A Doença Infantil Na Historiografia Brasileira

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Antibrasilianismo

: doença infantil
da historiografia b
rasileira
José Carl
os Sebe B
om Meihy
resumo abstract

O presente artigo aborda a produção This article addresses North American


dos intelectuais norte-americanos que authors engaged in research concerning
pesquisam o Brasil em diversos campos Brazil-specific issues in different realms of
do conhecimento. De modo geral, os knowledge. The rejection befalling those
chamados brasilianistas têm sido vistos so-called “Brazilianists”, usually regarded
como “intrusos”, e sobre eles pesa uma as “intruders”, compromises the analysis
rejeição que compromete a análise desse of their intellectual production on the
conjunto de pesquisadores segundo os grounds of North American scholarship.
fundamentos da cultura universitária Overall ignorance of the context for
norte-americana. O desconhecimento their writing has been translated as an
do contexto daquela produção tem expression of academic nationalism,
provocado visões que refletem um which should be refuted for its recurrent
nacionalismo acadêmico que merece practice known as “anti-Brazilianism”.
críticas a partir do uso insistente de In historiographic terms, that perspective
determinadas práticas conhecidas can be thought of as a childhood illness,
como “antibrasilianismos”. Pensando em compromising the perception of a
termos historiográficos, essa perspectiva few Brazilian writers claiming expert
pode ser assumida como uma doença knowledge for themselves.
infantil que toma conta da percepção de
alguns autores brasileiros que se dizem Keywords: Brazilianism; anti-Brazilianism;
especialistas no assunto. historiography; Brazil-USA relations.

Pa l av r a s - c h ave : b r a s i l i a n i s m o;
antibrasilianismo; historiografia; relações
Brasil-Estados Unidos.
“[...] daí o ser olhado de esguelha
[pelos que viam torto
e pensavam com teias de aranhas”
(Monteiro Lobato).

A
o tanger o tema “brasilianismo”, sinuosidades da aludida “montanha russa” que, de
Robert M. Levine, na abertura sobra, deixa quebradiços os trilhos que impedem
dos anos de 1990, prenunciava reflexões remoçadas, oportunas e necessárias.
de maneira arguta “é sempre Lembremos: com insistentes e sutis intermi-
como o Brasil: uma montanha tências, o brasilianismo e os brasilianistas, bem
russa” (Maisonave, 1999). Vi- como o antibrasilianismo emergem na cena na-
rado o século XX, na vigência cional motivando críticas que, juntadas as partes,
da globalização e dos crescen- provocam sanhas que não conseguem esconder a
tes refluxos nacionalistas que perenidade de seu caráter dual, de amor e ódio –
nos assombram; valorizado o muito mais de ódio que de amor, diga-se. Para o
curso de estudos renovados pe- bem ou para o mal, tal inquietude não resolvida
los avanços interdisciplinares impacienta analistas que, Sísifos acadêmicos, fa-
e trocas naturais de fórmulas zem rolar essa pedra temática como imprecação
de conhecimento acadêmico; consideradas as ou castigo alongado. Sem chegar a termo algum,
tortuosas transformações do pensamento crítico impondo perenes recomeços – e muitas vezes
brasileiro, causa espécie saber que ainda repon- constrangimentos transparentes no quase mono-
tam encanecidos desafios atentos à qualificação córdico teor condenatório contido nos argumen-
do brasilianismo como tema, e dos brasilianistas tos –, o que se mantém latente são suspeitas que
como personagens de uma saga historiográfica afloram de porquês confundidos, sintetizados no
algo maldita. Moeda de duas faces, brasilianismo comprometimento de atitudes de ataques e de-
e brasilianistas, de um lado, e antibrasilianismo, fesas, procedimentos muitas vezes disfarçados e
de outro, lastreiam incertezas que põem em ju- expressos em favor da renovação e legitimidade
ízo a função de análises feitas por estrangeiros de nossas ciências humanas (Green, 2014, p. 12).
sobre o Brasil, em particular por pesquisadores É nesse panorama que se realiza o ideário de um
acadêmicos norte-americanos1. Qualquer breve
retrospecto atento àquela produção confirma as
se assumam antibrasilianistas, não há como deixar de
lado essa postura que se enquadra nas molduras de um
1 No espaço deste ensaio, assume-se o brasilianismo defensivo e velado nacionalismo acadêmico.
matizado pela experiência norte-americana, levando-se
em conta o viés da produção de conhecimento segundo
supostos daquela cultura acadêmica e de seu consumo
no campo original de criação. Por óbvio, a recepção no
Brasil é importante, mas deve ser vista como decorrência
historiográfica, não como objetivo. Por “antibrasilianis- JOSÉ CARLOS SEBE BOM MEIHY é professor
mo” entende-se a crítica sistemática em face daquela aposentado do Departamento de História
produção. Ainda que muitos críticos brasileiros não da FFLCH-USP.

