Iniciacao e Misterio No Antigo Egipto Es
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I NICIAÇÃO E M ISTÉRIO
NO A NTIGO E GIPTO
O caminho de transformação
do coração
ROGÉRIO SOUSA
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ÍNDICE
NOTA PRÉVIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
CAPÍTULO I – A INICIAÇÃO EGÍPCIA NAS FONTES CLÁSSICAS . . . . . . . . . . . .15
CAPÍTULO II – SIMBÓLICA E RITUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29
1. AS CONOTAÇÕES RELIGIOSAS DO TERMO BESI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31
2. A INICIAÇÃO E O CONTACTO COM O SAGRADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36
3. EFEITOS FUNDAMENTAIS DA INICIAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39
4. A INICIAÇÃO REAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .42
4.1. O PALÁCIO RITUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .43
4.2. O RITUAL DE INICIAÇÃO DO FARAÓ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .51
4.3. O FRUTO DA INICIAÇÃO: O CARISMA REAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56
4.4. O CONTO DOS DOIS IRMÃOS:
UM RELATO METAFÓRICO DA INICIAÇÃO REAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .68
5. A INICIAÇÃO SACERDOTAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93
5.1. O RITUAL DE «INTRODUÇÃO» DO SACERDOTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .95
5.2. EXCURSO: AS ORIGENS DA MORAL INDIVIDUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . .101
CAPÍTULO III – A INICIAÇÃO TEMPLÁRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109
1. OS ELEMENTOS SIMBÓLICOS DO TEMPLO EGÍPCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109
2. O TEMPLO COMO UM CAMINHO DE INICIAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .120
2.1. AS PROVAS INICIÁTICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123
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NOTA PRÉVIA
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Rogério Sousa
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INTRODUÇÃO
____________
1. E. HORNUNG, The Secret Lore of Egypt. Its Impact on the West. Cornell University Press,
Ithaca, 2001.
2. J. ASSMANN, Die Zauberflöte, Carl Hanser Verlag, München, 2005.
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____________
3. Ver, por exemplo, J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, Éditions du Rocher,
Monaco, 2003. Também J. ASSMANN, «Death and initiation in the funerary religion of An-
cient Egypt», em W. Simpson (ed.), Religion and Philosophy in Ancient Egypt, Yale & New Ha-
ven, 1989, pp. 135-159.
4. A. LOPRIENO, La Pensée et l´Écriture: Pour une analyse sémiotieque de la culture Égyptienne,
Cybele, Paris, 2001.
5. J.-M. KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak (XXI-XXIII Dynasties) et Autres Textes Con-
temporains Relatifs à l’Initiation des Prêtres d’Amon (avec un chapitre archéologique par Thierry
Zimmer), Orientalia Lovaniensia Analecta, 32, Departement Oriëntalistiek, Lovaina, 1989.
12
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____________
6. M. LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature, 3 vol., University of California Press, Berkeley,
Los Angeles, Londres, 1973-1976-1980. Outra fonte importante de textos de teor sapiencial
é assinada pela mesma autora. Ver Idem, Maat in Egyptian Autobiographies and related studies,
Orbis Biblicus et Orientalis-120, University Press e Vandenheck & Ruprecht, Friburg, Gö-
ttinger, 1992.
7. Embora, na maior parte dos casos, tenhamos optado por apresentar a versão portuguesa de tra-
duções feitas por outros autores, pontualmente, sempre que se afigure relevante para a discus-
são em causa, especificamos os termos egípcios utilizados no texto determinados graças à con-
sulta directa das versões hieroglíficas.
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CAPÍTULO I
Sólon relatava que, tendo sido conduzido a essa cidade (Saís) foi
muito apreciado por eles; e que, questionando os sacerdotes mais
versados acerca das coisas antigas, descobriu que nem ele próprio,
nem nenhum outro Grego, sabia quase nada, por assim dizer destas
coisas. Certa vez, querendo levá-los a falar das coisas antigas, em-
preendeu falar-lhes das coisas mais antigas desta cidade, de Foro-
neu, de quem dizem ser o primeiro homem, e de Níobe, e narrou-
-lhes o mito de Deucalião e de Pirra, da forma como passaram pe-
lo dilúvio e da genealogia dos seus descendentes; e, evocando o nú-
mero de anos a que remontavam os acontecimentos referidos, es-
forçou-se por calcular os respectivos tempos. E um dos sacerdotes,
que era muito velho, disse-lhe:
— Sólon, Sólon, vós, os Gregos, sois sempre crianças; um Grego
não pode ser velho.
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Tendo sido recebido por Amasis (568-526 a.C) ele obteve cartas (de re-
comendação) para os sacerdotes de Heliópolis, que o enviaram para
Mênfis, uma vez que eram mais velhos – o que no fundo era apenas
um pretexto. Então, pelas mesmas razões, foi então enviado de Mênfis
para os sacerdotes de Diaspolis (Tebas). Estes últimos, temendo o rei
e não se atrevendo a dar falsas desculpas (para excluir o recém-chegado
do seu santuário), pensavam verem-se livres dele forçando-o a empre-
ender tarefas difíceis e inaceitáveis para alguém com uma educação he-
lénica. Tudo foi feito para conduzi-lo ao desânimo de modo a demo-
vê-lo da sua missão. Mas como ele executou zelosamente tudo o que
lhe foi pedido, os sacerdotes acabaram por nutrir grande admiração
por ele, tratando-o respeitosamente e permitindo-lhe até sacrificiar
diante dos seus deuses, o que até então nunca tinha permitido a um
estrangeiro.9
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____________
16. Idem, p. 164.
17. Idem, Livro 11, 24 (4).
18. Idem, Livro 11, 24 (5).
19. Idem, Livro 11, 25 (3-4).
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Fraga número 3. É possível que sobre esta fraga estivesse colocada a ara dedicada
a Marrano, o deus do Marão, encontrada no local.
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____________
23. A. COLMENERO, O Santuário rupestre Galaico-Romano de Panóias (Vila Real, Portugal), pp.
130-134.
24. Ver P. LOUÇÃO, «Panóias e o silêncio mágico das Pedras das Serpentes», em Loução, Callejo,
Martinez, Lugares Mágicos de Portugal e Espanha, pp. 160-168.
25. A. COLMENERO, O Santuário rupestre Galaico-Romano de Panóias (Vila Real, Portugal), pp.
130-131.
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____________
cimento. A preparação proporcionada pela Duat não pode ser outra senão a gestação. A água
usada na iniciação, sendo evocativa do ritual real de coroação, é, deste modo, a evocação da
gestação que possibilita o nascimento para uma nova vida. É certamente este significado que le-
vou à conservação deste ritual no baptismo cristão. Em N. BEAUX, «La Douat dans les Textes
des Pyramides: Espace et temps de gestation», BIFAO 94 (1994), pp. 1-6.
31. Sobre a identificação entre a sítula e o seio ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 47.
Estes objectos apresentam um rico programa decorativo onde o lótus, as deusas relacionadas
com a maternidade e os deuses da fertilidade como o itifálico Min desempenham um papel
preponderante. Todos estes elementos decorativos se relacionam com a celebração da renovação
da vida. Sobre o papel destes objectos no culto ver M. BOMMAS, «Situlae and the offering of
water in the divine funerary cult», em A. Amenta (ed.) L’ Acqua nell’antico Egitto, pp. 257-272.
32 Ver R. SOUSA, «Água», em L. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 35-36. As repre-
sentações helenísticas dos cultos de Ísis documentam a utilização de vasos sagrados neste
contexto. Uma pintura de Herculano mostra um sacerdote a sair da cella da deusa com um
vaso sagrado. O mesmo gesto é documentado numa estátua de uma sacerdotisa. O vaso sa-
grado, contendo água, devia, deste modo, estar conservado junto à estátua da deusa sendo pe-
riodicamente exposto em certas ocasiões rituais.
33. O mesmo papel «obstétrico» se detecta no sistro cuja função era «acordar» as forças da vida. É
justamente esta a interpretação que Plutarco faz deste objecto: «O sistro indica também que
todos os seres se devem manifestar, nunca devendo deixar de ser movimento, mas também des-
pertá-los e sacudi-los, fazendo-os sair do seu estado de torpeza e marasmo. Os egípcios preten-
diam, com efeito, que Tífon é afastado e recusado pela agitação dos sistros, dando-nos a enten-
der que o princípio corruptor trava e detém o curso da natureza, mas que a geração, por meio
do movimento, o desprende e liberta» em PLUTARCO, Ísis e Osíris, 63.
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CAPÍTULO II
SIMBÓLICA E RITUAL
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Ele fará brotar (bsi) para mim toda a espécie de pedras preciosas e
minerais brilhantes.36
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tuado num plano cósmico distinto, mais puro e luminoso do que aquele
em que vulgarmente se situam os homens.
Ora, esta «emersão» era sempre o sinónimo de uma recriação uma vez
que a «subida à superfície» da água decalcava a própria imagem da criação
do mundo. O verbo besi evoca, deste modo, a criação, a qual pode ter um
carácter tangível e manifestar-se na proliferação das formas de vida vegetal
que «brotam» da terra depois da inundação:
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____________
43. A. LOPRIENO, La Pensée et l’Écriture, p. 14.
44. Ibidem.
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____________
45. A noção bíblica de sagrado apresenta as mesmas conotações. Os instrumentos de culto usados
no templo de Jerusalém devem a sua sacralidade ao facto de serem usados apenas no culto.
46. Idem, p. 15. O signo em questão é o D 45 da lista de Gardiner. Ver A. GARDINER, Egyptian
Grammar, p. 544.
47. A. LOPRIENO, La Pensée et l’Écriture, p. 23.
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____________
48. J. ASSMANN, The Search for God, p. 32. Para todos os que não eram sacerdotes, a participa-
ção nos «mistérios» das cidades santas, como Abido, Busíris, Sakara, Heliópolis, Mênfis e Tebas
permitia um contacto que preparava o indivíduo para o Além. A participação nas cerimónias
religiosas, que normalmente não eram acessíveis a qualquer pessoa, garantia os fundamentos da
salvação no Além, pois o deus velava por aqueles que tinham participado no seu culto. A ideia
de abrir uma via para a imortalidade através do serviço cultual exercida em vida baseava-se na
crença que o contacto com a divindade perdurava no Além e aí atingia a plenitude. O face a
face diante do deus era então plenamente permitido ao defunto e não através de imagens. A
iniciação aos mistérios dos grandes templos antecipava e prefigurava a iniciação final aos mis-
térios do reino dos mortos. As grandes festas permitiam, deste modo, a possibilidade de ser-
vir os deuses e estabelecer uma relação que podia ser invocada no Além. Ver também J. ASS-
MANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, pp. 314-316.
49. A. LOPRIENO, La Pensée et l’Écriture, p. 16.
50. O signo hieroglífico usado para redigir o termo ueb(D60) explicita que a pureza se relaciona
com a libação. Ver A. GARDINER, Egyptian Grammar, p. 544.
51. Só a partir da V dinastia é que o título ueb começa a ser aplicado num sentido mais alargado,
mas ainda assim relacionado com a esfera de acção do rei, já que se relaciona com uma insti-
tuição da administração real. Em A. LOPRIENO, La Pensée et l’Écriture, p. 20.
52. Ibidem.
53. A definição da santidade passa por quatro vectores: a confissão negativa, a função de sacerdote
ueb, a separação entre a esfera sagrada e a esfera profana e a iniciação. Em Idem, pp. 34-36.
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mação interior que lhe permitia aceder ao mistério (sechetá) e ser introdu-
zido no espaço sagrado (djeser). Naturalmente, a iniciação envolvia estes
três aspectos. Templo, rito e saber estavam assim entrecruzados no proces-
so de iniciação e é quase de um modo artificial que, ao longo do nosso es-
tudo, procuraremos diferenciar cada uma destas dimensões.
Pelo que ficou referido, a iniciação não pode ser vista apenas como
um processo ritual que se manifestava em gestos e práticas cultuais des-
providas de um conteúdo correspondente na vida e na mente do neófito.
A iniciação conduzia o homem ao mundo celeste, fazendo-o «emergir» do
mundo de ignorância e de sofrimento. Este «afloramento» no mundo das
divindades conduzia a uma verdadeira metamorfose que se manifestava
numa «iluminação» e numa «transformação» do neófito.
A iluminação
____________
54. Este processo lembra irresistivelmente, como sugere o próprio Kruchten, a alegoria da caverna
de Platão. Como o prisioneiro que abandona a sua caverna, o iniciado descobre-se num mun-
do novo e luminoso, mais próximo da realidade. Kruchten não afasta a hipótese de uma ins-
piração directa de Platão no pensamento egípcio em virtude da sua permanência no Egipto
durante a sua juventude. As ideias platónicas seriam, neste sentido, as entidades divinas que
povoavam o mundo celeste. Em Ibidem.
55. A frase é alusiva ao ritual quotidiano do culto divino mas constitui igualmente uma metáfora
para a faculdade de transcendência que advinha do contacto com o mundo divino.
56. Idem, p. 195.
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____________
57. Ibidem.
58. Autobiografia de Amen-hotepsaré, TT 75, 1-6. Adaptado da versão francesa patente em Ibidem.
59. Para Kruchten, o termo bes pressupõe uma verdadeira experiência mística, uma revelação que
transcende a experiência dos sentidos. Em Idem, p. 197.
60. Urk. IV, 483, 11 (Estátua de Bolonha 1822). Em Idem, p. 198.
61. Em Ibidem.
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tiva das mais altas hierarquias sacerdotais, que os sumo sacerdotes não se
coibiam de reclamar para si.62
Supõe-se, portanto, que a iluminação provocada pela «passagem» ao
mundo divino elevava o neófito acima do mundo profano e lhe revelava
«mistérios» cósmicos que lhe permitiam ultrapassar as aparências das
coisas e sobre os quais deveria manter o mais rigoroso silêncio:
Cumpri a minha função sem divulgar este mistério que deve estar
oculto para o exterior.63
Fui em seguida levado a escutar o que deve ser ouvido puro e só, a
minha boca permaneceu selada (...) o meu ventre guardou o que os
meus olhos haviam visto. Eu não divulguei o que me foi revelado do
mistério que conheci.64
____________
62. Como é o caso do sumo sacerdote Hapuseneb, da XVIII dinastia e do sefundo sacerdote de
Min, Uennefer, da XXI dinastia.
63. Estátua do sumo sacerdote de Amon Hapuseneb, 8-9. Adaptado da versão francesa em Idem,
p. 199.
64. Autobiografia de Amenemhat, TT 97, 8-10. Adaptado da versão francesa, embora com uma
interpretação distinta, em Idem, pp. 199-200. Kruchten sugere a seguinte tradução: «je ne
suis pas sorti (du sanctuaire) porteur d’une révélation du mistère que j’(y) avais pris». Na nos-
sa proposta de tradução considerámos que n pr.i Hr não significa neste caso «não saí portador
de», mas sim, atendendo ao contexto, «não revelei o que estava».
65. Idem, p. 200.
41
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A transformação
4. A INICIAÇÃO REAL
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-2160 a.C.),a iniciação (besi) parece ter sido uma prerrogativa exclusiva da
realeza. Com toda a probabilidade esta iniciação era celebrada durante as
cerimónias associadas à coroação. Sabemos que o palco deste acontecimento
era o «palácio» (áh), um edifício sagrado erguido no interior do recinto do
templo que era reservado aos rituais de consagração do soberano. É provável
que fosse no interior deste edifício que tivesse lugar a coroação ritual do
faraó e a sua primeira aclamação no «trono de Geb», o trono simbólico do
primeiro rei da terra.66 Era também neste contexto ritual que o faraó era in-
troduzido no interior do santuário do deus onde vislumbrava a imagem di-
vina e se iniciava nos seus mistérios. Esclarecer a função e o significação des-
te palco ritual será, deste modo, o nosso primeiro objectivo.
____________
66. Geb era o deus da terra e era encarado como o primeiro rei do Egipto. Ver J.-M. KRUCH-
TEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 173.
67. Em Karnak, esta estrutura consistia no Akhmenu, o monumento erguido por Tutmés III para
celebrar a potência criadora de Amon-Ré e a universalidade do poder real. Sobre o edifício ver
R. SCHULTZ, M. SEIDEL, O Mundo dos Faraós, pp. 158-161. O edifício celebrava os vários
aspectos do poder real: a associação aos antepassados reais (materializada na célebre lista de reis
de Karnak), ao mundo dos mortos (evocada no santuário de Sokar), ao poder criador e uni-
versal do Sol (patente no templo solar e no chamado «Jardim Botânico»). O edifício celebra,
deste modo, a eficácia do rei na realização terrena do poder divino regenerador e criador.
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nas tendas reais e levadas nas campanhas militares, o que de algum modo
associa directamente as cerimónias reais celebradas no Akhmenu com a
afirmação bélica dos poderes do faraó. Uma tal associação não era fortuita
pois conduzia a uma formulação teológica do poder imperial. Através da
guerra, o faraó manifestava o poder universal do deus supremo, Amon-Ré,
e formulava, pela primeira vez, uma noção «imperialista» poder real. O edi-
fício consubstancia, deste modo, o poder imperial do faraó com o carácter
universal de Amon. Concomitantemente, o edifício parece ser dedicado à
comemoração dos poderes universais de Amon-Ré, que é celebrado como
deus da criação no chamado «Jardim Botânico», onde figuram exemplares
da fauna e da flora dos países estrangeiros sob o domínio do Egipto. Inte-
ligentemente Tutmés III incluía a representação destas espécies estranhas ao
vale do Nilo com o intuito de demonstrar a aclamação universal de Amon
e defini-lo, pela primeira vez, como um deus imperial. Apesar da sua singu-
laridade, o «Jardim Botânico» é apenas o vestíbulo da «Câmara de Amon»,
o santuário onde residia a imagem divina do deus. Esta câmara era rodeada
por oito nichos laterais presididos por um pedestal maciço talhado em
quartzito sobre o qual outrora se erguia um relicário que albergava a ima-
gem de Amon-Ré. Era este o coração do monumento onde se manifestava
a Enéade tebana e simbolicamente se recriava todo o mundo celeste das
divindades. Era certamente nesta câmara que se verificava o momento ful-
cral da iniciação do faraó. A sul desta câmara estendia-se um conjunto de
salas dedicado a Sokar, um deus com conotações funerárias que parece ter
constituído um domínio ctónico destinadas provavelmente a introduzir o
faraó nos mistérios do mundo inferior
A norte deste conjunto uma passagem conduz ao andar superior do
edifício onde é provável que tivessem lugar as cerimónias solares da inicia-
ção. Na chamada «Câmara das Clepsidras», onde ainda hoje sobrevive
uma pedra destinada a libações, é provável que tivesse lugar uma lustração
solar que assinalava o aparecimento do faraó identificado com o Sol nas-
cente. Não é de excluir que este ritual fosse acompanhado com a contem-
plação do nascer do Sol, uma vez que o terraço constituía efectivamente a
extremidade oriental de todo o recinto. Fora do edifício, acoplado à sua
parede oriental, um conjunto de nichos oferecia aos habitantes de Tebas
(ou Uaset em egípcio) a possibilidade de aí desenvolverem um contacto
directo com uma imagem do deus. Simbolicamente o edifício desempe-
nhava, deste modo, a função de intermediário entre o deus e o povo do
Egipto, transpondo perfeitamente para a pedra uma das principais fun-
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ções reais. Relacionado ou não com esta devoção popular, o facto é que,
mesmo no Egipto copta este pavilhão cerimonial foi mantido como espa-
ço sagrado, tendo sido então usado como igreja.
