Reflexões Sobre A Biomecânica de Meyerhold

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Reflexões sobre a

biomecânica de
Meyerhold*

Tradução: Denise Vaudois

* “Réflexions sur la biomécanique de Meyerhold” foi originalmen-


te publicado em Les fondements du mouvement scénique. Actes
du colloque international des 5, 6, 7 avril 1991, dans le cadre de la
Maison de Polichinelle à Saintes – France. La Rochelle: Rumeur
des Âges et Maison de Polichinelle, 1993, p. 61-70.
Gostaria de começar com algumas observações sobre a biomecâni-
ca, tomadas de empréstimo a um encenador soviético contemporâ-
neo, Aleksei Levinski,1  que a ensinou depois de ter treinado com um
ator já iniciado na biomecânica meyerholdiana nos anos 1930, Nicolai
Kustov.
A. Levinski diz:

O movimento biomecânico é um movimento cultural, ao contrário


do movimento espontâneo, emocional. A biomecânica é racional,
o essencial dela é o princípio voluntário. O ator deve ter consciên-
cia de si no espaço. [...] O objetivo destes exercícios: movimentar-
se com o máximo de economia, de laconismo, de funcionalismo. Os
exercícios ensinam uma abordagem formal do movimento no palco.
E ainda o culto ao desenho. O desenho se torna um valor em si e
um dos recursos cênicos fundamentais. [...] É o movimento de um
teatro no qual quem age não é o personagem, mas o ator que o
representa.2

Levinski ainda sublinha, por meio da utilização racional de um corpo


consciente, a primordialidade do ator, livre de qualquer imitação da
vida.
No entanto, Meyerhold é encenador por excelência, encenador-au-
tor que foi acusado de ter “matado o ator”, de ter feito dele um “boneco”.
No início dos anos 1920, certos críticos chegaram a falar de “profanação
da arte teatral”. Mas, olhando melhor, o “rei” do “reino do teatro” parece
ser mais o ator do “teatro de feira” meyerholdiano que o encenador, que
seria apenas o “primeiro ministro”.3  Com exceção de um período muito
curto, o ator permanece no centro do interesse de Meyerhold, lugar
reconhecido na definição que ele dá do teatro em 1914:

1. A. Levinski é encenador no Teatro Ermolova, onde dirige um


Estúdio. Encenou Esperando Godot, no qual desempenhou o
papel de Vladimir, com atores formados segundo o treinamento da
biomecânica.
2. Entrevista de A. Levinski, em Teatral’naja zizn’, 1989, n. 6.
3. Cf. “La baraque de foire” (1914), in V. Meyerhold. Écrits sur le
théâtre, vol. I, Lausanne: L’Âge d’homme, 1973, p. 249.
68 A arte do teatro: entre tradição e vanguarda Reflexões sobre a biomecânica de Meyerhold 69

