SANTOS, Boaventura de Souza

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SANTOS, Boaventura de Souza.

Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência


pós-moderna. Estudos Avançados.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-
moderna.  Estud. av. [online]. 1988, vol.2, n.2 [cited  2016-06-12], pp.46-71. Available from:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141988000200007&lng=en&nrm=iso>. ISSN
1806-9592.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141988000200007.

 Tal como noutros períodos de transição, difíceis de entender e de percorrer, é


necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples,
perguntas que, como Einstein costumava dizer, só uma criança pode fazer mas que,
depois de feitas, são capazes de trazer uma luz nova à nossa perplexidade.
 Questionamento de Rousseau: Há alguma razão de peso para substituirmos o
conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os
homens e mulheres de nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por
poucos e inacessível à maioria?
 A urgência de dar resposta a perguntas simples, elementares, inteligíveis. Uma
pergunta elementar é uma pergunta que atinge o magma mais profundo da nossa
perplexidade individual e coletiva com a transparência técnica de uma fisga
 Teremos forçosamente de ser mais rousseaunianos no perguntar do que no responder;
 Cientes de que o que os separa do saber aristotélico e medieval ainda dominante não é
apenas nem tanto uma melhor observação dos fatos como sobretudo uma nova visão
do mundo e da vida, os protagonistas do novo paradigma conduzem uma luta
apaixonada contra todas as formas de dogmatismo e de autoridade;
 Ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistematicamente das
evidências da nossa experiência imediata. Tais evidências, que estão na base do
conhecimento vulgar, são ilusórias;
 Bacon, a ciência fará da pessoa humana" o senhor e o possuidor da natureza;
 Galileu só refuta as deduções de Aristóteles na medida em que as acha insustentáveis e
é ainda Einstein quem nos chama a atenção para o fato de os métodos experimentais
de Galileu serem tão imperfeitos que só por via de especulações ousadas poderia
preencher as lacunas entre os dados empíricos (basta recordar que não havia medições
de tempo inferiores ao segundo). Descartes, por seu turno, vai inequivocamente das
ideias para as coisas e não das coisas para as ideias e estabelece a prioridade da
metafísica enquanto fundamento último da ciência
 Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências
principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-
se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer,
desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que
eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente
irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da
complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender
completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar
relações sistemáticas entre o que se separou;
 A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos pressupostos
epistemológicos e das regras metodológicas já referidas. É um conhecimento causal
que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a prever
o comportamento futuro dos fenômenos.
 As leis, enquanto categorias de inteligibilidade, repousam num conceito de
causalidade escolhido, não arbitrariamente, entre os oferecidos pela física aristotélica.
As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como
funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. É por
esta via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso comum.
É que, enquanto no senso comum, e portanto no conhecimento prático em que ele se
traduz, a causa e a intenção convivem sem problemas, na ciência a determinação da
causa formal obtém-se com a expulsão da intenção.
 Mas a verdade é que a ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição da
transformação tecnológica do real;
 A consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e
no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no
positivismo oitocentista. Dado que, segundo este, só há duas formas de conhecimento
científico — as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas
segundo o modelo mecanicista das ciências naturais — as ciências sociais nasceram
para ser empíricas. O modo como o modelo mecanicista foi assumido foi, no entanto,
diverso;
 Para estudar os fenômenos sociais como se fossem fenômenos naturais, ou seja, para
conceber os fatos sociais, como coisas, como pretendia Durkheim, o fundador da
sociologia acadêmica, é necessário reduzir os fatos sociais às suas dimensões externas,
observáveis e mensuráveis. As causas do aumento da taxa de suicídio na Europa do
virar do século não são procuradas nos motivos invocados pelos suicidas e deixados
em cartas, como é costume, mas antes a partir da verificação de regularidades em
função de condições tais como o sexo, o estado civil, a existência ou não de filhos, a
religião dos suicidas.
 Nagel tenta demonstrar que a oposição entre as ciências sociais e as ciências naturais
não é tão linear quanto se julga e que, na medida em que há diferenças, elas são
superáveis ou negligenciáveis.
 Na teoria das revoluções científicas de Thomas Kuhn o atraso das ciências sociais é
dado pelo caráter pré-paradigmático destas ciências, ao contrário das ciências naturais,
essas sim, paradigmáticas. Enquanto, nas ciências naturais, o desenvolvimento do
conhecimento tornou possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias
sobre a estrutura da matéria que são aceites sem discussão por toda a comunidade
científica, conjunto esse que designa por paradigma, nas ciências sociais não há
consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar verticalmente toda a
espessura do conhecimento adquirido. O esforço e o desperdício que isso acarreta é
simultaneamente causa e efeito do atraso das ciências sociais.
 O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito
e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis,
uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito
diferentes. A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as
ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes
mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações, para o que é necessário
utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos
correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com
vista à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em
vez de um conhecimento objetivo, explicativo e nomotético.
 A crise do paradigma dominante é o resultado interativo de uma pluralidade de
condições. Distingo entre condições sociais e condições teóricas.
 O questionamento da causalidade nos tempos modernos vem de longe, pelo menos
desde David Hume e do positivismo lógico.
 Defensores da causalidade, como Mario Bunge, reconhecem que ela é apenas uma das
formas do determinismo e que por isso tem um lugar limitado, ainda que
insubstituível, no conhecimento científico.
 Não restam dúvidas que o que a ciência ganhou em rigor nos últimos quarenta ou
cinquenta anos perdeu em capacidade de autorregulação.
 Industrialização da ciência acarretou o compromisso desta com os centros de poder
econômico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição
das prioridades científicas.
 Ciência e a tecnologia têm vindo a revelar-se as duas faces de um processo histórico