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(Ísis) deu à luz um herdeiro. Ela criou o seu rebento na solidão sem
que se soubesse onde ele estava. Ela iniciou-o (besi) quando o seu bra-
ço se tornou forte, na assembleia de Geb, enquanto a Enéade se rego-
zijava.72
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reivindicar o trono que lhe pertencia por direito. A iniciação do faraó se-
guia assim o modelo divino da iniciação de Hórus e pressupunha um reti-
ro temporário nos territórios associados ao Nun (os pântanos do delta),
num local desconhecido, onde Hórus escapava momentaneamente à per-
seguição movida por Set e se «torna forte» para o poder vencer.73 Este re-
tiro proporciona um isolamento protector, ao mesmo tempo que possibi-
lita o reencontro com as potências regeneradoras da Natureza. As florestas
de papiro, impenetráveis e misteriosas, evocam deste modo o poder da Na-
tureza selvagem para devolver ao príncipe o contacto com as forças primor-
diais do Nun.74 A iniciação de Hórus representa deste modo a preparação
necessária para canalizar as forças regeneradoras do Nun e assegurar a
vitória da luz sobre as trevas. Identificando-se com estes espaços selvagens,
os templos constituíam locais que proporcionavam o mesmo contacto re-
generador com o Nun. O espaço onde decorria a iniciação era assim enten-
dido como um enclave secreto do mundo divino onde se podia verificar es-
ta preparação entendida como um autêntico renascimento.
Este nascimento espiritual é ilustrado na iconografia através da repre-
sentação de Ísis que aleita o menino Hórus no seio da floresta de papiros.75
Subjacente ao ritual da iniciação estava, portanto, a ideia de um nascimen-
to e de uma infância divina.76 No caso do faraó, o nascimento divino pro-
porcionava a manifestação das suas qualidades supra-humanas.77 Por essa
razão, as imagens do rei representado como uma criança, longe de o re-
presentarem como um ser vulnerável, exprimem as infinitas potencialida-
des que se abriam com o seu nascimento divino.78 A perfeição que ideal-
____________
73. Na visão egípcia do mundo, a criação estava sempre ameaçada pelas forças desagregadoras que
permanentemente ameaçam a ordem que o demiurgo imprimiu ao mundo. Ré, o deus solar,
era o garante desta ordem que reinava sobre o universo criado e era ele que quotidianamente
combatia Apopis, a serpente devoradora da luz. Este combate entre o poder da luz e as forças
que lhe são hostis é frequentemente ilustrado nas estelas curandeiras da Época Baixa onde
Horpakhered se ergue sobre o dorso de crocodilos e empunha cobras e animais selvagens.
74. Em Idem, p. 163.
75. Este é o tema central na decoração dos mammisi, os santuários tardios onde se celebrava o nas-
cimento da criança divina. É, pois natural que, ao longo da Época Greco-Romana, altura em
que estes santuários conheceram uma difusão muito expressiva, os mammisi se tivessem conver-
tido no palco preferencial para a celebração dos rituais que assinalavam a iniciação, que efecti-
vamente era entendida como um nascimento espiritual.
76. Em Idem, p. 269.
77. A beleza divina, a força, a inteligência e a bravura são atributos reais que exprimiam o esplen-
dor de um ser excepcional. Em C. LALOUETTE, L’Empire des Ramsès, p. 368-373.
78. Em M.A. BONHÊME e A. FORGEAU, Pharaon, p. 88. A estátua de Ramsés II, entre as gar-
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Aleitamento de Hórus na floresta de papiro. Mammisi do templo de Ísis em Philae, Época Greco-Romana. A cena representa o
nascimento e aleitamento de Hórus. Protegida pela floresta de papiros que simboliza os domínios do Nun, Ísis é protegida por várias
divindades.
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____________
79. Inscrição de Tutmés I, em J.-M. KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 168.
80. Inscrição dedicatória, Abido. Em idem, p. 171.
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Representação do ritual de coroação. Templo de Amon-Ré, Karnak. XIX dinastia, reinado de Seti I. O ritual envolve um processo que
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inclui a purificação e a apresentação do rei ao deus que o proclama como soberano do Alto e do Baixo Egipto. Em R. LEPSIUS,
Denkmäler, Abth.III. Bl.124. Em WILKINSON, The Complete Temples, p. 36.
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Coroação de Ramsés II. Pequeno templo de Abu Simbel, XIX dinastia. Como é
usual a cerimónia é colocada sob a protecção de Hórus e Set. Figura em C. DES-
ROCHES-NOBLECOURT, «Ramsès II, la jeunesse d´un prince surdoué», em
Archéologia 329 (1996), p. 25.
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____________
81. Em A. BLACKMAN, «Sacramental ideas and usages in ancient Egypt», RT 39 (1920), p. 47.
Ver também J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 524. Em C. SPIESER,
«L’eau et la regeneration des morts d’après les représentations des tombes thébaines du Nou-
vel Empire», DdÉ 72 (1997), p. 221. Ver também A. BLACKMAN, «Some notes on the An-
cient Egyptian practice of washing the dead», JEA 5 (1918), pp. 117-118. Um inventário su-
cinto das cenas relacionadas com a purificação é apresentada em A. GARDINER, «The bap-
tism of pharaoh», JEA 36 (1950), pp. 3-12.
82. Em C. SPIESER, «L´eau et la regeneration des morts d´après les représentations des tombes thé-
baines du Nouvel Empire», DdÉ 72 (1997), p. 221. No âmbito funerário um ritual semelhante
parece ter sido realizado com intuito de decalcar a lustração real. Neste ritual, a múmia era
colocada sobre um monte de areia, alusivo ao horizonte e à colina primordial, a múmia era ba-
nhada com a luz do Sol, num acto que parece ter tido o significado de assinalar o renascimento
do defunto. Enquanto era banhada pelos raios solares, a múmia era também purificada com a
lustração que simbolizava a água do Nun, o oceano primordial que purificava o deus Sol antes
do seu despontar no horizonte. Ver A. LLOYD, «Psychology and society in the Ancient Egyptian
cult of the dead», p. 126.
83. Heliópolis era a principal cidade sagrada do Antigo Egipto. Devido à centralidade do culto
solar, os gregos designaram-na «cidade do Sol», mas o seu nome egípcio era Iunu, ou seja, «A
(cidade) dos pilares», fazendo certamente alusão aos pilares do céu.
84. Ver A. BLACKMAN, «Some notes on the Ancient Egyptian practice of washing the dead»,
JEA 5 (1918), pp. 117-118. Um inventário sucinto das cenas relacionadas com a purificação
é apresentada em A. GARDINER, «The baptism of pharaoh», JEA 36 (1950), pp. 3-12.
85. Abluções com este teor aparentemente também podiam figurar nos rituais relacionados com a
justificação do defunto, como o ritual da abertura da boca, onde a afirmação do estatuto real do
defunto também era uma preocupação central.
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Estátua de Khafré, IV dinastia. Uma das mais portentosas estátuas reais de todos
os tempos, representa o faraó como a encarnação terrena de Hórus, o modelo arque-
típico da realeza.
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O herói guerreiro
____________
87. Em C. LALOUETTE, L’Empire des Ramsés, p. 367.
88. A função tradicionalmente atribuída ao coração real como sede da inteligência cósmica, também
se relacionava com a capacidade bélica do rei, pois era justamente devido à capacidade de tudo
prever que o faraó podia garantir o sucesso da campanha militar. A caracterização do rei como
um modelo de bravura também inspirou os redactores das inscrições funerárias dos súbditos do
rei que, ocasionalmente, fazem alusão à coragem do rei: «Sua majestade viajou para nor- te, o seu
coração rejubilava em valor e vitória. Ele conquistara os habitantes do sul e do norte.» Autobio-
grafia de Ahmés, filho de Abana, em Id, p. 13. Desta feita, mesmo perante uma coligação aparen-
temente invencível, Ramsés III garantiu a vitória pois o seu coração «já estava preparado»: Ano
8 do reinado de Ramsés III: (...) Os países estrangeiros conspiraram nas suas ilhas. (...) Os seus co-
rações estavam confiantes e encorajados: «Os nossos planos serão bem sucedidos!» Mas o coração
deste deus, o senhor dos deuses, já estava preparado e pronto para enlaçá-los como pássaros numa
armadilha (...) A guerra contra os Povos do Mar, templo de Medinet Habu, reinado de Ramsés III,
em J. PRITCHARD, Ancient Near East, Vol. I, pp. 185-186.
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Amon veio quando o chamei (...) e falou nas minhas costas como se
estivesse por perto:
«Avança, pois estou contigo, eu sou o teu pai, a minha mão está
contigo (...)» Então o meu coração ficou firme, o meu peito alegrou-se.
E tudo o que fiz foi bem sucedido, (...) Os carros de combate dispersa-
vam-se diante dos meus cavalos. Nem um deles ergueu a mão para lu-
____________
89. Veja-se que o modo como o faraó carrega sobre os inimigos decalca exactamente as cenas de
guerra representadas sobre os pilones. A atitude triunfante que o rei aí exibe é, por outro lado,
a representação visual do «coração firme» ou do «coração poderoso», sekhem ib descrito nos
poemas épicos.
90. Poema de Ramsés II, em LICHTHEIM, AEL, II, pp. 63-66.
91. Poema de Ramsés II, idem.
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migos do Egipto. O «coração firme» era, desta forma, uma qualidade solar
que manifestava a capacidade bélica do deus no combate contra os inimi-
gos da luz.
O senhor da alegria
Louvor a ti!
Como és esplêndido e perfeito, Atum-Horakhti!
Quando apareces em glória no horizonte do céu, (...)
Apareces glorioso, em todos os lugares
De coração alegre, eternamente! (...).96
A alegria era, deste modo, uma emoção com conotações reais e repor-
tava-se ao regozijo proporcionado pela vitória da luz sobre as trevas.97 A
____________
95. Os efeitos do poder do Sol manifestavam-se no coração dos homens e dos animais que exul-
tavam de alegria.
96. Hino a Ré-Atum-Horakhti, túmulo menfita de Horemheb, XVIII dinastia.
97. O coração do deus dilatava-se quando o inimigo era vencido. Seguindo o modelo divino, o
rei era «senhor da alegria». A «dilatação do coração» era uma oferenda dada pelos deuses ao
rei. J. ASSMANN, Egyptian Solar Religion, p. 51. Outra manifestação do poder vital do cria-
dor em toda a criação é a «doçura do coração» (nedjem ib): «São feitos gestos de alegria quan-
do te ergues do Nun/Para te saudar, os deuses do circuito celeste prosternam-se diante de
ti./Todos vêem a partir de ti./Quando te ergues no horizonte pela manhã todos te ado-
ram./Não existe abatimento quando a tua doçura está nos corações.» Hino a Ré-Horakhti,
Papiro 3049 do Museu Egípcio de Berlim. Versão francesa em A. BARUCQ e F. DAUMAS,
Hymnes et priéres de l’Égypte ancienne, p. 264.
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Cena de batalha. Templo de Amon-Ré, Karnak. XIX dinastia. O rei Seti I, arma-
do de arco e flecha, avança sobre os inimigos. O «coração firme» do rei, mencionado
na inscrição é ilustrado na imagem pela capacidade do rei em derrubar os inimigos
do Egipto, símbolo dos inimigos da própria ordem cósmica. O «coração firme» tra-
duz o poder de luz que irradia do faraó. Por essa razão, este tipo de representação
era frequente na decoração das paredes exteriores dos templos, de modo a repelir as
forças do caos. Em R. LEPSIUS, Denkmäler, Abth.III.Bl.77.
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____________
98. Estas designações são evocadas sempre que a luz vence as trevas, ainda que seja a lua, e não o
Sol, a fazê-lo: «Tu és a luz que ilumina o que está no céu e na terra. Ré alegra-se de ver a tua
beleza. Os deuses do horizonte exultam (nedjem ib) no seu coração. Os que estão no hori-
zonte exultam no seu coração. A morada de benben está na alegria.». Hino à Lua, F.-R. HER-
BIN, «Un hymne à la lune croissante», BIFAO 82 (1982), p. 252.
99. Hino a Ré, Atum, Horakhti. Apêndice.
100. Outras pulseiras também apresentam votos de felicidade: neb ankh sa ha, «toda a vida, pro-
tecção e abundância» ou més (ms) «nascimento».
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O senhor de Maet
____________
101. A «dilatação de coração» mostrava a profunda ligação que unia todas as criaturas ao Sol. No
plano cósmico, a alegria irradiava do Sol, mas em cada um dos planos da existência humana
havia um «Sol» de onde este poder se libertava. No plano político este Sol era o rei. À seme-
lhança do Sol, cada vez que aparecia, o rei espalhava a alegria entre os homens. No plano in-
dividual, o Sol era o próprio coração que, através da sua força e da sua «grandeza», manifes-
tava a imortalidade conquistada pelo defunto.
102. «Eu purifico-te com a vida e o poder para que possas ter o vigor da juventude como o teu pai
e realizar a festa Sed como Atum, aparecendo glorioso como senhor da alegria », versão francesa
em J. LECLANT, «Les rites de purification dans le cérémonial pharaonique du couronne-
ment», p. 49.
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____________
103. A partir da versão em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 51.
104. Ibid.
105. Esta inscrição é justamente célebre por constituir um dos poucos testemunhos de inscrições
reais que apresentam uma perspectiva linear do tempo e da história, ao contrário da tradi-
cional perspectiva cíclica que negava a história.
106. Inscrição de Hatchepsut do templo rupestre de Pakhet, em Beni Hassan. Em A. GARDI-
NER, «The Great Speos Artemidos Inscription», JEA 32 (1946), pp. 46-48.
107. «Agora o meu coração agita-se pensando o que dirão as pessoas, os que verão o meu mo-
numento após muitos anos», Inscrição da base do obelisco norte de Hatchepsut em Karnak.
A versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 27.
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foi valorizado pela propaganda real para comprovar que a rainha cumpria
plenamente as funções atribuídas ao faraonato. Num dos obeliscos erguidos
pela rainha em Karnak, Hatchepsut explica que a eficácia da sua acção resi-
dia no facto de conseguir realizar a vontade do seu pai celeste. Para isso, no
entanto, ela contava apenas com o seu coração. Era ele que lhe permitia co-
nhecer «os planos do coração» do deus e era ele que lhe possibilitava seguir
as orientações dadas directamente pelo próprio deus. Este feito notável foi
intensificado pela comparação do coração da rainha a Sia, a personificação
da inteligência cósmica.108 O texto que em seguida apresentamos constitui
uma obra notável no propósito de afirmar o valor da obra real a partir da
natureza excepcional do coração da rainha:
____________
108. J. SALES, «Sia», em L. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egipto, pp. 786-787.
109. Inscrição de Hatchepsut, obelisco norte de Karnak, em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 27.
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O Conto dos Dois Irmãos constitui uma narrativa única pois traduz da
dimensão discursiva do texto e da palavra o processo que até aqui temos
visto aplicado ao templo e ao ritual. Do mesmo modo como o ritual e o
templo elaboraram dispositivos para garatirem a iniciação e assim abrirem
um vector de contacto com o sagrado, o mito clarifica, sem os revelar, os
mistérios em torno dos quais se equacinavam as provas iniciáticas. Esta
narrativa assume-se, portanto, como um documento fundamental para
compreender a iniciação real, uma vez que nos introduz directamente no
domínio do mito.111 O conto foi encontrado numa única versão, num
____________
110. ASSMANN, Search for God, p. 4. Se o mundo estava repleto de «ausência», tal não corres-
pondia ao seu estado original. Pelo contrário, a morte e a injustiça eram sintomas do esvazia-
mento de sentido do mundo que se distanciou da sua plenitude original. O sentido da cria-
ção residia sempre na plenitude, na ordem, na justiça, em suma, na maet. O bem estava, por-
tanto, na ordem natural das coisas, ao passo que o mal não tinha uma existência absoluta,
pois só se manifestava mediante o esvaziamento do bem. A ordem cósmica correspondia,
portanto, ao estado de graça, frágil e delicado, que o criador havia instalado na criação no
tempo da origem.
111. Em A. GARDINER, Late Egyptian Stories, p. IX.
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Guiza, fotografia de Pascal Sebah, século XIX. As construções funerárias reais, co-
mo as pirâmides, materializavam o ideal cósmico da acção real. Após a morte, o so-
berano transformado em Osíris continuaria, através da sua pirâmide, a unir o céu
e a terra e a fazer do Egipto um espelho da ordem celeste. Em ARAÚJO, Imagens do
Egipto Queirosiano, p. 127.
Representação de Nut, a deusa celeste, e Geb, o deus da terra. Do ponto de vista mí-
tico, o céu e a terra estavam separados. Os próprios deuses, vendo a corruptibilidade
graçar sobre a terra escaparam-se para o céu, deixando a terra para os homens. Céu
e terra possuem assim diferentes conotações. Nut evoca a pureza intocada da ordem
cósmica e constitui o domínio das divindades, por excelência. Geb, o «deus caído»,
personifica a terra que os deuses desertaram devido à imperfeição humana.
