Dissertação Mestrado Rodolfo UFJF - Inteira
Dissertação Mestrado Rodolfo UFJF - Inteira
Dissertação Mestrado Rodolfo UFJF - Inteira
Juiz de Fora
2012
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Juiz de Fora
2012
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BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Frederico Pieper Pires (Orientador)
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Gross
Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Martins Barreira
Universidade Federal do Espírito Santo
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar, pois sem Ele esta jornada não seria cumprida.
Ao meu orientador Frederico Pieper Pires, que sempre acreditou em meu potencial,
demonstrando imensa paciência e vontade verdadeira de orientar esta dissertação.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo buscar entender o que Gianni Vattimo concebe por
Retorno da Religião. Para tanto foram utilizados elementos de sua filosofia que apontam para
a kénosis, o esvaziamento de Deus, como sendo aquilo que proporcionou, como um envio-
destino, o enfraquecimento das estruturas fortes da metafísica. Este enfraquecimento é o que
permitirá dentro de uma hermenêutica niilista o retorno da religião, não mais em suas bases
metafísicas rígidas, mas uma religião secularizada, execução de um projeto de seu próprio
interior.
Palavras-chave: Vattimo – retorno da religião – secularização – enfraquecimento das
estruturas fortes da metafísica do ser – kénosis – hermenêutica.
7
ABSTRACT
The present study seeks to understand what Gianni Vattimo understands as the Return of the
Religion. For such, were used elements of his own philosophy that point to the kénosis (the
emptying of God), being that what allowed, as a send-destination, the weakening of the strong
structures of the metaphysics. This weakening is what shall allow, inside a nihilistic
hermeneutics, the return of religion, no longer in strong metaphysics structures, but in a
secularized religion, executing a project of his own interior.
SUMÁRIO
Introdução..................................................................................................................................9
2.1.1 A metafísica....................................................................................................................49
Conclusão...............................................................................................................................100
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................111
9
Introdução
Deste modo, o filósofo italiano Gianni Vattimo (1936-), assim como outros filósofos do
século XX e início do século XXI, trabalhará o tema do retorno da religião para o cenário do
debate filosófico-acadêmico. Em seu livro Acreditar em Acreditar há a seguinte consideração
sobre a volta da religião: “parece-me constitutivo da problemática religiosa justamente o facto
de ela ser sempre o retomar de uma experiência de algum modo já feita”1.
A via para uma resposta plausível é a seguinte: observar nas suas principais obras filosóficas
as referências a que tipo de religião ele está tomando como ponto de análise. Deste modo,
podemos perceber, pelo menos em princípio, dois caminhos possíveis: num primeiro, ele
entende a religião considerada em geral, isto é, todas as religiões de um modo amplo seriam
objeto de estudo e análise em suas explanações; num segundo sentido, parece-nos que sua
referência de religião está intimamente ligada ao cristianismo, explicitamente o católico
romano.
Para justificar o primeiro ponto mencionado, devemos ir diretamente à obra a qual Vattimo é
o organizador juntamente com Jacques Derrida. Trata-se do seminário ocorrido em Capri, em
1994, que conta com o tema Religião. Neste mesmo seminário, Vattimo chega mesmo a nos
sugerir a dúvida inicial: de qual religião ele está diretamente falando? Em uma indicação
rápida, não fica claro ser o cristianismo, mas apenas uma religiosidade difusa que permeia a
mentalidade, assim dita, popular, pois neste ponto chega mesmo a mencionar a influência do
1
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.
P. 8.
10
Essas modalidades parecem ser principalmente de dois tipos, que não permitem o
estabelecimento de uma ligação imediata, ao menos à primeira vista. De um lado, com a
presença mais patente na cultura comum, o retorno do religioso (como exigência, como nova
vitalidade de igrejas, seitas, como busca de doutrinas e práticas outras – a “moda” das
religiões orientais, etc.) é, antes de mais nada, motivado pela premência de riscos globais que
nos parecem inéditos, sem precedentes na história da humanidade.2
Por outro lado, chega, no mesmo seminário, dar fortes indicações filosóficas de que é o
cristianismo de que está tratando, isto por mencionar várias vezes a expressão Religião,
entendida como influenciadora do mundo filosófico ocidental ao ponto dele mesmo citar que
nas origens do historicismo moderno – base para a pesquisa hermenêutica – está o judaísmo e
o cristianismo.
Seguindo nesta última visada, ainda no seminário, parece que Vattimo acaba mostrando que é
verdadeiramente do cristianismo que está se tratando, porque é, segundo ele, dentro desta
tradição que é possível surgir a possibilidade da hermenêutica e, principalmente, dentro da
retomada da análise dos textos sagrados judaico-cristãos. Para se ficar apenas com o
cristianismo e se deixar de lado as suas bases judaicas, Vattimo, algumas vezes, faz certas
relações com o modo “bíblico” – e não o da Torá – de explicar certas passagens da sua
filosofia: “se o Deus que a filosofia reencontra é somente o Deus Pai, pouco caminho fizemos
para além do pensamento metafísico do fundamento – aliás, talvez tenhamos dado uns passos
para trás”.3 Isto significa que se tem de admitir o Deus do Novo Testamento, isto é, a base
para o cristianismo.
Deste modo, entende-se ser importante para resolver o tema central colocar a questão de qual
Deus Vattimo está falando. Outra, mas não menos importante, é a questão que toma o
cristianismo como base, mas perguntando que cristianismo é este que retorna. Assim,
teríamos dois questionamentos importantes: 1) qual é este Deus que está sendo levado em
consideração? 2) qual aspecto será considerado dentro do cristianismo? Em uma determinada
passagem de Depois da Cristandade, fica um pouco mais claro o tipo de religiosidade que
2
DERRIDA, J. e VATTIMO, G. (organizadores). A religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 92
3
DERRIDA, J. e VATTIMO, G. (organizadores). A religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 105.
11
Vattimo está levando em consideração. Para esta religiosidade se faz necessária a distinção
pascaliana4 entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. O Deus dos filósofos
é o Deus ontologizado que propõe a metafísica, originada principalmente em Sócrates, Platão
e Aristóteles. É o Deus fundamento proposto por Aristóteles como aquela Causa Primeira
Incausada (ou o Motor Imóvel) que daria fundamentação a toda a realidade e seria, por sua
vez, o ponto fixo do qual toda a realidade teria referência. Vale lembrar que este Deus dos
filósofos seria o mesmo tomado dentro de uma perspectiva metafísica dentro do próprio
cristianismo, vide, por exemplo, a filosofia-teologia de um Santo Alberto Magno, um Santo
Tomás de Aquino5, etc. Por outro lado, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó seria o Deus dos raios
e trovões, dos fenômenos naturais, o Deus mais entendido ao modo de René Girard6, onde o
sagrado está relacionado à violência e um Deus que é a
É deste modo forte que a comunidade religiosa, primeiramente judaica, se vê frente a frente,
como podemos observar no livro do Êxodo (Ex 14,24), quando Deus havia retido os egípcios
para que o povo judeu atravessasse o mar Vermelho e em seguida os amedrontou: “À vigília
da manhã, o Senhor, do alto da coluna de fogo e da de nuvens, olhou para o acampamento dos
egípcios e semeou o pânico no meio deles”. Para corroborar o que vimos anteriormente,
temos aí os elementos do fenômeno natural – a coluna de fogo e as nuvens – e o elemento
constrangedor – o pânico entre os egípcios. Com o surgimento da Escolástica Medieval, há
uma “consolidação” da ideia da igualdade entre ambas as perspectivas anteriormente
mencionadas, isto é, a própria filosofia tentará identificar, em sentido ontológico, ambas as
perspectivas, ou seja, a filosofia tentará mostrar que o Deus dos filósofos é igual ao Deus da
religião, até porque o Deus dos raios e trovões citado anteriormente ainda é o Deus totalmente
outro do fenômeno do sagrado, ou seja, um Deus ainda dentro de uma perspectiva metafísica
4
VATTIMO, G. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p. 24.
5
Vale lembrar que na filosofia de Santo Tomás de Aquino há uma identidade entre a essência e o ato de ser em
Deus, pois nesta perspectiva iguala-se plenamente o Deus dos filósofos e o Deus da religião.
6
Em Girard, o Sagrado, como dito, possui uma relação com a violência. É interessante notar, contudo, que
Girard tem a concepção de que no cristianismo há uma redução da violência e, sob determinado aspecto, a
kénosis – o esvaziamento de Deus se fazendo homem – já seria o enfraquecimento da violência.
7
GIRARD, René. O Bode Expiatório e Deus. Trad. Márcio Meruje. Covilhã: Universidade da Beira Interior,
2009, p. 3.
12
ontologizada. A diferença, portanto, entre o Deus dos filósofos e do Deus da religião é esta: o
Deus dos filósofos é aquele que busca na razão uma ordenação do meio social em que o
homem se encontra para que haja uma maior redução dos danos sociais que o homem, num
estado de irracionalidade, poderia criar para si e para os de sua comunidade social; o Deus da
religião, pelo menos inicialmente, não está pautado na necessidade de organização racional da
sociedade, mas no temor de um fenômeno natural vivido pelo homem8.
Visto isto, no decorrer da história, aparece a figura de Jesus Cristo, que irá propor um novo
modo de se entender o Antigo Testamento. Esta proposta aponta para algo mais interiorizante
e, assim, é iniciado um novo modo de se interpretar as coisas do ponto de vista da própria
religião, porque, segundo Vattimo, o cristianismo inicia-se já na sua origem como uma
proposta hermenêutica. De que modo isto se dá?
Para Vattimo, a assertiva mencionada acima quer significar que toda e qualquer interpretação
se dá dentro de um contexto que, por sua vez, é determinado pelos interesses do intérprete.
Isso fez, por exemplo, com que o europeu – que estava tão acostumado com a mentalidade
8
CAPUTO, John D. e VATTIMO, Gianni. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Editado por Jeffrey W. Robbins. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2010, p. 138.
9
CAPUTO, John D. e VATTIMO, Gianni. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Editado por Jeffrey W. Robbins. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2010, p. 71.
10
CAPUTO, John D. e VATTIMO, Gianni. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Editado por Jeffrey W. Robbins. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2010, p. 50.
(tradução nossa).
13
Qual a relação desta visão hermenêutica com o cristianismo? O que teria o cristianismo a ver
com este modo de interpretar a realidade? A nossa hipótese é a de que Vattimo, partindo de
Wilhelm Dilthey, mostra que desde o início, e principalmente desde Santo Agostinho12, o
cristianismo procura mostrar que a verdade habita no interior do homem13 e deste modo não
haveria uma verdade objetivamente reconhecível como propunham de modo diverso Platão e
Aristóteles. Vattimo chega ao ponto de dizer que “o cristianismo anuncia o fim da ideia
14
platônica de objetividade.” Mas como o cristianismo proporia este fim? Quando Santo
Agostinho menciona que a verdade está no interior do homem coloca sob a perspectiva
filosófica a importância da subjetividade. Com isso, começamos a perceber que na tradição
inicial cristã, ou pelo menos em sua origem “essencial”, há uma vocação para a saída da
objetividade e uma guinada à subjetividade. Em outras palavras, neste momento o
cristianismo mostraria a sua vocação para o enfraquecimento das estruturas rígidas da
metafísica com tendência à objetivação, entendida como a univocidade do modo de olhar uma
determinada situação, fato, etc. O cristianismo seria em si mesmo um modo diferenciado de
interpretação do fenômeno religioso que teria influência automática no modo dos seguidores
perceberem – ou interpretarem – as “coisas” ao seu redor.
Deste modo, por mais que se tente fazer a descrição de algo objetivo, esta descrição será
sempre a partir de uma perspectiva e, de acordo com Vattimo seguindo Rorty, “não haveria
15
descrições privilegiadas” . O que Vattimo está querendo colocar é que todos nós já
11
CAPUTO, John D. e VATTIMO, Gianni. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Editado por Jeffrey W. Robbins. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2010, p. 54.
(tradução nossa).
12
AGOSTINHO. De Vera Religione 1.38.
13
Nesta passagem, para Vattimo estariam os germens da interioridade humana que culminariam com o kantismo.
14
CAPUTO, John D. e VATTIMO, Gianni. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Editado por Jeffrey W. Robbins. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2010, p. 54
(tradução nossa).
15
CAPUTO, John D. e VATTIMO, Gianni. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Editado por Jeffrey W. Robbins. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2010, p. 56.
14
Assim, pode-se colocar de modo mais direto o problema que esta dissertação pretende
esclarecer: O que Gianni Vattimo entende por retorno da religião? Que religião retorna após a
morte de Deus e do fim da metafísica?
Outra hipótese que podemos aventar é a de que, na visão de Vattimo, a morte de Deus não
fecha a possibilidade de um discurso religioso, visto que para Nietzsche, nesta mesma
perspectiva de Vattimo, o Deus que morre é o Deus da moral, ou melhor, o Deus dos
filósofos. Assim, sua pretensão é a de verificar se o discurso da morte de Deus é como que o
fim da possibilidade do discurso religioso. Pelo que já foi adiantado não parece ser esta a
conclusão, pois se abre a possibilidade do discurso de Deus dentro da própria religião, já que
Vattimo parte do princípio de que a morte de Deus não significa o fim da religião, mas o
contrário, é o que possibilita uma renovada experiência religiosa na condição pós-moderna.
Esta pesquisa tem como interesse principal o aprofundamento das expressões secularização e
retorno da religião, utilizadas pelo filósofo italiano Gianni Vattimo. Parece-nos, pelo menos
em um primeiro momento, que a investida deste pensador é bem aguda, principalmente no
18
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um Cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
77.
19
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um Cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
62.
20
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
45.
21
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
44.
16
que diz respeito ao fato do retorno da religião. Em suas bases teóricas, Nietzsche e Heidegger
dão um primeiro passo apontando a secularização como um processo natural do ocidente.
Vattimo leva isto às últimas consequências e nos mostra – o que esperamos verificar – que o
processo de secularização longe de excluir, ao contrário, inclui a religião no processo de
tomada de decisões político-sociais, tornando-se apenas mais uma voz no meio das
“Diferenças” existentes no cenário pós-moderno.
Desta feita, o presente trabalho possui como objetivo compreender o que é a secularização e
como se dá o retorno da religião – se é que ela saiu do cenário – na perspectiva de Gianni
Vattimo, tomando como pano de fundo o fim da modernidade na sua concepção. Pretende-se,
também, verificar que o que se entende por retorno da religião em Gianni Vattimo vai muito
além da mera volta da religiosidade entendida ao modo simples do chamado senso comum.
Isto se deve pelo fato de que o pensamento vattimiano bebe em muitas fontes que, por sua
vez, servem de base para o entendimento de suas principais ideias.
O primeiro capítulo, que possui como título A religião que retorna, tenta delimitar qual tipo
de religião faz referência constantemente o pensamento vattimiano. Inicialmente procurou-se
verificar, nas obras citadas ao longo do texto, quais são as referências, em termos religiosos,
tomadas como exemplo pelo autor para que chegássemos a um ponto no qual pudéssemos
dizer de modo mais específico de que religião ele está tratando para então, tendo delimitado
tal assunto, verificarmos a identidade entre cristianismo e ocidente não como uma alternativa,
onde um excluiria o outro, mas tentaremos mostrar aqui que o cristianismo traria para a
filosofia como que a semente daquilo que viria a ser o ocidente em termos de hermenêutica,
considerada por Gianni Vattimo, como tentaremos mostrar, uma vocação dentro do
cristianismo, sendo um destino-envio.
Vale lembrar aqui que todo o texto deste trabalho está pautado nas obras diretas do pensador
de Turim. Procuramos utilizar o máximo de fontes primárias que tivemos oportunidade.
Preferimos que fosse deste modo para que o próprio autor falasse e pudéssemos captar de
modo exclusivo aquilo que há de unidade dentro de sua perspectiva hermenêutica. Isto quer
precisamente significar que ao tomarmos Gianni Vattimo em seus próprios textos, não será
objetivo deste trabalho tentar verificar e aprofundar suas ideias em relação a outro autor, por
exemplo, Martin Heidegger. Assim, não aprofundamos naquilo que entendemos ser fruto de
outro tipo de pesquisa como é o caso de se entender detalhadamente a questão do niilismo
considerada em si mesma. Deste modo, o que aqui se pretendeu foi buscar compreender a
partir da obra de Vattimo de que modo o que ele entende por niilismo e hermenêutica, por
exemplo, puderam favorecer o que ele propõe por retorno da religião.
18
O que inicialmente deve-se fazer para compreender toda a dinâmica do retorno da religião em
Gianni Vattimo é entender de qual religião o filósofo está falando. Adiantando um pouco a
conclusão, podemos dizer que ele entende por religião, em um sentido mais amplo, o
cristianismo. As evidências para tanto estão em diversas passagens de suas obras, como
Depois da Cristandade, Para Além da Interpretação, As Aventuras da Diferença, A Religião,
etc.22. Vários são os momentos nos quais Vattimo, ao analisar as condições de existência do
nosso tempo, menciona o Ocidente cristão. Não se pode esquecer, porém, que ao mencionar o
Ocidente cristão, o pensador de Turim faz acompanhar sempre outra expressão que nos
interessará mais à frente: a modernidade secularizada.
Em outra parte do mesmo seminário, Vattimo afirma que há dois sentidos positivos que
podemos encontrar no retorno da religião, isto é, sob duas perspectivas é que podemos falar
do retorno da religião. O primeiro sentido é aquele que poderíamos chamar de sociológico.
Segundo muito do que foi pregado pela filosofia do século XX, não se pode mais
pensar o ser como fundamento, isto não apenas porque nos arriscamos a fazer com
que este objetivismo seja a preparação para uma sociedade totalitária e, ao final,
para um Auschwitz ou um Gulag. A verdade é que a cultura europeia percebeu que
existem outras culturas que não podem ser classificadas simplesmente como
22
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
15, onde se vê claramente a menção inicial ao Deus da revelação bíblica que estaria sendo reinterpretado pela
comunidade dos crentes que trariam através da Sagrada Escritura, juntamente com a dita interpretação a
“tradição viva da Igreja” . VATTIMO, Gianni. Para Além da Interpretação: o significado da hermenêutica para
a filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 69, neste trecho, Vattimo chega mesmo a dizer que “a
modernidade é filha da tradição religiosa do Ocidente”. Ora, a tradição religiosa do Ocidente é eminentemente
cristã, como fica evidente na página seguinte da mesma obra e seguintes. VATTIMO, Gianni. As aventuras da
diferença: o que significa pensar depois de Heidegger e Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 1988. P. 29. Nesta
passagem, Vattimo já aponta para o fato de que é dentro da tradição cristã que se torna possível a concepção da
interpretação, passando, inclusive pela Sola Scriptura luterana.
23
DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni (Organizadores). A Religião. O Seminário de Capri. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000. P. 98.
19
Durante os séculos XIX e XX, segundo Vattimo, houve um grande desenvolvimento das
ciências históricas e da antropologia, o que fez com que se percebesse que não há um único
curso da história que permitisse a descrição da mesma como sendo um privilégio da sociedade
ocidental. Sociologicamente falando, isto permitirá um desenvolvimento da noção de
liberdade por parte dos povos coloniais. Para ele, tudo isso culmina com a revolta da Argélia
contra a França e a grande problemática do petróleo na década de 1970. Isto mostra de
maneira decisiva que não haveria mais lugar para uma visão de Europa como centro do
mundo e guia da humanidade.
Aliado a isto, o século XX, agora do ponto de vista mais amplo, por ter enfrentado uma
problemática política relacionada aos blocos econômicos que aí existiram, proporcionou,
devido à tensão nuclear que também era premente graças à diferença política e de influência
dos próprios blocos econômicos, um retorno à temática religiosa do homem ocidental. Este
homem, que não encontrava mais na técnica um refúgio que tanto ela prometia no advento da
modernidade, fez com que a cultura humanista das primeiras décadas do século XX
começasse a “se rebelar contra aquela ‘organização total’ da sociedade que vinha se impondo
25
com a racionalização do trabalho e o triunfo da tecnologia” . Não se deve esquecer que “o
mesmo fenômeno religioso na nossa cultura parece hoje ligado à enormidade e aparente
insolubilidade, para os instrumentos da razão e da técnica, de muitos problemas que se
26
colocaram ultimamente ao homem da modernidade” . No tocante à parte política, há, no
entender de Vattimo, uma importância do papado de João Paulo II no término do comunismo
no Leste europeu, não pelo fato dele – o papa Karol Wojtyla – ter feito com que o comunismo
caísse, mas a retomada da sensibilidade religiosa propiciou a ascensão das figuras religiosas
que utilizaram o momento para a sua “promoção”. Assim, “poder-se-á dizer que o novo e
relevante peso político das hierarquias religiosas não é causa, mas consequência da renovada
sensibilidade à religião”27.Nestas passagens, Vattimo está se referindo às questões referentes à
24
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
10-11.
25
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
10.
26
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1998, p. 13.
27
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1998, p. 15.
20
O segundo sentido, que é o que nos interessará, pode ser chamado de filosófico. Este segundo
sentido pretende significar que o retorno da religião é algo que já faz parte da própria religião
como que constituindo-lhe “essencialmente”, onde essência (Wesen) aqui deve ser entendida
como aquilo que vigora, e não a essência à maneira platônico-aristotélica na qual vai para
além do que é o temporal como algo estático, expresso nas ideias eternas. Para Vattimo, o
aprofundamento de uma autoconsciência humana “são dados já numa linguagem determinada,
que, em termos mais ou menos literais, é a linguagem da tradição judaico-cristã, da Bíblia” 29.
Aqui, vemos mais uma menção do nosso autor à religião que está considerando, isto é, o
cristianismo. Poderia-se objetar dizendo que Vattimo considera também o judaísmo, já que
nas duas partes até agora apresentadas como “provas” de que é o cristianismo que estamos
tratando, ele também menciona o judaísmo. Não estaria errada esta observação num primeiro
momento. Até porque, não muito à frente desta última citação, Vattimo afirma que “a
hermenêutica como filosofia da interpretação só podia surgir no âmbito da tradição judaico-
cristã” 30.
Não se deve esquecer aqui a referência de fundo que é feita inicialmente à metafísica
tradicional de cunho aristotélico. Segundo Pires31, Vattimo chega mesmo a admitir que já
existe uma abertura a para a interpretação em Aristóteles, mas que tal concepção apresenta um
problema. Qual seria o problema desta visão?
A questão, segundo Pires, é que Vattimo toma como ponto de partida a passagem da
Metafísica de Aristóteles na qual é dito que “o ser se diz em múltiplos significados, mas
28
É importante fazer a menção a um artigo de Vattimo de L’Espresso, de 14 de fevereiro de 2002, no qual ele,
não abrindo mão da utilização de seus pressupostos hermenêuticos já enfraquecidos, diz que “que hoje é urgente
o desenvolvimento de posições que respeitem as diferentes orientações éticas sem ceder a conclusão dogmática
preconcebida que, em nome do respeito pela vida, acabam por trair a própria vida, dificultando essenciais
desenvolvimentos da medicina” (fonte: http://www.giannivattimo.it/doc/neri.html. acesso: 13 de junho de 2012).
29
DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni (Organizadores). A Religião. O Seminário de Capri. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000. P. 101.
30
DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni (Organizadores). A Religião. O Seminário de Capri. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000. P. 101.
31
PIRES, Frederico Pieper. A vocação niilista da hermenêutica: Gianni Vattimo e Religião. Tese de Doutorado.
São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2007, p. 214.
21
32
sempre em referência a uma unidade e a uma realidade determinada” e parece que fica
apenas com a primeira parte da sentença, deixando de lado a parte na qual o pensador grego
diz que tal multiplicidade faz referência a “uma unidade e a uma realidade” determinada.
