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O DIREITO À CRECHE E O LUGAR DA MULHER TRABALHADORA

Mariana Silveira dos Santos Rosa 1


Idorlene da Silva Hoepers 2

RESUMO

Este trabalho discute a omissão do Estado no seu dever de garantir educação gratuita para as crianças
pequenas, expressada pela insuficiência de vagas em creches públicas. Esta omissão está diretamente
relacionada à condição da mulher trabalhadora que se vê obrigada a dividir suas atividades cotidianas
entre o trabalho doméstico e o trabalho fora de casa. Pretende-se contribuir para discussões relacionadas
à luta da mulher trabalhadora pela emancipação de sua classe, provocando reflexões acerca de suas
necessidades e de sua realidade concreta. Este trabalho pretende demonstrar como as políticas de Estado
relacionadas à educação infantil excluem parte das crianças, principalmente as originárias de famílias
trabalhadoras, agindo no sentido de reproduzir a exploração de trabalhadores no sistema capitalista.

Palavras-chave: Políticas públicas, educação infantil, trabalho, mulher, classe trabalhadora.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultante de projeto de pesquisa que vem sendo realizada em nível de
mestrado, no Programa de pós-graduação em Educação (PPGE) do Instituto Federal
Catarinense (IFC). O estudo será realizado tendo como referência a rede pública municipal de
ensino de Florianópolis (SC), mais especificamente Núcleos de Educação Infantil Municipal
(NEIM’s). Em tempo, é importante ressaltar que devido à pandemia da Covid-19, não foi ainda
possível realizar pesquisa de campo; ou seja, as discussões aqui apresentadas referem-se à
pesquisa bibliográfica e documental realizada até o momento.
A pesquisa em andamento discute a omissão do Estado no seu dever de garantir
educação gratuita para as crianças pequenas, expressada pela insuficiência de vagas em creches
públicas. Neste trabalho pretendemos problematizar os impactos das políticas públicas
relacionadas ao oferecimento de vagas em unidades de educação infantil na vida de mulheres
trabalhadoras. Deste modo, fazendo a opção por uma abordagem materialista-histórica, será
possível demonstrar como as políticas públicas de Estado relacionadas à educação infantil
excluem parte das crianças, principalmente as originárias de famílias trabalhadoras, agindo no
sentido de reproduzir a exploração de trabalhadores no sistema capitalista.

1
Pós-graduanda do curso Mestrado em Educação, Instituto Federal Catarinense - IFC, marianassrosa@gmail.com;
2
Professora orientadora: Doutora, Instituto Federal Catarinense - IFC, idorlene.hoepers@ifc.edu.br.
METODOLOGIA

Para a realização da pesquisa será necessário recorrer à legislação vigente relacionada à


educação infantil, além de outros documentos oficiais, como atos normativos da Prefeitura de
Florianópolis. Por meio de questionários eletrônicos serão coletados dados junto às famílias das
crianças matriculadas em unidades educativas públicas da rede municipal de Florianópolis, com
o intuito de compreender a situação de trabalho das mulheres responsáveis por estas crianças.
Serão utilizados questionários semiestruturados, enviados pelos meios de comunicação
utilizados pelas unidades educaticas para contactar as famílias, posteriormente analisados a
partir de uma perspectiva quali-quantitativa com abordagem dialética. A pesquisa proposta,
assim como a coleta de dados, foram aprovadas pelo Comitê de Ética de Pesquisa em Seres
Humanos do Instituto Federal Catarinnese. A análise de fontes bibliográficas que tomam por
base epistêmica a abordagem marxista, cujo trabalho é a categoria fundante, serão fundamentais
para compreender a totalidade e a materialidade da questão apresentada.

