As Controvérsias de Histórias Cruzadas

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AS CONTROVÉRSIAS DE HISTÓRIAS CRUZADAS

‘Histórias Cruzadas’ é um dos filmes mais adorados da década passada e,


recentemente, completou dez anos desde sua estreia nos cinemas mundiais.
Mais do que isso, a produção veio de um premiado romance de época
assinado por Kathryn Stockett, cuja narrativa é centrada na pequena
cidade de Jackson, Mississippi, nos anos 1960: o longa é focado na jovem
aspirante à jornalista Eugenia, apelidada de Skeeter, que resolve dar voz às
empregadas negras que abandonam suas vidas para criar os filhos da elite
branca; no livro, a narrativa é apresentada através da perspectiva de
Eugenia e das empregadas Aibileen Clark e Minnie Jackson – ambos
ganhando elogios da crítica internacional e levando inúmeras
condecorações para casa.
Entretanto, pouco depois da repopularização da trama, tanto no cenário
literário quanto no cinematográfico, inúmeros historiadores começaram a
notar certos elementos bastante controversos na narrativa arquitetada por
Stockett, indicando que os temas de racismo e segregação presentes nas
obras são nada menos que máscaras teatrais que diminuem a importância
magnânima de um movimento social que perdura até hoje. Mais do que
isso, coloca em voga a fórmula do “branco salvador”, isso é, um
personagem que se apropria inexplicavelmente das dores e das vivências de
uma minoria para ascender ao cargo de herói ou heroína, eventualmente
recebendo crédito por ter “mudado” o cotidiano dessas pessoas.
Se esse artifício criativo é familiar, não se assuste: caso paremos para
pensar na história do entretenimento, é notável como a transição do foco
corrobora para a perpetuação de uma espécie de indulgência tradicionalista
que há muito precisa ser mudado. Vemos isso, por exemplo, em clássicos
como ‘Pocahontas’ até recentes longas-metragens como ‘12 Anos de
Escravidão’ e ‘Estrelas Além do Tempo’: em determinado momento, o
peso dramático e a densa carga dos personagens que fogem do padrão
heteronormativo e caucasiano é diminuída em prol de uma construção
endeusada que vem para acabar com as injustiças – deixando bem claro
que, sem ele, nada poderia ser resolvido e as minorias ainda estariam sob
perigo e maus-tratos.
Em ‘Histórias Cruzadas’, a síndrome do branco salvador é destinada a
Skeeter. Apesar da interpretação incrível de Emma Stone no papel, a
condução da trama é óbvia demais para ser deixada de lado e, no final das
contas, não apresenta nenhuma reflexão palpável o bastante para
aproveitarmos qualquer coisa além do divertimento. Tanto no livro quanto
no filme, Skeeter é a única a se postar contra o tratamento que as
empregadas negras recebem de suas patroas – principalmente quando
percebe a tóxica relação entre Minny (Octavia Spencer) e Hillary (Bryce
Dallas Howard). Decidindo colocar um basta nisso, ela resolve escrever
um compilado de contos que põe a elite local em xeque, permitindo que as
empregadas tenham voz em um território dominado pela segregação.
O próprio romance é condescendente e condenável, à medida que coloca
Aibileen (vivida por Viola Davis na adaptação fílmica) comparando a cor
de sua pele à cor de uma barata – o que levou diversas pessoas a se
questionarem sobre o motivo de tal grotesca descrição. Stockett, sendo uma
mulher branca, tenta infundir temáticas de extrema importância com uma
informalidade desnecessária e uma apropriação que chegou até mesmo a
levar as atrizes do longa a se arrependerem de terem participado.
Davis, em entrevista ao New York Times em 2018, sete anos após o
lançamento de ‘Histórias Cruzadas’, comentou que, se pudesse voltar no
tempo, não teria participado da releitura às telonas – deixando claro que o
problema não era o papel em si, e sim como um drama circundado por
discussões tão significativas conseguiu dar mais foco às vozes brancas do
que às negras. “Sinto que não foram as vozes das empregadas que foram
ouvidas. Eu conheço Aibileen. Eu conheço Minny. Elas são minha avó.
Elas são minha mãe. E eu sei que, se você faz um filme cuja premissa é:
‘quero saber o que significa trabalhar para pessoas brancas e cuidar de
crianças em 1963’, quero ouvir como você se sente sobre isso. E não ouvi
nada disso no filme”, ela comentou. Em outra entrevista, dessa vez à
Vanity Fair, a atriz disse: “Há uma parte de mim que sente que eu traí a
mim mesma e ao meu povo, porque estava em um filme que não estava
pronto para contar toda a verdade”.
Davis não foi a única a expressar sentimentos conflitantes em relação à
história. Howard, que ganhou aclame por sua interpretação como a
antagonista Hillary, postou em sua página do Facebook uma pungente
publicação em que agradecia às amizades que fez durante a produção do
filme, mas deixou claro que, caso as pessoas queiram aprender mais sobre
direitos civis e segregação racial, ele não é a melhor indicação: “‘Histórias
Cruzadas’ é um filme ficcional, contado a partir da perspectiva de uma
personagem branca e que foi criada por artistas predominantemente
brancos. Todos nós conseguimos ir além”. Falando ao USA Today, Darnell
Hunt, diretor do Centro de Estudos Afro-Americanos da UCLA, disse que,
“se eu tivesse que escolher um filme que nos ajuda a compreender onde as
pessoas negras estão hoje e quais os problemas enfrentamos, não seria
esse”.
Como fica bem claro à medida que nos aproximamos do final de ‘Histórias
Cruzadas’, Skeeter é creditada pelo trabalho duro – ora, foi ela quem
pensou em “dar voz” às empregadas, dando origem a um livro best-seller
que dominou as prateleiras das livrarias e expôs os podres da high society
de Jackson. Entretanto, quando paramos para analisar, o resultado não tem
qualquer impacto sobre Aibileen, Minny e as outras empregadas; pelo
contrário, elas permanecem subjugadas da mesma maneira por seus
patrões, enquanto Skeeter consegue um emprego em Nova York,
finalmente mudando sua vida. E o livro, basicamente, se transforma em
uma coleção de tabloides cuja única função social é perpetuar o prazer
culposo de fofocas escandalosas – varrendo para baixo do tapete o que, de
fato, deveria ser o principal.

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