As Multifaces Da Ocupação Indígena em Guarulho1
As Multifaces Da Ocupação Indígena em Guarulho1
As Multifaces Da Ocupação Indígena em Guarulho1
Por Beatriz Gomes, Camila Mazzotto, Giovanna Jarandilha, Jonas Santana, Larissa Vitória e Matheus Oliveira
A área central da Aldeia Indígena Filhos Desta Terra, em Guarulhos, cidade localizada ao norte da região
metropolitana de São Paulo, está coberta de pedaços de madeira, enxadas e carrinhos de mão. “Estamos
construindo uma oca”, diz Awa Kuaray Wera, de nome civil Gilberto Silva dos Santos. O indígena de 47 anos,
da etnia Tupi, vive há quase dezoito no município, mas é originário da Aldeia Bananal, de Peruíbe. Enquanto
caminha pelos quase 135 mil metros quadrados da ocupação, ele explica que ali nem todas as casas têm
banheiro; que o esgoto é despejado em uma fossa sem tratamento; e que os moradores sonham com a
presença de um posto de saúde e uma escola indígena no local.
Era dia 26 de outubro de 2017 quando os indígenas chegaram à terra. No início do mesmo ano, teriam
recebido da Subsecretaria de Igualdade Racial, órgão da Prefeitura de Guarulhos, o aviso de que, até agosto,
o terreno — prometido em 2008 após apresentarem o projeto de uma aldeia multiétnica à Prefeitura — seria
transferido à propriedade do grupo.
À época, a notícia correu rápido. Em menos de uma hora, reuniram-se esperançosos. “Foi uma festa”,
lembra Awa, que é educador no Parque Estadual da Cantareira. “A gente esperava por aquele momento
desde 2002, quando começamos a pensar no projeto da aldeia”.
Nos primeiros dias de outubro, porém, sobreveio a informação de que a Subsecretaria de Igualdade
Racial ainda não tinha o número do processo de efetivação da terra. Os representantes do grupo indígena —
entre eles, Awa — entraram, então, com um documento reivindicatório do espaço à Prefeitura. No dia
seguinte, sem respostas do órgão, decidiram ocupar o terreno. Nascia, ali, a Aldeia Filhos Desta Terra.
Desejo de se auto-sustentar
A variedade étnica, apesar dos desafios da convivência, é a aposta dos moradores para o sucesso de
um projeto corrente de auto-sustentação. “O plano pro ano que vem é trazer mais turismo para cá”, prediz
Awa. A ideia é abrir a comunidade para o exterior, atrair visitantes não-indígenas, desmistificar a cultura e,
principalmente, gerar renda própria.
“A gente não tem recurso aqui dentro”, comenta Antonio. Ele explica que muitos dos indígenas têm de
sair da aldeia e manter empregos formais a fim de sustentarem suas famílias. A conquista de autonomia
depende do aumento das vendas de artesanato nos eventos abertos para o público geral, e da liberdade de
plantar e colher o próprio alimento.
Contudo, observa o indígena, pelo fato de o espaço ser de proteção ambiental, a intervenção no
terreno torna-se mais burocrática. Além disso, a qualidade do solo também não é das melhores — a área
costumava abrigar um local de reciclagem de material de construção da Proguaru (Progresso e
Desenvolvimento de Guarulhos S/A), empresa de economia mista.
Logo quando se mudaram, algumas indígenas relataram encontrar cacos de vidro em uma área do
solo. “Era impossível dançar o toré com o vidro ali”, afirma uma delas. Além disso, a vida animal escassa leva
ao desejo — e à necessidade — de criar um sistema de represamento de água, viabilizando a criação de
peixes.
O projeto de auto-sustentação também alcança outras frentes. Melhorar a infraestrutura da aldeia,
tornando as trilhas mais seguras e os caminhos mais intuitivos é uma delas. Antonio prevê que, completada a
obra da oca, será possível receber não só festas e reuniões, mas também excursões de escolas.
Quebra de estereótipos
“Adentrando a aldeia, muitos preconceitos de crianças e jovens sobre a figura do índio podem ser
quebrados”, considera Awa, que é educador indígena e conta histórias em escolas, universidades e parques.
Em uma dessas ocasiões, na saída da escola, depois de ter tirado os trajes e adornos tipicamente
indígenas, ouviu de algumas crianças que ele não era um “índio de verdade”. “Quer dizer então que índio não
pode usar calça jeans ou ter celular?”, questiona. “Tem que falar do índio de hoje, da diversidade cultural
indígena. Muita gente acha que pra ser índio tem que ser baixinho, de olho puxado, cabelo lisinho. E não é
isso”.