Mesmo se tirarmos do teatro a palavra, os figurinos, a ribalta, as


A commedia dell’arte e o Oriente
coxias, o edifício teatral enfim, enquanto restarem o ator e seus De 1908 até o fim de sua vida, Meyerhold reflete sobre uma formação
movimentos cheios de maestria, o teatro continuará sendo o teatro. do ator na qual o gestual e o movimento seriam a matriz da atuação;
O espectador entende os pensamentos e as motivações do ator além disso, sua atividade como encenador é acompanhada de proje-
através dos movimentos dele, seus gestos e suas mímicas. tos, de pesquisas ou de realizações pedagógicas. No seu Estúdio de
Petersburgo, ele coordena de 1914 a 1917 um curso de “técnica dos
Meyerhold considera o movimento “como um fato submetido às leis da movimentos cênicos” no qual trabalha em estreita colaboração com
forma na arte [...]”, “como meio de expressão extremamente poderoso V. Soloviev, especialista erudito em comédia italiana, que desenvolve
na representação”, chegando até a precisar algumas linhas depois: “o com os integrantes desse Estúdio, profissionais ou não, uma pesquisa
papel do movimento cênico é mais importante do que o de qualquer a partir de textos e roteiros de commedia dell’arte, utilizando um mé-
outro elemento do teatro”.4 todo dito “objetivo”.
Muito precocemente, Meyerhold propõe um trabalho plástico Meyerhold descobre o teatro japonês, o trabalho de Duncan, de
e rítmico em oposição ao mergulho na memória afetiva dos seguidores Dalcroze, de Loie Fuller, ele se apaixona pelo circo. A sua reflexão críti-
de Stanislavski e à busca da emoção. “É preciso aperfeiçoar o cor- ca sobre o movimento cênico se materializa na elaboração de exercícios,
po do ator”; ele sonha em propor ao ator uma partitura como a do ou de pantomimas construídas na maior parte das vezes sobre roteiros
intérprete-músico, em vez dos improvisos da intuição. Não se trata da commedia dell’arte, acompanhados por música (ao piano, como
nem de reviver, nem de ilustrar, mas de agir para sentir e fazer sen- numa sala de balé). Esses exercícios aprofundam as relações entre
tir. Nada de concentração no seu próprio eu, mas uma busca nas o movimento do ator e a forma ou a dimensão do espaço cênico
profundezas da tradição teatral: “Os defeitos das nossas escolas de que lhe é reservado, segundo o princípio “partire del terreno” de
atores vêm do fato de que [...] se pede a eles que se instalem diante Guglielmo Ebreo di Pesaro, coreógrafo italiano do Quattrocento, au-
de um microscópio. Um ator só se tornará um bom ator depois de tor de um Tratado sobre a dança no qual enumera as qualidades
ter estudado bastante tempo e com muita atenção tudo a respeito indispensáveis ao bailarino, dentre as quais a habilidade de avaliar o
do teatro.”5  Trata-se de uma perspectiva mais globalizante que tota- espaço onde vai evoluir e adaptar a ele os seus passos. A movimenta-
lizante de uma formação na qual o ator treina, ao mesmo tempo, um ção dos atores desenha complexos percursos materializados no solo,
desenvolvimento corporal, manual, intelectual, num “laboratório cê- como numa coreografia. Essa movimentação é submetida a uma geo-
nico destinado a verificar matematicamente todo o passado teatral e metrização e depende do número par ou ímpar de parceiros. Ao ator
a preparar o material para a cena por vir”: esta será a sua perspectiva é pedido que ande expressivamente, com a ponta dos pés en-dehors
nos anos 1910. e saltitando sem parar, de modo que esteja sempre pronto a reagir
rapidamente aos parceiros. Cada estudo ou pantomima – por exem-
plo, Arlequim vendedor de pauladas, Os prestidigitadores ambulan-
tes, As duas Esmeraldinas, A mulher serpente, pássaro e gato – inclui
atividades corporais (salto, queda, corrida, bofetada), elementos de
acrobacia ou malabarismo e se apoia na manipulação de diferentes
objetos, muitas vezes ligados à tradição (arco, bastão, bengala, cesta,
4. Cf. programa do Estúdio de Meyerhold em Ljubov’ k trem espada, lanças, leque, chapéu, capa, véus, tecidos etc.). Certos estu-
apel’sinam, 1914, n. 4-5.
dos, certas pantomimas põem em jogo a expressão vocal como con-
5. TSGALI (Arquivos centrais estatais de literatura e arte,
sequência direta das tensões musculares: o movimento é executado,
Moscou), 963, 1, 726.
70 A arte do teatro: entre tradição e vanguarda Reflexões sobre a biomecânica de Meyerhold 71

