Karl Marx - Glosas Criticas Marginais (1844)
Karl Marx - Glosas Criticas Marginais (1844)
Karl Marx - Glosas Criticas Marginais (1844)
7 de Agosto de 1844
O jornal Vorwärts, nº 60, contém um artigo intitulado: O rei da Prússia e a reforma social,
assinado: "Um prussiano".
La Refórme entende que a ordem do gabinete foi motivada pelo "terror e pelo sentimento
religioso"" do rei. E até descobre nesse documento o pressentimento das grandes reformas que
ameaçam a sociedade civil. O "prussiano" ensina ao Refórme nestes termos:
"O rei e a sociedade alemã não chegaram ainda ao pressentimento de sua reforma" e
menos ainda as insurreições silesiana e boêmia deram origem a tal sentimento. É impossível,
para um país não-político como a Alemanha, compreender que a miséria parcial dos distritos
industriais é uma questão geral e muito menos que representa um problema para o conjunto
da sociedade. Para os alemães, esse acontecimento tem o mesmo caráter de qualquer seca ou
carestia local. Por isso o rei o considera como um defeito de administração ou de assistência.
Por esse motivo e também porque bastaram poucos soldados para liquidar os frágeis tecelões,
a demolição das fábricas e das máquinas não incute "terror", nem ao rei, nem às autoridades.
Além do mais, a ordem do gabinete nem sequer foi ditada pelo sentimento religioso: trata-se
de uma sóbria expressão da arte política cristã e de uma doutrina que não deixa subsistir
nenhuma dificuldade diante do seu único remédio, "a boa disposição dos corações cristãos".
Miséria e crime são duas grandes calamidades: quem poderá repará-las? O Estado e as
autoridades? Não, mas, ao contrário, a união de todos os corações cristãos".
O suposto prussiano nega o "terror" do rei, entre outras coisas, porque bastaram poucos
soldados para liquidar os frágeis tecelões.
Ora, em um país no qual banquetes com brindes liberais e espuma liberal de champanhe -
lembre-se a festa de Dusserdorf - provocam uma ordem do gabinete real pela qual não houve
necessidade de um só soldado para acabar com os anseios de liberdade de imprensa e de
constituição de toda a burguesia liberal; em um país em que a obediência passiva está na
ordem do dia; em um tal país não seria um acontecimento e um acontecimento aterrorizante
ter que recorrer à força armada? Considere-se ainda o fato de que os frágeis tecelões saíram
vencedores no primeiro choque. Apenas mediante consideráveis reforços de tropas é que foram
vencidos. A revolta de uma massa de trabalhadores é por acaso menos perigosa pelo fato de
não ser necessário um exército para sufocá-la? Que o inteligente prussiano compare a revolta
dos tecelões silesianos com as revoltas dos operários ingleses e os tecelões silesianos lhe
parecerão tecelões fortes.
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Partindo da relação geral da política com os males sociais, poderemos esclarecer porque a
revolta dos tecelões não podia infundir nenhum "terror" particular ao rei. Por ora seja suficiente
isto: a revolta não era dirigida diretamente contra o rei da Prússia, mas contra a burguesia.
Como aristocrata e monarca absoluto, o rei da Prússia não pode amar a burguesia; menos
ainda se pode aterrorizar se a sua submissão e a sua impotência forem acrescidas de relações
tensas e difíceis com o proletariado. Além do mais: o católico ortodoxo é mais hostil ao
protestante ortodoxo do que ao ateu, assim como o legitimista é mais hostil ao liberal do que
ao comunista. Não porque o ateu e o comunista tenham mais afinidade com o católico e o
legitimista, mas porque eles são mais estranhos do que o protestante e o liberal, uma vez que
se situam do lado de fora do seu círculo. Enquanto homem político, o rei da Prússia tem, na
política, o seu antagonista direto no liberalismo. Para o rei, o antagonismo com o proletariado
existe tão pouco quão pouco o rei existe para o proletariado. O proletariado já deveria ter
alcançado uma força decisiva para sufocar as antipatias, os antagonismos e atrair sobre si a
total hostilidade da política. Por último: para o bem conhecido caráter do rei, desejoso de coisas
interessantes e significativas, devia constituir de fato uma surpresa agradavelmente excitante o
fato de encontrar no seu território aquele "interessante" e "tão falado" pauperismo, e com isso
uma ocasião para fazer com que falassem novamente de si. Como deve ter-lhe sido agradável a
notícia de que ele já possuía o seu "próprio" real pauperismo prussiano.
