma reunião. Tanto aqui em cima como lá embaixo”.
Todos concordaram. Porquinho abriu a boca para falar, percebeu o olhar de
Jack e fechou-a de novo. Jack estendeu as mãos para pedir a concha e se levantou,
segurando o objeto delicado nas mãos sujas de fuligem.
“Concordo com Ralph. A gente precisa de regras, e precisa obedecer as regras.
Afinal, não somos selvagens. Somos ingleses; e os ingleses são os melhores do
mundo em tudo. Por isso, a gente precisa fazer as coisas do jeito certo.”
Virou-se para Ralph.
“Ralph — vou dividir o coro — quer dizer, os meus caçadores — em grupos, e
a gente se responsabiliza por manter o fogo aceso—”
A generosidade provocou aplausos esparsos dos meninos, e Jack lhes dirigiu um
sorriso, acenando em seguida com a concha para pedir silêncio.
“Agora a gente deixa a fogueira queimar até o fim. De qualquer maneira,
ninguém ia enxergar a fumaça de noite. E a gente pode acender uma outra na hora
que a gente quiser. Os contraltos cuidam de manter o fogo aceso esta semana, e os
sopranos, na semana que vem—”
A assembleia assentiu, com ar compenetrado.
“E a gente também cuida de vigiar. Se alguém enxergar um navio passando por
ali” — e todos seguiram com os olhos a direção de seu braço ossudo — “cobre a
fogueira de galhos verdes. Aí a fumaça aumenta”.
Olharam fixamente para o azul denso do horizonte, como se alguma silhueta
pudesse surgir ali a qualquer momento.
No oeste, o sol era um globo de ouro ardente que se aproximava cada vez mais
do limiar do mundo. Imediatamente, todos perceberam que a noite seria o fim da
luz e do calor.
Roger pegou a concha e correu os olhos em volta com um ar preocupado.
“Estava olhando para o mar. Nem sinal de navio nenhum. Pode ser que
ninguém apareça pra salvar a gente.”
Um murmúrio se ergueu e foi levado embora. Ralph recuperou a concha.
“Eu disse que em algum momento vão aparecer pra buscar a gente. A gente
precisa esperar; só isso.”
Com uma ousadia indignada, Porquinho pegou a concha.
“Foi o que eu disse! Falei da reunião, e tudo, mas aí vocês me mandaram calar a
boca—”
Sua voz foi afinando enquanto assumia o tom choroso de recriminação. Os
outros se agitaram e começaram a gritar para ele parar de falar.
“Você disse que queria uma fogueira pequena, mas aí eles foram e construíram
uma fogueira do tamanho de uma pilha de feno. Sempre que eu digo alguma coisa”,
gritou Porquinho, com um realismo amargo, “vocês me mandam calar a boca; mas
quando Jack, Maurice ou Simon—”
Fez uma pausa no meio do tumulto, de pé, olhando para além dos outros e
para a encosta mais íngreme da montanha, na direção do trecho onde tinham
encontrado tantas árvores mortas. E então soltou um riso tão estranho que todos se
calaram, olhando espantados para o clarão que se refletia em seus óculos. E olharam
na mesma direção que ele, para constatar o motivo de sua amarga ironia.
“Fizeram mesmo uma fogueira bem pequena.”
A fumaça subia aqui e ali em meio aos cipós que pendiam das árvores mortas
ou quase mortas. Enquanto todos olhavam, uma chama brotou no pé de um cipó
seco e a fumaça ficou mais espessa. Pequenas chamas se agitavam na base do tronco
de uma árvore e se espalharam pelas folhas e o mato baixo, multiplicando-se e
aumentando de intensidade. Um risco de fogo atingiu uma árvore e escalou seu
tronco como um esquilo luminoso. A fumaça aumentou, agitou-se, começou a se
espalhar. O esquilo pulou nas asas do vento e saltou para o tronco de outra árvore de
pé, devorando-a de cima para baixo. Por baixo do dossel escuro de folhas e fumaça o
fogo tomou conta da floresta e começou a consumi-la. Uma quantidade imensa de
fumaça negra e amarela se deslocava agora na direção do mar. Diante da visão das
chamas e do avanço irresistível do fogo, os meninos começaram a gritar vivas agudos
e animados. As chamas, lembrando um animal selvagem, arrastavam-se com a
barriga no chão como uma onça na direção das árvores novas que se erguiam numa
ponta de pedra rosada. Atingiram a primeira delas, e seus galhos se transformaram
numa efêmera copa de fogo. O coração da chama se atirava com agilidade de árvore
em árvore, e em seguida se espalhou, aos saltos e clarões, por todas elas. Abaixo dos
meninos que ainda pulavam, mais de quinhentos mil metros quadrados de floresta
eram assolados pela fumaça e pelo fogo. Os ruídos que o fogo produzia foram se
combinando num rufar de tambores que parecia abalar toda a montanha.
“Uma fogueira bem pequena mesmo.”
Assustado, Ralph percebeu que os meninos se calavam e paravam de se agitar,
sentindo chegar o medo das forças que tinham desencadeado pouco abaixo de onde
se encontravam. Essa ideia, e o medo, o deixaram furioso.
“Cala a boca!”
“A concha está comigo”, disse Porquinho, com uma voz magoada. “Eu tenho o
direito de falar.”
Todos o fitaram com olhos desprovidos de interesse pelo que viam, a atenção
concentrada nos tambores do fogo. Porquinho olhou nervoso na direção do
incêndio e segurou a concha mais perto do corpo.
“Agora a gente precisa deixar queimar. E lá se vai a nossa lenha.”
Lambeu os lábios.
“A gente não pode fazer nada. Mas devia tomar mais cuidado. Estou com medo
— “
Jack desviou os olhos do fogo.
“Ora, você está sempre com medo — Gorducho!”
“A concha está comigo”, disse Porquinho em tom de desânimo. Virou-se para
Ralph. “A concha está comigo, não é, Ralph?”
Contra a vontade, Ralph desviou os olhos do espetáculo esplêndido e
assustador.
“O quê?”
“A concha. Eu tenho o direito de falar.”
Os gêmeos riram ao mesmo tempo.
“A gente queria fumaça—”
“E agora—”
Um manto de fumaça se irradiava da ilha por vários quilômetros. Todos os
meninos, menos Porquinho, começaram a rir; em pouco tempo, estavam às
gargalhadas.
Porquinho perdeu a cabeça.
“A concha está comigo! Vocês deviam prestar atenção! A primeira coisa que a
gente devia ter feito era construir algum tipo de barraca perto da praia. Lá não faz
tanto frio de noite. Mas assim que o Ralph fala de fogo sai todo mundo berrando e
subindo o morro. Feito um bando de crianças!”
A essa altura, todos davam ouvidos à repreensão.
“Como é que vocês esperam ser salvos, se não fazem as coisas direito nem na
ordem certa?”
Tirou os óculos e fez menção de largar a concha; mas o movimento imediato da
maioria dos meninos mais velhos na direção dela o fez mudar de ideia. Pôs a concha
debaixo do braço, e acocorou-se numa pedra.
“E aí, quando a gente chega aqui em cima, vocês armam uma fogueira que não
serve pra nada. E depois ainda botam fogo na ilha toda. Não vai ser engraçado, se a
ilha queimar inteira? Fruta cozida pra comer, e porco assado. E não tem graça
nenhuma! A gente resolveu que Ralph era o chefe, mas ninguém dá tempo pra ele
pensar. Então, assim que ele diz alguma coisa sai todo mundo correndo, feito, feito
—”
Fez uma pausa para respirar, e o fogo continuava queimando.
“E não é só isso. Os garotinhos. Os pequenos. Alguém cuidou deles? Quem
sabe quantos eles são?”
Ralph deu um passo à frente.
“Eu disse pra você contar. Disse pra você fazer a lista dos nomes!”
“Mas como é que eu podia fazer a lista”, gritou Porquinho, indignado, “sem
ajuda? Eles só ficaram parados dois minutos, depois caíram no mar; daí foram para a
floresta; e se espalharam pelo lugar todo. Como é que eu vou saber quem é quem?”
Ralph lambeu os lábios pálidos.
“Então você não sabe quantos nós somos?”
“Como é que eu podia saber, com os pequenos correndo de um lado para o
outro? E aí, quando vocês três voltaram, assim que você fala de fazer uma fogueira
todo mundo sai correndo, e eu nem tive tempo—”
“Chega!”, cortou Ralph, e pegou a concha de volta. “Se não deu pra contar, não
deu.”
“— aí vocês vieram pra cá, arrancaram os meus óculos—”
Jack virou-se para ele.
“Cala essa boca!”
“—e os pequenos correndo de um lado para o outro bem ali onde a floresta
queimou. Como é que você sabe que ainda não estão lá?”
Porquinho se levantou e apontou para a fumaça e as chamas. Um murmúrio se
ergueu entre os meninos, e morreu. Alguma coisa estranha estava acontecendo com
Porquinho, porque ele arquejava, tentando respirar.
“O pequeno—”, ofegou Porquinho, “com a marca na cara, esse eu não vi mais.
Onde é que ele está?”.
Um silêncio de morte caiu sobre o grupo.
“Aquele que falou das cobras. Ele estava bem ali—”
Uma árvore explodiu no meio do incêndio, parecendo uma bomba. Pencas de
cipós compridos se ergueram por um momento, em agonia, e tornaram a pender.
Os meninos menores gritaram.
“Cobras! Cobras! Eram cobras!”
A oeste, sem que ninguém se desse conta, o sol só pairava a poucos centímetros
do mar. Os rostos de todos eram tingidos de vermelho pela luz que vinha de baixo.
Porquinho desabou numa pedra, que agarrou com as duas mãos.
“Aquele pequeno com a marca na — cara — aonde — ele foi parar? Estou
dizendo que não vi mais ele.”
Os meninos se entreolhavam com medo, sem acreditar.
“—aonde ele foi parar?”
Ralph murmurou uma resposta, como que envergonhado.
“Talvez ele tenha voltado pra, pra—”
Atrás deles, na encosta mais íngreme da montanha, os tambores continuavam a
rufar.
Capítulo três
Cabanas na praia
Jack estava dobrado em dois. Sua postura era a de um corredor, com o nariz poucos
centímetros acima da terra úmida. Os troncos de árvores e os cipós que deles
pendiam desapareciam numa sombra esverdeada uns dez metros acima dele, e a toda
sua volta o mato baixo se espalhava. Captava apenas rastros muito tênues; um ramo
partido, e o que podia ser a marca lateral de um casco. Abaixou mais ainda o queixo
e fitou aquelas pistas como se tentasse obrigá-las a dizer-lhe alguma coisa. Em
seguida, parecendo um cão de caça, andando desconfortavelmente de quatro mas
sem dar atenção a seu desconforto, avançou mais alguns metros e parou. Ali havia
um cipó pendente com uma ramificação que formava uma alça. A alça estava
lustrosa na parte de baixo; os porcos, passando por ali, haviam roçado na planta com
seus pelos eriçados.
Jack se agachou com o rosto a poucos centímetros dessa pista e em seguida
olhou para a frente, esquadrinhando a penumbra da mata. Seus cabelos alourados,
consideravelmente mais compridos do que eram na chegada à ilha, estavam mais
claros; e suas costas nuas mostravam-se cobertas de sardas escuras e pedaços de pele
que descascava, crestada pelo sol. Trazia uma vara pontiaguda de mais ou menos um
metro e meio de comprimento na mão direita e, além das calças curtas surradas,
sustentadas pelo cinto em que carregava a faca, não usava mais nada. Fechou os
olhos, ergueu a cabeça e farejou com as narinas infladas, testando a corrente de ar
quente em busca de informações. A floresta e ele não faziam barulho algum.
Depois de algum tempo, soltou o ar num suspiro prolongado e abriu os olhos.
Eram de um azul brilhante, olhos que em sua frustração pareciam fora de controle e
quase enlouquecidos. Passou a língua pelos lábios secos e sondou a floresta que
sonegava seus segredos. Em seguida, avançou um pouco mais, examinando o solo
aqui e ali.
O silêncio da floresta era mais opressivo que o calor, e àquela hora do dia não se
escutava sequer o zumbido dos insetos. Só quando o próprio Jack fez um pássaro
colorido abandonar seu ninho primitivo de gravetos o silêncio foi quebrado, e ecos
soaram desencadeados por um grito roufenho que parecia provir do abismo dos
tempos. O próprio Jack se encolheu ao ouvir esse grito, inspirando pela boca num
arranco sibilante; e por um minuto deixou de ser um caçador, transformando-se
antes numa coisa furtiva, simiesca, perdida no emaranhado de árvores. Então o
rastro e a frustração tornaram a absorver sua atenção, e ele voltou a vasculhar
avidamente o solo, à procura de mais pistas. Ao pé do tronco de uma árvore imensa
que ostentava flores claras crescendo direto no tronco cinzento, ele parou, fechou os
olhos e mais uma vez farejou o ar quente; dessa vez sua respiração foi curta, uma
palidez breve tomou conta do seu rosto e depois o sangue voltou a afluir. Atravessou
como uma sombra a área escura debaixo da árvore e se acocorou, examinando o solo
muito pisado a seus pés.
Os excrementos estavam quentes. Amontoavam-se num trecho de terra
revolvida. Eram de cor verde-oliva, muito lisos, e ainda emanavam um pouco de
fumaça. Jack ergueu a cabeça e correu os olhos pelas inescrutáveis massas de lianas
que obstruíam a trilha. Em seguida, levantou a lança e começou a avançar em
silêncio. Para além dos cipós, a trilha se reunia a uma picada que tinha largura e
permanência suficientes para ser vista como um caminho habitual dos porcos. O
chão era batido e mais duro devido à frequência com que o caminho era usado, e
quando esticou o corpo Jack ouviu alguma coisa se movendo. Recuou o braço
direito e arremessou a lança com toda a força. Do caminho veio o tropel rápido e
duro dos cascos, um som de castanholas, sedutor, eletrizante — a promessa de
carne. Atravessou o mato num arranco e recuperou sua lança. O tropel dos porcos se
desfez na distância.
Jack ficou ali parado, encharcado de suor, sujo de terra escura, manchado por
todas as vicissitudes de um dia de caçada. Xingando, desviou-se da trilha e abriu
caminho em meio às plantas até a floresta ficar um pouco mais esparsa. Em vez de
troncos castanhos sustentando uma cúpula escura, os troncos ali eram de um cinza-
claro, e as copas, de palmas plumosas. Além delas, era possível ver o brilho do mar e
ouvir vozes. Ralph estava de pé ao lado de uma estrutura composta de troncos de
coqueiro e folhas, um abrigo improvisado que parecia a ponto de desabar, erguido
de frente para a laguna. E Ralph nem percebeu quando Jack lhe dirigiu a palavra.
“Tem água?”
Ralph, com a testa franzida, desviou os olhos da complexidade do arranjo das
folhas. E não tomou conhecimento da presença de Jack nem mesmo quando o viu.
“Perguntei se você tem alguma água. Estou com sede.”
Ralph desviou a atenção do abrigo e percebeu a presença de Jack com um
sobressalto.
“Ah, oi. Água? Ali, perto da árvore. Ainda deve ter sobrado alguma coisa.”
Jack pegou meia casca de coco repleta de água potável de uma série de cascas
dispostas à sombra, e bebeu. A água escorreu pelo seu queixo, pescoço e peito. Ele
respirou alto quando terminou.
“Estava precisando disso.”
Simon falou, de dentro do abrigo.
“Mais um pouco pra cima.”
Ralph virou-se para o abrigo e levantou um galho ainda guarnecido de todas as
suas folhas.
O telhado de folhas se desmontou e desabou no chão. O rosto contrito de
Simon despontou no buraco aberto.
“Desculpe.”
Ralph passou em revista o desastre, com ar desgostoso.
“A gente nunca vai terminar.”
E atirou-se no chão, perto dos pés de Jack. Simon continuava dentro do abrigo,
olhando para fora pelo buraco no telhado. Do chão, Ralph explicou.
“Faz dias que a gente está trabalhando. E olha só!”
Havia dois abrigos de pé, mas nada firmes. Este, o terceiro, estava arruinado.
“E todo mundo sempre correndo pra longe. Lembra da reunião? Todo mundo
dizendo que ia trabalhar duro até acabar de construir os dormitórios?”
“Menos eu e os meus caçadores—”
“Menos os caçadores. Pois os pequenos—”
E gesticulou, à procura das palavras.
“Os pequenos não têm jeito. E os mais velhos não são muito melhores. Está
vendo? Passei o dia inteiro trabalhando com o Simon. Mais ninguém. Está todo
mundo no mar, ou comendo, ou brincando.”
Simon pôs a cabeça para fora, cauteloso.
“Você é o chefe. Manda eles pararem.”
Ralph continuou deitado no chão, olhando para os coqueiros e o céu.
“Reunião. A gente adora fazer reunião. Todo dia. Duas vezes por dia. E a gente
fala.” Apoiou-se num dos cotovelos. “Se eu tocasse a concha agora, aposto que todo
mundo vinha correndo. Aí, sabe como é, todo mundo com a cara mais solene, aí
alguém diz que a gente precisa construir um avião a jato, um submarino, ou uma
televisão. Depois que a reunião acaba, todo mundo só trabalha uns cinco minutos e
depois se afasta ou sai pra caçar.”
Jack corou.
“A gente precisa de carne.”
“Mas ainda não conseguiu. E também precisa de abrigo. Além disso, o resto
dos caçadores já voltou tem várias horas. E foram direto tomar banho de mar.”
“Eu continuei sozinho”, disse Jack. “E deixei eles virem embora. Eu precisava
continuar. Eu—”
Tentou explicar a compulsão de perseguir e matar que tomava conta dele.
“Eu continuei. Achei que, sozinho—”
A loucura tornou a aparecer nos seus olhos.
“—conseguia matar alguma coisa.”
“Mas não matou.”
“Achei que conseguia.”
Alguma paixão oculta vibrava na voz de Ralph.
“Mas ainda não matou nada.”
E seu desafio podia até passar por casual, se não fosse pelo tom em que falava.
“E nem passa pela sua cabeça ajudar na construção dos dormitórios?”
“A gente precisa de carne—”
“Mas ninguém traz.”
Agora o antagonismo era claro.
“Mas eu vou trazer! Da próxima vez! Só preciso fazer uma farpa na ponta dessa
lança! Já acertamos um porco, mas a lança saiu da ferida. Se a gente conseguisse
fazer uma farpa—”
“A gente precisa é de dormitórios.”
De repente, Jack gritou, enraivecido.
“Você está me acusando—?”
“Só estou dizendo que a gente trabalhou pra burro. Só isso.”
Estavam os dois com o rosto vermelho, quase sem conseguir olhar um na cara
do outro. Ralph rolou, deitou-se de bruços e começou a brincar com a relva.
“Se chover igual ao dia em que a gente desceu, a gente vai precisar de abrigo. E
mais uma coisa. A gente precisa de abrigo por causa dos—”
Fez uma pausa breve e os dois se desfizeram da raiva. Então ele continuou,
tratando do outro assunto, este seguro.
“Você reparou, não reparou?”
Jack largou a lança e se acocorou.
“Reparei no quê?”
“Bom. Eles estão com medo.”
Virou-se e olhou para o rosto feroz e sujo de Jack.
“Quer dizer. Do jeito que as coisas estão. Eles têm sonhos. Dá pra ouvir. Você
já ficou acordado de noite?”
Jack sacudiu a cabeça.
“Eles falam e gritam. Os pequenos. E mesmo um ou outro dos maiores. Como
se—”
“Como se a ilha não fosse boa.”
Surpresos com a interrupção, eles ergueram os olhos para o rosto de Simon.
“Como se o monstro”, disse Simon, “o tal bicharoco, ou a tal coisa-cobra, fosse
de verdade. Vocês se lembram?”
Os dois meninos mais velhos estremeceram ao ouvir a palavra. Ninguém mais
falava de cobra nenhuma, não era uma coisa que se pudesse mencionar.
“Como se a ilha não fosse boa”, disse Ralph devagar. “Pois é, isso mesmo.”
Jack levantou o tronco e esticou as pernas.
“Eles estão maluquinhos.”
“Todos doidos. Lembra de quando a gente saiu pra explorar?”
Trocaram sorrisos, lembrando-se do encantamento do primeiro dia. Ralph
prosseguiu.
“Então. A gente precisa dos dormitórios pra serem assim a nossa—”
“Casa.”
“Isso mesmo.”
Jack dobrou as pernas, abraçou os joelhos e franziu o rosto num esforço para
conseguir ver claramente.
“Ainda assim — na floresta. Quer dizer, quando você está caçando — não
quando sai pra pegar frutas, claro, mas quando fica sozinho—”
Fez uma pausa, sem saber se Ralph iria levá-lo a sério.
“Que mais?”
“Quando a gente está caçando, às vezes sente que—” E corou de repente.
“Não quer dizer nada, claro. É só uma sensação. E você tem a impressão que
não está caçando, mas — sendo caçado; como se tivesse alguma coisa atrás de você o
tempo todo no meio da selva.”
Os dois se calaram de novo: Simon atento, Ralph incrédulo e um pouco
indignado. Levantou o corpo e se deitou no chão, esfregando um dos ombros com a
mão suja.
“Bom, eu não sei.”
Jack se pôs de pé num salto, falando muito depressa:
“Às vezes a gente se sente assim na floresta. Claro que não é nada. É só — é só
—”
Deu alguns passos rápidos na direção da praia, antes de dar meia-volta.
“É só que eu sei como a pessoa se sente. Entendeu? Só isso.”
“A melhor coisa que a gente podia fazer era ser resgatados logo.”
Jack precisou pensar algum tempo antes de entender do que Ralph estava
falando.
“Resgatados? Ah, claro! Mesmo assim, antes disso eu queria pegar um porco—”
Agarrou a lança e cravou a ponta no solo. Aquela expressão opaca e enlouquecida
tornou a aparecer em seus olhos. Ralph olhou para ele com ar crítico, através dos
cabelos claros emaranhados.
“Contanto que os seus caçadores não esqueçam a fogueira—”
“Você e essa sua fogueira!”
Os dois meninos seguiram trotando pela praia e, desviando-se à beira do mar,
viraram-se para contemplar a montanha cor-de-rosa. Um fio de fumaça ainda
traçava uma linha de giz pelo azul do céu limpo acima deles, descrevendo algumas
curvas bem no alto antes de desaparecer. Ralph franziu o rosto.
“Até que distância será que dá pra ver essa fumaça?”
“Vários quilômetros.”
“Estamos fazendo pouca fumaça.”
A parte inferior do fio de fumaça, como que reagindo ao olhar dos meninos,
engrossou e adquiriu um frêmito cremoso que se transmitiu até o alto da coluna
tênue.
“Eles puseram os galhos verdes”, murmurou Ralph. “Imagino que sim!”
Apertou os olhos e virou-se para perscrutar o horizonte.
“Agora eu vi!”
Jack gritou tão alto que Ralph deu um pulo.
“O quê? Onde? Um navio?”
Mas Jack apontava para os declives mais altos que conduziam da montanha
para a parte mais plana da ilha.
“É claro! É ali que eles se metem — só pode ser, quando o sol fica quente
demais—”
Ralph olhou espantado para seu rosto arrebatado.
“—eles andam e sobem o morro. Sobem e procuram uma sombra, pra
descansar nas horas mais quentes, como as vacas fazem na Inglaterra—”
“Achei que você tinha visto um navio!”
“A gente podia chegar bem perto deles — com as caras pintadas pra eles não
verem — talvez cercar todo o bando, e então—”
A indignação fez Ralph perder o controle.
“Eu estava falando da fumaça! Você não quer ser resgatado? Agora você passa o
tempo todo pensando só em porco, porco, porco!”
“Mas a gente precisa de carne!”
“E eu passo o dia inteiro trabalhando só com o Simon, daí você volta e nem
repara nas cabanas!”
“Eu também estava trabalhando—”
“Mas fazendo uma coisa que você gosta!”, gritou Ralph. “O que você quer é
caçar! Já eu—”
Ficaram um de frente para o outro na praia ensolarada, espantados com a
intensidade das mágoas. Ralph desviou os olhos primeiro, fingindo interesse por um
grupo de pequenos na areia. Do outro lado da plataforma chegavam os gritos dos
caçadores que mergulhavam na piscina. Na ponta da plataforma estava Porquinho,
deitado de bruços, olhando para a água transparente.