REFERENCIAL TEÓRICO

Partimos da compreensão de que a sociedade capitalista, dividida entre classes


antagônicas, está marcada por lutas e embates de diferentes naturezas. Estes embates,
frequentes principalmente nos âmbitos econômico e político, provocam impactos na educação.
Segundo Kramer:
Supor que os problemas econômicos podem ser superados sem
modificações nas relações de produção existentes, ou seja, sem
mudanças na infra-estrutura econômica, reflete uma concepção
idealista e liberal do mundo. Significa, ainda, que a sociedade de classes
não é vista enquanto tal. É falsa a crença na educação, na escola ou na
pré-escola, como motores da revolução social, porque esta acontece
quando são transformadas as relações de produção existentes, e o papel
da educação (no caso, também da educação pré-escolar) pode ser o de
contribuir para manter ou mudar uma dada realidade social em função
de sua conjuntura política e econômica, não o de ser responsável pela
transformação dessa conjuntura. (KRAMER, 2006, p. 30).
Para aprofundar a discussão acerca da classe trabalhadora e da condição da mulher na
sociedade dividida em classes, é necessário compreender o conceito de trabalho — além de
outros conceitos relacionados a esta categoria central nos estudos marxistas. Entendemos o
trabalho como a ação realizada pelo ser humano sobre o meio, de forma deliberada, planejada
e consciente; características que diferenciam a ação humana das atividades que outros animais
realizam em contato com a natureza. O ser humano, ao atuar “sobre a natureza externa e
modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria
natureza.” (MARX, 2013, p. 255). Enquanto a ação de outros animais sobre o meio é realizada
de forma instintiva ou mecânica, o trabalho é um processo complexo de aprendizagem, pois
permite o desenvolvimento de técnicas e tecnologia úteis à humanidade. Por meio do trabalho
homens e mulheres criam suas próprias ferramentas, diferenciando-se dos demais animais,
modificam os materiais que encontram disponíveis na natureza, e, segundo Marx:
No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava
presente na representação do trabalhador no início do processo,
portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que
ele se limite a uma alteração da forma do elemento natural; ele realiza
neste último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que
determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem
de subordinar sua vontade. (MARX, 2013, p. 256).
A partir do conceito de trabalho é possível compreender mais profundamente quem é o
sujeito da classe trabalhadora (quem é a pessoa que faz parte desta classe). Segundo Antunes:
Uma noção ampliada de classe trabalhadora inclui, então, todos aqueles
e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário,
incorporando, além do proletariado industrial, dos assalariados do setor
de serviços, também o proletariado rural, que vende sua força de
trabalho para o capital. (ANTUNES, 2009, p. 103, grifos do autor).
Entendemos que o acesso das crianças da classe trabalhadora à educação infantil pública
e gratuita tem uma profunda relação com a situação de trabalho das mulheres desta classe. Por
esta razão recorremos a teóricos marxistas que contribuem para o desenvolvimento dos
conceitos de classe, de família e de divisão sexual do trabalho, buscando ainda elementos que
contribuem para discutir temas como classe trabalhadora, mulher da classe trabalhadora,
gênero, estrutura familiar no capitalismo e mãe trabalhadora. Por meio da pesquisa bibliográfica
até então realizada percebemos que Engels (2002), Saffioti (2013), Toledo (2017) e Antunes
(2009) oferecem uma consistente fundamentação teórica para o desenvolvimento desses
conceitos. Tais discussões são essenciais para compreendermos as políticas públicas
educacionais relacionadas à infância, assim como o papel do Estado na elaboração destas
políticas.
Consideramos importante compreender que a concepção de infância não pode estar
descolada da origem da criança, assim como das relações sociais e das interações estabelecidas
em torno deste sujeito. Diante deste pressuposto, percebemos que Saviani (2003) e Arce e
Jacomeli (2012), sustentados na pedagogia histórico-crítica, contribuem com este
entendimento. Além destes, Faria e Palhares (2007) nos ajudam a conceber uma profunda
caracterização da educação infantil no Brasil, assim como a relação desta etapa da educação
básica com a classe trabalhadora. Para tratarmos mais especificamente do acesso à educação
infantil pública e gratuita pelas crianças da classe trabalhadora nos sustentamos em Campos,
Rosemberg e Ferreira (1995), que discutem os temas em âmbito nacional. As discussões em
torno da rede pública de educação infantil do município de Florianópolis são abordadas por
Ostetto (2000) e Füllgraf (2001; 2008), cujas reflexões têm início na constituição desta rede, a
partir da inauguração do NEI Coloninha.
Apoiamo-nos ainda em Kuhlmann Jr. (2001) e Freitas e Monarcha (2011) com o
objetivo de conhecer a trajetória da educação infantil desde o seu surgimento — com creches
destinadas às crianças das famílias operárias — até sua inclusão como etapa da educação básica,
passando pelas mudanças de concepções e de caráter deste tipo de serviço. E entendendo a
necessidade de partirmos do contexto social para compreender a criança e a condição infantil,
nos fundamentamos com Kramer (2006), a partir da qual pudemos refletir acerca do papel da
educação na sociedade de classes, estabelecendo relações entre as políticas públicas voltadas à
educação infantil e a situação das famílias trabalhadoras.
O referencial teórico apresentado nos aponta para o papel cumprido pelo Estado como
instrumento de dominação de classe. Nas políticas educacionais para a educação infantil é o
Estado quem legitima a exclusão das crianças, por meio da criação de critérios que não
garantem a universalidade da oferta de vagas, atuando também como instrumento de opressão
contra as mulheres. Estes entendimentos são reforçados com as contribuições de Engels (2002)
e Lênin (2017). Ademais, o debate acerca do Estado exige uma melhor compreensão acerca da
dinâmica e da reprodução do capitalismo, encontrada em Marx e Engels (2007) e em Marx
(2013), atualizados em Antunes (2009), que fundamenta a compreensão acerca da sociedade
capitalista atual, suas mudanças e o processo de intensificação e precarização do trabalho.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Quando o número de vagas oferecidas em instituições públicas de educação infantil é