O nosso "prussiano" é ainda mais infeliz quando nega que o "sentimento religioso" seja a
fonte da ordem do gabinete real. Por que o sentimento religioso não é a fonte dessa ordem de
gabinete? Porque é "uma muito sóbria expressão da arte política cristã", uma "sóbria"
expressão da doutrina que "diante do seu único remédio, a boa disposição dos corações
cristãos, não deixa subsistir nenhuma dificuldade".
O sentimento religioso não é a fonte da arte política cristã? Não se funda no sentimento
religioso uma doutrina que possui o seu remédio na boa disposição dos corações cristãos? Uma
expressão sóbria do sentimento religioso deixa de ser uma expressão do sentimento religioso
muito cheio de si, muito apaixonado aquele que procura o "remédio para os grandes males" na
"união dos corações cristãos", negando-o ao "Estado e às autoridades". É um sentimento
religioso muito apaixonado aquele que - segundo admite o "prussiano" - particulariza todo o
mal na falta de sentido cristão, remetendo as autoridades ao único meio para reforçar este
sentido, à "exortação". A disposição cristã é, segundo o "prussiano", o objetivo da ordem do
gabinete. É claro que, quando não é sóbrio, ele se considera o único bem. Lá onde descobre
males, ele os atribui à sua ausência, uma vez que, se é o único bem, também é somente ele
que pode produzir o bem. A ordem do gabinete, ditada pelo sentimento religioso, dita por sua
vez, como conseqüência, o sentimento religioso. Um político com sentimento religioso sóbrio,
na sua "perplexidade", nunca procuraria o seu "auxílio" na "exortação do piedoso pregador ao
sentimento cristão".
Como demonstra, então, o suposto prussiano, ao Réforme, que a ordem do gabinete não é
uma emanação do sentimento religioso? Apresentando sempre a ordem do gabinete como uma
emanação do sentimento religioso. Pode-se esperar que uma mente tão ilógica seja capaz de
penetrar nos acontecimentos sociais? Ouçamos um pouco as suas conversas sobre as relações
da sociedade alemã com o movimento dos trabalhadores e com a reforma social em geral.
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caráter de qualquer seca ou carestia local. Por isso, o rei o considera como um 'defeito de
administração e de assistência'."
O "prussiano" explica então essa concepção invertida da miséria dos trabalhadores, através
da peculiaridade de um país não-político.
Admitir-se-á que a Inglaterra seja um país político. Admitir-se-á, além do mais, que a
Inglaterra seja o país do pauperismo; a própria palavra é de origem inglesa. Por isso, o exame
da Inglaterra é a experiência mais segura para conhecer-se a relação de um país político com o
pauperismo. Na Inglaterra, a miséria dos trabalhadores não é parcial, mas universal; não se
limita aos distritos industriais, mas se estende aos agrícolas. Aqui, os movimentos não estão
numa fase inicial, mas acontecem periodicamente há quase um século.
Um dos melhores e mais famosos economistas ingleses, que conhece a situação atual e
deve ter uma visão de conjunto do movimento da sociedade burguesa, um discípulo do cínico
Ricardo, MacCulloch, ousa ainda aplicar à economia política, numa preleção pública, em meio a
manifestações de aplauso, aquilo que Bacon diz da filosofia:
"O homem que, com verdadeira e infatigável sabedoria, suspenda o seu juízo, progrida
pouco a pouco e supere um depois do outro os obstáculos que impedem como montanhas o
curso dos estudos, atingirá com o tempo o cume da ciência, onde se goza a paz e o ar puro,
onde a natureza se expõe diante dos olhos em toda a sua beleza e onde, por meio de uma
senda em cômodo declive, pode-se descer até os últimos detalhes da prática".