solicitando o corpo na sua globalidade, inclusive num simples gesto, Artistas de feira de hoje e transmissores de um saber adormecido
e pode levar a uma exclamação ou a um texto. Enfim, o movimento mas palpitante, os alunos do Estúdio dão ao ator meyerholdiano o seu
é concebido em sua relação com o tempo, ou melhor, com o ritmo, estatuto definitivo de homo ludens, que se resume no seguinte: mos-
materializado por um fundo musical constante e não psicologizado. trar a vida em cena não significa mimá-la, copiá-la, mas atuá-la;7  no
Aqui o corpo já é considerado como um material a trabalhar, a aper- palco, o essencial é “viver num clima especificamente teatral”,8  “a
feiçoar até que se torne um instrumento, não apenas a serviço de um alegria”, que “se torna a esfera fora da qual [o ator] não pode existir,
encenador mas, principalmente, a serviço de um ator músico. Recorrer mesmo quando ele tem que morrer em cena”;9  longe de entrar na
à commedia dell’arte não expressa então o sonho de um homem de pele do personagem, o ator deve, de uma certa maneira, sair dele,
teatro antiquário, uma vontade de restauração etno-iconográfica, ver-se e contemplar-se no processo de sua atuação; as emoções
mas uma estratégia na luta contra o psicologismo na qual o nome de no palco atrapalham e turvam a sua precisão, a sua alegria e o seu
E. G. Craig é lembrado com frequência. E, mais do que uma estra- brilho; enfim, o texto é o ornamento da estrutura teatral construí-
tégia, a convicção duradoura de que se trata aqui não de um gêne- da pelo trabalho do corpo no espaço: “as palavras são somente os
ro esquecido, mas de um destes momentos do teatro nos quais se desenhos sobre a tela do movimento”.10  Provisoriamente, Hamlet é
decantaram, como numa solução química concentrada, importantes interpretado como uma pantomima, mas para poder, um dia, apre-
segredos do palco e da profissão, da condição de ator, segredos que sentar o texto na sua integralidade, sem omitir uma única cena.
devem ser de novo revelados numa prática atual: reencontrar, enten-
der, decifrar, atualizar em fórmulas precisas, parecidas às vezes com
as da álgebra, assimilar, não para voltar atrás, mas para ir mais longe
e acabar com a tirania do declamador ou do “ator-gramofone”. Ou,
para utilizar uma outra imagem: trabalhando os materiais históricos e
os textos, o “ator meyerholdiano” – ficção que corresponderia a uma
síntese ideal das concepções do encenador sobre o ator em dife-
rentes estágios da sua evolução – segue concretamente as pegadas
dos atores do passado, para garantir a exatidão do seu caminhar (no
sentido próprio e figurado) ulterior, autônomo e firme. Meyerhold
anuncia aqui as grandes linhas da sua utopia: “descobrir as leis do
teatro”, em primeiro lugar, abrindo um diálogo fértil com as tradições
“autenticamente teatrais”, entre as quais a commedia dell’arte, vista
não como uma entidade estável, mas em suas variações históricas, e,
em segundo lugar, buscando uma síntese interpretativa que envolva
todas as artes do espetáculo e que não se limite à cultura ociden- Exercício biomecânico sobre o peso do corpo do parceiro, 1922.
tal (circo, teatro oriental). Redescoberta e transmissão dessas tradi- primeira turma de atores meyerholdianos. (D.R., col BPV)
ções ocultas ou rejeitadas que é necessário “trazer do passado para
o presente”.6  Porque olhar para trás não significa voltar para trás...
7. Idem.
8. Tsgali, 998, 1, 715.
9. Cf. Écrits sur le théâtre, op. cit., vol. I, p. 224.
6. Cf. supra nota 4. 10. Idem, p. 185.
72 A arte do teatro: entre tradição e vanguarda Reflexões sobre a biomecânica de Meyerhold 73