“Ninguém está ajudando muito.”
Queria explicar como as pessoas nunca são exatamente o que você pensa delas.
“Simon. Ele ajuda.” Apontou para os dormitórios.
“Todo o resto correu pra longe. Ele trabalhou tanto quanto eu. Só que—”
“Simon está sempre por perto.”
Ralph tomou o caminho de volta para os dormitórios, tendo Jack a seu lado.
“Vou te ajudar um pouco”, murmurou Jack, “antes de ir tomar banho”.
“Nem precisa.”
Mas quando chegaram aos dormitórios Simon não estava à vista. Ralph enfiou
a cabeça no buraco, depois tirou e virou-se para Jack.
“Ele se mandou.”
“Ficou cheio”, disse Jack, “e foi dar um mergulho”.
Ralph franziu o rosto.
“Ele é estranho. É diferente.”
Jack assentiu com a cabeça, em concordância ou qualquer outra coisa, e por
acordo tácito os dois deixaram o abrigo na direção da piscina em que todos
preferiam mergulhar.
“E então”, disse Jack, “depois de dar um mergulho e comer alguma coisa, vou
andar até o outro lado da montanha ver se encontro algum rastro. Quer vir
também?”
“Mas já está quase no fim da tarde!”.
“Pode ser que dê tempo—”
E continuaram caminhando lado a lado, dois continentes de experiências e
sentimentos incapazes de se comunicar.
“Se eu pelo menos conseguisse pegar um porco!”
“Vou voltar e continuar construindo o dormitório.”
Trocaram um olhar, contido, de amor e ódio. E toda a água salgada e morna da
piscina, mais os gritos, as brincadeiras e os risos, mal foram suficientes para
reaproximar os dois.
Simon, que esperavam encontrar na água, não estava na piscina.
Quando os outros dois partiram rumo à praia para olhar na direção da
montanha, ele os acompanhou por alguns metros e depois parou. Ficou de pé, de
rosto franzido, diante de um monte de areia na praia, onde alguém tinha tentado
construir uma casinha ou cabana. Então deu as costas para o monte de areia e
entrou na floresta com um ar determinado. Era um menino miúdo e magro, com o
queixo em ponta e os olhos tão brilhantes que davam a Ralph a impressão errônea
de estar diante de um menino sempre alegre e malicioso. Seus cabelos grossos e
negros eram longos e caíam para a frente, quase escondendo uma testa baixa mas
larga. Usava os farrapos que restavam de suas calças curtas, e andava com os pés
descalços, como Jack. Tendo uma cor mais morena, o sol tinha deixado Simon com
um bronzeado escuro, reluzente de suor.
Ele caminhou pela cicatriz na mata acima, passando pelo rochedo que Ralph
tinha escalado no primeiro dia e depois virando à direita, enveredando entre as
árvores. Caminhava com um passo regular em meio à extensa área de árvores
frutíferas, onde os meninos de menos disposição podiam encontrar uma refeição
mais fácil, embora insatisfatória. Flores e frutas cresciam juntas nas mesmas árvores,
e por toda parte se espalhavam o aroma de frutas maduras e o zumbido de um
milhão de abelhas em atividade. Aqui, os pequenos que tinham corrido atrás dele o
alcançaram. Tagarelavam, soltavam gritos ininteligíveis, tentavam conduzi-lo para as
árvores. E então, em meio ao rumor das abelhas ao sol da tarde, Simon pegou para
eles as frutas que não alcançavam, colheu as melhores em meio à folhagem e as
passou para as mãos infindáveis que se estendiam para ele. Quando os pequenos
ficaram satisfeitos, Simon fez uma pausa e correu os olhos em volta. Os pequenos o
observavam com uma expressão inescrutável, por sobre mãos cheias de frutas
maduras.
Simon deu-lhes as costas e caminhou no rumo indicado por uma trilha quase
imperceptível. Logo se viu cercado por floresta alta. Troncos compridos exibiam
inesperadas flores claras até as copas escuras, onde a vida se desenrolava clamorosa.
O ar aqui também era escuro, e os cipós lançavam-se galhos abaixo como o cordame
de veleiros fundeados. Simon deixava pegadas fundas no solo macio, e os cipós
estremeciam de cima a baixo cada vez que esbarrava num deles.
Chegou finalmente a um lugar onde caía mais luz do sol. Como não
precisavam avançar muito para chegar à luz, ali as trepadeiras haviam tecido uma
imensa esteira suspensa de um dos lados de uma clareira no meio da selva, pois ali
uma pedra aflorava até bem perto da superfície e só permitia o crescimento de fetos
e plantas de pequeno porte. Toda a clareira era rodeada de arbustos escuros e
aromáticos, e formava uma tigela de luz e calor. Uma árvore imensa, caída num dos
cantos, apoiava-se nas árvores ainda de pé, e uma trepadeira oportunista lançava
gavinhas vermelhas e amarelas que chegavam até o alto de sua copa.
Simon parou. Olhou por cima do ombro, como Jack tinha feito, para os
caminhos atrás de si, e correu rapidamente os olhos em volta para confirmar que
estava inteiramente a sós. Por algum tempo, seus movimentos foram quase furtivos.
Então encostou no chão e rastejou até o centro da esteira suspensa. Os cipós e as
trepadeiras cresciam tão densos que Simon deixava neles um rastro de suor, e a
esteira tornava a se fechar à sua passagem. Quando chegou bem ao centro, viu-se
numa espécie de cabine escondida da clareira por uma cortina da espessura de
poucas folhas. Acocorou-se, afastou as folhas e estudou a clareira. Nada se mexia,
além de um casal de borboletas revoluteando uma em volta da outra no ar quente.
Contendo a respiração, aguçou o ouvido para captar os sons da ilha. A noite
avançava para a ilha; o canto dos pássaros de colorido fantástico, o zunir das abelhas,
até mesmo o grito das gaivotas que retornavam para seus ninhos em meio às pedras
quadradas estavam atenuados. O mar profundo que se quebrava a quilômetros dali,
contra o recife de coral, produzia um ruído de fundo menos perceptível que o
sussurro do seu próprio sangue.
Simon tornou a cerrar a cortina de folhas. A declinação das faixas de luz do sol
cor de mel foi diminuindo; a luz escorria rumo ao alto dos arbustos, passando por
cima dos brotos que lembravam velas, deslocando-se até a copa das árvores
enquanto a escuridão se adensava debaixo da folhagem. Com a redução da luz, as
cores vivas ficavam amortecidas; o ar e a urgência começavam a esfriar. Os brotos
em forma de velas estremeceram. Suas sépalas verdes encolheram-se um pouco,
deixando que as pontas brancas de suas flores emergissem, delicadas, rumo ao ar
livre.
Agora a luz do sol tinha subido mais e deixado de todo a clareira, retirando-se
do céu. As trevas inundaram tudo, submergindo os caminhos entre as árvores até
deixá-los indistintos e estranhos como o fundo do mar. Os brotos de vela abriram
suas amplas flores brancas que reluziram à pouca luz que produziam as primeiras
estrelas. Seu perfume espalhou-se pelo ar, e se apossou de toda a ilha.
Capítulo quatro
Caras pintadas e cabelos compridos
Ralph saiu da piscina de água do mar, correu pela praia e sentou-se à sombra dos
coqueiros. Seus cabelos claros estavam colados à testa e ele os empurrou para trás.
Simon boiava na água, batendo as pernas, e Maurice praticava mergulho. Porquinho
vagava por ali, catando e jogando fora coisas a esmo. As piscinas menores formadas
entre as pedras, que tanto o fascinavam, estavam cobertas pela maré alta, de maneira
que só voltaria a ficar interessado quando ela baixasse. Vendo Ralph sentado à
sombra dos coqueiros, veio sentar-se ao seu lado.
Porquinho usava os frangalhos restantes das calças curtas, seu corpo gordo tinha
assumido um tom escuro de dourado, e seus óculos ainda cintilavam toda vez que
olhava para alguma coisa. Era o único menino da ilha cujos cabelos pareciam nunca
crescer. Os demais viviam todos desgrenhados, mas o cabelo de Porquinho ainda se
distribuía em mechas regulares por sua cabeça, como se o seu estado natural fosse a
calvície e aquela cobertura imperfeita logo fosse desaparecer, como a penugem nos
chifres de um cervo jovem
“Andei pensando”, disse ele, “num relógio. A gente podia fazer um relógio de
sol. Primeiro crava uma vareta na areia, e depois—”
O esforço de explicar os processos matemáticos envolvidos era excessivo. Em
vez disso, limitou-se a alguns gestos.
“E um avião, e um aparelho de TV”, disse Ralph em tom amargo, “além de um
motor”.
Porquinho sacudiu a cabeça.
“Pra essas coisas você precisa de muito metal”, disse ele, “que a gente não tem.
Mas uma vareta a gente arranja”.
Ralph virou-se e sorriu sem querer. Porquinho era mesmo um chato; sua
gordura, a tal asa má e aquelas ideias bestas não tinham a menor graça; mas algum
prazer sempre se tirava de implicar um pouco com ele, mesmo que por acaso.
Porquinho viu o sorriso de Ralph, que interpretou erroneamente como um
sinal de amizade. Entre os maiores, tinha se instalado tacitamente a opinião de que
Porquinho não fazia parte da turma, não só pela maneira de falar, que afinal nem
tinha importância, mas por causa da gordura, da asa má, dos óculos e da tendência a
evitar qualquer trabalho braçal. Agora, achando que tinha dito alguma coisa que
fizera Ralph sorrir, ele se animou e tentou aproveitar aquela vantagem.
“Vareta é o que não falta por aqui. Cada um de nós podia ter um relógio de sol
só pra ele. E aí a gente podia saber que horas são.”
“Até parece que isso ia ajudar.”
“Você disse que queria a gente fazendo coisas. Pra poder ser recolhido.”
“Ah, cala a boca.”
Pôs-se de pé num salto e voltou correndo para a piscina de água do mar, bem
na hora em que Maurice dava um mergulho muito mal executado. Ralph ficou
satisfeito com a oportunidade de mudar de assunto. E gritou, assim que Maurice
apareceu na superfície.
“Barrigada! Barrigada!”
Maurice sorriu para Ralph, que entrou na água com um mergulho perfeito. De
todos os meninos, era quem estava mais à vontade na ilha; mas hoje, com aquela
conversa sobre resgate, nem as profundezas verdes da água ou o sol em pedaços
dourados lhe serviam de consolo. Em vez de ficar ali brincando, passou nadando
com braçadas enérgicas por baixo de Simon e saiu da água do outro lado da piscina,
lustroso e ágil como uma foca. Porquinho, sempre desajeitado, levantou-se e chegou
para perto dele, de modo que Ralph rolou de barriga e fingiu que não o via. As
miragens tinham desaparecido, e ele correu os olhos melancólicos pela tensa linha
azul do horizonte.
No momento seguinte estava de pé, gritando:
“Fumaça! Fumaça!”
Simon tentou aprumar o corpo e engoliu água. Maurice, que se aprontava para
um mergulho da pedra, girou sobre os calcanhares, pulou de volta para a plataforma
e correu para a relva debaixo dos coqueiros. Ali começou a vestir suas calças, pondo-
se pronto para tudo.
Ralph ficou parado, uma das mãos afastando o cabelo do rosto, a outra cerrada.
Simon saía da água. Porquinho tentava limpar os óculos e apertava os olhos na
direção do horizonte. Maurice tinha enfiado as duas pernas numa das pernas da
calça — de todos os meninos, o único imóvel era Ralph.
“Não estou vendo fumaça nenhuma”, disse Porquinho em tom incrédulo.
“Não estou vendo fumaça nenhuma, Ralph — onde?”
Ralph não disse nada. Agora tinha as duas mãos apoiadas com força na testa,
para manter seus cabelos claros longe dos olhos. Estava reclinado para a frente, e o
sal já branqueava o seu corpo.
“Ralph — cadê o navio?”
Simon se pôs de pé, olhando de Ralph para o horizonte. As calças de Maurice
se desfizeram com um suspiro e ele as abandonou ali mesmo em farrapos, correndo
para a floresta, de onde depois voltou.
A fumaça era um pequeno nó apertado que aos poucos se desfazia no
horizonte. Abaixo da fumaça havia um ponto que podia ser uma chaminé. O rosto
de Ralph estava pálido enquanto ele falava sozinho.
“Eles vão ver a nossa fumaça.”
Porquinho agora estava olhando na direção certa.
“Não parece grande coisa.”
Virou-se e olhou para o alto da montanha. Ralph continuava a observar o navio
com olhos famintos. A cor retornava às suas faces. Simon, em silêncio, postou-se a
seu lado.
“Eu sei que não enxergo direito”, disse Porquinho, “mas a gente está soltando
alguma fumaça?”
Ralph fez um gesto impaciente, sem tirar os olhos do navio.
“A fumaça na montanha.”
Maurice chegou correndo, com os olhos fixos no alto-mar. Tanto Simon
quanto Porquinho olhavam para o alto da montanha. Porquinho franziu o rosto,
mas o grito de Simon deu a impressão de que ele tinha se machucado.
“Ralph! Ralph!”
O tom da sua voz atolou Ralph na areia.
“Alguém me diz”, pediu Porquinho, ansioso. “Algum sinal de fumaça?”
Ralph tornou a olhar para a fumaça que se dispersava no horizonte, e depois
para o alto da montanha.
“Ralph — por favor! Algum sinal?”
Simon estendeu a mão timidamente para tocar em Ralph, mas Ralph começou
a correr, chapinhando pela parte mais rasa da piscina, atravessando a areia quente e
branca e enfiando-se debaixo dos coqueiros. Dali a instantes, já se embrenhava no
mato baixo que tinha voltado a cobrir quase toda a cicatriz. Simon saiu correndo
atrás dele, seguido por Maurice. Porquinho continuava gritando.
“Ralph! Por favor — Ralph!”
E então ele também saiu correndo, tropeçando nas calças rasgadas que Maurice
tinha deixado para trás antes de conseguir chegar ao outro lado da praia. Atrás dos
quatro meninos a fumaça se deslocava lentamente ao longo do horizonte e, na praia,
Henry e Johnny jogavam areia em Percival, que chorava novamente em silêncio; e os
três se mantinham na mais completa ignorância quanto a toda aquela agitação.
Quando Ralph chegou à outra extremidade da cicatriz, desperdiçava seu
precioso fôlego com palavrões. Arremetia com extrema violência contra a aspereza
dos cipós, de modo que o sangue escorria de vários pontos da pele nua do seu corpo.
No ponto em que começava a escalada mais íngreme, ele parou. Maurice vinha
poucos metros atrás dele.
“Os óculos do Porquinho!”, gritou Ralph, “se o fogo tiver apagado, a gente vai
precisar—”
Parou de gritar e girou sobre os calcanhares. Porquinho mal estava visível,
avançando lentamente a partir da praia. Ralph olhou para o horizonte, depois para o
alto da montanha. Seria melhor ir pegar os óculos de Porquinho, ou com isso o
navio já teria ido embora? Ou se chegassem ao alto da montanha, com o fogo
completamente apagado, e tivessem de ficar esperando, vendo Porquinho levar horas
para chegar enquanto o navio ia sumindo além do horizonte? Equilibrado num pico
alto de necessidade, agoniado pela indecisão, Ralph exclamou.
“Meu Deus! Ah, meu Deus!”
Simon, emaranhado no mato, parou de respirar, com o rosto contorcido. Ralph
seguiu em frente, sem cuidar de se proteger, enquanto o fio de fumaça se afastava
aos poucos.
O fogo estava apagado, o que descobriram de cara; na verdade, constataram o
que já tinham percebido desde a praia, no momento em que tinham visto o sinal de
fumaça que lhes mandava seu mundo antigo. O fogo estava totalmente extinto,
morto e sem fumaça alguma; os encarregados de cuidar dele tinham sumido. Havia
uma pilha de lenha seca ao lado da fogueira.
Ralph virou-se para o mar. O horizonte se estendia uniforme de lado a lado,
novamente impessoal, sem exibir o mais ligeiro sinal de fumaça. Ralph desceu
correndo pelo meio das pedras, deteve-se à beira do penhasco cor-de-rosa e começou
a berrar para o navio.
“Volta aqui! Volta aqui!”
Corria de um lado para o outro à beira do penhasco, sem deixar de fitar o mar,
e sua voz ia ficando louca e aguda.
“Volta aqui! Volta aqui!”
Simon e Maurice chegaram. Ralph fitou os dois sem piscar. Simon desviou os
olhos, enxugando a água do rosto. Ralph mergulhou dentro de si, em busca da pior
palavra que conhecesse.
“Eles deixaram a maldita fogueira apagar.”
Olhou para a base da vertente mais difícil da montanha. Porquinho chegou,
sem fôlego e choramingando como se fosse um dos pequenos. Ralph cerrou os
punhos e ficou muito vermelho. A intensidade do seu olhar, a amargura da sua voz,
sublinhavam suas palavras.
“E lá vêm eles.”
Uma procissão tinha aparecido, bem abaixo, em meio às pedras rosadas que se
espalhavam perto da beira do mar. Alguns dos meninos usavam os barretes pretos,
mas de resto estavam quase nus. Erguiam ao mesmo tempo suas lanças no ar,
sempre que chegavam a um ponto mais fácil do caminho. Repetiam alguma coisa,
um cantochão que tinha a ver com o fardo que os gêmeos carregavam com tanto
cuidado. Ralph reconheceu Jack com facilidade, mesmo de tão longe: alto, ruivo e
inevitavelmente à frente da procissão.
Simon também estava olhando, de Ralph para Jack, como antes olhava de
Ralph para o horizonte, e o que via pareceu deixá-lo com medo. Ralph não disse
mais nada, e ficou esperando enquanto a procissão se aproximava. O cantochão se
tornara audível, mas àquela distância ainda não se distinguiam as palavras. Atrás de
Jack marchavam os gêmeos, carregando uma estaca nos ombros. A carcaça
eviscerada de um porco estava presa a ela e balançava muito enquanto os gêmeos
avançavam com esforço pelo terreno irregular. A cabeça do porco estava pendente,
com o pescoço aberto, e dava a impressão de estar à procura de alguma coisa pelo
chão. Finalmente, o que os meninos cantavam chegou com clareza até eles, por cima
da área tomada pela madeira enegrecida e as cinzas do incêndio.
“Mata o porco. Corta a goela. Espalha o sangue.”
No entanto, assim que as palavras se tornaram audíveis a procissão chegou ao
ponto mais íngreme da montanha, e dali a um ou dois minutos todos tinham
parado de cantar. Porquinho fungou, mas Simon lhe pediu silêncio na mesma hora,
como se ele tivesse falado alto na igreja.
Jack, com o rosto coberto de argila, foi o primeiro a chegar ao alto e saudou
Ralph muito animado, com a lança erguida.
“Olha! A gente matou um porco — encontrou um bando deles — formou um
círculo em volta—”
Vozes irromperam do grupo de caçadores.
“A gente formou uma roda—”
“Foi avançando—”
“Os porcos começaram a guinchar—”
Os gêmeos ficaram parados, com o porco balançando entre os dois, gotejando
pingos negros na pedra. Pareciam compartilhar o mesmo sorriso largo e eufórico dos
demais. Jack tinha um excesso de coisas a contar para Ralph ao mesmo tempo. Em
vez disso, deu um ou dois passos de dança, depois se lembrou da sua dignidade e só
ficou parado, sorrindo satisfeito. Notou que tinha sangue nas mãos e fez uma careta
de desgosto, procurando alguma coisa para limpá-las antes de finalmente esfregar as
mãos na calça e dar uma risada.
Ralph falou.
“Vocês deixaram o fogo apagar.”
Jack conferiu a informação, vagamente irritado por aquela irrelevância mas
contente demais para deixar que o perturbasse.
“O fogo a gente acende de novo. Você devia ter vindo com a gente, Ralph. Foi
grande. Um porco derrubou os gêmeos—”
“E a gente acertou o porco—”
“—eu pulei em cima dele—”
“E eu cortei o pescoço do porco”, declarou Jack orgulhoso, embora ainda
estremecesse ao contar sua façanha. “Posso pegar sua lança, Ralph, pra fazer um
entalhe no cabo?”
Os meninos tagarelavam e dançavam. Os gêmeos continuavam sorrindo.
“O sangue espirrou longe”, disse Jack, rindo e estremecendo, “você devia ter
visto!”
“Agora a gente vai sair pra caçar todo dia—”
Ralph tornou a falar, com a voz rouca. Não tinha movido um músculo.
“Vocês deixaram o fogo apagar.”
Aquela repetição provocou um desconforto em Jack. Ele olhou para os gêmeos,
depois tornou a fitar Ralph.
“A gente precisava deles na caçada”, disse ele, “ou não ia conseguir cercar
totalmente os bichos”.
E corou, tomando consciência de algum erro.
“A fogueira só apagou tem uma ou duas horas. A gente acende de novo—”
Então ele percebeu a nudez toda arranhada de Ralph e o silêncio lúgubre dos
quatro outros. Estimulado à generosidade por sua alegria, tentou incluir a todos no
que havia acontecido. Seu espírito estava repleto de memórias; memórias do que
descobriram enquanto fechavam o cerco em torno do porco agitado, a descoberta de
que tinham sido mais inteligentes que outra criatura viva, impondo-lhe a vontade
deles, tirando a vida do animal como quem se sacia com um longo gole de bebida.
Jack abriu muito os braços.
“Vocês deviam ter visto o sangue!”
Os caçadores agora estavam mais quietos, mas a essas palavras tornaram a se
agitar. Ralph atirou o cabelo para trás. Um de seus braços apontava o horizonte
vazio. Sua voz soou alta e selvagem, obrigando todos ao silêncio.
“Um navio passou.”
Jack, precisando enfrentar de uma só vez um amontoado de implicações
terríveis, decidiu evitá-las. Pousou uma das mãos no porco morto e puxou a faca.
Ralph baixou o braço, com o punho cerrado, e sua voz tremia.
“Passou um navio. Lá fora. Vocês disseram que iam manter a fogueira acesa,
mas deixaram apagar!” Deu um passo na direção de Jack, que se virou de frente para
ele.
“E eles podiam ter visto a gente. A gente podia estar indo pra casa—”
Foi demais para Porquinho, que esqueceu a timidez na agonia da perda. E
começou a chorar, com voz aguda:
“Você e essa história de sangue, Jack Merridew! Você e essa história de caçar! A
gente podia ter ido pra casa—”
Ralph empurrou Porquinho para o lado.
“O chefe era eu; e você ia fazer o que eu mandasse. Você fala muito. Mas nem
pra ajudar a construir as cabanas — e daí sai pra caçar e deixa o fogo morrer—”
Virou-se de costas, calado por um instante. Em seguida sua voz tornou a se
erguer tomada por um sentimento intenso.
“Passou um navio—”
Um dos caçadores menores começou a chorar. A terrível verdade começava a ser
entendida. Jack ficou muito vermelho, enquanto desferia estocadas no porco morto.
“Era trabalho demais. A gente precisava de todo mundo.”
Ralph se virou.
“Você podia ter levado todo mundo depois que as cabanas ficassem prontas.
Mas cismou que tinha de caçar—”
“A gente precisava de carne.”
Jack se levantou enquanto dizia essas palavras, com a faca ensanguentada na
mão. Os dois meninos se encaravam. De um lado o mundo fascinante da caça, das
táticas, da alegria feroz, da habilidade; e do outro o mundo dos desejos e do senso
comum frustrado. Jack transferiu a faca para a mão esquerda e espalhou sangue pela
testa ao alisar sua franja emplastrada.
Porquinho recomeçou.
“Vocês não deviam ter deixado o fogo apagar. Você disse que a fumaça ia ficar
sempre subindo—”
Ouvir essa reclamação de Porquinho, e os gemidos de concordância de alguns
dos caçadores, levou Jack à violência. Uma explosão de raiva se revelou em seus
olhos azuis. Deu um passo à frente e, tendo finalmente a possibilidade de bater em
alguém, desferiu um murro na barriga de Porquinho, que se sentou no chão com
um grunhido. Jack ficou de pé a seu lado. Sua voz soava rancorosa de humilhação.