Pires ainda alerta que a maneira como Vattimo toma este “vários modos” de Aristóteles, que
aparece em Acreditar em Acreditar33, está ligado à Carta aos Hebreus (Hb 1,1-4), onde se lê:
Muitas vezes e de diversos modos outrora falou Deus aos nossos pais pelos
profetas. Ultimamente nos falou por seu Filho, que constituiu herdeiro universal,
pelo qual criou todas as coisas. Esplendor da glória (de Deus) e imagem do seu ser,
sustenta o universo com o poder da sua palavra. Depois de ter realizado a
purificação dos pecados, está sentado à direita da Majestade no mais alto dos céus,
tão superior aos anjos quanto excede o deles o nome que herdou34.
Vattimo, ao seguir a primeira parte da abertura da Carta aos Hebreus, provavelmente vê uma
semelhança com o ser dito de vários modos de Aristóteles. No entanto, parece não dar muita
atenção à segunda parte da introdução, na qual o Filho de Deus fica glorificado, apesar de
lembrar na mesma passagem “que também Jesus não se considerou a revelação última e
definitiva das profecias, prometeu enviar o espírito da verdade porque a revelação tinha de
continuar” 35. Voltando, porém, à glorificação, Vattimo, segundo Pires, esquece-se do caráter
rígido que a glorificação parece dar ao próprio Filho de Deus não mais o caráter fraco ou
débil, mas rígido e forte. Por Pires:
Pode-se até mesmo especular que o fato desta passagem estar na Carta aos Hebreus indicaria
que não haveria contradição na essência do que Vattimo estaria dizendo, já que a mensagem
cristã teria que ser passada como algo novo, diferente da concepção hebraica ainda muito
arraigada ao conceito forte da realidade.
32
ARISTÓTELES, Metafísica, 1003a.
33
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água, 1998,
p. 76-77.
34
BIBLIA SAGRADA, São Paulo: Editora Ave Maria, 2005, p. 1527.
35
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água, 1998,
p. 77.
36
PIRES, Frederico Pieper. A vocação niilista da hermenêutica: Gianni Vattimo e Religião. Tese de Doutorado.
São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2007, p. 215.
22
Pires, no entanto, mostra que há um indicativo de que é da Carta aos Filipenses (Fil 2,6-7) que
Vattimo tira a ideia de enfraquecimento, já que ali começaríamos a perceber esta nova visão
de modo de modo mais livre em relação ao judaísmo e pertencente à visão verdadeiramente
cristã. Ali diz: “Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a
que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo,
tomando a semelhança humana37”. Neste trecho acima, é de suma importância a expressão
“aniquilou-se”. Isto porque é este aniquilar-se, este enfraquecer-se, esvaziar-se, que interessa
no pensamento de vattimiano. Deste modo, é dentro do cristianismo que começa a longa
marcha de enfraquecimento das estruturas fortes na qual se insere o entendimento da realidade
no Ocidente. É também dentro do cristianismo que, como será visto mais adiante, há a
possibilidade de afastamento dele mesmo e um retorno, mostrando que o Ocidente, ou mundo
pós-moderno, só se “torna possível” enquanto um levar a cabo da mensagem cristã
inicialmente anunciada, isto é, uma mensagem que é vista como um envio-destino.
Por outro lado, não se pode esquecer que Vattimo afirma que é o Deus trinitário que nos
permite pensar não em termos de fundamento metafísico, mas em termos de um fundamento
evangélico que nos ligaria aos sinais dos tempos38. Aqui, então, fica bem clara qual a religião
que se está levando em consideração de modo mais específico: o cristianismo. Isto está
relativamente explícito quando se observa que primeiro Vattimo cita a tradição judaico-cristã
como possibilidade “criadora” da hermenêutica. Em seguida, ao mencionar o Deus trinitário,
isto é, o Deus do cristianismo, pois o judaísmo não possui a ideia de um Deus trino, há a
especificação ainda maior do que se está propondo.
Assim, visto que é o cristianismo a religião que será utilizada como base para sua análise
filosófica de entendimento do pensamento pós-moderno, resta sabermos qual é o tipo de
cristianismo que está sendo considerado. Uma vez que Vattimo se concentra no Ocidente,
pode-se perguntar se seria o cristianismo católico romano, o protestante, uma mistura destes
ou uma forma própria que reúna outros elementos novos somados a estes? Parece a última
opção ser a mais plausível. Quais seriam as razões que indicam tal conclusão?
37
BIBLIA DE JERUSALÉM, São Paulo: Paulus Editora, 2002.
38
DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni (Organizadores). A Religião. O Seminário de Capri. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000. P. 102.
23
vezes, entram em conflitos entre si – não podendo ser considerado como um bloco
monolítico. O catolicismo romano que Vattimo leva em consideração normalmente é o que
está vinculado diretamente ao romano pontífice, sendo alvo de duras críticas por sua forte
conotação metafísica 39. Deste modo, o problema que já se levanta aqui é o de tomar-se uma
interpretação e considerá-la como espelho da natureza e concluir-se que por esta razão todas
as coisas devem ficar submetidas à violência da conclusão metafísica que parte da eternidade
dos fatos da realidade e, como consequência, culminando na própria criação do dogma que
decorreria disto e tornaria ainda mais definitiva e imutável a conclusão a que se chega.
Por outro lado, e em mesmo sentido que o catolicismo romano, as denominações protestantes
também não funcionam como um bloco monolítico, pois existem diversas perspectivas de
interpretação dentro deste ramo do cristianismo. Assim, em linhas gerais serão aqui
considerados para efeitos comparativos a linhas religiosas “oficiais” de cada ramo religioso:
no caso do catolicismo romano, o que está submetido ao papa; no caso do protestantismo, o
que há de mais tradicional (o protestantismo histórico europeu – com quem Vattimo dialoga),
pois acabam mantendo uma linha ligada a uma visão dura e fixa da realidade.
Deste modo, e para começarmos a entender qual é o cristianismo que é considerado, não
podemos tratar o catolicismo romano pura e simplesmente pela razão deste ainda estar
“funcionando” de modo ainda metafísico em suas propostas doutrinárias e dogmáticas. Isto
ocorre pelo fato de a Igreja tomar a interpretação das Escrituras apenas do ponto de vista
literal sem uma abertura para o aspecto da liberação da metáfora. Lembre-se aqui, por
exemplo, a figura de Tomás de Aquino que toma praticamente os princípios metafísicos da
filosofia de Aristóteles e é considerado o teólogo modelo do cristianismo na vertente romana,
o que fica evidente com a retomada do pensamento tomista em finais do século XIX em
diante que leva, por exemplo, em consideração os desenvolvimentos da filosofia moderna da
39
Em artigo publicado em La Stampa (em 17 de outubro de 1998), três dias após ser publicada a Encíclica de
João Paulo II Fides et Ratio, na qual o papa defende a utilização de uma razão mais aos moldes da metafísica
clássica, Vattimo deixa bem clara a sua posição dizendo que “não somos partidários de verdades absolutas e
imutáveis” (tradução nossa). Isto escreve para justificar a sua posição claramente hermenêutica, pois não adota a
imutabilidade do ser como propõe na Carta Encíclica João Paulo II (disponível em:
http://www.giannivattimo.it/pubblicazioni/editoriale17.10.1998.html, acesso 28 de abril de 2012). Em uma
entrevista cedida à Agenzia Stampa Quotidiana Nazionale (em 21 de abril de 2005), Vattimo, ao responder sobre
o principal problema a ser enfrentado por Bento XVI em seu pontificado, que então começava, afirma que, com
efeito, o principal problema – não parece ser apenas neste caso de Bento XVI – da Igreja é o fato de ser muito
centralizadora no que diz respeito aos dogmas e à disciplina. Isto significa aqui que se este é o principal
problema da Igreja é porque ela até hoje vive nesta perspectiva metafísica de considerar o “fato” concreto como
sendo o único ponto de partida para a interpretação da realidade, o que permitiria a formação dos dogmas que
tradicionalmente ela propõe (disponível em: http://www.giannivattimo.it/Interviste/21.4.2005.html, acesso 28 de
abril de 2012).
24
subjetividade, como no caso das obras do jesuíta Joseph Maréchal40. Aliás, um dos grandes
pontos que, segundo Vattimo, deve-se rechaçar é o que está relacionado a um dogma. Isto se
dá pelo fato do dogma ainda pressupor uma verdade fixa e estabelecida de modo eterno, isto
é, o dogma pode ser proposto por que é o enunciado proposto a partir de uma verdade factual.
Do ponto de vista sociológico, por exemplo, o caráter rígido de se considerar a eventualidade
do ser é evidenciado na ausência de sacerdócio para as mulheres, o tratamento da Igreja para
com os homossexuais41.
Como observado, o Deus trino da concepção vattimiana é o que permite analisar as questões
que nos aparecem à luz dos sinais dos tempos, ou seja, o Deus trinitário é aquele que nos abre
a possibilidade de não nos fixarmos na visão unívoca de um dado da realidade, mas aquele
que nos mostra as diversas facetas do mesmo dado da realidade, proporcionando-nos uma
interpretação que mais se adapte à necessidade do momento histórico e ao mesmo tempo em
que esteja livre do formalismo de um determinado momento histórico. Para Vattimo,
Quando a Igreja ainda hoje condena como fossem abandonos ou traições tantos
fenômenos de secularização da vida individual e social, continua a evocar uma
interpretação literal da Escritura. Em certos casos, isto é de uma forma tão evidente
que chega a parecer absurda: basta pensarmos na recusa às ordens sacerdotais para
as mulheres, uma recusa que tem por único fundamento o fato de que Jesus
escolheu apenas homens para a formação de seu grupo de apóstolos. No que se
refere a este exemplo, que hoje tem boas razões para estar no centro do debate
inclusive em muitos ambientes católicos, se pode ver que o “rigorismo” é, no
fundo, simplesmente uma ligação com uma cultura historicamente determinada e
falsamente assumida como “natureza”: o que fez com que Jesus escolhesse apenas
homens como apóstolos, e o que hoje ainda motiva a recusa do sacerdócio
feminino na Igreja Católica, é a condição de inferioridade social da mulher que, se
era regra geral e “óbvia” no tempo de Cristo, nos nossos dias é um simples resíduo
do passado assumido como se fosse uma norma eterna da natureza.42
Por outro lado, tampouco poderíamos dizer que a religião que volta é a protestante. O
protestantismo, que toma por base Vattimo, é aquele sugerido e analisado por Max Weber em
A ética protestante e o espírito do capitalismo. Em linhas bem gerais, este protestantismo
ainda mantém uma ligação direta com a visão de mundo que considera toda a realidade do
ponto de vista substancial e fixo de modo rígido como serem as realidades metafísicas eternas
40
Em obras como Le point de départ de la Métaphysique (MARÉCHAL, Joseph, Le point de départ de la
Métaphysique. Cahier V. Bruges: Charles Beyaert, 1947), Maréchal tenta, a partir de pontos da filosofia crítica,
dar uma justificativa ao pensamento tomista e justificar esta num pensamento posterior a Kant.
41
Cf. artigo em La Stampa do dia 04 de abril de 2005 intitulado Troppi silenzi su donne e gay L’eredità di
Wojtyla.
42
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
61-62.
25
e estáticas. Vale lembrar que, apesar do protestantismo, genericamente considerado, ainda ver
o mundo com aquele olhar “metafísico”, o capitalismo que surge a partir daquele tipo de ética
somente aparece porque esta mesma ética em uma chave interpretativa secularizante já é uma
aplicação interpretativa da Bíblia que muda a interpretação da mesma e a retira do seu plano
meramente sacramental e eclesiástico. Aqui, mais uma vez, poder-se-ia objetar: então, para
Vattimo, o cristianismo que está sendo tratado é o protestante, já que ele abriu uma
perspectiva diferente quanto à interpretação literal da Bíblia aderindo a uma interpretação
mais secularizada. A resposta a esta objeção é mais uma vez a negativa, porém com algumas
ressalvas a favor da objeção. Ainda não é o cristianismo protestante, mas este tipo de
cristianismo já aponta para aquilo que nosso autor entende por cristianismo. Não é o
cristianismo protestante porque, em linhas bem gerais, dentro das denominações protestantes
existem aquelas que aderem à literalidade das Escrituras e isto significa poder fazer uma
leitura bíblica literal, isto é, tomando por fundamento uma postura metafísica que parte do
princípio de que a estrutura da realidade é pautada numa substância fixa e estável. Dissemos
que aponta para o que autor entende por cristianismo, pois podemos nos lembrar de uma das
principais ideias do protestantismo ser a livre interpretação da Bíblia e que a nossa época deve
43
ser entendida “como uma idade da interpretação espiritual da mensagem bíblica” , pois
“nela a presença ativa da herança cristã só pode ser reconhecida se for abandonada à
interpretação literal e autoritária da Bíblia” 44.
Visto não ser o catolicismo romano “stricto sensu” nem o protestantismo o tipo de
cristianismo pretendido por Vattimo, que tipo de cristianismo menciona o autor?
Este cristianismo é o que toma a influência de René Girard. Em um ensaio intitulado Girard e
Heidegger: Kénosis e fim da metafísica45, Vattimo explicita ainda mais o que entende por
religião. Ao tentar completar o pensamento de Heidegger utilizando-se de Girard, deixa claro
que é a partir desta perspectiva que se pode entender melhor a relação existente entre a
tradição judaico-cristã e o mundo atual da pós-metafísica. Segundo Vattimo, Girard percebe
que Heidegger deixa de lado a questão da lógica vitimária que há no mundo moderno.
Vattimo para justificar isto parte do pressuposto de que,
43
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
62.
44
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
62.
45
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010.
26
Com base em Girard, Vattimo entende que nas religiões de cunho mais natural havia uma
relação de se encontrar uma vítima para algum tipo de problema que se encontrava em dada
sociedade. Encontrada esta vítima que teria a condição de expiação do problema, partia-se
para a sua execução. Jesus, nesta passagem de Vattimo, não é “causadora” dos problemas da
sociedade humana, mas, no entanto, acaba sendo a vítima e ao mesmo tempo dá um novo
sentido à questão vitimária do próprio Antigo Testamento. De modo sumário, Vattimo quer
dizer, junto com Girard, que as religiões de cunho natural achavam um “bode expiatório” para
a solução de algum problema encontrado na sociedade, seja ele uma peste, uma enchente ou
outro problema. Este bode seria escolhido de modo aleatório, o que não significa
necessariamente que ele tenha culpa por aquilo que está de ruim ocorrendo na dada sociedade.
A morte desta vítima reconduziria a estrutura da “harmônica” do lugar. Assim, no caso
específico do Novo Testamento, Jesus acaba com esta lógica vitimária. De que modo isto
ocorre? Toda a lógica vitimária está pautada no mecanismo mimético, isto é, no mecanismo
de imitação. Este mecanismo mimético, de modo mais claro, seria aquele em que há três
elementos a serem levados em consideração: o sujeito, o objeto do desejo e um outro sujeito.
O primeiro sujeito deseja o objeto porque o segundo sujeito também o deseja. Este
mecanismo de imitação do desejo leva a uma rivalidade que vai, cada vez mais, sendo
acirrada pela violência na execução do “plano” para se adquirir o objeto do desejo do outro
sujeito. Aqui está a grande novidade do cristianismo. Jesus não deseja o objeto do outro.
Assim, quando ele é levado à condição de vítima, é levado mudando a lógica vitimária, pois
não é mais um outro que é culpado e é vítima, mas inocente, já que não desejou o objeto do
outro, e vítima, porque padece da fúria injustificada do outro.
O que acontece no mundo atual, aqui Vattimo cita Girard – mais à frente poder-se-á perceber
que não é esta a proposta de Vattimo, sem que ele deixe de dar importância a esta mencionada
aqui –, é o caráter opcional que o homem moderno deve fazer de sua condição, a saber: lutar
pela completa violência que leva a total destruição da humanidade ou levar a plenitude da lei
do amor proposta por Jesus. Este polo opcional se dá pelo fato de que tecnicamente o homem
conseguiu atingir um ponto tal que ele conseguiria destruir o mundo todo com seu arsenal
46
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010, p. 84.
27
nuclear, por exemplo, nos acirrados conflitos – gerados por conta do mecanismo mimético –
entre os países. Por outro lado, o reconhecimento deste problema de e o fim da lógica
vitimária promoveria o fim do desejo mimético, liberando a caridade universal. É por este
motivo que a proposta de Vattimo, neste ponto, não é igual àquela proposta por Girard, isto é,
Vattimo reconhece a dupla possibilidade, mas fica com a alternativa da caridade. Deste modo,
qual a semelhança entre o pensamento de Girard e Heidegger?
Esta distorção é que torna capaz a retomada da religião e de suas noções fundamentais – e
aqui Vattimo deixa cada vez mais claro que é o cristianismo a religião pesquisada – como
pecado, criação, salvação. Apesar do fim da metafísica em Heidegger, não há o
47
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010, p. 86.
48
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. VII.
28
desmembramento destas ideias relativas à religião, segundo Vattimo. Apesar disso, este
pensador entende que Girard pode preencher esta lacuna de modo a retomar a noção de
vítima. Como ocorre este preenchimento?
uma filosofia pós-metafísica deve estar pronta para pensar o evento do Ser como
uma espécie de subtração, um enfraquecimento, um distanciamento ou um longo
adeus (...). Não é por acaso que, para indicar um pensamento não metafísico
(Denken), Heidegger usa a palavra An-denken, rememoração: uma rememoração
que não quer reapresentar novamente o Ser, porque isso significaria uma pura e
simples restauração da metafísica (junto com sua violência). O Ser só pode ser
autenticamente pensado como “um distanciamento” – que sabe não haja aqui,
talvez, uma reminiscência de Deus visto por Moisés só de costas, enquanto se
afastava dali?49
Continuando com sua análise de completude entre Girard e Heidegger, Vattimo menciona o
fato de que o evento do ser através da diferença ontológica, que é uma das condições de
possibilidades para que haja uma brecha de investigação na estrutura do ser não mais
pertencente à ontologia metafísica tradicional da história da filosofia que tende a considerar a
igualdade – note-se, não a diferença – entre o ente que se dá no evento e o ser. Com isso,
abre-se a perspectiva para se entender que é o próprio ser aquilo que faz com que haja o
enfraquecimento das estruturas fortes da metafísica, permitindo, “a dissolução de todo
conceito de realidade através da multiplicação e o conflito explícito de diversas ações de
interpretação interagentes da nossa sociedade, e inclusive através do incremento histórico de
50
autoconsciência das ciências” . Vattimo mostra que em Girard o enfraquecimento da
violência do sagrado pode ser visto como o análogo do que ocorre com o enfraquecimento das
estruturas fortes da metafísica do ser. Para Vattimo,
49
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010, p. 89-90.
50
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010, p. 91.
51
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010, p. 91.
29
Com esta afirmação acima, Vattimo, assumindo os riscos naturais de qualquer posição
resumida, pretende afirmar que, no fundo, o que Heidegger chama de enfraquecimento do ser
é, na concepção girardiana, o fim, ou exaltação, da violência vitimária. E ainda complementa
de modo sumário afirmando que isto se dá
Como, na concepção de Vattimo, René Girard entende que Jesus é a interrupção drástica da
violência do conceito natural do sagrado, este mesmo Jesus, através da kénosis, possibilita
também do ponto de vista da interpretação da Lei judaica uma interrupção da interpretação
vinda dali se esquecer que esta interrupção aponta para uma diluição ainda maior a que ocorre
na Idade do Espírito53. Com estas informações, percebe-se que, na verdade, o problema
inicialmente enunciado que há no mundo moderno entre a violência da sociedade e a caridade
da mesma, ambas entendidas de modo absoluto, não é a solução que se encontra, pois ainda
tem-se que colocar o elemento do Espírito que tornará possível o entendimento de que não há
uma objetivação do real, mas sim a eventualidade do ser que se mostra cada vez mais diluído.
Em termos de salvação, Vattimo esclarece melhor: “A salvação é o processo histórico pelo
qual Deus nos chama agora e sempre para sacralizar a violência e para dissolver a definitiva e
peremptória reivindicação da objetividade metafísica” 54.
Delimita-se assim o tipo de religião que está sendo considerado por Vattimo: o cristianismo
secularizado e aberto às diversas interpretações55, inspirado na concepção de Girard, que
revelaria as potencialidades de evento do ser. Observe-se, por exemplo, as diversas
manifestações religiosas que estão sendo criadas a todo instante no mundo. Para Vattimo, as
religiões tradicionalmente estabelecidas tendem a considerar estes fenômenos como
aberrações e desvios da “sã doutrina”. No entanto, não podemos esquecer que estas religiões
estabelecidas tentam legitimar-se na força de uma visão metafísica previamente assumida, isto
é, uma visão que presa pela literalidade da interpretação bíblica. Deste modo, de fato, não
52
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010, p. 91-92.
53
Esta Idade do Espírito será melhor explorada mais à frente neste trabalho.
54
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: São Paulo,
2010, p. 92.
55
Lembre-se aqui que durante todo o trabalho ficarão melhores indicadas estas características.
30
haveria espaço para uma diversificada gama de religiões. O problema é que não estamos mais
no tempo da metafísica que funda a realidade e as interpretações do real de modo violento,
mas no tempo da liberação da metáfora, onde há a liberdade de se entender o texto bíblico e
qualquer outro dentro dos limites do evento que se dá a experiência vivida. É por isso que
Vattimo afirma que,
56
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
63.
31
Depois de indicar a religião que está sendo tratada neste trabalho, cabe ainda aqui um novo
tipo de delimitação, que é entender outro conceito fundamental na filosofia de Gianni
Vattimo, a saber: o conceito de Ocidente. Este conceito, como veremos, está diretamente
ligado à noção do que é a Europa em termos de formação cultural desde a “fusão” do
cristianismo com o pensamento filosófico grego que, como diferença específica, teria seu
ápice na modernidade. Deste modo, Ocidente, Europa e Modernidade poderiam ser
considerados sinônimos, como muitas vezes Vattimo indicou em Depois da Cristandade57 e
outras obras. Por exemplo, em Acreditar em Acreditar, Vattimo chega mesmo a afirmar que
Esta transformação paralela do ponto de vista filosófico sobre a civilização moderna obterá
dimensões nas quais a dita essência do cristianismo será possível manifestar-se apenas dentro
do horizonte que é próprio da modernidade como herdeira da tradição religiosa do Ocidente.
Não é por menos que mais à frente na mesma obra, tendo desenvolvido as suas
potencialidades iniciais de abertura para as diversas possibilidades hermenêuticas colocadas
em cada intérprete – como ficará mais bem esclarecido mais adiante neste trabalho –, Vattimo
afirma que no mundo moderno há uma volta “à secularização como essência da modernidade
e do próprio cristianismo” 59.
Além destes pontos, há também para corroborar a tese de que o Ocidente, Europa e
Modernidade poderiam ser considerados sinônimos, a passagem inicial de O vestígio do
57
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
91.
58
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1988, p. 43.
59
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1988, p. 45.
32
Assim, como sugerido acima, para se entender o que é o Ocidente, deve-se procurar a sua
ligação com o cristianismo. Duas possibilidades, inicialmente podem ser observadas quando
se trata de Ocidente e cristianismo. A primeira é aquela que considera o Ocidente como
oposição e alternativa ao cristianismo. Esta consideração trabalha com a hipótese de que o
surgimento do Ocidente moderno se dá como uma reação antitética à prevalência cristã
anterior61, isto é, o Ocidente seria uma superação no sentido de que se teria outra coisa
colocada no lugar do cristianismo. Nestes termos, então, vê-se que Ocidente e cristianismo
não teriam ligação alguma, ou melhor considerando, até haveria uma relação, só que esta seria
entendida como um afastamento. Assim, teriam relação apenas no nível do Ocidente moderno
reagir aos ideais do cristianismo.