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nacionalismo acadêmico que não assume publi- sobre a construção dos argumentos bipolares, tor-
camente o significado de seu conteúdo. Tudo é na-se saudável recompor temas centrais – seja de
ensurdecido, tratado como crítica e, de regra, com defesa ou ataque – e estabelecer pontos nodais que
alaridos atribuídos à imprensa (Massi, 1990, p. 30). expliquem o trato dado ao assunto no Brasil2. Isso,
Que fique claro, pois, de saída que falar de bra- na altura dos nossos dias, é fundamental para re-
silianismo e de brasilianistas implica adotar a re- qualificar ideias e assim melhorar a saúde da pen-
lação especular do antibrasilianismo como reflexo. dência que se alastra como vírus azado, progredido
Ainda que o primeiro seja matéria existente sem por gerações que obedecem a propostas de alguns
o segundo, como imagem projetada, desfiguração mestres acadêmicos, matrizes veladas do antibra-
mesmo, o antibrasilianismo não existiria sem a ma- silianismo. Afinal, pergunta-se: desde as primeiras
triz que lhe dá sentido. Mas há ardilosas variações experiências de contatos formais daquela produ-
na captação e aproveitamento dos discursos brasi- ção, o brasilianismo e os brasilianistas represen-
lianistas, e tais rodeios interessam como tópicos tam continuidades? Há rupturas, destaques, balizas
a serem avaliados ao longo dos tempos e dos vie- nessa produção e em suas reações? E as formas de
ses historiográficos brasileiros. De maneira clara, recepção, se variaram, por que ocorreram? A mais
ainda que autores ressaltem o papel universal do admissível interrogação, porém, implica responder
brasilianismo – incluindo em listas pesquisadores se cabem ainda as posturas antibrasilianistas e até
de procedências historiográficas plurais –, o que onde elas conseguiram ou conseguirão vigir.
interessa é ferir o alvo norte-americano, particular-
mente recortado nos anos de chumbo, ou seja, des-
de pouco antes da instalação da ditadura militar de
O BRASILIANISMO, OS BRASILIANISTAS
1964 e nos anos seguintes. Nessa lógica de enqua- E O ANTIBRASILIANISMO
dramento, na medida em que a abertura política se
perpetrava nos primeiros anos da década de 1980, Que não se confunda então o discurso do
a tendência condenatória se esmoreceria, e ao pon- movimento brasilianista e dos personagens bra-
to de alguns autores anunciarem seu possível fim, silianistas com o antibrasilianismo, posto serem
enquadrando aquela manifestação nas molduras evidentes suas autonomias, desde o motivo da pro-
dos anos 60/70 (Massi, 1990, p. 30). Há reações dução até os polos receptores. Trata-se de campos
que, espertas, percebem a dinâmica de mudanças historiográficos diferentes e que correspondem a
naturais operadas na produção norte-americana articulações próprias do meio que as caracterizam
tanto no particular – no que se refere ao Brasil – (Bourdieu, 2004). Ressalta-se ainda – quase exce-
como no geral – relacionado à América Latina e ao ção que confirma a regra – a crescente presença
hemisfério sul. A identificação das continuidades de recentes análises críticas temperadas, “mais
ou desdobramentos é destaque nessa marcha irre- neutras” (Bieber, 2001, p. 196), ou de apreciações
versível que, afinal, carrega por gerações os sinais consistentes e capazes de inscrever a problemáti-
dos tempos (Maisonave, 1979; Green, 2014, p. 12; ca analítica em quadros fundamentados historio-
Bieber, 2002, p. 211). Sob a tensão das mudanças, graficamente (Carrijo, 2007). Com isso, em face
contudo, fica clara a sequência da produção brasi- de novos estímulos para a retomada da questão,
lianista que evolui de acordo com interações opor- postula-se a necessidade de (re)ver a produção in-
tunas, na cadência de dinâmicas próprias, mas em telectual estadunidense sobre o Brasil, partindo-se
ritmo muito mais lento que o antibrasilianismo, da geratriz que, antes de nada mais, a situa em seu
manifestação insistente em retraçar seu espectro nascituro, como natural ramo da historiografia nor-
sempre suspeito e carregado das mesmas dúvidas. te-americana. Trabalhos atentos à superação dos
A constatação de uma linha temporal na his- extremos ratificam o brasilianismo, como lugar de
toriografia brasileira, atenta aos velados discursos
antibrasilianistas, serve de chão para exames que
se animam com o passar dos anos, reproduzindo 2 É válido assinalar que há setores brasileiros que reco-
nhecem na produção brasilianistas qualidades inques-
ecos que, contudo, se distendem sem muita ori- tionáveis e até exageradas. Igualmente passíveis de
ginalidade e/ou variação substantiva. Meditando críticas, esses aplausos são criticáveis.

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pesquisas e que se constitui, pelo olhar estaduni- tivas3. Ainda que se proponha variáveis classifica-
dense, em “um subcampo pequeno e deficiente da tórias entre o escopo brasilianista, de regra, o que
história latino-americana” (Bieber, 2002, p. 195). se vê é uma tabela cromática que, contudo, em
O antibrasilianismo, por sua vez, deve se portar nuanças suavizantes, não abdica da cor própria.
como expressão do pensamento crítico brasileiro, Há casos cur iosos que dão vida às
não apenas promovido pela imprensa escrita, para excepcionalidades, e que assim permitem tecer
a qual o brasilianismo seria, naturalmente, “um comentários a certas posturas condenatórias, pois
prato cheio”. Estimulado pela presença inquietan- autores como Warren Dean, Ralph Della Cava,
te daquele padrão exegético – que segue tradição Barbara Weinstein ou James N. Green são alguns
própria, muito mais atenta a temas “presentificado- tipos que, por atitudes públicas sempre favoráveis
res” como modernização e implicações políticas ao progressismo político nacional brasileiro, pas-
do conhecimento –, tem sido na academia que se sam a ser vistos como “fora da curva” ou mesmo,
processam as críticas mais agudas, ainda que re- segundo se repete, “acima de qualquer suspeita”.
vestidas de camuflagens. De toda forma, proposto Na medida em que exames de trabalhos de alguns
como discurso dissonante de nosso coro historio- brasilianistas ganham conotação de estudos espe-
gráfico – mas sempre passível de reações –, o bra- cíficos, como que a se desculpar, dados biográficos
silianismo pode ser facilmente identificado como dos “escolhidos” atuam de maneira a abonar a ex-
fator “intruso” (Levine, 2002, p. 65). Por certo, cepcionalidade de cada um. Não é, pois, despre-
ambos os códigos se comunicam e interagem em zível afirmar que, na medida do desgaste puro e
ritmos próprios, mas é patente que qualquer refle- simples dos supostos generalizadores antibrasilia-
xão mais cuidada é tributária de suas matrizes his- nistas, preside uma tendência progressiva em “bio-
toriográficas, sejam estadunidenses ou brasileiras. grafar” os autores, mostrando-se dessa maneira seu
Explicar o brasilianismo em geral pelo antibrasi- caráter “desviante”, ou pelo menos explicativo das
lianismo seria como que inverter a ordem reflexiva, atitudes de certos personagens (Santos, Oliveira &
tomando o avesso pelo direito, a representação pelo Susin, 2014). Em muitos casos, tomando frases dos
modelo, a sombra pelo personagem. próprios brasilianistas, pretende-se responder aos
Entre o brasilianismo e o antibrasilianismo, questionamentos historiográfico-identitários pelo
há um perturbador elemento, pouco considera- incômodo da pergunta que, desde seu enunciado,
do, mas que faz a diferença nas conformações traz o veredito condenatório.
analíticas: os brasilianistas, pessoas que reagem Recentemente, a partir da reverberação da
às incitações contextuais, nem sempre em obe- crítica negativa ao brasilianismo, alguns prota-
diência aos rígidos mandamentos do figurino gonistas praticamente se defendem em público,
hipotético. A mera indicação desse tipo social- se explicando em vista de seu lugar no conjunto.
-acadêmico convida a supor uma movimentação Muitos indagados – ou a se autoquestionar sobre
humana, de pessoas capazes de pôr em causa a questão (Weinstein, 2016) – autobiografam a
os padrões materializados em teorias absolutas, própria experiência e se fundamentam frente ao
propostas fechadas, linhagens intelectuais dis- preconceito disseminado. E os detalhamentos
cursivas obrigatórias, ou ordenamentos políticos personalizados, como defesa, vêm em cascata de
estatais. A identificação mecânica do brasilianis- argumentos distintivos seja de geração, gênero,
mo com os brasilianistas tem sido uma das mais procedência étnica, orientação sexual, formação
recorrentes distorções promovidas pela avaliação acadêmica ou credo religioso. Interessa tal consta-
antibrasilianista. Por lógico, tais enquadramen- tação como evidência da dificuldade de separar o
tos exibem furos que comprometem o simplismo movimento, o brasilianismo, de seus personagens,
da fórmula acusatória, que, contudo, continua e os brasilianistas. Na maioria das vezes, progressi-
promete sequência ao longo do tempo. É comum,
por exemplo, indicar o brasilianismo como um
todo de vocação absoluta, mas, ao se considerar 3 Atento a essa tendência, entre 1989 e 1990, coletei
64 entrevistas de histórias de vida e, destas, 32 foram
alguma produção específica, inevitavelmente, res- publicadas no volume A Colônia Brasilianista: História
saltam-se discrepâncias que demandam justifica- Oral de Vida Acadêmica.