“Quer mais? Quer mais? Gorducho!”
Ralph deu um passo à frente e Jack ainda aplicou um safanão na cabeça de
Porquinho, cujos óculos voaram longe e retiniram nas pedras. Porquinho,
aterrorizado, gritou:
“Meus óculos!”
Saiu rastejando e apalpando pelo caminho em meio às pedras, mas Simon, que
chegou primeiro, encontrou os óculos para ele. As paixões rodeavam Simon no topo
da montanha, agitando suas asas assustadoras.
“Uma das lentes quebrou.”
Porquinho agarrou os óculos, que ajustou no rosto, e fitou Jack com uma
expressão de ódio.
“Eu preciso desses óculos. Agora só vou enxergar por um olho. Espera só—”
Jack fez menção de avançar para Porquinho, que recuou até conseguir interpor
uma pedra grande entre os dois. Apontou a cabeça por cima da pedra e olhou
furioso para Jack através de sua única lente cintilante.
“Agora fiquei com um olho só. Espera só pra ver—”
Jack arremedou o choro e o andar de quatro do outro, em tom de zombaria.
“Espera só pra ver — até parece!”
Porquinho e sua paródia eram tão engraçados que os caçadores começaram a
rir. Jack sentiu-se estimulado. Continuou a andar de quatro, e o riso foi aumentando
até quase chegar à histeria. Mesmo sem querer, Ralph sentiu que estava quase
sorrindo; e ficou furioso consigo mesmo por se entregar a isso.
E murmurou.
“Sujeira da sua parte.”
Jack interrompeu seu número e parou de frente para Ralph. Suas palavras
irromperam num grito.
“Está bem, está bem!”
Olhou para Porquinho, para os caçadores, para Ralph.
“Desculpa. Quer dizer, pela fogueira. Pronto, eu—”
Pôs-se totalmente de pé.
“—perdão.”
O zunzum entre os caçadores foi de admiração por essa bela atitude.
Claramente, eram todos da opinião que Jack tinha agido da maneira certa, que seu
generoso pedido de desculpas lhe devolvia toda a razão e que Ralph, de alguma
forma obscura, é que estava errado. E ficaram à espera de uma resposta decente à
altura.
Mas nenhuma conseguiu passar pela garganta de Ralph, que além do mau
comportamento de Jack ainda ficou aborrecido com aquela jogada calculista. A
fogueira tinha apagado, o navio tinha ido embora. Será que ninguém mais entendia?
Era só raiva que saía de sua boca, não havia lugar para decência.
“Sujeira da sua parte.”
Ficaram calados ali no cume da montanha, enquanto a expressão opaca
aparecia de relance nos olhos de Jack.
E a palavra final de Ralph foi um resmungo desgracioso.
“Está certo. Acendam a fogueira.”
Diante da necessidade de alguma atitude construtiva, uma parte da tensão se
dissipou. Ralph não disse mais nada e nem fez nada, só ficou parado, olhando para
baixo, na direção das cinzas que rodeavam seus pés. Jack produzia muito som e
atividade. Dava ordens, cantava, assobiava, dizia coisas para o calado Ralph —
coisas que prescindiam de resposta e portanto não podiam ser simplesmente
ignoradas, mas ainda assim Ralph não dizia nada. Ninguém, nem mesmo Jack, lhe
pediu que saísse do caminho, e no final precisaram montar a fogueira a um metro
dele, num ponto que nem era muito conveniente. E assim Ralph reafirmou sua
condição de chefe, e mesmo que passasse dias pensando não poderia ter escolhido
um método melhor. Diante dessa arma, tão indefinível mas ainda assim tão eficaz,
Jack se mostrava impotente e enfurecido, sem saber por quê. Quando a fogueira
ficou pronta, os dois se encontravam de lados opostos de uma barreira alta.
E outra crise surgiu quando acabaram de armar a fogueira. Jack não tinha
meios de acendê-la. Então, para sua surpresa, Ralph caminhou até Porquinho e
tirou-lhe os óculos. Nem mesmo Ralph sabia como a ligação entre ele e Jack se tinha
rompido e restabelecido em outros termos.
“Eu trago de volta.”
“Não, vou junto com você.”
Porquinho estava atrás dele, ilhado num mar de cor sem sentido, quando Ralph
se ajoelhou e criou um fulgurante ponto focal. Assim que o fogo se acendeu,
Porquinho estendeu a mão e recuperou os óculos com força. Diante daquelas flores
fantasticamente atraentes de cor violeta, vermelha e amarela, a hostilidade se
dissolveu. Transformaram-se todos num círculo de meninos em torno de uma
fogueira ao ar livre, e mesmo Porquinho e Ralph sentiram-se parte de tudo aquilo
até certo ponto. Dali a pouco alguns dos meninos já desciam correndo a encosta em
busca de mais lenha, enquanto Jack tirava nacos do porco. Tentaram prender a
carcaça inteira numa estaca ao lado do fogo, mas a estaca queimou bem antes de o
porco assar. No final, espetaram pedaços da carne em varas que seguravam acima das
chamas; e ficaram quase tão assados quanto a carne de porco.
Ralph salivava. Primeiro pensou em recusar a carne, mas a dieta que vinha
seguindo, de frutas e nozes, com o acréscimo ocasional de um peixe ou caranguejo,
não autorizava muita resistência. Aceitou um pedaço de carne bem malpassada, que
começou a devorar como um lobo.
Porquinho falou, quase babando.
“E eu, não ganho nada?”
Tinha sido mesmo intenção de Jack deixá-lo na dúvida, para reafirmar o seu
poder; mas Porquinho, ao anunciar ter sido preterido, tornou necessária a crueldade
adicional.
“Você não caçou.”
“Ralph também não”, respondeu choroso Porquinho, “e nem Simon”. Ampliou
sua queixa. “Os caranguejos só têm um bocadinho de carne.”
Ralph se remexeu no lugar, desconfortável. Simon, sentado entre os gêmeos e
Porquinho, limpou a boca e jogou seu pedaço de carne para Porquinho, que o
agarrou no ar. Os gêmeos riram, e Simon baixou o rosto, envergonhado.
Então Jack se levantou de um salto e cortou um naco grande de carne, que
atirou aos pés de Simon.
“Come, desgraçado!”
Olhou com ódio para Simon.
“Pega logo!”
Girou nos calcanhares, no centro de um círculo admirado de meninos.
“Eu trouxe carne pra vocês!”
Inúmeras frustrações inexprimíveis se combinavam para tornar sua raiva
incontrolável e assustadora.
“Eu pintei a cara — e trouxe a caça. Agora vocês têm de comer — todo mundo
— e eu—”
Aos poucos, o silêncio no alto da montanha foi se aprofundando até se ouvirem
claramente os estalidos do fogo e o silvo discreto da carne que assava. Jack correu os
olhos em volta, em busca de compreensão, mas só se deparou com respeito. Ralph
estava de pé em meio às cinzas da primeira fogueira, as mãos cheias de carne, sem
dizer nada.
E então, finalmente, Maurice rompeu o silêncio. Abordou um novo assunto,
falando da única coisa capaz de congregar a maioria deles.
“Onde vocês acharam o porco?”
Roger apontou para a encosta mais difícil da montanha.
“Estavam daquele lado — na base, perto do mar.”
Jack, recuperando o controle, não tolerou que outra pessoa contasse a sua
história. E interrompeu Roger na mesma hora.
“A gente se espalhou. E aí eu avancei de quatro. As lanças se soltavam porque
não tinham farpa na ponta. O porco saiu correndo, fazendo um barulho infernal—”
“Aí se virou e veio pra cima da roda, sangrando—”
Todos os meninos falavam ao mesmo tempo, tomados pelo alívio e a animação.
“A gente fechou o cerco—”
O primeiro golpe tinha paralisado os quartos traseiros do bicho, e agora o cerco
podia se fechar e bater, e bater—
“Eu cortei o pescoço do porco—”
Os gêmeos, ainda exibindo um sorriso idêntico, se levantaram e começaram a
correr um em volta do outro. E então os outros se juntaram à cena, imitando os
guinchos do porco agonizante e gritando.
“Uma na cabeça!”
“Agora uma pra derrubar!”
Então Maurice, fingindo que era o porco, correu guinchando para o centro da
roda, enquanto os caçadores, fechando o cerco, faziam de conta que lhe aplicavam
uma surra. Enquanto dançavam, cantavam.
“Mata o porco. Corta a goela. Cai de pau.”
Ralph olhava para eles, entre a inveja e o ressentimento. Foi só quando os
outros se acalmaram e a cantoria arrefeceu que começou a falar.
“Vou convocar uma reunião.”
Um por um os outros meninos foram parando, e olhavam para ele.
“Com a concha. Vou convocar uma reunião, uma assembleia, mesmo que
tenha de ser no escuro. Na plataforma. Quando eu tocar a concha. Agora.”
Virou-se e começou a descer a montanha.
Capítulo cinco
O monstro da água
A maré estava enchendo, e só restava uma fina tira de areia seca entre a água e a base
dos coqueiros. Ralph escolheu a faixa de areia como caminho porque precisava
pensar; e só ali podia andar sem precisar de muito cuidado com o terreno que
pisava. De repente, enquanto caminhava à beira d’água, sentiu-se espantado ao
entender o quanto a sua vida era cansativa: cada caminho a seguir era improvisado, e
uma parte considerável do tempo que passava acordado era empregado em olhar
para o chão. Parou, de frente para a faixa de areia; e ao se lembrar de sua primeira
exploração entusiasmada, como se ela fizesse parte de uma infância mais feliz, sorriu
com ar zombeteiro. Virou-se então e começou a caminhar de volta na direção da
plataforma, com o sol batendo em seu rosto. Tinha chegado a hora da assembleia e,
enquanto ele caminhava na direção do esplendor ofuscante do sol, repassava em
detalhe os pontos que pretendia tratar. Não podia haver dúvida quanto àquela
reunião, a procura de nenhum objeto imaginário...
Perdeu-se num labirinto de pensamentos que sua falta de palavras adequadas
para exprimir tornava vagos. Franzindo o rosto, tentou mais uma vez.
Aquela reunião não era para ser divertida, mas para tratar das coisas.
Com isso, pôs-se a caminhar com passo mais firme, consciente ao mesmo
tempo da urgência, do sol poente e de um deslocamento de ar que, produzido pela
sua velocidade, soprava em seu rosto. Esse vento empurrava sua camisa cinza de
encontro a seu peito, o que o fez perceber — nessa nova disposição de espírito
aberta à compreensão — como as dobras do pano estavam endurecidas feito
papelão, e eram desagradáveis ao toque; e percebeu também como as bainhas
esfarrapadas de suas calças curtas agora roçavam na frente de suas coxas, criando ali
uma área avermelhada e incômoda. Com uma convulsão do espírito, Ralph tomou
consciência da sujeira e do declínio; entendeu o quanto lhe desagradava estar sempre
afastando os cabelos desgrenhados dos olhos e finalmente, quando o sol acabava de
se pôr, estender-se para dormir no meio de ruidosas folhas secas. A essa altura, pôs-
se a trotar.
Perto da piscina, a areia estava salpicada de grupos de meninos esperando pela
reunião. Abriram caminho para Ralph em silêncio, percebendo sua disposição
sombria e a negligência no caso da fogueira.
O local de reunião ao qual ele se dirigia era um triângulo aproximado, mas
irregular e mal-acabado, como tudo que eles faziam. Primeiro havia o tronco em que
Ralph se sentava; um coqueiro morto que deve ter sido excepcionalmente grande
para aquela plataforma. Ou talvez tenha chegado ali transportado por uma das
lendárias tempestades do Pacífico. Esse tronco de coqueiro se dispunha paralelo à
praia, de tal forma que, quando se sentava nele, Ralph ficava de frente para a ilha
mas aparecia para os outros meninos como uma silhueta destacada contra o fulgor
das águas da laguna. Os dois lados do triângulo de que o tronco constituía a base
eram menos claramente definidos. À direita havia um tronco com a superfície
lustrada por traseiros irrequietos, mas menor e menos confortável que o do chefe. À
esquerda havia quatro troncos menores, um dos quais — o mais distante — com
um equilíbrio deploravelmente instável. Várias reuniões tinham sido interrompidas
por risadas quando alguém se inclinava demais para trás, fazendo o tronco tombar e
derrubar meia dúzia de meninos de costas no chão. Mas ainda assim, Ralph pensou,
ninguém tivera a iniciativa — nem ele, nem Jack, nem Porquinho — de levar uma
pedra até lá para calçar a tora. De maneira que continuariam sujeitos ao
desequilíbrio daquele tronco, porque, porque... E mais uma vez sua mente se perdeu
em águas profundas.
A relva estava gasta em frente a cada um dos troncos, mas era alta e pujante no
centro do triângulo. E então, no vértice superior, a relva tornava a crescer porque
ninguém se instalava nunca ali. A toda a volta da área de reunião, troncos cinzentos
se erguiam, retos ou tortos, sustentando o teto baixo de folhas. De um lado e de
outro se estendia a praia; atrás, ficava a laguna; em frente, as sombras da ilha.
Ralph tomou a direção do assento do chefe. Nunca antes eles tinham se
reunido tão tarde. Era por isso que agora o lugar tinha uma aparência diferente.
Normalmente, a parte interna do teto verde ficava iluminada por uma teia de
reflexos dourados, e os rostos de todos apareciam iluminados de baixo para cima —
como por uma lanterna de pilhas segurada na mão, pensou Ralph. Mas agora o sol
estava muito inclinado, de maneira que as sombras apareciam no lugar devido.
Mais uma vez recaiu naquele estado de espírito incomum de especulação que
lhe era tão estranho. Se o rosto da pessoa ficava diferente quando era iluminado de
cima ou de baixo — o que era um rosto? O que era qualquer coisa?
Ralph caminhava com impaciência. O problema, quando você é o chefe, é que
precisa pensar, dizer a coisa certa. Aí a ocasião chega, e você precisa tomar uma
decisão. Por isso é que você tinha de pensar; porque o pensamento é uma coisa
valiosa, que produz resultados...
Mas acontece, concluiu Ralph ao chegar diante do assento do chefe, que não
sou capaz de pensar. Não tão bem quanto o Porquinho.
Mais uma vez, naquele fim de tarde, Ralph precisava passar seus valores em
revista. Porquinho sabia pensar. Era capaz de avançar passo a passo dentro daquela
cabeça gorda — só que Porquinho não era o chefe. Mas Porquinho, apesar do corpo
ridículo, era inteligente. Ralph a essa altura estava se tornando um especialista em
matéria de pensamento, e tinha aprendido a reconhecer o pensamento nos outros.
O sol em seus olhos lembrou-lhe que o tempo estava passando, então ele pegou
a concha na árvore e examinou sua superfície. A exposição ao ar tinha desbotado
muito o cor-de-rosa e o creme, agora quase brancos e um tanto translúcidos. Ralph
sentiu uma espécie de reverência afetuosa pela concha, muito embora tenha sido ele
próprio quem recolheu o objeto nas areias do fundo da laguna. Virou-se de frente
para o local de reunião e levou a concha aos lábios.
Os demais só estavam à espera do som, e acorreram na mesma hora. Todos que
sabiam que um navio tinha passado pela ilha com a fogueira apagada estavam com
medo da cólera de Ralph; já os outros, inclusive os pequenos, que não sabiam, se
impressionavam com a atmosfera solene que predominava. O local de reunião foi se
enchendo depressa; Jack, Simon, Maurice e a maioria dos caçadores, à direita de
Ralph; os outros à esquerda, expostos ao sol. Porquinho chegou e se instalou fora do
triângulo. Isto indicava que ele tinha a intenção de ouvir, mas não de falar; e
Porquinho pretendia que este silêncio fosse entendido como um gesto de censura.
“O caso é que precisamos de uma reunião.”
Ninguém disse nada, mas os rostos voltados para Ralph se mostravam
concentrados. Ele acariciou a concha. Tinha aprendido na prática que declarações
fundamentais como aquela precisavam ser feitas pelo menos duas vezes antes de
serem entendidas por todos. Ele precisava sentar-se, atraindo todos os olhares para a
concha, e deixar cair suas palavras como pedras de peso em meio aos grupos
sentados ou acocorados. Procurava na mente palavras simples que fizessem mesmo
os pequenos entenderem o motivo daquela reunião. Mais tarde, talvez, os
debatedores mais experientes — Jack, Maurice, Porquinho — poderiam usar sua
arte para distorcer a assembleia; mas agora, no começo da reunião, o tema em
debate precisava ser exposto com a maior clareza possível.
“Precisamos de uma reunião. Não pra fazer graça. Não pra rir ou cair do
tronco” — o grupo de Pequenos encarapitados no tronco instável trocou olhares e
risinhos — “nem fazer piadas, e nem” — levantou a concha no esforço de encontrar
a palavra mais forte — “pra exibir inteligência. Nada disso. Mas pra esclarecer as
coisas.”
Fez uma pausa.
“Andei por aí, sozinho, pensando no que é o quê. E sei o que a gente precisa.
Uma reunião pra esclarecer as coisas. E o primeiro a falar sou eu.”
Fez uma nova pausa e afastou automaticamente o cabelo dos olhos. Porquinho
se aproximou do triângulo na ponta dos pés, depois de já ter feito seu protesto sem
resultado, e juntou-se aos demais.
Ralph prosseguiu.
“Já fizemos muitas reuniões. Todo mundo gosta de falar e de estar junto. A
gente resolve as coisas. Mas ninguém faz o que fica combinado. A gente ia deixar
sempre umas cascas de coco cheias de água fresca debaixo de folhas verdes. E
funcionou durante alguns dias. Mas agora não tem mais água. As cascas estão vazias.
Todo mundo vai beber direto no rio.”
Ergueu-se um murmúrio de concordância.
“E nem tem muito problema beber direto a água do rio. Quer dizer, eu prefiro
beber naquele lugar — sabem onde, no poço perto da cachoeira — do que a água
guardada numa casca de coco velha. Mas a gente tinha combinado que ia ter sempre
água aqui. E agora não. Hoje de tarde, só duas cascas estavam cheias.”
Lambeu os lábios.
“E depois, as cabanas. Os dormitórios.”
O murmúrio tornou a se erguer antes de calar-se.
“A maioria de vocês dorme nas cabanas. Hoje à noite, menos Samineric, que
vão ficar do lado da fogueira, todo mundo vai dormir lá. E quem construiu o
dormitório?”
Na mesma hora ergueu-se um clamor. Todo mundo tinha construído o
dormitório. Ralph precisou acenar novamente com a concha levantada.
“Um minuto! Quero saber quem construiu todas as três cabanas! Todo mundo
construiu a primeira, quatro de nós a segunda, e eu e Simon construímos sozinhos a
última. E é por isso que ela ficou tão torta. Não. Nada de risadas. Essa cabana pode
desabar se cair uma chuva forte. Justo a hora em que vamos precisar de abrigo.”
Fez uma pausa e pigarreou.
“E mais uma coisa. Resolvemos que aquelas pedras mais adiante, depois da
piscina, é que eram pra ser usadas como banheiro. Isso também fazia sentido. Ali, a
maré quando sobe limpa tudo. Vocês, os pequenos, sabem disso.”
Houve fungadelas aqui e ali, olhares esquivos que se entrecruzavam.
“As pessoas andam usando qualquer lugar. Até mesmo aqui, perto das cabanas e
da plataforma. Vocês, pequenos, quando estão comendo frutas, se ficarem apertados
—”
A assembleia caiu na risada.
“Quer dizer, se ficarem apertados, têm de ir pra longe das frutas. É uma
sujeira.”
Mais risos altos.
“Eu disse que é uma sujeira.”
Puxou sua camisa cinza endurecida.
“É uma sujeira mesmo. Se vocês ficarem apertados, sigam pela praia até as
pedras. Está bem?”
Porquinho estendeu as mãos para a concha mas Ralph abanou a cabeça. Tinha
planejado seu discurso ponto a ponto.
“Todo mundo precisa voltar a usar as pedras. Esse lugar aqui está ficando
imundo.” Fez uma pausa. A assembleia, pressentindo o confronto, foi tomada por
uma expectativa tensa. “E agora, eu queria falar da fogueira.”
Ralph soltou o ar que lhe restava no peito com um leve arquejo que sua plateia
ecoou. Jack começou a cavoucar um pedaço de pau com sua faca, e murmurou
alguma coisa para Robert, que desviou os olhos.
“A fogueira é a coisa mais importante aqui da ilha. Se não tiver uma fogueira
sempre acesa, a gente só vai ser salvo por muita sorte. Será que ter uma fogueira
sempre acesa é difícil demais pra nós?”
Estendeu um dos braços.
“Olhem só em volta! É muita gente, não é? Mas mesmo assim a gente não
consegue manter a fogueira acesa, produzindo fumaça. Será que ninguém mais aqui
pensa? Vocês não entendem que a gente devia... devia morrer antes de deixar a
fogueira apagar?”
Muitos risinhos envergonhados entre os caçadores. Ralph virou-se para eles,
exaltado.
“Podem rir, caçadores! Mas vou dizer que a fumaça é muito mais importante
que um porco, seja qual for a hora em que vocês conseguirem matar um deles! Vocês
estão me entendendo?” Abriu os braços e dirigiu-se a todo o triângulo.
“A gente precisa ter fumaça sempre subindo — senão vamos morrer.”
Fez uma pausa, avaliando se era hora de prosseguir.
“E mais uma coisa.”
Alguém gritou em resposta: “É coisa demais!”
E ouviram-se murmúrios de apoio. Ralph ignorou o comentário.
“E mais uma coisa. Quase tacamos fogo na ilha toda. E é perda de tempo,
carregar pedras e fazer fogueiras menores pra cozinhar. Estou dizendo agora, e
transformando em regra, porque eu sou o chefe. O único lugar onde a gente vai ter
uma fogueira acesa é no alto do morro. E só.”
Seguiu-se imediatamente uma discussão. Vários meninos se levantaram aos
gritos, e Ralph gritava em resposta.
“Porque se alguém estiver precisando de fogo para assar um peixe ou um
caranguejo, é só subir a montanha. E assim a fogueira nunca se apaga.”
Várias mãos se estendiam para a concha à luz do sol poente. Ralph continuava
com a concha nas mãos, e pulou para cima do tronco caído.
“Era isso que eu queria dizer. E agora eu disse. Vocês me escolheram chefe por
votação. Agora precisam me obedecer.”
Os outros sossegaram, aos poucos, e finalmente tornaram a sentar-se. Ralph
relaxou e disse, usando sua voz normal.
“Então é pra não esquecer mais. O banheiro fica nas pedras. A fogueira sempre
acesa com fumaça, para servir de sinal. O fogo fica no alto da montanha. A comida,
vocês levam pra lá.”
Jack se levantou, com um ar contrariado no lusco-fusco, e estendeu as mãos.
“Ainda não acabei.”
“Mas você não para de falar!”
“A concha está comigo.”
Jack tornou a sentar-se, resmungando.
“E a última coisa. E é disso que as pessoas podem falar.”
Esperou até que todos se calassem na plataforma.
“As coisas estão querendo dar errado. Não sei por quê. A gente começou bem;
todo mundo satisfeito. E aí—”
Deslocou ligeiramente a concha, olhando para além dos presentes na direção de
coisa nenhuma, lembrando-se do bicho, da cobra, do fogo, das palavras
aterrorizadas.
“Aí muita gente começou a ficar com medo.”
Um murmúrio, quase um gemido, ergueu-se e se dissipou. Jack tinha parado de
cavoucar a vara com a faca. E Ralph continuou, abruptamente.
“Mas isso é conversa de criança pequena. E vamos esclarecer essas coisas. A
última coisa que eu falei, a parte em que todo mundo pode falar, é tentar resolver
esse caso do medo.”
O cabelo começava a cair de novo à frente dos seus olhos.
“A gente precisa conversar sobre o medo, e ver que isso não tem motivo. Às
vezes eu mesmo sinto medo, mas é bobagem! Feito o bicho-papão. E aí, depois de
resolver essa história do medo, a gente pode começar de novo e tomar cuidado com
as coisas importantes, feito a fogueira.” Uma imagem de três meninos caminhando
pela praia ensolarada passou-lhe pela cabeça. “E ser felizes.”