Silvia Kaimbé, esposa de Antonio, também trabalha palestrando em escolas e universidades e ressalta
a importância da formação do corpo pedagógico nas temáticas étnico-raciais. “A gente sempre fala ‘olha,
vocês que vão estar dando aulas no futuro, então vamos abrir a mente, porque as nossas crianças precisam
desse apoio de vocês’”, conta.
Criança indígena da aldeia e filha de Silvia e Antonio, Maria Antonela começou a frequentar uma
escola infantil da rede pública municipal aos três anos de idade. Por ser muito agitada, conta a mãe, os
professores, à época, chamaram Silvia para assinar uma ocorrência.
A ela, perguntaram se a agitação de Antonela era resultado de sua participação em rituais indígenas.
Silvia lembra do episódio como um dos mais “preconceituosos” que já vivenciou.“Eu disse: ‘Minha filha é livre,
desculpa aí se vocês não estão preparados para lidar com uma criança que passa a maior parte do tempo ao
ar livre’”, conta, em tom de indignação. Depois da ocorrência, a família decidiu retirar a criança da escola.
Mas a preocupação da indígena continua. Em 2020, a filha já terá atingido a idade mínima obrigatória
para ingressar na escola e terá de voltar à instituição, que é a mais próxima da aldeia.
A cerimônia estava quase no fim. O vice-prefeito Alexandre Zeitune deixou a roda de dança às
pressas — como um superastro, saiu o centro da oca sem olhar pros lados, andando ao lado de uma mulher
baixinha, encurtada pelo cabelo muito longo e muito escuro. Aceleramos o passo para segui-los. Zeitune logo
percebeu e estendeu a nós o convite para acompanhá-los.
Os últimos minutos de sua passagem haviam sido reservado pro beiju de dona Diva, explicou no
caminho. Em sua primeira visita à aldeia, Diva o recebeu com esse tipo de tapioca feito com farinha de
mandioca e coco fresco em lascas. Foi tiro e queda: desde então, não se vê vindo a aldeia sem saborear o
prato de dona Diva.
O beiju é motivo de orgulho dela. Enquanto nos conduzia pelas trilhas apontando pra lá e pra cá e
contando sobre cada cantinho escondido entre as árvores, mais de uma vez tornava a mencionar o sabor de
seu beiju. Cozinhar para ela vai além do alimento: significa família reunida e cuidado com os filhos. O beiju é
uma forma de expressar carinho.
E para isso não poupa esforços. “Tem que acordar às 5 da manhã e arrepiar”, diz, com o prazer quase
devoto com que recebe, o mesmo que nos tratou desde o princípio: como se fôssemos de sua família. O afeto
da alagoana é o que a distingue, a urgência que derrama em seus abraços, a ênfase de suas palavras e seu
laço com a terra.
Alcançamos sua casa meio sem fôlego, junto de outro grupo de visitantes também ávidos por sua
presença. A terra, ela enche o peito, é tudo. “É onde eu posso viver minha liberdade”, atesta ao passarmos
pelo cômodo apertado, quase claustrofóbico, que lhe serve de quarto. “A gente não quer casa de alvenaria, a
gente quer viver o cultural”.
Ali próximo, outros membros da etnia Wassu Cocal estavam reunidos sob uma tenda amarela, em um
tipo de comemoração particular. Entre eles, os filhos de Diva, muito quietos e reservados, dissidentes quando
ao lado da mãe, que poderia falar por horas a fio sem que nenhum de nós lhe houvesse perguntado nada.
Isso porque, para ela, contar sobre a terra era como contar os feitos de seus próprios filhos — ambas
narrativas que empenha com amor.
● Antonio Carlos
Na área central da aldeia, um homem capinava terra para a construção da nova oca do espaço. Era
Antonio Carlos, que logo explicou o motivo de estar trabalhando debaixo de quase 30 graus: “Esse será um
espaço para a reunião das diferentes tribos moradoras da aldeia para celebrarem a sua cultura”.
Da etnia Kaimbé, Antonio explicou que mora ali com sua esposa e filhos desde o início da ocupação.
A origem de sua etnia é do estado da Bahia, no município de Euclides da Cunha, área do sertão baiano. O
seu povo, contou, vivia em casas de taipa coberta de palha e, no passado, foi escravizado por pessoas não-
indígenas. Após a demarcação da terra, a população recebeu uma indenização do governo. Hoje, vivem em
casa de alvenaria, “só que ao redor das casas há um espaço cultural típico deles. Todo ano há feira de
cultura lá”.