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A trama narrativa
O conto apresenta duas partes nitidamente distintas que devem ter sido
justapostas para dar origem à composição que actualmente conhecemos.115
Para além de possuir uma estrutura narrativa totalmente distinta, a primeira
parte do texto ignora quase totalmente os nomes dos irmãos, os quais só são
utilizados de forma constante na segunda parte. Nesta parte da narrativa, é
relatado um motivo característico e pitoresco que lembra um episódio da
história bíblica de José (Gn 39, 7-20). O herói desta narrativa é Bata que, vi-
vendo na mesma casa do irmão mais velho, Anupu, se torna vítima de uma
intriga alimentada pela cunhada. Insinuando-se, sem sucesso, junto do ra-
paz, a astuta mulher procura encontrar um meio de se livrar dele, acabando
por instigar o marido a matar o irmão. Vendo-se perseguido por Anupu, Ba-
ta pede então a intercepção de Ré-Horakhti116 que faz «aparecer entre ele e
o irmão mais velho um grande caudal de água cheio de crocodilos», um
____________
114. WETTENGEL, W.,«Zur Rubrengliederung der Erzählung von den zwei Brüdern», GM
126 (1992), 97-106.
115. G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de l’Époque Pharaonique, p. 138.
116. O texto usa a forma Pa-Ré-Horakhti.
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«Não saias para fora para que o mar não te leve. Eu não te poderia
salvar pois sou uma mulher como tu. E o meu coração está no botão
do cedro. Mas se alguém o encontrar lutarei com ele.» Foi então que
ele lhe revelou o coração.
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____________
119. E. BRUNNER-TRAUT, Cuentos del Antiguo Egipto, p. 308. A decisão dos deuses em encon-
trarem uma companhia para Bata parece replicar o episódio da criação da mulher no Génesis
(2,18). Outros elementos do conto encontram ecos na própria literatura egípcia. Os sábios
73
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____________
que revelam ao faraó onde se encontra a mulher divina parecem decalcar os magos da corte
de Khufu, descritos no Papiro Westcar.
120. Trata-se do signo G 29 da lista de signos hieroglíficos proposta por Gardiner. Ver A. GAR-
DINER, Egyptian Grammar, p. 545.
121. Ver Idem, pp. 531-532.
122. Ver Idem, p. 531.
123. Cf. R. FAULKNER, A Concise Dictionary of Middle Egyptian, p. 77.
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____________
124. Canção do Pastor, em S. HOLLIS, «On the nature of Bata, the hero of the Papyrus d´Orbi-
ney», Cd´É 59 (1984), p. 248.
125. Idem, p. 250. Após a redacção dos signos unilíteros que compõem o nome de Bata, foi
figurado o determinativo do carneiro deitado, indicando o carácter funerário do deus.
126. Idem, p. 251.
127. Ibidem.
128. No Império Antigo, uma festividade acompanhava a circuncisão. Em certas representações,
a cerimónia é feita num recinto e envolve um cortejo de músicos acompanhados por toca-
doras de instrumentos e bailarinas acrobáticas. Estas dançarinas apresentam uma trança com
uma bola de argila na extremidade. Para Blackman esta bola encerrava o prepúcio e o sangue
da operação misturada com a terra onde o sangue caíra. Esta festividade é representada em
associação às festas da colheita, com as quais são representadas em paralelo. M. STRACK-
MANS, «Les fêtes de la circoncision chez les anciens Égyptiens», p. 293. Num relevo prove-
niente de uma mastaba do Império Antigo conservado no Museu Britânico (BM 994) outro
cortejo de bailarinas usa a mesma trança. Atrás delas seguem vários indivíduos onde se des-
taca um vulto com uma máscara de leão semelhante ao rosto do deus Bés. Ao lado deste gru-
po apresentam-se quatro rapazes encerrados num recinto onde parecem estar cativos. Um
deles olha para o exterior enquanto um outro se tenta escapulir. Para M. Capart tratar-se-ia
de uma festa da circuncisão: os rapazes eram submetidos a uma prova física para evidenciar
a sua destreza. O relevo parece ilustrar este simulacro de captura e fuga. Inserido neste con-
texto, a máscara de leão pode estar relacionada com a circuncisão que assim se reportava ao
simbolismo obstétrico característico deste deus. Idem, p. 294.
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semente.129 O próprio nome de Bata pode ser visto como uma alusão à cir-
cuncisão uma vez que apresenta uma certa semelhança com o termo «pre-
púcio», bah.130
Também a caracterização de Bata patente no Papiro d’Orbiney parece
reforçar a ideia de estarmos perante o mesmo Bata da Canção do Pastor. O
jovem herói é descrito com qualidades invulgares para um simples huma-
no pois executava, sem sinais de cansaço, todos os trabalhos da casa e do
campo:
Na verdade este jovem era belo (nefer). Não havia ninguém como
ele em toda a terra e a força de um deus estava em si.131
____________
129. O falo do deus seria, deste modo, uma evocação da semente e o lançamento do pénis à água,
mencionado no conto e na Canção do Pastor, seria uma alusão à sementeira. Em S. HO-
LLIS, «On the nature of Bata, the hero of the Papyrus d’Orbiney», Cd’É 59 (1984), p. 254.
A Canção do Pastor poderia, deste modo, ser cantada nas festas da sementeira, às quais se jun-
tavam, certamente com intuitos propiciatórios, a prática da circuncisão dos jovens.
130. Ver L. ARAÚJO, Estudos sobre Erotismo, p. 175.
131. Papiro d’Orbiney, 14. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 204 e versão hiero-
glífica em A. GARDINER, Late Egyptian Stories, p. 10.
132. Para Pierre Grandet, Bata é um deus com forma de touro, denominado Saka. Ver P. GRAN-
DET, Contes de l’Égypte ancienne, p. 176, nota 1.
133. O mesmo determinativo é usado para redigir o nome do irmão, Anupu.
134. Em G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de l’Époque Pharaonique, p. 142.
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to.135 É sabido que, pelo menos a partir do Império Novo, o deus Bata man-
teve uma relação sincretista com Set, não apresentando, contudo, as co-
notações pejorativas que este deus viria a consolidar a partir da Época
Baixa.136
As referências ao deus Bata do Papiro Jumilhac testemunham uma
identificação entre Bata e Set em que as conotações negativas, tão típicas
da caracterização tardia de Set, se repercutiram também na qualificação
negativa de Bata, o que não acontecia nas alusões anteriores a este deus.
Ainda assim o texto e a vinheta que evocam o mito de Bata no Papiro Ju-
milhac apresentam elementos muito próximos de certos episódios do Con-
to dos Dois Irmãos.137
Apesar de, ao longo do tempo, a caracterização de Bata ter variado, o
carácter predominante do deus parece ter sido o de uma divindade ligada à
fertilidade, à fecundidade masculina e aos ciclos da natureza de morte e res-
surreição. A associação ao deus Set, facilitada pela identificação do deus com
Baal, fomentada a partir do culto de Set sediado em Auaris, foi certamente
estabelecida a partir da absorção dos atributos de Baal relacionados com a
____________
135. As características agrícolas do deus Bata podem estar na origem da sua caracterização como
divindade funerária. Vários aspectos apontam para o papel funerário do deus: o determi-
nativo do carneiro mumiforme, usado na redacção do nome do deus e o próprio simbolismo
da semente favorece a proximidade com o contexto funerário. Em S. HOLLIS, «On the na-
ture of Bata, the hero of the Papyrus d’Orbiney», Cd’É 59 (1984), p. 255.
136. Ao longo do período ramséssida Set gozou de um enorme prestígio já que era o deus patrono
da cidade de Auaris, de onde era originária a XIX dinastia. O nome de Seti, justamente o
nome do rei sob o qual foi redigido o Papiro d’Orbiney, significa «O que pertence a Set». Vá-
rios reis desta dinastia manifestaram uma devoção particular por Set, como o próprio Seti I
que, antes de ser coroado, parece ter sido o sumo sacerdote deste deus em Auaris. Em I.
SHAW, The Oxford History of Ancient Egypt, p. 294. O deus Set cultuado em Auaris estava
estreitamente associado aos poderes do deus cananita Baal, os quais se reportavam larga-
mente aos ciclos da natureza e da fertilidade. É esta proximidade com o deus Baal que expli-
ca o paradoxo, tendo em conta os papeis tradicionalmente atribuídos a Set e a Osíris, de uma
figura como a de Bata que parece, à maneira de Baal, reunir as duas facetas separadamente
atribuídas a Osíris e Set. Sobre a caracterização de Baal e a sua identificação com Set e Osíris
ver J. RAMOS, «Baal», Dicionário do Antigo Egipto, p. 133.
137. Cf. J. VANDIER. Le Papyrus Jumilhac, Pl. XX: Um deus criocéfalo, em atitude passiva, é
figurado nú e acocorado, ao lado de um grande falo cortado. Um outro deus, com cabeça de
canídeo, conduz por uma corda um touro que transporta no dorso uma figura mumiforme.
Estas imagens ilustram uma sequência mitológica narrada no mesmo papiro que envolve Set
e Anúbis e que pode ser resumida brevemente da seguinte forma: aproveitando a ausência de
Anúbis, Set roubou o deus e atravessou o rio. Vendo que Anúbis veio ao seu encalço, Set
transformou-se num touro, o que não o impediu de ser capturado (XX, 16). Então Anúbis
cortou o falo de Set (XX, 16-17), revelando-se que afinal: «quanto a Bata ele era Set».
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As mutilações de Bata
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138. Já vimos que a circuncisão estava associada a rituais agrícolas que celebravam a fertilidade da ter-
ra. O prepúcio e o sangue resultantes da amputação seriam provavelmente atirados à terra com
o intuito simbólico de a fertilizar. O intrigante é que tanto a Canção do Pastor como o Conto dos
Dois Irmãos rodeiam este acto com conotações funerárias. Em parte esta associação pode ser
explicada através dos sacerdotes responsáveis pela operação, os «servos do ka», ou seja, os sa-
cerdotes funerários. O papel ritual da circuncisão estava ligado ao horizonte funerário, atra-
vés do ka, o poder da vida. O sacerdote do ka cumpria o ritual da circuncisão para assinalar
o início da idade reprodutiva do rapaz, altura em que o seu ka já se podia manifestar sexual-
mente. Neste sentido, o sacerdote do ka velava pelo poder de vida tanto no Além como na
terra. Em E. BAILEY, «Circumcision in ancient Egypt», BARCE 7 (1996), p. 18.
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139. A amputação do sexo mencionada na narrativa não se traduziu em impotência sexual, como
seria de esperar, pois o texto refere que Bata manifesta com a sua esposa a sua potência viril.
Do mesmo modo, a designação «touro da Enéade» reconhecia-lhe invulgares atributos viris.
Por estas razões, é natural que a alusão à amputação do falo evocasse a circuncisão. Em G.
LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de l’Époque Pharaonique, p. 151, nota 48.
140. Aparentemente todos os jovens passavam por este ritual. Vários testemunhos escritos com-
provam a ideia de uma generalização desta prática. O Papiro Ebers, por exemplo, apresenta
um remédio para tratar uma ferida provocada pela circuncisão: «Um remédio para o prepú-
cio que foi cortado e que sangra: mel... fruto de sicómoro... misturar e aplicar» (88.10-12).
O sacerdote leitor Uha, por outro lado, referia: «Quando fui circuncidado com 120 homens,
ninguém foi ferido, ninguém foi esfolado». Mereri, superior dos sacerdotes e tesoureiro real,
também assegura que: «enterrei os idosos e circuncidei os jovens». Em E. BAILEY, «Circum-
cision in ancient Egypt», BARCE 7 (1996), p. 20.
141. Um relato afirma que, na XXV dinastia, quando o séquito do rei etíope Pié chegou ao palá-
cio real, os homens foram divididos entre dois grupos, os circuncidados, denominados «pu-
ros», ueb, e os não circuncidados, designados como «sujos», ama. Estes não entraram no pa-
lácio. Em Idem, p. 23.
142. Para Lefebvre a escolha da árvore pode relacionar-se com a forma do seu fruto que apresen-
ta uma configuração cordiforme e cresce habitualmente junto ao mar. Em G. LEFEBVRE,
Romans et Contes Égyptiens de l’Époque Pharaonique, p. 147, nota 34. Loret, no entanto,
deixa bem evidente que o significado da árvore era mais amplo e possuía uma forte cono-
tação solar. Ver V. LORET, «Quelques notes sur l’arbre ach», ASAE 16 (1916), pp. 33-51.
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À luz destes dados, colocar o coração na árvore sagrada pode ser inter-
pretado como um estado de transformação em que Bata se coloca sob a ac-
ção de uma entidade divina que, à semelhança de um ventre, regenera,
protege e prepara o nascimento de uma nova consciência identificada com
o Sol. A escolha da árvore ache prende-se certamente com o forte carácter
solar da árvore. A resina, o suor de Ré, revestia o coração de Bata com a
essência solar, que transformava e purificava a sua consciência, e o fogo da
árvore protegia-o dos ataques dos inimigos. Esta árvore era, deste modo,
uma materialização do próprio Sol.146 Ao colocar o coração no cedro, Bata
integrava a sua mente numa totalidade mais vasta, abandonando as refe-
rências limitadas da sua consciência pessoal: só assim podia renascer puri-
ficado e identificado com o Sol.147 Acresce-se ainda a semelhança do fruto
desta árvore com a própria forma do coração, o que certamente incentivou
o paralelismo entre o órgão e um fruto, patente no próprio texto. No fun-
do, este fruto simboliza a consciência cósmica de Bata.148
A amputação do falo e do coração de Bata lembra ainda a tradição
cosmogónica heliopolitana que concebia duas modalidades de criação: a
do sexo e a do coração (mente). Para a grande maioria dos humanos a cir-
cuncisão consagrava a procriação através do sexo, a única via que pode-
riam adoptar para «imitar» o criador. Para Bata, no entanto, esta consa-
gração estendia-se ao coração, à sua consciência, para que também pudes-
se criar no plano mental, como o deus Atum ou o deus Ptah.
____________
146. Colocar o coração no botão do cedro simbolizaria, nesta perspectiva, a integração da cons-
ciência numa totalidade mais vasta, simbolizada pelo cedro, uma árvore particularmente as-
sociada à imortalidade e com um forte estatuto divino. A árvore ligava os vários planos do
cosmos: o mundo inferior, a terra e o céu, tal como o Sol o fazia com o seu percurso diário.
O cedro pode assim ser perspectivado como uma evocação da grande árvore cósmica, uma
manifestação de Ré-Horakhti, a divindade mais frequentemente citada ao longo do conto.
Em R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 117. Lefebvre enfatizou oportunamente o
carácter vincadamente solar do imaginário do conto. Embora apresente frequentes alusões a
deuses solares como Pré-Horakhti, Aton, a Enéade e outros, o texto é omisso em relação a
divindades tão importantes como Amon. Ver G. LEFEBVRE, Romans et Contes Égyptiens de
l’Époque Pharaonique, p. 147. O motivo da árvore sagrada encontra-se abundantemente do-
cumentado na iconografia real e funerária.
147. Esta concepção do papel regenerador da árvore sagrada é um traço característico das crenças
funerárias egípcias. O sicómoro sagrado, por exemplo, era localizado no horizonte oriental e
estava estreitamente ligado ao renascimento do Sol. Em A. ZINGARELLI, «Some conside-
rations about the water offered (poured) by the tree-goddess at TT 79», em A. Amenta (ed)
L’ Acqua nell’antico Egitto, p. 386.
148. Uma interpretação idêntica se pode detectar nas representações que ilustram a redacção do
nome do rei nos frutos da árvore Iched, cuja forma lembra a do coração.
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A função de Anupu
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149. M.A. BONHÊME e A. FORGEAU, Pharaon: Les secrets du Pouvoir, pp. 210-216.
150. R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 133.
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151. Na literatura funerária, a restituição do coração tinha o poder de conferir a unidade ao corpo
do defunto, incluindo a reintegração do ka e do ba. Assim refeita a unidade do defunto, o
coração podia seguir o processo de transformação que conduzia à sua purificação e à identifi-
cação com o princípio solar: «Ele (Anubis/Khentimenti) permite que executes todas as trans-
formações segundo o desejo do teu coração, pois fazes parte do seus favoritos, todos os dias:
os teus braços são puros, as tuas pernas são puras e o teu coração possui maet sem nenhuma
mancha.» F. HERBIN, Le Livre de parcourir l’éternité, p. 70
152. N. GUILHOU, «Les parties du corps dans les textes de la pyramide d’Ounas: pensée reli-
gieuse et pratiques funéraires», p. 223
153. Ibidem.
154. As representações da coroação real simbolizavam este nascimento através do aleitamento do
faraó por uma divindade feminina, em geral, Ísis.
155. Ibidem.
156. A própria iconografia do deus e a sua representação com a cabeça de canídeo constitui uma
alusão à «forma secreta»: «Rei, cuja forma é misteriosa como a de Anúbis, recebe o teu rosto
de canídeo». Pir. § 896, Versão inglesa em R. FAULNER, The Ancient Egyptian Pyramid
Texts, p. 157.
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Voltou com o fruto que era o próprio coração do irmão mais novo.
Encheu uma taça com água fresca, colocou-o lá dentro e foi descansar
como era habitual. Quando chegou a noite, o coração absorveu a água
e todo o corpo de Bata estremeceu. Começou então a olhar para o seu
irmão mais velho enquanto o seu coração permanecia na taça. Então
Anupu, o seu irmão, tomou a taça com água fresca onde permanecia
o coração do irmão mais novo e deu-lhe a beber. Então o coração vol-
tou ao seu lugar e ele retomou a sua aparência.157
____________
157. Papiro d’Orbiney, 14. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 208.
158. Ver C. LALOUETTE, L’Empire des Ramsès, p. 464.
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Transformações
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A geografia simbólica
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Deir el-Medina, túmulo de Senedjem (TT 1). Período ramséssida, XIX dinastia.