Com toda a cerimônia, Ralph pousou a concha no tronco ao seu lado, como
sinal de que tinha acabado de falar. A pouca luz do sol que chegava a eles estava na
horizontal.
Jack se levantou e pegou a concha.
“Quer dizer que essa reunião é pra entender o que é o quê. Eu sei o que é o
quê. Os pequenos é que começaram tudo com essa conversa de medo. Monstros! De
onde? Claro que às vezes a gente fica com medo, mas tem de aguentar firme. E
Ralph está dizendo que vocês gritam no meio da noite. Só podem ser pesadelos. De
qualquer maneira, vocês não caçam, não constroem nem ajudam em nada — são só
um monte de mulherzinhas choronas. É isso que eu acho. Essa coisa do medo —
vocês vão ter de aprender a viver com ele, como o resto de nós.”
Ralph olhou para Jack de boca aberta, mas Jack não lhe deu atenção.
“O caso é que — o medo não machuca ninguém, como os pesadelos também
não. Não existe monstro nenhum nesta ilha.” E correu os olhos pelos pequenos, que
trocavam sussurros. “E era bem feito se alguma coisa pegasse mesmo vocês, seus
chorões imprestáveis! Mas não existe animal nenhum—”
Ralph interrompeu Jack, com ar desafiador.
“Que história é essa? Quem foi que falou de animal aqui?”
“Você, no outro dia. Você contou que eles têm pesadelos e acordam chorando.
Agora eles andam falando — não só os pequenos, mas os meus caçadores também,
às vezes — falando de uma coisa, uma coisa sinistra, um monstro, algum tipo de
animal. E eu já escutei. Achavam que eu não ia ouvir? Mas prestem bem atenção.
Não existe animal grande em ilha pequena. Só porco. Você só pode ter um animal
grande, como um leão ou um tigre, se a terra for grande, como a África ou a Índia
—”
“Ou o Jardim Zoológico—”
“A concha está comigo. Não estou falando do medo. Estou falando do
monstro. Se vocês estão gostando de ter medo, problema de vocês. Mas o tal
monstro—”
Jack fez uma pausa, com a concha aninhada nos braços, e se virou para os seus
caçadores, com seus imundos barretes negros.
“Afinal, eu sou caçador ou não?”
Eles simplesmente assentiram com a cabeça. Definitivamente, ele era um
caçador. Disso ninguém duvidava.
“E então — já andei por essa ilha toda. Sozinho. Se algum monstro vivesse por
aqui eu já teria visto. Vocês podem sentir medo porque é assim que vocês são —
mas não existe monstro nenhum na floresta.”
Jack devolveu a concha e tornou a sentar-se, aplaudido com alívio pelos
meninos reunidos. E então Porquinho estendeu a mão.
“Não estou de acordo com tudo o que Jack disse, mas com uma boa parte.
Claro que não existe monstro nenhum na floresta. Como é que podia existir? O que
esse monstro ia comer?”
“Porco.”
“Porco a gente come.”
“Porquinho!”
“A concha está comigo!”, disse Porquinho em tom indignado. “Ralph — eles
deviam calar a boca, não é? Quietos aí, pequenos! O que eu quero dizer é que eu
não concordo com esse medo de vocês. Claro que não tem nada de ruim na floresta.
Eu mesmo já andei por lá! Daqui a pouco, vocês começam a falar de fantasmas e
essas coisas. A gente sempre sabe o que está acontecendo, e se alguma coisa está
errada vai ter alguém pra dar um jeito.”
Tirou seus óculos e piscou os olhos para todos. O sol havia desaparecido, como
se alguém tivesse apagado a luz.
E Porquinho continuou a explicar.
“Quando você tem uma dor de barriga, seja ela grande ou pequena—”
“A sua é bem grande.”
“Quando vocês pararem de rir, pode ser que a gente continue a reunião. E se
esses pequenos voltarem a subir no tronco bambo, vão cair de novo. Então era
melhor sentarem mesmo no chão pra escutar. Não. Tem médico pra tudo, até pra
parte de dentro da cabeça da gente. Vocês estão pensando que a gente precisa viver o
tempo todo com medo de coisa nenhuma? A vida”, disse Porquinho em tom
expansivo, “é científica, isso eu garanto. Daqui a um ou dois anos, depois que a
guerra acabar, vão dar um jeito de viajar de ida e volta pra Marte. E eu sei que não
existe monstro nenhum — nem monstro nem fera, com garras e dentes enormes e
essas coisas — mas também sei que não existe medo.”
Porquinho fez uma pausa.
“Só—”
Ralph se remexeu, inquieto.
“Só o quê?”
“Só o medo das outras pessoas.”
Um som, metade riso e metade vaia, ergueu-se dos meninos sentados.
Porquinho baixou a cabeça e foi em frente.
“Então vamos ver o que diz o pequeno que andou falando de um monstro, e
talvez a gente acabe provando que é tudo bobagem.”
Os pequenos começaram a se entreolhar, e então um deles deu um passo à
frente.
“Como é que você se chama?”
“Phil.”
Para um menino pequeno, ele se mostrava bastante seguro de si, estendendo as
mãos para aninhar a concha nos braços como tinha visto Ralph fazer, correndo os
olhos à sua volta para atrair a atenção de todos antes de começar a falar.
“Ontem à noite eu tive um sonho horrível, em que eu lutava com umas coisas.
Eu tinha saído sozinho da cabana, e estava lutando com umas coisas, essas coisas
retorcidas penduradas nas árvores.”
Ele fez uma pausa, e todos os pequenos riram, numa solidariedade apavorada.
“Então eu fiquei com medo e acordei. Daí saí sozinho da cabana e vi que as
coisas retorcidas não estavam mais lá.”
O horror daquela história, tão possível e claramente aterrorizante, deixou todos
em silêncio. E a vozinha do menino continuava a soar por trás da concha branca.
“E aí eu fiquei assustado e comecei a chamar o Ralph, e então vi alguma coisa
andando no meio das árvores, uma coisa grande e horrorosa.”
Fez uma pausa, ainda amedrontado pela lembrança mas orgulhoso do impacto
que estava produzindo.
“Foi um pesadelo”, disse Ralph. “Ele teve um ataque de sonambulismo.”
As crianças reunidas concordaram, aos murmúrios.
O pequeno abanou a cabeça, obstinado.
“Eu estava dormindo e as coisas retorcidas estavam lutando, aí quando elas
sumiram eu estava acordado, e vi uma coisa grande e horrível andando no meio das
árvores.”
Ralph estendeu as mãos pedindo a concha, e o pequeno se sentou.
“Você estava dormindo. Não tinha ninguém na floresta. Como é que alguém
podia estar andando pela floresta no meio da noite? Alguém tinha saído e estava
andando por lá?”
Uma longa pausa, enquanto as crianças reunidas trocavam sorrisos à mera ideia
de alguém sair no escuro. Então Simon se levantou, e Ralph olhou para ele,
espantado.
“Você! Mas o que você foi fazer lá no escuro?”
Simon agarrou a concha com um gesto convulso.
“Eu queria — ir prum lugar — um lugar que eu conheci.”
“Que lugar?”
“Um lugar que eu conheci. Na floresta.”
Simon hesitou.
Jack resolveu a questão para eles com o desprezo na voz que podia produzir
uma impressão tão engraçada e definitiva.
“Ele estava apertado.”
Com uma sensação de vergonha por conta de Simon, Ralph retomou a concha,
fitando Simon com ar severo.
“Bem, não vai fazer isso de novo. Entendeu? Não no meio da noite. Já andam
falando esse monte de besteiras sobre feras e monstros, e só falta os pequenos verem
você zanzando pela mata feito um—”
As risadas que se ouviram tinham uma nota de medo e condenação. Simon
abriu a boca para falar, mas recuou quando viu que a concha estava com Ralph.
Quando os meninos se calaram, Ralph virou-se para Porquinho.
“E então, Porquinho?”
“Teve mais um. Ele.”
Os pequenos empurraram Percival para a frente, e depois o deixaram sozinho.
A grama na área central cobria as suas pernas até os joelhos, e ele olhava para os seus
pés ocultos, tentando fazer de conta que estava dentro de uma barraca. Ralph se
lembrava do outro garotinho que tinha ficado de pé naquele mesmo lugar e recuou
diante dessa memória. Tinha enfiado aquela imagem bem fundo e fora de alcance,
onde só uma repetição tão clara como aquela podia trazê-la à tona. Nunca mais
tinham contado os pequenos, em parte porque não era possível ter certeza de que
todos eles tinham sido incluídos na lista e em parte porque Ralph sabia a resposta,
pelo menos para uma das perguntas que Porquinho tinha feito no alto da
montanha. Agora havia muitos garotinhos, louros, morenos, sardentos, e todos
sujos, mas o rosto de nenhum deles tinha uma mancha grande. Nunca mais
ninguém tinha visto aquela marca de nascença arroxeada. Mas da outra vez
Porquinho tinha insistido e reclamado. Admitindo tacitamente que se lembrava do
que não podia ser dito, Ralph assentiu com a cabeça para Porquinho.
“Pode perguntar pra ele.”
Porquinho se ajoelhou, com a concha na mão.
“Então vamos lá. Como é que você se chama?”
O garotinho se refugiou de volta na sua barraca. Porquinho, sem saber o que
fazer, virou-se para Ralph, que perguntou com voz forte.
“Como é o seu nome?”
Atormentado pelo silêncio e a recusa, o grupo de meninos começou a repetir,
como um refrão.
“O nome! O nome!”
“Silêncio!”
Ralph olhou para o menino à luz quase nenhuma do anoitecer.
“Diz pra gente. Como é que você se chama?”
“Percival Wemys Madison, The Vicarage, Harcourt Saint Anthony, Hants,
telefone, telefone, tele—”
Como se aquela informação estivesse cravada no fundo da fonte de onde as
dores são vertidas, o pequeno começou a chorar. Franziu o rosto, as lágrimas lhe
saltavam dos olhos, sua boca se abriu até se transformar num buraco escuro e
quadrado. Num primeiro momento ele se converteu numa efígie silenciosa da dor,
mas logo o lamento brotou de dentro dele, alto e prolongado como um toque de
concha.
“Ei, silêncio! Já chega!”
Mas Percival Wemys Madison não parava. Tinha alcançado um veio muito
além do alcance da autoridade ou mesmo da intimidação física. O choro prosseguiu,
arquejo após arquejo, e parecia sustentá-lo em pé, como se o mantivesse pregado ao
chão.
“Cala a boca! Para com isso!”
Porque agora os pequenos não estavam mais quietos. Cada um tinha se
lembrado das suas dores pessoais; e talvez tenham sentido que compartilhavam uma
dor universal. Começaram a chorar por solidariedade, dois deles quase tão alto
quanto Percival.
Mas Maurice salvou os meninos. E gritou.
“Olha aqui!”
Fingiu que caía no chão. Esfregou o traseiro e sentou-se no tronco
desequilibrado, caindo de novo na relva. Nem era bom palhaço; mas Percival e os
outros olharam para ele, fungaram e começaram a rir. Em seguida, estavam todos
rindo de maneira tão absurda que os grandes também aderiram.
Jack foi o primeiro a se manifestar. Não tinha pegado a concha, e por isso
desrespeitava as regras, mas ninguém se incomodou.
“E o tal monstro?”
Alguma coisa estranha estava acontecendo com Percival. Ele bocejava e oscilava,
e Jack o segurou, sacudindo com força.
“Onde ele vive, o monstro?”
Percival amoleceu ao ser agarrado por Jack.
“Precisa ser um monstro muito esperto”, disse Porquinho em tom de zombaria,
“pra conseguir se esconder nesta ilha”.
“Jack já correu a ilha toda—”
“Onde é que um monstro podia viver?”
“Monstro uma ova!”
Percival murmurou alguma coisa e os meninos reunidos tornaram a cair na
risada. Ralph se inclinou para a frente.
“O que ele disse?”
Jack ouviu a resposta de Percival e depois largou o garoto. Percival, solto,
rodeado pela presença reconfortante de seres humanos, caiu na relva alta e
adormeceu.
Jack limpou a garganta, e então relatou, em tom casual.
“Ele disse que o monstro vem do mar.”
As últimas risadas morreram no ar. Ralph virou-se sem querer, uma silhueta
negra e encurvada recortada contra a laguna. Os outros presentes olharam na mesma
direção que ele, examinando as vastas extensões de água, o alto-mar mais além, o
índigo desconhecido de tantas possibilidades; escutando em silêncio os suspiros e
murmúrios dos recifes.
Maurice falou — tão alto que todos se assustaram.
“Meu pai me disse que as pessoas ainda não conhecem todos os bichos que
vivem no mar.”
E a discussão recomeçou. Ralph estendeu a concha reluzente e Maurice,
obediente, aceitou-a. Os meninos reunidos se aquietaram.
“Acho que Jack tem razão quando diz que a gente pode estar com medo porque
as pessoas sempre dão um jeito de sentir medo. Mas quando diz que só existem
porcos nesta ilha imagino que ele tenha razão, mas ele não tem como saber, não de
verdade, quer dizer, não fora de qualquer dúvida” — Maurice respirou fundo. —
“Meu pai contou que existem bichos, como chama, aqueles que produzem tinta —
lulas — com mais de dez metros de comprimento, que conseguem até devorar uma
baleia inteira.” Fez uma pausa, e riu alegremente. “Eu não acredito no monstro,
claro. Como diz o Porquinho, a vida é científica, mas a gente nunca sabe, não é?
Não com toda a certeza—”
Alguém gritou.
“Nenhuma lula sai da água!”
“Sai, sim!”
“Não sai!”
Em um instante a plataforma estava tomada por sombras que discutiam e
gesticulavam. Para Ralph, sentado, aquilo parecia o fim da sanidade. O medo,
monstros, o acordo a que não tinham chegado sobre a importância suprema da
fogueira: e quando alguém tentava falar claro a conversa tomava outro rumo,
trazendo à tona novos temas desagradáveis.
Ralph viu uma mancha branca no lusco-fusco perto de si, tirou-a das mãos de
Maurice e soprou nela com toda a força. Os meninos reunidos, espantados, se
calaram. Simon estava perto dele, estendendo as mãos para a concha. Simon sentia
uma necessidade de correr o risco de falar; mas falar para o coletivo reunido era
terrível para ele.
“Talvez”, disse ele, hesitante, “talvez exista um monstro”.
Os meninos todos soltaram um grito selvagem, e Ralph se pôs de pé de um
salto, admirado.
“Até você, Simon? Você acredita mesmo nisso?”
“Não sei”, respondeu Simon. Seu coração batia forte e quase o sufocava.
“Mas...”
A tempestade desabou.
“Senta aí!”
“Cala a boca!”
“Pega a concha!”
“Vai se catar!”
“Cala a boca!”
Ralph gritou.
“A gente tem de escutar! Ele está com a concha!”
“Eu queria dizer que... pode ser só a gente.”
“Besteira!”
Dito por Porquinho, que o espanto tinha feito perder o decoro. Simon
continuou.
“A gente podia estar meio que...”
Simon perdeu a articulação, em seu esforço para exprimir a doença essencial do
gênero humano. Mas teve uma inspiração.
“Qual é a coisa mais horrível que existe?”
Em resposta, Jack deixou cair, em meio ao silêncio, uma única palavra
expressiva e grosseira. O alívio de todos lembrou um orgasmo. Os pequenos que
tinham voltado a sentar no tronco bambo caíram novamente e nem se
incomodaram. Os caçadores riam alto, encantados.
O esforço de Simon desfez-se em ruínas à sua volta; foi cruelmente castigado
pelas risadas e, indefeso, tornou a sentar-se, encolhido.
Finalmente os meninos se calaram. Alguém falou fora da vez.
“Acho que ele quer dizer que é algum tipo de fantasma.”
Ralph levantou a concha e tentou enxergar no escuro. O que se via com mais
nitidez era a faixa clara da praia. Os pequenos tinham chegado mais perto? Isso
mesmo — sem a menor dúvida, eles tinham se juntado, formando um aglomerado
denso de corpos no relvado central. Uma rajada de vento fez levantar-se o canto dos
coqueiros, e o barulho soou muito alto, agora que a escuridão e o silêncio o
tornavam tão audível. Dois troncos cinzentos esfregaram-se um no outro com um
rangido malévolo que nunca tinha sido ouvido com dia claro.
Porquinho tirou a concha das mãos de Ralph. Falava com voz indignada.
“Eu não acredito em fantasma nenhum — nunca acreditei!”
Jack também estava de pé, inexplicavelmente enfurecido.
“E quem perguntou o que você acha, gorducho?”
“A concha está comigo!”
Ouviu-se o som de uma curta disputa física, e a concha trocou de mãos.
“Devolve a concha!”
Ralph se interpôs entre eles e levou uma pancada no peito. Arrancou a concha
das mãos de alguém e tornou a sentar-se, sem fôlego.
“Tem gente demais falando de fantasmas. A gente devia ter deixado pra
conversar com dia claro.”
Uma voz sussurrada e anônima interrompeu.
“Talvez o monstro seja isso — um fantasma.”
Os meninos foram sacudidos como que por uma ventania.
“Tem gente demais falando fora da vez”, disse Ralph, “e não dá pra fazer
reunião se ninguém respeita as regras”.
Parou de falar de novo. Os planos cuidadosos que tinha feito para aquele
encontro tinham ido por água abaixo.
“O que vocês querem que eu diga? Foi um erro eu ter começado essa reunião
tão tarde. Vamos ter de votar sobre isso; estou falando dessa história de fantasmas. E
depois a gente volta pro dormitório, porque está todo mundo muito cansado. Não
— foi Jack quem pediu? — só mais um minuto. Vou dizer desde já que não acredito
em fantasma. Ou acho que não. Mas não gosto de ficar pensando nisso. Quer dizer,
não agora, não no escuro. Mas todo mundo vai decidir o que é o quê.”
Ergueu a concha por um tempo.
“Muito bem. Acho que a gente precisa decidir se fantasma existe ou não —”
Pensou por um momento na formulação da pergunta.
“Quem acha que pode existir fantasma?”
Por muito tempo o silêncio perdurou, sem qualquer movimento aparente. Em
seguida, Ralph perscrutou a penumbra e conseguiu contar as mãos levantadas. E
disse, em tom seco:
“Entendi.”
O mundo, aquele mundo compreensível e obediente à lei, desmoronava.
Primeiro era uma coisa, depois outra; e agora — o navio tinha passado.
A concha foi arrancada das suas mãos e a voz de Porquinho soou muito aguda.
“Eu não votei em fantasma nenhum!”
Girou, encarando todos os meninos reunidos.
“E é bom vocês todos não se esquecerem disso!”
Ouviram seu pé batendo no chão.
“O quê que a gente é? Pessoas? Bichos? Ou selvagens? O que um adulto ia
pensar? A gente andando por aí — caçando porco — deixando a fogueira apagar —
e agora mais essa!”
Uma sombra ergueu-se tempestuosa à frente dele.
“Cala a boca, lesma gorda!”
Houve uma luta curta e a concha reluzente apareceu subindo e descendo no ar.
Ralph levantou-se de um salto.
“Jack! Jack! A concha não está contigo! Deixa ele falar.”
O rosto de Jack emergiu bem perto dele.
“Você também, cala a boca! Quem você acha que é? Fica aí sentado, dizendo
pras pessoas fazer isso ou aquilo. Não sabe caçar, não sabe cantar—”
“Eu sou o chefe. Fui escolhido.”
“E qual é a diferença que isso faz? Fica aí dando ordens sem sentido—”
“A concha está com o Porquinho.”
“Pois é — e continua a proteger o Porquinho, como sempre—”
“Jack!”
A voz de Jack produziu um arremedo amargo da sua.
“Jack! Jack!”
“As regras!”, gritou Ralph. “Você está desobedecendo as regras!”
“Estou pouco ligando!”
Ralph fez o possível para manter a calma.
“Mas sem regras a gente não tem nada!”
Só que Jack já gritava mais com ele.
“Que se danem as regras! A gente é forte — e caça! Se existir algum monstro, a
gente caça também! A gente cerca, e bate, e bate, e bate—!”
Soltou um grito selvagem e pulou para a areia clara. Na mesma hora a
plataforma foi tomada pelo som e a agitação, correrias, gritos e risos. A reunião se
desfez e se transformou numa dispersão aleatória e verbosa entre os coqueiros e o
mar e ao longo de toda a praia, além do alcance da visão no escuro. Ralph sentiu
que seu rosto encostava na concha, e a tomou de Porquinho.
“O que um adulto ia dizer nessa hora?”, tornou a gritar Porquinho. “Olha só
pra eles!”
Os sons de uma caçada simulada, de risos histéricos e de um terror verdadeiro
se erguiam da praia.
“Toque a concha, Ralph.”
Porquinho estava tão próximo que Ralph percebia a cintilação da única lente
dos seus óculos.
“E a fogueira. Será que ninguém entende?”
“Você precisa gritar com eles. E obrigar todo mundo a fazer o que você
manda.”
Ralph respondeu com a voz cautelosa de quem ensaia um teorema.
“Se eu tocar a concha e ninguém voltar, está tudo acabado. Ninguém mais vai
manter o fogo aceso. Vamos viver feito bichos. E nunca mais vão vir resgatar a
gente.”
“Se você não tocar a concha, em pouco tempo a gente vai estar vivendo feito
bicho, de qualquer maneira. Não consigo enxergar o que eles andam fazendo, mas
estou ouvindo.”
As figuras dispersas tinham se reunido na areia, formando uma densa massa
negra que girava. Repetiam alguma coisa, e os pequenos que não aguentavam mais
se afastavam trôpegos, aos prantos. Ralph levou a concha aos lábios, mas não
soprou.
“O problema é o seguinte, Porquinho. Fantasma existe? Ou monstro?”
“Claro que não.”
“Por que não?”
“Porque aí as coisas não iam fazer sentido. As casas, as ruas, e — a TV — nada
ia funcionar.”
Os meninos que dançavam e repetiam seu refrão tinham se afastado, e agora o
som que produziam era apenas um ritmo sem palavras.
“Mas e se elas não fizerem sentido? Não aqui, na ilha? Se tiver alguma coisa
vendo tudo o que a gente faz, e só esperando?”
Ralph estremeceu com violência e se aproximou mais de Porquinho,
exagerando tanto que esbarrou no outro.
“Para de falar assim! A gente já tem problema de sobra, Ralph, e não dá pra
aguentar mais nenhum. Se fantasma existir—”
“Eu devia desistir de ser chefe. Escuta só os outros.”
“Ah, meu Deus! Nada disso!”
Porquinho agarrou o braço de Ralph.
“Se o chefe fosse o Jack, a gente ia passar o tempo todo caçando, e ninguém
mais ia cuidar da fogueira. A gente ia ficar aqui até morrer.”
Sua voz ficou mais aguda, e se transformou num guincho.
“Quem é que está aí sentado?”
“Sou eu, Simon.”
“Olhe só pra nós três, todos imprestáveis”, disse Ralph. “Três patetas. Vou
desistir.”
“Se você desistir”, disse Porquinho, num sussurro assustado, “o que vai
acontecer comigo?”.
“Nada.”
“Ele me detesta. Não sei por quê. Se ele puder fazer o que quiser — você é
bacana, e ele te respeita. Além disso, você bateu nele.”
“E vocês dois estavam tendo uma bela briga agora há pouco.”
“A concha estava comigo”, disse Porquinho em tom direto. “Eu tinha o direito
de falar.”
Simon se mexeu no escuro.
“Continua a ser o chefe.”
“Cala essa boca, Simon! Por que você não podia dizer que não existe monstro
nenhum?”
“Eu tenho medo dele”, disse Porquinho, “e é por isso que eu sei quem ele é.
Quando você sente medo de alguém, odeia a pessoa mas não consegue parar de
pensar nela. Você se engana, diz que no fundo ele é bom, mas então, da próxima vez
que encontra a pessoa, parece que tem uma crise de asma, e não consegue respirar. E
vou dizer mais uma coisa. Ele detesta você também, Ralph—”
“Eu? Por que eu?”
