Mariza Peirano. A Favor Da Etnografia
Mariza Peirano. A Favor Da Etnografia
Mariza Peirano. A Favor Da Etnografia
A FAVOR DA ETNOGRAFIA
An anthropologist's work tends, no matter what its ostensible subject, to be but an expression
of his research experience, or more accurately, of what his
research experience has done to him.
Clifford Geertz 1968: vi
A expressão é de Paulo Arantes; cf. Arantes 1991. No relato da viagem que fez a
9
vários centros de pesquisa fora dos Estados Unidos, George Marcus salienta sua
surpresa por não haver constatado maior interesse nos questionamentos pós-
modernos americanos (Marcus 1991). O silêncio em relação ao Brasil, país que
visitou no mesmo ano, parece confirmar a visão da `câmara de decantação na
periferia' de Paulo Arantes.
Nicholas Thomas publicou seus artigos nas seguintes revistas: Cultural Anthropology,
10
I
O argumento de Nicholas Thomas
II
Que modelo canônico?
Consultar Stocking Jr. 1983 para a elaboração de vários pontos levantados nesta seção.
15
Stocking menciona que essa referência era costume de Frank Gillen (o companheiro
16
de Baldwin Spencer nos estudos de parentesco australiano); cf. Stocking Jr. 1983.
Mas volto a Malinowski para sugerir que a co-autoria defendida
atualmente esconde a ingenuidade de pressupor que os nativos querem
sempre ser co-autores ou antropólogos de si mesmos. De novo, foi
Stocking Jr. quem alertou, há algum tempo, que a pesquisa de campo
pressupõe uma hierarquia: ou ela é aceita pelos nativos, ou não há pes-
quisa etnográfica (1974). Stocking acrescentava que a pesquisa, como
idealmente concebida hoje, é um fenômeno histórico dentro da discipli-
na. Assim, da mesma forma que a pesquisa de campo teve um início, ela
pode vir a ter um fim — este temor foi especialmente registrado na década
de 60 por Lévi-Strauss (1962) e Jack Goody (1966).
Proponho, portanto, que a co-autoria que os pós-modernos advogam
na relação pesquisador-nativo não é novidade na disciplina; apenas ela
não ocorre entre indivíduos empíricos concretos, mas teoricamente na
produção etnográfica. Na vertente pós-moderna chegou-se a acreditar nas
transcrições dos diálogos etnográficos (por exemplo, Dwyer 1982), pro-
cedimento que o próprio Geertz ironicamente denunciou como `words,
the whole words, and nothing but the words' (Geertz 1988: 96).
Malinowski sabia mais: ele não chegou a traduzir para o inglês o ter-
mo nativo `kula' que encontrou entre os trobriandeses apenas para tornar
os melanésios exóticos (como sugere Nicholas Thomas), mas para ser fiel
a uma categoria trobriandesa diferente das categorias ocidentais. Foi essa
fidelidade (ou tentativa de fidelidade, não importa) às evidências
etnográficas que permitiu, posteriormente, a Marcel Mauss utilizar os
dados trobriandeses em sua teoria geral da dádiva. E foi também graças a
ela que Karl Polanyi pôde explicar a experiência histórica ocidental por
meio das descobertas de Malinowski, `exotizando' o ocidente.
Outro exemplo desse projeto de fidelidade diz respeito às descobertas
de Malinowski sobre o poder mágico das palavras entre os trobriandeses.
Foram as inúmeras evidências etnográficas que Malinowski coletou que
justificam sua teoria sobre os aspectos pragmáticos da linguagem que, se
até recentemente não haviam recebido maior atenção (a antropologia,
assim como as demais ciências do homem, estava mais preocupada com
os aspectos cognitivos e semântico-referenciais dos sistemas simbólicos),
hoje estão na ordem do dia no estudo dos aspectos `performativos' das
palavras e dos rituais (ver, por exemplo, Tambiah 1968, 1985).
Se assim é, talvez tenhamos de deixar de falar sobre `a teoria da
magia de Malinowski', ou sobre `a teoria da linguagem de Malinowski',
para focalizar as teorias da magia ou da linguagem dos trobriandeses, que
Malinowski teve a sensibilidade de captar — porque as estranhou — e
depois a ousadia e/ou vaidade de divulgá-las.