Vinheta do capítulo 109 do «Livro dos Mortos». Posicionado sobre o touro sagrado,
o deus Osíris solarizado (através da identificação com Ré) emerge dos dois sicómoros
do horizonte de onde também se ergue o disco solar. A imagem é uma clara alusão ao
renascimento do Sol. Em I. FRANCO, Rites et Croyances d’ Éternité, p. 219.
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uma função importante já que a princesa, uma espécie de percursora de Ariane, parece velar de
forma protectora pelo príncipe egípcio.
163. O autor do manuscrito conhecido é Enena, que viveu nos reinados de Merenptah e Siptah.
164. A valorização simbólica da Núbia relaciona-se com a inundação e com a associação do rei aos
poderes regeneradores da água. No período ramséssida a associação do rei às divindades da
cheia contribuiram para a afirmação do carisma real e para a definição da natureza divina do
faraó. Sobre o papel dos templos da Núbia. Ver C. NOBLECOURT, Le Secret des Temples de
la Nubie, p. 263-272.
165. Estas características aproximam o Vale do Cedro do imaginário das florestas de papiro, locais
considerados como um enclave da Duat e das forças do Nun, apresentando-se, por isso, im-
buídos de uma certa sacralidade. O Vale do Cedro desempenharia nesta narrativa o papel que
as florestas de papiro desempenharam no mito de Hórus: retiraram e isolaram o herói pro-
tegendo-o do resto do mundo. Foi aí, no segredo total, que Ísis «iniciou» (bes) Hórus, quan-
do «o seu braço se tornou forte». Ver Em J.-M. KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de
Karnak, p. 163.
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Os antagonistas e os adjuvantes
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167. Em L. ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, p. 208.
168. Ver N. REEVES, Akhenaton, p. 211.
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____________
169. Parte destas considerações foram por nós apresentadas em R. SOUSA, «Heart and Water in
the Religious Anthropology of Ancient Egypt», em A. Amenta (ed.) L’Acqua nell’antico
Egitto, pp. 375-380.
170. Em C. LALOUETTE, L’Empire des Ramsès, p. 465.
171. A deificação do rei segue, no conto, uma sequência cuidadosamente diferenciada ao longo
do texto. Em primeiro lugar ocorre um processo de purificação e «morte» para a vida terrena
que se iniciava com a «circuncisão» e progredia com a colocação do coração no cedro, sím-
bolo da transformação da consciência através da sabedoria e da identificação com o Sol. A
reanimação, assinalada pelos rituais de lustração, assinalava o segundo nascimento do rei on-
de a centelha divina já se manifestava. Entre a lustração e a coroação, os principais rituais
empreendidos na entronização real, o rei devia ainda identificar-se com três manifestações
do Sol nascente: o touro, os sicómoros do oriente e a criança divina.
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5. A INICIAÇÃO SACERDOTAL
____________
172. J. ASSMANN, The Search for God, p. 2. Nas épocas anteriores o sacerdócio era uma função
rotativa desempenhada por oficiais e funcionários.
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____________
173. Ver L. ARAÚJO, O clero do deus Amon, pp. 177-206.
174. Ver Idem., p. 201.
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____________
175. Ver Idem, p. 185.
176. Sobre o papel político dos sumo sacerdotes de Amon ver L. ARAÚJO, O Clero do deus
Amon, pp. 51-149.
177. J.-M., KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 14.
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____________
178. Idem, p. 15.
179. Tradução a partir da versão francesa em Idem, p. 37-78.
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era concebido como uma comunicação entre homens e deuses mas sim co-
mo uma interacção entre deuses,180 através da sua especialização no culto di-
vino, a elite sacerdotal apropriava-se de uma prerrogativa real e absorvia um
pouco do estatuto divino reservado ao rei. Seja como for, ao se apropriarem
destes rituais, os sacerdotes não procediam a uma mera usurpação «política»
mas antes a uma concepção da existência humana formulada segundo o mi-
to da identidade real. A transformação do homem através da iniciação de-
via fazer «de cada homem um rei».181 É por essa razão que o sacerdote Padi-
bastet viu gravada no seu corpo a insígnia de Maet, tornando-se assim, tal
como o faraó, num agente responsável pela ordem cósmica.
Era depois desta consagração que o sacerdote podia então ser apre-
sentado diante do deus. A estátua CG 42230 do Museu Egípcio do Cairo
apresenta uma alusão a esta transformação, na seguinte inscrição formu-
lada por um sacerdote:
Eu fui apresentado diante do deus, sendo um jovem excelente. Fui
introduzido no horizonte do céu (...) Eu emergi do Nun e fui purifica-
do do mal que havia em mim. Removi as minhas vestes e bálsamos,
como Hórus e Set foram purificados. Avancei diante do deus no seu
santuário mais secreto, cheio de pavor diante do seu poder.182
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mão é pura e leva à boca tudo o que aí depões, de modo a que não ne-
gligencie nada. Quão penoso seria o dia em que o fizesse! O pão e a
água através dos quais vivo diante de ti seriam então bem amargos na
minha boca, uma vez trazidos para integrarem a refeição divina!
Eu contemplei Chu que está no céu, quando a tua superioridade
brilhava. Vi também as suas estátuas divinas em cada uma das cidades
do faraó do Alto e do Baixo Egipto e nas suas expedições de caça nos
territórios do delta (…) embora elas não passem de um firmamento es-
trelado do deus «Aquele que pertence ao horizonte», em Tebas, no
tempo da união (de Tebas) com a imagem funerária de Sokar. Aqueles
que pediam a vida para si mesmos restabeleceram-se por completo e
os que antes se preocupavam estão agora cheios de alegria.
Tu encarregaste-me de tudo isto e eu não desafiei o que a tua ma-
jestade me ordenou. Conduz-me de ora em diante para o teu «céu so-
bre a terra» e regista a minha existência na Enéade terrena, pois é pela
vigilância prestada à refeição do deus que nos tornamos perenes. (…)184
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____________
186. Idem, p. 83.
187. Estas transformações no imaginário ritual da iniciação acompanhava, no fundo, a transfor-
mação que se operara no próprio imaginário da morte. No Império Antigo, a imortalidade do
faraó estava conotada com a sua ascenção ao céu, ao passo que, a partir do Império Médio, a
vida do Além era sobretudo conceptualizada como uma descida ao mundo inferior, à Duat. O
imaginário da iniciação estava assim profundamente imbuído pelas concepções cosmológicas.
188. O termo «justificação» é habitualmente utilizado para evocar o processo judiciário que, no
Além, julgava o defunto em função dos seus actos ao longo da vida. Uma conduta alicerça-
da na maet era a chave para obter um resultado positivo na pesagem do coração. Este resulta-
do levava o defunto a ser proclamado um «justo de voz» ou «justificado» e era nessa qualida -
de que podia então transformar-se num deus de verdade e de justiça, num Osíris. Era desse
modo que o defunto podia aspirar à imortalidade.
189. Em J.-M., KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 176.
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____________
190. Inscrição autobiográfica da estatuado sacerdote Djedbastetiuefankh (CGC 42224). Em
idem, p. 177.
191. J.-M., KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, p. 186
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192. Teti exerceu as suas funções sob os dinastas tebanos Antef II (2125-2112 a. C.) e Antef III (2112-
-2063 a. C.).
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O seu servo, que tem o afecto (do rei) (...), um magistrado cujo co-
ração é grande, que conhece o desejo do seu senhor, o que está à dian-
teira dos grandes do palácio (...) que contenta o coração de Hórus com
o que ele deseja, íntimo do seu senhor (...) Eu fui um verdadeiro íntimo
do rei, um funcionário de grande coração e bom temperamento.193
____________
193. Estela do tesoureiro Teti. Versão inglesa em LICHTHEIM, AEL, I, pp. 90-92.
194. Lembremo-nos que, no Antigo Egipto, a solidão constituía a manifestação da morte no
plano social e evidenciava a falência da conectividade social.
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195. As Lamentações de Khakhepereseneb, LICHTHEIM, AEL, I, p. 147.
196. As Lamentações de Khakhepereseneb, idem.
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O rei é um ka
A sua boca é abundância.
Aquele que será alguém é aquele que ele faz avançar
Ele é um Khnum para cada corpo,
Um engendrador, que cria a humanidade.199
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____________
201. O Camponês Eloquente (terceira petição), Versão hieroglífica em R. B. PARKINSON, The
Tale of the Eloquent Peasent, Griffith Institute e Ashmolean Museum, Oxford, 1991.
202. A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Sexto (XVII, 18- XVIII, 5). ver Apêndice II. 7. Para
Pascal Vernus este último verso faz alusão ao envio de «demónios» que castigam o pecador por
ordem divina (Ver P. VERNUS, Sagesses de l’Égypte Pharaonique, p. 339, nota 143). A Ins-
trução de Amenemope reflecte na perfeição a grande viragem cultural que marcou o Império
Novo e que consistia na preponderância da vigilância divina sobre as acções humanas. Foi esta
característica que traçou certamente a sua aceitação pela tradição bíblica, de tal modo que ins-
pirou a redacção de escritos veterotestamentários, o que se detecta de um modo particular nos
Provérbios. Ver Idem, p. 306.
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CAPÍTULO III
A INICIAÇÃO TEMPLÁRIA
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____________
203. Na realidade Nun é uma vocalização copta que deriva da expressão egípcia nni,que signifi-
ca «inerte».
204. ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 4.
205. Noutros a Duat aparece no interior do corpo da deusa Nut que, de acordo com essas versões,
o Sol atravessa durante a noite. De qualquer forma, a Duat aparece sempre como uma exten-
são ou de Nut, o céu, ou de Geb, a terra.
206. ALLEN, Genesis in Ancient Egypt, p. 6.
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Os leões do horizonte. Livro dos Mortos de Ani, XIX dinastia. Museu Britânico.
Os leões do horizonte representam os limites espaço-temporais do cosmos: O Oriente
e o Ocidente, mas também o Ontem e o Amanhã. Os leões míticos flanqueiam e pro-
tegem a passagem do Sol entre a Duat e o mundo dos vivos. Entre os leões ergue-se
o Sol delimitado pelo signo hieroglífico do horizonte.
____________
207. TOBIN, «Creation Myths», em REDFORD, Oxford Encyclopedia of Ancient Egypt, Vol. II,
p. 469.
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Estátua colossal de Ramsés II, Mit Rahina. XIX dinastia. Outrora esta imponente
estátua erguia-se diante dos pilones do templo de Ptah, em Mênfis. As estátuas co-
lossais do faraó representam-no como um ser sobre-humano capaz de defender a or-
dem cósmica e preservar a criação.
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____________
209. Vários destes objectos são descritos em A. VARILLE, «La grande porte d’Apet À Karnak», ASAE
53 (1956), pp. 79-118. No Museu Egípcio de Berlim, foi feita uma reconstituição rigorosa por
Ludwig Borchardt que apresentamos em imagem. O leão desliza e sai da parede através de uma
abertura em forma de pilone. Um coração está pendurado por uma cadeia ao leão.
210. Ver R. WILKINSON, The Complete Temples of Ancient Egypt, p. 68.
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211. O facto de o Além ter sido encarado como um templo, levou a que o simbolismo iniciático
das portas do templo tivesse inspirado a literatura funerária a elaborar textos relacionados
com a propiciação da passagem das portas do Além. Esta passagem revestia-se de grandes
perigos, já que as portas do Além eram guardadas por demónios ameaçadores que aniqui-
lavam todos os que não fossem dignos dessa passagem. Também nos poemas de amor, com
uma aparência mais mundana, mas igualmente marcados por concepções religiosas, a porta
da casa da amada é louvada, pelo jovem, como se fosse uma divindade de forma a conquistar
a sua cumplicidade para os encontros amorosos. Ver Papiro Chester Beatty I (III, 7) em R.
SOUSA, Doces Versos, p. 101.
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212. Adaptado da versão francesa proposta em A. VARILLE, «La grande porte du Temple d´Apet
à Karnak», ASAE 53 (1956), pp. 90-91.
213. Hierogyphica (I, 19). Baseado na versão francesa apresentada em Idem., p. 86.
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214. Autobiografia inscrita na estátua do sumo sacerdote Romeroi (CGC 42186). Em J.-M.,
KRUCHTEN, Les Annales des Prêtres de Karnak, idem, p. 179.
215. Ibidem.
216. Autobiografia inscrita na estátua do servidor do deus Hor (CGC 42230). Em idem, p. 183.
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Filae (ilha de Agilkia), templo de Ísis, porta de Adriano, parede sul. A representação evoca a introdução do faraó numa cripta sagrada
onde parece ser iniciado nos mistérios da regeneração do cosmos.
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CAPÍTULO IV
O TEMPLO INTERIOR
1. A INICIAÇÃO INTERIOR
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És o pai do órfão
E o esposo da viúva. 221
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227. Em M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobiographies, p. 54.
228. Esta posição, no entanto, foi duramente criticada por Lichtheim, para quem a sabedoria não
foi absorvida pela piedade pessoal, nem o conceito de maet desapareceu. Ao fazer o que o deus
desejava, o homem sábio realizava a maet. Para a autora, o pensamento sobre maet acompa-
nhava de perto a piedade pessoal mas não se confundia com este fenómeno. Em Idem, pp.
100-101. A partir dos argumentos apresentados pela autora, no entanto, é difícil extrair uma
refutação clara da posição defendida por Assmann.
229. Em Idem, p. 57.
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230. Inscrição funerária do túmulo de Paheri, em LICHTHEIM, AEL, I, p. 18.
231 Um documento muito similar, certamente elaborado com base no mesmo modelo, é a Au-
tobiografia de Antef que apresenta uma caracterização da função do coração cunhada com os
mesmos valores.
232. Ambos os textos revelam uma grande familiaridade com a literatura do Império Médio e, em
particular, com os textos autobiográficos redigidos nos cenotáfios de Abido. Em LICHTHEIM,
Maat in Egyptian, p. 53.
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233. Em Ibidem.
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Sê puro de coração
E purifica-te todos os dias.234
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239. Sobre gnosticismo ver J. RAMOS, «Gnosticismo», L. Araújo (dir.), Dicionário do Antigo Egip-
to, pp. 391-392.
240. Inscrição do túmulo de Paser (TT 106), reinado de Seti I. Versão inglesa em LICHTHEIM,
AEL, I, p. 66.
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245. Oração de um cego a Amon, idem, pp. 205-206. Muitas divindades, para além de Amon e Ptah,
mereceram a atenção do culto pessoal, como Meretseguer ou Amen-hotep I, Ahmés ou Ah-
més-Nefertari. Todas estas divindades proporcionavam, a quem as colocasse no coração, a
protecção e a prosperidade.
246. A «doçura de coração», nedjem ib, traduzia um estado de profundo bem-estar e era um dos qua-
tro pilares da felicidade frequentemente mencionados: «Possas dar um longa duração de vida na
doçura do coração, uma bela sepultura depois de uma longa velhice, que o meu nome dure na
tua morada.» Em D. MEEKS, «Les quatre ka du démiurge memphite», RdÉ 15 (1963), p. 47.
247. O coração ensinava «a viver contente» e a «falar verdade» de modo a preparar o dia do julga-
mento: «Fui muito favorecido ao lado do rei (...) O meu coração ensinou-me a viver conten-
te e guiou-me na excelência de coração. Falei verdade e agi com justeza, pois conhecia o dia
da chegada.» Inscrição de uma estátua de Horua, funcionário de Amenirdis. Em M. LICH-
THEIM, Maat in Egyptian Autobiographies, p. 90.
248 «Oferenda que o rei faz a Amon-Ré, (…) Que eles possam garantir vida, prosperidade e saúde,
força, protecção, amor, todos os dias. Um bom tempo de vida, dotado de saúde, prazer (do-
çura de coração), e alegria (rechut), diariamente. Os meus olhos vêm, as orelhas ouvem, a mi-
nha boca está cheia de verdade, diariamente, como é feito para um homem justo que coloca
Amon no seu coração, (…)» Fórmula de oferenda inscrita numa estátua do artesão Karo.
Adaptado da versão inglesa em Id., p. 79.
249. Repare-se que as recompensas do deus ao homem que o «coloca no seu coração» só fazem
sentido na medida em que a acção do deus já não é imperiosa, como até aí se verificava, mas
porque o homem é livre de o fazer. Como recompensa de ter «colocado o deus no coração»,
o defunto pretendia, após a morte, «ver Amon todos os dias» (a formulação deste desejo é
particularmente interessante já que a oração é dirigida a Ptah, pelo que parece constituir a
formulação de um desejo convencional).
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250. Ver Em Y. KOENIG, «L’eau et la magie», em A. Amenta (ed) L’Acqua nell’antico Egitto, p. 96.
251. Também a expressão «mergulhar o coração», aá ib (ia ib) é frequentemente usada na escrita
hieroglífica para designar um estado de satisfação.
252. Em A. MORET, «L’expression àâ-ib», RT 14 (1893), p. 121.
253. «Mergulhar o coração», aá-ib (ia-ib), relacionava-se com a satisfação proporcionada com a
realização de algo que se gosta ou ama. Ver Idem, pp. 120-123.
254. «O Ocidente é o domicílio do que não tem culpa, louva o deus para o homem que aí chega!
Ninguém aí chega, a menos que o seu coração seja impecável a fazer o bem. Pobres e ricos não
se distinguem, apenas o que é encontrado sem culpa. (...) Eu estava na água do senhor de
Khnum desde o meu nascimento, eu tinha os seus conselhos no meu coração.» Autobiografia
de Petosiris, Apêndice.
255. Autobiografia de Petosiris, ver VERNUS, Sagesse de l’Égypte pharaonique, p. 367.
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256. Em A. LOPRIENO, La Pensée et l’Écriture, p. 37.
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257. J. ASSMANN, The Search for God, p.156-7. Foi talvez por esta razão que a pureza se tornou,
na Época Baixa, numa questão muito problematizada. As prescrições de pureza do ritual e o
culto, que no templo contribuiam para manter a ordem cósmica, foram transpostas para a
conduta humana de modo a favorecer a santidade.
258. A separação da esfera divina da esfera humana é estranha ao Egipto do I milénio: O homem
puro (ueb) podia aceder à santidade através da manutenção do culto e através da adopção
das regras de pureza.