Assim, há, na concepção de Vattimo, uma distinção entre uma visão que entende o Ocidente
como um sinônimo de Cristianismo e outra que entende que há uma diferença radical entre o
Ocidente e o próprio Cristianismo (entendidos como aut aut). Neste segundo caso, a
passagem da Cristandade para o Ocidente seria algo estanque, como algo reativo. Vattimo,
entretanto, utilizará o entendimento de que o Ocidente e o Cristianismo são sinônimos.
Não obstante, em um dos capítulos de sua obra Depois da Cristandade62, Vattimo mostra que
a relação entre Ocidente e Cristianismo é a de que uma expressão pode significar a outra e não
de que uma expressão exclui a outra. É importante notar aqui que o título deste capítulo
supramencionado é O Ocidente ou a Cristandade. Logo nos primeiros parágrafos, Vattimo
aponta para um jogo relacionado à partícula “ou” do título. Ela poderia significar tanto
exclusão, por exemplo, quando uma pessoa diante de uma escolha tem o item “A” para optar
ou o item “B”, ou seja, ela só é capaz de fazer a escolha porque existem opções diferentes.
Este “ou” citado por ele é o aut aut. De outro modo, a partícula “ou” poderia ser entendida
60
DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni (Organizadores). A Religião. O Seminário de Capri. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000. P. 91.
61
Aqui não se pode esquecer a dialética hegeliana61 em cuja Dialética do Espírito tem-se uma grande afirmação
ou tese, que neste caso específico seria o cristianismo “dominando” o modo pelo qual se dão todas as relações do
“real”, sejam elas filosóficas, sociais, políticas, etc. Por outro lado, na mesma Dialética do Espírito, ter-se-ia a
antítese, isto é, a contra-afirmação do que se havia tido anteriormente como afirmação, que, por sua vez, seria o
que não é religião, a saber: a sua negação.
62
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p. 91
ss.
33
como uma ligação entre “A” e “B” indicando um sinônimo, quando se quer, por exemplo,
indicar que não há diferença entre o item “A” e o item “B”, como se tivesse após a sentença
“A ou B” uma vírgula e a expressão popular “tanto faz” (A ou B, tanto faz, já que um é
sinônimo do outro)63. Neste caso, o “ou” seria o sive.
Deste modo, no primeiro caso, onde “A” seria o Ocidente entendido como moderno e “B” a
cristandade, teríamos uma total exclusão de um em relação ao outro. Esta tese, segundo
Vattimo é apresentada por Blumenberg. Tese segundo a qual
63
Tome-se apenas o cuidado aqui de não transformar tal análise em hipótese metafísica, pois, como será
observado mais à frente neste trabalho, não é a intenção de Vattimo.
64
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
91.
65
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
90.
34
dizer que é estanque a passagem do Cristianismo para o Ocidente por não perceberem que
talvez o que entendem por Ocidente não tenha absorvido corretamente determinados aspectos
do que o Cristianismo possivelmente teria dito. Aqui existem duas críticas radicais a esta
visão. A primeira ocorre ao integralismo católico, cuja visão é de entender que a chamada
cristandade medieval vivia em uma situação um tanto quanto idílica e que todas as decisões
tomadas em relação às questões sociopolíticas devem, de fato (fato aqui não é apenas uma
expressão, mas a representação exata do real), dizer respeito ao mundo natural e, portanto,
aquilo que não está de acordo com o mundo natural, para efeitos legais, deverá ser descartado
como estranho e ilegal. A segunda crítica que faz está relacionada àqueles que entendem que
o Ocidente moderno é uma ruptura total em relação ao que se teve antes. “Pecaram” estes por
depositarem uma esperança na mencionada absoluta autonomia do homem moderno e
consideraram que nada de efetivamente constitutivo “restou” do período anterior para o
período seguinte. Esta última visão não se diferenciaria da anterior, já que ambas partem do
pressuposto de que há um núcleo duro que legitima cada uma das concepções do real: no
primeiro caso, a correspondência entre natureza e leis; no segundo, a autonomia
principalmente da razão técnica que solucionaria todos os problemas e traria resultados
eficazes para todos os anseios humanos.
Após ter-se demonstrado que o Ocidente e cristianismo não se dão em uma relação aut aut,
cabe mostrar agora que para Vattimo há, no fundo, uma sinonímia, não absoluta como
tenderia a pensar a mentalidade metafísica, entre o Ocidente e o cristianismo e que tal
situação pode ser entendida como a secularização que se revela como consequência, como
uma vocação da Cristandade.
66
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
92.
35
Para justificar sua posição, Vattimo lembra que a tese da secularização abrange as teses do aut
aut pelo fato da tese da secularização “‘compreender’ as teses ‘adversas’” 67. A secularização,
por sua vez, só pode ser entendida dentro do horizonte da hermenêutica. Isto permite entender
que as duas possibilidades anteriormente mencionadas não são estanques na relação que cada
uma propõe. Elas devem ser entendidas, do ponto de vista hermenêutico, não como teses
mutuamente excludentes (como se o Ocidente excluísse o cristianismo e o cristianismo não
“originasse” o Ocidente). Esta situação deve, por outro lado, mostrar que o Ocidente se dá
como prosseguimento, como destino, em relação ao cristianismo.
Estes fenômenos não são legíveis nem como abandono radical e nem como
novidade absoluta, visto que lê-los assim significaria ignorar aquela condição que,
em outros contextos, chamamos de círculo hermenêutico e que, mais
simplesmente, podemos indicar como pertinência e proveniência.68
Assim, começa-se a perceber a partir de que bases pode-se dizer que o Ocidente é sinônimo
de cristianismo. Há um adendo extremamente importante que deve ser colocado aqui neste
momento para que se possa ter uma compreensão da “identidade” entre estas duas instâncias
(Ocidente e cristianismo). Quando se fala em Ocidente, então, não se estaria falando de uma
forma de cristianismo que indicaria um ultrapassamento, isto é, em uma posição que possuiria
em si mesma algo da posição anterior?
Tomando por base a circularidade hermenêutica, a resposta à pergunta anterior é um sim que
já aponta para a solução da questão inicialmente colocada: o que se entende por Ocidente é
cristianismo secularizado. Isto é, até mesmo resposta para os problemas causados do ponto de
vista sociológico hoje na Europa.
Exemplificando estas questões de cunho mais sociológico vale lembrar atualmente na Europa
a problemática relacionada à retirada ou não dos crucifixos dos estabelecimentos públicos. As
duas mentalidades possíveis, e mencionadas acima, possuem seus representantes atualmente
no palco das discussões políticas. De um lado, tem-se aqueles que querem a retirada de tais
objetos religiosos pelo fato de serem representantes de uma Europa que não está mais sujeita a
um tipo de poderio religioso. E não estando sujeita a um poderio religioso, a Europa não
deveria em seus estabelecimentos públicos permitir que fiquem expostos símbolos religiosos
67
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
93.
68
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
93.
36
mesmo que um dia tenha sido cristã. Não podemos esquecer o fato de termos aqui uma
premissa relacionada ao tempo histórico vivido dizer o que temos que fazer de modo
concreto. Na prática, o significado dessa premissa histórica com a mentalidade que entende
que o Ocidente “era” cristão e “não é” mais, o resultado é a busca pela politização que
favoreça a retirada dos mesmos objetos. Por outro lado, o integralismo católico, ainda como
exemplo, ao apontar uma estrutura rígida que toma como premissa o fato de que o Ocidente
perdeu aquilo que já possuiu um dia, pois se tornou idêntico a um consumismo desvairado,
busca pelo prazer irrestrito e abandono total às leis naturais, como o dito anteriormente, não
suportaria a ideia de ter retirado das repartições públicas os crucifixos porque eles
representariam aquele estado que chamamos de idílico.69
Assim, a dita “identidade” que há entre o Ocidente e o cristianismo pode, segundo Vattimo,
significar duas coisas:
O fato de o Ocidente encontrar sua identidade cultural como elemento de unificação quer
significar aqui no pensamento de Gianni Vattimo que há na Europa, entendida como a matriz
de todo o pensamento do Ocidente moderno, uma unidade que acaba sendo garantida, não
apenas do ponto de vista sociológico, mas também do ponto de vista filosófico, pelo
cristianismo, pois este, enquanto kénosis, institui uma abertura, um horizonte hermenêutico.
Para que as múltiplas interpretações não caiam num caos completo, Vattimo acaba recorrendo
a uma narrativa, não no sentido de metanarrativa metafísica, com o intuito de conceder
unidade e sentido a elas. Vattimo menciona, para a questão sociológica, a
69
“Noi difendiamo Il significato e religioso e l’importanza del crocifisso, che il governo italiano ha negato di
fronte allá Corte europea dei diritti umani, facendolo passare per um símbolo culturale nazionale o tradizionale”,
disse Vattimo em entrevista à Apcom (Disponível em:
http://giannivattimo.blogspot.com.br/2009_11_01_archive.html, acessado em 10 de abril de 2012).
70
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
95.
37
função decisiva que teve o papado atual na liberação da Europa do leste do domínio
comunista, o que é certamente uma das condições para a “redescoberta do Ocidente”.
No momento em que se pensa novamente em uma Europa unida, torna-se atual
também aquilo que, historicamente, constituiu o seu elemento de unidade, o
cristianismo, e, diríamos até, o cristianismo católico71.
Assim, todo o esforço que se vê atualmente para a unificação da Europa não pode esquecer
aquilo que a une historicamente. Além disso, reforçando a unidade da Europa no nível
filosófico-sociológico-científico, com relação ao surgimento da ciência moderna tipicamente
europeia, Vattimo diz, de modo extremamente resumido em Depois da Cristandade72, que é
dentro do monoteísmo que se torna possível o início da ciência tal como a conhece a
modernidade, pois pode-se mesmo pensar que o porquê disso é o fato do monoteísmo, com
seu Deus estável, permitir uma visão também estável das regras que governariam o mundo
natural, sem esquecer, no entanto, que esta visão rígida e estável já esta lentamente se
diluindo no decorrer da história da filosofia. Quando chega a modernidade em sua realização
plena, há, como será apresentado mais detalhadamente neste trabalho, a realização do
enfraquecimento das estruturas rígidas da metafísica, dissolvendo tudo aquilo que havia de
objetivo trazido pela modernidade mesma, inclusive a visão estável do “real” preconizada
pela ciência moderna. Houve, então, neste ponto uma unidade, segundo Vattimo, na Europa
com relação à busca de uma estabilidade na ciência que entra num momento da história em
que já está havendo a diluição das estruturas fortes da metafísica do ser e é por isso que a
ciência irá realizar o seu esgotamento de possibilidades racionalizáveis de modo rápido. É a
ciência levada às últimas consequências que permitirá o fim da visão unitária do real e
proporcionará o fim da unidade metafísica do real, abrindo margem para a Europa poder
analisar a religião como algo que retorna de modo secularizado sendo a realização de uma
vocação inicial sua, isto é, a religião é quem de fato permite que haja um enfraquecimento das
estruturas rígidas da metafísica do ser e, ao enfraquecê-lo, retorna como a condição de
possibilidade de interpretação do “real” ao redor do homem.
Voltando à questão inicialmente enunciada, pode-se dizer, enfim, que em resposta aos
“ocidentalistas stricto sensu”, o Ocidente não é formado de maneira estanque e como se
houvesse um corte definitivo com a cristandade, fazendo com que o Ocidente moderno
começasse do nada, como se fosse a partir de si mesmo. Não é assim, pois como veremos a
71
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
96.
72
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
96.
38
modernidade ocorre como “uma Verwindung, uma longa convalescência que tem de tornar a
enfrentar o vestígio indelével de sua doença”73.
Deste modo, a dita “identidade” entre Ocidente e cristianismo se dá, como veremos
detalhadamente ao longo deste trabalho, como uma diluição da concepção de ser da
metafísica, ocorrendo aí a dissolução do modo como se entende o real: “Ocidente é
essencialmente cristão na medida em que o sentido da sua história se mostra como o
“crepúsculo” do ser, o enfraquecimento da dureza do “real” através de todos os
procedimentos de dissolução da objetividade que a modernidade trouxe consigo”74.
Além deste ponto de enfraquecimento da dureza do real teria que ser levado em consideração
a secularização como “o enfraquecimento do sentido da realidade que se produz nas ciências
que estudam entidades cada vez mais inconciliáveis com as coisas da nossa experiência
75
cotidiana” . Este enfraquecimento já estaria previsto no cerne do cristianismo com o
enfraquecimento das estruturas fixas do modo do homem olhar o mundo religioso, pois o
Ocidente, que é representado pelo enfraquecimento (na expressão Heideggeriana Abendland,
a terra do ocaso do ser) da manifestação do ente, isto é, o ente chega ao ponto de ter um
esgotamento, torna-se de modo ulterior o período da metafísica plenamente manifestada, o
que significa que não se está mais no período de dizer o ente como ele é de fato, mas dizer – e
aqui é importante observar que o “dizer” é fundamental, pois ver-se-á que Vattimo segue uma
tendência da esquerda heideggeriana, na qual é capital dizer o ser que está fundamentando
(não em sentido metafísico e rígido) a estrutura do ente, mesmo que ela não esteja à luz do
dar-se do ser da eventualidade, ou seja, é o momento de interpretar o ente, sendo que
interpretar não é ter acesso aos entes como eles são, mas ao seus significados, ao seu sentido.
No entanto, não se pode esquecer que o que torna o Ocidente uma ulterioridade do
esgotamento das estruturas fortes da metafísica é o fato dele ser um destino do
enfraquecimento que ocorre dentro do evento do aniquilamento de Deus em si mesmo através
da kénosis. Este enfraquecimento que há no cristianismo é dado a partir da mesma, já que “o
enfraquecimento do ser é um dos possíveis sentidos, senão o sentido em absoluto, da
73
DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni (Organizadores). A Religião. O Seminário de Capri. São Paulo:
Estação Liberdade, 2000. P. 91.
74
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
98.
75
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
99.
39
mensagem cristã que fala de um Deus que se encarna, se rebaixa, e confunde todas as
potências deste mundo...” 76. Além disso, esta relação entre Ocidente e kénosis, na concepção
de Vattimo fica mais evidente justamente no mundo atual, já que este se percebe como o
resíduo daquilo que é o sentido mencionado acima: Deus se rebaixando e confundindo todas
as potências deste mundo. Todavia, não se deve esquecer que estas potências a serem
confundidas são aquelas que determinariam o dizer das coisas de modo único, estabilizado e
fechado, sem a possibilidade de outras alternativas. Neste sentido, a kénosis
Tomando, enfim, todos estes dados mencionados, poderíamos perceber uma “linearidade” no
que concerne à ligação entre o cristianismo que teria como traço “essencial” e específico a
kénosis, forçando com que lentamente toda a visão de mundo passasse por este
enfraquecimento que estaria também dentro dos sistemas filosóficos aparecendo como
herança e “vestígio” no Ocidente moderno.
76
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
101.
77
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1988, p. 49.
40
Para se entender em que sentido se diz que o cristianismo possui uma vocação hermenêutica,
devemos percorrer inicialmente um itinerário que nos mostre o que Gianni Vattimo entende
por hermenêutica.
Não há dúvida de que seu entendimento do que seja hermenêutica é algo bem particular e
característico de seu pensamento e leva em consideração os diversos níveis de formação que
este autor possui. Por exemplo, em Para Além da Interpretação, Vattimo chega a dizer que
Wittgenstein, que tradicionalmente é considerado um filósofo da linguagem, sob determinado
aspecto é um hermeneuta.
78
VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença: o que significa pensar depois de Heidegger e Nietzsche.
Lisboa: Edições 70, 1988, p. 28-29.
41
fariam com que na apreensão de determinado aspecto o sujeito que capta o “real”
influenciaria o mesmo e seria influenciado por ele, criando, assim, a noção de circularidade
hermenêutica. Não se pode esquecer que a hermenêutica não é o admitir de vários olhares
diferenciados para o mundo, ou para o ser (para Vattimo, num primeiro momento a
hermenêutica até é entendida deste modo). Mas se ela fosse assim considerada estaria apenas
confirmando a perspectiva metafísica tradicional que afirma que o ser se diz de vários modos
e valorizando a objetividade em detrimento da própria interpretação. A hermenêutica é a
interpretação de uma época que já é em si o desdobramento de algo anterior, como um
destino, uma proveniência. Este destino é entendido como o fato de uma época possuir, assim
como dito acima do sujeito, uma pré-compreensão da sua situação fazendo com que se
influencie pelas condições dadas e, por outro lado, influenciando o mundo ao seu redor. Deste
modo é que a hermenêutica vai se desdobrando a partir de algo anterior. Este algo anterior
possuiria uma essência (Wesen) – entendida como aquilo que vigora – que se manifestaria no
decorrer da história, mostrando algo que estaria oculto e ao mesmo tempo mantendo velado
algo que não estaria no evento.
Como consequência desta proveniência e deste destino, Vattimo afirma que “a modernidade é
filha da tradição religiosa do Ocidente: sobretudo como secularização desta tradição” 79. Daí,
pode extrair que, se a hermenêutica hoje é uma espécie de koiné filosófica, é porque já havia
dentro daquilo que formou o Ocidente moderno – é aqui que temos a essência enquanto aquilo
que vigora – o gérmen do que viria a se desenvolver na atualidade. Neste sentido, é Jesus,
dentro da tradição religiosa do Ocidente, que se coloca como o parâmetro da interpretação,
como aquele que flexibiliza algo que tradicionalmente era tomado de modo unívoco,
objetivado, imóvel e rígido80, ou pelo menos abre a possibilidade de um nova linha
interpretativa diferente da tradicional e rígida.
79
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 69.
80
É até curioso o fato de Jesus utilizar a expressão “dureza de coração”, em Mateus 19-8. Tomando por base o
pensamento fraco de Vattimo parece, no mínimo, curioso o fato de Jesus ter usado tal expressão. Podemos
especular se aqui já não seria o gérmen do que viria a ser a vocação hermenêutica do cristianismo. Por causa da
dureza do coração dos judeus é que se entendia a lei de determinado modo. Enfraquecendo esta dureza de
coração ter-se-ia uma visão onde haveria uma tolerância maior em relação a um pensamento diferente.
42
A pergunta que é colocada aqui então é a seguinte: se a tradição hermenêutica moderna que
possui um fundo racionalista se afasta, assim, da tradição religiosa vinda da cristandade
medieval, como Vattimo propõe então que na pós-modernidade há um retorno do religioso
sob a égide da “caridade”?
A resposta será observada no decorrer deste trabalho. Porém, pode-se já adiantar algo que
apontará a resposta. Quando se entende a religião, aqui o cristianismo, como possuindo em
sua essência a característica de se enfraquecer, de diluir-se e a própria pós-modernidade como
o “reinado” do pensamento fraco, não se pode deixar de questionar se não há aí um
81
VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença: o que significa pensar depois de Heidegger e Nietzsche.
Lisboa: Edições 70, 1988, p. 29.
82
Não é objetivo deste trabalho mostrar detalhadamente o itinerário que liga a hermenêutica em suas origens
modernas ao pensamento de Gianni Vattimo. No entanto, seguimos o pensamento do pensador de Turim de
modo a perceber esta linha como que uma “tradição”.
83
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 70.
43
envio/destino que parte do cristianismo e aponta para a pós-modernidade. Vattimo afirma ser
a hermenêutica “um pensamento fundamentalmente amigo da religião” 84.
Será que esta libertação é, por sua vez, o reconhecimento (metafísico) de que a
realidade é plural e que há muitos modos irredutíveis de dizer a verdade, sem
nenhuma instância suprema que os legitime e hierarquize? Sentimos ressoar aqui
duas expressões arquetípicas da tradição filosófica e religiosa do Ocidente: o to on
legetai pollachôs (o ser se diz de muitos modos), de Aristóteles e o ‘multifarie
multisque modis olim loquens Deus patribus in prophetis’, de São Paulo –
deslocadas (ou precisamente metaforizadas) de seu contexto: que, no primeiro
caso, é a ideia aristotélica de substância, no segundo, a ideia de um acontecimento-
chave (a encarnação do filho de Deus), que dá sentido aos muitos eventos
precedentes e seguidores. De qualquer modo, é entre estes dois extremos que se
84
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 71.
85
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 72.
44
Esta citação acima mostra a consciência que Vattimo possui de não confundir, apesar de tudo
o que se disse, a hermenêutica com nenhum dos dois pontos citados acima (o aristotélico e o
paulino) tomados de modo estrito. Afinal, o que ele entende por hermenêutica é o fato de que
“a pluralidade dos sentidos do ser se dá, antes, num quadro equivalente àquele delineado por
São Paulo” 87. É no amálgama entre o ser dito de vários modos de Aristóteles e o princípio de
caridade instaurado por Cristo que se dá a hermenêutica. Aqui, então, não haveria a aplicação
do texto de modo apropriado segundo a lógica clássica que entenderia os seus termos de modo
analógico puro e simples, mas os termos a partir desta visão hermenêutica estariam
carregados de algo a mais. Este algo a mais que os termos estariam carregados é o caráter
interpretativo dado pela nova visão cristã que parte do princípio de que o real não pode apenas
ser dito de vários modos, mas pode haver, dependendo da tradição a que se filie o novo
discurso, um novo modo de se captar a situação não mais se prendendo à objetividade do
discurso. É neste sentido que a religião, de modo específico aqui o cristianismo, pode utilizar
a emancipação da metáfora, libertando-se da apropriação que está amarrada à objetividade.
No dizer de Vattimo:
86
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 73-74.
87
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 74.
88
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 74.
45
Isto ocorre de maneira especial com o cristianismo porque a perspectiva que é apresentada por
São Paulo está relacionada ao que mais tarde a dialética hegeliana – e a posteridade
hermenêutica irá utilizar – chamou de Aufhebung. Esta seria uma superação que, ao mesmo
tempo que passa para uma nova dimensão, conserva o que já estava dado no decorrer da
tradição. Não se deve esquecer o fato de que o próprio Jesus diz (Mt 5,17): “não julgueis que
vim abolir a lei ou os profetas, mas sim para levá-los à perfeição” 89.
Com o que foi dito acima, percebe-se que em Jesus não há uma total ruptura com a tradição
religiosa judaica, o que não significa que seja uma perfeita e absoluta continuidade do
pensamento hebreu. O que Cristo apresenta de modo algum, enquanto ruptura, é um
desmentido do que os profetas haviam dito. O que ele mostra, então, são os limites do
discurso veterotestamentário, trazendo para a sua vida a realização das marcas do Antigo
Testamento como um novo dar-se do ser que já estavam contidos no discurso do povo hebreu.
Isto se dilui ainda mais quando no “ideário” dos contemporâneos de Jesus é colocada – e
entendida – a expressão grega kénosis que indica o esvaziamento de um Deus que era, de
modo radical e unívoco, todo o ser (não se esqueça aqui o nome através do qual o próprio
Deus se apresenta a Moisés no livro do – Ex 3,14: “Eu sou aquele que sou”), não havendo
mudanças na estrutura do real e toda a interpretação possível considerada apenas sobre este
mesmo parâmetro unívoco. Com Jesus, o parâmetro unívoco é quebrado a partir da estrutura
que mencionamos acima. Deste modo, ficam abertas as diversas vertentes, não de modo
radical inicialmente, de hermenêutica para o discurso religioso e um discurso que se pretenda
falar dos eventos da vida comum.
Este filão é evidenciado mais ainda, segundo Vattimo, pelo monge medieval Gioacchino da
Fiori. Este ao propor uma Idade do Espírito (pois entendia que a Idade do Pai era a do Antigo
Testamento, a do Filho a do Novo Testamento), dilui ainda mais o pensamento que
inicialmente seria só uma pequena diferença em relação ao Antigo Testamento propondo uma
Idade agora baseada na caridade. Não se deve esquecer aqui que a dinâmica do cristianismo
89
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Traduzida pelos Monges de Maredsous. São Paulo: Editora Ave Maria,
2008, p. 1288.