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vamente, nota-se o enjeite antibrasilianistas tecido 1990, p. 29). Tal apropriação, ainda que deixe
com fios devotos às produções isoladas, como se entrever contradição, alivia o peso de outra
não integrassem o todo bandido. Retoma-se, a fim origem, muito mais provável e anterior, deri-
de qualificar o caso, a oportunidade da expressão vada dos estudos de área, orientação definida
“colônia brasilianista” cunhada para aquela co- como critério depois do impactante surgimen-
munidade que, mesmo comportando diferenças to, em 1958, do Ato Educacional de Defesa
notáveis entre si, rende tributo às mesmas origens, Nacional, título VI (Neda), nos Estados Uni-
pertence às mesmas linhagens e é tributária de dos5. Estabelecida a lei, o texto devotado ao
diálogos próprios. Aliás, a noção de “colônia” se incremento geral dos estudos de línguas es-
aplica exatamente por juntar diferenças sob o de- trangeiras produziu efeitos imediatos e revo-
nominador comum que a qualifica: o labor intelec- lucionários nas matérias relativas às pesquisas
tual proposto numa relação de trabalho e produção regionais e internacionais6. Mostra disso, por
acadêmica. Por óbvio, sob os efeitos de décadas de exemplo, foi a vulgarização, desde 1959, de
convívio, as interações ocorrem favorecendo inter- termos como “africanista”, designação esta
câmbios que, porém, não lhes permite fugir de sua atenta a uma região pouco contemplada no
gênese. É exatamente o teor hereditário/intelectual plantel de estudos estadunidenses (Wallers-
que exige que se considerem as continuidades e se tein, 1997, p. 129). Na mesma linha, multipli-
condenem destaques suscetíveis às demandas de caram-se “hispanistas”, “iberistas”, “argenti-
seus momentos de vigências. nistas”, “cubanistas”, “colombianistas”, mas,
Há situada uma memória endurecida nas opo- sobretudo, os “latino-americanistas”. Aliás,
sições ao brasilianismo em geral, e a constatação cabe lembrar que desde 1918, com a publica-
disso implica notar a dificuldade de mudanças em ção da Hispanic American Historical Review,
busca de aperfeiçoamento dos fatores discrimi- estava patenteada a referência do que se enun-
natórios. Assim, por exemplo, a fim de reciclar o ciou como “specimen americanus do gênero
andamento do assunto, vale debilitar alguns sin- brazilianist” (Almeida, 2002, p. 34). Convém
tomas permanentes na constituição dessa disputa insistir que seria misericordioso achar que a
que, vista em seu caráter obsessivo e disfarçado, assimilação “natural” do termo “brasilianis-
ganha ares de enfermidade. E, então, sob a mirada ta”, entre nós, corresponde a uma legitimação
historiográfica, cabe compreender que a perma- do conceito segundo a indicação de Francisco
nência do antibrasilianismo funciona como uma de Assis Barbosa. A sutileza da nomeação de
espécie de doença historiográfica, mazela infantil outra alternativa não passaria de referência
que se manifesta segundo alguns sinais, a saber4: indicativa não expressa em desejáveis argu-
mentos. Pelo contrário, o que se valoriza é a
1) O peso sempre inaugural do replicado debate
sobre a origem do termo “brasilianista”, pon-
tificado como criação nossa, supostamente
fiado pela primeira vez no Brasil em texto de 5 O Neda foi coetâneo do Projeto Camelot, espécie de
complô preparado pelo governo norte-americano
Francisco de Assis Barbosa na introdução do para atuação em particular no Chile. Valendo-se de
livro de Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio informações privilegiadas conseguidas via pesquisas
acadêmicas, o Neda foi aproximado automaticamente
Vargas a Castelo Branco: 1930-1964 (Massi, à intervenção estadunidense nos assuntos políticos
internos brasileiros.
6 Criado como artifício político e cultural defensivo, de-
pois do sucesso das investidas soviéticas no espaço, o
4 A escolha do título deste artigo nada tem a ver com governo de Dwight D. Eisenhower promoveu medidas
o texto de Lenin, de 1920, sobre o esquerdismo como de incremento às pesquisas em geral, valendo-se dos
doença do partidarismo comuninista; também não se avanços tecnológicos e do potencial de estudos das
aproxima da proposta de Susan Sontag, escrita em 1978, universidades, transformando os critérios curriculares.
no ensaio sobre representações da tuberculose e câncer O Ato inicialmente foi proposto para durar quatro anos,
na sociedade. A intenção é demonstrar a debilidade de mas seus efeitos o fizeram muito mais consequente. A
uma linha de interpretação do brasilianismo provocada finalidade do Neda era alimentar a superioridade tec-
pelo desconhecimento das raízes da organização cur- nológica dos Estados Unidos, alertando contra avanços
ricular norte-americana. de adversários potenciais.

