A Doença Infantil Na Historiografia Brasileira
A Doença Infantil Na Historiografia Brasileira
A Doença Infantil Na Historiografia Brasileira
: doença infantil
da historiografia b
rasileira
José Carl
os Sebe B
om Meihy
resumo abstract
Pa l av r a s - c h ave : b r a s i l i a n i s m o;
antibrasilianismo; historiografia; relações
Brasil-Estados Unidos.
“[...] daí o ser olhado de esguelha
[pelos que viam torto
e pensavam com teias de aranhas”
(Monteiro Lobato).
A
o tanger o tema “brasilianismo”, sinuosidades da aludida “montanha russa” que, de
Robert M. Levine, na abertura sobra, deixa quebradiços os trilhos que impedem
dos anos de 1990, prenunciava reflexões remoçadas, oportunas e necessárias.
de maneira arguta “é sempre Lembremos: com insistentes e sutis intermi-
como o Brasil: uma montanha tências, o brasilianismo e os brasilianistas, bem
russa” (Maisonave, 1999). Vi- como o antibrasilianismo emergem na cena na-
rado o século XX, na vigência cional motivando críticas que, juntadas as partes,
da globalização e dos crescen- provocam sanhas que não conseguem esconder a
tes refluxos nacionalistas que perenidade de seu caráter dual, de amor e ódio –
nos assombram; valorizado o muito mais de ódio que de amor, diga-se. Para o
curso de estudos renovados pe- bem ou para o mal, tal inquietude não resolvida
los avanços interdisciplinares impacienta analistas que, Sísifos acadêmicos, fa-
e trocas naturais de fórmulas zem rolar essa pedra temática como imprecação
de conhecimento acadêmico; consideradas as ou castigo alongado. Sem chegar a termo algum,
tortuosas transformações do pensamento crítico impondo perenes recomeços – e muitas vezes
brasileiro, causa espécie saber que ainda repon- constrangimentos transparentes no quase mono-
tam encanecidos desafios atentos à qualificação córdico teor condenatório contido nos argumen-
do brasilianismo como tema, e dos brasilianistas tos –, o que se mantém latente são suspeitas que
como personagens de uma saga historiográfica afloram de porquês confundidos, sintetizados no
algo maldita. Moeda de duas faces, brasilianismo comprometimento de atitudes de ataques e de-
e brasilianistas, de um lado, e antibrasilianismo, fesas, procedimentos muitas vezes disfarçados e
de outro, lastreiam incertezas que põem em ju- expressos em favor da renovação e legitimidade
ízo a função de análises feitas por estrangeiros de nossas ciências humanas (Green, 2014, p. 12).
sobre o Brasil, em particular por pesquisadores É nesse panorama que se realiza o ideário de um
acadêmicos norte-americanos1. Qualquer breve
retrospecto atento àquela produção confirma as
se assumam antibrasilianistas, não há como deixar de
lado essa postura que se enquadra nas molduras de um
1 No espaço deste ensaio, assume-se o brasilianismo defensivo e velado nacionalismo acadêmico.
matizado pela experiência norte-americana, levando-se
em conta o viés da produção de conhecimento segundo
supostos daquela cultura acadêmica e de seu consumo
no campo original de criação. Por óbvio, a recepção no
Brasil é importante, mas deve ser vista como decorrência
historiográfica, não como objetivo. Por “antibrasilianis- JOSÉ CARLOS SEBE BOM MEIHY é professor
mo” entende-se a crítica sistemática em face daquela aposentado do Departamento de História
produção. Ainda que muitos críticos brasileiros não da FFLCH-USP.
