Notas de Aula Física Moderna
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Capítulo 2 – Teoria Quântica da Radiação
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Equipamentos de visão noturna são construídos para captar esses comprimentos de onda predominantes, os
quais pertencem à região espectral do infravermelho.
2
característica de emissão de um corpo e seu potencial de absorção, o que pode ser atestado
por princípios fundamentais da termodinâmica. Num caso extremo, poderíamos conceber
um corpo dotado de uma perfeita capacidade de absorção, ou seja, um sorvedouro ideal de
toda a radiação incidente. Esse ente ideal recebe, graças a essa característica, o nome de
corpo negro.
Do ponto de vista teórico, está perfeitamente determinado o que é um corpo negro,
mas, na prática, não é simples imaginar a que pode corresponder um construto dessa
natureza. Uma possibilidade, já aventada por Kirchhoff no âmbito dos esforços descritos na
próxima seção, tornou-se um padrão: uma cavidade com algumas características peculiares.
Normalmente, usa-se para emular um corpo negro uma caixa metálica com paredes à
mesma temperatura e com um pequeno orifício. É lícito supor que um raio que adentre a
caixa pelo orifício sofrerá sucessivas reflexões nas paredes, e, muito provavelmente, será
absorvido. Ora, isso quer dizer que a caixa terá uma característica ideal de absorção, que é
exatamente o que esperamos de um corpo negro! A Fig. 2.1 ilustra essa idéia.
Figura 2.1
Como as características de interesse dessa caixa devem ser muito próximas das previstas
para um corpo negro, não se espante o leitor ao se deparar com a expressão “radiação de
cavidade”.
Ef = Ef(f,T) (2.1)
3
onde f é a freqüência da radiação e T é a temperatura do corpo negro. Trazer a dependência
para bases tão simples já é uma contribuição estupenda, mas Kirchoff foi ainda mais longe
e, como já antecipamos, sugeriu o uso de um “forno” a temperatura uniforme dotado de
uma cavidade como êmulo de um corpo negro [Born, 1986]. Por fim, o eminente físico
conclamou seus pares à busca dessa função [Pais, 1995], cuja enorme importância advém,
num certo sentido, da marcante simplicidade da relação expressa em (2.1). Kirchoff não
poderia fazer idéia da extensão da influência que seu apelo teria sobre o futuro da ciência.
Em 1879, Josef Stefan propôs que a “energia total” (por unidade de tempo e por
unidade de área) emitida por um corpo seria proporcional à quarta potência de sua
temperatura absoluta (em kelvin). Ludwig Boltzmann, em 1884, mostrou que a lei proposta
por Stefan é válida, com tal grau de generalidade, apenas para corpos negros [Pais, 1995].
Com isso, chegamos à lei de Stefan-Boltzmann, que representaremos da seguinte forma:
sendo σ = 5.6703.10-8 watt/(m2.K4). À luz da função Ef(f,T), por nós definida na seção
anterior, podemos detalhar a equação (2.2):
∞
E total = ∫ E f (f , T).df = σT 4 (2.3)
0
Ainda não se conhecia a forma de Ef, mas já era possível, graças a uma engenhosa
argumentação baseada na termodinâmica e no eletromagnetismo, ter conhecimento de uma
importante propriedade de tal função.
É hora de travarmos contato com mais um dos protagonistas desta busca: Wilhelm
Wien. Em 1893, ele propôs a célebre lei do deslocamento:
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a emitância em termos de comprimentos de onda, temos de nos lembrar que a função Ef
indica uma densidade de energia para o intervalo df. Por analogia, devemos fazer:
df = (-c/λ2).dλ (2.6)
O sinal negativo indica que o aumento do comprimento de onda significa uma diminuição
em freqüência e vice-versa. Temos, portanto,
O sinal negativo pôde ser desprezado, pois consideramos uma variação dλ positiva. Para
que obtenhamos o comprimento de onda para o qual há máxima emissão, precisamos
derivar Eλ com respeito a λ e igualar o resultado a zero:
c4 − 5 c c c
5
. F − 2 F' = 0 (2.9)
λ λ λT λ T λT
2
Como exercício, busque o leitor deduzir de (2.4) a relação em freqüência.