inferior à população de crianças com idades entre zero e cinco anos, são as famílias da classe
trabalhadora, especialmente as mulheres mães que vivem do trabalho, que sofrem as
consequências. O direito da criança pequena à educação infantil em creches e pré-escolas
públicas representa a responsabilidade do Estado no cuidado e na educação destas crianças.
Tais responsabilidades são compartilhadas com as famílias, pois de acordo com a Constituição
Federal, o Estado tem o dever de garantir às crianças de até cinco anos de idade o acesso à
educação infantil (BRASIL, 1988). Em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) declarou a
educação escolar pública como uma obrigação do Estado, que deve garantir educação infantil
gratuita às crianças de até cinco anos de idade, além das outras etapas da educação básica
(BRASIL, 1996). Ainda segundo a LDB, a educação infantil deve complementar a ação
educativa da família e da comunidade na qual a criança está inserida.
Neste sentido, é necessário superar o entendimento de que a educação das crianças
pequenas é um processo pelo qual apenas suas famílias precisam ser responsabilizadas. Estes
deveres foram reforçados em 2009, com a resolução que fixa as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), de acordo com a qual, além de pública e gratuita,
a educação infantil oferecida deve ser de qualidade e sem requisito de seleção (BRASIL, 2009).
É importante ressaltar que os termos creche e pré-escola não se referem a instituições com
caráteres distintos em relação ao serviço oferecido e ao público atendido. A LDB de 1996
passou a incluir a creche como uma etapa da Educação Básica, rompendo a segregação que esta
modalidade da educação infantil enfrentava diante da pré-escola e mesmo dos ensinos
fundamental e médio.
A vinculação de creches e pré-escolas ao nosso sistema educacional
representa uma conquista do ponto de vista da superação de uma
situação administrativa que mantinha um segmento de instituições
educacionais específico para os pobres, segregado do ensino regular,
com todo o peso dos preconceitos relacionados a isso. (KUHLMANN
JR., 2001, p. 55).
A LDB define a educação infantil como primeira etapa da educação básica e a divide
em dois níveis de acordo com a faixa etária atendida: creche para crianças de zero a três anos,
pré-escola para as crianças de quatro a cinco anos. Deste modo, segundo Kuhlmann Jr. (2001),
a creche perde o estigma de instituição destinada a pessoas pobres, sendo possível se ater à
educação de crianças bem pequenas. Antes desta legislação era comum chamar de creche
qualquer instituição (formal ou não) que oferecesse cuidados a crianças pequenas, em sua
maioria provenientes da classe trabalhadora, enquanto pré-escolas eram as instituições
destinadas à educação das crianças originárias da classe dominante.
A partir das DCNEI, profissionais e estudiosos da educação infantil se dedicaram a
popularizar o termo educar-e-cuidar, afirmando a indissociabilidade do cuidado e da educação
de crianças pequenas nas instituições de educação infantil e garantindo às famílias que
procuram uma creche ou uma pré-escola a segurança de que suas crianças recebem educação
em sua integralidade. A expansão do atendimento educacional para crianças no Brasil começou
a ser observada a partir de 1960, quando o número de instituições de educação infantil cresceu
de forma significativa pelo país. Stemmer apresenta alguns fatores que podem ter contribuído
para esse crescimento, dentre os quais aparecem
[...] desenvolvimento do emprego industrial e dos grandes centros
urbanos [...]; ampliação do trabalho feminino nos setores médios,
levando também a classe média a procurar instituições educacionais
para os seus filhos; eclosão do movimento de lutas por creches, no final
dos anos 1970; reivindicação de vários setores sociais [...] (STEMMER,
2012, p. 22).
Tais fatores podem ter ligação direta com a origem das políticas públicas relacionadas
à educação infantil de forma centralizada entre união, estados e municípios. Segundo Kramer
(2006), estas políticas públicas começaram a tomar forma em 1975, com a criação da
Coordenação de Educação Pré-Escolar, pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC,