259. Só a morte, a verdadeira iniciação, podia transformar o indivíduo numa divindade. O
mistério da morte, no Egipto, é demasiado próximo do culto e do sagrado para que não
estivessem associados. Esta intimidade entre a morte e o sagrado também se verifica na ini-
ciação. De facto, a iniciação tinha uma dupla vertente. Em vida santificava o indivíduo,
mas na morte divinizava-o.
260. R. WITT, Isis in the Ancient World, p. 154.
261. Idem, p. 152.
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262. Porfírio, De Abst. , 4, 6-8. Em S. PERNIGOTTI, «O Sacerdote», em S. DONADONI (dir),
O Homem Egípcio, p. 111.
263. As expectativas em relação ao Além esmoreceram bastante ao longo do I milénio, sobretudo
na época greco-romana. A relação com o divino nesta época assemelha-se à que existia no seio
das religiões de mistérios do mundo clássico. W. Burkert defende que as religiões de mistérios
abriram a um grupo muito mais alargado da população o acesso ao divino. A atenção religiosa
volta-se para a vida terrena. Há uma reorganização do centro de atracção da esfera do Além pa-
ra a esfera da vida terrena, o que permite uma maior permeabilidade entre estes planos. Em A.
LOPRIENO, La Pensée et l’Écriture, p. 47.
264. Em Panóias, no distrito de Vila Real, conserva-se um recinto sagrado outrora consagrado a
Serápis. Apesar de uma evidente contaminação de elementos greco-romanos e indígenas, da
associação entre a iniciação e o imaginário da morte.
265. Curiosamente, o Além era visto como um templo onde o defunto se encontrava com Osíris.
Alguns dos livros do Além, como o «Livro dos Dois Caminhos» ou o «Livro dos Mortos»,
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apresentam um itinerário onde é nítida a concepção do mundo inferior como um templo.
O «Livro dos Dois Caminhos» foi pintado no fundo dos sarcófagos provenientes de El-Ber-
cha e inspirou a redacção dos capítulos do «Livro dos Mortos» relacionados com a topografia
do Além (ver capítulos 117-119, 144 -149 e 168).
266. Ver R. FAULKNER, Dictionnary of Middle Egyptian, p. 162.
267. Em S. BIRCH, «On formulas relating to the heart», ZÄS 4 (1866), p. 89.
268. Nas primeiras representações detecta-se o uso de oito artérias. Ver B. ZISKIND, B. HALIO-
UA, «La conception du cœur dans l’ Égypte ancienne», Médicine/Sciences 2004, pp. 367-373.
269. Em certas situações o autor identifica, no ib, o «heart-sack containing the heart (haty) pro-
perly so called». Ibidem. Outros termos menos correntes eram usados para designar o cora-
ção. O termo aq, em geral usado no sentido de «centro» também podia designar algumas
partes do coração, como as veias ou as válvulas. O termo deriva da palavra aq, «andar» e é
com certeza alusivo ao batimento do coração.
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zido.273 Uma das principais funções do coração hati era, nos textos mé-
dicos, a de assegurar a circulação do sangue.
Se a definição anatómica do termo hati não levanta problemas, o
mesmo não se passa com o coração ib. O coração ib274 era constituído por
um conjunto muito alargado de «órgãos»,275 compreendendo todas as es-
truturas anatómicas situadas dentro da cavidade ventro-torácica, à excep-
ção do coração hati.276 Embora tivesse uma realidade abrangente, o cora-
ção ib parecia «materializar-se» no estômago, ra-ib (lit. «a entrada do co-
ração ib»). A proximidade entre o coração ib e o estômago não se reflecte
apenas na terminologia. Em certas passagens dos papiros médicos, ambos
se apresentam totalmente identificados o que se reflecte na caracterização
do coração ib como o centro da alimentação e da bebida.277 Veja-se, para
____________
tomical Studies, p. 152. A mesma ideia foi defendida por G. LEFEBVRE, Tableau des Parties
du Corps Humain, §34
273. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 18. As palavras «músculo» e «víscera» não devem aqui ser
tomadas como fazendo parte integrante do que poderia ser uma definição egípcia desta com-
ponente muito particular do corpo. A noção de «músculo» não existia no antigo Egipto. Da
mesma forma, a ideia de «víscera» como órgão possuidor de propriedades específicas parece
ser ausente.
274. Bardinet fala em «interior ib» para reforçar a ideia que não se trata verdadeiramente do órgão
cardíaco mas sim do interior do corpo. No nosso texto, para manter o dualismo vocabular
das designações egípcias optaremos pela expressão «coração ib». Ver T. BARDINET, Les Pa-
pyrus Médicaux de l’Égypte, p. 103.
275. Cf. R. FAULKNER, A concise dictionary of Middle Egyptian, p. 200. Para os médicos do
Egipto, as vísceras não eram órgãos com funções individualizadas sendo simplesmente con-
siderados como regiões particulares do coração ib.
276. O primeiro autor a confirmar esta definição dos termos ib e hati nos papiros médicos foi
Thierry Bardinet. Até aí a compreensão da questão permaneceu obscurecida e deu origem a de-
finições bizarras e estranhas. Lefebvre, por exemplo, considerava que ra ib, o estômago, pres-
supunha que os egípcios admitiam a existência de um canal de ligação entre o coração e o es-
tômago. Walker, por outro lado, traduziu a expressão por «gruta do coração» e considerou que
o termo ib aludia não a uma realidade anatómica mas sim ao complexo anímico (ver J. WAL-
KER, Anatomical Terminology, pp. 128-129.) O contributo de Bardinet veio finalmente ilu-
minar a questão. A expressão ra ib pode ser compreendida como a «abertura do ib», entendido
não como o órgão cardíaco, mas sim como o interior do corpo. Nesta perspectiva, o estômago
é efectivamente a «boca» ou a «entrada» para o interior do corpo. Walker, no entanto, assevera
que «claims that the ib is an intra-abdominal entity, that is located in the epigastrium and that
it is identical with the stomach all appear to be erroneous». Em Idem, p. 184.
277. Esta «confusão» também se detecta em textos religiosos. Por exemplo, numa estela da XX
dinastia pertencente a um indivíduo denominado Suti, refere-se que «Osíris e Ísis dão pão
para o meu corpo e água para o meu coração ib». Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 16. A
proximidade entre o estômago e o coração também se detecta na língua grega. Stoma, sig-
nifica «boca» e a entrada para o estômago é conhecida como cardia. Em J. NUNN, Ancient
Egyptian Medicine, p. 54.
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____________
278. Papiro Ebers, 41, 13-15. A versão portuguesa baseia-se na tradução francesa proposta em T.
BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte, p. 257.
279. Bardinet considera que o coração hati era «o centro do ib», o local onde os poderes do cora-
ção ib se exprimiam com mais intensidade. Em Idem, p. 70. Na nossa perspectiva, no entan-
to, seria de esperar que o local onde o coração ib se manifestava com mais intensidade fosse
o estômago. A perspectiva de Long parece mais próxima da nossa. O autor reconhece que o
coração ib governava o ventre, ao passo que o coração hati reinava sobre o peito (Ver B.
LONG, «Le ib et le hati dans les textes médicaux de l’Égypte ancienne», Hommages à Fran-
çois Daumas, II, p. 486).
280. Em T. BARDINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte, pp. 81.
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entre o coração ib e o coração hati. Na verdade, era o coração hati que, atra-
vés do seu movimento, incutia o impulso vital pelos condutores met que o
distribuíam então pelo coração ib. A pulsação era o reflexo dessa ligação e
era considerada, pelos médicos egípcios, como a «fala» do coração que, atra-
vés dos condutores met, se repercutia por todo o corpo.281
____________
281. Já nessa época, o médico egípcio colocava a mão sobre certos condutores met para examinar
o estado do coração hati, antecipando assim uma das mais basilares intervenções médicas dos
nossos dias. Em H. BRUNNER, «Herz», em Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1158. Para ava-
liar a posição do coração o médico examinava a pulsação em diferentes locais do corpo:
«Quanto a isso, todo o médico, todo o sacerdote ueb de Sekhmet, todo o sa (...) que coloca
as mãos, os dedos, quer seja na cabeça, na nuca, nas mãos na sede do coração ib, nas pernas,
é o seu coração hati que se procura examinar, dado que os condutores met do homem exis-
tem em cada lugar do seu corpo e está comprovado que ele (o coração hati) fala diante dos
condutores met pertencentes a cada lugar do corpo.» Papiro Ebers, 99, 1-5. Em T. BAR-
DINET, Les Papyrus Médicaux de l’Égypte, p. 85.
282. Instrução de Ani, 58. Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 33.
283. Inscrição da XXVI dinastia. Em S. HODJADH e O. BERLEV, The Egyptian Reliefs and
Stelae, p. 174.
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____________
284. Idem., p. 90.
285. Ibidem.
286. H. BRUNNER, «Das Herz im ägyptischen Glauben», em Das hörende Herz., p. 17. Ver tam-
bém A. DE BUCK, «Een groep dodenboekspreuken betreffende het hart», JEOL 9 (1944),
p. 17. Um conselho pessimista recomendava: «Não preenchas o teu coração com um irmão»,
alertando para os perigos de se confiar em alguém. O amigo, por seu turno, era apelidado «o
grande (senhor) no meu coração», ao passo que a bem-amada era «a irmã que está no teu co-
ração». Em A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 40.
287. Ibidem.
288. F. DAUMAS, «Hathor», Lexikon der Ägyptologie, II, col. 1029.
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3. A TRANSFORMAÇÃO DO CORAÇÃO
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293. Miriam Lichtheim data a Instrução de Ptah-hotep dos finais da VI dinastia (M. LICHTHEIM,
AEL, I, p. 62). No entanto, o texto refere que o sábio viveu na V dinastia, durante o reinado
do faraó Djedkaré Isesi (2414-2375 a. C.) e que exerceu a função de vizir (note-se que esta função
é perfeitamente compatível com a dignidade do seu estatuto de sábio). Para Pascal Vernus, no
entanto, a obra apresenta características linguísticas que se aproximam bastante do egípcio clás-
sico usado na XII dinastia. A obra seria, na opinião deste autor, um apócrifo que teria sido es-
crito no início do Império Médio ou no Primeiro Período Intermediário. A atribuição do tex-
to a um sábio do passado corresponde a uma tendência que se começou a intensificar no Pri-
meiro Período Intermediário, a qual se inseria na «santificação» de sábios do passado e na sua
elevação a patronos da necrópole. Ver P. VERNUS, Sagesses de l’Égypte Pharaonique, p. 21.
Quanto a Ptah-hotep, não há dúvida que é evocado com os atributos de um sábio ideal. De
acordo com o texto, chegado aos cento e dez anos, a idade atingida idealmente pelos bem-aven-
turados, Ptah-hotep considerava-se preparado para redigir um ensinamento baseado na sua
longa experiência ao serviço do faraó. O seu nome apresenta uma estrutura simétrica muito cu-
riosa que intensifica a ideia de equilíbrio personificada no sábio: Ptah, era o principal deus
menfita, associado à criação artesanal e à fertilidade, enquanto que hotep, por outro lado, sig-
nificava «paz», «satisfação» ou mesmo o «ocaso». O nome encerrava, deste modo, uma mensa-
gem (que pode ser lida como «realização plena») que intensificam o perfil de um sábio ideal
(Ver C. JACQ, Las Máximas de Ptahhotep, p. 22.), mas a verdade é que o nome era comum no
Império Antigo. Pelo menos cinco personagens com o nome de Ptah-hotep exerceram o cargo
de vizir no final da V dinastia, mas foi o possuidor da célebre mastaba que ainda hoje é um dos
monumentos mais admirados de Sakara, que, na Antiguidade, mereceu o epíteto de «Grande».
Para Pascal Vernus seria esta personalidade a quem teria sido atribuído o texto sapiencial com-
posto entre o Primeiro Período Intermediário e o início da XII dinastia.
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294. Instrução de Ptah-hotep, Epílogo.
295. Em J. ASSMANN, Maât, p. 42.
296. Instrução de Ptah-hotep, Epílogo.
297. Num outro documento, diz-se que o sábio «possui um coração ouvinte que procura conse-
lho para (entender) as coisas estranhas, como alguém cujo coração as compreende». (Biogra-
fia de Amen-hotep, filho de Hapu) Insinua-se aqui uma nuance semântica que nos ajuda a per-
ceber o sentido da expressão: ter um coração ouvinte permite resolver não só as questões ro-
tineiras como as «coisas estranhas», para as quais não há uma solução imediata. Ter um co-
ração ouvinte não constitui, por isso, apenas uma atitude de interesse e de obediência. Na
realidade, a expressão parece completar-se com um sentido intelectual: ter um coração ou-
vinte significa ser inteligente, pois é a inteligência que permite encontrar soluções para os
problemas. Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 78.
298. Idem, p. 53.
299. Instrução de Ptah-hotep.
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lhas, escuta o que é dito e aplica o teu coração a perceber isto».300 Embora,
na maior parte das vezes, o coração ouvinte expresse uma percepção atenta
do mundo envolvente, em certos casos, a expressão remete para a escuta de
uma voz interior. Também aqui a atitude apresenta conotações muito posi-
tivas: «Quem escuta o seu coração está em ordem».301 Em suma, «escutar»
traduz o estado de ligação perfeita com o mundo e a capacidade para se har-
monizar com a maet, conduzindo, numa palavra, à integridade moral.
O coração era assim encarado como o garante de conectividade que
sustentava a vida, em qualquer um dos seus domínios, quer no plano fí-
sico, anímico ou social. O «coração ouvinte» traduzia, deste modo, a fun-
ção conectiva do coração e assinalava um estado de consciência atenta que
ligava o homem à ordem cósmica.
Uma expressão equivalente era «seguir o coração», chemés ib e cons-
tituía uma virtude igualmente apreciada na ética egípcia, muito embora
não seja fácil de definir. Alguns autores interpretam esta expressão como
um apelo ao usufruto hedonístico do prazer.302 Piankoff, no entanto, con-
siderava bem mais relevante o sentido de «seguir a consciência»,303 o qual
deve se depreender numa passagem da Instrução para Merikaré onde se
exorta o rei a seguir o coração pelo caminho empreendido pelo pai, ou se-
ja, a seguir a mesma política.304 Efectivamente, a estela funerária de Taim-
hotep, por exemplo, convida a «não aquecer o coração com bebida, comi-
da e prazeres sexuais», exortando, logo em seguida, a «seguir o coração to-
dos os dias, colocando o cuidado no coração.»305 No entanto, a Instrução
de Ptah-hotep, apresenta uma interpretação distinta desta expressão:
Segue o teu coração durante o tempo da tua vida, não faças mais
do que te é pedido, não encurtes o tempo de seguir o coração. Des-
perdiçar o seu momento ofende o ka. Não desperdices o teu tempo em
preocupações inúteis que transcendam o sustento da tua casa. Quando
____________
300. Instrução de Amenemope, em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 278.
301. Instrução de Ptah-hotep, 387.
302. Ver D. LORTON, «The Expression Sms-ib », JARCE 7 (1968), p. 41.
303. A. PIANKOFF, Le Coeur, p. 47. Também Walter Federn sublinha o sentido hedonístico da
expressão. Ver em W. FEREDERN, «The “Transformations” in the Coffin Texts: A New Ap-
proach», JNES 19 (1960), p. 248.
304. «Segue o teu coração por aquilo que eu fiz», adaptado da versão inglesa patente em M.
LICHTHEIM, AEL, I, p. 103.
305. Em D. LORTON, «The Expression Sms ib», JARCE 7 (1968), p. 42.
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____________
306. Instrução de Ptah-hotep, Máxima 11.
307. Instrução de Ptah-hotep, 7,9-7,10, em D. LORTON, «The Expression Sms ib », JARCE 7 (1968),
p. 42. Também Assmann defende a mesma interpretação da expressão. Em J. ASSMANN,
Mort et au-delá dans l’Égypte ancienne, p. 408.
308. Também na Canção de Antef, o sentido hedonista é claramente predominante: «Segue o teu
coração toda a tua vida. Coloca mirra na tua cabeça e roupas de fino linho sobre ti e unta-
te com as coisas maravilhosas que fazem parte das provisões de um deus. Goza da abundân-
cia da tua riqueza até que o teu coração fique cansado». Em D. LORTON, «The Expression
Sms ib », JARCE 7 (1968), p. 46.
309. Dado que o termo «seguir» também significa «fazer uso de», a expressão também pode ser
lida como «exercitar a vontade». Ver Idem, p. 41. Subjacente estava sempre a ideia de uma
vivência agradável. Mesmo quando o indivíduo cumpre as obrigações seguindo os ditames
da consciência, conquista um bem-estar resultante do seu cumprimento. Mas se for para lá
deste limite e descurar o prazer de viver e o tempo de ócio, o indivíduo não segue, em rigor,
a consciência, já que esta o obriga a reconhecer o equilíbrio de todas as dimensões da vida.
310. Ver L. ARAÚJO, Mitos e Lendas do Antigo Egipto, p. 228.
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O silêncio, guer (gr), constituía uma atitude interior que precedia todas
as virtudes e constituía uma condição indispensável para entrar em relação
com deus. O novo ideal de conduta constituía uma importante inflexão em
relação ao «coração ouvinte» uma vez que denota uma viragem para o in-
terior do indivíduo. Enquanto que o «coração ouvinte» constituía uma ati-
tude «extrovertida», a nova atitude exortava à contemplação interior. O si-
lêncio foi incentivado, não por um desejo de «introspecção», mas como um
veículo para o encontro com deus, pois era no silêncio da consciência que a
divindade se manifestava. Sem o silêncio o homem não podia entrar em sin-
tonia com a ordem cósmica e participar da sua plenitude. Longe de consti-
tuir um vazio, o silêncio era a expressão da plenitude do amor divino.
Não ergas a tua voz na morada de deus,
Ele tem horror aos gritos.
Reza por ti mesmo com um coração amante,
Oculta as tuas palavras,
Ele conceder-te-á o que precisas,
Ele ouvirá as tuas palavras
E aceitará as tuas oferendas.312
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____________
com o sucesso da vida material, o sábio dá mais atenção à definição dos valores que qualifi-
cam interiormente o homem. A sobriedade e a humildade, sobretudo diante de deus, são as
qualidades mais valorizadas pelo sábio para compensar a imperfeição do homem. Em M.
