Dom Quixote - ARTIGO Clara e Toninho
Dom Quixote - ARTIGO Clara e Toninho
Dom Quixote - ARTIGO Clara e Toninho
1. Introdução
Já se vão mais de quatrocentos anos desde que o livro Dom Quixote de la Mancha,
escrito pelo autor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), fora publicado pela primeira
vez. Desde então, a trajetória do fidalgo espanhol que, após demasiadas leituras de novelas
de cavalaria, sai em busca de aventuras e batalhas, tem sido contada e reproduzida tantas
vezes que são inúmeras suas releituras.
No que concerne ao contexto brasileiro, entre 1955 e 1956, o pintor Candido
Portinari (1903-1962), desenhou uma série de vinte e duas gravuras a lápis baseadas na
obra Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes (1547-1616). No ano de 1972, o
poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), a convite de Gastão de Holanda,
escreveu poemas referentes aos desenhos feitos por Portinari, que culminaram no
lançamento do livro D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond, publicado em 1973.
Na esfera musical, temos pelo menos três famosas canções de artistas brasileiros
com o título da obra cervantina: a da banda de rock formada durante o Tropicalismo, Os
Mutantes1, lançada em 1969; a de Milton Nascimento, em 1989 e, a canção que será
analisada no presente artigo, da banda Engenheiros do Hawaii, lançada em 2001.
Em comum, as diversas interpretações sob o tema do ethos quixotesco, apresentam
questionamentos relacionados aos mais universais desejos e inquietações do homem e
remontam a um ser que, em seu devaneio, exterioriza sua fragilidade frente tanto ao mundo
prosaico, quanto ao seu próprio mundo fantasioso e repleto de utopias.
É objetivo deste artigo, apresentar uma análise da canção Dom Quixote, de
Engenheiros do Hawaii, e a sua relação interdiscursiva com a obra literária de Miguel de
Cervantes. Nossa fundamentação teórica se posiciona na contribuição analítica dos estudos
bakhtinianos, bem como nos subsequentes desenvolvimentos desta teoria. É nossa
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A banda sobreviveu ao fim da Tropicália e serviu como transição para o que viria a ser o rock brasileiro dos
anos 1970 e 1980, que será abordado na próxima seção.
proposta, a partir desta concepção teórico-metodológica, estabelecer reflexões sobre o
conceito de verbivocovisualidade, tal qual proposto por Paula. Finalizamos nosso artigo
com uma reflexão sobre a ressignificação dada por Humberto Gessinger no personagem de
Cervantes, sendo a letra da canção a representação de alguém que “rema contra a corrente”
e persiste mesmo em tempos de “causas perdidas”.
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DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora 34,1995
Ao associarmos a letra da canção à sua historicidade, isto é, início dos anos 2000,
época em que a música Dom Quixote foi gravada, os Engenheiros já era uma das raras
bandas de rock que sobreviveram com o mesmo entusiasmo dos anos 80. Outras vertentes
do rock surgiam, como o emocore, caracterizado por suas letras e melodias simplistas, mas
que conquistou grande parte do público jovem do período. Assim, cada vez mais o Brock
se distanciava de seus discursos politizados, trazendo consigo outra marca sócio-histórico-
ideológica dos sujeitos que as enunciavam.
A poesia, a liricidade e a complexidade sonora das canções eram dispensáveis para
a nova concepção de rock que se produzia e, por isso, parecia mesmo que o rock era uma
“causa perdida”, mas uma causa a qual Gessinger lutaria.
Cada produto ideológico e todo seu “significado ideal” não estão na alma,
nem no mundo interior e nem no mundo isolado das ideias e dos sentidos
puros, mas no material ideológico disponível e objetivo, na palavra, no
som, no gesto, na combinação das massas, das linhas, das cores, dos
corpos vivos, e assim por diante. Cada produto ideológico (ideologema) é
parte da realidade social e material que circunda o homem, é um
momento do horizonte ideológico materializado. Não importa o que a
palavra signifique, ela, antes de mais nada, está materialmente presente
como palavra falada, escrita, impressa, sussurrada no ouvido, pensada no
discurso interior, isto é, ela é sempre parte objetiva e presente do meio
social do homem. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 50, grifos nossos)
Assim, não há sentido - linguagem - fora das relações sociais, isto é, fora das
relações dialógicas entre duas consciências, em um tempo e espaço específicos. Por esse
motivo, o Círculo fundamenta-se no materialismo histórico proposto por Marx, pois, é o
modo que toda a produção material de uma sociedade é realizada, constitui o vetor
determinante de organização social e de representações intelectuais de uma época em que
compõe a infraestrutura e estabelece outra, superestrutura, a ideologia hegemônica.