46
não acaba com a vida histórica de Jesus. Há ainda a vinda do Espírito Santo. Ora, é aí
justamente que a questão fica ainda mais diluída, pois é agora que cada um irá observar a
regra espiritual de acordo com a sua história de vida e com o mundo mental que foi formado
em sua vida individual. O evento crístico, desta forma, inaugura um tempo onde a diluição do
olhar para a realidade de um modo único, fixo e sem possibilidade interpretativa fica para trás.
Este tempo é o que torna possível uma pessoa descortinar horizontes, isto inicialmente por
força do Espírito Santo, onde não se deva mais estar preso a um modo único de se entender a
realidade. Aliás, a experiência do acontecimento do real para uma pessoa, a partir deste novo
tempo (ou experiência?), pode ser completamente diferente do que é experienciado por outra
e – o que é mais radical – chegando ao ponto de poder ser completamente diferente do que é
experienciado pela mesma pessoa que disse num momento algo absolutamente diferente do
que havia dito antes. A pergunta que pode ser colocada aqui é: haveria contradição entre as
posições das pessoas ou mesmo a contradição no discurso da própria pessoa que possui
discursos diferenciados?
A resposta é hermenêutica, mas uma hermenêutica que evoca seu traço constitutivo de caráter
religioso. A partir da experiência religiosa proposta por Gioacchino da Fiori, não haveria
contradição nos diversos modos da experiência do evento do dar-se do ser, mesmo sendo
contraditórias estas experiências em relação umas às outras, pois no momento em que se dá
um determinado evento o mesmo evento oculta algo que poderia estar já dado mas ainda não
está. Esta aparente contradição é o niilismo que vigora a partir da pós-modernidade e torna
possível a hermenêutica.
Deste modo, percebe-se que o cristianismo, com sua inicial abertura para um novo modo de
interpretar o Antigo Testamento com Cristo sendo aquele que revela o sentido do que se tinha,
de modo fixo, no pensamento judaico, possui em seu interior, na sua essência, entendida
como aquilo que vigora – como dito acima –, o chamado para vir a fazer parte de um discurso
hermenêutico.
90
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1999, p. 80.
47
Alguns períodos na história da filosofia não são tão bem marcados quanto à mudança de
pensamento e a introdução de um novo modo de pensar. No que diz respeito à
contemporaneidade não é diferente. Pode-se dizer que há aqui, inclusive, uma dificuldade
enorme na demarcação de seu início e até mesmo o caráter constitutivo desta época, por
alguns chamada de pós-moderna. Esta dificuldade está principalmente ligada ao fato deste
período possuir uma pluralidade enorme de concepções que às vezes colaboram umas com as
outras, concorrem umas com as outras ou mesmo se mesclam formando uma terceira opção.
Em relação à pluralidade do mundo atual, Vattimo menciona que
Deste modo, utilizar um grande relato que dê conta de explicar todas as áreas do, assim dito,
real tornou-se impraticável pelo fato destes relatos terem se dissolvido por conta de uma
estrutura, segundo Vattimo, que já pertencente à história da metafísica que, por sua vez,
revela o anúncio de seu próprio fim, iniciando aí a pós-modernidade.
Por que não há tanta facilidade e tanto acordo quanto à caracterização da pós-modernidade?
Já que Vattimo diz que a expressão de Lyotard é “bem-sucedida”, utilizemos, para efeitos de
ponto de partida, sua noção de pós-modernidade. Por Lyotard: “Considera-se ‘pós-moderna a
92
incredulidade em relação aos metarrelatos” . Esta passagem é o que parece guiar o
pensamento vattimiano acerca do que ele entende por enfraquecimento das estruturas fortes
da metafísica do ser. A incredulidade mencionada acima quer significar que a estrutura
metafísica, que todas as ciências modernas utilizavam como base fundante, entra em crise e
tudo aquilo que decorreria desta metafísica tornar-se-ia frágil junto com ela. Os metarrelatos
91
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 24.
92
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1998, p. XVI.
48
são aquelas estruturas que tentam narrar como se dá a estrutura do real. Esta narrativa tem,
por sua vez, a pretensão de abarcar toda a estrutura do real de modo a responder desde
aspectos da natureza física das coisas até os aspectos mais espirituais das mesmas, passando
por todas as demais instâncias, sejam elas políticas, econômicas, sociais, éticas, etc. Assim, a
ciência moderna seria um exemplo do que se entende por metarrelato. A ciência neste
contexto daria a partir de si mesma toda a estrutura para a explicação da realidade.
A ciência, para o filósofo moderno, herdeiro do Iluminismo, era vista como algo
autorreferente, ou seja, existia e se renovava incessantemente com base em si
mesma. Em outras palavras, era vista como atividade “nobre”, “desinteressada”,
sem finalidade preestabelecida, sendo que sua função primordial era romper com o
mundo das “trevas”, mundo do senso comum e das crenças tradicionais,
contribuindo assim para o desenvolvimento moral e espiritual da nação93.
Neste sentido, a ciência faria referência a si mesma dando conta da totalidade, estando, deste
modo, acima de toda perspectiva analisada por ela mesma.
A ciência não era sequer vista como “valor de uso” e o idealismo alemão pôde
então concebê-la como fundada em um metaprincípio filosófico (a “vida divina”,
de Fichte, ou a “vida do espírito”, de Hegel) que, por sua vez, permitiu concebê-la
desvinculada do Estado, da sociedade e do capital94.
Ela explicaria a unidade de todo o real através de uma fundação que estaria nela mesma
dando-lhe o primado de perspectiva no olhar para o, assim chamado, “real”. Apesar disso,
com o fim da modernidade, percebeu-se que a ciência não passa de outra forma de
conhecimento da realidade, podendo haver outras tantas que mostrem novos cenários de
entendimento da realidade, isto é, outros modos de interpretação. Lyotard mesmo afirma que
“a ciência – assim como qualquer modalidade de conhecimento – nada mais é do que um
certo modo de organizar, estocar e distribuir certas informações”95.
Para que se possa entender isto dito acima, deve-se buscar entender algumas das expressões
que apareceram. Far-se-á aqui, para que haja uma melhor compreensão, um caminho no
questionamento da estrutura do título do capítulo. O que se entende, por exemplo, por
93
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1998, p. IX.
94
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1998, p. IX.
95
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1998, p. IX.
49
metafísica? Por que seria isto uma estrutura forte? O que é o retorno à interioridade no
cristianismo96?
2.1.1 A metafísica
Com Platão, há a introdução de um novo modo de ver as coisas. Ele percebe que o sensível
não pode ser a explicação para o próprio sensível. Deste modo, ao implementar a sua
“segunda navegação”, Platão propõe que toda a causa do sensível estaria no suprassensível.
Como isto se daria? Importante é notar aqui que toda explicação de fenômenos dados no
mundo físico teriam uma explicação, ou causa, baseada no mundo metafísico. Isto fica ainda
mais claro com Aristóteles.
Por exemplo, quando é formulada toda a teoria ao redor das categorias, Aristóteles mostra que
para além aquilo que está sendo visto – lembremos que esta teoria já estaria contida em Platão
– haveria algo que daria unidade ao visível. Este algo que dá unidade ao mundo visível é visto
apenas pelos “olhos do intelecto” através de sucessíveis processos de abstração.
96
Este retorno à interioridade será como que a introdução ao enfraquecimento das estruturas fortes da metafísica.
Ele – o retorno à interioridade – é entendido na filosofia vattimiana como o destino-envio da realização da
vocação hermenêutica do cristianismo.
97
Aqui não há o interesse de detalhamento da história da filosofia em seus pormenores, visto este ser um
trabalho acerca do retorno da religião em um autor específico: Gianni Vattimo. No entanto, este sobrevoo inicial
na história da filosofia antiga é apenas uma introdução geral e sumária para a apresentação da temática
metafísica especialmente durante a Escolástica – no pensamento de Tomás de Aquino –, onde se pode observar a
utilização da metafísica de um modo segundo o qual Vattimo busca criticar.
98
REALE, Giovanni. ANTISERI. Dario. História da Filosofia: Filosofia pagã antiga. Tradução de Ivo Storniolo.
Volume 1. São Paulo: Paulus, 2004, p. 59.
50
Deste modo, e em termos históricos acabou valendo para a posteridade, toda a filosofia
quando falar de algo que está sendo visto estará relacionando este algo a outra coisa que dá
unidade para o mesmo. Não é por menos que a tradição filosófica identificou o ser com o
ente99. O ente aqui é identificado com o ser da coisa, pois o ente concreto que se vê no mundo
físico seria a manifestação do ser que é de fato a coisa.
Neste ponto, entra-se em uma questão que toca a continuidade da tradição filosófica, a saber:
a verdade. Não se pode esquecer aqui que Vattimo, a partir do fato de que Jesus diz que é “o
caminho, a verdade e a vida”, mostra que “o pensamento cristão tem tido, muito mais, a
propensão de identificar Cristo com a verdade – entendida no sentido clássico da
100
correspondência com um estado de coisas” . Esta correspondência a um estado de coisas
encontra sua referência mais patente em Tomás de Aquino que afirmará que há três acepções
de verdade101: 1) o próprio ente é verdadeiro; 2) a verdade como adequação; 3) a verdade
como proposição lógica que diz o que é.
No primeiro caso da verdade, Tomás de Aquino considera o verdadeiro como sendo o próprio
ente, isto é, só se pode falar de verdade por que algo em si mesmo é verdadeiro e guarda
consigo uma unidade tal que não se poderia não ser outra coisa de outro modo, tendo que,
portanto, ser ela mesma. No segundo caso, o da verdade como adequação, Tomás propõe que
a faculdade intelectiva da alma humana recebe a forma da coisa segundo a sua capacidade de
receber tal coisa. Há neste caso uma adequação da alma em relação à coisa, isto é, a faculdade
intelectiva da alma humana recebe a forma da coisa que passa a ser conhecida por ela, pela
potência cognitiva. No terceiro caso, verdade seria aquilo que se pronuncia do que se tem
diante de si. É deste último modo que normalmente se entende a verdade, ou seja, a verdade
do ponto de vista de sua logicidade e correspondência entre o que está diante do sujeito e o
que se pronuncia a respeito do que se vê. Deste modo, a tradição cristã, de um modo geral,
teve a tendência a igualar a verdade, aquela que seria a descrição perfeita da realidade
99
Isto é o que recentemente foi proposto pela filosofia do século XX, principalmente por Martin Heidegger em
Ser e Tempo. Não esqueça-se, porém, que já a filosofia tomista fazia uma menção bem clara em relação à
diferença entre o ser e o ente, onde este (o ente) seria composto por aquele (o ser) como ato intensivo e a
essência como a quididade. Lembre-se, no entanto, que não é objetivo deste trabalho apontar tais diferenças e
semelhanças nas suas especificidades. Faz-se apenas esta lembrança, pois é digna de nota.
100
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 130.
101
TOMÁS DE AQUINO, Verdade e Conhecimento. Tradução, estudo introdutório e notas de Luiz Jean Lauand
e Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
51
objetiva, como no terceiro caso acima, com o fato da verdade ser Cristo, já que o próprio
Jesus disse que é o “caminho, a verdade e a vida”, entendido no primeiro dos casos, como um
ente que é em si mesmo a própria verdade e se identifica como tal.
Voltando, porém, à questão da metafísica, percebe-se que a tradição filosófica acabou por
igualar dois dos modos de se entender a verdade, o ontológico com o lógico, ficando assim
como se a verdade do ente fosse aquilo que se diz do mesmo e correspondesse, de fato, com o
que é dito.
Com isto, fez-se uma rápida explicação do que é a metafísica na tradição filosófica: um
estudo sistematizado e racionalizado que tenta dar conta do que a coisa é não apenas nas suas
aparências, mas mostrando que por trás do que é visto há um ser que mantém a estrutura de
unidade de todo o real e que nos obriga, de certo modo, a segui-lo como única alternativa
possível para a compreensão e interpretação do real assim entendido por ele.
Para que haja um esclarecimento da noção de metafísica, busca-se aqui os aspectos negativos
desta noção dentro do pensamento vattimiano. Vattimo considera como metafísica qualquer
traço de vínculo interpretativo que se mantém ligado à objetividade. Quando ele aborda em
Acreditar em Acreditar o tema Para além da violência metafísica, querendo apontar a relação
entre a secularização como traço constitutivo da modernidade e a ontologia do debilitamento,
tenta mostrar que há aí um fio condutor crítico fazendo a ressalva de que o mesmo não tem
pretensão de ser algo objetivamente verificado onde deva haver, no sentido tomista
apresentado acima, a conformidade entre o intelecto e a coisa exterior estavelmente concebida
aponta o que entende por metafísica. Tentando mostrar que há um fio condutor na relação
supramencionada, Vattimo observa que estas relações “não são traços ‘objetivos’ do ser em
relação aos quais se deva criar um consenso e aos quais nos devamos conformar, como diria
uma posição metafísica, ou até metafísico-historicista” 102.
Aliado a isto, ao renegar a posição metafísica, Vattimo não nega de todo aquilo que é
utilizado pelo próprio discurso filosófico, a saber: a razão. Tome-se, no entanto, muito
cuidado neste ponto, pois a razão aqui que se está utilizando não é a razão entendida
102
VATTIMO. Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1998, p. 35.
52
tradicionalmente, mas uma razão hermenêutica. A razão hermenêutica, por sua vez, tenta
sugerir uma noção de historicidade do conhecimento, não no sentido de que é a descrição de
determinados objetos, o que segundo Vattimo é trabalho da própria metafísica, mas no sentido
de que esta razão que conhece interpreta e ao interpretar já gera dentro de si mesma uma nova
história passível de ser interpretada.
Não se pode deixar de considerar que a razão hermenêutica não se propõe como um
irracionalismo, pois se assim o fosse, a hermenêutica estaria ainda dentro de uma perspectiva
metafísica onde se afirma tertium non datur. Isto significa que na metafísica ou ter-se-ia uma
visão racionalista, com a utilização da lógica propondo que todos aqueles que a utilizem
cheguem às mesmas conclusões, ou uma visão irracionalista, que seria a não chegada a essas
conclusões ficando no contraditório, isto é, no erro. Em termos estéticos – que não é a análise
deste trabalho, mas visa o entendimento do que é a perspectiva metafísica –, Vattimo afirma
que “se a hermenêutica ceder a uma ou outra forma de esteticismo e de irracionalismo que
descrevi, ela trai as próprias premissas e reencontra a metafísica: e, sobretudo, encontra-se,
repropondo uma concepção claramente metafísica da experiência estética” 103.
De tudo o que se está afirmado aqui, percebe-se claramente que a metafísica é, na concepção
de Vattimo, aquela que permite uma descrição de um estado de coisas que culminaria em seu
conceito metafísico de verdade: a conformidade da proposição com a coisa. Isto, por sua vez,
estaria fundado na “‘validade objetiva’ do conhecimento dos fatos (...) encarnada por último,
104
com um desenvolvimento coerente, no ideal científico-positivo do método.” Assim, a
metafísica seria uma afirmação de que se pode concatenar tranquilamente todos os conceitos e
está fundada de modo conciso na pretensão de se fazer valer como critério de acesso às coisas
mesmas. Apresenta-se como algo fixo que pretende descrever toda a estrutura do real de
modo estático em qualquer período de tempo da história como algo único e imutável. Isto, é
claro, é o oposto do que Vattimo propõe como hermenêutica, pois esta não tem a pretensão de
validade recorrendo às coisas. Caso contrário, a hermenêutica acabaria dentro do discurso
metafísico, já que
articula como concatenação das aberturas, dos sistemas de metáfora, que torna
possível e qualifica nossa experiência do mundo105.
Além desta negação da identificação entre hermenêutica e metafísica, não se pode esquecer
que a ciência moderna ao ser fundada dentro de uma perspectiva metafísica permite que haja
o próprio ocaso daquele que foi condição de possibilidade de seu nascimento. Isto ocorreria
pelo fato de que com a ciência moderna aumenta o processo de criação de imagens acerca
daquilo que está sendo observado. Com este aumento, as imagens que são criadas
proporcionam inversamente o caráter de objetividade do experimento. É por esta razão que
Vattimo observa que
Quanto às ciências, elas poderiam ser consideradas, não tanto como modos de levar
ao extremo o esquecimento metafísico do ser, mas, sobretudo, como condição junto
com a tecnologia de uma transformação do sentido do ser em direção de seu dar-se
pós-metafísico.
Do que foi apresentado até agora não é muito complicado deduzir o que se entende por
estrutura forte. Ora, Aristóteles diz que “o ser se diz de vários modos”. No entanto, a estes
vários modos que o mesmo pode ser dito está atrelada a substancialidade do ser que está
estático por trás da aparência de multiplicidade. Imagine-se um gato que é todo preto quando
é visto por cima, pelas suas costas. Desta perspectiva pode-se dizer que o gato é preto. Daí,
mude-se a posição de se ver o gato e veja o mesmo pela sua barriga percebendo-a branca.
Desta outra visada dir-se-ia que o gato é branco. Na perspectiva aristotélica, como o dito
acima, o ser se diz de vários modos. A questão aqui é que há um único e estático gato
substancial para além do gato aparente que se captou tanto visto de cima quanto visto de
baixo que pode ser dito de um modo e de outro, mesmo que sejam diferentes estes modos.
Com isso, seguindo a tradição aristotélica, a filosofia posterior irá prezar pelo primado da
substância do ser que é estática, incorrendo nisto em se afirmar como única filosofia e como o
verdadeiro e único modo de percepção das coisas que estão no mundo. Estrutura forte, neste
105
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 150.
54
sentido, é toda estrutura que se esteja dentro do perímetro demarcado pelo modo clássico de
se entender a realidade substancial dada. Esta estrutura é forte por que é imposta é colocada
de um modo que aparentemente não há como sair de dentro dela e só resta aceitá-la como tal.
Todo tipo de proposição que sai desta cerca feita pela estrutura forte da metafísica sofre um
tipo de violência. Aqui Vattimo define de modo claro o que entende por violência metafísica:
“toda a identificação que predominou nos ensinamentos tradicionais da igreja, entre lei e
106
natureza” . Por um lado, Vattimo reconhece a importância da lei para que os homens não
fiquem imersos em uma violência arbitrária e “injustificada” e, no caso da Igreja, para que
pudesse abrir um campo comum onde os fiéis e os pagãos pudessem dialogar para que, aí sim,
pudessem mostrar a razoabilidade da fé. Por outro lado, entende que “é igualmente verdade
que o naturalismo jurídico foi pensado e praticado, também, como uma maneira de legitimar
um certo uso ‘racional’ da força.”107 Esta força é usada para justificar a violência, aqui não
entendida apenas do ponto de vista físico, mas também do ponto de vista da consciência
intelectual.
Assim, a estrutura forte da qual se fala é aquela que é mantida a todo o custo pelo pensamento
metafísico que tenta mostrar toda a correspondência daquilo que está sendo dito em relação
àquilo que está sendo percebido. Colocado de outro modo, entende-se a estrutura forte como
aquela que tenta dizer, criar um discurso acerca da realidade fazendo com que o que é dito
seja a perfeita e única descrição do que se percebe do real em si mesmo. Não se pode
esquecer, no entanto, que a própria religião cristã se viu como vítima desta estrutura na
concepção de Vattimo. Isto ocorreu pelo fato do cristianismo ter herdado culturalmente o
mundo romano que estava entrando em ruínas. O mundo romano, consequente do pensamento
grego, possuía, sob certo aspecto a mesma visão de fundamentação metafísica que tentava dar
descrições objetivas da realidade. O cristianismo em sua fundação, como vimos, possui uma
vocação hermenêutica de olhar de modos diferenciados para o evento do dar-se do ser. É por
este motivo que dizemos que o cristianismo também pode ser considerado vítima da violência
metafísica sob certo aspecto. O que ocorre, porém, é que determinados setores do cristianismo
não abandonam a perspectiva metafísica, mas introduzem determinados elementos novos
trazidos pelo mesmo. Vattimo cita como exemplo o fato de que Santo Agostinho ser, “ao
106
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 142.
107
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 143.
55
mesmo tempo, o filósofo das Confessioni e o bispo que exercita um poder histórico-
político”108.
Ao procurar entender esta passagem em chave hermenêutica, não se pode deixar de perceber
que, mutatis mutandis, isto se aplica à metafísica com apelo à realidade. Ao se colocar como
afirmadora da correta, e única, descrição da realidade, a metafísica tende a perceber que
existem conflitos dentro do real – por exemplo as dicotomias em relação às posições
aparentemente antagônicas que podem aparecer num olhar metafísico do real – e concentrar
sobre uma destas posições uma violência, isto é, uma imposição para que esta posição seja
completamente rechaçada, pois, caso contrário, todas aquelas perspectivas, ditas de bom
senso, estariam fadadas a ruir e não permanecer de pé.
É justamente neste ponto que aquela descrição, neste caso a hermenêutica, transforma-se na
possibilidade de sacralização da eventualidade do ser. Ao ser rechaçada pela metafísica, que
possuiria um único modo de compreensão do real, a hermenêutica surge como expressão da
multiplicidade de correntes que seguem uma determinada tradição, possibilitando o discurso
de cada uma destas visões.
Deste modo, entende-se a crítica que Vattimo faz à noção de verdade como correspondência a
um estado de coisas. Há esta crítica pelo fato de que não é a verdade como correspondência
que garantiria que uma coisa é de fato aquilo que se descreve dela mesma. A verdade seria
entendida como o desvelar de uma matriz de possibilidades que estão guardadas não no ente
108
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 144.
109
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 78.
56
concreto, único, finito e estável, e sim no caráter linguístico e afirmativo do ser que se dá no
horizonte da eventualidade.
Assim, pode-se compreender em que bases Vattimo critica a noção de verdade como violenta,
a saber: a verdade metafísica, partindo do pressuposto de que o ente guarda em si mesmo a
verdade e que há uma adequação entre a coisa – este ente – e faculdade intelectiva da alma
humana que, por sua vez, irá dizer algo deste ente, afirma de modo categórico o que a coisa é
sem a possibilidade de ser dito de outro modo; se aparece uma outra maneira de se dizer sobre
a mesma coisa, a verdade metafísica, para que se mantenha a estabilidade de sua visão – que
não admite outra –, de modo violento expurga esta visão não permitindo que ela ao menos se
coloque como possibilidade de compreensão do dar-se do ser na eventualidade.
Não há dúvida que o amálgama que houve entre filosofia, entendida como o pensamento
metafísico que tenta fazer descrições perfeitas e únicas do dado do real, e o cristianismo,
entendido como aquele que inicialmente trazia algo de novidade para o âmbito de
interpretação das leis judaicas, fortaleceu, no sentido de tornar forte e monolítico, o
cristianismo e tornou-o mais próximo da filosofia metafísica. Não é por menos que a busca de
muitos filósofos da patrística foi de criar uma apologética cristã. Esta apologética tinha como
objetivo defender de modo racional a visão de mundo que possuíam os primeiros cristãos e
mostrar para o mundo pagão grego – metafísico, forte e enrijecido – a razoabilidade da fé
cristã. A questão é que inicialmente, pelo menos, a tal tentativa de mostrar a razoabilidade da
fé transformou a mesma em algo também forte e enrijecido fazendo com que a fé se tornasse
cada vez mais forte, no sentido que Gianni Vattimo entende a expressão, ao ponto dela passar
a buscar uma causa firme, estática e eterna para aquilo que se manifestava na realidade.