nacionalismo acadêmico que não assume publi- sobre a construção dos argumentos bipolares, tor-
camente o significado de seu conteúdo. Tudo é na-se saudável recompor temas centrais – seja de
ensurdecido, tratado como crítica e, de regra, com defesa ou ataque – e estabelecer pontos nodais que
alaridos atribuídos à imprensa (Massi, 1990, p. 30). expliquem o trato dado ao assunto no Brasil2. Isso,
Que fique claro, pois, de saída que falar de bra- na altura dos nossos dias, é fundamental para re-
silianismo e de brasilianistas implica adotar a re- qualificar ideias e assim melhorar a saúde da pen-
lação especular do antibrasilianismo como reflexo. dência que se alastra como vírus azado, progredido
Ainda que o primeiro seja matéria existente sem por gerações que obedecem a propostas de alguns
o segundo, como imagem projetada, desfiguração mestres acadêmicos, matrizes veladas do antibra-
mesmo, o antibrasilianismo não existiria sem a ma- silianismo. Afinal, pergunta-se: desde as primeiras
triz que lhe dá sentido. Mas há ardilosas variações experiências de contatos formais daquela produ-
na captação e aproveitamento dos discursos brasi- ção, o brasilianismo e os brasilianistas represen-
lianistas, e tais rodeios interessam como tópicos tam continuidades? Há rupturas, destaques, balizas
a serem avaliados ao longo dos tempos e dos vie- nessa produção e em suas reações? E as formas de
ses historiográficos brasileiros. De maneira clara, recepção, se variaram, por que ocorreram? A mais
ainda que autores ressaltem o papel universal do admissível interrogação, porém, implica responder
brasilianismo – incluindo em listas pesquisadores se cabem ainda as posturas antibrasilianistas e até
de procedências historiográficas plurais –, o que onde elas conseguiram ou conseguirão vigir.
interessa é ferir o alvo norte-americano, particular-
mente recortado nos anos de chumbo, ou seja, des-
de pouco antes da instalação da ditadura militar de
O BRASILIANISMO, OS BRASILIANISTAS
1964 e nos anos seguintes. Nessa lógica de enqua- E O ANTIBRASILIANISMO
dramento, na medida em que a abertura política se
perpetrava nos primeiros anos da década de 1980, Que não se confunda então o discurso do
a tendência condenatória se esmoreceria, e ao pon- movimento brasilianista e dos personagens bra-
to de alguns autores anunciarem seu possível fim, silianistas com o antibrasilianismo, posto serem
enquadrando aquela manifestação nas molduras evidentes suas autonomias, desde o motivo da pro-
dos anos 60/70 (Massi, 1990, p. 30). Há reações dução até os polos receptores. Trata-se de campos
que, espertas, percebem a dinâmica de mudanças historiográficos diferentes e que correspondem a
naturais operadas na produção norte-americana articulações próprias do meio que as caracterizam
tanto no particular – no que se refere ao Brasil – (Bourdieu, 2004). Ressalta-se ainda – quase exce-
como no geral – relacionado à América Latina e ao ção que confirma a regra – a crescente presença
hemisfério sul. A identificação das continuidades de recentes análises críticas temperadas, “mais
ou desdobramentos é destaque nessa marcha irre- neutras” (Bieber, 2001, p. 196), ou de apreciações
versível que, afinal, carrega por gerações os sinais consistentes e capazes de inscrever a problemáti-
dos tempos (Maisonave, 1979; Green, 2014, p. 12; ca analítica em quadros fundamentados historio-
Bieber, 2002, p. 211). Sob a tensão das mudanças, graficamente (Carrijo, 2007). Com isso, em face
contudo, fica clara a sequência da produção brasi- de novos estímulos para a retomada da questão,
lianista que evolui de acordo com interações opor- postula-se a necessidade de (re)ver a produção in-
tunas, na cadência de dinâmicas próprias, mas em telectual estadunidense sobre o Brasil, partindo-se
ritmo muito mais lento que o antibrasilianismo, da geratriz que, antes de nada mais, a situa em seu
manifestação insistente em retraçar seu espectro nascituro, como natural ramo da historiografia nor-
sempre suspeito e carregado das mesmas dúvidas. te-americana. Trabalhos atentos à superação dos
A constatação de uma linha temporal na his- extremos ratificam o brasilianismo, como lugar de
toriografia brasileira, atenta aos velados discursos
antibrasilianistas, serve de chão para exames que
se animam com o passar dos anos, reproduzindo 2 É válido assinalar que há setores brasileiros que reco-
nhecem na produção brasilianistas qualidades inques-
ecos que, contudo, se distendem sem muita ori- tionáveis e até exageradas. Igualmente passíveis de
ginalidade e/ou variação substantiva. Meditando críticas, esses aplausos são criticáveis.