Depois de um demorado suspiro, contou a história de como os indígenas chegaram em Guarulhos e
ocuparam aquele terreno. Expressou gratidão por Awa ter reunido a comunidade. Um certo dia, disse, estava
em um ponto de ônibus com sua esposa, Silvia, e viu o indígena passar. Imediatamente, comentou: “Ele é
indígena também”.
Em pouco tempo, Awa entrou em contato com Silvia, explicou o projeto e perguntou se o casal tinha
interesse de se juntar à luta. A resposta foi rápida. Passaram a integrar o grupo.
Antonio explica que, desde a sua mudança para a área urbana há quase dezesseis anos, trabalha e
não esconde das pessoas suas origens.“Sempre falei que sou indígena, mas com muito receio”. Ele, loiro dos
olhos claros, afirma já ter escutado inúmeras vezes que era um “falso índio”. No final de 2016, pediu
demissão de seu antigo trabalho e explicou ao chefe: “Como eu sempre disse, sou indígena e encontrei,
enfim, um lugar para trabalhar a minha cultura”, disse, referindo-se ao início da luta pela aldeia.
A reação do chefe foi inesperada. Dizia que “não levava a sério a história de Antonio ser indígena” e,
mesmo depois de um tempo, não acreditava que ele havia deixado o seu emprego para morar numa aldeia.
“Ainda que aqui não seja o meu lugar, o habitat do meu povo lá no Nordeste, esse contato da gente com a
natureza é muito importante”.
Para além do contato com a natureza, ele acrescenta que a presença dos indígenas é fundamental ali
não somente para a preservação de suas culturas e tradições, mas também dos resquícios de Mata Atlântica.
“Nossa missão também é fazer com que as pessoas entendam e levem esses pensamentos de preservação
adiante”, completa.
● Awa Kuaray Wera
Antonio Carlos, entusiasmado, anuncia que há na aldeia um indígena de importância inexplicável para
a comunidade. Sobre os seus feitos, afirma que não haveria dinheiro que os pudesse pagar. “Foi ele que,
desde 2002, saiu batendo na porta de cada índio de Guarulhos pedindo pra gente se fortalecer e lutar por
uma terra”, conta. O nome do indígena é Awa — ou Giba, para os íntimos.
Era 1995 quando ele pisou pela primeira vez em Guarulhos. Três vezes por semana, deslocava-se de
sua aldeia — a Bananal, em Peruíbe — , onde então morava, para fazer hemodiálise em uma clínica do
município. “Eu tinha hipertensão renal e não sabia”, conta. À época, um de seus rins tinha parado de
funcionar.
Ainda que sua aldeia apresentasse uma equipe de agentes de saúde da Sesai, entre risos, quase em
tom de orgulho, revela: “Nunca gostei de médico. Por isso, muitas vezes deixei de me cuidar”. Quem o levava
à cidade para o tratamento, que se estendeu por doze anos, era um motorista da área de assistência à saúde
indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão vinculado ao Ministério da Saúde.
Foi grande o espanto do indígena quando, em Guarulhos, conheceu Nivaldo da Mata, um índio que
estava há quase cinco anos em cima de uma cama devido às sequelas de um acidente vascular cerebral. Por
pertencer a uma etnia originária do Nordeste, ele tinha de recorrer ao atendimento público paulista comum e,
há tempos, não conseguia uma vaga. A situação seria o estopim para que Awa decidisse convocar, de porta
em porta, a comunidade indígena do município. “Percebi que tinha tudo o que precisava na minha aldeia,
enquanto ainda tinham índios sem atendimento no meio urbano”, lembra.
O indígena olha para a terra que se transformou em Aldeia Filhos Desta Terra e suspira. Faz memória
da inauguração do primeiro setor indígena em uma UBS de Guarulhos, em 2013; da segunda, instalada no
bairro do Cabuçu neste ano; de quando foi para a Brasília, à época de uma Conferência Municipal de Saúde.
Diz que, se não fosse pela organização dos povos indígenas do município, pouco ou nada teria sido feito ali.
Nos últimos meses, ele tem se esforçado para incentivar os moradores da aldeia a permanecerem
unidos, apesar das diferenças étnicas que, há pouco, causaram pequenas divisões e afetaram o
funcionamento do espaço. “Ainda há muito a ser conquistado e só iremos prosseguir se estivermos juntos”,
diz.