5
Podemos ainda provar que a lei do deslocamento de Wien tem, como caso
particular, a lei de Stefan-Boltzmann. Para tanto, voltemos à forma da equação (2.4).
Realizemos a integral para todas as frequências, como em (2.3):
∞ ∞ ∞
E total = ∫ E f (f , T ).df = ∫ f 3 .F(f / T).df = T 4 ∫ x 3 .F( x ).dx = T 4 .σ (2.11)
0 0 0
que é justamente a forma expressa em (2.2). A mudança de variável efetuada foi x = f /T.
Desde o desafio inicial de Kirchoff, surgiram diversas expressões para Ef. A maioria
delas foi “esquecida” com o passar dos anos, mas houve uma que marcou época, e foi
considerada, por algum tempo, a resposta definitiva ao problema. Trata-se da lei da
radiação de Wien, o mesmo cientista que propôs a lei do deslocamento3. Sua expressão,
publicada em 1896, tem a seguinte forma:
T = 5000K
7
6
Ef (f,T) em watt/m2.Hz
T = 4000K
4
2
T = 3000K
0
0 5 10 15
Frequência (Hz) 14
x 10
Figura 2.2
3
Wien receberia, em 1911, o prêmio Nobel de Física “por suas descobertas envolvendo as leis que governam
a radiação de calor”.
6
os dados com tão poucas constantes” [Pais, 1995]. Tal veredicto imperou por alguns anos,
durante os quais parecia ser a equação (2.12) a resposta para a indagação de Kirchoff. No
entanto, o avanço das possibilidades experimentais permitiu que houvesse estudos na faixa
do infravermelho longínquo, domínio em que a lei de Wien, como veremos, não seria capaz
de se sustentar. Antes, porém, de chegarmos a essa discussão, convém analisar o que a
Física Clássica tinha a dizer sobre a forma da função que se desejava encontrar.
Até que ponto a Física Clássica pode nos levar na análise do problema da radiação
do corpo negro? O que ela tem a nos dizer? Podemos, a partir de seu arcabouço teórico,
encontrar a resposta definitiva para a indagação de Kirchoff? Os trabalhos de Lord
Rayleigh, Albert Einstein e James Jeans forneceram uma perturbadora resposta a essas
questões.
Voltemos a nossa caixa metálica dotada de uma cavidade. Supõe-se que a radiação
térmica na cavidade seja composta por ondas estacionárias, cada uma correspondente a um
“modo de vibração” [Ohanian, 1995]. Cada modo, por sua vez, pode ser associado à idéia
de um oscilador harmônico. Através de um raciocínio baseado principalmente no
eletromagnetismo, chega-se a uma equação que relaciona a energia média dos osciladores à
função Ef procurada:
2πf 2
E f (f , T ) = ε med (2.13)
c2
εmed = kT (2.14)
exp(−ε / kT )
p (ε ) = ∞
(2.15)
∫
0
exp(−ε / kT ).dε
sendo a integral do denominador necessária para fazer com que a integral de p(ε) de zero a
infinito seja igual a um, como requer uma função de densidade de probabilidade.