“Não sei. Você reclamou com ele por causa da fogueira. E você é o chefe, ao
invés dele.”
“Mas ele, ele é Jack Merridew!”
“Passei tanto tempo na cama que andei pensando. E eu sei como as pessoas são.
Sei como eu sou e como ele é. Ele não tem como te fazer mal; mas se você sair da
frente, ele vai atacar a pessoa seguinte. Que sou eu.”
“O Porquinho tem razão, Ralph. É entre você e Jack. E você precisa continuar a
ser o chefe.”
“Estamos todos meio perdidos, e as coisas vão mal. Onde a gente vivia, tinha
sempre algum adulto. Por favor, moço; por favor, moça; e alguém tomava uma
providência. Bem que eu queria...”
“Eu queria que a minha tia estivesse aqui.”
“E eu queria que o meu pai... Mas não adianta!”
“A fogueira precisa continuar acesa.”
A dança tinha acabado, e os caçadores estavam voltando para o dormitório.
“Tem coisas que os adultos sabem”, disse Porquinho. “Eles não sentem medo
do escuro. Eles se encontram, tomam chá e conversam. E aí os problemas se
acabavam—”
“Eles nunca iam queimar a ilha toda. Nem perder—”
“Iam construir um barco—”
Os três meninos continuaram de pé no escuro, se esforçando em vão para
definir toda a grandeza da vida de adulto.
“Nunca iam ficar brigando—”
“Nem quebrar os meus óculos—”
“Nem ficar falando de monstro—”
“Eles bem que podiam mandar uma mensagem”, exclamou Ralph em tom de
desespero. “Bem podiam mandar alguma coisa adulta pra gente... um sinal, ou coisa
assim.”
Um grito agudo que se ergueu na escuridão os deixou gelados e os fez estender
as mãos à procura uns dos outros. Então o grito ficou mais alto, um lamento
distante e fantasmagórico, e se transformou num balbucio desarticulado. Percival
Wemys Madison, de Vicarage, Harcourt St. Anthony, estendido na relva alta,
atravessava circunstâncias em que repetir a fórmula mágica do seu endereço não
tinha mais o poder de ajudá-lo.
Capítulo seis
O monstro do ar
Não havia mais luz alguma além do brilho das estrelas. Quando entenderam o que
havia produzido aquele som fantasmagórico, e depois que Percival tornou a se calar,
Ralph e Simon o recolheram desajeitados e o carregaram para os dormitórios.
Porquinho os seguia de perto, apesar de toda a sua aparente coragem, e os três
meninos maiores seguiram juntos para o abrigo mais próximo. Deitaram-se
inquietos e com muito ruído em meio às folhas secas, contemplando a trilha de
estrelas que tomava a abertura do abrigo que dava para a laguna. De vez em quando,
um pequeno gritava nos outros abrigos e, numa das vezes, um menino maior disse
alguma coisa no escuro. E então eles também adormeceram.
Uma fatia de lua prateada se ergueu acima do horizonte, quase sem tamanho
suficiente para produzir um rastro luminoso, mesmo quase encostada na água; mas
havia outras luzes no céu, deslocando-se depressa, piscando ou se apagando, embora
o som atenuado de nenhuma explosão chegasse até lá da batalha que se travava a
quinze mil metros de altitude. Mas um sinal veio do mundo dos adultos, embora
àquela altura nenhum dos meninos estivesse acordado para acompanhar sua
chegada. Houve um clarão repentino e um rastro em parafuso riscando o céu;
depois novamente só a escuridão e as estrelas. Um ponto claro apareceu acima da
ilha, uma figura que despencava depressa debaixo de um paraquedas, uma figura
que ali pendia com os membros inertes. Os ventos variáveis de diversas altitudes
impeliam essa figura sempre que podiam. E então, a uns cinco mil metros de altura,
os ventos cessaram e a fizeram descer descrevendo uma curva no céu, empurrando-a
numa diagonal por cima do recife e da laguna na direção da montanha. A figura
desceu e desabou em meio às flores azuis da encosta, mas agora havia um vento
suave também à flor da terra, e o paraquedas continuou a avançar, esbarrando num
ou noutro obstáculo, sempre puxado pelo vento. E assim aquela figura, arrastando
os pés, foi deslizando montanha acima. Metro a metro, sopro a sopro, o vento a
arrastava entre as flores azuis, passando por cima das pedras soltas e das rochas
avermelhadas, até deixá-la estendida em meio às pedras despedaçadas do topo da
montanha. Ali o vento se mostrou mais caprichoso e permitiu que os cordões do
paraquedas se emaranhassem, prendendo-se às pedras; e então a figura parou
sentada, com a cabeça de capacete entre os joelhos, sustentada por complicadas
amarras. Toda vez que o vento soprava, os cabos se esticavam e por algum acidente
dessa tração erguiam a cabeça e o peito da figura, dando a impressão de que ela
contemplava o panorama do alto da montanha. Em seguida, quando o vento
amainava, os cabos se afrouxavam e a figura tornava a desabar para a frente,
mergulhando a cabeça entre os joelhos. Assim, à medida que as estrelas se
deslocavam pelo céu, a figura seguia sentada no topo da montanha, erguendo a
cabeça, depois desabando e tornando a erguer a cabeça.
Na penumbra do início da manhã, ouviram-se ruídos junto a uma pedra um
pouco mais abaixo, no flanco da montanha. Dois meninos rolaram para fora de uma
pilha de galhos e folhas mortas, duas sombras indistintas conversando sonolentas.
Eram os gêmeos, encarregados de tomar conta do fogo. Teoricamente, um devia
estar dormindo e o outro de sentinela. Mas os dois jamais conseguiam fazer as coisas
da maneira certa quando tinham de agir de forma independente e, como não havia
meio de passar a noite toda acordados, ambos tinham ido dormir. Agora se
aproximavam da mancha escura que tinha sido a fogueira de sinalização, bocejando,
esfregando os olhos e arrastando os pés. Quando chegaram ao lado dela, pararam de
bocejar, e um deles voltou correndo em busca de ramos e folhas secas.
O outro se ajoelhou.
“Acho que está apagada.”
Remexeu as cinzas com os gravetos que lhe eram enfiados nas mãos.
“Não.”
Estendeu-se de barriga no chão, aproximou os lábios da fogueira e soprou de
mansinho. Seu rosto apareceu, iluminado de vermelho. Parou de soprar por algum
tempo.
“Sam — traz—”
“—mais lenha.”
Eric se debruçou para a frente e voltou a soprar de leve até a mancha
avermelhada adquirir mais brilho. Sam ajustou um pedaço de lenha na área mais
quente, e em seguida um galho maior. O brilho aumentou e o galho pegou fogo.
Sam empilhou mais galhos.
“Não queime tudo”, disse Eric. “Você está pondo lenha demais.”
“A gente precisa se esquentar.”
“E aí vamos ter de ir buscar mais lenha.”
“Estou com frio.”
“Eu também.”
“Além disso, está—”
“—escuro. Então tudo bem.”
Eric se acocorou e ficou observando enquanto Sam armava a fogueira. O
menino construiu uma espécie de tenda de galhos secos, e o fogo reacendeu em
segurança.
“Ufa, passou perto.”
“Ele ia ficar—”
“Furioso.”
“Pois é.”
Por alguns momentos, os gêmeos ficaram olhando para o fogo em silêncio. E
então Eric deu um risinho.
“Você viu como ele ficou furioso?”
“Com a história—”
“Da fogueira, e do porco.”
“Ainda bem que ele resolveu brigar com Jack, e não com a gente.”
“Pois é. Lembra dele no tempo da escola?”
“Caramba — você-está-me-deixando-louco!”
Os dois gêmeos emitiram um riso idêntico, depois se lembraram da escuridão e
de outras coisas, e correram os olhos inquietos à sua volta. As chamas, erguendo-se
em torno da tendinha de galhos armada por Sam, atraíram seus olhos de volta. Eric
ficou observando os insetos que viviam na madeira, tentando freneticamente escapar
do fogo, e pensou no incêndio — um pouco mais abaixo, na encosta mais íngreme,
onde agora a escuridão era completa. Não gostava de se lembrar daquilo, e desviou
os olhos para o topo da montanha.
O calor começava a se espalhar, e alcançou os dois com seu conforto. Sam se
divertia ajustando mais galhos na fogueira com o maior equilíbrio possível. Eric
avançava as mãos abertas, procurando a distância a partir da qual o calor ficaria
difícil de suportar. Olhando por acaso para além da fogueira, começou a distinguir
as rochas espalhadas que emergiam da sombra maciça para os contornos da luz do
dia. Ali ficava a pedra maior, e depois os três rochedos, depois as pedras espalhadas,
e mais adiante ficava a brecha — bem ali—
“Sam.”
“O quê?”
“Nada.”
As chamas engoliam os galhos, a casca se retorcia e caía no fogo, a madeira dava
estouros. A tendinha de galhos desabou e liberou um vasto círculo de luz que ia até
o cume da montanha.
“Sam—”
“O quê?”
“Sam! Sam!”
Sam ergueu os olhos irritados para Eric. A intensidade do olhar de Eric tornava
terrível a direção em que ele olhava, pois Sam estava de costas para ela. Sam deu a
volta na fogueira, agachou-se ao lado de Eric e olhou para cima. Os dois ficaram
imóveis, agarrando os braços um do outro, quatro olhos atônitos sem piscar e duas
bocas muito abertas.
Bem abaixo de onde se encontravam, as árvores da floresta murmuravam,
depois emitiram um ronco. O cabelo se agitou em suas testas e as chamas da
fogueira se agitaram para um dos lados. A quinze metros deles, o vento abriu o
tecido e o som seco e forte se ouviu com clareza.
Nenhum dos dois gritou, mas apertaram o braço do outro com mais força e
suas bocas se estreitaram. Por uns dez segundos talvez continuaram ali acocorados
enquanto o fogo lançava fumaça, fagulhas e ondas de luz inconstante na direção do
topo da montanha.
Então, como se os dois compartilhassem uma única mente aterrorizada,
afastaram-se daquelas pedras e fugiram correndo.
Ralph estava sonhando. Tinha adormecido depois do que lhe pareceram horas se
revirando ruidosamente no meio das folhas secas. Até os sons dos pesadelos dos
outros abrigos não chegavam mais a ele, pois estava de volta a seu lugar de origem,
dando torrões de açúcar aos pôneis por cima do muro do jardim. Então alguém
começou a sacudir seu braço, dizendo que era hora do chá.
“Ralph! Acorda!”
As folhas rugiam como o mar.
“Ralph, acorda!”
“O que foi?”
“A gente viu—”
“—o monstro—”
“—claramente!”
“Vocês são quem? Os gêmeos?”
“A gente viu o monstro—”
“Cala a boca. Porquinho!”
As folhas ainda rugiam. Porquinho esbarrou nele e um dos gêmeos agarrou o
menino que se afastava na direção do losango de estrelas cada vez mais débeis.
“Vocês não podem sair — é horrível!”
“Porquinho — onde estão as lanças?”
“Eu ouvi—”
“Então cala a boca. Fica quieto.”
E ficaram ali deitados ouvindo, primeiro tomados por alguma dúvida mas
depois pelo terror, enquanto os gêmeos sussurravam sua descrição em meio a
lacunas de extremo silêncio. Em pouco tempo a escuridão se viu povoada de garras,
tomada pelo horror desconhecido e o perigo. Uma aurora interminável apagou as
estrelas, e finalmente a luz, triste e pálida, infiltrou-se no dormitório. Começaram a
se mexer, embora o mundo lá fora ainda lhes parecesse impossivelmente ameaçador.
O labirinto das trevas se organizou, separando os lugares próximos dos distantes, e
no ponto mais alto do céu as nuvenzinhas se iluminavam de cores quentes. Uma
única ave marinha bateu asas e subiu ao céu com um grito rouco que logo foi
repetido, e alguma criatura grasnou na floresta. As tiras de nuvens próximas ao
horizonte começaram a fulgurar em tons de cor-de-rosa, e os tufos plumosos do alto
dos coqueiros foram ficando verdes.
Ralph se ajoelhou na porta do abrigo e olhou cuidadosamente à sua volta.
“Sam e Eric. Chamem todo mundo pruma reunião. Sem fazer barulho. Agora.”
Os gêmeos, trêmulos e ainda agarrados um ao outro, arriscaram-se a atravessar
os poucos metros até o abrigo seguinte, espalhando a terrível novidade. Ralph se
levantou e saiu andando na direção da plataforma, preocupado em manter alguma
dignidade embora sentisse calafrios nas costas. Porquinho e Simon o
acompanhavam, e em seguida os outros meninos foram se aproximando em silêncio.
Ralph pegou a concha em seu lugar no banco polido e a levou aos lábios, mas
em seguida hesitou e decidiu não tirar seu som. Em vez disso, levantou a concha,
que mostrou a todos, e eles entenderam.
Os raios do sol que se espalhavam de baixo para cima, vindos de além do
horizonte, baixaram finalmente até o nível dos olhos. Ralph olhou por algum tempo
para a faixa cada vez maior de luz dourada que iluminava a todos vindo da direita e
parecia tornar a reunião possível. O círculo de meninos à sua frente estava eriçado
de lanças de caça.
Ralph entregou a concha a Eric, o mais próximo dos gêmeos.
“Nós dois, a gente viu o monstro com os próprios olhos. Não — ninguém
estava dormindo—”
Sam contou o resto da história. Por costume, a essa altura, a concha servia de
uma só vez para os dois, cuja unidade substancial era reconhecida por todos.
“Era peludo. E alguma coisa se mexia atrás da cabeça dele — asas. E o monstro
se mexeu também—”
“Foi horrível. Ele meio que levantou o corpo—”
“O fogo estava alto—”
“A gente tinha acabado de aumentar—”
“—botando mais lenha—”
“E aí os olhos—”
“Os dentes—”
“As garras—”
“Saímos correndo a toda—”
“Esbarrando em tudo—”
“E o monstro logo atrás—”
“Eu vi ele correndo no meio das árvores—”
“Quase me pegou—”
Ralph apontou assustado para o rosto de Eric, lanhado pelos espinhos e por
pontas de galhos.
“Como foi que isso aconteceu?”
Eric apalpou o rosto.
“Está ardendo. Está saindo sangue?”
O círculo de meninos recuou de horror. Johnny, ainda bocejando, irrompeu em
lágrimas ruidosas e foi esbofeteado por Bill até conseguir sufocá-las. A manhã
luminosa estava carregada de ameaças, e o círculo começou a mudar. Fitava o lado
de fora em vez de olhar para dentro, e as lanças de madeira afiada lhe serviam de
cerca. Jack chamou-os de volta para o centro.
“Vai ser uma caçada de verdade! Quem vem?”
Ralph respondeu com um gesto impaciente.
“Essas lanças são de madeira. Não diga bobagens.”
Jack o encarou com ar de desprezo.
“Com medo?”
“Claro que estou com medo! Quem não ia ficar?”
Virou-se para os gêmeos, suplicante mas sem muita esperança.
“Vocês não estão querendo enganar a gente?”
A resposta foi enfática demais para admitir qualquer dúvida.
Porquinho pegou a concha.
“Será que a gente não podia — assim — ficar aqui mesmo? Talvez o monstro
nem chegue cá por perto.”
Se não fosse a sensação de que estavam sendo observados por alguma coisa,
Ralph teria respondido aos gritos.
“Ficar aqui? Isolados nesse trechinho da ilha, sempre de sentinela? E como a
gente ia arranjar comida? E como ia cuidar da fogueira?”
“A gente devia ir logo”, disse Jack, inquieto. “Estamos perdendo tempo.”
“Não, nada disso. E os pequenos, como ficam?”
“Os pequenos que se danem!”
“Alguém precisa tomar conta deles.”
“Até agora ninguém tomou.”
“Porque não precisava! Mas agora precisa. O Porquinho fica cuidando deles.”
“Está certo. Deixar o Porquinho sempre protegido do perigo.”
“Mas pensa bem. O que ele pode fazer, com um olho só?”
O resto dos meninos olhava de Jack para Ralph, curiosos.
“E mais uma coisa. Não pode ser uma caçada normal, porque o monstro não
deixa rastro. Se deixasse, vocês já tinham visto. Até onde a gente sabe, o monstro
pode pular de cipó em cipó feito aquele cara da floresta.”
Todos concordaram.
“Então a gente precisa pensar.”
Porquinho tirou seus óculos estragados e limpou a lente que restava.
“E a gente, Ralph?”
“A concha não está com você. Toma aqui.”
“Está certo — e nós? E se o monstro chegar depois de vocês irem embora? Eu
não enxergo direito, e se ficar com medo—”
Jack o interrompeu, com desprezo.
“Você está sempre com medo.”
“A concha está comigo—”
“A concha! A concha!”, gritou Jack, “a gente não precisa mais da concha. A
gente sabe quem tem de dizer as coisas. O que adiantou o Simon falar, ou Bill, ou
Walter? Já está na hora de algumas pessoas saberem que deviam ficar de boca calada
e deixar as decisões pro resto de nós—”
Ralph não podia mais ignorar as palavras de Jack. O sangue subiu quente às
suas faces.
“A concha não está com você”, disse ele. “Senta aí.”
O rosto de Jack ficou tão pálido que as sardas se destacaram como salpicos de
um castanho-claro. Ele passou a língua pelos lábios e continuou de pé.
“Isso é assunto para os caçadores.”
O resto dos meninos observava com toda a atenção. Porquinho, sentindo-se
desconfortavelmente envolvido, deixou a concha escorregar para os joelhos de Ralph
e se sentou. O silêncio ficou opressivo, e Porquinho conteve a respiração.
“É mais que assunto para os caçadores”, disse Ralph finalmente, “porque vocês
não têm como seguir o rastro do monstro. E vocês não querem ser resgatados?”.
Virou-se para os meninos reunidos.
“Vocês todos não querem ser resgatados?”
Voltou a olhar para Jack.
“Eu já disse antes, o mais importante é a fogueira. A essa altura, deve estar
apagada—”
A velha exasperação veio em seu socorro e lhe deu a energia para atacar.
“Será que ninguém mais aqui tem juízo? A gente precisa reacender a fogueira.
Isso não passou pela sua cabeça, não é, Jack? Ou será que vocês não querem mesmo
ser salvos?”
Sim, todos queriam ser salvos, sem a menor dúvida; e com uma violenta
guinada em favor de Ralph a crise foi superada. Porquinho soltou a respiração com
um arquejo, tentou respirar de novo e não conseguiu. Encostou-se num tronco, de
boca aberta, um tom azulado aparecendo em volta dos seus lábios. Ninguém lhe deu
atenção.
“Agora pensa um pouco, Jack. Existe algum ponto da ilha aonde você nunca
foi?”
De má vontade, Jack respondeu.
“Só tem — mas é claro! Vocês se lembram? A outra ponta da ilha, onde ficam
as pedras empilhadas. Eu já estive ali perto. As pedras formam uma espécie de
ponte. Só tem um jeito de subir.”
“E pode ser lá que essa coisa vive.”
Todos começaram a falar ao mesmo tempo.
“Quietos! Está bem. É lá que a gente vai procurar. Se o monstro não estiver lá,
vamos subir o morro e olhar de cima; e acender a fogueira.”
“Vamos lá.”
“Primeiro a gente come. Depois vai.” Ralph fez uma pausa. “E é melhor levar as
lanças.”
Depois que comeram, Ralph e os grandes partiram pela praia. Deixaram
Porquinho encostado na plataforma. O dia prometia, como os outros, sol intenso
sob uma cúpula toda azul. A praia se estendia diante deles descrevendo uma curva
suave até que a perspectiva a fazia fundir-se com a floresta; pois o dia ainda não
tinha avançado o suficiente para se tornar menos nítido por força dos véus fugazes
das miragens. Por sugestão de Ralph, escolheram um caminho cauteloso ao longo da
plataforma de coqueiros, em vez de seguirem pela areia quente mais perto da água.
Jack ia à frente, avançando com uma cautela exagerada embora qualquer inimigo
pudesse ser visto a vinte metros de distância. Ralph caminhava na retaguarda, grato
por poder evitar mais uma responsabilidade dessa vez.
Simon, caminhando em frente a Ralph, sentiu uma fisgada de incredulidade —
um monstro com garras que arranhavam, instalado no alto da montanha, que não
deixava rastros mas ainda assim tinha a velocidade necessária para alcançar
Samineric. Sempre que pensava no monstro, o que se erguia diante de sua visão
interior era a imagem de um ser humano ao mesmo tempo heroico e doente.
Suspirou. Ao que tudo indicava, as outras pessoas eram capazes de se dirigir a
um grupo grande sem aquela sensação terrível da pressão da personalidade; sabiam
dizer o que queriam, como se falassem com uma pessoa só. Deu um passo para o
lado e olhou para trás. Ralph vinha logo atrás dele, com a lança apoiada no ombro.
Inseguro, Simon afrouxou seu passo até se ver ao lado de Ralph, olhando para ele
através dos cabelos negros grossos que agora lhe caíam por cima dos olhos. Ralph
olhou de lado, deu um sorriso forçado, como se tivesse esquecido o papel de idiota
que Simon tinha feito, depois voltou a olhar para o nada. Por um ou dois instantes
Simon ficou feliz de ter sido aceito, depois parou de pensar em si mesmo. Quando
esbarrou numa árvore, Ralph lançou-lhe um olhar de esguelha e Robert deu um riso
abafado. Simon rodopiou e um ponto branco na sua testa foi ficando vermelho e
depois começou a pingar sangue. Ralph parou de dar atenção a Simon e retornou a
seu inferno particular. Iriam chegar ao castelo dali a pouco, e o chefe precisaria
tomar a frente.
Jack apareceu correndo.
“Já estamos quase lá.”
“Está certo. Vamos chegar o mais perto possível.”
Seguiu Jack na direção do castelo, onde o terreno começava a subir um pouco.
À esquerda deles, erguia-se um emaranhado impenetrável de árvores e cipós.
“Por que não daria pra alguma coisa viver aí?”
“Dá pra ver por quê. Nada ia conseguir entrar ou sair daí.”
“E o castelo?”
“Olha ali.”
Ralph afastou a cortina de vegetação e olhou. Havia apenas mais uns poucos
metros de solo pedregoso, antes de os dois lados da ilha quase se juntarem; qualquer
um esperaria uma ponta avançando pelo mar. Em vez disso, uma plataforma estreita
de pedra, com poucos metros de largura por uns quinze de comprimento, dava
prosseguimento à ilha e se projetava mar adentro. E lá se erguia mais um desses
penhascos quadrados de pedra rosada em que toda a ilha se apoiava. O lado de cá do
castelo, com talvez uns trinta metros de altura, era o bastião rosado que tinham visto
do alto da montanha. A rocha do penhasco estava rachada, e em cima dele se
espalhavam pedras que pareciam soltas e desequilibradas.
Atrás de Ralph, a relva alta foi se enchendo de caçadores em silêncio. Ralph
olhou para Jack.
“Você é caçador.”
Jack corou.
“Eu sei. Está bem.”
Alguma coisa no fundo de Ralph falou por ele.
“Eu sou o chefe. Eu vou. Nem adianta discutir.”
Virou-se para os outros.
“Vocês ficam escondidos aqui. E esperam eu voltar.”
Descobriu que sua voz tendia a desaparecer ou sair alta demais. Olhou para
Jack.
“Você — acha?”
Jack respondeu num murmúrio.
“Já andei pela ilha toda. Só pode estar aqui.”
“Entendi.”
Simon murmurou em tom confuso: “Eu não acredito no monstro.”
Ralph respondeu com cortesia, como se discutisse as condições do tempo.
“Não, imagino que não.”
Sua boca estava franzida e branca. Puxou o cabelo para trás muito devagar.
“Bom. Até logo.”
Forçou seus pés a entrarem em movimento até eles o levarem à passagem de
terra que os separava do rochedo.