LICHTHEIM, AEL, II, p. 147.
314. J. ASSMANN, Maât, l’Egypte pharaonique et l’idée de justice social, p. 68.
315. F. DAUMAS, La Civilisation de l’Égypte Pharaonique, p. 298. Versão portuguesa baseada na
tradução francesa.
316. A Instrução de Amenemope.
317. «Não deixes que a tua palavra seja levada para fora, a fim de que o teu coração não se entris-
teça. O coração do homem é uma dádiva de deus, cuida para não o negligenciares. A Instru-
ção de Amenemope.
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Os modelos de má conduta
Não era por acaso, que todas as faltas decorriam de «não ouvir»:321 o
tolo, ikh, o imbecil, ukhá, e o perverso, ben, eram incapazes de escutar.
____________
318. A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Oitavo (XIX, 10 – XX, 6).
319. Autobiografia de Petosiris.
320. A atitude de «seguir o coração», sechem-ib, uma virtude tradicional dos ensinamentos da
maet, era tradicionalmente aconselhada para prestar um bom serviço ao rei e para garantir o
sucesso e a felicidade. Petosíris, no entanto, seguia o coração no sentido de «seguir o deus».
321. «O desprezo pela virtude tem origem no não ouvir» Papiro Insinger, 9,5. Em F. LEXA, Les
Enseignements Moraux d’un Scribe Égyptien du Premier Siécle Aprés J.C , Tome II, p. 48.
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Pior que não escutar era ouvir outras «vontades» menos nobres que
também existiam dentro do próprio indivíduo. Quando o coração escuta-
va o ventre, por exemplo, a desgraça acontecia:
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que lhe diz o seu ventre, esse consegue dominar-se a si próprio».325 O ven-
tre conduzia inevitavelmente o homem para a avidez, ilustrando exem-
plarmente o carácter ignominioso dessa conduta:
____________
325. Em F. DAUMAS, La Civilisation de l’Égypte Pharaonique, p. 295.
326. A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Primeiro (XIV, 5 - 12). O texto foi redigido num
papiro cujo verso foi usado para compilar um conjunto muito heterogéneo de textos como
hinos religiosos, uma espécie de enciclopédia relativa ao cosmos egípcio e um calendário de
dias fastos e nefastos. Esta associação de textos está relacionada com a formação sacerdotal
que abrangia naturalmente todos estes tópicos. Ver P. VERNUS, Sagesses de l’Égypte Pharao-
nique, p. 299. O próprio texto testemunha um invulgar interesse por textos sapienciais mais
antigos evidenciando a utilização de materiais que remontam à Instrução de Ptah-hotep. Ou-
tros excertos parecem inspirados em textos mais recentes, como a Instrução de Ani, dado que
fornece um terminus post quem. A obra foi redigida em verso.
327. Pelo seu elevado interesse moral, incluímos nesta secção textos que não se enquadram apenas
no sentido estrito de «ensinamento». É o caso dos textos que descrevem a anarquia do Egipto
antes da reunificação concretizada pela dinastia tebana. Embora estes textos estejam ausentes
da compilação de Pascal Vernus de textos sapiencias (ver Idem, p. 413), Miriam Lichtheim
incluiu estas composições no seio da didatic literature (Ver M. LICHTHEIM, AEL, I, p. x).
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do à coesão social, uma vez que quebrava os laços de solidariedade que ci-
mentavam a sociedade.332
Uma propensão de carácter tão ameaçadora da ordem cósmica teria
de figurar entre a confissão negativa (presente no capítulo 125 do «Livro
dos Mortos»), onde efectivamente é mencionada em conjunto com outras
características pejorativas: «eu não roubei, não tive um coração ávido (...)
não tomei».333 A «avidez de coração» representava, portanto uma ameaça
à ordem maética sendo colocada em paralelo com a mentira, a anarquia e
a injustiça.334
Nas instruções sapienciais, que procuravam promover a maet, são fre-
quentes os avisos e as exortações que alertam para os malefícios da «avidez
do coração», a qual era considerada como «uma dolorosa doença sem cu-
ra»,335 ou «uma porta para todos os males, um amontoado de coisas odio-
sas».336 O castigo do ávido de coração era duplo: começava na vida terrena
e culminava no Além.337 Deste modo, ao longo da vida, ele era vítima dos
conflitos que alimentava e o isolamento a que era votado culminava com
o próprio divórcio.338 Após a morte, o «ávido de coração» não chegava a
«margens seguras»339 e, desgraça das desgraças, não tinha túmulo.340
No Império Novo, o modelo personificado no «ávido de coração»
evoluiu para o «homem colérico»:
____________
332. Esta visão é de tal modo arreigada ao espírito sapiencial que até a instrução redigida no Pa-
piro Insinger a veicula (em plena ocupação macedónica): «A riqueza do homem generoso é
mais abundante do que a riqueza do ávido. O ávido traz o conflito ao lar. O ávido destrói o
pudor, a misericórdia e a confiança no coração. O ávido traz a infelicidade à família. O ávido
não dá nada a quem lhe deu». Papiro Insinger, XV: 11-15. Em F. LEXA, Les Enseignements
Moraux, p. 54.
333. Em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 107.
334. Num texto autobiográfico do Império Novo é apresentada uma definição bastante comple-
ta desta atitude: «Eu não afastei o homem do seu ofício, não roubei a ninguém os seus ha-
veres, não me apoderei dos bens de ninguém através de mentiras. Eu abominei o ávido de
coração». Inscrição de uma estátua de Amen-hotep, administrador dos domínios reais no rei-
nado de Amen-hotep III. Versão inglesa em M. LICHTHEIM, Maat in Egyptian Autobio-
graphies, p. 59.
335. Instrução de Ptah-hotep, em N. SHUPAK, Where can wisdom be found?, p. 107.
336. Em Ibidem.
337. Idem, p. 107.
338. Ibidem.
339. Instrução de Ptah-hotep, 91, Ibidem.
340. Instrução de Ptah-hotep, 315, em Ibidem.
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341. A Instrução de Amenemope, Capítulo Nono (XI, 12 – XIII, 9).
342. A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo (XIII, 10 – XIV, 3). Versão inglesa em Idem, p.
154. O texto parece ser uma alusão aos efeitos nefastos da hipocrisia. Para manter as aparên-
cias o homem sofre interiormente. Ver P. VERNUS, Sagesses de l’Égypte Pharaonique, p. 336,
nota 114.
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348. Citando Assmann, Englund refere que, entre hinos religiosos redigidos nos túmulos do Impé-
rio Novo, se registam duas tendências distintas. Uma tendência conservadora, veícula um ma-
terial tradicional e muito difundido na literatura «pedagógica». Outra tendência, inovadora,
apresenta novas ideias e novas formas de as expressar. Em geral, o funcionário ligado às corren-
tes «inovadoras» desempenhava funções sacerdotais mais elevadas. Em Idem, p. 86.
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349. Idem, p. 79.
350. Estas crenças teriam, com certeza, reflexo no comportamento adoptado pelo sacerdote que
assim devia manifestar nos actos da vida corrente o ideal do homem silencioso, de coração ou-
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vinte, e evitar o comportamento típico dos que se deixam governar pelo ventre, ou seja pelos
interesses pessoais e pelos prazeres.
351. E. HORNUNG, Les Dieux d’Égypte, p. 162. Uroboros significa «o que engole a própria cau-
da» e corresponde a um símbolo egípcio designado «O da cauda na boca». Originalmente,
no entanto, a serpente Sedemerá recebia a designação de Mehen. Em Ibidem, nota 133.
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representado sob a forma do deus Ched. Enquanto este deus, cujo nome significa «Salvador»,
começou a ser representado na XVIII dinastia, no reinado de Akhenaton, os cippi de Horpa-
khered só se multiplicaram a partir da Época Baixa. O facto das representações do deus Ched
constituírem o modelo inspirador para as representações patentes nos cippi de Horpakhered é
indiscutível. O deus Ched representa o rei como uma criança, em geral com a trança lateral e
com o uraeus real, montado sobre crocodilos e empunhando animais selvagens nas mãos. O
significado da representação parece reportar-se ao significado que a infância tinha na ideologia
real. A criança real significava, não uma etapa cronológica, mas sim o «nascimento» divino do
rei que ocorrera com a coroação. O deus Ched representava, deste modo, o rei recém-nascido
com todos os poderes divinos de um netjer nefer que permitiam ao faraó estabelecer a ordem
maética e purificar o mundo através de um regresso ao tempo da origem da criação. Era pro-
vavelmente esta associação entre a criança real, símbolo da iniciação real, e a regeneração do
mundo que motivou as propriedades apotropaicas do deus Ched e, mais tarde, de Horpakhe-
red. A substituição do deus Ched por Horpakhered, generalizada a partir da Época Baixa, é
mais um sintoma do crescimento da piedade pessoal. Ver Y. KOENIG, Magie et Magiciens dans
l’Égypte Ancienne, pp. 100-109. Numa sociedade em que o rei já não era o modelo da vitória
da luz sobre as trevas, da pureza sobre a corrupção, foi no deus Horpakhered, mais distanciado
da figura real, que se buscou a inspiração para desempenhar a função de cura e de protecção
contra os adversários da luz. O reflexo de uma relação pessoal com o deus na cura é intensi-
ficado nos monumentos em que a estela de Horpakhered é integrada numa estátua mágica que
representa uma grande personalidade, em geral um sacerdote altamente colocado na hierar-
quia, assegurando um papel de intermediário com as forças mágicas que garantem a cura. A
multiplicação dos dispositivos mágicos a partir da Época Baixa reflecte, deste modo, o enfra-
quecimento da coesão social que antes era garantida pelo rei.
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CAPÍTULO V
MORTE E MISTÉRIO
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1. A PREPARAÇÃO DO CADÁVER
Palavras ditas por Nut: Ó soberano, eu dei-te a tua irmã Ísis, que
ela possa velar por ti e dar o teu coração para o teu corpo.377
____________
372. Devido ao seu papel de embalsamador, também Anúbis é envolvido nesta constelação divina.
373. Sobre a função conectiva do coração ver Idem, p. 58.
374. Ver A. BLACKMAN, «The significance of incense and libations in funerary and temple ri-
tual», ZÄS 50 (1912), p. 71.
375. Era a dispersão que caracterizava a morte, por oposição à vida que se caracterizava pela união.
376. Não esqueçamos que, durante a evisceração, o coração era retirado, quase sempre arrastado
pela remoção dos pulmões. Os embalsamadores aproveitavam estes incidentes para resguar-
dar melhor o coração impregnando-o de substâncias que ajudassem à sua preservação. De-
pois de envolvido em faixas de linho, era novamente colocado na caixa torácica. Em S. IK-
RAM e A. DODSON, The Mummy in Ancient Egypt, p. 119.
377. Pir 4, § 3, versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 2.
Também nos textos funerários do Império Médio, a devolução do coração continuou a ser
um gesto habitualmente atribuído às divindades femininas responsáveis pela mumificação,
como Ísis ou Néftis, ou propiciadoras da regeneração do defunto, como Nut: «Ó N. tu és o
primogénito, o grande (...) Tu manifestas-te, ergues-te com Atum nos belos tronos que estão
na cheia. (...) encontrarás os deuses em júbilo, indo ao teu encontro, como para Ré, senhor
dos homens. Nut, a grande, leva-te na sua perfeição, ela encerra-te nos seus braços, as Duas
Senhoras velam por ti como se fosses Hórus, filho de Osíris. Elas estendem para ti os seus bra-
ços e colocam o teu coração no teu corpo.» TdS 765, adaptado da versão francesa em P.
BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 296. As Duas Senhoras costumam ser, em contexto
político, Nekhbet e Uadjet, mas nesta circunstância trata-se de Ísis e Néftis.
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O meu pai fez o seu coração ib. O outro (coração) foi removido
pois opunha-se à sua ascensão ao céu quando ele vagueava nas águas
do Canal Ventoso.378
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Voltou com o fruto que era o próprio coração do irmão mais novo!
Encheu uma taça com água fresca, colocou-o lá dentro, e foi descansar
como era habitual. Quando chegou a noite, (14,1) o coração absorveu a
água e todo o corpo de Bata estremeceu. Começou então a olhar para
o seu irmão mais velho enquanto o seu coração permanecia ainda na
taça. Então Anupu, o seu irmão, tomou a taça com água fresca onde
permanecia o coração do irmão mais novo e deu-lhe a beber.386
____________
o autor o princípio de conectividade manifesta-se claramente nas crenças relacionadas com o
corpo, onde se destaca a função do coração como garante de conectividade. Idem., pp. 52-55.
Veja-se o Epílogo de Brunner Traut em H. SHÄFER, Principles of Egyptian Art, pp. 421-446.
385. Esta representação bem podia ser uma «vinheta» ilustrativa do Conto dos Dois Irmãos onde
num curioso trecho de narrativa mágica, Anupu (ou Anúbis), o irmão mais velho, recupera
o coração perdido de Bata, possibilitando assim o seu renascimento. Também no relicário de
Anúbis de Tutankhamon, o deus embalsamador perfila-se como o restituidor da vida ao de-
funto, gesto simbolicamente ilustrado através da devolução do coração: «Palavras ditas por
Anúbis “Que está no lugar do embalsamamento”: Meu filho, Tutankhamon, trago-te o teu
coração e coloco-o no seu lugar no teu corpo». Versão francesa em J. ASSMANN, Mort et
au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 166.
386. O Conto dos Dois Irmãos.
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____________
387. Com efeito as primeiras múmias eram enfaixadas de forma a preservar a autonomia dos mem-
bros, sinal que a característica configuração mumiforme foi importada de um modelo divino
e não o contrário. Ver IKRAM, DODSON, The Mummy in Ancient Egypt, pp. 156.
388. Uma vez que os membros representam a capacidade para agir, o seu desaparecimento por
baixo das camadas de ligaduras assinala um estado letárgico em que esta capacidade não é
necessária. São, portanto, os deuses que residem no interior da terra, como Osíris, que as
múmias procuram imitar, ocultando os membros do cadáver.
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____________
389. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 80.
390. Para Assmann, a esfera física reúne em torno do corpo outros elementos antropológicos co-
mo o ba e sombra, ao passo que a esfera social reúne-se em torno do nome e do ka. Embo-
ra enfatize mais o papel do coração como garante de conectividade física, dadas as carac-
terísticas desta noção antropológica, parece-nos impossível não reconhecer o papel do cora-
ção como garante da conectividade social. Cf. Idem, p. 74.
391. Tal é o caso da devolução do coração, o qual, no ciclo de Ísis, se traduzia na reanimação do cor-
po de Osíris mas que, nos textos de Hórus, facultava a restituição da memória, o pilar da iden-
tidade: «Louvor a ti, meu pai Osíris! Eis que estou aqui. Eu sou Hórus, o que abriu a boca de
Ptah, o que te glorificou com Tot, aquele que colocou o teu coração ib no teu corpo, para que
tu te lembres o que esqueceste (...), o que te deu as tuas pernas para que possas andar.» TdS 62,
versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 146-147. Versão hieroglífica
em A. DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts, I, p. 269. A memória era fundamental para a so-
brevivência no Além. Para além de ser indispensável para a reconstituição da identidade, sem
ela as fórmulas funerárias permaneceriam inúteis inviabilizando a protecção mágica do defun-
to. É por essa razão que algumas fórmulas foram especialmente concebidas para evitar o esque-
cimento destas fórmulas: «Para se lembrar das fórmulas mágicas. (...) Meu coração ib, ergue-te no
teu lugar, lembra-te do que está em ti, de modo que saia o livro da morada de Ré, que foi selado
na morada de Tot. Eu lembrei-me de todas as fórmulas mágicas que estão no meu corpo.» TdS
657, versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 214. Versão hieroglífica em
A. DE BUCK, The Egyptian Coffin Texts, VI, p. 278.
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Ergue-te Osíris!
Set foi acusado
Ele ouviu a sentença dos deuses,
Pronunciadas por meu pai, o deus.394
____________
392. Em Idem., p. 114.
393. «O inimigo foi colocado às mãos do filho de Ísis, derrubado pela sua própria violência, a in-
felicidade chegou ao que grita, aquele que cometeu a iniquidade espera o castigo, o filho de
Ísis vingou o seu pai», Hino a Osíris, estela C 286 do Museu do Louvre, Ibid.