E, se é verdade que, ao longo do século, antropólogos ingleses se
tornaram africanistas; franceses, americanistas; norte-americanos, ocea-
nistas, o que pode fornecer um indício claro do poder político colonial
do qual Nicholas Thomas tanto se ressente (acredito que com razão), por
outro lado esses rótulos também indicam como, na antropologia, as
orientações teóricas estão relacionadas a especificidades geográficas de
uma maneira que talvez não aconteça em outras ciências sociais.17 Isto é,
se orientações teóricas se vinculam a especificidades aparentemente
`geográficas', talvez estes fenômenos resultem do fato de que a teoria
antropológica sempre se fez melhor quando atrelou a observação etnográ-
fica ao universal/teórico. Exatamente como Nicholas Thomas propõe
hoje e como Malinowski já realizava.
Ao próprio Malinowski, por outro lado, os dados trobriandeses servi-
ram muito bem: é difícil acreditar que, arguto observador do poder da
linguagem para os trobriandeses, as estratégias retóricas que adotou em
suas monografias tenham sido fruto apenas da intuição ou do acaso. Para
Malinowski, a fórmula mágica tinha como abertura a expressão `Imagine
yourself...', que fazia do leitor um cúmplice do autor. Alguns exemplos
são suficientes para relembrar a estratégia: `Imagine yourself suddenly
transported on to a coral atoll in the Pacific, sitting in a circle of natives
and listening to their conversation' (1930: 300). Ou, `Imagine yourself
suddenly set down surrounded by all your gear, alone on a tropical beach
close to a native village, while the launch or dinghy which has brought you
sails away out of sight' (1961: 4). Adjetivos também eram cuidadosamente
deixados ao longo do texto: `... which I heard on that memorable
morning in the lagoon village' (:304; ênfase minha). Se, freqüentemente,
essas expressões `conativas' (para usar a linguagem de Roman Jakobson)
eram utilizadas para fazer o leitor partilhar o isolamento e a perplexidade
do etnógrafo, outras vezes eram empregadas para convidá-lo a seguir
viagem: `Let us imagine that we are sailing along the South coast of New
Guinea towards its Eastern end' (:33; ênfase minha). Uma viagem imagi-
Ver Sahlins 1989: 37, respondendo a Nicholas Thomas; ver, também, Viveiros de
17
Castro 1993a.
nária, como sabemos, mas que só o leitor treinado reconhece já que em
1922 Malinowski confessava suas limitações apenas nas entrelinhas. O
texto exibia um estilo em que o autor exortava o leitor à participação no
paraíso edênico onde se ouvia `the sound of conch shells blowing
melodiously', e à cumplicidade dos tipos sociais como o chefe de uma
aldeia, `an old rogue [um patife] named Moliasi' (:66). Esse era o período
em que a pesquisa de campo aparecia como misteriosa: `It is difficult to
convey the feelings of intense interest and suspense with which an
Ethnographer enters for the first time the district that is to be the future
scene of his field-work' (:51).
Em 1935, contudo, seu estilo havia mudado radicalmente. Nessa
época, a legitimidade de Malinowski já estava estabelecida, de forma que
em Coral gardens o etnógrafo não mais precisava seduzir o leitor me-
diante um estilo predominantemente `ilocucionário' (conforme a concep-
ção de J.L. Austin). Foi quando Malinowski pôde se permitir publicar
uma monografia composta de vários fragmentos: relatos em língua nativa
com tradução intercalada em inglês (os prometidos `corpus inscriptio-
num agriculturae quirininiensis'); observações sobre magia agrícola; uma
teoria etnográfica da linguagem; especulações teóricas sobre regime
fundiário e, agora sim, `Confessions of failure' e `An autobiography of
mistakes'.
A obra de um antropólogo não se desenvolve, portanto, linearmente;
ela revela nuanças etnográfico-teóricas que resultam não apenas do tipo
de escrita que sempre foi `energizada pela experiência do campo' (para
não perder a referência a Nicholas Thomas), mas também do momento
específico da carreira de um pesquisador, em determinado contexto
histórico e a partir de peculiaridades biográficas. A obra de Malinowski
demonstra tais pontos; a de Evans-Pritchard os reforça e os esclarece.
Stocking Jr. seria hoje um dos maiores. Mas é o próprio Stocking quem reconhece
sua limitação para a pesquisa de campo e, portanto, sua incapacidade para o ofício.