Bom ar puro a atmosfera pestilencial das habitações nos pardieiros ingleses! Grande beleza
da natureza os fantasiosos trapos com que se vestem os pobres ingleses e a carne mirrada e
enrugada das mulheres roídas pelo trabalho e pela miséria; as crianças que jazem no esterco;
os abortos provocados pelo excesso de trabalho no uniforme mecanismo das fábricas! E os
graciosíssimos últimos detalhes da prática: a prostituição, o crime e a forca!
Até mesmo aquela parte da burguesia inglesa que está consciente do perigo do pauperismo
concebe este perigo, como também os meios para repará-lo, não apenas de forma particular,
mas, para dizê-lo sem rodeios, de forma infantil e sem graça.
Assim, por exemplo, o doutor Kay, no seu opúsculo Recent measures for he promotion of
education in England, reduz tudo a uma educação descuidada. Adivinhe-se por que motivo!
Com efeito, por falta de educação o que o reduzem necessariamente ao pauperismo. Daí a sua
rebelião. Isto pode "perturbar a prosperidade das manufaturas inglesas e do comércio inglês,
abalar a confiança recíproca dos homens de negócios, diminuir a estabilidade das instituições
políticas e sociais".
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Admitamos, porém, que sejam fundadas as recriminações que o nosso "prussiano" faz à
sociedade alemã. Será que o motivo reside na situação não-política da Alemanha? Conduto, se
a burguesia da não-política Alemanha é incapaz de tomar consciência da importância universal
de uma miséria parcial, a burguesia da política Inglaterra é capaz de desconhecer a importância
universal de uma miséria universal, de uma miséria que evidenciou a sua importância
universal, tanto através do seu retorno periódico no tempo como através da sua difusão no
espaço e também através do fracasso de todas as tentativas de remediá-la.
Por acaso, será exclusivo do rei da Prússia este modo de ver? Dê-se uma rápida olhada à
Inglaterra, o único país no qual se pode falar de uma grande ação política contra o pauperismo.
A atual legislação inglesa sobre a pobreza data da lei contida no Ato 43 do governo de
Elisabeth. Em que consistem os meios desta legislação? Na obrigação imposta às paróquias de
socorrer os seus trabalhadores pobres, no imposto para os pobres, na beneficiência legal. Essa
legislação - a assistência por via administrativa - durou três séculos. Depois de longas e
dolorosas experiências, quais são as posições do parlamento no seu Amendment Bill de 1834?
Por isso, a administração do imposto para os pobres, constituída por empregados das
respectivas paróquias, é reformulada. São constituídas Uniões de cerca de vinte paróquias,
unidas em uma única administração. Um comitê de funcionários - Board of Guardians - eleitos
pelos contribuintes, reúne-se em um determinado dia na sede da União e avalia os pedidos de
subsídio. Esses comitês são dirigidos e supervisionados por delegados do governo, da Comissão
Central da Somerset House, o ministério do pauperismo, segundo a precisa definição de um
francês. O capital de que essa administração cuida quase equivale à soma que a administração
militar custa na França. O número de administrações locais que dependem dela chega a
quinhentas e cada uma dessas administrações locais, por sua vez, ocupa, pelo menos, doze
funcionários.
Segundo ele, a causa principal da grave situação do pauperismo inglês está na própria lei
relativa aos pobres. A assistência, o meio legal contra o mal social, acaba favorecendo-o. E
quanto ao pauperismo em geral seria, de acordo com a teoria de Malthus, uma eterna lei da
natureza:
Surgiu, assim, o regime das workhouses, isto é, das casas dos pobres, cuja organização
interna desencoraja os miseráveis de buscar nelas a fuga contra a morte pela fome. Nas
workhouses, a assistência é engenhosamente entrelaçada com a vingança da burguesia contra
o pobre que apela à sua caridade.