57
Com o passar do tempo, por outro lado, a novidade – Vattimo chama de “vinho novo”–
trazida pelo cristianismo, a saber, a liberdade de interpretação dos textos sagrados, não ficou
estática e totalmente em silêncio no manifestar-se da religião. Segundo Vattimo, “o
cristianismo, resumindo rápida, mas fielmente, é a condição que prepara a dissolução da
metafísica e a sua substituição pela gnoseologia – o que quer dizer, em termos diltheyanos, o
kantismo” 110. A linha que Vattimo segue aqui é a que tem início em Santo Agostinho que ele
considera como fundacional para o cristianismo. O ama et fac quod vis111, põe um acento
novo nas relações fundamentais entre exterioridade/objetividade e a
interioridade/subjetividade. O amor, que faz parte da interioridade, como critério inclusive
para a ação moral não se apega mais à exterioridade e ao objetivismo das leis metafísicas.
Esta tendência à interioridade em Santo Agostinho, no entanto, torna-se emblemática em uma
passagem das Confissões: Tarde Vos amei!
Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis
dentro de mim, e eu fora a procurar-vos! Disforme, lançava-me sobre estas
formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco!
Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém
me chamastes com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes,
cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o
suspirando por Vós. Eu vos saboreei, e agora tenho fome e sede de Vós. Vós me
tocastes e ardi no desejo de Vossa paz112.
Aqui é nítido o modo como Santo Agostinho apresenta a sua visão de mundo. Primeiramente,
há a identificação em relação à busca que se dava fora dele, isto é, a busca era por critérios
exteriores de validade para o seu conhecimento e experiência do real. No entanto, com a
experiência cristã, Agostinho passa a perceber que há um novo critério para olhar os eventos
do dar-se do ser. Este critério não está mais pautado por coisas exteriores ao seu ser, mas por
algo que ele identifica como estando dentro dele mesmo,
nele a certeza interior da relação da alma com Deus se mistura com uma teoria das
veritates aeternae derivada do platonismo e do neoplatonismo. ‘A alma apreende a
verdade em si mesma e não por meio do corpo e de seus órgãos dos sentidos. E
aqui estamos de novo bem no meio da metafísica de Platão que acreditávamos ter
deixado para trás’. ‘Na experiência interior de Agostinho estão presentes os
110
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 134.
111
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 63.
112
SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2006, p. 243.
58
A demora para mudar de modo definitivo para esta concepção interiorizada deve-se, segundo
Vattimo, ao fato do cristianismo ter recebido a herança cultural grega e ter dar uma
justificativa para a manutenção deste legado, por exemplo, mantendo tanto o pensamento
metafísico ainda relativamente intacto, apesar da semente da interioridade, quanto à estrutura
hierárquica que havia no Império Romano.
Aqui é importante ater-se a este aspecto segundo o qual é a experiência interior de Agostinho
que dará o passo decisivo rumo à interioridade humana, afastando-se, assim, pelo menos aos
poucos, do pensamento objetivante da filosofia clássica antiga – é interessante que Vattimo
chama isto de “novidade ‘kantiana’ do cristianismo”. Por que Vattimo refere-se deste modo a
esta novidade? A reposta está no fato de que será Kant “que extrairá finalmente as
consequências antimetafísicas do movimento inaugural representado pela mensagem
cristã”114, pois é o sujeito transcendental kantiano que possui as condições de possibilidade do
conhecimento, isto é, tal condição está na interioridade, não na objetividade do mundo
metafísico.
A questão aqui, no entanto, fica por conta de Kant ter se fiado no ideal das ciências naturais
para buscar uma realização da crítica do conhecimento objetivo humano. Apesar do ideal da
ciência ter permeado todo o pensamento moderno, Vattimo diz que Lyotard percebeu
exatamente que havia uma quebra da estrutura unitária que possui a ciência moderna. Para
Lyotard, a ciência é um tipo de discurso. Ora, pergunta-se afinal se todo o saber científico é
todo o saber que se possui. Dentro da perspectiva, positivista da ciência moderna sim.
Apesar disto, Lyotard deixa bem claro que o discurso científico não é o único que possui uma
validade, pois “o saber científico não é todo o saber” 115, até porque há já uma distinção entre
as ciências naturais e as ciências do espírito. Isto aqui é colocado para que se possa entender
que inicialmente entendeu-se a ciência apenas como aquilo que hoje se chama tranquilamente
113
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 134-135.
114
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 135.
115
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1998, p. 12.
59
de ciência da natureza, pois como esta se matematizou e uma das metas originais da
modernidade foi a busca pela certeza e exatidão das conclusões de seus pressupostos,
entendeu-se durante muito tempo que o único tipo de ciência válido era esta que fazia uma
descrição da natureza de modo objetivado, matematizado e, portanto, certo e exato. Com a
valorização das ciências do espírito, este modo de supervalorizar apenas as ciências naturais
começou a ser “quebrado”, passou a haver uma “rachadura” na estrutura forte e metafísica de
se observar a realidade, mesmo considerada em seu caráter natural e físico. Outra grande
quebra nesta perspectiva se dá através do fato de Karl Popper ter percebido a possibilidade de
falseabilidade das ciências. Em A lógica das ciências sociais116, Popper apresenta as ciências
como possuindo algo semelhante ao enfraquecimento e abertura para a perspectiva
hermenêutica. Pelo fato das ciências não mais se constituírem de um fator dogmático, isto é,
as ciências sejam elas da natureza ou do espírito, na perspectiva popperiana, não mais se
pretendem dar conta de um determinado aspecto da realidade do modo fechado, como se a
hipótese aventada por um determinado investigador, após alguns níveis de verificação
empírica, fosse pronta e definitiva. Assim, as respostas científicas não mais se apresentam
como as respostas únicas, definitivas e representantes da verdade, fazendo com que a
realidade à frente do observador que a descreve não seja mais exatamente do modo como ele
a apresenta.
116
“A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Isto significa, acima de
tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e, mais ainda, que o instrumento principal da crítica
lógica – a contradição lógica – é objetivo” (POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2004, p. 16). Isto significa que não há solução para o problema da tensão gerada entre ignorância e
conhecimento no pensamento de Popper. Esta ausência de solução pode ser entendida como a possibilidade do
brotar das diferentes perspectivas que podem ser levadas em consideração ao se observar o dar-se do ser.
60
sobre os efeitos dos discursos, chama os diversos tipos de enunciados que ele caracteriza desta
maneira, e dos quais foram enumerados alguns, de jogos de linguagem” 117.
Estes jogos de linguagem significam que cada proposição que busque entender um
determinado aspecto do evento do ser deve possuir regras que mostrem as suas propriedades.
Dentro destas propriedades o sujeito que participará do jogo terá determinadas possibilidades
de lance. Estas possibilidades não permitirão que ele jogue de qualquer modo, mas apenas
seguindo as propriedades previamente determinadas, pois caso queira admitir outras
propriedades não encontradas no jogo original, admitir-se-ia como não sendo mais o mesmo
jogo e sim um novo.
Três observações precisam ser feitas a respeito dos jogos de linguagem. A primeira
é que suas regras não possuem sua legitimação nelas mesmas, mas constituem
objeto de um contrato explícito ou não entre os jogadores (o que não quer dizer
todavia que estes as inventem). A segunda é que na ausência de regras não existe
jogo, que uma modificação, por mínima que seja, de uma regra, modifica a
natureza do jogo, e que um “lance” ou um enunciado que não satisfaça as regras,
não pertence ao jogo definido por elas. A terceira observação acaba de ser inferida:
todo enunciado deve ser considerado como um “lance” feito num jogo118.
Aqui se chega a um ponto no qual se tem que admitir que dentro da perspectiva dos diversos
jogos de linguagem que são possíveis não há o privilégio ontológico de nenhum jogo sobre
outro qualquer. Isto significa que os jogos são diferentes uns dos outros e, sendo suas regras
diferentes, pode-se concluir a partir disto que as estruturas fortes da metafísica do ser não se
mostram como unívocas como sempre se pensou, ou seja, na perspectiva dos jogos de
linguagem admitir que a realidade funciona de um determinado modo sem possibilidade
nenhuma de trabalhar de outro é querer admitir que determinadas regras estão acima de outras
e isto seria a imposição por parte de quem detém o poder de garantir qual é a melhor regra e
não mais admitir que há apenas regras que são diferentes. Neste caso, regressa-se a Gianni
Vattimo que mostra que “não mais foram dignas de crédito as metanarrativas – usando a bem-
sucedida expressão de Lyotard”119, pois quando uma determinada regra se impõe sobre a
outra, está-se diante da violência metafísica, pois o poder de partir de uma regra e considerá-la
a única, verdadeira e legítima estaria nas mãos daqueles que querem manter-se no poder e não
117
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1998, p. 16.
118
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro:
Editora José Olympio, 1998, p. 17.
119
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 24.
61
olhar e entender que as regras como pontos de partida que movem o olhar para o evento do
dar-se do ser são diferentes, proporcionando assim uma diferente e múltipla coloração na
pintura da manifestação do dar-se do evento do ser.
Deste modo, percebe-se que partindo da metafísica, enquanto instância que mantém a
inflexibilidade de olhar para o evento do dar-se do ser, e colocando o cristianismo como ponto
onde há uma ida para a interioridade humana, não ficando mais na objetividade como critério
fixo de obtenção de uma regularidade normativa para a proposição uma visão das coisas,
culmina-se no fim das metanarrativas. Isto significa que não há mais um privilégio das
estruturas fortes da metafísica do ser, visto que estas se diluíram. Há sim, para Vattimo, uma
perspectiva que coloque a koiné hermenêutica como instrumento de utilização para o
desvelamento das diversas possibilidades de olhar a eventualidade do ser em seu dar-se. No
entanto, isto que aqui acaba de ser mencionado pode colocar em xeque parte do pensamento
de Vattimo como aquele que ainda estaria dentro de uma estrutura de metanarrativa, isto é,
quando se diz que a koiné hermenêutica é o instrumento para o desvelamento das diversas
possibilidades de olhar a eventualidade do ser em seu dar-se, já não se estaria propondo um
modo único e metafísico de compreensão da realidade, ou seja, a koiné hermenêutica não
seria uma metaprincípio estruturante da realidade?
Gianni Vattimo concorda com a tese nietzscheana de que foram os fiéis que mataram Deus.
No entanto, não se deve esquecer que o Deus que morre aqui não é o da religião, mesmo
porque é apenas no contexto da religiosidade que é possível entender que o Deus que morreu
foi o Deus da moral e o metafísico, digno de um enrijecimento das estruturas do dar-se do ser.
Isto quer significar que é com a inserção do Deus da religião, aqui já entendida como o
próprio cristianismo, que é possível matar o Deus da moral e da metafísica. Estas afirmações,
que no fundo são as mesmas, mostram que, para Vattimo, o processo de secularização que
atravessou o Ocidente na modernidade não é um processo alheio à religião cristã, mas sim a
realização plena de um longo processo. Para Vattimo, “Se a civilização moderna se
seculariza, este é um modo positivo com o qual ela responde ao apelo da sua tradição
religiosa” 120.
120
VATTIMO, G. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia Marques.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 38.
63
Espiritualização em Gianni Vattimo pretende significar uma compreensão mais completa, não
em sentido metafísico, da mensagem bíblica da kénosis, que não pára na pessoa de Jesus
Cristo. Isto pode ser entendido de modo a perceber que a mensagem cristã não é apenas um
anúncio que se recebe de modo passivo e acabado, e sim um que aponta para a atividade da
continuidade da interpretação dada em cada um, ou cada representatividade de uma
hermenêutica, que siga dentro desta tradição que cada vez mais vai se diluindo e saindo da
literalidade da compreensão. E o que é mais importante: “A história da salvação não é
somente a história daqueles que recebem o anúncio, e sim, sobretudo, a história do anúncio,
121
para o qual a recepção representa um momento constitutivo, não apenas acidental” .
Ademais, Vattimo afirma que
121
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 39.
122
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Lisboa: Relógio D‘Água Editores, 1998, p. 41-42.
64
Deus com uma tendência, ou mesmo pressuposto, legalista e coercitivo relacionado ao modo
como o homem se comportaria em seu mundo.
Desta feita, Gioacchino passa ao Deus no Novo Testamento, o Deus que prega para os
humildes, que dá um novo mandamento para os homens, o mandamento da caridade (Jo
15,12). Este mandamento da caridade aponta para o fato de que Jesus não apenas é a
“medida” para a interpretação, mas também um tipo novo de legislador. Assim, quando se vê
que além de Jesus dar um novo sentido para o Antigo Testamento, entende-se que ele, que é o
caráter hermenêutico de liberdade de uma visão unívoca e fixa da realidade, mostra novas
perspectivas interpretativas para as questões religiosas judaicas que até então estavam
amarradas à rigidez substancial apresentada pelo pensamento judaico e ao mesmo tempo no
pensamento grego. Como já dito, Jesus é a interpretação do Antigo Testamento. Sendo a
medida da interpretação, toda a lei não tem mais um único modo de ser observada. A lei agora
será observada de acordo com o modo como Jesus a vê, isto é, não mais de acordo com a
exterioridade de um pergaminho solto, mas dependente de uma estrutura que está na
interioridade do Cristo.
Para Gioacchino, a história não termina aí e, de fato, isto não fica com o Cristo, segundo
123
Vattimo, pois Gioacchino interpreta as escrituras “para além de Jesus” . O próprio Jesus
envia a seus discípulos o seu Espírito. De acordo com o Evangelho de João (Jo 20,22), Jesus
sopra sobre os discípulos e diz: “Recebei o Espírito Santo.” Em termos teológicos, isto
significa que o Espírito Santo passa a habitar os discípulos de Cristo. O que ocorre do ponto
de vista da filosofia é o fato de que cada um dos discípulos de Cristo possui a partir de sua
interioridade o mesmo Espírito que Jesus possuía. Deste modo, todo discípulo cristão possui a
mesma liberdade hermenêutica que o seu Mestre. Com isso, na concepção de Gioacchino, na
leitura de Vattimo, tem início a “terceira idade” da história da salvação, a saber: a Idade do
Espírito, precedida pela primeira (a do Antigo Testamento) e pela segunda (a do Novo
Testamento).
123
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia
Marques. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 42.
65
aquela que se prendeu a uma leitura mais rígida de dogmas e outra que se desenvolve na
perspectiva de Fiori. A leitura bíblica que se faz a partir desta perspectiva não será mais uma
leitura objetivada e literal, mas será tomada dentro de um contexto onde cada indivíduo
partindo de suas vivências espirituais mostrará, ou melhor, desvelará para um determinado
contexto o significado de determinada passagem das Escrituras, levando em consideração
aquilo que internamente ele recebeu de suas diversas experiências no decorrer da vida,
acrescentando-se a isso a letra da palavra da Escritura, não de modo literalista desta vez,
senão de modo integrado ao espírito do indivíduo aliado ao de sua comunidade eclesial. Na
concepção de Vattimo, esta deve ser a principal característica do cristianismo e a que faz dele
talvez a única religião que tenha, de fato, a pretensão de ser a religião universal. Nas palavras
de Vattimo:
Vale lembrar que este caráter universalizante que Vattimo propõe com relação ao cristianismo
não significa dizer, para ele, que o cristianismo é a única e verdadeira religião cujas normas
todos devem seguir indiscriminadamente. Ao contrário, é pelo fato do cristianismo possuir
uma abertura à individualidade no sentido da interpretação é que se mostra assimilador de
outras perspectivas diferentes daquela que ele mesmo possui em seu interior, podendo receber
a influência de uma religião exterior sem necessitar de impor a ela suas questões dogmáticas
fixas, já que estas não têm lugar quando se entende o cristianismo como a religião que tem um
chamado para a interpretação, isto é, todo o cristianismo, como já apresentado, aparece com
uma essência (Wesen), entendido no sentido daquilo que vigora, que vai para a interioridade e
busca a liberdade de não entender mais os termos de modo apropriado, mas sim como o
anúncio da liberação da metáfora.
Segundo Vattimo, Gioacchino é o pensador que melhor caracterizou seu estilo dentro de um
quadro histórico, pois coloca todos os esquemas de interpretação da Escritura num melhor
esquema de entendimento. Para Gioacchino aquilo que é narrado na Bíblia pode ser entendido
como figura de diversos eventos históricos, como se fossem arquétipos, e isto deve ser
124
VATTIMO, G. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia Marques.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 39.
66
entendido mais deste modo do que entender que as questões da Escritura serem tomadas como
meras parábolas para que os fiéis permaneçam como tais.
Isto significa que os fatos narrados no Antigo Testamento não apenas serão lidos
como símbolos figurais dos eventos do Novo, como a exegese “profética” já havia
ensinado a fazer, mas também como objetivos sobretudo apologéticos (Jesus
realiza as profecias, portanto as legitima e é por elas legitimado) ou simplesmente
edificantes125.
Para Vattimo, no entanto, os fatos não serão considerados simbólicos de modo exato acabado
e ponto. Se assim o fosse, o pensamento de Gioacchino seria considerado ainda dentro da
perspectiva objetivante, isto é, estaria ainda dentro da metafísica. O pensamento de
Gioacchino que Vattimo presa é aquele que toma como pressuposto o fato de que a história da
salvação ainda está em acontecendo, pois é entendendo que a história da salvação ainda não
terminou é que se pode falar de profecia – não em sentido metafísico, como a execução
objetiva de um fato histórico – e futuro. “Um tal rigorismo é excluído pelo próprio fato de que
aquilo que legitima Gioacchino a interpretar profeticamente a Escritura para além de Jesus é a
persuasão de que estamos na idade do Espírito, na qual a Bíblia não deve mais ser interpretada
em termos literais”126.
Para Vattimo, o terceiro estado se inicia no período dos monges beneditinos, pois é aqui que
se tem por primeira vez a questão da contemplação, isto é, pela liberdade de interpretação, já
que o sujeito que propõe algo só é capaz de fazê-lo porque está em contato com a sua
interioridade, que, por sua vez, é matriz de interpretações. Ao citar Gioacchino, Vattimo diz
que “o primeiro período é ‘marcado pelos flagelos, o segundo pela ação e o terceiro pela
contemplação’” 127.
Assim, pode-se perceber que a terceira idade reúne elementos que apontam para a liberação
da metáfora e maior liberdade de se entender o dar-se do ser como evento. O fato de
Gioacchino ter percebido, e anunciado, a idade do espírito não significou que ele já estaria
imerso dentro deste período. Para se entender isto é preciso imaginar que a salvação já se deu,
porém todos são chamados a ela. Com isso, entende-se que a própria salvação e plena
125
VATTIMO, G. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia Marques.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 41.
126
VATTIMO, G. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia Marques.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 42.
127
VATTIMO, G. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia Marques.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2004, p. 44.
67
estabelecidos pelos dirigentes das denominações religiosas. Não é necessário dizer que a
consequência disto, no campo da ação moral, é uma rígida postura de considerar apenas
aquilo que está fixado no cânon da realidade estática e substancial. Assim, no que diz respeito
à concretização, a efetivação, e, utilizando um neologismo, factuação da Idade do Espírito,
parece que não é possível a sua concretização dado que a Idade do Espírito é a completa
diluição dos pressupostos rígidos da metafísica.
69
Para Vattimo, Heidegger, em seu livro em O que é metafísica? mostra que o assunto abordado
possui uma conatureza em relação ao Dasein pelo fato do conhecimento do ente já pressupor
uma certa noção preliminar dele mesmo (do ente), entendendo este como guardando em si
mesmo a projeção das diversas potencialidades, como sendo uma matriz de manifestações que
estão “guardadas” à manifestação pura e simples do evento do dar-se do ser. Não se pode
esquecer que o Dasein vai sempre, na concepção de Vattimo, além da compreensão do ente
enquanto tal131.
Para Vattimo, tomando Ser e Tempo como base, a tradição filosófica ocidental cometeu um
grande “erro” ao transcender o ente na direção de uma consciência de ser, isto é, confundir a
eventualidade do ser com o ente. Deste modo, Vattimo, analisando Heidegger, toma o termo
metafísica com uma conotação negativa entendendo esta como “todo o pensamento ocidental
que não soube manter-se ao nível da transcendência constitutiva do Dasein ao colocar o ser no
132
mesmo plano que o ente” . Neste caso, a transcendência do Dasein em relação ao ente é o
fato de que no Dasein já há uma pré-compreensão do que é o ser, isto é, o Dasein capta o ser
do ente como projeto. Assim, é este captar o ser do ente como projeto que é a transcendência
do Dasein para com o ente. Vattimo, seguindo Heidegger, diz que esta transcendência é o que
ocorre deste os primórdios da filosofia ocidental, quando se busca formular a questão do ser
do ente. Neste sentido, o ser fica esquecido por trás do ente (como se o ser fosse algo comum
a todos os entes) que aparece o tempo todo e que, por outro lado, não desvela as diversas
possibilidades constitutivas do ser. Deste modo, os entes acabaram sendo propostos como
simples presença, o que fez com que o próprio ser fosse do mesmo modo concebido.
131
VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Traducción de Alfredo Báez. Barcelona: Gedisa, 1986, p. 61.
132
VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Traducción de Alfredo Báez. Barcelona: Gedisa, 1986, p. 61.
Tradução nossa para o português.
70
Concebida deste modo, a metafísica será entendida como a compreensão do ser que possui a
existência inautêntica e esta inautenticidade é entendida como sendo o esquecimento do ser
em detrimento do ente, que é considerado uma matriz única de interpretação e que esconde as
diversas possibilidades de desvelamento do ser que se manteve o tempo todo velado. Para se
entender o que é a metafísica, Vattimo diz que Heidegger colocar-se-á algumas questões que
são essenciais: a questão do fundamento e a questão ligada ao fundamento que é a questão da
diferença ontológica, a questão do nada e a questão da verdade.
Para apresentar a primeira das questões apresentadas acima, Vattimo recorre até a Essência do
Fundamento de Heidegger, onde este mostra que toda a tradição ocidental utiliza o princípio
da razão suficiente proposto por Leibniz. De acordo com tal princípio, tudo o que existe
possui uma causa ou algo que fundamente o que está sendo analisado. A questão, então,
colocada é a seguinte: o que faz com que o princípio de razão suficiente tenha validez
universal? Em Ser e Tempo a questão fica resolvida entendendo que a validez deste princípio
deve estar atrelada ao Dasein. Isto significa que no evento do dar-se do ser, a validez não é
dada como se fosse algo objetivo que se encontra na coisa a ser analisada, como se estivesse
ali presente, pois os entes só se tornam parte de um mundo, isto é, só se mostram abertos para
um mundo através do Dasein que os “concretiza” enquanto projeto. Deste modo, o princípio
da razão suficiente também deve fazer referência ao Dasein que é quem desvela o mundo no
qual está inserido o ente. “O Dasein enquanto projeto lançado tem já uma compreensão do ser
do ente, compreensão que se articula em um discurso (o discurso é um existenciário) no qual
133
os entes estão concatenados entre si na forma da justificação ou fundação.” Assim, o
princípio da razão suficiente acaba possuindo uma dependência em relação ao Dasein, que vai
ser a condição de possibilidade para que os entes se manifestem e se mostrem concatenados
nesta matriz de sentidos (ou justificação/fundação). Por isso,
O princípio de razão suficiente vale porque tem o Dasein como projeto lançado que
abre o mundo. O “verdadeiro” fundamento é, então, o Dasein mesmo por quanto,
primeiro e mais fundamentalmente que o ente, compreende o ser, isto é, abre um
horizonte no qual se fazem visíveis os entes, mas o horizonte transcende e precede
(não evidentemente em um sentido cronológico) aos entes. Toda verdade ôntica
(todo conhecimento do ente) supõe a verdade ontológica (a compreensão do ser, o
projeto como projeção). Mas o Dasein como tal não é um “fundamento” no sentido
de primeiro princípio metafísico de razão suficiente; nesta esfera, o fundamento o
é, por sua vez, fundado ou, se é o fundamento último, é último enquanto se
considera justamente como uma simples presença mais além da qual não se pode ir,
133
VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Traducción de Alfredo Báez. Barcelona: Gedisa, 1986, p. 65.