o estreito vínculo entre teoria e pesquisa na antropologia, demonstrando
a tese de que a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria
antropológica se desenvolve e se sofistica quando desafia os conceitos
estabelecidos pelo senso comum no confronto entre a teoria que o
pesquisador leva para o campo e a observação entre os nativos que
estuda. Assim como para Malinowski, mais uma vez fica claro que não há
uma teoria antropológica de Evans-Pritchard, mas a teoria sobre bruxaria
que ele propôs como resultado do confronto/impacto entre sua bagagem
intelectual européia (incluindo aí seus conhecimentos antropológicos e o
conceito folk-europeu de bruxaria) e o interesse dos Azande em explicar
seus infortúnios. Pensar em impacto e/ou confronto é pensar
comparativamente. Para E-P este procedimento deveria ser levado às
últimas conseqüências: ao antropólogo caberia pesquisar várias socieda-
des. Ele reconhecia as dificuldades a serem enfrentadas, especialmente
tendo em vista o tempo de pesquisa e de elaboração dos resultados (que
ele estimava aproximadamente em dez anos), mas uma segunda
sociedade auxiliaria o etnógrafo a abordá-la à luz da experiência da
primeira, sugerindo-lhe linhas de pesquisa novas.
Evans-Pritchard foi dos poucos antropólogos a fazer etnografia em
várias sociedades: Azande do sul do Sudão, Nuer do Sudão anglo-egípcio
e Cirenaica (hoje Líbia). Atualmente são raros os antropólogos de reco-
nhecimento internacional com essa experiência (Geertz talvez seja o
exemplo contemporâneo de maior expressão). Nos dias atuais, procura-
mos resolver o problema colocado por E-P de várias maneiras: ou con-
tando o `tempo de serviço' da leitura de monografias21 ou, na versão
indiana, considerando que a antropologia é um empreendimento de
natureza coletiva e o antropólogo não precisa pesquisar pessoalmente
diferentes culturas: ele é, ao mesmo tempo, um insider e outsider em
virtude do seu treino acadêmico (Madan 1982, 1994). Esta, inclusive, era
a posição de Malinowski no final dos anos 30, quando prefaciou o
trabalho de dois ex-alunos (Jomo Kenyatta, do Quênia, e Fei Hsiao-Tung,
da China) que haviam pesquisado suas sociedades de origem.22
É interessante notar que o tema do estudo `of one's own society' vem sendo debatido
22
pelos antropólogos indianos desde a década de 50. Ver Béteille & Madan 1975;
Srinivas 1979; Madan 1994.
Volto a Evans-Pritchard. Destas breves referências decorrem algumas
implicações: 1ª) o processo de descoberta antropológica resulta de um
diálogo comparativo, não entre pesquisador e nativo como indivíduos,
mas entre a teoria acumulada da disciplina e a observação etnográfica que
traz novos desafios para ser entendida e interpretada. É nesse sentido que
Evans-Pritchard (1972) dizia não haver `fatos sociais' na antropologia,
mas `fatos etnográficos'. Esse é um exercício de estranhamento
existencial e teórico que passa por vivências múltiplas e pelo pressuposto
da universalidade da experiência humana, que o antropólogo aprendeu a
reconhecer, de início, longe de casa;
2ª) não há cânones possíveis na pesquisa de campo, embora haja,
certamente, algumas rotinas comuns, além do modelo ideal. E se não há
cânones no sentido tradicional, talvez não se possa ensinar a fazer pes-
quisa de campo como se ensinam, em outras ciências sociais, métodos
estatísticos, técnicas de surveys, aplicação de questionários. Na antropo-
logia a pesquisa depende, entre outras coisas, da biografia do pesquisa-
dor, das opções teóricas da disciplina em determinado momento, do
contexto histórico mais amplo e, não menos, das imprevisíveis situações
que se configuram no dia-a-dia local da pesquisa;23
3ª) na medida em que se renova por intermédio da pesquisa de cam-
po a antropologia repele e resiste aos modelos rígidos. Seu perfil, portan-
to, dificilmente se adequa a um modelo `positivista', como se tenta carac-
terizá-la atualmente em certos setores. Tal fato não a impede, contudo, de
se constituir em um conhecimento disciplinar, coletivo portanto, so-
cialmente reconhecido e teoricamente em transformação;24
4ª) consciente ou não, cada monografia/etnografia é um experimento.
É certamente óbvia a diferença entre a construção monográfica de
Witchtcraft (de 1936) e aquela dos The Nuer (de 1940), ou de cada livro
da trilogia Nuer — uma trilogia que resultou de uma só experiência
etnográfica, mas produziu livros construídos de modo bastante diferente;25
Ver, por exemplo, o hoje conhecido mas, na época da publicação, inovador relato
23
exemplo, doutorou-se na Austrália. Ver Baines 1993 para uma excelente etnografia
da antropologia australiana.
III
Trajetórias etnográficas
Sobre o recente livro do autor e sua crítica, ver Geertz 1988; Peirano 1992a cap. 6.