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A lição geral que a política Inglaterra tirou do pauperismo se limita ao fato de que, no curso
do desenvolvimento, apesar das medidas administrativas, o pauperismo foi configurando-se
como uma instituição nacional e chegou por isso, inevitavelmente, a ser objeto de uma
administração ramificada e bastante extensa, uma administração, no entanto, que não tem
mais a tarefa de eliminá-lo, mas, ao contrário, de discipliná-lo. Essa administração renunciou a
estancar a fonte do pauperismo através de meios positivos; ela se contenta em abrir-lhe, com
ternura policial, um buraco toda vez que ele transborda para a superfície do país oficial. Bem
longe de ultrapassar as medidas de administração e de assistência, o Estado inglês desceu
muito abaixo delas. Ele já não administra mais do que aquele pauperismo que, em desespero,
deixa agarrar-se e prender-se.
"Não se deve passar sobre a terra sem deixar traços que relembrem à posteridade a nossa
memória. Não me peçam mais três ou quatro meses para receber informações; vocês têm
funcionários jovens, prefeitos inteligentes, engenheiros civis bem preparados, ponham ao
trabalho todos eles; não fiquem modorrando no costumeiro trabalho de escritório".
Em poucos meses tudo estava terminado. No dia cinco de julho de 1808 foi promulgada a
lei que reprime a mendicância. Como? Por meio dos depósitos, que se transformaram em
penitenciárias com tanta rapidez que bem depressa o pobre chegava aí exclusivamente pela
estrada do tribunal da polícia correcional. E, no entanto, naquele tempo, o senhor Noailles du
Gard, membro do corpo legislativo, exclamava:
Por que Napoleão não ordenou a imediata supressão da mendicância? O mesmo valor tem a
pergunta do "prussiano": Por que o rei da Prússia não determina a imediata educação de todas
as crianças abandonadas? Sabe o "prussiano" o que o rei da Prússia deveria determinar? Nada
menos que a eliminação do proletariado. Para educar as crianças, é preciso alimentá-las e
liberá-las da necessidade de trabalhar para viver. Alimentar e educar as crianças abandonadas,
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isto é, alimentar e educar todo o proletariado que está crescendo, significaria eliminar o
proletariado e o pauperismo.
Assim, de modo imediato, sem um acordo com as autoridades, nenhum governo do mundo
tomou medidas a respeito do pauperismo. O parlamento inglês chegou até a mandar, a todos
os países da Europa, comissários para conhecer os diferentes remédios administrativos contra o
pauperismo. Porém, por mais que os Estados tivessem se ocupado do pauperismo, sempre se
ativeram a medidas de administração e de assistência, ou, ainda mais, desceram abaixo da
administração e da assistência.
O Estado e a organização da sociedade não são, do ponto de vista político, duas coisas
diferentes. O Estado é o ordenamento da sociedade. Quando o Estado admite a existência de
problemas sociais, procura-os ou em leis da natureza, que nenhuma força humana pode
comandar, ou na vida privada, que é independente dele, ou na ineficiência da administração,
que depende dele. Assim, a Inglaterra acha que a miséria tem o seu fundamento na lei da
natureza, segundo a qual a população supera necessariamente os meios de subsistência. Por
um outro lado, o pauperismo é explicado como derivando da má vontade dos pobres, ou, de
acordo com o rei da Prússia, do sentimento não cristão dos ricos, e, segundo a Convenção, da
suspeita disposição contra-revolucionária dos proprietários. Por isso, a Inglaterra pune os
pobres, o rei da Prússia admoesta os ricos e a Convenção guilhotina os proprietários.
O Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração,
de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que
repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública,
sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por isso, a
administração deve limitar-se a uma atividade formal e negativa, uma vez que exatamente lá
onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder. Mais ainda, frente à
conseqüências que brotam da natureza a-social desta vida civil, dessa propriedade privada,
desse comércio, dessa indústria, dessa rapina recíproca das diferentes esferas civis, frente a
estas conseqüências, a impotência é a lei natural da administração. Com efeito, esta
dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil, é o fundamento natural onde se
apoia o Estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual
se apoiava o Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são
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inseparáveis. O Estado antigo e a escravidão antiga - fracas antíteses clássicas - não estavam
fundidos entre si mais estreitamente do que o Estado moderno e o moderno mundo de
traficantes, hipócritas antíteses cristãs. Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência
da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a
vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela. Mas
nenhum ser vivo acredita que os defeitos de sua existência tenham a sua raiz no princípio da
sua vida, na essência da sua vida, mas, ao contrário, em circunstâncias externas à sua vida. O
suicídio é contra a natureza. Por isso, o Estado não pode acreditar na impotência interior da sua
administração, isto é, de si mesmo. Ele pode descobrir apenas defeitos formais, casuais, da
mesma, e tentar remediá-los. Se tais modificações são infrutíferas, então o mal social é uma
imperfeição natural, independente do homem, uma lei de Deus, ou então a vontade dos
indivíduos particulares é por demais corrupta para corresponder aos bons objetivos da
administração. E quem são esses pervertidos indivíduos particulares? São os que murmuram
contra o governo sempre que ele limita a liberdade e pretendem que o governo impeça as
conseqüências necessárias dessa liberdade.
Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto menos
está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual ordenamento da sociedade,
do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e oficial, o fundamento dos males sociais
e a compreender-lhes o princípio geral. O intelecto político é político exatamente na medida em
que pensa dentro dos limites da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto
menos é capaz de compreender os males sociais. O período clássico do intelecto político é a
Revolução francesa. Bem longe de descobrir no princípio do Estado a fonte dos males sociais,
os heróis da Revolução Francesa descobriram antes nos males sociais a fonte das más
condições políticas. Deste modo, Robespierre vê na grande miséria vê na grande miséria e na
grande riqueza um obstáculo à democracia pura. Por isso, ele quer estabelecer uma frugalidade
espartana geral. O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é, quanto mais
perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego
frente aos limites naturais e espirituais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz
de descobrir a fonte dos males sociais. Não é preciso argumentar mais contra a insensata
esperança do "prussiano", segundo a qual o "intelecto político" é chamado a descobrir as raízes
da miséria social na Alemanha.
Foi loucura não somente exigir do rei da Prússia um poder que nem a Convenção e
Napoleão juntos tiveram; foi loucura exigir dele um modo de ver do qual o inteligente
"prussiano" está pelo menos tão longe quanto o seu rei. Toda essa declaração foi ainda mais
insensata na medida em que o "prussiano" nos confessa:
"As boas palavras e as boas disposições são baratas, o que é caro são a perspicácia e as
ações eficazes; neste caso, elas são mais do que caras, estão muito longe da possibilidade de
efetivação".
Se estão muito longe da possibilidade de efetivação, imagine-se quem, então, a partir daí
tentar alcançar o possível. No mais, deixo a critério do leitor julgar se, neste caso, a linguagem
mercantil, de cigano, na base do "barato", "caro", "mais do que caro", "longe da possibilidade
de efetivação", possa ser incluída na categoria das "boas palavras" e das "boas disposições".
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O prusiano - se tivesse maior familiaridade com a história dos movimentos sociais - teria
formulado a sua pergunta ao contrário. Por que também a burguesia alemã vê na miséria
parcial uma miséria relativamente tão universal? De onde provém a animosidade e o cinismo da
burguesia política, de onde provém a falta de resistência e as simpatias da burguesia não-
política para com o proletariado?
"Os Alemães pobres", graceja, "não são mais inteligentes do que os pobres alemães, quer
dizer, não enxergam nada além do seu lar, da sua fábrica, do seu distrito; até agora toda a
questão está ainda abandonada pela alma política que penetra em tudo".
Para poder comparar a situação dos trabalhadores alemães com a situação dos
trabalhadores franceses e ingleses, o "prussiano" deveria comparar a primeira etapa, o início do
movimento dos trabalhadores franceses e ingleses com o movimento alemão que começou
agora. Mas ele negligencia isto. Deste modo, o seu raciocínio cai em obviedades, como essa de
que a indústria na Alemanha ainda não está tão desenvolvida como na Inglaterra, ou então de
que um movimento no seu início se apresenta diferente do que numa etapa posterior. Ele
gostaria de falar das particularidades do movimento dos trabalhadores alemães. No entanto,
não diz uma palavra a respeito desse assunto.