atualmente Ministério da Educação).
Em Florianópolis, a rede pública municipal de educação infantil começou a se estruturar
a partir de 1976, com a elaboração do Projeto Núcleos de Educação Infantil pela então
Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Social (SESAS), destinado inicialmente a crianças
com quatro a seis anos de idade. O primeiro Núcleo de Educação Infantil (NEI) foi inaugurado
ainda em 1976, na Coloninha, uma localidade da área continental de Florianópolis marcada pela
carência econômica, prestando atendimento a cerca de 90 crianças com idades entre quatro e
sete anos. A partir de 1979 o NEI Coloninha começou a atender crianças com menos de três
anos, faixa etária até então não atendida pela prefeitura, e passou a se chamar Creche Professora
Maria Barreiros, a primeira creche municipal de Florianópolis (OSTETTO, 2000).
A partir daí a Rede Municipal de Educação Infantil de Florianópolis começou a crescer
e se expandir por todo o município. Em 1996 existiam 63 espaços de educação infantil,
prestando atendimento a quase cinco mil crianças (MAISTRO, 1997). Segundo dados do Plano
Municipal de Educação (PME), em 2014 existiam 78 unidades públicas municipais de educação
infantil, além de 16 unidades conveniadas que prestavam este serviço, totalizando 94 unidades.
Atualmente, o site da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de
Florianópolis lista 103 unidades educativas que atendem à primeira etapa da educação básica,
sendo 13 conveniadas e 90 NEIM’s (FLORIANÓPOLIS, 2020). No entanto, as mudanças na
legislação e a expansão da rede em todo o Brasil não se concretizaram na universalização do
atendimento em creches e pré-escolas públicas para todas as crianças.
As vagas oferecidas nas unidades educativas de educação infantil das redes de ensino
não são suficientes para atender às necessidades das famílias. Segundo dados da última Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2017 pelo Instituto Brasileiro do
Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de escolarização das crianças de zero a três anos não
chega a 33%, e mesmo na faixa etária obrigatória (quatro a cinco anos) cerca de 9% ainda estão
fora das unidades educativas (IBGE, 2017). Em 2018 havia cerca de 1.330 crianças de zero a
cinco anos nas listas de espera das unidades de educação infantil da Rede Pública Municipal de
Ensino, que oferecia em torno de 15 mil vagas em turno parcial ou integral (FLORIANÓPOLIS,
2018).
Se levarmos em conta os dados do último Censo (IBGE), segundo os quais em 2010
havia mais de 22 mil crianças com até quatro anos de idade no município de Florianópolis,
deduzimos que cerca de seis mil crianças não apareciam nos dados da SME (nem como
matriculadas nem nas listas de espera das unidades educativas municipais). Ou seja, por algum
motivo as famílias destas crianças não buscaram vagas na rede municipal de educação infantil,
seja por não necessitarem, seja por não terem tido acesso aos procedimentos necessários para o
processo inscrição, ou mesmo por não terem condições de apresentar todas as documentações
exigidas para este processo.
Essa escassez de vagas impacta principalmente as famílias trabalhadoras, pois se suas
crianças não estiverem frequentando unidades públicas de educação infantil ou se estiverem
frequentando em período parcial, caberá às famílias a responsabilidade por compensar a
ausência do Estado no compartilhamento da educação destas crianças. Ou seja, tanto no caso
em que o atendimento não é oferecido pelo Estado quanto no caso em que o atendimento é
oferecido em período parcial, as consequências para a família afetam diretamente a situação de
trabalho de seus membros. Há situações em que uma das pessoas responsáveis pela criança
precisa sair do mundo do trabalho social para se dedicar exclusivamente à sua educação e ao
seu cuidado no período em que ela não está na instituição de educação infantil, passando a
contribuir preferencialmente para a reprodução da família por meio do trabalho doméstico, que
não é remunerado. Há situações nas quais um ou mais responsáveis pela criança se vêm
obrigados a flexibilizar ou reduzir suas jornadas de trabalho (tendo por consequência a