Na experiência meyerholdiana dos anos 1910, predomina uma princípios ideológicos dos vanguardistas produtivistas e construtivis-
concepção ao mesmo tempo romântica e científica do ator e da sua tas: ator-operário, palco-oficina de fábrica, taylorização da atuação
atuação, ligada às obras teatrais e para-teatrais de Gozzi, Hoffmann ecoando as palavras de ordem leninistas a favor do taylorismo que
ou Callot, e abrindo sobre uma busca da forma, um controle técnico entusiasma os artistas de vanguarda, porque o Outubro Teatral re-
cujos princípios são visíveis num corpo treinado em diversas discipli- presenta o prisma através do qual a imensa Rússia camponesa se vê
nas esportivas e acrobáticas e organizado nas aulas de movimentos transformada rapidamente numa América socialista.
cênicos, corpo artificial para o qual se exige constantemente uma A biomecânica tem então tudo a ver, como escrevem os discí-
dupla linha de comportamento, tanto no ritmo, no desenho, no es- pulos de Meyerhold, tanto com “a criação de um novo sistema de
paço, quanto nos temas e no estilo: rapidez das reações (atenção movimentos cênicos, fundados na exteriorização e não no desen-
total ao(s) parceiro(s)), mas também pausas; desenho dinâmico do volvimento da interioridade”, quanto com a “aquisição das bases do
conjunto, mas introdução de segmentos contrários à linha geral do movimento do organismo humano como tal e a possibilidade de criar
movimento, interrupções; enfim, disposição espacial em diferentes uma mecânica do homem em movimento, a sua nova organização
níveis dos planos materiais da apresentação (praticáveis, escadas) e motora”.11  O vaivém entre o ator e o “homem novo” será constante
disposição poética dos contrastes, busca do tragicômico (grotesco). durante alguns anos: é um “ator-homem”12 que se forma nos Ateliês
No lugar da mimese assimilada a uma contrafação do homem de Meyerhold (GVYRM, GVYTM) numa contaminação das noções
vivo, a criação inventiva: o ator polivalente é um “malabarista do pal- de expressividade e de eficiência, numa fusão utópica do teatro e da
co” que mantém o corpo em forma graças à sua bagagem cultural vida na qual o palco é concebido como o laboratório de uma socie-
(visita às salas de exposição de pinturas do Ermitage, aprendizagem dade futura e o ator, operário da cultura de vanguarda, como protó-
das teorias da versificação, do solfejo e do ritmo). Um corpo que se tipo do “homem qualificado” do futuro.
poderia chamar de “versificado” se opõe ao corpo natural, prosaico A inflação discursiva do tipo político e científico inchou a biome-
ou etéreo. A teatralidade não se organiza em torno do personagem, cânica meyerholdiana a ponto de reduzir a totalidade da formação
mas em torno do próprio ator, como “produtor” dessa ficção, a partir do ator aos exercícios e estudos que ela propõe. Também não se
da sua realidade e do seu trabalho-atuação. deve confundi-la com a sua assimilação rápida demais, nos clubes,
por amadores aos quais ela podia ser ensinada com a ideia de um
reinvestimento possível deste saber-fazer, desta aquisição de um
Taylorização da atuação
corpo-máquina, no lugar de trabalho, na fábrica. Igualmente, não se
No início dos anos 1920, os modelos do malabarista, do palhaço, do ator deve confundi-la com a ginástica no trabalho praticada para espetá-
oriental parecem atenuar-se no discurso dos comentaristas da “biomecâ- culos de massa (manipulação coral, conjunta, da pá, por exemplo). Ela
nica”, termo que aparece em 1918, mas esses modelos estão longe de de- não deve ser vista como uma série de exercícios executados ao ritmo
saparecer da boca do Mestre (basta olhar as suas notas estenográficas e de um apito:13  o fundo musical complexo pedido por um estudo (no
suas notas de aulas). Outros modelos se tornam predominantes, ligados caso do “Tiro com arco”, por exemplo, ouve-se sucessivamente Grieg,
à radicalização das posições políticas de Meyerhold, ao seu engajamento
na revolução, ao seu interesse crescente pela máquina, pela fábrica. A
biomecânica, da qual foi feita uma demonstração pública no dispo- 11. “Conversa com os participantes do laboratório de
sitivo histórico do Corno magnífico, em 1922, é um dos slogans do Meyerhold”, em Zrelisca, 1922, n. 10.

Outubro Teatral que estigmatiza a herança idealista dos teatros rus- 12. Idem.

sos do século XIX, Teatro de Arte de Moscou incluído, e cristaliza os 13. Como pode ser visto num filme que a televisão soviética
consagrou recentemente a Meyerhold.
74 A arte do teatro: entre tradição e vanguarda Reflexões sobre a biomecânica de Meyerhold 75