Que o "prussiano" se situe, pois, do ponto de vista correto. Verá que nenhuma das revoltas
dos operários franceses e ingleses teve um caráter tão teórico e consciente como a revolta dos
tecelões silesianos.
Lembre-se, antes de mais nada, a canção dos tecelões, aquela audaz palavra-de-ordem de
luta na qual lar, fábrica e distrito não são mencionados uma vez sequer e na qual, pelo
contrário, o proletariado proclama, de modo claro, cortante, implacável e poderoso, o seu
antagonismo com a sociedade da propriedade privada. A revolta silesiana começa exatamente
lá onde terminam as revoltas dos trabalhadores franceses e ingleses, isto é, na consciência
daquilo que é a essência do proletariado. A própria ação traz este caráter superior. Não só são
destruídas as máquinas, essas rivais do trabalhador, mas também os livros comerciais, os
títulos de propriedade, e enquanto todos os outros movimentos se voltavam primeiramente
contra o senhor da indústria, o inimigo visível, este movimento volta-se também contra o
banqueiro, o inimigo oculto. Enfim, nenhuma outra revolta de trabalhadores ingleses foi
conduzida com tanta coragem, reflexão e duração.
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Deve-se admitir que o proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o
proletariado inglês é o seu economista e o proletariado francês o seu político. Deve-se admitir
que a Alemanha tem uma vocação tão clássica para a revolução social quanto é incapaz de uma
revolução política. Com efeito, assim como a impotência da burguesia alemã é a impotência
política da Alemanha, assim a disposição do proletariado alemão - ainda que prescindindo da
teoria alemã - é a disposição social da Alemanha. A desproporção entre o desenvolvimento
filosófico e o desenvolvimento político na Alemanha não é nenhuma anormalidade. É uma
desproporção necessária. Somente no socialismo pode um povo filosófico encontrar a sua
práxis correspondente e, portanto, somente no proletariado o elemento ativo da sua libertação.
Mas, nesse momento, não tenho nem tempo nem disposição para explicar ao "prussiano" a
relação da "sociedade alemã" com a revolução social, e, a partir dela, de um lado a fraca
reação da burguesia alemã contra o socialismo e, de outro, as excelentes disposições para o
socialismo do proletariado alemão. Na minha Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel
(Deutsch-Franzosische Jahrbucher), ele encontrará os primeiros elementos para compreender
esse fenômeno.
A inteligência dos alemães pobres está, portanto, em uma relação inversa com a
inteligência dos pobres alemães. No entanto, pessoas para as quais qualquer assunto deve
servir para exercícios públicos de estilo, vêem-se levadas, através dessa atividade formal, a um
conteúdo equivocado, equivocado, por sua vez, imprime novamente à forma o selo da
banalidade. Deste modo, a tentativa do "prussiano", em uma ocasião como essa das revoltas
dos operários silesianos, de expressar-se na forma de antíteses, leva-o à maior antítese contra
a verdade. A única tarefa de uma mente pensante e amiga da verdade frente à primeira
explosão da revolta dos trabalhadores silesianos, não consistia em desempenhar o papel de
pedagogo desse acontecimento, mas, pelo contrário, em estudar o seu caráter peculiar. Para
isto, requer-se, antes de mais nada, uma certa perspicácia científica e um certo amor pela
humanidade, ao passo que, para a outra operação, é suficiente uma fraseologia ligeira,
embebida em uma complacência vazia.
Por que o "prussiano" julga com tanto desprezo os trabalhadores alemães? Porque ele acha
que toda a questão - isto é, a questão da miséria dos operários - está abandonada "ainda até
hoje" pela "alma política que penetra tudo". Eis como ele vai derramando o seu amor platônico
pela alma política:
"No sangue e na incompreensão serão sufocadas todas as revoltas que explodem nesse
desesperado isolamento dos homens da comunidade e de suas idéias dos princípios sociais;
mas logo que a miséria tiver gerado o intelecto e o intelecto político dos alemães tiver
descoberto as raízes da miséria social, então também na Alemanha esses acontecimentos serão
percebidos como sintomas de uma grande mudança".