Essa determinação, por sua vez, de acordo com o Círculo, ocorre pela materialidade
linguagem, na enunciação do sujeito concreto situado social e historicamente. É a palavra o
termômetro de maior sensibilidade de mudança social. Ela está repleta de significados
historicamente construídos pela interação verbal. Com isso, todo “signo é ideológico”.
Pois referir-se à ideologia é, em essência, pensar em sentido. Assim, o que é ideológico
tem significado e alude a algo que está fora de si, logo, o que é ideológico é um signo
(VOLÓCHINOV, 2017).
Tal afirmação é possível porquanto, como o próprio autor indica, “o domínio do
ideológico coincide com o domínio dos signos; são mutuamente correspondentes” (idem,
p. 22). Desse modo, as interações verbais entre os sujeitos vinculam-se intrinsecamente às
condições sociais determinadas e conforme as menores alterações deste meio, os
indivíduos reagem a ela. É em consequência disso que as formas da língua também se
alteram. Ou seja, as relações se alteram e afetam as interações verbais que, por sua vez,
também se mudam no nível do quadro social, delas alteram as formas dos atos de fala que,
por fim, incidem nas formas da língua.
É em virtude desse processo que, de acordo com os pensadores russos, pode-se
considerar que quaisquer fenômenos, os quais operam como signo ideológico, encarnam
em uma dada materialidade de variadas dimensões (som, cor, massa física, o próprio corpo
em relação ao mundo, etc), isso faz com que a realidade do signo se torne totalmente
objetiva e passível de um estudo que seja metodologicamente unitário e objetivo (Ibidem).
A partir de tal perspectiva, partimos da concepção de linguagem para o Círculo e a
qual entendemos de forma tridimensional composta pelas dimensões verbal, vocal/sonora e
visual, que Paula denomina, metaforicamente, verbivocovisual. Embora os intelectuais
russos não tenham utilizado os termos “tridimensionalidade” e “verbivocovisualidade”, tal
apropriação, que advém de James Joyce e da Poesia Concreta, faz-se pertinente, pois
encontramos nos escritos bakhtinianos passagens que convergem com a proposta
apresentada. Por exemplo, a noção de uma linguagem das linguagens presente no ensaio
“O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas”, no qual
diz o texto:
Todo sistema de signos (isto é, qualquer língua), por mais que sua
convenção se apoie em uma coletividade estreita, em princípio
sempre pode ser codificada, isto é, traduzido para outros sistemas
de signos (outras linguagens); consequentemente, existe uma lógica
geral dos sistemas de signos, uma potencial linguagem das
linguagens única (que, evidentemente, nunca pode vir a ser uma
linguagem única concreta, uma das linguagens). (BAKHTIN, 2011,
p. 311)
Em seguida, o filósofo russo prossegue dizendo que é inegável, porquanto, por trás
de cada texto tem o sistema de linguagem. Ademais, os indícios de tal linguagem
tridimensional são reforçados ao depararmo-nos com os conceitos-chaves da teoria do
Círculo, a saber, podemos citar: entonação, voz, imagem externa, arquitetônica, polifonia,
dramaticidade, acento, máscara, imagem de autor, entre outras.
Essa construção e delimitação da concepção de linguagem foi possível graças a
formação heterogênea do Círculo, que contava com a participação de poetas, escultor,
musicistas, biólogo, filósofo, físicos, jornalistas e matemáticos. Além disso, o grupo estava
em constante diálogo com as correntes teóricas e artísticas de sua época (simbolismo,
futurismo, Formalismo etc).
É dessa maneira que compreendemos a verbivocovisualidade como um sistema de
linguagem em que há a articulação entre as dimensões verbal, vocal e visual, as quais se
organizam em seu potencial valorativo, revestindo todo e qualquer enunciado,
independente da materialidade, e a qual pode explicitar uma ou todas as dimensões,
conforme o projeto discursivo do sujeito, mas sem perder o vínculo à regra geral do
entrelaçamento indissociável tridimensional da linguagem.
Com isso, neste trabalho, partimos da concepção de linguagem para o enunciado
cancioneiro “Dom Quixote”, que consideramos como gênero secundário, pois é
relativamente mais organizado e desenvolvido, assim, incorporando e reelaborando dado
gênero primário, formado nas condições de comunicação discursiva imediata (BAKHTIN,
2011). Podemos, dizer, então, que a canção nasce da esfera do cotidiano (a vida), é
reelaborada, vai para a esfera artística e retorna para vida. A canção, como todo gênero
discursivo, é duplamente orientada. Isso acontece conforme notamos no ensaio “Discurso
na vida, discurso na arte”. Nele, Bakhtin-Voloshinov (s/d) mostram a constituição de um
enunciado, tanto na vida quanto na arte, feita pelo conteúdo, o autor e o ouvinte, assim
4. Análise da canção
Neste trecho, podemos observar que a divergência mostrada pelo sujeito que se
sente um “peixe fora d’água”, “borboletas no aquário” ou “puro sangue, puxando carroça”
evidencia um herói em desacordo com o mundo que o cerca e, justamente, ter esse
desajuste é que é considerado um otário ou o que, atualmente, chamamos de fazer “papel
de trouxa”. Inclusive, isso é reforçado nas rimas, pois nos quatro primeiros versos rimam,
enquanto nos dois últimos há uma divergência e destoam das anteriores.
