O Barroco

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Barroco: espírito e estilo BOSI, Alfredo; História Concisa da Literatura Brasileira, Ed.

Cultrix, São Paulo, Brasil

Seja qual for a interpretação que se dê ao Barroco 1, é sempre útil refletir sobre a sua situação de estilo pós-renascentista e, nos países
germânicos, pós-reformista.
A Renascença, fruto maduro da cultura urbana em alguns centros italianos desde o princípio do século XV, foi assumindo configurações
especiais à medida que penetrava em nações ainda marcadas por uma poderosa presença do espírito medieval. No caso português e espanhol, os
descobrimentos marítimos levaram ao ápice uma conceção triunfalista e messiânica da Coroa e da nobreza (rural e mercantil), conceção mais
próxima de certos ideais césaro-papistas da alta Idade Média que da doutrina do príncipe burguês de Maquiavel. E durante todo o século XVI
vincaram a cultura ibérica fortes traços arcaizantes, que a Contra-Reforma, a Companhia de Jesus e o malogro de Alcácer-Quibir viriam carregar
ainda mais2.
Ora, o estilo barroco enraizou-se com mais vigor e resistiu mais tempo nas esferas da Europa neolatina que sofreram o impacto vitorioso dos
novos estados mercantis. É na estufa da nobreza e do clero espanhol, português e romano que se incuba a maneira barroco-jesuítica: trata-se de um
mundo já em defensiva, organicamente preso à Contra-Reforma e ao Império filipino, e em luta com as áreas liberais do Protestantismo e do
racionalismo crescente na Inglaterra, na Holanda e na França.
É instrutivo observar que o barroco-jesuítico não tem nítidas fronteiras espaciais, mas ideológicas. Floresce tanto na Áustria como na
Espanha, no Brasil como no México, mas já não se reconhece nas sóbrias estruturas da arte coetânea da Suécia e da Alemanha, cujo “barroco”
luterano (que enforma a música de Bach) é infenso a extremos gongóricos da imagem e do som. Há, portanto, um nexo entre o barroco hispânico-
romano e toda uma realidade social e cultural que se inflete sobre si mesma ante a agressão da modernidade burguesa, científica e leiga
Tal inflexão não poderia ser, e não foi, um mero retorno ao medieval, ao gótico, à mente feudal da Europa pré-humanística. A atmosfera do
Barroco está saturada pela experiência do Renascimento e herda as suas formas de elocução maduras e crepusculares: o classicismo e o
maneirismo. No entanto, a vida social é outra; outra a retórica em que se traduzem as relações quotidianas. Decaída a virtù renascimental em
discrición astuta quando não hipócrita, mortificados os anseios humanísticos, de que eram alto e belo exemplo a filosofia de Pico della Mirandola, a
pintura de Leonardo, o riso sem pregas de Ariosto e Rabelais, ensombra-se de melancolia o contato entre o artista e o mundo: Tasso e Camões,
Cervantes e o último Shakespeare já são mestres de desengaño.
Mas o esfriamento da antiga euforia não destrói os andaimes de uma linguagem construída desde Giotto e Petrarca; ao contrário, são os
puros esquemas que restam e sustentam, não raro solitariamente, a vontade-de-estilo dos artistas. O código sobreleva a mensagem: triunfa o
maneirismo.
A apreciação do Barroco tem oscilado entre a seca recusa, comum aos críticos da mensagem (De Sanctis, Taine, Croce) e a quente
apologia, peculiar aos anatomistas do estilo (Woelfflin, Balet, Spitzer, Dámaso Alonso). As lacunas de ambas as perspetivas não são difíceis de
apontar: a negação da arte barroca pela sua “carência de conteúdo” é cega, pois é claro que o alheamento da realidade, a fuga ao senso comum,
enfim o descompromisso histórico é também conteúdo. Quanto à atitude formalista, resume-se em atribuir a priori um valor ao que se to- mará por
objeto preferencial, os esquemas, herdados pela tradição clássica e apenas transfigurados por força de um complexo ideológico. Em suma,
desvalorizar um poema barroco porque “vazio” ou mitizá-lo porque rebuscadamente estilizado é, ainda e sempre, cometer o pecado de isolar espírito
e forma, e não atingir o plano da síntese estética que deve nortear, em última instância, o julgamento de uma obra. A tentação, de resto, parece fatal,
e não sei de homem culto, por equilibrado que se professe, que não tenha alguma vez caído nela; mas o importante é vigiar-se para que o
dogmatismo de uma opção não nos faça mergulhar na ininteligência de uma das poucas atividades que resgatam a estupidez humana: a arte.
Suposto no artista barroco um distanciamento da praxis (e do saber positivo), entende-se que a natureza e o homem se constelassem na sua
fantasia como quadros fenoménicos instáveis. Imagens e sons se mutuavam de vário modo sem que pudesse determinar com rigor o peso do
idêntico, do ipse idem.
A paisagem e os objetos afetam-no pela multiplicidade dos seus aspetos mais aparentes, logo cambiantes, com os quais a imaginação
estética vai compondo a obra em função de analogias sensoriais. O orvalho e a pele clara podem valer pelo cristal; o sangue pelo cravo ou pelo rubi;
o espelho pela água pura e pelo metal polido. No mundo dos afetos, a “semelhança” envolve os contrastes, de modo a camuflar toda perceção nítida
das diferenças objetivas:

Incêndio em mares d’água disfarçado,


Rio de neve em fogo convertido
(Gregório de Matos)

Igual processo de identificação (ilusória, sensorial-não racional) opera nos jogos de palavras, nos trocadilhos e nos enigmas, fundados na
similitude da imagem sonora de termos semanticamente díspares:

Jaz a ilha chamada Itaparica


A qual no nome tem também ser rica.
(Fr. Manuel Itaparica)

O labirinto dos significantes remete quase sempre a conceitos comuns que interessam ao poeta não pelo seu peso conteudístico, mas pelo
fato de estarem ocultos. É o princípio mesmo do conceptismo usar “de palavra peregrina que velozmente indique um objeto por meio de outro”
(Gracián, Arte de Ingenio). O que importa, pois, é não nomear plebeiamente o objeto, mas envolvê-lo em agudezas e torneios de engenho, critérios
básicos de valor na arte seiscentista. Os teóricos da época são, nesse ponto, concordes:

Esta é a Argúcia, grande mãe de todo conceito engenhoso, claríssimo lume da Oratória e Poética Elocução, espírito vital das mortas
páginas; prazerosíssimo condimento da Civil Conversação; último esforço do Intelecto, vestígio da Divindade na Alma Humana. O falar dos
Homens Engenhosos tanto se diferencia dos Plebeus, quanto o falar dos Anjos do dos Homens (Emmanuele Tesauro)3.

Baltasar Gracián define a agudeza como “esplêndida concordância, correlação harmoniosa entre dois ou três extremos expressos em um
único ato de entendimento”4.
1
V. Bibliografia, in fine.
2
O século XVI foi o período áureo da Escolástica em Coimbra e em Salamanca. Na literatura, a “medida velha”, o teatro vicentino com sua descendência espanhola, a
novela de cavalaria, a crónica de viagens e a prosa ascética e devota ilustram a permanência das formas medievais.
3
(19) Apud Anceschi, DeI Barocco e altre prove, Florença, Vallecchi, 1953, p. 10.
4
Apud R. Wellek, História da Crítica Moderna, São Paulo, Herder, vol. I, p. 3.
A obsessão do novo a qualquer preço é contraponto de uma retórica já repetida à saciedade. Valoriza-se naturalmente o que não se tem: é
mister “procurar coisas novas para que o mundo resulte mais rico e nós mais gloriosos”, diz o maior estilista barroco italiano, Daniele Bartoli 5.
A poética da novidade tanto no plano das ideias (conceptismo) como no das palavras (cultismo) desagua no efeito retórico-psicológico e na
exploração do bizarro:

E del poeta il fin la maraviglia,


chi non sa far stupir vada alla striglia
(Giambattista Marino)

O Iimite inferior dessa arte é o cerebrino. Como diz Octavio Paz “Góngora não é obscuro: é complicado” 6. E foi esse o limite dos imitadores
de Góngora e de Marino, como um certo Claudio Achillini que, apostrofando o fogo no trabalho da forja, clamava:

Sudate o fochi a preparar metalli.

O rebuscamento em abstrato é sem dúvida o lado estéril do Barroco e o seu estiolar-se em barroquismo. Contra essa deterioração do espírito
criador iriam reagir em Portugal e Espanha, nos meados do século XVIII (e meio século antes, na Itália) OS poetas árcades, já imbuídos de
neoquinhentismo e do “bom gosto” francês. E o Rococó do século XVIII pode-se explicar como um Barroco menor, mais adelgaçado e polido pelo
consenso de uma sociedade que já se liberou do absolutismo por direito divino e começa a praticar um misto de Ilustração e galante libertinagem.
E na aceção estrita de “retórica pela retórica” Benedetto Croce esconjurou o Barroco definindo-o “forma prática e não estética do espírito”
(isto é, da vontade e não da intuição) como tal, “vatietà del brutto” 7.
Seja como for, a rejeição de uma certa poética do Barroco não dispensa o crítico de esmiuçar os traços de estilo dos poemas da época nem
de sondar-lhes a génese cultural e afetiva.
O primeiro passo para o deslinde da morfologia barroca foi dado pelo historiador de arte Heinrich Woelfflin, cujo texto Renaissance und
Barock (1888) abriu uma nova problemática que ainda hoje preocupa os estudiosos da forma. Mas só nos Conceitos Fundamentais de História da
Arte (Kunstgeschichtliche Gründbegriffe), definiria a passagem ideal do clássico ao barroco em termos de uma passagem

do linear ao pictórico,
da visão de superfície â visão de profundidade,
da forma fechada à forma aberta,
da multiplicidade à unidade,
da clareza absoluta dos objetos à clareza relativa.