Permita-nos o "prussiano", antes de mais nada, uma observação estilística. Sua antítese
está incompleta. Na primeira metade, diz-se: a miséria gera o intelecto e na segunda metade:
o intelecto político descobre as raízes da miséria social. O intelecto simples, na primeira metade
da antítese, torna-se, na segunda metade, um intelecto político, como a miséria simples da
primeira metade da antítese torna-se, na segunda, uma miséria social. Por que motivo o nosso
estilista tratou de maneira tão desigual as duas metades da antítese? Não creio que tenha
notado isso. Vou mostrar-lhe o seu verdadeiro instinto. Se o "prussiano" tivesse escrito: "A
miséria social gera o intelecto político e o intelecto político descobre as raízes da miséria
social", nenhum leitor atento teria deixado de perceber a falta de sentido dessa antítese. Todo
mundo se teria perguntado, antes de mais nada, por que o anônimo não opõe o intelecto social
à miséria social e o intelecto político à miséria política, como manda a lógica mais elementar.
Mas vamos ao que interessa!
Tão falso é que a miséria social gere o intelecto político, como mais verdadeiro é antes o
contrário, isto é, que o bem-estar social gera o intelecto político. O intelecto político é um
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"No ano de 1789, quando a burguesia se sublevou, para ser livre faltava-lhe apenas a
participação no governo do país. Para ela, a libertação consistiu em arrebatar das mãos dos
privilegiados que tinham o monopólio dessas funções, a direção dos negócios públicos, as mais
altas funções civis, militares e religiosas. Sendo rica e ilustrada, podendo bastar-se e dirigir-se
a si mesma, ela queria subtrair-se ao régime du bon plaisir".
Mas se o "prussiano" acha que a miséria gera o intelecto, por que então coloca junto os
"sufocamentos no sangue" e os "sufocamentos na incompreensão"? Se a miséria é, em geral,
um meio, a miséria sangrenta será então um meio muito agudo para gerar a compreensão.
Portanto, o "prussiano" deveria ter dito: o sufocamento em sangue sufocará a incompreensão e
trará à compreensão uma oportuna lufada de ar.
Por acaso não rebentam todas as revoltas, sem exceção, no desesperado isolamento do
homem da comunidade? Será que qualquer revolta não supõe necessariamente esse
isolamento? Teria havido a revolução de 1789 sem o desesperado isolamento dos cidadãos
franceses da comunidade? Ela estava destinada exatamente a suprimir esse isolamento.
"Uma revolução social sem alma política (isto é, sem uma visão organizativa do ponto de
vista da totalidade), é impossível".
É óbvio. Uma revolução social se situa do ponto de vista da totalidade porque - mesmo que
aconteça apenas em um distrito industrial - ela é um protesto do homem contra a vida
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Gostaríamos de confidenciar ao "prussiano" o que é "uma revolução social com uma alma
política"; com isso também lhe revelamos o segredo de porque ele não consegue, mesmo nos
seus torneios estilísticos, elevar-se para além do limitado ponto de vista político.
Uma revolução "social" com uma alma política ou é um completo absurdo, se o "prussiano
entende por revolução "social" uma revolução "social" contraposta a uma revolução política e
apesar de tudo confere à revolução social uma alma política, além de social, ou, então, uma
"revolução social com uma alma política" não é mais do que uma paráfrase do que já se
chamou uma "revolução política" ou "simplesmente uma revolução". Toda revolução dissolve a
velha sociedade; neste sentido é social. Toda revolução derruba o velho poder; neste sentido é
política.
Toda essa prolixidade foi necessária para rasgar o tecido de erros que se esconde em
apenas uma coluna de jornal. Nem todos os leitores podem ter a cultura e o tempo necessários
para perceber uma tal charlatanice literária. Não tem, portanto, o "prussiano", diante do
público leitor, o dever de renunciar momentaneamente a qualquer atividade de escritor no
campo político e social, bem como às declamações sobre a situação da Alemanha, e de
começar um consciencioso exame da sua própria situação?
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Inclusão 17/11/2003
Última alteração 16/03/2015
https://www.marxists.org/portugues/marx/1844/08/07.htm 11/11