Por todos os lados, viu-se cercado de abismos de ar vazio. Não havia onde
pudesse se esconder, mesmo que não precisasse seguir em frente. Parou na estreita
faixa de terra e olhou para baixo. Dali a algum tempo, em matéria de séculos, o mar
haveria de transformar o castelo numa outra ilha. À sua direita ficava a laguna,
agitada pelo mar aberto; e à esquerda—
Ralph estremeceu. A laguna protegia os meninos do Pacífico: e por algum
motivo só Jack tinha chegado até as águas do outro lado. Agora ele via o movimento
do mar como um marinheiro de primeira viagem, e as ondas lhe pareciam a
respiração de alguma criatura monumental. As águas escoavam lentamente entre as
pedras, revelando superfícies rosadas de granito, estranhas formações de coral,
pólipos e algas. As águas iam baixando e baixando, com um sussurro que lembrava o
do vento entre as copas da floresta. Adiante se via uma pedra chata que parecia uma
mesa, e as águas que eram sugadas e se despejavam por seus quatro lados cobertos de
algas davam-lhes a aparência de desfiladeiros. Então o leviatã adormecido soltava sua
respiração — as águas subiam, as algas se espalhavam, e o mar, com um rugido,
cobria espumando a mesa de pedra. Não se tinha a sensação da passagem das ondas;
só daquela alternância, a cada minuto, de vazante, cheia e vazante.
Ralph tomou a direção do penhasco avermelhado. Os meninos estavam à sua
espera em meio à relva alta, para ver o que faria. Ele notou que o suor tinha esfriado
na palma das suas mãos; percebeu com surpresa que na verdade não acreditava que
fosse encontrar monstro nenhum, e que não sabia o que iria fazer se o encontro
acontecesse.
Viu que seria capaz de escalar o penhasco, mas que nem precisava. As escarpas
retas do rochedo deixavam uma espécie de base à sua volta, e à direita, do lado da
laguna, era possível avançar pouco a pouco por essa borda de pedra e, andando por
ela, dar a volta no penhasco. Foi fácil, e logo vislumbrou o panorama do outro lado
do rochedo.
E viu apenas o que já esperava: pedras rosadas soltas e apoiadas umas nas
outras, em que o guano se acumulava como cobertura de bolo; e uma subida
íngreme até as pedras que coroavam aquele bastião.
Um som atrás dele o fez virar-se. Jack avançava pela borda de pedra.
“Não ia deixar você vir sozinho.”
Ralph não disse nada. Seguiu em frente subindo pelas pedras, examinou uma
espécie de meia-caverna que não continha nada mais terrível que um aglomerado de
ovos apodrecidos e finalmente sentou-se, olhando à sua volta e golpeando a pedra
com a base da sua lança.
Jack estava animado.
“Que lugar para um forte!”
Uma coluna de espuma os atingiu.
“Falta água doce.”
“E então o que é aquilo?”
Havia realmente uma comprida mancha verde num certo ponto da pedra.
Subiram até lá e provaram o filete de água.
“Dava para manter uma casca de coco aqui, enchendo de água o tempo todo.”
“Por mim nem precisava. Achei esse lugar horrível.”
Lado a lado, escalaram os últimos metros até o alto da pilha de pedras, o ponto
onde ela se estreitava e era coroada pela última pedra solta. Jack empurrou a rocha
mais próxima com a mão, e ela rangeu um pouco.
“Você se lembra—?”
A consciência dos maus momentos desde aquele dia ocorreu aos dois. Jack
falou depressa.
“Basta enfiar um tronco de coqueiro por baixo dela, e se um inimigo chegar
perto — olhe só!”
Trinta metros abaixo deles ficava a estreita passagem de terra, depois o solo
pedregoso, depois a relva salpicada de cabeças, e atrás delas a floresta.
“Um empurrão”, gritou Jack, exultante, “e — uáááá—!”
Fez um movimento em arco com a mão. Ralph olhou para a montanha.
“O que foi?”
Ralph se virou.
“Por quê?”
“Você estava com um jeito — que eu não sei.”
“Não dá para ver o sinal. Nada.”
“Você só pensa nesse tal sinal.”
A linha tensa e azul do horizonte os cercava por todos os lados, interrompida
apenas pelo topo da montanha.
“É tudo que a gente tem.”
Apoiou a lança na pedra instável e empurrou os cabelos para trás com as duas
mãos.
“Precisamos voltar e subir a montanha. Foi onde eles viram o monstro.”
“O monstro não vai estar lá.”
“E o que mais a gente pode fazer?”
Os outros, à espera dos dois em meio à relva, viram Jack e Ralph surgir ilesos e
saíram ao sol. Esqueceram o monstro, no ímpeto exploratório. Atravessaram em
bando a passagem de terra e dali a pouco estavam todos escalando e gritando uns
com os outros. Ralph estava parado de pé, uma das mãos apoiada num bloco
enorme de pedra vermelha, do tamanho de uma pedra de moinho, que se quebrara e
agora se mantinha em pé mas mal equilibrado. Com ar sombrio, observava a
montanha. Cerrou o punho e martelou com ele a parede de pedra à sua direita. Seus
lábios estavam apertados, e seus olhos brilhavam intensos por baixo da franja.
“Fumaça.”
Lambeu o punho ralado.
“Jack! Vamos.”
Mas Jack não estava mais lá. Um aglomerado de meninos, fazendo um barulho
alto que ele sequer tinha escutado, fazia força, empurrando uma pedra. Quando
Ralph se virou, a base da pedra cedeu e o resto desabou caindo no mar, produzindo
um esguicho alto de espuma que chegou à metade da altura do penhasco.
“Para! Para!”
Sua voz provocou o silêncio.
“Fumaça.”
Uma coisa estranha aconteceu na sua cabeça. Alguma coisa se agitava diante do
seu espírito, como uma asa de morcego, lançando sombra sobre as suas ideias.
“Fumaça.”
Na mesma hora os pensamentos voltaram, acompanhados da raiva.
“A gente precisa de fumaça. E vocês aí perdendo tempo. Empurrando pedras.”
Roger gritou.
“Mas a gente tem tempo de sobra!”
Ralph abanou a cabeça.
“Vamos pra montanha.”
Um clamor de protesto. Alguns dos meninos queriam descer de volta para a
praia. Outros queriam empurrar outras pedras no mar. O sol brilhava forte, e o
perigo tinha se dissipado com a escuridão.
“Jack. O monstro pode estar do outro lado. Você pode ir na frente de novo. Já
esteve lá.”
“Mas a gente podia ir pela beira. Tem frutas por lá.”
Bill se aproximou de Ralph.
“Por que a gente não pode ficar mais um pouco aqui?”
“Isso mesmo.”
“A gente podia fazer um forte—”
“Aqui não tem nada para comer”, disse Ralph, “nem abrigo. E pouca água
doce”.
“Mas esse lugar dava um forte incrível.”
“A gente podia empurrar mais pedras—”
“Pra cair na ponte—”
“Estou dizendo que a gente vai continuar!”, gritou Ralph, furioso. “A gente
precisa ter certeza. E a gente vai agora.”
“Eu queria ficar aqui—”
“Descer de volta pra cabana—”
“Estou cansado—”
“Não!”
O soco de Ralph arrancou a pele dos nós dos seus dedos. E ele nem sentiu a
dor.
“Eu sou o chefe. A gente precisa ter certeza. Vocês estão vendo a montanha?
Não tem sinal de fumaça aparecendo lá em cima. Um navio podia passar. Estão
todos malucos?”
Revoltados, os meninos se calaram ou se limitaram a resmungar.
Jack partiu à frente, descendo as pedras e atravessando a ponte de terra.
Capítulo sete
Sombras e árvores altas
A trilha dos porcos corria perto das pedras amontoadas à beira da água do outro
lado da ilha, e Ralph estava satisfeito de seguir Jack. Se fosse possível fechar os
ouvidos à lenta sucção do mar e à fervura de cada ressurgimento, se fosse possível
esquecer como eram pardacentas e inóspitas as áreas cobertas de samambaias dos
dois lados da trilha, seria até possível tirar o monstro da cabeça e sonhar um pouco.
O sol tinha passado da vertical, e o calor da tarde se fechava em torno da ilha. Ralph
passou um recado à frente para Jack e, quando se depararam novamente com árvores
frutíferas, o grupo todo parou para comer.
Sentando-se, Ralph tomou consciência do calor pela primeira vez naquele dia.
Descolou com desgosto a camisa cinzenta do corpo, e se perguntou se conseguiria
empreender a aventura de tentar lavá-la. Sentado sob um calor que lhe parecia
incomum, até mesmo para a ilha, Ralph dedicou-se a planejar cuidados pessoais.
Gostaria de ter uma tesoura e cortar o cabelo — empurrou o emaranhado para trás
—, cortar aquele cabelo imundo e deixá-lo com mais ou menos um centímetro só
de comprimento. Adoraria tomar um banho, de banheira, com sabão. Passou a
língua explorando os dentes, e concluiu que uma escova de dentes também cairia
muito bem. E ainda havia as unhas—
Ralph virou as mãos e examinou as unhas. Estavam roídas até o sabugo,
embora ele não tivesse a menor lembrança de retomar o hábito, e nem de qualquer
momento em que houvesse se entregado a ele.
“Daqui a pouco vou estar chupando o dedo—”
Olhou em volta, furtivamente. Mas ninguém deu sinal de ter ouvido. Os
caçadores estavam sentados ao redor, enchendo a barriga com a refeição fácil,
tentando convencer-se de que conseguiam extrair energia suficiente das bananas e
daquela outra fruta gelatinosa cinza-esverdeada. Lembrando que no passado
costumava ser um menino limpo, Ralph passou em revista os outros garotos.
Estavam todos sujos, mas não com a sujidade espetacular de meninos que tivessem
caído na lama ou ficado encharcados num dia de chuva forte. Nenhum deles era
candidato óbvio a uma ducha, mas ainda assim — o cabelo, comprido demais,
emaranhado em alguns pontos, com uma folha seca ou um ramo preso aqui e ali; os
rostos mais ou menos limpos, graças ao processo de comer e suar, mas marcados nos
cantos menos acessíveis por uma espécie de sombra; roupas gastas, endurecidas
como as dele pelo suor, usadas não por decoro ou conforto, mas por puro costume;
a pele do corpo coberta por um cascão salgado—
Descobriu, com um pequeno sobressalto do coração, que eram essas condições
que hoje considerava normais, e não se incomodava mais com elas. Suspirou e jogou
fora o talo de onde tinha destacado uma fruta. Os caçadores já se afastavam para se
aliviar na mata ou perto das pedras. Virou-se e olhou para o mar.
Ali, do outro lado da ilha, o panorama era totalmente diverso. Os prodígios
tênues das miragens não resistiam à água fria do oceano, e o horizonte se recortava
num azul duro. Ralph saiu caminhando até as pedras. Mais abaixo, quase no mesmo
nível do mar, era possível acompanhar com os olhos a passagem incessante das
ondas bojudas do mar profundo. Tinham quilômetros de largura, muito diferentes
das ondas que se quebravam contra algum obstáculo ou das cristas que se elevavam
em águas rasas. Percorriam a ilha de ponta a ponta aparentando indiferença, como
que empenhadas em alguma outra atividade; eram menos um avanço do que um
solene movimento de sobe-e-desce de todo o oceano. Primeiro o mar era sugado
para baixo, com a água que se retirava caindo em cascatas e cachoeiras, refugiando-se
debaixo das pedras e deixando as algas emplastradas como cabeleiras reluzentes; em
seguida, depois de uma pausa, o mar acumulava forças e subia com um rugido,
cobrindo irresistível a costa rochosa e as pontas de pedra, escalando os pequenos
desfiladeiros, lançando finalmente um braço de mar por uma garganta adentro até
parar a menos de um metro de Ralph, apenas aflorado por dedos de espuma.
Onda após onda, Ralph acompanhou o fluxo e o refluxo das águas, até alguma
coisa no caráter remoto do mar entorpecer seu cérebro. Então, aos poucos, a
extensão quase infinita daquele território acabou por atrair seu pensamento. Ali
estava o divisor, a barreira. Do outro lado da ilha, envolto ao meio-dia em miragens,
defendido pelo escudo da laguna tranquila, era possível sonhar com um resgate; mas
ali, diante da brutalidade obtusa do oceano, dos quilômetros de separação, qualquer
um se sentia oprimido, desamparado, condenado, qualquer um se sentia—
Simon estava falando quase no seu ouvido. Ralph descobriu que tinha se
agarrado à pedra com as duas mãos doloridas, que tinha o corpo arqueado, os
músculos da nuca retesados, a boca tensa e aberta.
“Você vai voltar pro lugar de onde veio.”
Simon assentia com a cabeça enquanto falava. Estava apoiado num dos joelhos,
olhando de uma pedra a que se segurava com as duas mãos; sua outra perna chegava
até a altura da cabeça de Ralph.
Ralph ficou intrigado e examinou o rosto de Simon, em busca de uma
explicação.
“Quer dizer, é tão grande—”
Simon assentiu com a cabeça.
“Assim mesmo. Mas você vai voltar, sim. Pelo menos eu acho que vai.”
Parte da tensão tinha abandonado o corpo de Ralph. Ele olhou para o mar e
depois dirigiu um sorriso amargo a Simon.
“Tem um navio aí no seu bolso?”
Simon sorriu e abanou a cabeça.
“Então como é que você sabe?”
E quando Simon continuou sem dizer nada, Ralph declarou secamente, “Você
é doido”.
Simon abanou a cabeça violentamente até seus cabelos grossos e negros voarem
de um lado para o outro por sobre o seu rosto.
“Nada disso. Eu só acho que você vai voltar, sim.”
Por um tempo, nada mais foi dito. E então, de repente, trocaram um sorriso.
Roger chamou de um recanto coberto de samambaias.
“Venham ver!”
O solo estava pisado perto da trilha dos porcos, e havia excrementos
fumegantes. Jack debruçou-se sobre eles como se adorasse aquilo.
“Ralph — a gente precisa de carne, mesmo caçando a outra coisa.”
“Se for na direção certa, vamos caçar.”
Tornaram a partir, os caçadores um pouco aglomerados por medo do monstro
referido, enquanto Jack seguia à frente como batedor. Avançavam mais devagar do
que Ralph desejaria; ainda assim, até certo ponto achava bom andar mais
lentamente, com a lança na mão. Jack se deparou com alguma outra emergência da
sua especialidade, e a fila parou. Ralph se encostou numa árvore e na mesma hora se
entregou a devaneios. Era Jack que estava encarregado da caçada, e depois ainda
teriam tempo de chegar ao alto da montanha—
Uma vez, mudando-se com seu pai de Chatham a Devonport, tinha morado num
chalé à beira do pântano. Na sucessão de casas que Ralph conheceu, esta se
destacava com uma clareza especial, porque depois dela tinha sido mandado para o
colégio interno. Mamãe ainda estava com eles, e Papai voltava para casa todo dia.
Pôneis selvagens apareciam na cerca de pedra no fundo do jardim, e nevava. Logo
atrás do chalé ficava uma espécie de depósito, e a pessoa podia ficar deitada ali,
vendo os flocos carregados pelo vento. Dava para distinguir o ponto úmido onde
cada floco de neve morria; em seguida você podia marcar o primeiro floco que caía
sem derreter, e o chão ia ficando todo branco enquanto você olhava. Depois, podia
entrar quando começava a sentir frio e ficar olhando pela janela, para além da
chaleira de cobre polido e do prato com os homenzinhos azuis—
Quando você ia para a cama, ganhava uma tigela de flocos de milho com
açúcar e creme. E os livros ficavam na prateleira ao lado da cama, e dois ou três
sempre ficavam deitados por cima, porque ele não se dava ao trabalho de arrumá-los
de volta. Traziam as páginas dobradas e muitos rabiscos. Lá estava o livro colorido e
reluzente sobre Topsy e Mopsy, que ele nunca tinha lido porque falava de duas
meninas; e mais o livro sobre o Mágico que a pessoa lia com uma espécie de terror
contido, pulando o desenho terrível da aranha na página vinte e sete; tinha um livro
sobre as pessoas que desenterravam coisas, no Egito; tinha o Livro dos trens para
meninos, o Livro dos navios para meninos. Ele os via nitidamente à sua frente; poderia
estender o braço e pegar cada um, sentir seu peso e a facilidade lenta com que o
Livro gigante para meninos deslizava até ele e se abria na sua mão... Tudo estava bem;
tudo era alegre e amistoso.
Simon ficou onde estava, uma pequena figura bronzeada escondida pelas folhas.
Mesmo que fechasse os olhos, continuava a enxergar a cabeça da porca, imagem que
persistia em suas retinas. Os olhos entrecerrados e opacos exibiam o cinismo infinito
da vida adulta. E garantiam a Simon que tudo aquilo era mau negócio.
“Eu sei disso.”
Simon descobriu que tinha falado em voz alta. Abriu os olhos na mesma hora e
lá continuava a cabeça, sorrindo irônica à estranha claridade do dia, ignorando as
moscas, as entranhas espalhadas, até a indignidade de estar enfiada num espeto.
Simon desviou os olhos, lambendo os lábios secos.
Uma oferenda para o monstro. Será que o monstro viria buscar? E teve a
impressão de que a cabeça concordava com ele. Sai correndo daqui, dizia a cabeça
em silêncio, volta logo pra junto dos outros. Na verdade foi só uma brincadeira —
por que isso te incomoda? Você se enganou, só isso, mais nada. Um pouco de dor de
cabeça, talvez alguma coisa que você comeu. Volta logo, menino, dizia a cabeça em
silêncio.
Simon ergueu os olhos, sentindo o peso de seus cabelos molhados, e
contemplou o céu. No alto, agora, viam-se muitas nuvens, imensas torres bojudas
que corriam por sobre a ilha, cinzentas, cor de creme e de cobre. As nuvens se
apoiavam na terra; e era a pressão cada vez maior que o peso delas exercia a origem
daquele calor abafado e torturante. Até as borboletas abandonaram a clareira onde
aquela coisa obscena continuava a sorrir e a gotejar. Simon baixou a cabeça,
tomando o cuidado de manter os olhos fechados, e depois os cobriu com a mão. As
árvores não projetavam sombra, por toda parte se espalhava uma quietude perolada,
conferindo ao que era real uma aparência ilusória e sem definição. A pilha de
vísceras se convertera num enxame negro de moscas que zumbiam como uma serra.
E depois de algum tempo as moscas encontraram Simon. Empanturradas, pousavam
à beira dos filetes de suor para beber. Faziam cócegas debaixo do nariz do menino, e
brincavam de saltar carniça em suas coxas. Eram incontáveis, negras e de um verde
iridescente; e diante de Simon, o Senhor das Moscas seguia preso à sua estaca,
mostrando os dentes. Finalmente, Simon desistiu e tornou a olhar; viu os dentes
brancos e os olhos opacos, o sangue — e seu olhar se deteve naquele
reconhecimento arcaico e inevitável. Na têmpora direita de Simon, uma veia
começou a latejar contra o seu cérebro.
“Você é um menino muito bobo”, disse o Senhor das Moscas. “Só um menino,
muito bobo e ignorante.”
Simon tentou acionar sua língua inchada, mas não disse coisa alguma.
“Você não concorda?”, disse o Senhor das Moscas. “Que é só um menino
bobo?”
Simon respondeu com a mesma voz silenciosa.
“Então”, disse o Senhor das Moscas, “é melhor voltar correndo pra brincar com
os outros. Eles acham que você é meio maluco. Você não quer que o Ralph ache que
você é meio maluco, não é? Você gosta muito do Ralph, não é? E do Porquinho, e
do Jack?”
A cabeça de Simon se levantou um pouco. Seus olhos não conseguiam se
desviar, e o Senhor das Moscas pairava no espaço à sua frente.
“O que você está fazendo aqui sozinho? Não tem medo de mim?”
Simon estremeceu.
“Ninguém pra te ajudar. Só eu. E eu sou o Monstro.”
A boca de Simon se moveu, e produziu palavras audíveis.
“Cabeça de porco num espeto.”
“Imagina se o Monstro ia ser uma coisa que vocês podiam caçar e matar!”, disse
a cabeça. Por alguns momentos, a floresta e os outros lugares vagamente percebidos
ressoaram com uma paródia de riso. “Você sabe, não é? Que eu sou parte de vocês?
Bem perto, bem perto, bem perto! Que é por minha causa que nada adianta? Que as
coisas são do jeito que são?”
A risada tornou a ecoar.
“Pronto”, disse o Senhor das Moscas. “Agora você volta pra junto dos outros, e
a gente esquece tudo isso.”
A cabeça de Simon oscilava. Seus olhos estavam semicerrados, como se quisesse
imitar aquela coisa obscena espetada na estaca. Percebeu que estava chegando uma
das suas crises. O Senhor das Moscas inchava como um balão.
“É ridículo! Você sabe perfeitamente que lá embaixo só vai encontrar a mim —
nem adianta tentar fugir!”
O corpo de Simon se arqueou, rígido. O Senhor das Moscas lhe falava com a
voz de um professor.
“Isso já foi longe demais. Pobre criança perdida, você acha que sabe mais do
que eu?”
Pausa.
“Estou avisando. E vou ficar com raiva. Está entendendo? Ninguém aqui quer
você. Está claro? A gente vai se divertir nessa ilha. Então nem pense em tentar nada,
meu pobre menino perdido, senão—”
Simon descobriu que estava olhando para uma imensa boca aberta. Lá dentro
era tudo escuro, um negror que não parava de se expandir.
“—Senão”, disse o Senhor das Moscas, “a gente acaba com você. Entendeu? O
Jack, o Roger, o Maurice, o Robert, o Bill, o Porquinho e o Ralph. Acaba com você.
Entendeu?”
Simon estava dentro da boca. Então caiu e perdeu os sentidos.
Capítulo nove
Até a morte
Quando Roger chegou à língua de terra que ligava a Pedra do Castelo ao corpo da
ilha, não ficou surpreso ao ser barrado. Desde a noite terrível, já contava com a ideia
de encontrar pelo menos uma parte da tribo em algum lugar seguro, a salvo dos
horrores da ilha.
A voz soou forte vindo do alto, onde pedras cada vez menores se apoiavam
umas nas outras.
“Alto! Quem vem lá?”
“Roger.”
“Pode seguir, amigo.”
Roger continuou andando.
“Dava para ver que era eu.”
“O Chefe mandou a gente parar todo mundo.”
Roger olhou para cima.
“Se eu quisesse, você não me parava.”
“É mesmo? Sobe aqui para ver!”
Roger escalou a encosta íngreme, como se subisse uma escada.
“Olha só isso.”
Um galho grosso tinha sido enfiado debaixo da pedra mais alta da pilha, e mais
uma alavanca por baixo dele. Robert apoiou-se de leve na alavanca e a pedra gemeu.
Um esforço um pouco maior faria a pedra cair estrepitosamente na passagem
estreita. Roger ficou admirado.
“Ele é um Chefe e tanto, não é?”
Robert assentiu com a cabeça.
“E vai levar a gente pra caçar.”
Apontou com a cabeça para os dormitórios distantes, de onde um fio de
fumaça se erguia no ar. Roger, sentado na beira do precipício, contemplava a ilha
com ar sombrio enquanto balançava um dente mole com os dedos. Pousou o olhar
no alto da montanha distante, e Robert mudou o assunto em que sequer tocaram.
“Ele vai dar uma surra em Wilfred.”
“Por quê?”
Robert abanou a cabeça, em dúvida.
“Não sei. Ele nem disse. Ficou com raiva e mandou a gente amarrar o Wilfred,
que já está lá amarrado” — deu um riso nervoso — “já está lá amarrado há horas,
esperando—”
“Mas o Chefe nem disse por quê?”
“Eu não ouvi o Chefe dizer nada.”
Sentado nas pedras instáveis sob o sol tórrido, Roger recebeu esta notícia como
uma iluminação. Parou de mexer no dente e seguiu sentado imóvel, assimilando as
possibilidades de uma autoridade irresponsável. E então, sem dizer mais nada,
desceu pelo outro lado das pedras na direção da caverna e do resto da tribo.
O Chefe estava sentado, de peito nu, o rosto pintado de branco e vermelho. A
tribo se dispunha num semicírculo à sua frente. Wilfred, recém-surrado mas
desamarrado, fungava ao fundo. Roger se acocorou ao lado dos demais.
“Amanhã”, disse o Chefe, “a gente vai caçar de novo”.
Apontou para vários selvagens com sua lança.
“Vocês vão ficar aqui pra trabalhar na reforma da caverna e defender a entrada.