394. Fórmula 477 dos «Textos das Pirâmides». Versão francesa em Idem, p. 118.
395. O gesto de arrancar corações constitui certamente a evocação de rituais propiciatórios de
envolviam o sacrifício de vítimas que encarnavam os inimigos do rei. Rituais deste tipo eram
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com Osíris e assinala a sua divinização. Uma vez justificado, o defunto, in-
vestido com os atributos da realeza, tinha que evidenciar o seu domínio
sobre as forças do caos, aniquilando-as. A remoção dos corações dos ini-
migos era, deste modo, um veículo para afirmar a ordem cósmica.402
Na ideologia real, o coração dos inimigos era tido como o ponto ne-
vrálgico a partir do qual os poderes maléficos de Set se manifestavam e
ameaçavam o cosmos. Em certas cenas patentes nos túmulos do Vale dos
Reis os inimigos da ordem cósmica são representados com o coração ex-
tirpado, mantido fora do cadáver.403 Trata-se da tradução visual e literal do
acto de «arrancar o coração», tão mencionado nos textos funerários, que
garantiam a morte definitiva. Esta calamidade, que era evitada a todo o
custo pelas fórmulas mágicas que protegiam o defunto, era aplicada aos
inimigos para os remeter ao desaparecimento total. Noutras representa-
ções, os inimigos são abatidos e desmembrados, enquanto as suas cabeças
e corações são incineradas.404
____________
402. A remoção do coração, empreendida no quadro do abate das forças setianas, justificava-se pela
função do coração enquanto garante de conectividade. O ciclo de Osíris mostrava que a mor-
te podia ser superada através da restituição das funções conectivas do coração as quais concor-
riam para a reanimação do corpo e para a recuperação da identidade do defunto. No abate
das forças setianas não bastava, portanto, aniquilar a vítima. Arrancar-lhe o coração afastava
a possibilidade de uma eventual restituição do princípio de conectividade. Deste modo, a res-
surreição para os inimigos estava vedada. Na fórmula 48 dos «Textos dos Sarcófagos», o de-
funto «esmaga corações», um atributo muito conotado com a função guerreira da monarquia:
«Louvor a ti, Osíris N.», assim diz Ísis, senhora da necrópole, diante do pavilhão divino, ela
pronuncia o teu nome na barca, no dia em que as tuas virtudes são examinadas, atravessas o
céu na qualidade do «que está no seu trono». Esmagas o coração dos que se opõem a ti. Tu
tens o teu coração, ele não foi levado pelos que se revoltaram. Tu desces para te purificar no
canavial. Os deuses Heh suportam-te nos seus braços. As estrelas imperecíveis temem-te e os
que estão nos seus tronos vêm a ti. Ré dá-te a saudação matinal quando desponta no horizonte
oriental e os habitantes de Ra-setau aclamam-te na dupla porta». TdS 48, versão francesa em
P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, pp. 190-191. Nos «Textos das Pirâmides», também
a expressão «clamar pelos corações» exprimia o poder do rei para dispor da vida: «Ó Tot, vai
e proclama aos deuses ocidentais e aos seus espíritos: «Este rei vem, na verdade, é um espírito
imperecível, adornado com Anúbis no pescoço, que preside sobre a Montanha Ocidental. Ele
clama os corações, ele tem poder sobre os corações. Quem ele desejar que viva, viverá. Quem
ele desejar que morra, morrerá». Pir 217, § 152-157, adaptado da versão inglesa proposta em
R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, pp. 44-45. Ra-setau era o nome da ne-
crópole de Mênfis, mas constituía igualmente uma designação simbólica da necrópole. Os ha-
bitantes de Ra-setau eram, deste modo, os defuntos.
403. Ver a imagem de Khafré, na pág. 109.
404. Ver a imagem superior da pág. 114. O seguinte texto acompanha a representação: «O terror
está sob esta forma: as mãos emergem do Lugar da Destruição. Elas erguem as cabeças cor-
tadas. (…) As cabeças dos inimigos são confiadas (…) Iaruti, o Senhor das Chamas, ele semeia
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o fogo neste lugar de terror». Adaptado da versão inglesa proposta por H. FRANKFORT,
The Cenotaph of Seti I, p. 53.
405. Ver R. FAULKNER, A Concise Dictionnary of Middle Egyptian, p. 241. Sobre a expressão
ver Apêndice XI, p. cxxiv.
406. L. SPELLEERS, «La résurrection et la toilette du mort selon les Textes des Pyramides», RdE
3 (1938), p. 45.
407. SOUSA, «The cardiac vignettes of the Book of the Dead (Late Period)», BAEDE 17 (2008),
Madrid, pp. 39-53
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faz uso do seu coração. A mim pertencem-me o meu ba, a mim per-
tencem-me os bau. Eu sou alguém que ejacula o sémen para criar (a
vida). A minha ejaculação é a ejaculação enquanto (deus). Todo o ho-
mem que conhecer esta fórmula copulará sobre a terra noite e dia. O
coração da mulher ser-lhe-á submisso cada vez que ele copular. Pala-
vras para dizer sobre uma pedra de cornalina e de ametista, colocada
no braço direito do bem-aventurado.408
Fórmula para sair para o dia. Palavras ditas por N.: «As portas do
céu abrem-se para mim, as portas da terra abrem-se para mim; os fer-
rolhos de Geb abrem-se para mim, a abóbada celeste abre-se para mim
(...) Eu tenho de novo o uso do meu coração ib, o uso do meu coração
hati, o uso dos meus braços, o uso das minhas pernas, o uso da minha
boca, o uso do conjunto dos meus membros; eu posso dispor das ofe-
rendas funerárias, dispor da água, dispor da brisa, dispor da cheia, dis-
por do rio, dispor das margens. (...) Eu ergo-me sobre o meu lado es-
querdo e coloco-me sobre o meu lado direito. Eu ergo-me sobre o meu
lado direito e coloco-me sobre o meu lado esquerdo. Eu sento-me, le-
vanto-me e sacudo a poeira. A minha língua e a minha boca são para
mim guias úteis.410
____________
408. TdS 576. A designação de Retalhado é aqui dada a Osíris, o qual, segundo o mito, teria sido
cortado em várias partes por Set.
409. «Tens o teu coração, Osíris, tens as tuas pernas, Osíris, tens os teus braços, Osíris. Por isso,
também o meu coração é meu, as minhas pernas são minhas, os meus braços são meus. Uma
escada para o céu é erguida para mim para que possa ascender para o céu. Eu subo através
do fumo do incenso. Eu voo como uma ave e pouso como um escaravelho, eu voo como
uma ave e pouso como um escaravelho no trono vazio que está na tua barca, ó Ré.» Pir 267,
§ 364-366, versão inglesa em R. FAULKNER, The Ancient Egyptian Pyramid Texts, p. 76.
410. Capítulo 68 do «Livro dos Mortos». A expressão «erguer sobre o lado direito e pôr-se sobre o
lado esquerdo» é alusiva ao percurso do sol entre os dois horizontes do céu.
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4. O PÉRIPLO SOLAR
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411. Ver A. LLOYD, «Psychology and society in the Ancient Egyptian cult of the dead», p. 126.
412. Especialmente no Império Antigo a lustração solar simbolizava o nascimento do Sol a par-
tir das águas primordiais. A imersão na água proporcionava o renascimento do rei identifica-
do com o Sol. Através desta purificação, que equivalia à criação do mundo, o rei assumia en-
tão um estado de akh. Em C. SPIESER, «L’eau et la regeneration des morts d´après les re-
présentations des tombes thébaines du Nouvel Empire», DdÉ 72 (1997), p. 221.
413. Era nesta água primordial que se regenerava o Sol matinal antes de ascender novamente ao céu.
Em A. BLACKMAN, «Sacramental ideas and usages in ancient Egypt», RT 39 (1920), p. 47.
414. J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 524.
415. Abluções com este teor aparentemente também podiam figurar nos rituais relacionados com
a justificação do defunto, como o ritual da abertura da boca, onde a afirmação do estatuto
real do defunto também era uma preocupação central. Ver «Ritual de abertura da boca» (§
II), Idem., pp. 108-109.
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416. Estátuas mumiformes podiam adornar os espaços inter-colunares das paredes. A introdução
destas alterações na arquitectura funerária traduz a importância crescente do culto solar na
religião funerária. Na porta do túmulo é muito frequente a representação da saída para o dia
no batente sul, ao nascer do Sol, e o regresso ao túmulo, ao poente, representado no batente
norte. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 470.
417. Idem, p. 469.
418. Purificações deste tipo foram representadas, por exemplo, no túmulo de Sennefer (TT 96) e
no túmulo de Siesi em Abido (Museu Egípcio do Cairo: SR 13459), onde parecem estar re-
lacionadas com o ritual da abertura da boca. Nestas representações o amuleto do coração foi
colocado sobre a estátua do ka e não sobre o defunto.
419. Ver A. GARDINER, «The Baptism of Pharaoh», JEA 36 (1950), pp. 3-12.
420. Como acontece na lustração solar de Sennefer (TT 96).
421. É o caso do túmulo de Sennefer (TT 96) e de Ramés (TT 55), ambos detentores do cargo de
governador de Tebas, nos reinados de Amen-hotep II e Amen-hotep III, respectivamente.
Ainda da XVIII dinastia figura a cerimónia de purificação do túmulo de Duauneheh (TT
125). Do período ramséssida, perfila-se ainda a cena de purificação representada no túmulo
de Userhat (TT 51).
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422. É o que sucede, no período ramséssida, no túmulo de Neferabu (TT 5) e no relevo de Me-
renptah, talhado no Osireion de Abido.
423. A. BLACKMAN, «Sacramental ideas and usages in Ancient Egypt», RT 39 (1920), pp. 45-48.
424. Embora a saída para o dia em rigor termine no capítulo 121, os textos desta secção parecem
convergir para o capítulo 125. O próprio capítulo 64, que apresenta um resumo desta sec-
ção, também estende a sua atenção sobre a assembleia presidida por Osíris na sala das Duas
Maet. Também Barguet inclui nesta secção o tribunal divino relegando para a IV parte a via-
gem no mundo inferior propriamente dita.
425. O texto era encarado, já na Antiguidade, como um resumo de toda a composição, condensado
as principais dimensões da espiritualidade egípcia sobre o Além, razão pela qual, no dizer de
Barguet, também constitui uma das composições mais difíceis de traduzir de todo o livro.
426. Capítulo 64 do «Livro dos Mortos».
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427. Capítulo 69 do «Livro dos Mortos».
428. Estas fórmulas apresentam uma sequência fixa de metamorfoses cuja unidade lhe confere o
carácter de um autêntico «Livro das Transformações», à semelhança do «Livro das Transfor-
mações de Ré», que descreve 24 manifestações do deus ao longo das horas do dia.
429. O defunto transformava-se em falcão de ouro (capítulo 77), em falcão divino (capítulo 78), em Atum
(capítulo 79), num deus cintilante (capítulo 80), num lótus divino (capítulo 81 A e B), em Ptah (capítulo
82), em ave benu (capítulo 83 e 84), num ba vivo (capítulo 85), numa andorinha (capítulo 86), em ser-
pente Sata (capítulo 87) e finalmente num crocodilo (capítulo 88).
430. Uma das suas principais aspirações era, com efeito, é a de se tornar um ba vivo, ou seja, uma
manifestação plena de poder divino. Era, com efeito, o ba a noção que expressava o poder di-
vino do defunto, permitindo ao defunto circular livremente entre os mundos. No capítulo 85
do «Livro dos Mortos» o defunto identifica-se com o Sol, com o Nun e com o ba do senhor
universal. A transformação em ba vivo procura garantir o regresso ao momento cosmogónico
onde pela «primeira vez» o Sol emergiu do oceano primordial. Esta energia cósmica primitiva,
que assegura desde então a marcha do mundo, faz sair o Sol renascido quotidianamente todas
as manhãs.
431. Seguindo uma concepção característica do ritual divino, o culto exercia o seu efeito trans-
formador sobre o defunto que então se transformava em Atum e, presidindo à criação, se
alimentava das oferendas alimentares. «Eu sou Atum) e reino sobre o meu trono que está no
horizonte, recebo as oferendas que são depostas nos meus altares, bebo canecas de cerveja ao
anoitecer, na minha dignidade de senhor de tudo. Eu sou exaltado como deus sagrado, se-
nhor do grande palácio, que faz rejubilar os deuses quando sai do seio do céu inferior, quan-
do a sua mãe Nut o dá à luz em cada dia». Capítulo 79 do «Livro dos Mortos».
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436. É frequente esta representação do Sol entre os braços dos deuses celestes, como Nut ou Nun.
Para o significado iconográfico do gesto ver R. WILKINSON, Reading Egyptian Art, p. 51.
437. Capítulo 108 do «Livro dos Mortos», versão francesa em P. BARGUET, Le Livre des Morts,
p. 142.
438. Ibidem.
439. No «Livro dos Mortos» também esta região também se podia denominar «Campos de Ho-
tep», ou campos da Satisfação. No entanto, para manter a uniformidade do nosso texto, e
dado que se reportam à mesma realidade mítica, adoptamos ao longo de todo o nosso estudo
a designação mais conhecida de Campos de Iaru.
440. Em certas fórmulas, este lugar é descrito como uma cidade que liberta o defunto da morte:
«Ele olha, o que aproxima desta cidade (...) Quem aí chega não perece (lit.: «não toca o
chão»). Quem aí entra torna-se um deus. Olha, através dessa visão, Khentiamenti, tornas-te
um deus no seu centro.» Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 239.
O lugar de vida eterna também podia ser descrito como uma margem situada do outro lado
de uma grande extensão de água que o defunto atravessava sob a forma de uma ave.
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441. Capítulo 110 do «Livro dos Mortos».
442. O mundo terreno era, obviamente, a inspiração para a descrição dos campos míticos do
Além. Diodoro da Sicília referia a existência do lago de Akherusia uma região da necrópole
menfita onde os mortos descansavam. Também fontes egípcias mencionam uma zona de
cursos de água e jardins chamada Sekhet Iaru (Campos de Iaru), o lugar onde os mortos go-
zavam de felicidade, de paz e de abundância eterna. Neste local da região menfita, a permea-
bilidade entre o Além e o mundo dos vivos levou a que o Egipto se tornasse cada vez mais
um enclave do Além no mundo terreno, um local onde o divino se manifestava com parti-
cular intensidade. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l´Égypte ancienne, p. 356. A via-
gem aos Campos de Iaru pode também constituir o modelo mítico que inspirou a criação
de jardins funerários ligados ao túmulo. A visita ao jardim desempenhava um papel mais im-
portante no culto funerário. Este jardim, identificando-se com os Campos de Iaru, onde o
defunto regenerava as suas forças e se alimentava, era o palco de rituais onde a barca neche-
met evocava a peregrinação a Abido. O jardim era uma fonte de alimentos e de frescura, o
palco de celebrações e, deste modo, um lugar sagrado. O sicómoro do jardim funerário tor-
nava-se uma manifestação da deusa Nut. Em J. Idem., p. 342.
443. Nestas vinhetas, sobretudo nas recensões tardias do «Livro dos Mortos», o defunto oferece
«alegria» ao deus Ptah. Esta oferenda estava, sem dúvida relacionada com a possibilidade de
usufruir das oferendas alimentares proporcionadas pelo deus nos Campos de Iaru.
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5. O JULGAMENTO DO DEFUNTO
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444. A entrada em Ra-setau introduzia o defunto na última etapa espacial: o domínio de Osíris.
Para alguns autores, a viagem pelo Além pode descrever o percurso no interior de um tem-
plo. Nesta perspectiva as alusões ao salão de Osíris, aos pórticos e às colinas descrevem os
elementos deste templo. Na sua análise do «Livro dos Dois Caminhos», também Barguet
chamou a atenção para o facto do percurso do defunto no Além ser descrito como se tratasse
da entrada num templo. O mais interessante é que Ra-setau seria, nesta perspectiva, a evo-
cação da entrada deste templo, o local onde se efectuavam as purificações pela água. Neste
local, sob a protecção de Anúbis, seriam feitos rituais propiciatórios e purificadores para per-
mitir a passagem às zonas mais secretas do templo. Ver P. BARGUET, Aspects de la pensée re-
ligieuse de l’Égypte ancienne, pp. 22-24.
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445. É também essa a interpretação de A. NIWINSKY. Ver The Second Find of Deir el-Bahari
(Coffins), vol. II, p. 100.
446. A transição entre a representação do defunto representado na balança e a criança é tecida
através de representações intermédias onde o defunto é primeiramente representado em ati-
tude mumiforme. Gradualmente a silhueta do defunto vai sendo transformada na figura da
criança acocorada.
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Além conduz ao seu renascimento com uma natureza divina e «real», do-
tada de imortalidade. Uma vez purificado pela pesagem do coração, o de-
funto podia então ser admitido à presença de Osíris.
____________
447. Nesta perspectiva, o «Livro dos Mortos» podia servir de guia para a moralização da conduta,
completando no plano espiritual o investimento material despendido na preparação do tú-
mulo. O seu objectivo não seria apenas o de contornar magicamente o julgamento dos mor-
tos, como em geral se admite. Embora seja certa a natureza mágica do capítulo 125, o texto
não traduz a substituição da moral pela magia, mas sim o seu reforço. Os preceitos da sala
das Duas Maet não influenciavam apenas a vida do Além, mas também a conduta do defun-
to sobre a terra. A expectativa de um julgamento no Além estendia a sua sombra sobre a vida
terrena, do mesmo modo como acontecia com a tarefa de erguer um túmulo. Os investimen-
tos morais na vida do Além não seriam com certeza menores do que os investimentos mate-
riais. Em Idem, p. 133.
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Representação da balança sagrada com símbolos cosmogónicos: o casal primordial (Nut e Geb) e o ganso primordial de
Amon. Papiro funerário, XXI dinastia.
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448. Autobiografia de Baki, Em Idem, p. 134.
449. J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 135.
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____________
450. Idem, p. 135.
451. Idem., p. 136.
452. Ibidem.
453. J. YOYOTTE, «Le jugement des morts dans l’Égypte ancienne», p. 66.
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454. J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 196.
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Louvor a ti, leão, senhor poderoso (...) Escuta a minha voz: Colo-
caste a chama sob a cabeça de Ré e eis que ele se ergue na divina Duat
de Heliópolis. Fizeste que ele se tornasse semelhante a quem está sobre
a terra, ele é o teu ba, não o esqueças. Aproxima-te do Osíris N.! Fazei
nascer uma chama sob a cabeça de N.! Ele é o ba do grande corpo que
repousa em Heliópolis. Atum é o seu nome.
____________
460. Capítulo 182 do «Livro dos Mortos».
461. J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 286.
462. Esta preocupação levou à criação dos hipocéfalos, discos circulares profusamente decorados
com símbolos alusivos a esta transformação, que eram colocados debaixo do pescoço ou da
cabeça do defunto. Estes discos apresentam, de um modo geral, três registos. No registo cen-
tral figura, em geral, uma divindade com quatro cabeças de carneiro, o deus invocado no tex-
to pela vaca sagrada, Ahet. No registo superior figuram as barcas solares com diversas repre-
sentações do deus Sol. No registo inferior é representada a vaca Ahet, os quatro filhos de Hó-
rus e outras divindades funerárias.
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463. Texto de Nut. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte Ancienne, p. 253.
464. O acolhimento maternal de Nut está bem exemplificado nas pinturas internas dos sarcófagos
onde a imagem da deusa celestial está de braços abertos, pronta para receber o seu filho Osí-
ris (o defunto) no seu seio. Um bom paradigma pode ver-se na colecção egípcia do Museu
Nacional de Arqueologia (sarcófago de Pabasa), da Época Greco-Romana.
465. O significado preciso do termo «justificação» será esclarecido posteriormente numa outra
alínea deste trabalho. A proclamação como um justo (lit. «justo de voz», maé kheru) era o
culminar do percurso no Além e permitia ao defunto a afirmação do seu estatuto divino.