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capitação atribuída à nossa imprensa como se tinta ao debate que, infelizmente, tem sido ne-
ela tivesse o condão explicativo7. gligenciado em sua semente historiográfica9.
2) Na falta de argumentos mais robustos, os de- 3) Outro aspecto relevante a ser notado remete
tratores – hoje como no passado – inquirem às áreas ou campos de estudos, sendo que se
sobre a grafia do termo “brasilianista”, jogando constata com facilidade a predominância de
com pretensa picardia a variação com “z” ou pesquisas feitas nas searas histórica e literária
com “s”; com “t” no final, ou não, em inglês ou (Tyrrel, 2009, p. 455). Sim, é fácil notar uma
português (Pontes, 1990, p. 45). Apelando de preferência ou escolha atenta a esses setores,
maneira quase dissimulada para uma literali- fato, aliás, comum desde sempre, mas acen-
dade estreita que liga a existência do tema a um tuado no pós-guerra norte-americano (Berger,
vocábulo definidor, chega a ser simplista a re- 1995, p. 19). Em vista disso, cabe perguntar da
dução do conceito à origem etimológica da pa- relevância dessas opções, em particular se a
lavra, e assim, por esse artifício, nota-se a pre- montagem do controle atribuído ao papel dos
cariedade de análises históricas e processuais. scholars norte-americanos, para melhor efi-
E nem vale dizer que, independente da grafia ciência, não apresentaria resultado efetivo se
em dicionário, “todos saberiam o significado remetesse à situação plural, interdisciplinar.
do termo”8. Retórica à parte, sendo do conhe- Cabe a dúvida centrada na evidente incoerên-
cimento de “todos”, por que a revisão da ma- cia, posto que, para planos de dominação geo-
téria? Sem respeitar anterioridades muito bem política, certamente, a soma de muitos outros
constituídas e fundamentadas, e apagando-se campos seria bem mais competente do que
o colorido contextual específico, o que resulta apenas a centralidade histórica e de domínio
é a persistência da redução de uma comple- de língua. Assim, nota-se que se avizinha do
xa experiência historiográfica desdobrada em precário a constatação do reverso, ou seja, a
eventuais excentricidades do vínculo do termo injusta diminuição da qualidade e quantidade
com sua prática imediata. Por lógico, tais in- de estudos feitos em outras áreas do conheci-
vestidas tiveram algum sentido indicativo no mento. Por outro ângulo, a reunião exclusiva de
passado remoto, mas daí a fazer disso motivo estudos históricos e literários promoveria um
de incansável polêmica vai distância. Também olhar esquivo, atento a áreas que, afinal, pouco
provoca admiração a insistência dessas abor- acrescentariam ao hipoteticamente já sabido
dagens, fato, aliás, que apenas se explica pela pelos conjeturados comandos estratégicos.
tentativa de fixação de um argumento conde- 4) Chega a ser preocupante o uso/abuso das es-
natório que percebe o enredado inscrito em tatísticas para provar o óbvio. Mais que mo-
suposto estado de dicionário. Imagina-se que nótona, a repetição ad nauseam dessa prática
potencial alternativa mais sofisticada remeteria acaba por sugerir efeito contrário, pois serve
à outra dinâmica permitida pelo uso do termo para garantir que, na carência de expressivos
“brasilianista”. Como decorrência de menções teores analíticos qualitativos, a exaltação da
de pertencimentos identitários, culturalmente evidência numérica equivale à fragilidade dos
fixados, com certeza, o exame da questão ga-
nharia quilate qualitativo muito mais viçoso.
Essa possibilidade, aliás, daria dimensão dis- 9 Lastima-se que a palavra “brasilianista” seja vista à parte da
evolução referenciadora do significado de “ser brasileiro”,
ou de algo “relativo ao Brasil”. Derivando do fértil debate
sobre a transformação do neologismo “brasilianista” – re-
forçado por Varnhagen ao dizer que “brasileiro” seria todo e
7 Assumido como capital, o texto assinado pelo jornalista qualquer explorador que viesse ao Brasil –, tal referência foi
Elio Gaspari, na revista Veja, em 1971, no artigo intitulado também explorada por José Hipólito da Costa, que elegeu
“A História do Brasil – O Passado do País Está Sendo Escrito a palavra “braziliense” como termo ideal para significar
em Inglês”, ficava aberta a porta para que um segmento “do Brasil”. Convém lembrar que, desde Santa Rita Durão
de acadêmicos brasileiros discutisse a questão por tabela, (1722-84), o termo “brasiliano” servia para diferenciar os
sem reivindicar responsabilidades em suas posturas. brasileiros dos demais personagens presentes na colônia. O
desconhecimento desse debate empobrece sobremaneira
8 Esse argumento, aliás, fragiliza a repetida mania de afirmar a possibilidade do entendimento do sentido evocado,
que há consenso na aceitação do termo “brasilianista”. entre nós, do termo “brasilianista”.