Empregando a definição de média de uma variável aleatória qualquer,
7
∞
x med = ∫ x.p( x ).dx (2.16)
−∞
chegamos à expressão:
ε med =
∫ ε. exp(−ε / kT).dε = kT
0
(2.17)
∞
∫ exp(−ε / kT).dε
0
2πf 2
E f (f , T ) = kT (2.18)
c2
1 T = 5000K
T = 4000K
Ef (f,T) em watt/m2.Hz
0.8
T = 3000K
0.6
0.4
0.2
0
0 5 10 15
Frequência (Hz) 14
x 10
Figura 2.3
Convém expor um pouco da história dessa fórmula, narrada em [Pais, 1995]. Lord
Rayleigh sugeriu, em 1900, que se aplicasse a idéia de equipartição, que delineamos acima,
ao problema da radiação de cavidade. A partir dessa noção crucial, ele obteve uma
expressão do tipo:
sem, no entanto, calcular c1. Podemos perceber que esta equação tem (2.18) como um caso
particular. Ele também já percebera que esta lei devia ser encarada como um caso-limite
para baixas frequências. O motivo para isso é o seguinte: como podemos notar, (2.18) e
(2.19) levam a valores de Ef que aumentam explosivamente com o aumento de f. Trata-se
de um comportamento totalmente incoerente com a experiência, razão pela qual se dá a ele
8
o sugestivo nome de catástrofe ultravioleta (vide Fig. 2.3). Para solucionar, ad hoc, tal
problema, Rayleigh sugeriu a introdução de um fator de corte exponencial, o que gerou
uma lei do tipo:
∞ ∞
E total = ∫ E f (f , T )df = C.∫ f 2 df → ∞ (2.21)
0 0
Observação: Em muitos livros, não se trabalha com a emitância espectral Ef(f, T) e sim
com a densidade espectral de energia uf(f,T). Ambas são idênticas a menos de uma
constante:
Neste capítulo, trabalhamos sempre com Ef, mesmo quando mencionamos trabalhos
em que o desenvolvimento original se deu através do emprego de uf.
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2.7 – Dos experimentos de Lummer, Pringsheim, Rubens e Kurlbaum à Lei da
Radiação de Planck
Max Karl Ernst Ludwig Planck é, indiscutivelmente, o pai da Teoria Quântica. Ele
não só propôs a melhor fórmula para a função Ef(f, T), como, para justificá-la, lançou a
hipótese da quantização da energia, que teria uma papel de enorme destaque no pensamento
físico do século XX. No entanto, Planck não tinha, à época, idéia do alcance da hipótese de
que lançara mão para encontrar uma expressão coerente com a experimentação e dotada de
alguma fundamentação física. Foi apenas com advento do trabalho de Einstein sobre a
natureza da luz, e, posteriormente, com as contribuições de de Broglie, Böhr, Heisenberg,
Schrödinger e outros, que a nova revolução “ganhou corpo”. Não obstante, o mérito de
Planck e a importância de sua revolucionária hipótese, sobre cuja essência agora nos
debruçaremos, são enormes.
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sendo h uma constante. Na Fig. 2.4, temos esta expressão representada para três valores
distintos de temperatura.
-8
x 10 LEI DE PLANCK
8
7
T = 5000K
Ef(f,T) em watt/m2.Hz
T = 4000K
5
3
T = 3000K
2
0
0 5 10 15
Frequência (Hz) 14
x 10
Figura 2.4
Ele enviou a fórmula para Rubens no mesmo dia e apresentou-a publicamente no dia 19 de
outubro, após uma apresentação de Kurlbaum.
A equação (2.23) se reduz à lei de Wien (equação 2.12) para hf >> kT (que era
justamente a faixa na qual trabalhou Paschen, vide seção 2.5) e à lei de Rayleigh-Einstein-
Jeans para f próximo de zero. Isto mostra que a lei de Planck se reduz às leis conhecidas
justamente no domínio em que elas têm o melhor desempenho, o que é altamente positivo.
Além disso, a equação (2.23) se ajusta muito bem aos dados experimentais para todos os
valores de λ e T testados. Nas palavras de Pringsheim, “a equação de Planck apresenta tão
bom acordo com a experiência que pode ser considerada, pelo menos com grande
aproximação, como a expressão matemática da função de Kirchoff” [Pais, 1995].
Planck havia atingido seu objetivo maior; no entanto, faltava ainda uma outra
resposta: como justificar, teoricamente, a expressão (2.23)? Foi necessário, nas palavras do
próprio Planck, “um ato de desespero” para “obter um resultado positivo, de qualquer modo
e a qualquer preço” [Ohanian, 1995]. Esse ato de desespero foi, sem dúvida, revolucionário.