466. Em J. ASSMANN, Mort et au-delà dans l’Égypte ancienne, p. 267. Estas crenças reflectiam-
-se naturalmente no modo como os vivos encaravam o aproximar da morte. Ao chegar a ve-
lhice, o homem via na morte a possibilidade de rejuvenescer: «Ah, que eu possa rejuvenescer,
pois a velhice chegou, a fragilidade venceu-me, os meus olhos estão pesados e os meus braços
inertes, as minhas pernas deixaram de seguir o meu coração cansado. Estou prestes a passar.
Que eu seja levado à cidade da eternidade, para que possa seguir a senhora do universo. En-
tão ela dirá as palavras benéficas para os seus filhos e percorrerá a eternidade debaixo de mim».
Em Aventura de Sinuhe. Versão francesa em Idem, p. 281.
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467. TdS 444, Versão francesa em P. BARGUET, Les Textes des Sarcophages, p. 335.
468. «Eu purifico-te com a vida e o poder para que possas ter o vigor da juventude como o teu
pai e realizar a festa Sed como Atum, aparecendo glorioso como senhor da alegria», versão
francesa em J. LECLANT, «Les rites de purification dans le cérémonial pharaonique du
couronnement», p. 49.
469. A «dilatação de coração» mostrava a profunda ligação que unia todas as criaturas ao Sol. No
plano cósmico, a alegria irradiava do Sol, mas em cada um dos planos da existência humana
havia um «Sol» de onde este poder se libertava. No plano político este Sol era o rei. À se-
melhança do Sol, cada vez que aparecia, o rei espalhava a alegria entre os homens. No plano
individual, o Sol era o próprio coração que, através da sua força e da sua «grandeza», mani-
festava a imortalidade conquistada pelo defunto.
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Estátua de Ramsés II, templo de Luxor, XIX dinastia. As grandes estátuas reais
posicionadas diante dos templos assinalavam os poderes universais do faraó.
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CONCLUSÃO
OS PILARES DA INICIAÇÃO:
MENTE, MITO E MISTÉRIO
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do divino. Este novo poder conectivo (que se soma ao poder conectivo so-
bre o corpo e sobre o todo social, que o neófito já possuía) simboliza-se
agora na imagem da criança solar gerada por Nut, imagem essa que tem o
poder de unir os ciclos mitológicos de Ré e de Osíris. A criança sagrada tra-
duz o poder conectivo do coração iluminado, a abertura ao cosmos, a liga-
ção com o tempo primordial. Era esta a verdadeira e última invulnerabili-
dade da iniciação dada por Ísis a Hórus: tratava-se de adquirir um coração
solar capaz de irradiar o seu poder vital e repelir as trevas. Era a imagem do
«coração dilatado» unido com a criação.
A nova consciência iluminada assinalava uma nova vida transformada
através da identificação da consciência do homem com a consciência cós-
mica simbolizada no Sol. O coração do neófito era agora uma manifesta-
ção de Hórus. É por essa razão que a iniciação possuiu sempre conotações
reais, quer estas fossem efectivas (como no caso da iniciação real), quer fos-
sem simbólicas (no caso da iniciação sacerdotal ou da iniciação pessoal).
Tal como no mito da iniciação de Hórus, no seu percurso de trans-
formação o neófito não caminhava sozinho. Tanto nas versões funerárias,
como nas versões rituais, é fulcral o papel desempenhado pela deusa do ca-
minho, identificada com os portais do templo e da Duat. Era esta deusa,
identificada com Nut ou com Ísis, que garantia a transformação do neófito
e a sua gestação celeste. Confiando o seu coração puro à deusa da vida, um
pouco à semelhança de Bata que depositara o seu coração na árvore sagrada,
o neófito só tinha que criar as condições propícias para que a deusa trans-
formasse o seu coração «mortal» num coração de luz, numa centelha divina
que irradiava o poder do Sol. Para isso, no entanto, o neófito tinha que
cumprir uma observância rigorosa aos princípios da maet de modo a ga-
rantir a sua pureza. Nestas condições, o saber sagrado fecundava o coração
confiado à deusa mãe que então o dava à luz, iluminado e transformado.
Era esta centelha divina que, em última análise, assegurava a sua pró-
pria imortalidade. Primeiramente aplicado ao rei, ao longo do tempo esta
noção da iniciação foi sendo progressivamente «demotizada» até atingir a
versão helenizada descrita pelos autores clássicos.
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Last but not the least, por detrás do percurso de iniciação adivinha-se
a presença tutelar e protectora de Ísis, a verdadeira responsável pela ini-cia-
ção de Hórus. É célebre a lenda em que, ciosa de obter o poder mágico
encerrado no nome secreto de Ré, a deusa não hesita em armar uma cilada
ao deus solar para insidiosamente lhe arrancar à força esse último segredo
bem guardado. Sob estes traços quase caricaturais, a lenda é um testemu-
nho importante acerca do poder mágico de Ísis e do seu amplo conhe-
cimento dos mistérios cósmicos. É também a silhueta de Ísis que confere
unidade ao caminho de iniciação entre o mundo dos vivos e o mundo dos
mortos. Se a deusa tutela o caminho de iniciação que Hórus traça no
mundo dos vivos, era também ela que, com a sua magia, criava a mortalha
de Osíris rodeando-o com o halo de mistério e santidade com o qual re-
novava o mundo. Ela personificava em suma, a morte que tudo envolve
no seu abraço. Podia-se aí encontrar a segurança do repouso eterno, como
Osíris, ou dele emergir para um novo nascimento à semelhança de Hórus.
Era a deusa afinal, a encarnação última do mistério e do sagrado, em
suma, a verdadeira guia que orientava o neófito para a realidade plena,
pura e intacta do tempo primordial da Origem.
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APÊNDICES
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A Instrução de Amenemope
____________
482. A Instrução de Amenemope, Prólogo (I, 1 – III, 7). Império Novo, Adaptado da versão inglesa
em M. LICHTHEIM, AEL, I, p. 148.
483. A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo (XIII, 10 – XIV, 3). Adaptado da versão inglesa em
Idem, p. 154. Também consultada a versão de P. VERNUS, Sagesses de l’Égypte Pharaonique,
p. 336, nota 114.
484. A Instrução de Amenemope, Capítulo Décimo Primeiro (XIV, 5 - 12). Adaptado da versão in-
glesa em M. LICHTHEIM, AEL, I, p. 155. Também consultada versão de P. VERNUS, Sa-
gesses de l’Égypte Pharaonique, p. 299.
485. A Instrução de Amenemope M. LICHTHEIM.
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A «Canção de Antef»
____________
488. Papiro Chester Beatty IV, Adaptado da versão francesa proposta por P. VERNUS, Sagesses de
l’Égypte pharaonique, pp. 275-276.
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Eu fiz este (monumento) com um coração amante para o meu pai Amon
Iniciada nos segredos da origem,
Inteirada do seu poder benéfico
Nada esqueci do que ele ordenou
A minha majestade conhece o seu poder divino
Eu agi sob o seu comando
Foi ele que me conduziu (...)
Foi ele quem me deu orientações
Eu não dormi por causa do seu templo,
Nem me afastei do que ele comandou
O meu coração era Sia diante do meu pai,
Eu entrei nos planos do seu coração
Eu não voltei as costas à cidade do Senhor de tudo (...)
Eu declaro diante do povo que virá no futuro
Que observará o monumento que eu fiz para o meu pai, (...)
Foi quando me estabeleci no palácio e
Pensei no meu criador
Que o meu coração me levou a fazer para ele
Dois obeliscos de electrum (...)
Agora o meu coração agita-se
Pensando o que dirão as pessoas,
Os que verão o meu monumento após muitos anos (...)490
____________
489. A canção de Antef. Adapatado a partir da tradução de F. DAUMAS, La Civilization de
l’Égypte Pharaonique, pp. 404-405 e de H. BRUNNER, «Das Herz im ägyptischen Glau-
ben», Das hörende Herz. Kleine Schriften zur religions und Geitesgeschichte Ägyptens, Friburgo,
1988, pp.28-32.
490. Inscrição de Hatchepsut, obelisco norte de Karnak, em M. LICHTHEIM, AEL, II, p. 27.
A versão portuguesa é baseada na tradução inglesa.
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Hino a Ré-Atum-Horakhti
Louvor a ti!
Como és esplêndido e perfeito, Atum-Horakhti!
Quando apareces em glória no horizonte de céu
Louvores soltam-se da boca de todos os homens!
Tu és belo e jovem como o disco solar
Trazido pelos braços da tua mãe, Hathor,
Apareces glorioso, em todos os lugares
De coração alegre, eternamente! (...)
As Duas Terras voltam-se para ti,
Ó deus primordial, guardião do mistério da perenidade
Príncipe dos limites da eternidade.492
Hino a Ré-Horakhti
____________
491. Poema de Ramsés II, Idem,pp. 63-66.
492. Túmulo menfita de Horemheb, XVIII dinastia. Adaptado a partir da versão francesa em A.
BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l’Égypte ancienne, p. 124.
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Hino a Amon
____________
493. Papiro 3049 do Museu Egípcio de Berlim. Reinado de Ramsés IX. Idem, pp. 270-278.
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Hino a Amon
____________
494. Reinado de Akhenaton. Versão portuguesa baseada na tradução inglesa em J. ASSMANN,
The Search for God, p. 223.
495. Mammisi de Nectanebo, templo de Hathor em Dendera. Adaptado a partir da versão fran-
cesa em A. BARUCQ e F. DAUMAS, Hymnes et priéres de l’Égypte ancienne, p. 342.
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Oração a Amon
Oração a Min
Eu chego e venero-te.
É uma alegria quando te vejo.
Como é bom ver-te!
Como és belo, tu que estás entre a Enéade!
Tu atendes, pacífico, ao chamamento, senhor.
Eu sou um servo que entra no teu templo,
Que faz o bem no interior da tua morada, todos os dias,
Que se ocupa do melhor para o teu santuário.
Que o teu rosto perfeito seja gracioso para mim,
Pois sou perfeito na tua morada.
Prolonga o meu tempo de vida na doçura do coração.498
____________
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Oração a Min
Hino a Min
____________
499. Período ptolemaico. Idem, p. 376.
500. Período ptolemaico. Idem, p. 380.
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Diante da sala. Fórmula para entrar na sala das Duas Maet e adorar
Osíris que preside ao Ocidente. Palavras ditas por Osíris N.: «Eu vim aqui
para ver a tua perfeição, as minhas mãos glorificam o teu nome verda-
deiro. Eu cheguei aqui quando o abeto ainda não existia, a acácia ainda
não tinha sido feita, nem nenhum soalho de tamaris havia ainda sido con-
feccionado. Se eu entro no lugar secreto eu disputar-me-ei com Set, serei
amigável com aquele que virá o meu encontro e que esconde o seu rosto,
caído por causa das coisas secretas.» Ele entra na morada de Osíris e vê os
mistérios que aí se encontram; a assembleia divina dos pórticos é consti-
tuída por bem-aventurados. Palavras ditas por Anúbis ao seu vizinho: «A
voz ressoa de um homem chegado ao Egipto. Ele conhece os nossos cami-
nhos e as nossas cidades; e regozijo-me pois eu sinto que o odor é o de um
de vós. Ele diz-me: «Eu sou Osíris N., um bem-aventurado. Eu vim aqui
para ver os grandes deuses, pois eu vivo dos alimentos que estão nos seus
kau. Eu estava junto de Banebded e ele permitiu que eu saísse sob a forma
de ave benu segundo a minha palavra. Eu estava neste rio e a minha ofe-
renda era o incenso, o meu guia era a acácia das crianças. Eu estava em
Elefantina, no templo de Satet e naveguei na barca dos inimigos. Eu atra-
vessei o lago na barca nechemet e vi os dignitários de Kemuer. Eu estava
em Busíris, foi feito silêncio para mim e consegui que o deus fizesse uso
das suas pernas. Eu estava no templo daquele que estava sobre a montanha
e vi o superior do templo. Entrei no templo de Osíris e levei os véus da-
quele que aí se encontrava. Entrei em Ra-setau, vi o mistério daquele que
aí se encontrava e escondi aquele que encontrei decomposto. Fui a Naref
e vesti aquele que se encontrava nu e dei mirra às mulheres no lago dos
homens. Eu digo: que a pesagem tenha lugar no meio de nós».
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ter contigo, ó, meu senhor tendo sido trazido, para ver a tua perfeição.
Eu conheço o nome dos quarenta e dois deuses que estão contigo na sala
das Duas Maet, que vivem da vigilância dos pecados e bebem do seu san
gue no dia da avaliação das virtudes diante de Uennefer. Vede: «Aquele
que tem duas filhas, aquele das Duas Meret, o senhor das Duas Maet» é
o teu nome. Eis que eu vim para ti e trouxe-te o que é justo e expulsei
para ti a iniquidade.
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Louvor a vós, deuses que estão nesta sala das Duas Maet! Eu conhe-
ço-vos, conheço os vossos nomes. Não sucumbirei aos vossos golpes, não
dareis de mim uma má informação ao deus que preside à vossa assem-
bleia. Não será por vossa causa que o meu processo será apresentado ao
deus. Direis, diante do Senhor do Universo, o que é justo a meu respei-
to, pois eu pratiquei a equidade no Egipto. Não blasfemei deus, nem o
meu processo foi apresentado ao rei.
Louvor a vós, que estais na sala das Duas Maet, vós que estais isentos
da mentira, que viveis da equidade que vos alimentais do que é justo
diante de Hórus que está no seu disco.
Salvai-me de Baba, que vive das entranhas dos grandes, neste dia do
desmembramento dos pecados! Eis que eu cheguei junto de vós, sem pe-
cados, sem delitos, sem maldade, sem acusador, sem alguém que eu tenha
maltratado. Eu vivo do que é justo, alimento-me do que é justo. Eu faço
o que os homens falam e o que alegra os deuses. Eu satisfaço o deus com
o que ele ama: eu dou pão ao que está com fome e água ao que está per-
turbado, roupas ao que estava nú, uma barca ao que não a tinha e faço o
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«Fazei-o vir!», dizem eles a meu respeito. «Quem és tu?», dizem eles, «Qual é o teu
nome?», dizem eles.
«Eu sou o rebento inferior do papiro, “Aquele que está na sua moringa” é o meu
nome»
«Por onde passaste?», dizem-me eles.
«Passei pela cidade setentrional do moringa»
«O que aí viste?»
«A Perna e a Coxa»
«O que lhes disseste?»
«Eu vi o clamor no país do Fenícios»
«O que eles te deram?»
«Uma tocha inflamada e uma coluna de faiança»
«Que fizeste?»
«Coloquei-os no ataúde no bordo do lago Maet, no momento da refeição da
noite».
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«Não te deixarei entrar por mim, diz o frontão da porta, se não conheceres o meu
nome».
«Peso de exactidão é o teu nome».
«Não te deixarei entrar por mim, diz o lado direito desta porta, se não disseres o
meu nome»
«Tabuleiro para pesar a equidade» é o teu nome.
«Não te deixarei entrar por mim, diz o lado esquerdo desta porta, se não disseres
o meu nome»
«Tabuleiro do vinho, é o teu nome.
«Não te deixarei entrar por mim, diz o batente desta porta, se não disseres o meu
nome»
«Boi de Geb é o teu nome»
«Não te deixarei entrar por mim, diz a fechadura desta porta, se não disseres o meu
nome»
«“Dedo da tua mãe” é o teu nome»
«Não te deixarei entrar por mim, diz a fechadura desta porta, se não disseres o meu
nome»
«“Olho de Sobek, senhor de Bakhu” é o teu nome»
«Não te deixarei entrar por mim, diz o porteiro desta porta, se não disseres o meu
nome»
«“Peito de Chu, dado como protecção de Osíris”, é o teu nome»
«Não te deixaremos entrar por nós, diz a prateleira do batente desta porta, «se não
disseres o nosso nome»
«“Os jovens uraeus” é o vosso nome»
«Uma vez que nos conheces podes passar através de nós!»
«Não te deixarei caminhar sobre mim, diz o pavimento desta sala das Duas Maet»
«Por que razão? Eu estou puro!»
«Porque tu não conheces o nome das tuas pernas sobre as quais tu caminhas sobre
mim. Diz-me!»
“Produto de Há” é o nome da minha perna direita, “Espeto de Hathor” é o nome
da minha perna esquerda.»
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Agir da seguinte forma na sala das Duas Maet. Dizer esta fórmula em
pureza, purificado, vestido de linho, calçado de sandálias brancas, maqui-
lhado de galena e untado de mirra; oferecer bois, aves, resina de terebinto,
pão, cerveja e legumes. Depois traças este desenho que está nos escritos ri-
tuais no chão puro de um terreno que não foi povoado por porcos nem
cabras. Aquele sobre o qual for recitado este livro será próspero e as suas
crianças serão prósperas, pois está isento de faltas. Ele cumulará o coração
do rei e dos seus cortesãos, terá biscoitos, cântaros, bolos, carne, prove-
niente do altar do grande deus. Não será afastado de nenhuma porta do
Ocidente. Será introduzido com os reis do Alto e do Baixo Egipto e estará
no séquito de Osíris. Isto é verdadeiramente eficaz milhões de vezes.501
____________
501. Capítulo 125, Idem, pp. 157-164.
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ABREVIATURAS UTILIZADAS
OUTRAS ABREVIATURAS:
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CRONOLOGIA
Época Pré-dinástica
c. 5300 – 3000 a.C.
Época Tinita
(I-II dinastias)
c. 3000 – 2686 a.C.
Império Antigo
(III-VIII dinastias)
2686 – 2160 a.C.
Primeiro Período Intermediário
(IX-XI dinastias)
2160 – 2055 a.C.
Império Médio
(XII-XIV dinastias)
2055 – 1650 a.C.
Segundo Período Intermediário
(XV-XVII dinastias)
1650 – 1550 a.C.
Império Novo
(XVIII-XX dinastias)
1550 – 1069 a.C.
Terceiro Período Intermediário
(XXI-XXV dinastias)
1069 – 664 a.C.
Época Baixa
(XXVI-XXXI dinastias)
664 – 332 a.C.
Época Greco-Romana
332 a.C. – 394
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