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conteúdos argumentativos. Desde sempre, um “pequena tribo”, na maioria historiadores


dos alvos detratores da linhagem historiográ- que escreviam sobre a modernização da po-
fica norte-americana se definiu, no Brasil, pela lítica brasileira – principalmente levando-se
expressão do número de estudos acadêmicos, em conta a projeção e o desdobramento do
fator esse sempre elevado à condição de es- período varguista –, esses se mantêm como
petáculo justificador. Alguns autores mais re- modelos, núncios de um todo bastante com-
centes, mesmo aceitando – de acordo com a posto, apartados do conhecimento brasileiro.
conveniência argumentativa – a óbvia partici- O nome mais salientado dessa geração – gru-
pação de intelectuais de várias nacionalidades po que anteriormente chamei de “Filhos de
nos projetos sobre o Brasil, sutilmente acabam Castro” (Meihy, 1984, p. 253) – foi Thomas
por comprometer a produção norte-americana Skidmore, que teve sua obra mais conhecida
com base no crescimento excepcional do vo- identificada com o apoio do governo estaduni-
lume das pesquisas em dado momento, e, as- dense ao golpe militar de 1964. A sincronia dos
sim, arrematam seus postulados sinalizando a fatos assustou o público brasileiro, que ainda
existência de “modelos específicos” que, evi- professava interpretações da história tendo em
dentemente, esconderiam intenções maléficas vista situações remotas11. O destaque de Skid-
e contrastantes dos demais estrangeiros, estes more, contudo, merecia a companhia também
sim pretensamente “culturalistas”. Como que famosa de Robert M. Levine, Joseph Love, John
vendo a árvore e se esquecendo da floresta, o Wirth e Soo-Eul Pang, que, juntos, apresenta-
caráter de ressalva é consagrado com exclusi- ram trabalhos articulados sobre Pernambuco,
vidade pelo fator numérico, e a matriz desse São Paulo, Minas e Bahia, fato que alimentou
ramo de explicação floresceu entre nós a par- as convenientes suspeitas de quantos notavam
tir de um dos estudos inaugurais do antibrasi- naquela proposta um esforço de dominação em
lianismo, o texto de Dulce Ramos, de 197410. vista de amplo e detalhado conhecimento regio-
Como avesso da aceitação repetida dos núme- nal do Brasil12. Autores como Stanley Hilton, por
ros, reclama-se da falta de análise de conteú- sua temática anticomunista, também receberam
do e exame dos critérios metodológicos e de críticas ferozes, dimensionando o sentido conde-
diálogos teóricos. Reduzidos a termos como natório que, no geral, era expandido a todos. É
“empiristas” ou “factualistas”, “cronológicos”, verdade que nem sempre houve apenas suspeitas;
sem demonstrações de exegeses constitutivas certos pesquisadores, personagens também co-
ou operacionais, restam mesmo os números. nhecidas, sempre foram “padrinhos” – via prefá-
5) Talvez, juntamente com seu caráter camufla- cios, comentários e resenhas – de brasilianistas.
do, a mais significativa mostra da fraqueza do Entre outros, acadêmicos ilustres, cita-se nomes
discurso antibrasilianista resida na eleição de respeitados como José Honório Rodrigues, Fer-
alguns scholars erigidos à condição de “no- nando Henrique Cardoso, Fernando Novais,
táveis”, que tenham ganhado a cena como se Francisco de Assis Barbosa, personagens que se
fossem representantes de toda a constelação. mostraram acima do simplismo difamante. So-
Sob esse olhar, uns poucos têm sido desta- bretudo, porém, o que se lamenta é o tratamento
cados e se projetam como protótipos, a par- contrastante dado aos inominados, personagens
tir da “irresistível ascensão do brasilianista que afinal avivam o real sentido dos estudos de
no período autoritário” (Almeida, 2002, p.
42). Vistos como “pequena comunidade”, ou
11 Vale notar que Skidmore teve desempenho variado
ao longo de sua atuação como brasilianista, tendo,
inclusive, assumido papel destacado em situações de
defesa da redemocratização, em particular frente ao
10 Por certo, o sentimento antiamericano tem raízes antigas
caso de Herzog, em 1975.
no Brasil, em particular no campo intelectual. Desde os
escritos monarquistas de Paulo Prado, no A Ilusão Americana 12 Ainda que nem sempre notada, a reação favorável a
(1890), até A Desilusão Americana, de Sergio Miceli (1990), esses quatro projetos também existiu, mas para os
a rejeição aos Estados Unidos convive com argumentos antibrasilianistas sempre foi conveniente o ataque a
políticos estabelecidos. esses livros em conjunto, não separadamente.