vamente, nota-se o enjeite antibrasilianistas tecido 1990, p. 29). Tal apropriação, ainda que deixe
com fios devotos às produções isoladas, como se entrever contradição, alivia o peso de outra
não integrassem o todo bandido. Retoma-se, a fim origem, muito mais provável e anterior, deri-
de qualificar o caso, a oportunidade da expressão vada dos estudos de área, orientação definida
“colônia brasilianista” cunhada para aquela co- como critério depois do impactante surgimen-
munidade que, mesmo comportando diferenças to, em 1958, do Ato Educacional de Defesa
notáveis entre si, rende tributo às mesmas origens, Nacional, título VI (Neda), nos Estados Uni-
pertence às mesmas linhagens e é tributária de dos5. Estabelecida a lei, o texto devotado ao
diálogos próprios. Aliás, a noção de “colônia” se incremento geral dos estudos de línguas es-
aplica exatamente por juntar diferenças sob o de- trangeiras produziu efeitos imediatos e revo-
nominador comum que a qualifica: o labor intelec- lucionários nas matérias relativas às pesquisas
tual proposto numa relação de trabalho e produção regionais e internacionais6. Mostra disso, por
acadêmica. Por óbvio, sob os efeitos de décadas de exemplo, foi a vulgarização, desde 1959, de
convívio, as interações ocorrem favorecendo inter- termos como “africanista”, designação esta
câmbios que, porém, não lhes permite fugir de sua atenta a uma região pouco contemplada no
gênese. É exatamente o teor hereditário/intelectual plantel de estudos estadunidenses (Wallers-
que exige que se considerem as continuidades e se tein, 1997, p. 129). Na mesma linha, multipli-
condenem destaques suscetíveis às demandas de caram-se “hispanistas”, “iberistas”, “argenti-
seus momentos de vigências. nistas”, “cubanistas”, “colombianistas”, mas,
Há situada uma memória endurecida nas opo- sobretudo, os “latino-americanistas”. Aliás,
sições ao brasilianismo em geral, e a constatação cabe lembrar que desde 1918, com a publica-
disso implica notar a dificuldade de mudanças em ção da Hispanic American Historical Review,
busca de aperfeiçoamento dos fatores discrimi- estava patenteada a referência do que se enun-
natórios. Assim, por exemplo, a fim de reciclar o ciou como “specimen americanus do gênero
andamento do assunto, vale debilitar alguns sin- brazilianist” (Almeida, 2002, p. 34). Convém
tomas permanentes na constituição dessa disputa insistir que seria misericordioso achar que a
que, vista em seu caráter obsessivo e disfarçado, assimilação “natural” do termo “brasilianis-
ganha ares de enfermidade. E, então, sob a mirada ta”, entre nós, corresponde a uma legitimação
historiográfica, cabe compreender que a perma- do conceito segundo a indicação de Francisco
nência do antibrasilianismo funciona como uma de Assis Barbosa. A sutileza da nomeação de
espécie de doença historiográfica, mazela infantil outra alternativa não passaria de referência
que se manifesta segundo alguns sinais, a saber4: indicativa não expressa em desejáveis argu-
mentos. Pelo contrário, o que se valoriza é a
1) O peso sempre inaugural do replicado debate
sobre a origem do termo “brasilianista”, pon-
tificado como criação nossa, supostamente
fiado pela primeira vez no Brasil em texto de 5 O Neda foi coetâneo do Projeto Camelot, espécie de
complô preparado pelo governo norte-americano
Francisco de Assis Barbosa na introdução do para atuação em particular no Chile. Valendo-se de
livro de Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio informações privilegiadas conseguidas via pesquisas
acadêmicas, o Neda foi aproximado automaticamente
Vargas a Castelo Branco: 1930-1964 (Massi, à intervenção estadunidense nos assuntos políticos
internos brasileiros.
6 Criado como artifício político e cultural defensivo, de-
pois do sucesso das investidas soviéticas no espaço, o
4 A escolha do título deste artigo nada tem a ver com governo de Dwight D. Eisenhower promoveu medidas
o texto de Lenin, de 1920, sobre o esquerdismo como de incremento às pesquisas em geral, valendo-se dos
doença do partidarismo comuninista; também não se avanços tecnológicos e do potencial de estudos das
aproxima da proposta de Susan Sontag, escrita em 1978, universidades, transformando os critérios curriculares.
no ensaio sobre representações da tuberculose e câncer O Ato inicialmente foi proposto para durar quatro anos,
na sociedade. A intenção é demonstrar a debilidade de mas seus efeitos o fizeram muito mais consequente. A
uma linha de interpretação do brasilianismo provocada finalidade do Neda era alimentar a superioridade tec-
pelo desconhecimento das raízes da organização cur- nológica dos Estados Unidos, alertando contra avanços
ricular norte-americana. de adversários potenciais.
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