Tradução nossa para o português.
71
Deste modo, Vattimo afirma com Heidegger que o Dasein não pode ser fundado. Apesar
disso, ele abre um horizonte. Um horizonte que antecipa e ao mesmo tempo transcende o ente.
Este horizonte que é aberto pelo ente acaba mostrando o mundo que permite ao Dasein
entender a sua “área de atuação” entendida como o seu leque de possibilidades e
potencialidades. No entanto, quando se disse que o Dasein é a condição de possibilidade para
a manifestação dos entes, não se pretende aqui entender o Dasein como um fundamento
último no sentido que tudo depende, isto é, como um sujeito transcendental. O Dasein não
pode ter este caráter fixo, já que não se apresenta no modo de ser dos entes simplesmente
dados, mas como um projeto, algo que se mostra a si mesmo como reconhecido no mundo
que é aberto a partir de seu horizonte de visada. No dizer de Vattimo:
O Dasein não é outra coisa que projeto; não é algo que “seja” e que logo projete o
mundo, não é algo que existe como “base” estável deste projetar. O Dasein em sua
transcendência é fundamento, Grund, só como Ab-grund, como ausência de
fundamento como abismo sem fundo135.
Deste modo, Vattimo mostra que este caráter fundacional do Dasein possui uma positividade
e uma negatividade. A positividade fica por conta do fato de ser fundacional trabalhando na
forma de “justificação racional” 136. A negatividade, por sua vez, é entendida como a ausência
de fundamento na metafísica tradicional e que funda tudo aquilo que aparece no interior dos
entes. Assim, fica justificada na posição heideggeriana, no entender de Vattimo, o que se
entende por diferença ontológica. Esta é justamente a diferença que existe entre o ser e o ente,
sabendo-se que aquele transcende este. Deste modo, o Ab-grund, que é o próprio Dasein, pois
este não possui o fundamento no sentido metafísico, mas já sendo, não pode apresentar-se
como o ente, já que este é manifesto, isto é, o ente apresenta-se na forma da positividade,
porque como se disse ele “se apresenta”. Ao passo que o ser do ente apenas o ilumina, ficando
na sua negatividade e mantendo a sua matriz de ausência de fundamento enquanto é matriz,
134
VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Traducción de Alfredo Báez. Barcelona: Gedisa, 1986, p. 65.
Tradução nossa para o português.
135
HEIDEGGER, Martin. Vom Wesen des Grundes, Halle, 1929, 3ª. edición con el agregado de un prefacio,
Frankfurt, 1949; traducción italiana de P. Chiodi, L'essenza Del fondamento, Milán, 1952, reeditada ahora junto
con Ser y tiempo, Turín 1969, pág. 677 apud VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Traducción de
Alfredo Báez. Barcelona: Gedisa, 1986, p. 66. Tradução nossa para o português.
136
VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Traducción de Alfredo Báez. Barcelona: Gedisa, 1986, p. 66.
Tradução nossa para o português.
72
não no sentido metafísico tradicional de fundamento acabado que possui um caráter estático
como o supracitado Motor Imóvel de Aristóteles, mas no sentido que de modo indefinido
pode mostrar-se de diversos modos que ou já foram apresentados ao ente ou ainda estariam
para se apresentar.
Dado isto, a pergunta que aqui faz ressoar é a tradicional questão heideggeriana de se saber
por que há o ente e não o nada. Primeiramente, como entender esta questão? O nada neste
sentido aqui não é um nada absoluto. Ele é algo que está no interior do ser. Para que se possa
ser mais claro, chega-se mesmo a dizer o nada é no ser.
O nada não é nem um objeto, nem um ente. O nada não acontece nem para si
mesmo, nem ao lado do ente ao qual, por assim dizer, aderiria. O nada é a
possibilitação da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não
é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do
ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada137.
Desde esta perspectiva, Gianni Vattimo concluirá que a tradicional afirmação de cunho
metafísico que diz que do nada tomará uma nova dimensão, já que o nada é a matriz para o
ser, assim como é a partir dele. Assim, abre-se a perspectiva para outra questão que
interessará no caso da religião para Vattimo: o problema da verdade.
Sob a visão da tradicional filosofia com base em uma metafísica, configurou-se no decorrer da
história considerar-se a verdade como possuindo pelo menos três modos de ser concebida. O
primeiro modo é aquele que considera o próprio ente como verdadeiro, isto é, o ente é
verdadeiro por fundamentar a verdade. O segundo modo é o que considera a verdade do ponto
de vista da adequação entre a coisa, neste caso, o ente e a faculdade intelectiva da alma
humana, ou seja, o ente, por ser verdadeiro, transmite ao intelecto humano a sua forma
essencial, informando a alma do sujeito que conhece com a sua natureza mesma. Destes dois
modos anteriores surge o terceiro que é a própria formulação da proposição que se está
percebendo. Exemplificando tem-se o seguinte: uma pessoa de pé, com o chão sob seus pés
pode, partindo do próprio chão, ser informada – o que significa receber a forma essencial do
que é o chão. Daí, formular o seguinte juízo acerca do que recebeu: “O chão é duro”.
Realizando o processo inverso, ela tenderá a verificar se, de fato, o juízo formulado
corresponde ao que foi percebido, isto é, verificar se o chão é duro como havia percebido.
137
HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução e Notas de Ernildo Stein. São Paulo:
Abril Cultural, 1973, p. 239. (Coleção Os Pensadores).
73
Através do que foi dito, mais o exemplo, fica claro que o ponto de partida para este modo de
encarar o problema da verdade é o ente considerado fechado em si mesmo e imutável porque
é preciso considerar o ente (chão) imutável para que o intelecto possa receber aquela forma –
também imutável – e aí sim formular um juízo que não muda por ser formado a partir da
estaticidade do ente que guarda em si mesmo o caráter de ser verdadeiro.
O problema até agora não é a conformidade do intelecto ao ente, mas em que condições se dá
está conformidade. Vattimo coloca esta questão em termos heideggerianos do seguinte modo:
“esta conformidade é possível só se o próprio ente é já acessível, só se está já aberto um
138
âmbito dentro do qual o Dasein pode relacionar-se com o ente.” Assim, a conformidade
acontecerá num nível de possibilidade em que o Dasein já é abertura para o ente. Esta
abertura do Dasein em relação ao ente, aquela através da qual o Dasein entra em um estado de
conformidade com o ente, pressupõe uma abertura ainda mais originária, a abertura para a não
“aceitação” da conformidade que pode ocorrer por uma “simples negação” ou por um
“artifício de método”. Tanto no caso da “simples negação” quanto no do “artifício de
método”, entra aqui em jogo a questão da liberdade. Esta sim é uma das condições originárias
de abertura do Dasein ao ente. A liberdade aqui considerada por Vattimo está relacionada à
acessibilidade do Dasein frente ao ente. Isto significa que o ente também se mostra acessível
ao Dasein e, por esta razão, pode ser ente. Aqui está o ponto do que se entende por liberdade:
o fato de que o Dasein não escolhe não escolher a acessibilidade ao ente. Esta acessibilidade é
assim. Deste modo, não se pode dizer que o Dasein possui a liberdade, mas o contrário, é a
liberdade que possui o Dasein.
O homem não possui a liberdade como uma propriedade, mas antes, pelo contrário:
a liberdade, o ser-aí, ek-sistente e desvelador, possui o homem, e isto tão
originariamente que somente ela permite a uma humanidade inaugurar a relação
com o ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboça toda a
história139.
Com isso, entende-se que no dar-se do ser, captado através da entificação do real, há a
circularidade onde fundante e fundado dão-se no mesmo evento manifestativo, e a liberdade –
a liberação do entendimento dos termos como sendo fixos ao modo metafísico, isto é, os
termos não sendo entendidos mais do ponto de vista da propriedade dos mesmos – fica clara,
138
VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger. Traducción de Alfredo Báez. Barcelona: Gedisa, 1986, p. 70.
Tradução nossa para o português.
139
HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução e Notas de Ernildo Stein. São Paulo:
Abril Cultural, 1973, p. 337. (Coleção Os Pensadores).
74
pois o Dasein seria possuído pela liberação, descortinando as diversas possibilidades ainda em
potencial para serem ditas por trás do simples ente.
75
No que concerne ao ponto em que Gianni Vattimo investiga a questão da diferença ontológica
heideggeriana e sua relação com a religião e sua inserção no contexto pós-moderno, deve-se
analisar o que Vattimo entende por Diferença, conceito devedor de Heidegger.
Isto significa que toda a perspectiva metafísica entendida ao modo tradicional levou em
consideração não o ser, mas sim o ente, prescindindo da análise prévia do ser da coisa, pois
este seria tomado como dado ou até mesmo como uma condição de possibilidade do ente. O
que Heidegger está propondo de novidade aqui é uma refundação da metafísica. Esta
refundação é para que se tome como ponto de partida não a entificação que pressuporia o ser
– objeto a ser analisado –, mas tomando como ponto fundante o dar-se (es gibt). Nesta
revelação, não estaríamos privilegiando nenhum ente tomado como concreto, objetivamente
conhecido e fechado para a sua análise. Estaríamos tomando como ponto de partida o modo
como um determinado ente se dá. Deste modo, poderíamos entender que o que se oculta neste
dar-se é a matriz de potencialidades que mostraria algo (o ser) que fundamenta todo este dar-
se, mas ainda, vale lembrar como matriz de possibilidades e potencialidades, não fechado.
Por outro lado, este mesmo ser que se mostra através do ente se esconde, pois não se mostra
de modo direto entificado, mas apenas sustentando a entificação das coisas. Assim, é no dar-
se que se encontra esta aparente ambiguidade: o mostra-se e o esconder-se. Este mostrar-se e
esconder-se se dão num mesmo evento, o que nos colocaria diante, mais uma vez, de uma
possibilidade de análises feitas não de modo unívoco que consideraria apenas um modo de se
encarar as coisas, mas diante de uma abertura a diversas interpretações de um mesmo fato
considerado na dimensão do dar-se, aproximando Heidegger de Wittgenstein pelo menos no
sentido de que “a linguagem se revela em definitivo num seu alcance ontológico próprio.”
140
HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução e Notas de Ernildo Stein. São Paulo:
Abril Cultural, 1973, p. 457-458. (Coleção Os Pensadores)
76
Assim, Vattimo diz que Heidegger, em sua polêmica em torno do Ser da tradição filosófica
ocidental, não pode promulgar o ser como possuidor de uma estrutura diversa da que a
tradição propôs, pois se assim o fizesse estaria ainda o colocando (o ser) dentro de outra
estrutura metafísica da qual ele mesmo quer criticar. Na verdade, Vattimo aponta para o fato
de que Heidegger não pode dizer que oferece uma concepção de ser mais adequada, isto é,
mais exata, como se a metafísica fosse simples erro a ser descartado. Não se pode aqui, no
entanto, perder de vista que a visão a qual Vattimo está tendo como perspectiva é da tradição
filosófica ocidental iniciada com Sócrates, Platão e Aristóteles, pois foi a partir destes –
segundo ele, a partir de Platão – que se identificou a “Seiendheit com a presença do que está
141
presente” . O que significa que todo este movimento não tem como causas questões
sociológicas mais imediatas, mas uma profunda causa filosófica que se desenvolve no
decorrer da história. Considerando a visão que Vattimo tem de Heidegger, como isto se
relaciona com a religião mencionada anteriormente?
Vattimo considera o período atual – chamado por ele de pós-moderno – como aquele que não
existiria um fundamento último, isto é, não existiria uma verdade definitiva, porque estaria
baseado na entificação do ser de modo fechado, acabado e definitivo, a qual todos devessem
ter como ponto de partida para o debate e que todos teriam, então, que apoiar as suas decisões.
Neste período não haveria a ideia de fundamento ontológico e fixo como fonte de apoio, mas
um fundamento novo, desta vez hermenêutico, que parte de um horizonte de compreensão e
de uma tradição. Este período plural, ou de diferenças, por outro lado, faria com que a
filosofia tivesse o “dever” de reconhecer também a religião – neste caso, o cristianismo –, já
que a religião parte de um horizonte de interpretação (compreensão). A religião, como dito,
partindo de um horizonte de interpretação com tradição, possuiria as tais regras internas que a
colocariam dentro da visão heideggeriana de fonte reveladora ou manifestadora do ser, isto é,
a religião seria um lugar (Ort) onde ocorre o acontecimento, evento (Ereignis), fundando
assim épocas históricas sempre por meio de aberturas finitas do Dasein142, evidenciando-se
assim a diferença.
Esta diferença seria, então, uma interpretação concorrendo com outras interpretações e não
seria, no entender de Vattimo, um diluir-se em uma grande substância absoluta a la Hegel,
141
VATTIMO, Gianni. As Aventuras da Diferença. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 120.
142
ARAÚJO, Paulo Afonso de. Arte, Linguagem e Sagrado em Heidegger. Juiz de Fora: s.e., 2010.
77
como afirma em As Aventuras da Diferença143. Assim, a religião, entendida como uma voz
social que parte de um horizonte de interpretação, seria mais uma das vertentes a serem
levadas em consideração nas decisões sociais do mundo hodierno como é a voz social da
laicidade, por exemplo. Tendo visto que Vattimo parte do ponto de que não existe um
fundamento último, isto é, substancial, para toda a realidade, fica evidenciado em suas
palavras que o consenso no diálogo é que deveria ser o ponto de partida em qualquer
discussão que tem como pressuposto a racionalidade. Mas, qual a base para este consenso?
Mas uma vez reportamo-nos para As Aventuras da diferença aonde vimos que qualquer visão
interpretativa que se proponha séria deve ter como ponto de partida uma tradição e uma
perspectiva fundante que se mostre num lugar (Ort). Este lugar é precisamente o fim das
metanarrativas, pois se tomamos, por exemplo, o que o positivismo comteano dizia a respeito
da religião, provavelmente não estarmos aqui nem falando mais do assunto. No entanto, com
o fim, ou a diluição, das metanarrativas (iluminismo, idealismo, marxismo), como
mencionado, haveria abertura para a entrada de outra perspectiva interpretativa, a saber: a
religião.
Como mencionado acima, a religião se torna mais uma voz dentro do mundo. Mas por que ela
se torna mais uma voz? Segundo Vattimo, Heidegger mostra que a sociedade moderna é uma
sociedade da metafísica plenamente realizada. Isto significa que ela torna-se uma sociedade
que, como vimos, busca o fundamento objetivado das coisas. Porém, Heidegger mesmo tenta
inaugurar uma nova maneira de análise do ponto de partida do entendimento da sociedade,
este entendido na nova relação fundante do dar-se e não um fundamento fechado e estável
metafísico, considerado dentro de uma estrutura rígida de uma sociedade meramente técnica
que trabalha de modo a levar a cabo os ideais metafísicos que trabalham não na perspectiva
do dar-se, mas na do ente fechado sem nenhuma possibilidade resguardada no Es-gibt. Uma
sociedade que é meramente técnica e que está organizada de acordo com estruturas leva ao
homem uma segurança que faz com que ele não necessite mais de Deus como um
sustentáculo de sua visão de mundo filosófica. “A ideia é que, em condições civilizadas, não
necessitamos mais essa garantia de segurança”144 que postula a existência de Deus, isto é,
estaríamos em uma sociedade secularizada.
143
VATTIMO, Gianni. As Aventuras da Diferença. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 129.
144
CAPUTO, John D. e VATTIMO, Gianni. Después de la muerte de Dios: Conversaciones sobre religión,
política y cultura. Editado por Jeffrey W. Robbins. Barcelona/Buenos Aires/México: Paidós, 2010, p. 138
(tradução nossa).
78
Não se deve perder de vista que a secularização que se entende aqui é aquela que tem como
base a filosofia de cunho metafísico. Portanto, é o Deus dos filósofos que morre, não o Deus
da religião145. Menciona-se aqui o Deus dos filósofos para se entender que este Deus seria o
Deus-fundamento da metafísica, isto é, aquele que justificaria todo o olhar para a realidade
entendida como as coisas apenas no seu simples dar-se. Este Deus dos filósofos é que seria a
condição de manutenção de toda a perspectiva metafísica, é ele que é a segurança de toda a
entidade do real que se daria de modo transcendental, significando, aqui neste ponto, aquilo
que sustenta todas as estruturas rígidas da realidade e de qual tudo o que é – aqui na acepção
mais clássica do termo, ou seja, o próprio ente – teria a sua razão de ser. Quando este Deus
dos filósofos morre, tudo aquilo que fundamenta o real deixa de ser solidificado e torna-se
plenamente viável e, nesta perspectiva hermenêutica, pode-se perguntar com o homem louco
da Gaia Ciência, em um aforismo conhecido:
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para
apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se
move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não
caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções?
Existe ainda “em cima” e “embaixo”?146
Isto significa que aquilo que fundamentava toda a realidade agora não pode mais ser visto
como algo único e sólido, como algo que dá sustentação para o real de modo eterno fazendo
com que haja apenas um modo de se entender a realidade do ponto de vista filosófico. Quando
o Deus dos filósofos morre, morre com ele tudo aquilo que ele fundamenta, ou melhor, tudo
aquilo que ele fundamenta passa a manifestar-se como o evento que possui uma matriz de
fundamentação que não é mais uma matriz de fundamentação147 (Abgrund), mas um abismo
que se mostra como uma abertura para a diferenciação das possibilidades instauradas na
eventualidade do dar-se do ser, não ao modo metafísico, de maneira hermenêutica. Para a
religião o impacto da morte de Deus pode ser visto de maneira afirmativa ao modo da
esquerda heideggeriana à qual Vattimo se classifica. Pode-se ver como afirmativo, pois a
religião que antes, sob o jugo da perspectiva metafísica de se considerar o real ficava de
maneira inteiramente acuada dentro dos moldes fixos da realidade fundamentada na
metafísica, agora se vê liberta para propor uma infinidade de possibilidades interpretativas
145
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
24.
146
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e pósfácio de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 148.
147
Este ponto foi discutido na parte 3 do capítulo 3 deste trabalho.
79
que não estavam presentes naquela visão que considerava o ente fechado como ponto de
partida de diversas concepções que dependeriam única e exclusivamente deste ponto de
partida. Vattimo deixa clara a importância da morte do Deus dos filósofos para a religião na
seguinte passagem de Depois da Cristandade: “muitos são os sinais que parecem indicar que
foi a própria morte deste Deus (dos filósofos) o que abriu caminho para uma vitalidade
renovada da religião” 148. O que Vattimo está querendo dizer é que a morte de Deus provoca a
liberação da metáfora, que significa o não considerar mais os termos do ponto de vista de sua
propriedade lógica, mas sim liberá-los desta perspectiva metafísica ainda presente na lógica,
considerando-os do ponto de vista metaforizado. Com isso, a esfera religiosa ganha agora
inúmeras possibilidades de falar de suas temáticas como céu, inferno, anjos, milagre, não mais
do ponto de vista absolutizado com que pretendia a visão metafísica e rechaçada, por
exemplo, por uma visão cientificista moderna. Para Vattimo, “é a liberação da metáfora que
torna novamente possível aos filósofos falar de Deus, anjos, de salvação, etc., e é sobretudo o
pluralismo característico das sociedades da tarda modernidade que permite que as religiões
venham de novo à tona” 149.
Assim, é dentro da esfera filosófica que ocorre a secularização abrindo-se uma perspectiva
para o Deus da religião que estaria mais ligado a uma tradição hermenêutica. Este Deus da
religião seria o Deus de Gioacchino da Fiore que teria em si mesmo resguardado a
característica de ser o Deus da Idade do Espírito, completamente diluído de suas estruturas
rígidas que são apresentadas no Antigo Testamento e nas religiões citadas por René Girard.
Faz necessário mencionar aqui o modo como Girard entende religião, pois esta forma de
compreendê-la é fundamental para Vattimo. Segundo o próprio Girard150, as religiões
primitivas durante muito tempo mantiveram a estrutura das sociedades de modo estável. Num
determinado momento da sociedade ocorre uma desestabilização que provoca a necessidade
de se escolher arbitrariamente uma vítima que servirá de expiação do problema apresentado,
seja ele uma peste, uma enchente, etc. O cristianismo muda, para Girard, este mecanismo
vitimário, pois nas outras religiões a vítima é vista como culpada pela dita desestabilização da
148
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
24, observação entre parênteses nossa.
149
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
28.
150
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: Editora
Santuário, 2010, p. 24ss.
80
ordem social. O cristianismo151 inverte isto colocando a vítima não mais como culpada, o que
fica claro quando o próprio Jesus afirma: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lucas
23,34). Girard propõe que este mecanismo invertido pelo cristianismo é aquele que
proporciona uma nova etapa para o homem.
O cristianismo nos tira daquele mecanismo que era o fundamento da ordem social e
religiosa arcaica, introduzindo-nos em uma nova fase da história do homem. Uma
fase que podemos legitimamente chamar de “moderna”. Para mim, todas as
conquistas da modernidade partem dali, daquela tomada de consciência inerente ao
cristianismo152.
Partindo desta perspectiva, Vattimo entende que o cristianismo ao inverter a lógica vitimária
insere um elemento de dissolução das estruturas rígidas e violentas do sacrifício e não só do
sacrifício puro e simples, mas de toda uma cosmovisão que procurará cada vez mais afastar-se
desta imposição sobre o real. O contrário. O cristianismo, ao torcer a ordem de compreensão
de quem é a verdadeira vítima, enfraquece o modo de se interpretar o evento que se dá.
Vattimo afirma que
Descobrir Girard significou descobrir que Jesus tinha vindo para revelar qualquer
coisa que as religiões naturais não haviam revelado e que consistia na revelação do
sistema vitimário que está na base dessas religiões. Revelação que nos permitiu
minar e, por fim, dissolver numerosas crenças que eram próprias das religiões
naturais. A história mesma do cristianismo é a história da dissolução dos elementos
de violência natural, de sagrado natural, que existem na Igreja. Todas as disciplinas
a que se impuseram os cristãos na tradição têm algo de violento, mas estão também
ligadas a uma imposição que de qualquer forma se secularizou. A palavra-chave
que comecei a empregar depois de ter lido Girard é precisamente secularização,
como efetiva realização do cristianismo como religião não sacrificial. E nessa
direção eu avanço, vendo como positivos muitos fenômenos aparentemente
escandalosos e “dissolutos” da modernidade. A secularização não seria o abandono
do sagrado, mas a integral aplicação da tradição sacra a determinados fenômenos
humanos153.
151
Observe-se aqui que o próprio Girard menciona que, sob certo aspecto, este mecanismo vitimário invertido já
ocorre no Antigo Testamento.
152
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: Editora
Santuário, 2010, p. 26.
153
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: Editora
Santuário, 2010, p. 28.
154
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Lisboa: Relógio D’Água, 1998, p. 9.
81
pois estaria ali na religião como que uma essência (Wesen entendido como aquilo que é
vigora) e um ainda não, pois não se concretiza de modo definitivo. É a já mencionada Idade
do Espírito de Gioacchino da Fiore que apresenta um paradoxo de não poder-se realizar
plenamente.