diminuição de seus salários), ou até mesmo a buscarem empregos onde são submetidos a
situações de precarização, para que possam se dedicar à criança no período que deveria ser
destinado ao descanso. Há ainda situações nas quais os responsáveis pela criança recorrem a
pessoas que possam substituí-los, na maior parte das vezes uma mulher de parentesco próximo
(irmã mais velha, tia, avó), ou até mesmo uma vizinha com a qual a família tenha alguma
relação afetiva e/ou de confiança.
Nas sociedades capitalistas ocidentais é comum atribuir a responsabilidade pelos
cuidados das crianças pequenas apenas às suas mães. A naturalização dos cuidados como uma
tarefa feminina é explicada por Engels (2002), quando apresenta a família monogâmica
patriarcal como uma das bases do surgimento da propriedade privada e do Estado. Sendo assim,
partimos da hipótese de que geralmente é a mãe da criança quem precisa adaptar sua situação
de trabalho à oferta de vagas (ou ausência delas) nas instituições de educação infantil públicas.
Esta mulher precisa ou flexibilizar sua jornada de trabalho fora de casa para se dedicar aos
cuidados dos filhos no período em que não estão sendo atendidos pelo Estado, ou se dedicar
exclusivamente ao trabalho doméstico, o que inclui os cuidados das crianças que não são
contempladas com vagas integrais nas creches e pré-escolas públicas. Nestes casos a mulher
que antes era reconhecida como trabalhadora — pois estava inserida no mundo do trabalho,
fazendo parte diretamente do processo de produção — passa a ser vista como dona-de-casa, e
não como desempregada, realizando o trabalho reprodutivo normalmente atribuído às mulheres
pela sociedade.
A naturalização do trabalho feminino, que parte da convenção de que há tarefas
intrínsecas à condição de ser mulher (limpar os espaços, cuidar das crianças, cozinhar, lavar,
costurar, entre outras), tem relação com o processo de exploração que sustenta a sociedade
capitalista. Dentro da divisão social do trabalho também se manifesta a divisão sexual do
trabalho, que atribui às mulheres tarefas consideradas de menor importância, seja dentro da
fábrica, seja no ambiente doméstico (CISNE, 2015). Na divisão sexual do trabalho o homem é
responsável pela maior parte da produção social, vendendo sua força de trabalho para os
proprietários dos meios de produção, enquanto a mulher se dedica aos trabalhos domésticos ao
mesmo tempo em que também vende sua força de trabalho.
O cuidado com as crianças pequenas faz parte do conjunto de tarefas normalmente
atribuídas pela sociedade às mulheres. Segundo Toledo (2017), homens e mulheres são
igualmente versáteis para a realização de qualquer tipo de tarefa, mas a sociedade de classes
conformou as mulheres aos interesses do capital, ou seja, ao exercício de tarefas que não exigem
qualificação. Deste modo a mulher se responsabiliza pela reprodução da força de trabalho, pois
se ocupa “[...] das tarefas domésticas, com as quais supre as deficiências do Estado em relação
aos serviços públicos, receba salários precários, e sirva de mão de obra barata e descartável.”
(TOLEDO, 2017, p. 71). No caso das famílias trabalhadoras brasileiras geralmente recai sobre
a mãe a total responsabilidade de cuidar dos filhos nos casos em que o Estado se omite deste
dever. Entendemos, portanto, que existe uma omissão do Estado no seu dever de garantir
educação gratuita para as crianças pequenas, resultando na duplicidade do ato do trabalho
(ANTUNES, 2009). Este tema remete à condição da mulher trabalhadora, que se vê obrigada a
dividir suas atividades cotidianas entre o trabalho doméstico e o trabalho fora de casa, sendo
esta mulher
[...] duplamente explorada pelo capital: desde logo por exercer, no
espaço público, seu trabalho produtivo no âmbito fabril. Mas, no
universo da vida privada, ela consome horas decisivas no trabalho
doméstico, com o que possibilita (ao mesmo capital) a sua reprodução,
nessa esfera de trabalho não diretamente mercantil, em que se criam as
condições indispensáveis para a reprodução da força de trabalho de seus
maridos, filhos/as e de si própria. (ANTUNES, 2009, p. 108).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partimos da compreensão de que as políticas de Estado voltadas à educação infantil