Chopin, em seguida Bach), com o qual o processo gestual desenvolve o velho, atualiza-se através da fórmula N = A1 + A2, na qual N é o ator:
laços em contraponto, expressa por si só o contrassenso de uma tal A1 é o organizador, o construtor ou o maquinista, que recebe e dá
interpretação. ordens, tendo em vista a realização de um projeto; A2 é o corpo do
Acho que, mesmo estando perfeitamente consciente de que a sua ator, o material organizado, a máquina, que executa a ordem do cons-
formulação é inseparável de um período de intensas mudanças, no trutor. O ator se desdobra em material que recebe informações e em
qual os projetos dos artistas deixam entrever uma preocupante refor- aparelho mental, em princípio passivo e princípio ativo. Para alcançar
mulação da sociedade segundo o modelo do exército (muito presen- uma liberdade na criação, tanto um como outro devem ser treinados.
te) e da fábrica, e no qual se impõe a emergência de uma organização “Treino, treino” dirá mais tarde Meyerhold. Mas se for um treino que
das atividades humanas, produtivas, artísticas, quotidianas tendo em exercita só o corpo e não a cabeça, muito obrigado! Eu não preciso
vista uma eficiência mais ou menos imediata, deve se recolocar a bio- de atores que, sabendo movimentar-se, não sabem pensar.”15 
mecânica meyerholdiana dentro de um programa geral de formação Os exercícios e estudos biomecânicos têm como objetivo formar
do ator nos Ateliês meyerholdianos. A função dos exercícios da bio- o organizador (sua condição física e sua saúde são alvo de cuidados
mecânica meyerholdiana, que tende a tornar mais leves as obrigações paralelos), para que ele possa controlar o seu material, isso signi-
complexas que o ator “novo” deve enfrentar, é, antes de tudo, teatral, fica ajudar o ator a tomar consciência do seu corpo no espaço da
mesmo que ela seja reutilizável no quotidiano, como atestam certos cena: e primeiramente ajudá-lo a achar e movimentar o seu centro
testemunhos (V. Plutchek, A. Fevralski). de gravidade, já que a arte do ator em movimento exige um senso de
Na verdade, exercícios e estudos biomecânicos14  representam uma equilíbrio igual ao do funâmbulo. É a partir desse equilíbrio sempre
preparação teatral do corpo treinado em outras disciplinas (dife- perturbado e reencontrado que o ator se organiza na área cênica,
rentes esportes, acrobacia, esgrima, boxe, dança clássica e popular, bem estável e flexível sobre suas pernas, ao mesmo tempo ponto de
ginástica rítmica, ginástica em pares etc.). Paradoxalmente, eles não apoio e molas. De algum modo, os exercícios desenvolvem no ator a
têm a ver com situações de trabalho ou de vida “taylorizável” (salto faculdade de sentir interiormente tudo o que pertence ao exterior.
sobre o peito, bofetada, tiro com arco, jogo com punhal, salto sobre as Por outro lado, na medida em que qualquer estado psicológico é
costas), mas reutilizam figuras teatrais ou lazzi despindo-as das impu- condicionado por processos fisiológicos, por construções físicas (cf.
rezas narrativas que no Estúdio levavam de volta ao campo do fantás- W. James), é de um bom posicionamento do corpo no espaço e no
tico, e reduzindo-as a seu esquema dinâmico. A situação das ciências tempo, de seu “posicionamento espaço-plástico”16 que podem nas-
humanas e sociais – psicologia objetiva americana, taylorismo, refle- cer com exatidão a emoção e a entonação. Do pensamento ao movi-
xologia soviética – autoriza uma nova abordagem. Meyerhold toma de mento, do movimento à emoção, da emoção à palavra, sem esquecer
empréstimo tanto as suas ferramentas conceituais quanto seu voca- o papel do reflexo no possível desencadeamento de uma emoção,
bulário a William James, I. Pavlov, V. Bekhteriev, aos etnólogos. eis o processo. E os exercícios e estudos executados em grupo, na
A tradicional dualidade do ator em cena expressa por Coquelin, maior parte do tempo, vão estabelecer os princípios de uma execu-
ção analítica precisa e rápida de diversas ações, oferecer um método
de decomposição do movimento e a possibilidade de recompô-lo, de
14. Para a descrição dos exercícios e um estudo mais detalhado
da biomecânica, cf. Meyerhold, Les voies de la création théâtra-
le, vol. 17, Paris: Éditions du C.N.R.S., 1990, p. 104-125. Cf. igual- 15. Cf. A. Gladkov. Teatr. Vospominanija i razmyslenija, Moskva:
mente meu artigo, “L’ entraînement de l’acteur chez Meyerhold”, Iskusstvo, 1980, p. 274.
em Bouffonneries, 1989, n. 18 e 19. Cf. também Mel Gordon, 16. Notas de S. Eisenstein relativas às aulas de Meyerhold no
“Meyerhold’s biomecanic”, Drama review, 1974, vol. XVIII, (3) T 63. GVrym 1921-1922, in Teatral’naja zizn, 1990, n. 2, p. 27.
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“remontá-lo”. Eles organizam uma série de correlações, de coordena-