Apesar da morte de Deus, entendida sob o aspecto da tradição metafísica Ocidental, tirar a
religião do centro das atenções do palco filosófico e a colocar “entre parênteses” levando em
consideração outros pontos para a interpretação, o que o ocorre é um retorno da religião ao
cenário, não mais sob a égide da metafísica. Este cenário é novo, pois não é o mesmo do
“desaparecimento” da questão religiosa, mas coloca o cristianismo dentro de uma nova
perspectiva interpretativa que o difere da outra a qual ele estava lançado. Aqui se dá a
diferença:
Apesar de ser dentro da esfera da pluralidade que a religião retorna, o seu ressurgimento tende
a acontecer ainda dentro de uma visão unitária de fé, onde uma verdade de fé ainda tenta, não
de modo racional para Vattimo, se impor, contradizendo toda a condição de possibilidade de
seu retorno – o que estaria acontecendo, por exemplo, com o catolicismo romano em sua
visão.
155
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
28.
82
Jesus por ser o enfraquecimento de Deus, isto é, seu rebaixamento à condição humana que
ocorre dentro do cristianismo, faz com que haja uma quebra na estrutura que servia de
fundamento para a compreensão do mundo. Jesus, enquanto Deus esvaziado de toda a sua
magnitude universal, eterna e imóvel, encontra agora no particular, temporal e móvel, toda a
situação do evento do dar-se do ser algo de não absoluto, mas algo que é revelado de modo
hermenêutico, ou seja, de maneira a abrir a possibilidade para que se tenha uma diversidade
de modos, liberados da propriedade dos termos, a se dizer do ser que estaria oculto no
acontecimento do dar-se do ser.
156
GIRARD, René. VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida: Editora
Santuário, 2010, p. 50.
83
Neste segundo sentido, a secularização não deve ser entendida como abandono da religião,
mas uma execução plena de sua vocação primeira.
157
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
35.
158
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
35.
159
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
95.
84
O que Vattimo está apresentando em termos religiosos, ou seja, tomando de dentro da religião
algo que acaba entrando no seio mais radical da filosofia, é o fato de que há uma diferença
radical entre o “ser se diz de vários modos” de Aristóteles e a possibilidade de todos, a partir
de São Paulo, possuírem o caráter profético160. Este caráter profético encontrado em São
Paulo é fundamental no modo como o cristianismo vai lidar com a mensagem bíblica e o
cristão irá encarar a realidade ao seu entorno. Como a partir de São Paulo cada cristão,
individualmente, será constituído como um profeta, todo o caráter interpretativo da mensagem
dependerá única e exclusivamente do sujeito que estará frente ao real ou ao próprio texto a ser
interpretado. Deste modo, abre-se uma perspectiva sem precedentes na história da filosofia.
Isto significa que ao proclamar a plurivocidade profética, São Paulo dá a cada uma aquilo que
Cristo procurou realizar em sua pessoa, a saber: ser o critério de interpretação. Vale lembrar
que Vattimo faz uma dura crítica neste ponto à hierarquia da Igreja Católica ao se considerar,
ela mesma, a única e exclusiva fonte de critério de interpretação de todo o manifestar-se do
ser na realidade.
160
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 74.
85
Esta passagem do pensamento de Vattimo mostra bem a abertura que a sua perspectiva
interpretativa possui em relação à consideração do mito mesmo como algo a ser levado em
consideração na hora de se entender o evento do ser. Diz-se aqui abertura pelo fato de não
considerar a eventualidade do ser com uma característica única de entendimento como aquela
que Vattimo faz frequentemente referência à Igreja Católica.
Vattimo destaca, a partir de Gioacchino de Fiori, a ideia de que no cristianismo há três fases,
como já mencionado. Estas seriam etapas de evolução do modo como se entende a
eventualidade do fenômeno religioso: o tempo de Deus Pai – neste caso o Antigo Testamento;
o tempo do Filho – o Novo Testamento; e o tempo do Espírito – que Vattimo identifica como
justamente aquele apresentado como novidade por Gioacchino da Fiore e que seria, no
entender do pensador de Turim, marcada pela interpretação. No tempo do Pai temos uma
estrutura rígida de entendimento que não abre mão para outro modo de se interpretar a
eventualidade do ser. No tempo do Filho acontece a Kenosis que culminará no
enfraquecimento do ser e de suas estruturas rígidas do tempo do Espírito. Para Vattimo, neste
caso, é a própria religião que realiza o chamado para este enfraquecimento das estruturas
fortes do ser.
Esta liberação está diretamente relacionada à liberação da metáfora perpetrada por Nietzsche.
Nesta, está pressuposto que os termos de uma proposição não devem mais ser considerados do
ponto de vista da propriedade dos mesmos, isto é, os termos de uma proposição não são
considerados de um modo unívoco ou mesmo análogo. Eles – os termos – serão considerados
a partir da relação na qual se inserem com o sujeito que conhece e o objeto a ser conhecido.
Isto, no entanto, faz uma grande referência à metafísica que o próprio Nietzsche pretende
criticar. Assim, ao mencionar o fato da liberação da metáfora nitzscheana aponta-se para uma
abertura de se entender o dar-se da eventualidade do ser não como um fato apenas que um
161
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 77.
162
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 81.
86
sujeito de modo pouco crítico chega e faz a descrição do mesmo para dizer que esta tal
descrição corresponde de fato com aquilo que está sendo descrito. A liberação da metáfora faz
com que haja certa liberdade ao se encarar uma poesia e até mesmo a própria arte. Na
liberação da pluralidade aristotélica, o próprio fato do “ser se dizer de vários modos” estaria
liberado da rigidez de ser considerado de um modo único. Assim, começado na religião como
“método” de interpretação que se realiza na kénosis como esvaziamento de Deus para
encarnar, na filosofia ter-se-á a infinita possibilidade de serem entendidos os diversos termos
com uma gama infinita de possibilidades interpretativas. É aqui se insere o mito, pois para
Vattimo,
Deste modo, na primeira parte da citação é apresentada a uma espécie de “soberba” por parte
da hermenêutica pura quando se esquece de seu caráter fundante, pelo menos de acordo com o
pensamento de Gianni Vattimo. Afinal, por que isso acontece?
O que parece ficar claro no pensamento do filósofo de Turim é que apesar da tradição
hermenêutica considerar também válidos outras formas de discurso, incluindo aí o discurso,
por assim dizer, mítico, tal tradição ainda possui a tendência a achar que o discurso através do
logos ainda possuiria um primado em relação aos outros (estando aí dentro de outros o
próprio discurso mítico).
Por outro lado, e abrindo o leque de possibilidades, a segunda parte da citação mostra outro
viés. O final da primeira parte da citação diz que “deve ainda nascer um mito ou uma religião
que teorize a possibilidade da filosofia a seu lado e com iguais direitos”. Isto é esclarecido na
segunda parte da citação. O cristianismo é esta religião, pelo menos é o que fica apontado,
indicado como anúncio, pois a hermenêutica possui uma dívida em relação ao cristianismo, já
que é herdeira, na concepção de Vattimo, do mito cristão da kénosis. Com isso, o mito da
163
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 82.
87
Deste modo, ocorre também a liberação da pluralidade dos mitos abrindo aqui uma
perspectiva sociológica na qual o cristianismo não se veria mais na posição de impor a sua
verdade como se fosse única e de caráter universal. O cristianismo, com o mito da encarnação
de Cristo, e este mito tornando possível a “manifestação do divino em símbolos” tornaria
possível, de modo hermenêutico a compreensão de mitos religiosos diferenciados que
estariam também presentes em outras culturas que não apenas a européia. Para Vattimo,
É, então, o mito da encarnação de Jesus que possibilitou o atual diálogo inter-religioso, pois
este tal mito agrega em si a liberdade de interpretar a Antiga Lei ao seu próprio modo e o
164
Aqui Vattimo diz seguir de perto o pensamento de Luigi Pareyson. Faz-se aqui o alerta de que este trabalho
não possui o interesse de aprofundar a filosofia de Pareyson. Alude-se apenas este fato para que fique registrado
que Vattimo menciona que toma a noção da “filosofia como hermenêutica da experiência religiosa” de Pareyson.
165
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 82.
166
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 82.
167
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 83.
88
O niilismo vattimiano deve ser entendido sob dois prismas: o heideggeriano e o nietzscheano.
Vattimo não vê uma distinção entre o que Heidegger e Nietzsche entendem por niilismo.
Para Vattimo, “em Nietzsche, todo o processo do niilismo pode ser resumido na morte de
Deus, ou, também, na ‘desvalorização dos valores supremos’. Para Heidegger, o ser se
aniquila na medida em que se transforma completamente no valor”170. Segundo o próprio
Vattimo alerta, o que Nietzsche entende por morte de Deus e “desvalorização dos valores
supremos” é algo que se dá um tanto quanto de modo definitivo e acabado e, por outro lado,
168
Na Carta aos Colossenses (Col 1,24), São Paulo diz: “Agora me alegro nos sofrimentos suportados por vós. O
que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo que é a Igreja”. Lembre-se aqui que na
edição da Bíblia que foi consultada para a citação acima há uma nota de rodapé explicativa deste ponto a que
mencionamos. A nota acrescenta: “Tribulações: aquelas que Cristo sofreu ou, também, aquelas que ele ainda
hoje sofre na pessoa dos cristãos que são os seus membros”, isto é, aqueles que estão configurados a Ele. Não se
pode esquecer, também, que tal edição das Sagradas Escrituras possui o que os textos “oficiais” da Igreja
Católica chamam de Imprimatur, que é uma autorização de um Bispo (neste caso foi um cardeal). Bíblia
Sagrada. P. 1508.
169
Esta expressão liberação da religião não aparece nas obras de Vattimo, pelos menos nas consultadas para este
trabalho. No entanto, é isto o que ele dá a entender: que há uma liberação da religião.
170
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 4.
89
em Heidegger isto ainda apontaria para uma ulterioridade desta posição nitzscheana, isto é,
Heidegger teria uma posição ultrametafísica. Como conciliar as duas posições, então?
Não se deve esquecer aqui que o niilismo em Nietzsche estaria desprovido de valores
supremos, o que não significa que não houvesse valores, pois os valores que desapareceriam
se resumiriam a um apenas, a saber: Deus. Deus enquanto valor supremo desapareceria.
Tudo isso, porém, longe de tirar sentido da noção de valor, como Heidegger bem
viu, liberta-a na sua potencialidade vertiginosa: somente onde não há instância
terminal e “interruptiva”, bloqueadora, do valor supremo-Deus, os valores podem
se manifestar em sua verdadeira natureza, que é a convertibilidade, e a
transformabilidade/processualidade indefinida171.
Isto, então, significa dizer que os valores não seriam vistos mais de modo estático nas
situações da vida, mas num processo indefinido de transmutação. Além disso, sem esquecer
que Vattimo parte do pressuposto de que na filosofia da cultura de Nietzsche “a cultura está
172
toda nas transformações” , valeria aqui não mais a lógica tradicional da filosofia originada
na Grécia, mas tudo se reduziria à retórica. O que significa isto? Significa que as questões a
serem resolvidas não estariam mais regidas pela logicidade do fato em si mesmo, mas estaria
dependente do modo como a interpretação do fato é apresentada. Não é mais o fato em si
mesmo cultural, por exemplo, que determinaria o modo como se compara uma cultura com
outra, mas as próprias culturas se justificariam a partir do que elas interpretam das outras
culturas e de si mesmas.
Isto estaria em perfeito acordo com o modo heideggeriano de entender o niilismo, pois o valor
para Heidegger, na concepção de Vattimo, seria entendido como valor de troca, ou seja, um
valor que pode “funcionar” agora de um determinado modo e em seguida teria outra
“funcionalidade”, já que o ser em si mesmo guardaria em si algo que não foi mostrado
previamente e, como matriz de possibilidades, poderia num outro momento de seu dar-se
manifestar outro tipo de posição diferente da anterior. “O niilismo não é o ser estar em poder
do sujeito, mas o ser se dissolver completamente no discorrer do valor, nas transformações
indefinidas da equivalência universal”173. Para Vattimo, isto ainda toma mais força quando
171
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 6.
172
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 6.
173
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 6.
90
justificado a partir do Crepúsculo dos Ídolos, pois a fábula que o mundo verdadeiro se torna
se deve ao fato de não haver mais um modo absoluto de encontrar na realidade um
fundamento último que dê conta de responder como ela é de modo definitivo. Deste modo,
culturalmente não haveria primado de nenhuma cultura sobre alguma outra qualquer. Para
Vattimo, se Nietzsche acrescenta que,
A fábula não mais o é porque não há verdade alguma que a desvende como
aparência e ilusão, a noção de fábula não perde em absoluto o seu sentido. De fato,
ela proíbe atribuir às aparências que a compõem a força coercitiva que pertencia ao
ontos on metafísico174.
Assim, já se pode ir apontando para o que se disse anteriormente sobre o fato de que a
liberação da religião tem como um de seus fundamentos o niilismo, pelo menos como
Vattimo o entende. O niilismo daria margem para entender que o cristianismo que, como foi
visto, tornou possível toda a tradição filosófica ocidental que culminou com a ida para o
interior inicialmente e a posterior formulação do próprio afastamento de Deus, ou seja, o
cristianismo traz em seu interior não apenas a sua “ruína”, pois “Deus ‘morre’, vitimado pela
religiosidade, pela vontade de verdade que seus fiéis sempre cultivaram e que agora os leva a
reconhecer ele próprio como um erro de que agora podem dispensar-se”175 (este niilismo
acaba por propor algo novo que não mais uma visão tipo a da filosofia crítica que ainda busca
fundamentação metafísica para os seus pressupostos e é por isso que Vattimo propõe aqui o
início da pós-modernidade, neste momento em que há o anúncio do fim definitivo da
metafísica somado a uma possibilidade diferenciada que aparece na “filosofia das
liberações”), mas também o modo de seu reerguimento, pois o niilismo que é “a
‘desrealização’ do mundo pode não caminhar apenas na direção da rigidez do imaginário, do
estabelecimento de novos ‘valores supremos’, mas dirigir-se, ao contrário, para a mobilidade
do simbólico”176. É esta mobilidade do simbólico que permitirá o retorno do cristianismo, mas
ao mesmo tempo em que retorna, não retorna na sua modalidade metafísica e sim em sua
modalidade dessacralizada. Aqui, deste modo, tem-se o cristianismo não como uma religião
que apresenta uma interpretação final para o evento do dar-se do ser, não como uma religião
que no evento do dar-se do ser apresenta-se de modo finalizado como detentora de uma
174
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 10.
175
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 173.
176
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo:
Martins Fontes, 1996. P. 14.
91
explicação a qual todos devem seguir e aceitar como uma metafísica definida. Tem-se o
cristianismo como uma matriz de diversas possibilidades principalmente por que na sua
condição inicial de apresentação através da kénosis, da encarnação, do enfraquecimento das
estruturas rígidas que estariam em Deus, faz com que se entenda que uma tradição de
pensamento (neste caso a tradição judaica) se rachasse e se transformasse em uma perspectiva
mais interiorizada e valorizadora da diferença, isto é, valorizadora de que se pode falar não
mais do ser como fundamento, mas uma visada na qual se deva saltar no abismo do ser que,
ao contrário do ente, é uma matriz de possibilidades.
o que o hermenêutico oferece como “prova” da própria teoria é uma história, seja
no sentido de res gestae, seja no sentido da história rerum gestarum, e talvez
também, apresenta como uma interpretação (que pretende validade até apresentar-
se uma interpretação concorrente que a desminta) e não uma descrição objetiva de
fatos177.
Deste modo, para ser considerada como verdade, a tradição hermenêutica deve justamente ser
enquadrada dentro de uma Tradição. Coloca-se aqui Tradição com inicial maiúscula para
enfatizar que a interpretação não é uma súbita tomada de decisão momentânea em prol de um
ponto que se coloca em debate. Esta Tradição é vista como uma manifestação, isto é, um
momento através do qual se percebe o vestígio de um destino-envio, isto é, de uma
transmissão178.
Esta transmissão, o destino-envio, não pode ser entendida, segundo o filósofo de Turim, ao
modo de uma filosofia negativa, na qual o ser se “esconde” em sua matriz de manifestações.
Vattimo, no entanto, alinha-se não a esta posição chamada por ele de direita heideggeriana,
mas à esquerda.
177
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 22.
178
VATTIMO, Gianni. As aventuras da diferença: o que significa pensar depois de Heidegger e Nietzsche.
Lisboa: Edições 70, 1988, p. 181.
92
Deste modo, com a diferença ontológica, a hermenêutica propõe não a ficar com o caráter
negativo e, até chamado por Vattimo, “místico”. Acerca do ser, é papel fundamental da
hermenêutica falar, pois se não fala, esta cairá naquilo que a metafísica objetivista já fazia e
justamente o que ela quer evitar. Em uma passagem de Para Além da Interpretação, Vattimo
diz que
Atente-se principalmente para o final da citação acima. Quando Vattimo afirma que é
chegado o momento de interpretar o mundo, está propondo a filosofia como uma filosofia do
ser que é dito dentro da perspectiva manifesta do Dasein que já está imerso na linguagem.
179
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 26.
180
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 27.
181
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 147.
93
182
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 62.
94
ligada à modernidade e, de modo mais distante, mas ainda assim ligada, à tradição religiosa
ocidental. Em seu caráter de “esclarecimento”, o niilismo toma consciência de sua
historicidade, de pertença a uma tradição e percebe-se como um destino-envio que se dá no
evento do manifestar-se do ser como vestígio desta tradição religiosa ocidental. Mas afinal, de
que modo Vattimo mostra a passagem da “dependência” da hermenêutica da tradição
religiosa ocidental? Em outros termos seria perguntar: o que torna a hermenêutica pós-
moderna dependente da tradição religiosa ocidental?
Para Vattimo,
O que trata de reconhecer aqui pode se formular nos seguintes termos. Ao contrário
da ideia de Dilthey (mas largamente espalhada nas concepções iluministas da
modernidade) de que a hermenêutica se desenvolveu, em sua feição de filosofia
‘geral’, emancipando-se dos laços dogmáticos que dominavam sua versão de
técnica a serviço da exegese bíblica, trata-se de reconhecer que ela só pode
reencontrar o sentido autêntico de uma ontologia niilista, recuperando o nexo
substancial de proveniência que a liga com a tradição religiosa hebraico-cristã,
enquanto tradição constitutiva do Ocidente183.
Vattimo coloca isto ainda de outro modo dizendo que não é apenas porque a tradição
filosófica do Ocidente segue a, assim chamada, religião do livro que necessita da
interpretação que será uma tradição hermenêutica. A tradição ocidental é muito mais uma
matriz da hermenêutica por conta do evento da kénosis, que o pensador identifica como
enfraquecimento.
183
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. P. 75.
95
Gioacchino da Fiore com as três fases da história relacionadas à manifestação de cada uma
das pessoas da Santíssima Trindade. Como o mencionado anteriormente, a terceira fase, a do
Espírito é aquela que é marcada pela total diluição das estruturas rígidas que havia nas fases
iniciais. Note-se que a fase da encarnação, isto é, a fase do filho ainda não é a fase definitiva.
Reconhece-se que tal fase já é o primeiro anúncio do enfraquecimento das estruturas rígidas
da metafísica do ser, mas não a definitiva. Como definição mesmo apenas a terceira. Isto
significa que a kénosis permite que não haja mais distinção entre a história sagrada e a história
profana, pois já que Deus está encarnado, a história da salvação estará unida à dos homens. A
partir de então, toda a universalidade estará unida à particularidade e deste modo será revelada
por ela. Com isso, a secularização, isto é, a temporalização, torna-se uma nota da
eventualidade do ser. A semelhança que a kénosis guarda com a hermenêutica deste modo fica
evidenciada pelo fato desta ser uma retomada como destino e realização dos desígnios já
anunciados na encarnação do Deus cristão.
Não se pode esquecer aqui que em todo o projeto da modernidade havia um anúncio do
término da religião. Este projeto na concepção vattimiana não vinga pelos motivos
apresentados, já que a religião possui na sua essência (Wesen) a perspectiva de seu próprio
retorno. Vattimo, em Acreditar em Acreditar, diz que “não existem mais razões filosóficas
plausíveis e fortes para ser ateu ou para recusar a religião”184, pois aquilo que possivelmente
justificaria o ateísmo ou a recusa da religião, por exemplo, uma visão cientificista moderna,
também estaria baseado justamente em uma razão forte, onde forte deve ser entendido como
uma fundamentação metafísica. Deste modo, a razão para se ser ateu ou negar a religião
estaria também pautada em uma postura que se basearia numa estabilidade fechada de se
entender a eventualidade do dar-se do ser, do mesmo modo que a justificativa metafísica para
a existência de Deus e a afirmação da religião. Assim, o que ocorreu para que não existam
mais razões plausíveis e fortes para ser ateu ou para recusar a religião foi o mesmo que
aconteceu com a dissolução da afirmação de Deus e a negação da religião e, como se viu, tudo
isto graças à morte de Deus. Com isso, a morte de Deus é que proporciona a possibilidade de
se crer em Deus185 e falar de religião novamente. Isto não significa, porém, que a religião
deva apenas ser tolerada como uma voz a mais a falar no mundo pós-moderno como se quem
estivesse permitindo que ela falasse somente a deixasse por um piedoso favor. A religião
184
VATTIMO, Gianni. Acreditar em Acreditar. Tradução de Elsa Castro Neves. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.
P. 17.
185
Lembre-se aqui que em Acreditar em Acreditar (p. 9) Vattimo, recordando suas experiências pessoais, diz
que é dentro do cenário de secularização que se pode falar de um núcleo sagrado novamente.
96
possui uma voz a falar no mundo porque faz parte do discurso de afirmar-se da hermenêutica
permitir que a religião se coloque no mundo e diga a que veio neste mundo secularizado.
Do ponto de vista sociológico não é difícil de perceber o retorno da religião. No que diz
respeito ao entendimento da reflexão de “senso comum”, a religião volta mais como uma
necessidade de uma época na qual há, segundo Vattimo, uma sensação de “risco global”, que
originalmente estava relacionado à catástrofe nuclear e agora, de modo um pouco mais
midiático, aos problemas relacionados à ecologia do mundo natural, isto é, ao problema do
aquecimento global relacionado, por sua vez, ao crescimento do consumismo que
automaticamente produz um tédio no homem. Na filosofia, a volta à religião está ligada,
segundo Pecoraro,
há queda dos interditos filosóficos contra a religião e coincide com a crise dos
grandes sistemas especulativos da modernidade e, pois, com o “desaparecimento de
qualquer fundacionalismo”, que é exatamente o que tem provocado o medo e a
insegurança à qual a “consciência comum” tenta responder no seu retorno à
religião186.
Deste modo, é em uma época como a atual que se pode viver e experimentar o retorno da
religião. A razão pela qual isto se explica é a seguinte: a época atual é a época da
consequência da morte de Deus; se se toma o niilismo como consequência desta morte de
Deus, todas as possibilidades caóticas de concretude da realidade serão a saída (não no
sentido metafísico, obviamente), como opção, desta época.
Em sua assumida posição de esquerda heideggeriana, Vattimo espera que o ser volte a falar,
principalmente após a técnica ter esgotado as possibilidades do ser entendido ao modo da
186
PECORARO, Rossano. Niilismo e (pós)modernidade: introdução ao “pensamento fraco” de Gianni Vattimo.
Pósfácio de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora PUC-Rio/Edições Loyola, 2005, 119.
187
VATTIMO, Gianni. A Religião: O seminário de Capri. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2000, p. 95.
97
metafísica da tradição filosófica ocidental. Para Vattimo existem dois sentidos de positividade
no falar da religião na época atual:
Esta positividade é pensada segundo Vattimo como sendo afinal o mesmo que evento. Deste
modo, é como envio-destino que a religião acaba se realizando como evento do dar-se do ser.
E como foi visto, este evento ocorre graças à quebra da estrutura metafísica original ocorrida
pela kénosis.