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área – no caso do Brasil – nos Estados Uni- sombra soviética na América Latina – e em
dos. Tratando da massa considerável de per- particular no Brasil –, exatamente no momento
sonagens “desconhecidos”, Judy Bieber lista em que a proposta de Fidel Castro se erigia
relações de autores, de diversas áreas, figuras como ameaça continental, sua figura funcio-
que dialogam diretamente com a historiografia nou como modelo da suspeição generalizada
norte-americana, mas que são desconhecidos contra o imperialismo (Carrijo, 2008). Sendo
fora do seu país (Bieber, 2002, p. 201). contratado como engenheiro que previamente
6) Não é de todo desprezível admitir que alguns atuou no México – onde escreveu Yesterday in
autores norte-americanos, por diversas razões Mexico: A Chronicle of the Revolution: 1919-
– inclusive ideológicas –, mantivessem tipos 1936, antes de vir ao Brasil como funcionário
de vínculos, diretos ou indiretos, com as tais de empresa extrativista, o então futuro pro-
políticas de controle do continente. Não se pre- fessor de História da América Latina na Uni-
tende negar que tais personagens existiram, versidade do Texas se notabilizou por textos
dimensionando o esforço político militar, le- que, na leitura desarmada, davam conta de
vando a cabo ações militantes atentas à nossa funções de investigação, pelo teor factualista-
sujeição àquele poderio imperialista. Nem há -informativo e cronológico que, juntos, suge-
como deixar de reconhecer tal prática notada, riam caminhos indicativos de uma potencial
por exemplo, nos apoios dados ao rosário de revolução, de tons socialistas, a ser deflagrada
golpes militares latino-americanos, desdobra- no Brasil. Seus diversos livros contaram com
dos na década de 1960 e seguintes, e que tam- dezenas de resenhas que, afinal, mais do que
bém atingiram diretamente o Brasil (Parker, polêmicas, dimensionavam posicionamentos
1979). No rol das entidades suspeitas, certa- suspeitos (Almeida, 1986). Convém lembrar
mente, a Central Intelligence Agency (CIA) que o antibrasilianismo se alimentou também
figura como fundamental, e tal indicação, por das tendências anti-imperialistas, antiamerica-
si só, seria suficiente para arrolar suspeitas de nistas e anticomunistas. Insiste-se no enqua-
seus membros (Beiguelman, 1987, p. 201). De dramento do antibrasilianismo compondo-se
maneira original, poucos autores brasileiros como variante dos preceitos “anti”, condição
têm abordado esse tema, fato que merece des- precípua para a formulação do sempre velado
taque por iluminar de maneira explicativa os nacionalismo acadêmico.
medos e suspeitas nacionais. Estudos novos 7) Na mesma vereda da rejeição, nota-se que a
apontam, por exemplo, que nomes importan- política de tradução – sempre vinculada aos
tes na cena ideológica – como John W. Foster interesses comerciais dos consumidores/leito-
Dulles – se tornaram conhecidos nos círculos res brasileiros – também interferiu na consi-
defensivos, implicando generalizações sempre deração geral do propósito do brasilianismo
úteis aos detratores da linhagem brasilianista. norte-americano. No ritmo que marca alguns
Há, inclusive, entre os próprios críticos norte- brasilianistas como exemplares ou represen-
-americanos, pessoas que olham de maneira tantes do conjunto, certos autores mereceram
suspeita para essas figuras, alegando que, mes- versões de seus trabalhos, quase sempre pri-
mo na tradição acadêmica norte-americana, o meiramente escritos em inglês – muitos deles
citado Foster Dulles estaria desatualizado me- como textos de conclusão de pesquisas aca-
todologicamente (Cline, 1962, p. 456). Como dêmicas. Antes, tais estudos foram publicados
tipo especial, esse autor mereceu, da avaliação em seu país de origem, e este não é detalhe
brasileira, destaque como modelo conspirador, desprezível, pois remete a um ponto fulcral:
double de engenheiro-historiador, tornando- para quem se escreve. A fim de alimentar o
-se paradigma do “intelectual espião”. Por argumento, vale lembrar que o estudo mais fa-
ser filho de conhecida família anticomunista, moso dessa fase foi a citada obra de Skidmore,
pertencente a um clã destacado na alta cúpu- Politics in Brazil: 1930-1964: An Experiment
la da política estadunidense, e por ter escrito in Democracy, que, defendida como tese em
alguns de seus principais trabalhos contra a Harvard, logo fez jus à publicação nos Estados

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Unidos, já em 1967. No Brasil, porém, tardou lógico e de constituição de séries é marca da


dois anos, vindo a lume em 1969. Não caberia cultura norte-americana, como demonstrou
indicar apenas a antecedência da publicação Robert M. Levine (2002) ao inventariar a
norte-americana, mas também dar singulari- formação de séries documentais e arquivos
dade ao fato de, no Brasil, o livro ter saído, que combinavam a aventura científica com
em primeira edição, por uma obscura casa interesses de conhecimentos gerais sobre o
editorial, Saga, com distribuição modesta. A Brasil. O desconhecimento dessa forma de
experiência de Skidmore foi replicada por pra- agir institucionalmente tem proposto aproxi-
ticamente todos os brasilianistas13. Outro caso mações entre a existência desses polos de pes-
que merece destaque remete ao polêmico Fos- quisa, como se fossem postos de informações
ter Dulles, que publicou em 1967, nos Estados geopolíticas, fato que, contudo, não resiste a
Unidos, o criticado livro Vargas of Brazil: A maiores exames.
Political Biography, que, apesar de muito co- 9) Vale reforçar a existência de grupos de inte-
mentado e combatido entre nós, apenas ganhou lectuais/acadêmicos brasileiros que pontificam
versão em língua portuguesa dez anos depois. posições e assim cumprem um estranho ritual
Vale ressaltar, inclusive, que alguns escritos de autocitações, evoluindo muito lentamente
desse autor ainda permanecem inéditos em de um radicalismo conservador para posicio-
língua portuguesa e, entre outros, principal- namentos algo mais negociados, inclusive com
mente, o texto muito controvertido Unrest in detratores. Mas tudo muito dissimulado, com
Brazil: Political Military Crisis – 1955-1964. melindres que, contudo, não comprometem a
Na linha do reconhecimento do desempenho essência das latentes posturas antibrasilianis-
editorial brasileiro, convém notar que impor- tas. Aliás – e pelo contrário –, é exatamente
tantes editores exerceram papel definitivo nas nas entrelinhas, nos interditos e em mesas-re-
versões de escritos dos norte-americanos, em dondas com protagonistas norte-americanos
particular Fernando Gasparian, então à frente que as insinuações ganham exuberância. Há,
da Editora Paz e Terra. contudo, um argumento de corte nesse proces-
8) A devoção universitária norte-americana aos so que, sem ele, tudo fica debilitado, perdido
livros, coleções e acervos tem sugerido que em ataques espiralados, sem polos palpáveis de
algumas bibliotecas e centros de pesquisa es- responsabilidades efetivas. Extraindo o debate
tadunidenses acumulam séries pensando no da contenda pessoal e imediata ao brasilianis-
potencial controle informativo, condição in- mo e aos brasilianistas, Sergio Miceli enfeixa
dicada como precípua para o estabelecimento argumentos centrados num pressuposto muito
de estratégias. Universidades como Stanford, mais antigo, consequente, complexo e grave:
Brown e Indiana, por exemplo, funcionariam a histórica vinculação institucional entre o
como polos de excelência no pretenso projeto governo norte-americano e o brasileiro. Se
dominador, exatamente por terem acumula- intermitentes pactos de alinhamentos sempre
do acervos documentais importantes. Como existiram – em particular desde a proclamação
tendência de cunho acadêmico ou científico, da nossa República –, mais tarde, já nos anos
esses centros de estudos datam das primeiras de 1960, instituições privadas estadunidenses,
investidas de viagens exploratórias que mar- ideologicamente correlatas àquele Estado, tam-
cam a experiência norte-americana mundo bém atuaram definindo políticas comuns afei-
afora, independente de espaço e tempo his- tas à educação14. Novos liames se arranjaram
tóricos (Kulik, 1989, p. 7). O cuidado museo- com entidades culturais brasileiras atestando
uma prática intervencionista norte-americana
que, de forma direta e/ou indireta, implicaram
13 Há controvérsias sobre o endereço ou para quem teria
sido escrito o primeiro livro de Skidmore, ainda que haja
autores que ratifiquem algumas de suas controvertidas
entrevistas. Há inclusive quem afiance que ele escreveu 14 Dentre os primeiros a destacar o caráter controlador
para os brasileiros. O fato de tê-lo previamente defen- da cultura norte-americana sobre o Brasil está a figura
dido como tese em Harvard garante o contrário. sempre esquecida de Maurício Tragtenberg.