ções-padrão entre as partes do corpo (participação de todo o corpo
no mínimo gesto), o corpo e o objeto, o corpo e o espaço, o corpo e
o(s) parceiro(s), o corpo e o tempo, o movimento e a palavra.
Cada exercício é segmentado numa série de ações delimitadas,
cada uma com início e fim demarcados. A preparação do exercício
é às vezes feita com um “dáctilo”, dupla batida brusca das mãos,
acompanhada duas vezes por um movimento rápido ascendente e
descendente do corpo, que se instala assim numa dinâmica enér-
gica e se apoia com firmeza nas pernas e nos pés. Esse “dáctilo”
ou simplesmente “hop”, ordem semelhante às utilizadas no circo,
permite ao ator concentrar-se no fragmento que virá em seguida
e, ao mesmo tempo, pôr em alerta os seus parceiros. Como fez
L. Popova em seu trabalho plástico sobre o material, despojado da
sua compacidade, para a criação do dispositivo construtivista de
o Corno, é também a partir de uma vontade de rigor transparente
e rítmica – que revela a carcaça, a estrutura –, que o movimento ad-
quire essa característica por meio de uma fragmentação precisa na
qual as cesuras fazem com que se alternem ritmos contrastados que
revelam o seu “esqueleto”, a sua fórmula dinâmica. Cada elemento
da atuação é dividido, segundo o modelo do reflexo, em intenção,
realização, reação.
Esta exteriorização da atuação numa forma dominada e capaz de
deixar pulsar o conteúdo, segundo uma expressão de Meyerhold,
corresponde bem à ideia de “liberdade na submissão”, aforismo em-
pregado pelo encenador nos anos 1910, e deve permitir ao ator de-
senvolver sua própria linguagem, ao mesmo tempo que um tal tipo
de atuação não psicológica mas psicologicamente bem construída é
capaz de desencadear uma “tempestade de emoções” na plateia (O
corno magnífico). A qualificação do ator não depende do seu tem-
peramento, mas da quantidade de técnicas que ele soube acumular
e de sua habilidade em combiná-las (improvisação). A observação e
a imaginação – que inspiram as brincadeiras de crianças criadoras
e não imitadoras – são as duas garantias contra qualquer abstração.
Mais que um treino limitado, mais que “exercícios especiais con-
Estudo de biomecânica, fim dos anos 1920. “a punhalada”, uma das fases do estudo: trolados, verificados”, como Z. Zlobin, um dos bons biomecânicos de
o otkaz. A foto foi feita nos tetos de Moscou. Os atores são N. Kustov e Z. Zlobin.
(D.R., col BPV)
Meyerhold, designa alguns dos exercícios dos quais ele se lembrou
78 A arte do teatro: entre tradição e vanguarda Reflexões sobre a biomecânica de Meyerhold 79