Vou levar uns caçadores comigo e a gente volta trazendo carne. Os sentinelas da
passagem não deixam os outros entrarem aqui—”
Um dos selvagens levantou o braço e o Chefe virou para ele o rosto sombrio e
pintado.
“Por que eles haviam de tentar entrar, Chefe?”
O Chefe respondeu em tom vago, mas convicto.
“Porque sim. Pra estragar as coisas que a gente faz. Por isso os sentinelas
precisam prestar muita atenção. E também—”
O Chefe fez uma pausa. Todos viram um fino triângulo de surpreendente cor
rosada projetar-se para fora de sua boca, passar pelos seus lábios e tornar a
desaparecer.
“—e o monstro também pode tentar entrar aqui. Vocês lembram como ele
apareceu se arrastando—”
O semicírculo estremeceu, respondendo com murmúrios de assentimento.
“Ele veio — disfarçado. E ainda pode vir de novo, mesmo a gente tendo dado a
cabeça do porco pra ele comer. Então prestem bem atenção.”
Stanley ergueu o antebraço da pedra e exibiu um dedo interrogativo.
“O quê?”
“Mas a gente já não, já não—?”
Estremeceu, e baixou os olhos.
“Não!”
No silêncio que se seguiu, cada um dos selvagens fez o possível para evitar suas
memórias individuais.
“Não! A gente não tinha como — matar — o monstro!”
Em parte aliviados e em parte assombrados pelos terrores futuros que aquilo
implicava, os selvagens voltaram a murmurar.
“Então é melhor ficar longe da montanha”, disse o Chefe em tom solene, “e
sempre deixar a cabeça pro monstro em toda caçada”.
Stanley tornou a levantar o dedo.
“Acho que o monstro estava disfarçado.”
“Pode ser”, disse o Chefe. E enveredou por uma especulação teológica. “É
melhor a gente estar sempre de bem com ele. Nunca se sabe o que ele pode fazer.”
A tribo ponderou a respeito e, em seguida, estremeceu, como que atingida por
uma rajada de vento. O Chefe viu o efeito das suas palavras e se pôs de pé
abruptamente.
“Mas amanhã a gente caça, e depois de chegar com a carne faz uma festa—”
Bill ergueu a mão.
“Chefe.”
“O quê?”
“Como é que a gente vai acender o fogo?”
O rubor do Chefe foi encoberto pela camada de argila branca e vermelha. E o
vácuo de seu silêncio inseguro foi preenchido pelos murmúrios de toda a tribo.
Então o Chefe levantou a mão.
“A gente rouba o fogo dos outros. Amanhã a gente vai caçar e trazer carne.
Hoje à noite, eu e mais dois caçadores — quem vem comigo?”
Maurice e Roger levantaram as mãos.
“Maurice—”
“Diga, Chefe.”
“Onde eles fizeram a fogueira?”
“No mesmo lugar, do lado da pedra da fogueira.”
O Chefe assentiu com a cabeça.
“O resto de vocês pode ir dormir assim que anoitecer. Mas nós três, Maurice,
Roger e eu, a gente tem uma missão. A gente sai daqui um pouco antes do pôr do
sol—”
Maurice ergueu a mão.
“Mas como vai ser se a gente encontrar—”
O Chefe afastou a objeção com um gesto.
“A gente vai andando pela areia. E se ele vier, a gente volta a fazer a nossa, a
nossa dança.”
“Só nós três?”
Mais uma vez, o murmúrio se ergueu e depois cessou.
Era encarado por todos com o horror que inspiram os carrascos. O Chefe não lhe
disse mais nada, mas olhou para Samineric.
“Vocês têm de entrar pra tribo.”
“Me solta—”
“—e eu também.”
O Chefe pegou uma das poucas lanças que ainda restavam e cutucou Sam nas
costelas.
“O que você está querendo dizer, hein?”, perguntou o Chefe em tom feroz.
“Que ideia é essa, chegar aqui armado de lança? E não querer entrar pra minha
tribo?”
Os golpes adquiriram um ritmo regular. Sam berrou.
“Não é isso.”
Roger passou pelo Chefe, apenas evitando empurrá-lo com o ombro. Os berros
cessaram, e Samineric ficaram estendidos no chão de olhos abertos, dominados por
um terror silencioso. Roger avançou para eles, investido de uma autoridade sem
nome.
Capítulo doze
O grito dos caçadores
Ralph se escondeu sob o abrigo de umas plantas baixas, pensando nos seus
ferimentos. O rasgão na carne tinha vários centímetros pouco acima de suas costelas
do lado direito, com um corte inchado e ensanguentado no lugar onde tinha sido
atingido pela lança. Seu cabelo estava imundo, e emaranhado como as gavinhas de
uma trepadeira. Estava todo arranhado e ferido pela corrida através da mata.
Quando conseguiu voltar a respirar normalmente, tinha concluído que não iria lavar
as feridas agora. Como poderia ouvir os passos de pés descalços mergulhado na
água? Como poderia sentir-se seguro, às margens do riacho ou na praia aberta?
Ralph ficou escutando. Na verdade nem estava longe da Pedra do Castelo, e no
primeiro momento de pânico julgou ter ouvido sons de perseguição. Mas os
caçadores só vasculharam as franjas da mata, procurando talvez as suas lanças, antes
de correr de volta para a pedra ensolarada, como que aterrorizados com as trevas que
havia debaixo das folhas. Tinha vislumbrado um deles, pintado com faixas marrons,
vermelhas e pretas, e tinha imaginado que fosse Bill. Era um selvagem cuja aparência
recusava a conciliação com a antiga imagem de um menino de calças curtas e
camisa.
A tarde ia morrendo; as manchas circulares de sol se deslocavam pelas frondes
verdes e pelas fibras castanhas, mas nenhum som lhe chegava do outro lado da
Pedra. Finalmente Ralph se esgueirou para fora do esconderijo até a beira do trecho
impenetrável de mata que dava para a estreita língua de terra. Espiou com o máximo
cuidado através dos ramos da beira da mata e viu Robert sentado de sentinela no
alto do penhasco. Trazia uma lança na mão esquerda e, com a direita, jogava para o
ar uma pedrinha que depois aparava. Por trás dele erguia-se uma coluna grossa de
fumaça, o que fez as narinas de Ralph se dilatarem e sua boca ficar cheia d’água.
Limpou o nariz e a boca com as costas da mão e, pela primeira vez desde aquela
manhã, sentiu fome. A tribo devia estar sentada em torno do porco estripado, vendo
sua gordura escorrer e crepitar entre as cinzas. Estariam concentrados.
Outra figura, esta irreconhecível, apareceu ao lado de Robert e lhe entregou
alguma coisa, depois se virou e voltou para trás da pedra. Robert pousou a lança a
seu lado e começou a comer o que segurava com as duas mãos. O banquete estava
começando, e a sentinela tinha recebido sua ração de carne.
Ralph viu que, por enquanto, estava a salvo. Saiu mancando através das árvores
frutíferas, atraído pela ideia do alimento pobre, mas amargo tendo em vista o festim
dos outros. Um banquete hoje; amanhã...
Tentou se convencer, sem sucesso, de que agora o deixariam em paz; talvez só
acabasse transformado num fora da lei. Mas então recuperou a certeza fatal, que
independia de qualquer raciocínio. A destruição da concha, além das mortes de
Porquinho e Simon, pairava sobre a ilha como um nevoeiro. Aqueles selvagens
pintados iriam cada vez mais longe. E ainda havia a ligação impossível de definir
entre ele próprio e Jack; que por isso nunca haveria de deixá-lo em paz; nunca.
Fez uma pausa, salpicado de sol, segurando um galho, preparado para se
esconder por trás dele. Um espasmo de terror fez seu corpo todo tremer, e gritou em
voz alta.
“Não. Eles não são tão maus assim. Foi um acidente.”
Agachou-se sob a proteção daquele galho, correndo sem muito jeito, depois
parou e ficou escutando.
Chegou à área devastada das árvores frutíferas, e comeu com avidez. Avistou
dois pequenos e, sem ter a menor ideia de sua própria aparência, não entendeu por
que os dois teriam gritado antes de sair correndo.
Depois que comeu, voltou para a praia. A luz do sol estava agora enviesada, e
atingia em cheio os coqueiros ao lado do abrigo demolido. Lá estavam a plataforma
e a piscina. O melhor a fazer seria ignorar aquele sentimento pesado que tomava
conta do seu coração e confiar na sensatez dos outros meninos, em sua sanidade
diurna. Agora que a tribo já tinha comido, certamente decidiriam tentar de novo. E,
de qualquer maneira, ele não teria como passar a noite inteira num abrigo
abandonado, ao lado da plataforma deserta. Teve um calafrio e estremeceu ao sol da
tarde. Não tinha fogo; não havia fumaça; não seriam resgatados nunca. Virou-se e
saiu mancando através da floresta na direção da ponta de Jack.
Os bastões inclinados de luz do sol se perdiam entre as copas da floresta.
Finalmente, chegou a uma clareira onde as pedras impediam o crescimento da
vegetação. Àquela altura era um poço de sombras, e Ralph quase se atirou atrás de
uma árvore quando viu alguma coisa no centro da clareira; mas então percebeu que
o rosto branco era de osso, e que a caveira de porco sorria para ele do alto de um
espeto. Caminhou lentamente até o meio da clareira e ficou olhando fixamente para
o crânio que refulgia com o mesmo branco luminoso da concha, e parecia zombar
dele com ar cínico. Uma formiga curiosa estava entretida numa das órbitas, mas
tirante isso não havia ali vida alguma.
Ou haveria?
Agulhas de sensação correram por sua espinha. Ficou de pé com o rosto no
mesmo nível do crânio, segurando os cabelos com as duas mãos. Os dentes lhe
sorriam, as órbitas vazias pareciam sustentar seu olhar com total controle e sem
qualquer esforço.
O que era aquilo?
O crânio contemplava Ralph como alguém que conhece todas as respostas e
jamais as revela. Ralph viu-se tomado por um medo nauseante e pelo ódio. Com
toda a força, deu um murro naquela coisa imunda à sua frente, que como um
brinquedo se inclinou para trás e voltou para o mesmo lugar, ainda rindo da cara
dele, que lhe desferiu outro soco, gritando de asco. Em seguida, Ralph lambeu os
nós feridos dos seus dedos enquanto contemplava o espeto vazio, enquanto o crânio
jazia no chão partido em dois pedaços, agora com dois metros entre as duas metades
separadas do mesmo sorriso. Arrancou o espeto ainda trêmulo da fenda entre as
pedras e o estendeu como uma lança, entre ele e os fragmentos brancos. Em seguida
começou a recuar, sempre de frente para o crânio que insistia em sorrir para o céu.
Quando o clarão esverdeado desapareceu do horizonte e a noite caiu por
completo, Ralph retornou ao trecho de mata cerrada em frente à Pedra do Castelo.
Olhando por entre os galhos, viu que o ponto mais alto do penhasco ainda estava
guarnecido, e que a sentinela, quem quer que fosse, tinha uma lança pronta ao lado.
Ajoelhou-se em meio às sombras e avaliou amargamente o seu isolamento.
Eram selvagens, é verdade; mas eram humanos, e os medos de tocaia na noite
profunda estavam chegando.
Ralph gemeu baixinho. Por mais cansado que estivesse, não podia relaxar e cair
num poço de sono, por medo da tribo. Não seria possível entrar de peito aberto no
forte dos outros, dizer — “Parei de brincar”, dar uma risada ligeira e ir dormir junto
com eles? Não poderia fazer de conta que eram todos ainda meninos, colegas de
escola, crianças obedientes usando uniformes com barretes? À luz do dia ele talvez
respondesse que sim; mas a escuridão da noite e os horrores da morte diziam que
não. Escondido nas sombras, ele sabia que estava banido.
“Porque eu ainda tinha algum juízo.”
Esfregou o antebraço com o rosto, sentindo o cheiro acre de sal, suor e sujeira
acumulada. À sua esquerda, as ondas do oceano continuavam a respirar, inspirando
fundo e depois espalhando de volta a espuma pelas pedras.
Havia sons vindo de trás da Pedra do Castelo. Escutando com cuidado,
isolando sua mente do balanço do mar, Ralph conseguiu distinguir um ritmo bem
conhecido.
“Mata o monstro! Corta a goela! Espalha o sangue!—”
A tribo estava dançando. Em algum lugar do outro lado daquela barreira de
pedra havia uma roda formada, a fogueira estava acesa e a carne assava. Saboreavam
a comida e o aconchego da segurança.
Um barulho mais próximo lhe causou um sobressalto. Havia selvagens
escalando a Pedra do Castelo, até o alto, e começou a ouvir suas vozes. Esgueirou-se
mais uns poucos metros à frente e viu a forma no alto da pedra mudar e crescer. Só
havia dois meninos na ilha que se deslocavam ou falavam daquele jeito.
Ralph abaixou a cabeça, que pousou nos antebraços, e aceitou esse fato como
mais uma ferida. Samineric agora faziam parte da tribo. Eram eles que guardavam a
Pedra do Castelo contra a sua chegada. Adeus à ideia de resgatar os dois e formar
uma tribo de eLivross do outro lado da ilha. Samineric eram agora selvagens como
os outros; Porquinho tinha morrido, a concha virado pó.
Depois de algum tempo o outro sentinela desceu. Os dois que ficaram
pareciam uma simples extensão da pedra. Uma estrela apareceu por trás deles e foi
momentaneamente eclipsada por algum movimento.
Ralph progredia devagar, apalpando com todo o cuidado a superfície áspera,
como um cego. Havia quilômetros de vagas águas à sua direita, e o mar se estendia à
sua esquerda, ameaçador como a boca de um poço. A cada minuto as águas
respiravam em torno da pedra da morte, desabrochando num campo de espuma
branca. Ralph avançou de rastros até esbarrar no penhasco da entrada. O posto das
sentinelas estava imediatamente acima dele, e avistou a ponta de uma lança que se
projetava acima da pedra.
E chamou em voz bem baixa.
“Samineric—”
Nenhuma resposta. Para ser ouvido, precisaria falar mais alto; o que seria
percebido pelas criaturas hostis e listradas que se empanturravam junto ao fogo.
Cerrou os dentes e começou a escalar, procurando os apoios pelo tato. O espeto que
antes sustentava o crânio o atrapalhava, mas não se convencia a desfazer-se da sua
única arma. Tinha chegado quase ao mesmo nível dos gêmeos quando tornou a
chamá-los.
“Samineric—”
Escutou um grito e uma agitação em cima da pedra. Os gêmeos estavam
abraçados, falando coisas incoerentes de medo.
“Sou eu. Ralph.”
Apavorado com a ideia de que os dois saíssem correndo para dar o alarme,
continuou subindo até sua cabeça e seus ombros surgirem no alto do penhasco. Bem
abaixo dele, via a floração luminosa em torno da pedra.
“Sou só eu. Ralph.”
Finalmente os dois se inclinaram para a frente e fitaram seu rosto.
“A gente achou que era—”
“—a gente não sabia o que era—”
“—a gente achou—”
A memória embaraçosa da lealdade que tinham jurado havia pouco ocorreu aos
dois. Eric ficou calado, mas Sam ainda tentou cumprir seu dever.
“Você precisa ir embora, Ralph. Vai embora de uma vez—”
Acenou com a sua lança, tentando uma expressão feroz.
“Se manda. Entendeu?”
Eric sinalizou que concordava com a cabeça, e espetou o ar com sua lança.
Ralph firmou-se nos braços e não se moveu.
“Eu vim falar com vocês dois—”
A voz de Ralph soava rouca. Sentia uma dor na garganta, mesmo sem ter
sofrido nenhum ferimento no pescoço.
“Eu vim falar com vocês dois—”
Não tinha palavras para exprimir a dor surda de tudo aquilo. E se calou,
enquanto as estrelas nítidas se derramavam e dançavam em todas as direções.
Sam se remexeu, inquieto.
“É sério, Ralph, melhor você ir embora.”
Ralph tornou a erguer os olhos.
“Vocês dois não estão pintados. Como é que vocês—? Se fosse de dia—”
Se fosse à luz do dia, estariam ardendo de vergonha de admitir aquilo tudo.
Mas a noite estava escura. Eric foi o primeiro a responder; e então os gêmeos
começaram a falar, como sempre em antífonas.
“Você precisa ir embora porque aqui corre perigo—”
“—a gente foi obrigado. Eles machucaram a gente—”
“Quem? Jack?”
“Ah, não—”
Os dois se aproximaram dele e baixaram as vozes.
“Vai embora, Ralph—”
“é uma tribo—”
“—eles forçaram a gente—”
“—a gente não pôde fazer nada—”
Quando Ralph tornou a falar, sua voz estava baixa, e ele parecia sem fôlego.
“O que foi que eu fiz? Eu gostava dele — e eu só queria que alguém viesse
salvar a gente—”
As estrelas se derramaram de novo pelo céu. Eric balançou a cabeça, comovido.
“Escuta, Ralph. Não fica pensando no sentido das coisas. Já passou—”
“Não fica pensando no Chefe—”
“—você precisa ir embora, pro seu bem.”
“O Chefe e o Roger—”
“—é, o Roger—”
“Eles detestam você, Ralph. E querem acabar contigo.”
“Querem sair pra caçar você amanhã.”
“Mas por quê?”
“Eu não sei. E Ralph: Jack, o Chefe, disse que pode ser perigoso—”
“—que a gente precisa tomar todo o cuidado e jogar as lanças de longe, como
se você fosse um porco”.
“A gente vai se espalhar pela ilha toda, formando uma linha—”
“E avançar a partir da ponta de cá—”
“Até te encontrar.”
“E aí a gente dá o sinal assim.”
Eric virou a boca para o alto e produziu uma ululação fraca, batendo na própria
boca. Depois, nervoso, olhou para trás.
“Assim—”
“—só que mais alto, claro.”
“Mas eu não fiz nada”, sussurrou Ralph, com urgência na voz. “Eu só queria
manter uma fogueira acesa!”
Fez uma pausa, pensando infeliz no dia seguinte. E uma questão da maior
importância lhe ocorreu.
“O que vocês vão—?”
Não conseguiu ser específico num primeiro momento mas, em seguida, o
medo e a solidão o levaram a falar claro.
“Quando eles me acharem, o que é que eles vão fazer?”
Os gêmeos não disseram nada. Abaixo dele, a pedra da morte tornou a florir.
“O que é que eles vão — ah, meu Deus! Estou com fome—”
Todo o penhasco lhe deu a impressão de oscilar.
“E então — o quê—?”
Os gêmeos lhe deram uma resposta indireta.
“Você precisa ir embora logo, Ralph.”
“Pro seu bem.”
“E fica longe daqui. O mais longe que puder.”
“Vocês dois não vêm comigo? Se a gente estiver em três — ainda podia ter uma
chance.”
Depois de um tempo em silêncio, Sam disse, com uma voz estrangulada.
“Você não sabe como é o Roger. É um terror.”
“—E o Chefe — os dois—”
“—são um terror.”
“—só que o Roger—”
Os dois meninos ficaram paralisados. Alguém da tribo subia a pedra na direção
deles.
“Ele veio ver se a gente está de sentinela. Depressa, Ralph!”
Enquanto se preparava para descer escorregando pela face do penhasco, Ralph
apelou para a última vantagem que ainda poderia extrair daquele encontro.
“Vou ficar aqui perto; naquele mato ali”, sussurrou ele, “então não deixem
ninguém entrar lá. Eles nunca vão pensar em procurar tão perto—”
Os passos ainda estavam a uma certa distância.
“Sam — não vai acontecer nada comigo, não é?”
Os gêmeos se calaram de novo.
“Toma aqui!”, disse Sam de repente. “Leva isso—”
Ralph sentiu que um pedaço de carne era empurrado na sua direção, e agarrou
a comida.
“Mas o que vocês vão fazer quando me encontrarem?”
Silêncio no alto da pedra. Ele próprio achou idiota o som da sua voz. E
começou a descer o rochedo.
“O que vocês vão fazer—”
Do alto do penhasco veio a resposta incompreensível.
“O Roger fez pontas afiadas dos dois lados de uma vara.”
Roger fez pontas afiadas dos dois lados de uma vara. Ralph tentou atribuir
algum sentido a essas palavras, mas não conseguiu. Usou todos os palavrões de que
se lembrava, num ataque de raiva que terminou em bocejos. Quanto tempo uma
pessoa aguentava sem dormir? Tudo o que ele queria era uma cama com lençóis —
mas a única brancura daquela ilha era do leite lentamente derramado, a brancura
luminosa e redonda em torno da pedra doze metros abaixo onde Porquinho tinha
caído. Porquinho estava em toda parte, pendurado no pescoço dele, transformado
numa coisa terrível na escuridão e na morte. Se Porquinho pudesse voltar naquela
hora, saindo da água com a cabeça vazia — Ralph choramingou e bocejou como um
dos meninos pequenos. O espeto na sua mão se transformou na muleta em que se
apoiava.
Então retesou novamente o corpo. Vozes se levantavam no alto da Pedra do
Castelo. Samineric estavam discutindo com alguém. Mas o mato e as plantas baixas
estavam logo ali. Era o melhor lugar para se esconder, e bem ao lado do matagal que
lhe serviria de esconderijo no dia seguinte. Ali — e suas mãos tocaram a relva — era
um bom lugar para passar a noite, não muito longe da tribo, e assim, se os horrores
do sobrenatural aparecessem, ele poderia pelo menos procurar a companhia de
outros seres humanos por algum tempo, mesmo que isso significasse...
E o que significava? Uma vara com duas pontas afiadas. O que aquilo queria
dizer? Tinham atirado lanças nele, mas errando sempre; todos menos um. Talvez
tornassem a errar da próxima vez.
Agachou-se na relva alta, lembrou-se da carne dada por Sam e começou a
devorá-la, faminto. Enquanto comia, ouviu novos sons — gritos de dor de
Samineric, gritos de pânico, vozes enfurecidas. O que aquilo queria dizer? Alguém
que não ele estava em dificuldade, porque pelo menos um dos gêmeos estava sendo
castigado. Então as vozes desapareceram atrás da pedra e ele parou de pensar nelas.
Tateou em volta e sentiu folhas frescas e delicadas que se projetavam do matagal. Era
ali então que passaria a noite. Assim que o dia clareasse ele se enfiaria no mato,
espremendo-se entre os cipós e os ramos retorcidos, refugiando-se tão fundo na
mata que só alguém rastejando como ele poderia chegar lá; e se alguém aparecesse de
rastros ele usaria seu espeto. E ficaria sentado ali enquanto a busca passava ao largo e
o cordão seguia em frente, ululando pela ilha afora, sem incomodá-lo.
Enfiou-se entre as samambaias, criando um túnel. Deixou o espeto estendido
ao seu lado e se encolheu na escuridão. Precisava se lembrar de acordar assim que o
dia clareasse, para escapar dos selvagens — e não sabia que o sono ia chegar depressa
e fazê-lo despencar por um sombrio abismo interior.
Já estava acordado antes de abrir os olhos, ouvindo um som bem próximo. Abriu
um olho, viu que a terra estava a um ou dois centímetros do seu rosto e enfiou os
dedos nela, à luz coada pelas folhas da samambaia. Só teve tempo de entender que
os pesadelos intermináveis de quedas e morte tinham ficado para trás, e que a
manhã tinha chegado, antes de tornar a ouvir o som. Era uma ululação à beira-mar
— e agora outro selvagem respondia, e mais outro. Os gritos se deslocavam por
cima dele de um lado ao outro da ponta estreita da ilha, do mar até a laguna, como
os gritos de uma ave em pleno voo. Não perdeu tempo pensando; agarrou seu
espeto de duas pontas e se enfiou de volta entre as samambaias. Dali a segundos já
avançava de rastros em meio à mata cerrada; mas não antes de vislumbrar as pernas
de um selvagem avançando em sua direção. As samambaias foram pisoteadas e
esmagadas, e ouviu o som das pernas que se deslocavam em meio à relva alta. O
selvagem, quem quer que fosse, ululou duas vezes; o grito foi repetido de um lado e
de outro, e depois morreu. Ralph continuava agachado, emaranhado nas plantas
baixas, e por algum tempo não ouviu mais nada.