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acordos educacionais como o conhecido MEC- 10) Mas pode-se falar do fim do brasilianismo e
-Usaid – celebrado entre o nosso Ministério da derrocada do antibrasilianismo? O encami-
Educação e Cultura e a United States Agency nhamento geral dos motes ditado pelos detra-
for International Development (Usaid), entre tores do brasilianismo – sutis ou não – tende a
1964 e 1976. Na linha desse potente contra- mostrar o primeiro fadado a termo, pois, com
to estava o estabelecimento de convênios de o correr dos anos, o projeto de controle teria
assistência técnica e de cooperação financeira perdido seu sentido político. Como que an-
destinados a promover a educação brasileira. tevendo o declínio da influência soviética e a
A presença dominante desse pacto favoreceu inviabilidade de transformar o Brasil em uma
a suspeita de interferência, que abrangia des- “Cuba continental”, o brasilianismo perderia
de a educação elementar até o ensino superior. vigor, pois não mais precisaria dos “trabalhos
Além disso, não escapa também o artifício da diagnósticos” feitos por acadêmicos que, ino-
“sedução cultural em sentido amplo”, filtrada centes ou não, seriam massa de manobra. Por
por manhas complexas, envolvendo todos os lógico, a construção desse argumento implicaria
comprometimentos do american way of life algumas definições que merecem cuidados. Em
(Tota, 2000). Certamente, a proposta de Mice- primeiro lugar, cabe desmitificar a dificuldade
li ganha consistência na medida em que soma conceitual, pois é claro, simples e notável que
ao febril preconceito contra o brasilianismo, a brasilianista é todo e qualquer intelectual que
força argumentativa de um projeto muito mais sistematicamente estuda o Brasil a partir de
estruturado, de orientação político-ideológica tradições historiográficas de matrizes próprias,
efetiva, exercitado pelas ações dos Estados e estrangeiras, correlatas aos seus nichos cultu-
por algumas entidades atentas ao desenvol- rais. Cabe aqui notar que mesmo brasileiros
vimento do saber formal, erigido segundo os que produzam em outro campo historiográfico
padrões liberais norte-americanos. Evocando se enquadram nessas linhagens (Green, 2014, p.
velhos estratagemas de atenção continental, 14). No caso específico do brasilianismo norte-
Miceli reinscreve a façanha estadunidense, re- -americano, desde que existam vínculos com o
traçando-a em um plano mais explicativo dessa perfil acadêmico daquela cultura, tudo que se
construção: o ardil histórico que relacionava o produziu e ainda se produz, de maneira sistemá-
poderio norte-americano às políticas continen- tica, acadêmica ou cientificamente, sobre o Bra-
tais. Com força centrada na análise do papel da sil, independente do tempo histórico em que foi
Fundação Ford, Leticia Bicalho Canedo (2007) gerado, se ajusta ao conceito de “brasilianismo”.
diz que Miceli se apoiou, nos exames que fez, Simples assim. Até pouco tempo, o enfoque da
nos chamados “program officers, catalisadores produção estadunidense sobre o Brasil podia ser
na transferência e difusão de projetos trans- subdividido em dois tempos históricos comple-
nacionais envoltos nos paradigmas da ciência mentares: o brasilianismo histórico – trabalhos
política e da economia norte-americana”. Res- produzidos numa fase de montagem de conhe-
saltando positivamente o inequívoco papel da cimento continental; e, de outra sessão, muito
Fundação Ford – e de outras como a Fulbright mais em coerência com o padrão ditado no pós-
e a Kellog –, os textos de Miceli iluminaram -guerra, o brasilianismo político, salientado nos
reflexões que reconhecem a influência vital chamados anos de chumbo, condizente com a
daqueles institutos na modernização geral das modernização dos temas e modos de exercitar
ciências sociais brasileiras. Tudo, porém, em análises15. A exclusão da primeira fase, histó-
obediência aos postulados estatais estaduni-
denses, principalmente na proteção antico-
munista. O que se colocaria em pauta frente 15 Dado o correr do tempo e as transformações do evoluir
historiográfico norte-americano, em vista do Brasil,
ao debate sobre o brasilianismo seria nossa valeria a sugestão de nova onda geracional que pode-
capacidade de heteronomia, ou seja, de lidar, ria ser reconhecida como brasilianismo interdisciplinar,
assumido por especialistas agora dedicados a temas
ou não, com a autonomia em uma relação pa- de construções de identidades: afro, feministas, de
trocinada (Santos, s.d., p. 137). orientação sexual, religiosa.