Neste sentido, Vattimo não acha que demos estes passos para trás. Considera sim que é
apenas na perspectiva de que somos herdeiros do cristianismo é que podemos fazer este
ultrapassamento das estruturas rígidas da metafísica. É a doutrina cristã da encarnação, isto é,
a kénosis que permite quebrar a estrutura do que se pode chamar de igualdade matemática
entre aquilo que se enuncia e aquilo que se observa – fixo e dependente, por exemplo de
exemplares eternos – no real. Assim, a própria expressão encarnação de Deus não serve para
entender apenas de modo mítico o objetivo da filosofia como sendo algo simplesmente que
pode ser dito e aceito, mas a encarnação é mais um abrir-se para uma realidade não como
aquela matemática na qual ocorre o sentido da verdade como a tradição até então entendeu. A
encarnação abre espaço não para o que viria em seguida (como a filosofia medieval e
moderna, apesar destas conterem elementos deste envio proposto por ela), obviamente. A
encarnação abriria espaço para a própria filosofia pós-moderna, para o niilismo que se afirma
188
VATTIMO, Gianni. A Religião: O seminário de Capri. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2000, p. 97.
189
VATTIMO, Gianni. A Religião: O seminário de Capri. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2000, p. 105.
98
enquanto uma hermenêutica após a morte de Deus e o fim da metafísica. Vattimo confirma
isso com a seguinte passagem:
Deus encarna, isto é, revela-se, num primeiro momento, na anunciação bíblica que,
no final, “dá lugar” ao pensamento pós-metafísico da eventualidade do ser. Só na
medida em que reencontra a própria proveniência neotestamentária é que esse
pensamento pós-metafísico pode se configurar como um pensamento da
eventualidade do ser, não reduzido à pura aceitação do existente, ao puro
relativismo histórico e cultural190.
Deste modo, viam rechaçadas todas aquelas perspectivas que acabam por considerar a religião
mais uma mera opinião a ser levada em consideração no discurso. É a kénosis que permitirá o
enfraquecimento mesmo das estruturas fortes da metafísica na medida em que anuncia o seu
fim, ao mesmo tempo em que permite que todo o discurso religioso seja passível de entrar em
todo o debate que há na filosofia. Em relação ao tema religião, pode-se mesmo dizer que não
há um retorno, pois em todo o percurso do discurso da filosofia ocidental desde o advento do
cristianismo há inserida a “semente” impulsionadora da religião que moveria toda a filosofia
tornando-a mais livre.
Deste modo, a religião que retorna, para Vattimo, é aquela que se mostra não como
desaparecida, por conta das críticas modernas, mas aquela que apresenta dentro de si – e aí é
que se justifica o título do capítulo de Vattimo no seminário A Religião – o vestígio do
vestígio. Este vestígio de algo que já é vestígio (onde este segundo vestígio, na ordem
histórica, seria o primeiro e relacionado à ida para a interioridade humana, por exemplo, em
Santo Agostinho) aponta para o fato de que a religião no mundo pós-moderno aparece não
com o enrijecimento proporcionado pela metafísica através do qual tudo ficaria justificado de
modo a superar metafisicamente todo o “erro da modernidade”, como se a modernidade
tivesse tomado seu ponto de partida equivocadamente e assim chegado à conclusão de que a
religião não tem sua justificativa do ponto de vista filosófico (aqui metafísico). A religião
191
sofreria, segundo Vattimo, de uma “longa convalescência” , isto é, ela sofre de um longo
processo de enfraquecimento que já estaria proposto em seu interior a partir do momento que
ela inicia como kénosis. Assim, Deus, ao encarnar-se e ser o critério, não metafísico, de
interpretação bíblica, abre a possibilidade da interiorização através da Idade do Espírito que
será um período no qual haverá uma dissolução das estruturas rígidas de se interpretar o
mundo. É esta esteira, iniciada no Novo Testamento, que se tem a abertura para o pensamento
190
VATTIMO, Gianni. A Religião: O seminário de Capri. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2000, p. 106.
191
VATTIMO, Gianni. A Religião: O seminário de Capri. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2000, p. 91.
99
Conclusão
O cristianismo deixa marcas profundas onde quer que ele se apresente. Na vida de Vattimo,
este fenômeno não se dá de modo diferenciado. Na Introdução de sua obra Acreditar em
Acreditar – Credere di Credere, em italiano, Vattimo mostra que a palavra crer pode possuir
dois significados. O primeiro significado seria o de ter uma fé, uma convicção, uma certeza
acerca de algo. O segundo significado é aquele também utilizado em português muito
semelhante ao fato de quando se supõe algo a partir de algumas evidências já apresentadas
para a vivência. Para este segundo caso poder-se-ia dizer que o Crer seria muito semelhante à
frase: “Eu acho que vai chover”. Este “Eu acho” poderia muito bem ser substituído pelo “Eu
creio”: “Eu creio que vai chover”. Esta suposição estaria baseada em uma evidência da
realidade, por exemplo, o céu estar com nuvens carregadas. Assim, segundo Vattimo, no
título do livro, o primeiro Credere estaria mais relacionado ao segundo sentido de Crer (seria
o “eu acho”) e o segundo Credere estaria mais relacionado ao primeiro sentido (tenho fé em
algo). Mas por qual razão foram feitas estas observações? Elas foram feitas para entender o
itinerário do pensamento do filósofo de Turim. E para entender este itinerário, que culminará
na proposta do cristianismo com uma vocação hermenêutica, viu-se quais os pressupostos
filosóficos que o levaram a tal ponto na perspectiva moderna e, depois disto, a pós-moderna.
Para Vattimo, Nietzsche e Heidegger foram os filósofos que melhor fizeram uma crítica à
modernidade, coisa que já estava feita de modo um tanto quanto diluído na sua formação com
a leitura de Jacques Maritain. Segundo Vattimo, a morte de Deus não pretende significar que
Nietzsche esteja querendo dizer que Deus não existe, pois se Nietzsche assim o fizesse ainda
estaria dialogando dentro da perspectiva metafísica. Esta morte de Deus quer apenas significar
que na realidade não existe um fundamento último e metafísico nas coisas. No segundo caso,
Vattimo diz que Heidegger, em sua polêmica em torno do Ser da tradição filosófica ocidental,
não pode promulgar o Ser como possuidor de uma estrutura diversa da que a tradição propôs,
pois se assim o fizesse estaria ainda o colocando (o ser) dentro de outra estrutura metafísica
da qual ele mesmo quer criticar. Vale lembrar que as duas perspectivas supracitadas estão no
nível do desenvolvimento das ideias filosóficas. Além delas, existem os desdobramentos
sociológicos apontados pelo pensador italiano como o fato de que a Europa se considerava o
centro norteador do mundo civilizado. Como ele propõe, não se pode considerar outras
culturas simplesmente como se fossem “primitivas”. Deste modo, com o desenvolvimento da
101
antropologia cultural não existiria um curso único da história que seria guiado pelo
eurocentrismo, mas ao contrário, teríamos histórias diversas das várias culturas.
Com isto, o primeiro Acreditar (Credere), com todas as perspectivas encontradas no modo de
se interpretar a realidade, tais como os aspectos históricos, existenciais, está mais para o
primeiro citado, pois este acreditar estaria baseado numa visão em que o sujeito que vive a
dimensão da fé não negaria que é “necessário” que se deva partir de um olhar “crente” para a
hermenêutica dos fatos.
Aliado a isso, Heidegger, em sua Kehre, também colaborou para enfatizar o êxito niilista da
ciência técnica moderna e, como consequência, acabamos caindo, na expressão de Vattimo,
em uma Babel no fim da modernidade que culminaria no fim das metanarrativas que
pretendiam formar, a partir de uma visão unitária e objetiva do ser, a estrutura toda da
realidade. Com o processo de fragmentação do pensamento e da possibilidade encontrada em
mais de um ponto de partida do pensamento não seria mais possível um único pensamento
totalizante que abrangesse todas as questões e que todos se guiassem pelo mesmo.
Não se pode esquecer que toda esta proposta se encaminha para a noção de secularização.
Esta secularização faz parte da história da religiosidade de todo o Ocidente. Na pós-metafísica
mesmo, verificamos que o próprio fato de Deus ter se encarnado na pessoa de Jesus Cristo
mostrou que aquilo que parecia infinito passa a habitar a finitude da existência passando pelo
processo de dissolução da sua transcendência.
Neste ponto, Vattimo insere Gioacchino da Fiore, aquele que será o anunciador da “terceira
idade” da salvação, também chamada de Idade do Espírito. Para ele, a salvação ainda não foi
levada a cabo, é um processo que vai além de Jesus Cristo. Assim, o fato de estarmos na Idade
do Espírito deve fazer com que interpretemos a Bíblia não mais a partir de uma visão literal.
Cada Idade corresponderia à manifestação de cada uma das pessoas da Santíssima Trindade: a
primeira à manifestação de Deus Pai, onde viveríamos sob a lei; a segunda a do Deus Filho,
onde estaríamos vivendo sob a luz da graça; e a terceira a do Espírito Santo, onde viveremos
um estado de graça ainda mais perfeito. Vattimo volta a colocar a sua intenção principal:
mostrar que o elo existente entre a secularização e o fim da metafísica é o que deve ser
buscado na perspectiva de Gioacchino, pois o modo como a secularização se dá na sociedade
moderna é também apontado pelo sentido do fim da metafísica, associado à descoberta do ser
como evento e destino do enfraquecimento.
Deste modo, não se pode considerar a secularização como um fenômeno que banaliza o
sagrado (na visão destes pensadores, pelo menos), mas como um processo de reinauguração
da religião, onde esta pode respirar um ar que contenha mais oxigênio, pois no ar anterior este
elemento já havia sido todo consumido. Assim, todos estes pontos de vista, ao final,
corroborariam o modo como se pode entender a “morte de Deus” para Nietzsche, como a
possibilidade de se reabilitar a questão de Deus não mais ao modo do Deus bíblico, mas um
que abra às diversas perspectivas interpretativas não mais objetivantes – entenda-se
metafísica.
103
Aliado a isto, Vattimo propõe mais uma vez o seu entendimento de secularização: este
processo deve ser entendido não como um retorno a uma visão previamente estabelecida
como uma neocosmoteovisão de mundo, mas como partindo do que São Paulo chama de
kénosis, pois haveria aqui a dissolução do sacro e o fim da transcendência o que, por sua vez,
aponta para a união, como vimos, das perspectivas heideggerianas com as de René Girard, em
que há a inversão da lógica vitimária.
Apesar disso, é importante lembrar que a situação anterior à modernidade chegou mesmo a
ser anunciada como diferente, já que Vattimo mostra a influência da visão religiosa na cultura
de um modo geral, ao dizer que Max Weber propõe a centralidade da Bíblia como algo
inegável até fins da Idade Média, o que é até clarificado através de um exemplo onde se
mostra que a Bíblia, representante da religião enquanto influenciadora da vida social, torna-se
mesmo a ser a juíza de questões relacionadas ao heliocentrismo, primeiramente, e
posteriormente ao evolucionismo. Esta visão da Bíblia como Juíza acaba se diluindo na
modernidade com a pretensão do iluminismo de racionalização do real. No início da
contemporaneidade, passamos a viver uma mescla entre estas duas perspectivas. Assim, a
192
modernidade seria mais um, como chama Vattimo, “‘episódio’ da história da salvação.”
Deste modo, culturalmente, Vattimo mostra que é muito difícil considerar a evolução das
ideias, por exemplo, políticas de democracia sem a visão de fraternidade do cristianismo,
onde todos os homens são entendidos como irmãos, pois não haveria um ponto privilegiado
de olhar para a eventualidade do ser. Isto faz para justificar o enfraquecimento do pensamento
“duro” que é o que característica a tendência metafísica conseqüente do mundo antigo e
medieval, mas também presente na visão de mundo moderna. Deste modo, as propostas
filosóficas não se apresentam mais como uma descrição nem de objetos exteriores da
realidade, mas se tornariam uma espécie de propostas plausíveis e “concluídas” a partir de
pontos nos quais uma comunidade de hermeneutas tomaria como ponto inicial de
investigação. Este seria, portanto, o sentido do enfraquecimento do pensamento da filosofia.
Para Vattimo, deste modo, não é que exista uma relação substancial entre uma expressão e
outra, mas apenas o evocar de determinados pontos de uma que seriam constitutivos, em
algum nível, no outro. Existem dois pontos a serem considerados em relação à história da
salvação e história da interpretação: o primeiro é o meramente filosófico, onde a ligação
192
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
61
104
estaria diretamente relacionada à interpretação da salvação fazer sentido racional para o fiel,
pois, caso contrário, isto ficaria em desacordo com a dinâmica do divino; o segundo sentido é
aquele que, tomando a liberdade pode-se chamar de religioso, daria conta de explicar no
cristianismo que o Antigo Testamento deve ser interpretado à luz do Novo, isto é, Cristo é
aquele que faz a ligação da interpretação de um momento com o outro (lembrar do cântico
medieval do Tantum Ergo Sacramentum193). No entanto, a salvação apesar de ser, na
linguagem cristã, completa e o guia hermenêutico para “iluminar” o Antigo Testamento,
parece não se dar de modo fechado no evento crístico, mesmo porque, ainda ocorre outro
evento importantíssimo na história da salvação e que contribuirá no desenvolvimento da
hermenêutica: Pentecostes, isto é, o tempo do Espírito.
Durante este trabalho, ainda dentro desta delimitação da religião que se fala, e apesar de
utilizar a expressão civilização do livro e identificá-la com a religião do livro, Vattimo acaba
mostrando que a tendência do Ocidente, entendido também como herdeiro da cultura greco-
romana, é característica do livro. Veja o exemplo da tradição cultural helênica onde estão
presentes a leitura de Homero e Hesíodo. Porém, qual é a religião que Vattimo se refere?
Vattimo deixa bem claro a que religião o tempo todo ele está falando: o Cristianismo, pois ele
sugere que a interpretação aparece como um efeito da concepção especificamente cristã da
história da salvação e da revelação.
193
Daí, outra questão que fica aberta é se esta interpretação que se propõe o cristianismo inicial
se verifica. A tese de Vattimo é a de que não se pode fazer um apanhado substancial da
situação que conduz até o ponto atual, mas apenas interpretar a nossa situação à luz, também,
da interpretação, que seria a nossa condição, até porque o fim da metafísica em Heidegger
coincidiria, na visão de Vattimo, com a continuidade do evento crístico.
Baseado em Heidegger, Vattimo, como foi visto, chega mesmo a enunciar que a teoria da
modernidade não passa de uma ontologia hermenêutica. Assim, a secularização não seria um
processo de afastamento da religião. A secularização seria uma realização hermenêutica
daquilo que a religião apresenta em sua “vocação essencial”, isto é, o esclarecimento de
determinados pontos da constituição interpretativa da sua morada mais natural, em termos
substantivos (apenas para entendimento), de seus fatos. Não é qualquer secularização que é
boa, nem qualquer interpretação, mas somente aquela que é válida para uma comunidade de
intérpretes.
Deste modo, Vattimo faz uma dura crítica ao catolicismo romano por querer voltar ao modo
de olhar o mundo tomando-o como substancial, ou seja, dentro de uma cosmovisão metafísica
encontrando leis universais e considerando apenas uma única e exclusiva comunidade de
intérpretes. Vattimo diz que esta visão fecha-se a novas e diferentes chaves de interpretação,
pois considera apenas uma única via interpretativa, se é que assim podemos dizer, do dado
cultural a ser analisado.
Assim, viu-se que a relação entre Ocidente e Cristandade é a de que uma expressão pode
significar a outra e não de uma expressão excluir a outra, pois, neste segundo caso, há o
neofundamentalismo católico que propõe a exclusão, isto é, a cristandade e o Ocidente se
excluiriam mutuamente. Por outro lado, o cristianismo e Ocidente se dariam em uma relação
de pertença, como se o Ocidente se mantivesse como destino/envio em relação à Cristandade.
Como consequência, há na concepção de Vattimo uma distinção entre uma visão que entende
o Ocidente como um sinônimo de Cristandade e outra que entende que há uma diferença
radical entre o Ocidente e a Cristandade (entendidos como aut aut). Neste segundo caso, a
passagem da Cristandade para o Ocidente seria algo estanque. Vattimo parece tomar a
primeira solução, isto é, o Ocidente e a Cristandade seriam sinônimos. Deste modo,
poderíamos especular acerca da mentalidade dos “aut aut”: falhariam na análise de dizer que
é estanque a passagem da Cristandade para o Ocidente por não perceberem que talvez o que
106
entendem por Ocidente não tenha absorvido corretamente determinados aspectos do que a
Cristandade possivelmente teria dito.
Com isso, Vattimo propõe uma tese de que a sinonímia entre o Ocidente e a Cristandade pode
ser entendida como a secularização que se revela como uma consequência, como uma
vocação da Cristandade, um envio/destino. O aut aut é abrangido pela tese da secularização,
pois esta compreende em seu caráter hermenêutico as diversas teses apresentadas.
E do ponto de vista sociológico, isto implicaria em uma morte da religião? Existem causas
sociológicas amplas para mostrar que a Igreja Católica, isto é, a visão religiosa do mundo não
saiu do cenário público. Um exemplo, na concepção de Vattimo é o fato do pontífice romano
ter estado em voga de modo midiático. Assim, não podemos considerar nossa época como
pós-cristã ou pós-religiosa.
194
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
101.
195
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
101.
196
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
106.
107
lentamente mostrando a não necessidade de Deus nos sistemas filosóficos, o que culminaria
com a morte de Deus em Nietzsche e num velamento da filosofia acerca de Deus. É dentro
desta perspectiva que a morte de Deus anuncia o fim das metanarrativas e, por outro lado,
coloca o nascimento de muitos deuses, pois é o Deus moral que é negado, o Deus que
fundamenta toda a realidade, o Deus motor imóvel de Aristóteles.
Então, em que cenário volta a religião? A religião tem o seu retorno em uma perspectiva de
dissolução da metafísica. A religião que volta neste cenário não é a mesma da perspectiva
dogmática e metafísica. A partir disso, Vattimo faz duras críticas ao catolicismo romano pelo
fato dele manter a sua visão incompatível com o fim do pensamento metafísico inaugurado
pelos gregos.
A partir do que foi dito acima, pode-se perguntar de que modo o cristianismo, na realidade
sociológica, se depararia com os conflitos existentes na Europa? Existem, segundo Vattimo,
197
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
112.
108
duas vias possíveis para esta resposta. A primeira é entender o cristianismo como fonte
apaziguadora dos conflitos existentes na Europa. A segunda, ao contrário da primeira, é de
entender o cristianismo não só como fonte de conflitos, mas como fonte fomentadora dos
mesmos.
Para Vattimo, como vimos, tomando por base a antropologia cultural, não existe mais a ideia
de que a cultura europeia é o ápice do desenvolvimento das culturas e o cristianismo não é um
ponto de libertação religiosa das diversas tradições de outros lugares e culturas. O liberalismo
ao colocar a religião dentro do foro íntimo não levou em consideração as diferenças culturais
locais e pontuais que poderiam ser fontes de celeumas, exemplo disso Vattimo cita o caso da
proibição do chador nas escolas francesas.
Qual seria a situação atual do cristianismo para que ele se entenda e possa dialogar com as
outras perspectivas e visões?
Para que o cristianismo possa se legitimar, no entanto, é preciso que, seguindo a tradição
hermenêutica contemporânea, ele se coloque como ponto incluído no debate e se reconheça
em iguais condições em relação a seus interlocutores. Neste sentido, o cristianismo não pode
esquecer que na sua base originária há uma tendência ao universalismo (lembremos do
anúncio explícito de Jesus que envia seus apóstolos para pregarem a todas as criaturas) e uma
predisposição ao debate no espaço leigo. Neste sentido, as mentalidades comunitaristas e
fundamentalistas tendem a tornar-se fanatismo se não se enquadram dentro de uma visão
enfraquecida e diluída dentro da situação social.
Com isso, estamos agora mais preparados para perceber a vocação hermenêutica do
cristianismo somando, ao que foi visto acima, a análise do que é a verdade, já que partindo de
109
uma sentença, atribuída a Aristóteles (amicus Plato sed magis amica veritas198), Vattimo diz
que nesta consideração está implícita a diferença entre se ter uma preferência por alguém ou
por uma verdade objetivamente colocada. Após isto, podemos passar rapidamente a
correlacionar este dito antigo à “morte de Deus” em Nietzsche. A morte de Deus em
Nietzsche, segundo Vattimo, pretende que o sentido da filosofia no mundo ocidental é o de
findar com o Deus moral dos filósofos. Com Nietzsche não temos mais a possibilidade de
escolha entre a verdade e um amigo, por exemplo. Isto ocorre pelo fato de não mais haver a
verdade, apenas o amigo e o que nele se encerra.
Mas qual a relação de ligação entre a morte de Cristo com a “morte de Deus” em Nietzsche?
Vattimo acredita poder traçar a ligação entre um evento e outro. Aqui, há dois tipos iniciais de
metafísica a serem considerados: a metafísica antiga e a moderna, sendo que esta se dissolve
na crítica kantiana e em seus desenvolvimentos. Qual seria a diferença entre a metafísica dos
antigos e a que culmina em Kant? Há um elemento diferenciador que é colocado pelo
cristianismo no seio dos estudos metafísicos. O fato de se voltar para a interioridade humana.
Caracterizando Platão como o representante por excelência da metafísica, pois este considera
o ser como algo objetivado em um hiperurânio transcendente, isto é, teríamos em Platão o
cume da objetividade e da verdade não nas coisas da realidade material natural, mas no
transcendente aberto apenas aos olhos do espírito. O que o cristianismo faz é colocar o
pensamento humano não mais preso na objetividade das coisas, coloca-o agora em seu
interior.
198
VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p.
129.
110
Mas o que é a violência metafísica? Segundo Vattimo é a identificação, feita por muito tempo,
entre a lei e natureza. Seria deixar de lado o pensamento de David Hume, isto é, tentar criar
uma lei que dê conta de responder acerca de algum evento na realidade natural acreditando
piamente que esta lei é idêntica ao que se tem na natureza, ou seja, a identificação entre aquilo
que se formula na mente humana e aquilo que está dado na eventualidade do ser e forçando
com que seja a única possibilidade de se interpretar o acontecimento do dar-se do ser. Deste
modo, o cristianismo que se mantém ligado à tradição metafísica será sempre um cristianismo
violento. O fim da metafísica só se prolonga pelo fato da Igreja ter herdado uma situação de
violência metafísica e ter aos poucos introduzido no século a perspectiva interiorizante
proposta pelo cristianismo original. O que ocorreu, então, foi o fato da Igreja simplesmente ter
introduzido a novidade interiorizadora, mas, por outro lado, ter carregado a mentalidade
metafísica violenta, causando uma lenta e contínua mudança nesta estrutura que já existia.
Aqui Vattimo, do ponto de vista religioso sociológico, recorre, como se viu, a René Girard
para dizer que no cristianismo a violência vitimária ocorre de modo progressivamente
atenuado e isto está de pleno acordo com a redução, ou melhor, da diluição da metafísica forte
encontrada na mentalidade grega de cunho platônico-aristotélico. A superação desta situação,
a saber, a violência vitimária e a metafísica só se darão possivelmente se um Deus nos salvar.
Finalizando, cabe a pergunta: como se estaria hoje a situação da religião? Como apontado
anteriormente, este período hermenêutico, entendido aqui à maneira de Vattimo, é um período
de um pensamento fraco, isto é, um pensamento que não tenta mostrar os fundamentos
(metafísicos) daquilo que tem como ponto de partida, é o pensamento de uma hermenêutica
niilista, o que significa que a religião retorna, pois ela mesma proporcionou a sua
secularização, abrindo a possibilidade, por sua vez, de se falar novamente em Deus, anjos e
outras “entidades” relacionadas à religião, não apenas do ponto de vista da propriedade dos
termos, mas também de modo metafórico.
111
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