Finalmente examinou o lugar onde estava refugiado. Ninguém poderia atacá-lo
ali — e além disso ele havia tido sorte. A pedra grande que matara Porquinho tinha
rolado para dentro daquele trecho de mato, parando bem no meio, criando uma
clareira com menos de um metro de extensão de cada lado. Quando Ralph
conseguiu se esgueirar até a pedra sentiu-se em segurança, e orgulhoso da sua
esperteza. Sentou-se com todo o cuidado entre os talos esmagados das plantas e
ficou esperando que os caçadores acabassem de passar. Olhando por entre as folhas,
percebeu de relance alguma coisa avermelhada. Devia ser o topo da Pedra do
Castelo, distante e esvaziada de ameaça. E Ralph se compôs, triunfante, para ouvir
os sons da caçada que se distanciavam.
Mas nem um som. Com a passagem do tempo, na sombra verde, sua sensação
de triunfo foi se desfazendo.
Finalmente ouviu uma voz — a voz de Jack, mas abafada.
“Você tem certeza?”
O selvagem a quem Jack se dirigia não disse nada. Talvez tenha feito algum
gesto.
Roger falou.
“Se você está enganando a gente—”
Imediatamente depois disso, ouviu-se um arquejo, e um guincho de dor. Ralph
se encolheu instintivamente. Um dos gêmeos, na entrada da mata, com Jack e
Roger.
“Tem certeza que ele falou aqui dentro?”
O gêmeo gemeu baixinho e depois tornou a guinchar.
“Ele falou que ia se esconder aqui dentro?”
“Falou — falou — ai —!”
Um riso metálico se espalhou entre as árvores.
Quer dizer que eles sabiam.
Ralph pegou seu espeto e se preparou para a batalha. Mas o que eles podiam
fazer? Precisariam de uma semana para abrir um caminho pelo meio do mato; e
qualquer um que chegasse ali rastejando estaria à sua mercê. Avaliou a ponta de seu
espeto com o polegar e sorriu sem qualquer humor. Quem tentasse chegar ali
acabaria sem defesa, guinchando feito um porco.
Os outros estavam se afastando, a caminho da torre de pedra. Ralph ouviu seus
passos, e depois alguém rindo. Escutou novamente aquele grito de ave, lançado de
um caçador a outro ao longo da linha. Quer dizer que alguns continuavam a
procurar por ele; mas os outros—?
Houve um silêncio prolongado e sem ar. Ralph descobriu que estava com a
boca cheia de casca, de roer a ponta do espeto. Levantou-se e olhou para cima, na
direção da Pedra do Castelo.
Nesse mesmo instante, ouviu a voz de Jack que vinha do alto.
“Força! Força! Força!”
A pedra avermelhada que se via no alto do penhasco desmaterializou-se como
uma cortina, e ele viu várias figuras e o céu azul. Dali a um momento a terra
tremeu, um som de desabamento atravessou o ar e as copas daquele trecho de mato
foram arrancadas como que por uma mão gigantesca. A pedra continuou a rolar,
esmagando tudo a caminho da praia, enquanto uma chuva de galhos partidos e
folhas caía em cima dele. Fora da mata, a tribo comemorava aos gritos.
Novamente o silêncio.
Ralph mordeu os dedos. Só havia mais uma pedra que pudesse ser deslocada;
mas era da metade do tamanho de uma casa; era do tamanho de um ônibus, de um
tanque. Imaginou sua possível trajetória com uma clareza aflitiva — havia de
começar lentamente, descendo de nível em nível, atravessando a língua de terra
como um gigantesco rolo compressor.
“Força! Força! Força!”
Ralph largou sua lança, depois tornou a pegá-la. Empurrou irritado os cabelos
para trás, deu dois passos apressados pelo espaço confinado onde estava e depois
voltou. Parou de pé, contemplando os galhos partidos das árvores.
Ainda o silêncio.
Enxergou o movimento exagerado do seu diafragma, e ficou surpreso de ver
como respirava depressa. Um pouco à esquerda do centro do peito, as batidas do seu
coração eram visíveis. Tornou a pousar a lança.
“Força! Força! Força!”
Um clamor agudo e prolongado de triunfo.
Alguma coisa trovejou no alto do penhasco avermelhado, em seguida a terra
teve um solavanco e começou a tremer, enquanto o barulho aumentava sempre.
Ralph foi arremessado para o ar e depois caiu, chocando-se com os galhos. À sua
direita, poucos metros além, toda a mata se abriu e as raízes gemeram alto enquanto
eram todas arrancadas da terra ao mesmo tempo. Viu uma coisa vermelha que girava
lentamente sobre si mesma, como uma pedra de moinho. Então a coisa vermelha
passou, e seu progresso elefantino foi se tornando mais lento na direção do mar.
Ralph se ajoelhou no chão recém-desnudado e ficou esperando que a terra se
acalmasse. Em seguida, os troncos brancos partidos, os galhos quebrados e o
emaranhado da mata voltaram a entrar em foco. Seu corpo sentia um peso no lugar
onde tinha visto sua própria pulsação.
Novamente o silêncio.
Mas ainda assim não completo. Os outros trocavam sussurros; e de repente os
galhos balançaram furiosamente em dois pontos à sua direita. Surgiu a ponta de
uma lança. Em pânico, Ralph enfiou sua própria lança na abertura e investiu com
toda a força.
“Aaa-ah!”
Sua lança tremeu um pouco nas suas mãos, e então ele a retirou.
“Ooh-ooh—”
Alguém gemia do lado de fora, e um vozerio se ergueu. Uma discussão feroz se
travava, e o selvagem ferido continuava a grunhir. Então caiu um novo silêncio, uma
única voz falou e Ralph concluiu que não era a de Jack.
“Estão vendo? Eu bem que disse — ele é perigoso.”
O selvagem ferido tornou a gemer.
Que mais? E agora?
Ralph firmou as mãos na lança e seu cabelo caiu nos olhos. Alguém
murmurava, a poucos passos de distância na direção da Pedra do Castelo. Ouviu um
selvagem dizer “Não!” com uma voz chocada; e então percebeu risos abafados.
Tornou a se agachar e mostrou os dentes para a barreira de folhagem. Ergueu a
lança, com uma expressão de ódio, e ficou esperando.
Mais uma vez o grupo invisível riu. Ouviu um som contínuo de estalidos e
depois uma crepitação mais alta, como se alguém desdobrasse gigantescas folhas de
celofane. Um graveto estalou e ele abafou a tosse. A fumaça se espalhava entre a
ramagem em chumaços brancos e amarelos, o trecho de azul acima da sua cabeça
adquiriu a cor de uma nuvem de tempestade, e então a fumaça o rodeou por
completo.
Alguém deu um riso nervoso, e uma voz gritou.
“Fumaça!”
Ele avançou rastejando pelo trecho de mata na direção da floresta, tentando
permanecer abaixo da fumaça. Em seguida viu uma clareira, e as folhas verdes da
orla do trecho de mata. Um selvagem quase pequeno se encontrava entre ele e o
resto da floresta, um selvagem listrado de vermelho e branco com uma lança nas
mãos. Tossia e esfregava a tinta nos olhos com as costas da mão, enquanto tentava
enxergar em meio à fumaça cada vez mais densa. Ralph lançou-se sobre ele como
um felino; com os dentes à mostra, desferiu-lhe uma estocada com a lança, e o
selvagem dobrou o corpo. Ouviu-se um grito vindo de trás, e Ralph começou a
correr com a rapidez do medo pelo mato mais baixo. Chegou a uma trilha de
porcos, que seguiu por uns cem metros, e depois se desviou da picada. Atrás dele,
ouviam-se novamente gritos ululantes de um lado a outro da ilha, e uma voz isolada
repetiu o chamado três vezes. Imaginou que fosse uma ordem para os demais
avançarem, e tornou a sair correndo, com o peito apertado. Em seguida, atirou-se
debaixo de um arbusto e esperou um pouco até sua respiração se normalizar. Passou
a língua pelos dentes e os lábios, e ouviu ao longe os gritos ululantes de seus
perseguidores.
Havia muitas coisas que poderia fazer. Podia subir numa árvore — mas seria o
mesmo que apostar tudo numa única chance. Se fosse detectado, bastaria aos outros
esperar que ele descesse.
Se pelo menos tivesse tempo de pensar!
Outro grito duplo à mesma distância deu uma indicação de qual era o plano
dos outros. Todos os selvagens que encontrassem algum obstáculo na floresta
deviam dar o grito duplo e ficar em posição até conseguirem desvencilhar-se. Assim,
podiam manter o cordão constante, sem brechas, de lado a lado da ilha. Ralph se
lembrou do porco-do-mato que tinha rompido o cerco deles com tanta facilidade.
Se fosse o caso, quando os perseguidores chegassem perto demais, ele podia atacar a
linha ainda espaçada, romper o cerco e correr de volta para o outro lado. Mas correr
de volta até onde? O cordão faria a volta, recomeçando a varredura. Mais cedo ou
mais tarde ele seria obrigado a comer ou dormir — e então acabaria acordando nas
mãos que o prendiam; e a caçada seria só uma questão de esperar que a presa
gastasse suas energias.
O que fazer, então? A árvore? Romper a linha do cerco como um porco-do-
mato? Qualquer das alternativas era terrível.
Um grito isolado acelerou seu coração e, pondo-se de pé num salto, disparou
na direção do oceano e da floresta mais cerrada até se ver emaranhado em cipós;
passou um momento agitando os calcanhares para se libertar. Se pelo menos pudesse
conseguir uma trégua, uma pausa mais longa, tempo para pensar!
E novamente, bem agudo e inevitável, soou o grito ululante de lado a lado da
ilha. Ao ouvi-lo, refugou o passo como um cavalo em meio aos cipós e saiu correndo
de novo até começar a ofegar. E se atirou no chão, ao lado de uma moita de
samambaias. A árvore ou o ataque? Controlou a respiração algum tempo, limpou a
boca e repetiu para si mesmo que precisava manter a calma. Samineric haviam de
estar em algum ponto da linha inimiga, e odiando esse papel. Ou teriam ficado de
fora? E vamos imaginar que, em vez deles, ele se deparasse com o Chefe, ou com
Roger que levava a morte nas mãos?
Ralph empurrou os cabelos emaranhados para trás e enxugou o suor que
escorria para dentro do seu olho melhor. E falou, em voz alta:
“Pensa.”
Qual era a coisa mais sensata a fazer?
Porquinho não estava mais lá para ser a voz da sensatez. Não estava numa
reunião solene de discussão, não havia mais a dignidade da concha.
“Pensa.”
Acima de tudo, estava começando a ter medo da cortina que podia baixar no
seu cérebro a qualquer momento, anulando a noção de perigo, transformando-o
num idiota.
Uma terceira ideia seria se esconder tão bem que a linha, no seu avanço,
passasse por ele sem descobri-lo.
Levantou a cabeça num arranco e ficou escutando. Agora havia outro som que
precisava acompanhar — um ronco grave, como se a própria floresta estivesse com
raiva dele, um sinistro ruído de fundo contra o qual os gritos ululantes se erguiam
como o som aflitivo do giz que falhava no quadro-negro. Sabia que já tinha escutado
aquilo antes, em algum lugar, mas não tinha tempo de vasculhar a memória.
Romper a linha.
Uma árvore.
Esconder-se e deixar a tribo passar.
Um grito mais próximo o fez pôr-se de pé e na mesma hora começou a correr
de novo, o mais depressa que podia, em meio aos espinhos e às folhas ásperas. De
repente, chegou a um trecho descampado, e se viu de novo naquela mesma clareira
— lá estava o sorriso bipartido do crânio, não mais zombando de um trecho de céu
azul-escuro mas rindo para uma espessa cobertura de fumaça. Em seguida, Ralph
saiu correndo por baixo das árvores, tendo entendido a causa do ronco de fundo que
tomava a floresta. Os outros tinham ateado fogo à ilha, para que a fumaça o
obrigasse a sair da floresta.
Esconder-se era melhor do que uma árvore, porque ainda lhe restaria a chance
de romper a linha se fosse descoberto.
Um esconderijo, então.
Pensou se um porco concordaria com ele, e sorriu para ninguém. Tinha de se
enfiar no arvoredo mais cerrado, no buraco mais escuro de toda a ilha. Agora,
enquanto corria, olhava à sua volta. Faixas e manchas de luz do sol o cobriam, e o
suor criava estrias brilhantes em seu corpo sujo. Os gritos agora soavam distantes, e
mais fracos.
Finalmente encontrou o que lhe pareceu o lugar ideal, embora sua escolha fosse
desesperada. Ali, trepadeiras e um emaranhado denso de cipós e plantas baixas
criavam uma espécie de esteira que barrava a luz do sol. E debaixo dela havia um
espaço, com pouco mais de um palmo de altura, percorrido de fora a fora por talos
paralelos. Enfiando-se naquele espaço, ele ficava a cinco passos da beira da mata e ao
mesmo tempo escondido, a menos que um selvagem resolvesse abaixar-se e procurar
por ele justamente ali. Mesmo assim, estaria na sombra — e se o pior acontecesse e
o selvagem o avistasse, ainda lhe restaria a chance de atacá-lo, quebrar o
alinhamento do cordão de caçadores e escapar correndo para o outro lado.
Cuidadosamente, arrastando sua lança atrás de si, Ralph rastejou por entre os
talos que ligavam a esteira ao chão. Quando chegou ao meio da área coberta, ficou
deitado, escutando.
O fogo estava alto, e o som de tambores que julgava ter deixado para trás
chegava cada vez mais perto. Afinal, o fogo não avançava mais depressa que um
cavalo a galope? Ralph conseguia avistar o chão salpicado de sol por um raio de
talvez cinquenta metros em torno do ponto onde se escondera: e, enquanto
observava, a luz do sol em cada uma das manchas piscou para ele. Lembrava tanto a
cortina que baixava em seu cérebro que, por um momento, achou que aquele
tremeluzir só se dava dentro dele. Mas então as manchas piscaram mais depressa,
ficaram mais tênues e finalmente se apagaram, o que o fez ver que um grande
volume de fumaça já se acumulava entre a ilha e o sol.
Se alguém olhasse por baixo das moitas e por acaso vislumbrasse a mancha de
pele humana, sempre podiam ser Samineric, que fingiriam não ter visto nada e nem
abririam a boca. Encostou a face na terra cor de chocolate, lambeu os lábios secos e
fechou os olhos. Debaixo daquela esteira de cipós, a terra vibrava ligeiramente; ou
talvez houvesse um outro barulho, entre o óbvio trovejar do fogo e as ululações
agudas, soando baixo demais para ser ouvido.
Alguém chamou. Ralph desencostou o rosto da terra e olhou para a luz
atenuada. Devem ter chegado perto, pensou, e seu peito começou a bater. Esconder-
se, romper o cerco, subir numa árvore — qual seria a melhor ideia, afinal? O
problema é que só teria uma chance.
Agora o fogo estava mais próximo; os tiros que ouvia eram a explosão de galhos
grandes, talvez até de troncos. Os idiotas! O fogo deve ter chegado quase até as
árvores frutíferas — e o que eles iriam comer no dia seguinte?
Ralph se agitou, inquieto, em sua cama estreita. Os outros não queriam correr
riscos! E o que podiam fazer? Bater nele? E daí? Matá-lo? Uma vara com duas pontas
afiadas.
Os gritos, de repente mais próximos, o trouxeram bruscamente de volta. Viu
um selvagem pintado que se deslocava depressa, saindo de um trecho de mata verde,
aproximando-se da esteira onde estava escondido; um selvagem com uma lança na
mão. Ralph cravou os dedos na terra. Precisava estar pronto para qualquer coisa.
Ralph mudou de posição, virando a lança para que ficasse com a ponta para a
frente; e então viu que tinha duas pontas.
O selvagem parou a quinze metros e soltou seu grito.
Quem sabe ele ouviu meu coração, apesar do barulho do fogo. Não grita. Fica
preparado.
O selvagem avançou, e Ralph só conseguia vê-lo da cintura para baixo. Ali
estava a haste da lança dele. Agora só via do joelho para baixo. Nada de gritar.
Um bando de porcos saiu guinchando de um trecho de mata, atrás do
selvagem, e enveredou pela floresta. Aves gritavam, ratos guinchavam e uma
criaturinha que andava aos saltos refugiou-se encolhida debaixo da esteira.
A cinco metros dali o selvagem parou, de pé bem ao lado da esteira, e deu seu
grito. Ralph recolheu os pés e se enrodilhou. A lança estava nas suas mãos, a lança
de duas pontas, aquela lança que vibrava tanto, que se encompridava e se encurtava,
ficava leve e pesada, e leve de novo.
Os gritos ululantes se espalharam de costa a costa. O selvagem se ajoelhou ao
lado da esteira, e luzes percorriam a floresta atrás dele. Ralph viu um joelho se
afundar na terra. Depois o outro. Duas mãos. Uma lança.
Um rosto.
O selvagem fitou a penumbra debaixo da esteira. Dava para ver que enxergava
luz de um lado e de outro, mas não no meio — bem ali. No meio ficava uma massa
de sombra e o selvagem franziu o rosto, tentando decifrar o que seria aquela
escuridão.
Os segundos se arrastavam. Ralph olhava bem nos olhos do selvagem.
Não grita.
Você vai voltar.
Agora ele me viu, e só está se certificando. Uma vara de ponta afiada.
Ralph deu um grito, um grito de medo, raiva e desespero. Suas pernas se
esticaram, seus gritos se tornaram contínuos e furiosos. Saltou para a frente, rompeu
o emaranhado de cipós, lançou-se em campo aberto gritando, rangendo os dentes,
ensanguentado. Ameaçou uma estocada com a lança e o selvagem se afastou; mas
outros já se aproximavam dele, aos gritos. Ralph se desviou, uma lança passou junto
a seu corpo e em seguida ele parou de gritar e saiu correndo. Na mesma hora, as
luzes que piscavam à sua frente se fundiram numa só, o ronco da floresta se
transformou numa explosão e um arbusto alto bem à sua frente irrompeu numa
chama imensa em forma de leque. Ralph deu uma guinada para a direita, correndo a
uma velocidade desesperada, sentindo um calor extremo do seu lado esquerdo e
vendo que o fogo avançava depressa como a maré alta. Os gritos ululantes soavam
mais fortes atrás dele e se espalhavam, uma série de gritos muito breves e agudos, o
sinal de que tinha sido avistado. Uma figura marrom surgiu à sua direita e
desapareceu. Todos corriam, todos gritavam feito loucos. Ralph ouvia os passos dos
outros, rompendo o mato baixo enquanto, à esquerda, o fogo luminoso trovejava.
Esqueceu seus ferimentos, a fome e a sede, e transformou-se em puro medo; um
medo sem saída correndo com pés que voavam, atravessando a mata na direção da
praia aberta. Manchas dançavam à frente dos seus olhos e se convertiam em círculos
vermelhos que se dilatavam cada vez mais depressa, até desaparecer. Atrás dele, as
pernas de alguém se cansavam e os desesperados gritos ululantes avançavam como
um gume serrado de ameaça, quase a alcançá-lo.
Tropeçou numa raiz e o grito que o perseguia subiu de tom. Viu um abrigo
explodir em chamas e o fogo o atingiu no ombro direito, antes que ele tivesse um
vislumbre da água cintilante. Então se atirou no chão, rolando e rolando na areia
quente, encolhido e com o braço levantado para se defender, tentando pedir piedade
aos gritos.
Levantou-se vacilante, tensionando o corpo para enfrentar novos terrores, e
avistou um quepe com aba. Era um quepe branco, e acima da pala verde viam-se
uma coroa, uma âncora, ramos dourados. Viu o tecido branco, as dragonas, um
revólver, uma fileira de botões dourados no peito do uniforme.
Um oficial de marinha estava de pé na areia, olhando para Ralph e tomado por
um espanto cauteloso. Na praia atrás dele se via um escaler, com a proa na areia
segura por dois marujos. No banco do escaler, outro marujo trazia uma
submetralhadora nas mãos.
Os gritos ululantes foram cessando e se calaram.
O oficial olhou para Ralph, em dúvida por um momento, depois afastou a mão
da coronha do revólver.
“Olá.”
Ainda um pouco encolhido, consciente de sua aparência imunda, Ralph
respondeu timidamente.
“Olá.”
O oficial assentiu com a cabeça, como se uma pergunta tivesse sido respondida.
“Algum adulto — alguma pessoa grande com vocês?”
Sem dizer nada, Ralph abanou a cabeça. Deu meio passo atrás na areia e se
virou. Um semicírculo de garotos, com os corpos pintados de argila colorida e
espetos pontudos nas mãos, estavam de pé na praia sem produzir som algum.
“Alguma brincadeira”, disse o oficial.
O fogo chegou aos coqueiros junto à praia e os engoliu com estrépito. Uma
chama, aparentemente isolada, arremessou-se como um acrobata e se espalhou pelas
frondes dos coqueiros da plataforma. O céu estava negro.
O oficial dirigiu um sorriso animador a Ralph.
“Nós vimos a sua fumaça. O que vocês andaram fazendo? Metidos numa
guerra, ou coisa assim?”
Ralph assentiu com a cabeça.
O oficial examinou o pequeno espantalho à sua frente. O garoto estava
precisando de um banho, de um corte de cabelo, de assoar o nariz e de um bocado
de pomada.
“Ninguém morto, não é? Algum cadáver?”
“Só dois. E já sumiram.”
O oficial se inclinou para a frente e olhou fixamente para Ralph.
“Dois? Mortos?”
Ralph tornou a assentir. Atrás dele, toda a ilha tremia em chamas. O oficial
sabia distinguir quando as pessoas diziam a verdade. Deu um assobio baixo.
Outros meninos estavam aparecendo, alguns deles bem pequenos, todos
queimados de sol, com as barrigas proeminentes de crianças selvagens. Um deles se
aproximou do oficial e levantou os olhos.
“Eu sou, eu sou—”
Mas não conseguiu dizer mais nada. Percival Wemys Madison vasculhou a
cabeça à procura das palavras mágicas que agora lhe faltavam por completo.
O oficial voltou a fitar Ralph.
“Vamos levar vocês embora. São quantos no total?”
Ralph abanou a cabeça. O oficial olhou para o grupo de meninos pintados atrás
dele.
“Quem é o chefe aqui?”
“Eu”, respondeu Ralph com voz firme.
Um menino usando os andrajos de um extravagante barrete preto no cabelo
ruivo, e carregando os restos de um par de óculos na cintura, deu um passo à frente,
depois mudou de ideia e ficou parado.
“Nós vimos a sua fumaça. E você não sabe quantos vocês são no total?”
“Não.”
“Eu diria”, disse o oficial, enquanto imaginava a busca que tinha pela frente,
“eu diria que um bando de meninos ingleses — vocês são todos ingleses, não são? —
saberia se comportar melhor do que isso — quer dizer—”
“Foi assim no começo”, disse Ralph, “antes que as coisas—”
E parou de falar.
“No começo estava todo mundo junto—”
O oficial assentiu com a cabeça, esperando ouvir mais.
“Eu sei. Uma coisa incrível. Como na Ilha de Coral.”
Ralph olhou para ele sem dizer nada. Por um instante, teve a visão passageira
do estranho encanto que sentiu naquelas praias num primeiro momento. Mas a ilha
estava toda chamuscada como um pedaço de madeira morta — Simon tinha
morrido — e Jack... As lágrimas começaram a correr, e Ralph foi sacudido por
soluços. Entregou-se a eles pela primeira vez na ilha; espasmos violentos, trêmulos,
de dor, que pareciam retorcer todo o seu corpo. Sua voz se elevava debaixo da
fumaça negra diante da ruína calcinada da ilha; e, contagiados por aquela emoção,
os outros meninos também começaram a soluçar sacudindo o corpo. E no meio
deles, com o corpo imundo, o cabelo emaranhado e o nariz precisando ser assoado,
Ralph chorava o fim da inocência, as trevas do coração humano, e a queda no
abismo do amigo sincero e ajuizado chamado Porquinho.
O oficial, cercado por esses sons, ficou comovido e um pouco encabulado.
Virou-se de costas para dar aos meninos o tempo de se recomporem; e ficou
esperando, com os olhos pousados no aprumo do cruzador ao longe.