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rica, em favor da essencialidade da segunda, a continuidades irrefutáveis. Seria fácil multiplicar


implicaria como geração espontânea e de uso exemplos, inclusive que garantiriam continuidade
meramente ideológico. de estudos em personagens como Emilia Viotti
da Costa e alunos como John French ou Barbara
Weistein, e tantos mais. Além disso, porém, é im-
BRASILIANISMO E ANTIBRASILIANISMO: portante lembrar a revolução demográfica causada
ETERNOS RETORNOS nas famílias norte-americanas depois do fim do
conflito mundial em 1945. Os chamados babies
Sendo que o termo “brasilianista” no Brasil boomers – a expressiva geração nascida imediata-
ainda continua a causar polêmica, a fim de ava- mente depois do fim da Segunda Guerra Mundial
liar condições historiográficas gerais, pretendeu- –, com a chegada à idade adulta, revolucionaram
-se o entendimento desse fenômeno a partir dos o sistema educacional estadunidense, que abrigou
sintomas presentes em nossa crítica acadêmica. levas de estudantes, dando-lhes sentido profissio-
A alongada constituição – ainda que intermiten- nal na área da pesquisa e da educação.
te – desse debate demonstra o custeamento de al- Logicamente o olhar político-institucional dos
gumas práticas discursivas insistentes: a origem Estados Unidos se nutriu de fatores defensivos e
e supostas dificuldades de definição conceitual; o em particular se alimentou da política antissovi-
uso em inglês ou em português do termo defini- ética que ambientou a Guerra Fria. Nesse con-
dor da prática; os ciclos de produção inefavelmente texto, o enfrentamento com a potência opositora
medidos por números; as flutuações do comporta- colocou em mira áreas vulneráveis à expansão
mento político imperialista norte-americano e suas comunista. Tudo se agitou ainda mais frente ao
estratégias de dominação; e, mais recentemente, a lançamento do satélite Sputnik, em 1957, e de-
variação temática assumida pelas novas gerações pois, com os desdobramentos da Revolução Cuba-
de brasilianistas, que se dedicam, destacadamente, na nos anos da década de 1960 em diante. A pro-
a temas sociocomportamentais, menos ligados ao teção continental deixaria então de ser tendência,
estabelecimento do poder institucional. O fatia- para assumir a condição de política estratégica.
mento temporal – em particular o isolamento do Juntando partes, a prática educacional dos Es-
período correspondente ao regime militar – tam- tados Unidos passaria supostamente a exercitar
bém atua como fator discriminatório, pois quase seus adeptos a estudos de áreas, alijados de inten-
toda a produção de uma geração tem sido vista ções acadêmicas, culturais ou científicas. Como
como atestado de um projeto que marcaria o uso parte de continuidade firmada desde o começo
mecânico de pesquisadores como “intrusos”. Vale do século XX, a América Latina ganharia desta-
lembrar que o tom paternalista de abordagens ex- que nesse plano, e nela o Brasil mereceria realce
plicativas preside a reflexão acadêmica que reforça pelo tamanho, importância e função estratégica.
o eterno caráter defensivo da matéria. O desconhecimento das partes, porém, se tornou
A fácil constatação de alguns desses aspectos, notável, havendo esforço compensatório dos Es-
contudo, entre nós, carece de desconhecimento do tados Unidos para com a América Latina, ainda
outro lado da moeda, fator que ilustra o sentimento que a recíproca não se reconhecesse verdadeira.
defensivo, declarado ou enrustido. Sem levar em Amedrontados, sem entender o significado mo-
conta as relações anteriores dos pioneiros acadê- tivador de tantos estudos, setores da intelectuali-
micos com seus futuros alunos, seria temerário as- dade brasileira, em particular no meio acadêmico,
sumir continuidades. Exemplos importantes, como se compuseram com segmentos que identificavam
do latino-americanista Frank Tannenbaum, que o golpe militar com a efetiva participação polí-
orientou Richard Morse, que, por sua vez, motivou tica norte-americana. Logicamente, não faltavam
uma plêiade de significativos brasilianistas – como aspectos indicadores da interferência estaduni-
Dain Borges, Thomas Cohen, Jeffrey Needel, Mat- dense nos procedimentos políticos dos anos de
thew Shirts –, de Stanley Stein, que acompanhou chumbo, nem se pode deixar de perceber alguns
Robert M. Levine, que, por sua vez, orientou Pe- acadêmicos norte-americanos empenhados nes-
ter Batie, entre muitos outros casos, caracterizam se processo, mas daí a assumir o conjunto como

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uma espécie de patrulha é exagero grande, e muito pesquisas brasileiras sobre o assunto dimensiona-
consequente. Há evidente e justificável explicação vam a caracterização modernizadora das nossas
para procedimentos de rejeição antiamericana que, ciências humanas e a distinção de uma cultura
sim, sempre se fez efetiva. Os críticos desse ramo intelectual que, por ter discernimento dos valores
do brasilianismo, no entanto, neutralizaram dife- estrangeiros, escolhe o que convém para diálogos.
renças, propondo uma propaganda contrária, fun- Mas o que se avoluma como consequência
damentada na reverberação local. É verdade que desse processo todo é a inevitável permanência
sempre existiram intelectuais mais precavidos que do sentimento antibrasilianista. Passado o tempo,
reconheceram a construção de um discurso anti- mesmo com as marcas deixadas pela construção
brasilianista, mas estes, contudo, não exerceram preconceituosa do discurso contrário, o que se tem
efetiva ação de contraste. Junto à conveniência de é a projeção das sombras que, no presente, reco-
silêncios de alguns, outros trataram de propor para nhecem a inevitável atuação dos novos brasilianis-
seus alunos pesquisas que eventualmente permitis- tas, mas a percebem destituída de atributos polí-
sem fundamentação oposta à dos estudiosos norte- ticos. Isso, diga-se, é outra forma de manter vivo
-americanos. Foi assim que se nutriu o sentimento o antibrasilianismo. A presença das oposições ao
antibrasilianista que, apesar de mostras evidentes, brasilianismo, por disfarçadas ou irreconhecidas,
nunca se assumiu como tal, evoluindo num discur- servirá de combustível para nutrir prosseguimen-
so de aparente fundamentação sociológica. É nesse tos que tendem a se desdobrar, pelo menos enquan-
cenário incerto e nebuloso que, como expressão to não houver condições de amadurecimento do
de um nacionalismo acadêmico embutido, muitas corpo crítico nacional brasileiro.

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