Pictórico inclui “pitoresco” e “colorido”; profundo implica desdobramento de planos e de massas; aberto denota perspetivas múltiplas do
observador, uno subordina, por sua vez os vários aspetos a um sentido; clareza relativa sugere a possibilidade de formas de expressão esfumadas,
ambíguas, não-finitas.
Na mesma esteira de análise interna, e contrapondo Classicismo e Barroco, de forma supratemporal, como duas categorias eternas da arte,
Eugenio D’Ors (Du Baroque, 1913) inclui na primeira “as formas que pesam” e na segunda “as formas que voam”.
Todos esses caracteres quadram bem a um estilo voltado para a alusão (e não para a cópia) e para a ilusão enquanto fuga da realidade
convencional,
Pela riqueza de pormenores que encerra, transcrevo abaixo uma descrição da arquitetura barroca feita pelo crítico de arte Leo Balet, que
acentua a volúpia do movimento:

Na arquitetura o movimento já aparece nas plantas baixas que em plena expansão rompem com as formas geométricas fundamentais e por
meio de curvas e dobras caprichosas, saliências e reentrâncias abrandam toda a rigidez. As fachadas de igrejas, divididas muitas vezes em cinco
partes, os muros que se torcem como serpentes, os tetos que se arqueiam e as torres que se alargam e se afinam, saltam e se precipitam para cima
sempre com novos arremessos e, quando pensamos que a sua indocilidade vai finalmente acalmar-se, atiram ainda, atrevidamente, por cima das
massas arquitetónicas algumas pontas semelhantes a foguetes em direção à imensidade do céu. Nas igrejas e castelos, onde estes eram de certo
modo acessíveis, antepunha-se um sistema de escadarias que, como cascatas de pedra, pareciam irromper do interior e larga e pesadamente
precipitar-se sobre o terreno. Até mesmo a coluna de suporte, o mais estático dos elementos construtivos, foi animada. Torciam-se em espirais pelos
altares acima. Tudo o que era áspero se abrandava. Frisas bojudas saíam das superfícies planas, encurvavam-se os ângulos, as volutas volteavam-
se sobre si mesmas e rolavam como vagas. O interior dos edifícios era atapetado de ornamentos em forma de folhas e ramos e, depois, de rocalhas,
que se esgueiravam pelas molduras. Nenhum móvel permanecia, afinal, estável. Tudo oscilava e dançava sobre pernas recurvadas, através das
salas que palpitavam de uma vida misteriosa, e que, com as paredes de espelhos, eram inatingíveis, ilimitadas e infinitas. Tudo era construído sobre
luz e sombras para assim completar a ilusão dos edifícios que se moviam e respiravam em todas as suas partes8.

É de esperar que os recursos dessa visão do mundo sejam, na poesia, as figuras: sonoras (aliteração, assonância, eco, onomatopeia…),
sintáticas (elipse, inversão, anacoluto; silepse…) e sobretudo semânticas (metáfora, metonímia, sinédoque, antítese, clímax…), enfim todos os
processos que reorganizam a linguagem comum em função de uma nova realidade: a obra, o texto, a composição.
Se partirmos da exegese do estilo barroco em termos de crise defensiva da Europa pré-industrial, aristocrática e jesuítica, perante o avanço
do racionalismo burguês, então entenderemos o quanto de angústia, de desejo de fuga e de ilimitado subjetivismo havia nessas formas. Aos espíritos
racionalistas do século XVIII pareceram de desvairado mau gosto, como já pareciam perversões do Classicismo a um Galileo, última voz da
inteligência florentina, e aos cartesianos da corte de Luís XVI 9. E entenderemos também a imagem barroca da vida como um sonho ( La vida es
sueño, de Calderón), como uma comédia ( El gran tealro del mundo ), como um labirinto, um jogo de espelhos, uma festa, na lírica de Góngora, de
Marino, de Lope. Em suma, entenderemos o triunfo da ilusão que um desenganado moralista napolitano, Torquato Accetto, louvou sob o nome de
“dissimulazione onesta” e o seu contemporâneo Gracián estimava como o “dom de parecer”.
5
Apud Anceschi, op. cit., p. 15.
6
Em Corriente Alterna, México, Siglo XXI, 1965, p. 6.
7
Storia dell’età barocca in Italia
8
Apud Hannah Levy, A Propósito de Três Teorias sobre o Barroco, Publ. do Grémio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Univ. de S. Paulo, 1955, p.18.
9
Galileo rejeita o cultismo e declara preferir a clareza de Ariosto às sombras de um Tasso pré-barroco ( Considerzioni intorno alla Gerusalemme Liberata ). Na França, cai logo em ridículo
a “préciositè” e, no plano ético, um Pascal jansenista satiriza o laxismo dos jesuítas tão grato à nobreza ( Les Provinciales; cf. a bela análise de L. Goldmann, Le Dieu caché, Gallimard,
1954).

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