Desse modo, então, temos um eu que vive em embate com o mundo, este tenta lhe
impor padrões que desprezam e mesmo tornam inúteis as competências e os valores
portados por esse sujeito da canção, crenças essas que são importantes e essenciais à vida.
Assim, novamente, faz com que um peixe, feito para nadar, esteja fora da água, uma
borboleta que deveria voar, mas que está no aquário ou, por fim, um animal de raça, “puro”
de grande potencial, que é usado para trabalho pesado e, em tese, ignora sua “grandeza”.
O desprezo por princípios essenciais ao ser humano e à vida é destacado na estrofe
seguinte da canção e que evidenciam a inversão de valores feita por um sistema social,
criticado pelo herói da canção. Nesse sentido, vemos o processo de reificação do ser
humano em contraposição ao enaltecimento do pragmatismo, superficialidade e bens
materiais. Por exemplo, nos versos “Um prazer cada vez mais raro / Aerodinâmica num
tanque de guerra / Vaidades que a terra um dia de comer”. Aqui, os conhecimentos
científicos são usados para as superficialidades, pois a aerodinâmica, que é investida em
tanque de guerra, instrumento destruição e morte, e o qual será deteriorado com o tempo,
poderia ser usada para melhorar as condições de vida, como, por exemplo, ajudar no
conforto de espaços ao ar livre, criar microclimas urbanos e reduzir os efeitos da poluição
urbana.
Tal explicitação de inversão de valores continua a ser demonstrada nos versos
seguintes, nos quais temos às referências às relações de poder, em que nem sempre o que
possui mais importância é o que prevalece. Assim, encontramos “’Às’ de espadas fora do
baralho / Grandes negócios, pequenos empresários”, isto é, o espadilha, considerado o
valor mais alto em muitos jogos de carta, é descartado, é posto para fora do jogo, tal como
o sujeito e seus valores diante da lógica sistêmica, pois, antes mesmo dos empresários, da
“pessoa”, vêm os grandes negócios, representando o dinheiro, o lucro exacerbado e o
poderio econômico, de modo que não interessa a pessoa crescer culturalmente, mas que
seus negócios tenham sucesso. Na atual conjuntura, por exemplo, podemos citar o
empreendimento das Lojas Havan, o qual tem 127 lojas em todo Brasil, com grandes
movimentações financeiras, geração de lucro, ao passo que o dono, Luciano Hang
(conhecido como “Véio da Havan”), é um ser medíocre, sonega impostos e incita ao ódio,
o que revela bem a grandiosidade dos negócios em contrapartida da pequenez dos
empresários, que, muitas vezes, só sabem pensar em números, cifras.
Diante de uma estrutura social desumano, então, na qual valores humanistas são
taxados como utópicos e ultrapassados, é que o sujeito da canção se posiciona e retoma os
versos iniciais, “Muito prazer, me chama de otário”, pois é “Por amor às causas perdidas”.
Posição esta manifestada explicitamente no refrão:
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Recurso musical que indica o aumento gradual da intensidade
primeira, revela-nos o embate entre o herói cancioneiro e os dragões/moinhos de vento,
que representam, para nós, duas vozes sociais distintas. E, neste enunciado, prevalece a
primeira, pois, as últimas notas a ressoarem, quase fracas, são das cordas, o que a posição
axiológica do autor-criador, Humberto Gessinger e Paulinho Galvão, nessa disputa.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail / Valentin Voloshinov. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Editora Hucitec, 1988.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Edição digital, 2005.
eBooksBrasil.com.
DAPIEVE, Arthur. Brock: o rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
GALVÃO, Paulinho; GESSINGER, Humberto. Dom Quixote. Intérprete: Engenheiros do
Hawaii. In: Engenheiros do Hawaii Acústico MTV. São Paulo: MTV, 2004. Faixa 7.
MEDVIÉDEV, Pável. O Método Formal nos Estudos Literários. São Paulo: Contexto,
2012.
NASCIMENTO, Milton. Don Quixote. Intérprete: Milton Nascimento. In: Miltons. CBS,
1988. Faixa 6.
PAULA, L. de. Verbivocovisualidade: uma abordagem bakhtiniana tridimensional da
linguagem. Projeto de pesquisa trienal (2017-2019), s/data.