excluem parte das crianças, principalmente as originárias de famílias trabalhadoras. Ao analisar
os impactos para a classe trabalhadora da escassez de vagas integrais em unidades de educação
infantil, pudemos compreender como a inserção social e econômica da mulher no mundo do
trabalho se relaciona à disponibilidade de vagas públicas e gratuitas em unidades de educação
infantil. Analisando elementos de política social em torno das políticas públicas relacionadas
ao cuidado e à educação de crianças, foi possível discutir questões relacionadas às necessidades
das mulheres trabalhadoras, partindo do trabalho como categoria de análise. Deste modo
compreendemos que a omissão do Estado na oferta de vagas em creches públicas contribui para
o controle da classe dominante sobre a classe trabalhadora. Segundo Iasi:
A partir do momento em que o trabalhador se apercebe do caráter das
relações sociais em que está inserido, coloca-se a necessidade de buscar
uma transformação. No entanto, nesse momento do processo de
consciência, já não é suficiente saber que é necessário mudar a
sociedade, destruir o capitalismo, mas como fazê-lo e o que colocar no
lugar. A concepção da potencialidade da classe, a consciência da
possibilidade de vitória, é parte integrante da consciência de classe.
(IASI, 2007, p. 40-41).
Tal entendimento exige que assumamos uma postura radical em relação à exploração a
qual a classe trabalhadora é submetida na sociedade capitalista, contribuindo para seu processo
de emancipação. Partindo da existência de critérios de seleção, percebemos que o direito à
educação infantil pública e gratuita não é acessado pela totalidade das crianças da classe
trabalhadora, fato que demonstra a omissão do Estado no cumprimento de seu dever. Afinal, o
estabelecimento de critérios significa que não há vagas para todas as crianças, ou seja, que o
Estado está se omitindo de garantir para todas as crianças e suas famílias o direito à educação
infantil pública e gratuita. Portanto, entendemos que por meio destas políticas o Estado mantém,
legitima e aprofunda as opressões e a exploração sobre a mulher trabalhadora, favorecendo a
continuidade da exploração de uma classe sobre a outra.

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