29
pequenas cidades e vilarejos' (1968: vi). Nesse empreendimento, Geertz
coloca a pesquisa de campo no centro da investigação e enfatiza:
Fieldwork has been, for me, intellectually (and not only intellectually) formative, the
source not just of discrete hypotheses but of whole patterns of
social and cultural interpretation (1968: vi).
Srinivas, na Índia.
Esta conferência foi feita, em 1986, em duas universidades americanas: The Johns
31
IV
Novas provocações
Ver, respectivamente, Stocking Jr. 1983; Crapanzano 1980; Kracke 1987; Turner
32
1978; no Brasil, os trabalhos de Luiz Fernando Dias Duarte (ver Duarte 1986). A
perda da noção do self é descrita pela antropóloga Kirsten Hastrup quando sua
biografia é representada por um grupo teatral dinamarquês (Hastrup 1992).
Ver Bird 1972 para o potencial de criatividade da transferência psicanalítica. A
33
pesquisa de Maria Luiza Peres da Costa, realizada em Goa, Índia, desenvolve essa
perspectiva. Infelizmente, seus resultados ainda não estão divulgados.
sobre essas conversões. Não deixa de ser sugestiva, contudo, a confissão de
Victor Turner, colocada de forma singela na introdução de um de seus livros:
`I have not been immune to the symbolic powers I have invoked in field
investigation' (1975b: 31). Turner acrescenta que, depois de muitos anos como
agnóstico e materialista, ele aprendeu com os Ndembu que o ritual e seu
simbolismo, a religião enfim, estava no centro das questões humanas. É
também interessante, nesse contexto, a afirmação de M.N. Srinivas, de que os
antropólogos são thrice-born, isto é, nascem uma vez mais que os brâmanes
hindus, que são twice-born: os antropólogos deixam sua cultura nativa para
estudar uma outra e, na volta, tendo se familiarizado com o exótico, tornam
34
exótica sua cultura familiar, na qual sua identidade social renasce.
Finalmente, verifico que vários antropólogos reconhecem que as
etnografias — que tanto perturbam Nicholas Thomas — constituem, mais que
os sistemas teóricos que elas suscitaram, a verdadeira herança da antropologia.
Esta foi a conclusão de Louis Dumont e de Lévi-Strauss. No Brasil, em
momento de particular lucidez, foi o que Darcy Ribeiro também confirmou:
seus diários de campo sobreviveriam a todas as teorias que ele propôs, no seu
35
entender, exatamente para serem refutadas.
Essa questão suscita um tema relevante: diferente do que se constata em
outras ciências sociais, dados etnográficos antropológicos freqüentemente são
alvo de reanálises. Em geral, a reanálise ocorre quando outro antropólogo
descobre um resíduo inexplicado nos dados iniciais que permite vislumbrar
uma nova configuração interpretativa. Ou quando um antropólogo aproxima
dados alheios de questões novas. Em qualquer dos casos, o que está em jogo é
a incompletude ou a abundância etnográfica, que incomodam menos que a
análise fechada. Esta foi a queixa formulada por M.N. Srinivas a respeito de
seu já clássico Religion and Society among the Coorgs. Para ele, um dos
problemas do seu trabalho era que `tudo estava muito bem amarrado, sem
36
deixar nenhum ponto frouxo'. Em suma, puras transcrições etnográficas
incomodam tanto quanto análises definitivas. Nesse contexto, as reanálises
Cit. em Turner 1975b: 32. A este respeito ver, também, DaMatta 1973, 1981; Velho,
34
G. 1978.
Cf. entrevista concedida em dezembro de 1978 no contexto da elaboração da minha
35
Ver Lounsbury 1965; Spiro 1982; Tambiah 1968, 1985, Leach & Leach 1984; Silva
37
1995 e cap. 3 desse livro. Para reanálise de material etnográfico brasileiro, ver
Peirano 1973; DaMatta 1977; Viveiros de Castro 1988. Ver Maybury-Lewis 1960
para crítica das propostas de Lévi-Strauss sobre organizações duais a partir de
considerações etnográficas. Naturalmente que a proposta teórica de Mauss em
`Ensaio sobre a dádiva', baseada nas etnografias de Malinowski e de Boas, é o caso
paradigmático dessa tendência na antropologia (Mauss 1974).
certamente irão reforçar a convicção central dos antropólogos: de que a prática
etnográfica — artesanal, microscópica e detalhista — traduz, como poucas
outras, o reconhecimento do aspecto temporal das explicações. Longe de
representar a fraqueza da antropologia, portanto, a etnografia dramatiza, com
especial ênfase, a visão weberiana da eterna juventude das ciências sociais.