Para obter a expressão (2.23), Planck precisou recorrer a uma idéia ousada: a
quantização da energia. Em termos simples, ele supôs que os osciladores materiais que
compõem as paredes da caixa com cavidade (o nosso “forno metálico”) só poderiam
assumir valores discretos de energia. Matematicamente, as energias permitidas seriam:
ε = n.ε0 (2.24)
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O raciocínio de Planck pode ser considerado idêntico ao de Rayleigh, Einstein e
Jeans até a equação (2.13)4. É justamente a determinação de εmed que se torna o “pomo da
discórdia” entre as duas teorias. Na teoria clássica, supõe-se aplicável o teorema da
eqüipartição, como discutimos na seção 2.6. Esse teorema nos conduziu a εmed = kT e à
catástrofe ultravioleta. A equação (2.24) pode nos salvar desta catástrofe? Vejamos.
Continuemos a assumir que a probabilidade relativa de ocorrência de um oscilador
com energia ε é exp(-ε/kT). Dessa forma, chegaremos à seguinte expressão:
∑ n.ε .exp(−nε
0 0 / kT)
ε med = n =0
∞
(2.25)
∑ exp(−nε
n =0
0 / kT)
∑ n.ε .exp(−nε
0 0 / kT)
d ∞
d 1 ε0
ε med = n =0
∞
=− ln ∑ exp(−βnε 0 ) = − ln = (2.26)
dβ n = 0 dβ 1 − exp(−βε 0 ) exp(βε 0 ) − 1
∑ exp(−nε
n =0
0 / kT)
2πf 2ε 0 1
E f (f , T) = (2.27)
c 2
exp(ε 0 / kT) − 1
Para que a equação (2.27) obedeça à lei do deslocamento de Wien (equação (2.4)), é
preciso que valha a relação:
ε0 = h.f (2.28)
sendo h uma constante, que depois veio a ser conhecida como constante de Planck. Planck
obteve, com os dados experimentais de que dispunha, o valor h = 6.55.10-34 J.s. O melhor
valor, atualmente, é de 6.626.10-34 J.s, o que deixa claro quão notável foi o trabalho
experimental da época.
Podemos indagar: o que há na hipótese quântica que pôde prevenir a catástrofe
ultravioleta? Imaginemos um oscilador quiescente, ou seja, com energia nula. Para que ele
possa oscilar com uma frequência f qualquer, é preciso que lhe seja fornecida uma energia
diretamente proporcional a f (vide a equação (2.28)). Isso mostra que, para frequências
muito altas, será preciso fornecer uma grande quantidade de energia para que haja a
oscilação. Isto impõe sérias restrições ao conteúdo energético nessa região, o que previne a
ocorrência de algo como a catástrofe do ultravioleta.
4
Nossa exposição dos passos que levam à lei de Planck não deve ser encarada como uma seqüência rigorosa
dos passos seguidos pelo físico alemão. Aqui, nossa “linha mestra” privilegiará a didática, e não a cronologia.
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Havia sido dada uma resposta altamente satisfatória à pergunta de Kirchoff. Porém,
foi alto preço pago: introduziu-se uma hipótese completamente estranha ao mundo clássico.
Poderia a quantização da energia se sustentar? A resposta, literalmente, está nos próximos
capítulos...
Lei de Planck
7 Lei de Wien
6
Ef (f,T) em watt/m2.Hz
4 Lei de Rayleigh-
Einstein-Jeans
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Frequência (Hz) 14
x 10
Figura 2.6
Bibliografia do Capítulo 2:
[Ohanian 1995] H. Ohanian, Modern Physics, Prentice Hall, Second Edition, 1995.
[Pais 1995] A. Pais, Sutil é o Senhor: a Ciência e a Vida de Albert Einstein, Nova
Fronteira, 1995.
[Serway 1990] R. Serway, Physics for Scientists and Engineers, Saunders College
Publishing, Third Edition, 1990.
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