nos anos 1930 para um ciclo de ensino no Instituto do Cinema em ou dos grupos presentes; a do “raccourci”, que designa as transfor-
Moscou,17 trata-se aqui de um método global de abordagem da atu- mações visuais de um objeto ou de um corpo (como no caso de um
ação como “criação de formas plásticas no espaço”, método que é acrobata excêntrico) colocado numa situação pouco comum para o
exatamente o de Meyerhold na sua maneira de dirigir atores e de espectador; e, finalmente, a do “emprego”. Publicada em 1922, con-
transmitir-lhes por meio de uma demonstração pessoal (pokaz) as temporânea da encenação do Corno magnífico, a brochura O empre-
modalidades plástica, dinâmica e rítmica de qualquer atuação no pal- go do ator18 apresenta em resumo a teoria da atuação biomecânica
co. Se, como matéria de estudos, a biomecânica pode ser substituída sem ligá-la às ideologias revolucionárias, mas inscrevendo-a tanto na
por sessões no Ateliê de boxe (testemunho de Elena Tiapkina sobre perspectiva geral da biomecânica animal – ciência que estuda o cor-
o ano de 1924), os ensaios de Meyerhold (que se tornam, no meio po humano do ponto de vista das alavancas ósseas e musculares em
dos anos 1930, a única formação dos alunos-atores da Escola anexa atividade no movimento, segundo a definição de Meyerhold – como
ao seu teatro), darão sempre ao ator em ação fórmulas corporais e no interior da história do “teatro teatral”, cujas aquisições ela pre-
soluções dinâmicas, propostas tanto para a lógica quanto para o ima- tende racionalizar.
ginário, e não objetos para imitação servil, pelo menos em princípio. Meyerhold nunca publicou os numerosos textos a respeito da
Nessa abordagem da atuação podemos reencontrar um certo nú- biomecânica, a descrição dos exercícios e estudos, no entanto, cui-
mero de características presentes no teatro tradicional. Indicarei algu- dadosamente preparados por seus “aprendizes” e arquivados em
mas. Em primeiro lugar, o princípio de otkaz fundamental, que vem da pastas. Será que, assim, ele dava a entender que a sua busca experi-
pesquisa sobre a commedia dell’arte (1914) – e vai ao encontro do que mental estava longe de se concluir ou expressava a sua desconfiança
E. Barba chama, na sua antropologia teatral, de “princípio das oposi- em relação à utilização desse material?
ções”. O otkaz (literalmente “recusa”) é a indicação plástica e dinâmi- Ao contrário do que parece, a abordagem biomecânica da atu-
ca de uma separação entre o movimento imediatamente anterior e ação não reduz o ator ao estado de máquina (mas pode permitir
a preparação do exercício seguinte, é um ímpeto, uma impulsão, um mostrar a máquina, ou o boneco, dentro do personagem) e, mais,
trampolim, ao mesmo tempo que um sinal ao(s) parceiro(s). No con- não ignora a sua capacidade de improvisação, ela abre a atuação
junto da atuação, é um momento de curta duração, em sentido con- ao princípio da montagem, torna o ator responsável pela criação de
trário, que se opõe ao movimento geral ou à direção desse movimen- imagens espaço-rítmicas sem função ilustrativa redundante em rela-
to: recuo antes de ir para frente, impulso da mão que se eleva antes ção ao texto, ela obriga a ver e se ver dentro do espaço. Esse tipo de
de dar um golpe, flexão antes de se levantar. Podemos estabelecer atuação se apoia sobre a consciência que o ator tem da inscrição do
uma correspondência com o conceito de frenagem (tormoz) toma- seu corpo sobre e dentro da área cênica, sobre seu conhecimento
do de empréstimo à mecânica, que designa qualquer abrandamento da mecânica corporal, sobre conceitos dinâmicos de aceleração, de
da ação antes de uma explosão suscitada ou não por um obstácu- resistência, de frenagem, sobre noções de emprego, de autolimita-
lo exterior no trajeto de um fluxo de energia ou de um movimento ção. A assimilação de um certo número de regras libera a imaginação
orientado. e dá ao ator, além do slogan simplista de eficiente homem-máquina
Outras noções são essenciais aqui: a da “atuação coletiva”, defini- das utopias produtivistas, a disponibilidade do seu corpo e a abertu-
da por uma estreita interação física e vocal da atuação dos parceiros ra, num espaço autolimitado, mínimo, de uma margem de liberdade
que deve ser plenamente aproveitada. A assimilação das regras lhe

17. Zossim Zlobin, roteiro de uma aula sobre o movimento cênico


no VGIK (Arquivos do Museu Meyerhold, Penza). 18. Écrits sur le théâtre, op. cit., vol. II, p. 81-91.
80 A arte do teatro: entre tradição e vanguarda

dá, enfim, e sobretudo, talvez a possibilidade de transgredi-las (con-


traemprego,*  movimento dito “excêntrico”).
É por meio de uma luta das forças em jogo, e numa formulação
conflituosa, que a atuação alcançará seu mais alto nível de expres-
sividade, encontrará a sua “acuidade”. Nesse sentido, a biomecânica
meyerholdiana carrega também uma dupla marca, a de uma época
que tornou possível a sua cristalização, e, ao mesmo tempo, a de um
retorno às fontes do teatro, em particular do teatro oriental (artes
marciais). É, sem dúvida, por meio desses paradoxos que a biomecâ-
nica pode interessar, hoje, não como um modelo para ser reproduzi-
do, mas como um momento para ser questionado, levando em conta,
nessa indagação, tanto a progressão atual das ciências biológicas e
bioquímicas, como o fato de que Meyerhold, mais tarde, assimilará o
aparelho físico do ator a um instrumento de música com amplo dia-
pasão no que se refere às suas potencialidades individuais, criativas
e poéticas.

* Contraemprego: papel que não corresponde ao físico do ator


que dele se encarrega. (N. da T.) 

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