em que os interesses militares e os interesses econômicos vão convergindo até quase à
indistinção. No domínio da organização do trabalho científico, a industrialização da
ciência produziu dois efeitos principais. Por um lado, a comunidade científica
estratificou-se, as relações de poder entre cientistas tornaram-se mais autoritárias e
desiguais e a esmagadora maioria dos cientistas foi submetida a um processo de
proletarização no interior dos laboratórios e dos centros de investigação. Por outro
lado, a investigação capital-intensiva (assente em instrumentos caros e raros) tornou
impossível o livre acesso ao equipamento, o que contribuiu para o aprofundamento do
fosso, em termos de desenvolvimento científico e tecnológico, entre os países centrais
e os países periféricos.
 A distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais começa a deixar de ter
sentido e utilidade. Esta distinção assenta numa concepção mecanicista da matéria e da
natureza a que contrapõe, com pressuposta evidência, os conceitos de ser humano,
cultura e sociedade.
 O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não-
dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e
óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/ cultura,
natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado,
subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa.
 Que os modelos explicativos das ciências sociais vêm subjazendo ao desenvolvimento
das ciências naturais Que os modelos explicativos das ciências sociais vêm subjazendo
ao desenvolvimento das ciências naturais. É como se o dito de Durkheim se tivesse
invertido e em vez de serem os fenômenos sociais a ser estudados como se fossem
fenômenos naturais, são os fenômenos naturais estudados como se fossem fenômenos
sociais.
 É como se o dito de Durkheim se tivesse invertido e em vez de serem os fenômenos
sociais a ser estudados como se fossem fenômenos naturais, são os fenômenos naturais
estudados como se fossem fenômenos sociais.
 Em resumo, à medida que as ciências naturais se aproximam das ciências sociais estas
aproximam-se das humanidades.
 A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalisador da
progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais coloca a pessoa, enquanto
autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao contrário das
humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por natureza no centro da
pessoa. Não há natureza humana porque toda a natureza é humana. É pois necessário
descobrir categorias de inteligibilidade globais, conceitos quentes que derretam as
fronteiras em que a ciência moderna dividiu e encerrou a realidade
 O que antes era a causa do maior atraso das ciências sociais é hoje o resultado do
maior avanço das ciências naturais. Daí também que a concepção de Thomas Kuhn
sobre o caráter pré-paradigmático (isto é, menos desenvolvido) das ciências sociais,
que eu, aliás, subscrevi e reformulei noutros escritos, tenha de ser abandonada ou
profundamente revista.
 A superação da dicotomia ciências naturais/ciências sociais tende assim a revalorizar
os estudos humanísticos. Mas esta revalorização não ocorrerá sem que as humanidades
sejam, elas também, profundamente transformadas.
 O mundo, que hoje é natural ou social e amanhã será ambos, visto como um texto,
como um jogo, como um palco ou ainda como autobiografia.
 Na ciência moderna o conhecimento avança pela especialização. O conhecimento é
tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objeto sobre que incide. Nisso reside,
aliás, o que hoje se reconhece ser o dilema básico da ciência moderna: o seu rigor
aumenta na proporção direta da arbitrariedade com que espartilha o real. É hoje
reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do
cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos.
 Os males desta parcelização do conhecimento e do reducionismo arbitrário que
transporta consigo são hoje reconhecidos, mas as medidas propostas para os corrigir
acabam em geral por os reproduzir sob outra forma. Criam-se novas disciplinas para
resolver os problemas produzidos pelas antigas e por essa via reproduz-se o mesmo
modelo de cientificidade.
 Ao contrário do que sucede no paradigma atual, o conhecimento avança à medida que
o seu objeto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e
pelo alastramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces.
 Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é
perguntada.
 A inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à
aplicação dos métodos fora do seu habitat natural.
 A nova dignidade da natureza mais se consolidou quando se verificou que o
desenvolvimento tecnológico desordenado nos tinha separado da natureza em vez de
nos unir a ela e que a exploração da natureza tinha sido o veículo da exploração do
homem.
 Parafraseando Clausewitz, podemos afirmar hoje que o objeto é a continuação do
sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento científico é autoconhecimento.
 Característica do conhecimento científico pós-moderno: 1ª Todo o conhecimento
científico-natural é científico-social; 2ª Todo o conhecimento é local e total; 3ª Todo
o conhecimento é autoconhecimento; 4ª Todo o conhecimento científico visa
constituir-se num novo senso comum
 Conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático com que no
quotidiano orientamos as nossas ações e damos sentido à nossa vida. A ciência
moderna construiu-se contra o senso comum que considerou superficial, ilusório e
falso. A ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum por reconhecer nesta
forma de conhecimento algumas virtualidades para enriquecer a nossa relação com o
mundo.
 O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo
assente na ação e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais. O
senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às
experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável
e securizante. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos
objetivos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento que os projeta em nome do
princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência
lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão
para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade
horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso
comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente
orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da
vida. O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a ação que não
produza rupturas significativas no real. Por último, o senso comum é retórico e
metafórico; não ensina, persuade. Deixado a si mesmo, o senso comum é
conservador e pode legitimar prepotências, mas interpenetrado do conhecimento
científico pode estar na origem de uma nova racionalidade.
 Na ciência moderna a ruptura epistemológica simboliza o salto qualitativo do
conhecimento do senso comum para o conhecimento científico; na ciência pós-
moderna o salto mais importante é o que é dado do conhecimento científico para o
conhecimento do senso comum. O conhecimento científico pós-moderno só se realiza
enquanto tal na medida em que se converte em senso comum.
 A prudência é a insegurança assumida e controlada. Tal como Descartes, no limiar da
ciência moderna, exerceu a dúvida em vez de a sofrer, nós, no limiar da ciência pós-
moderna, devemos exercer a insegurança em vez de a sofrer.

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