Reflexões Sobre A Biomecânica de Meyerhold
Reflexões Sobre A Biomecânica de Meyerhold
Reflexões Sobre A Biomecânica de Meyerhold
biomecânica de
Meyerhold*
solicitando o corpo na sua globalidade, inclusive num simples gesto, Artistas de feira de hoje e transmissores de um saber adormecido
e pode levar a uma exclamação ou a um texto. Enfim, o movimento mas palpitante, os alunos do Estúdio dão ao ator meyerholdiano o seu
é concebido em sua relação com o tempo, ou melhor, com o ritmo, estatuto definitivo de homo ludens, que se resume no seguinte: mos-
materializado por um fundo musical constante e não psicologizado. trar a vida em cena não significa mimá-la, copiá-la, mas atuá-la;7 no
Aqui o corpo já é considerado como um material a trabalhar, a aper- palco, o essencial é “viver num clima especificamente teatral”,8 “a
feiçoar até que se torne um instrumento, não apenas a serviço de um alegria”, que “se torna a esfera fora da qual [o ator] não pode existir,
encenador mas, principalmente, a serviço de um ator músico. Recorrer mesmo quando ele tem que morrer em cena”;9 longe de entrar na
à commedia dell’arte não expressa então o sonho de um homem de pele do personagem, o ator deve, de uma certa maneira, sair dele,
teatro antiquário, uma vontade de restauração etno-iconográfica, ver-se e contemplar-se no processo de sua atuação; as emoções
mas uma estratégia na luta contra o psicologismo na qual o nome de no palco atrapalham e turvam a sua precisão, a sua alegria e o seu
E. G. Craig é lembrado com frequência. E, mais do que uma estra- brilho; enfim, o texto é o ornamento da estrutura teatral construí-
tégia, a convicção duradoura de que se trata aqui não de um gêne- da pelo trabalho do corpo no espaço: “as palavras são somente os
ro esquecido, mas de um destes momentos do teatro nos quais se desenhos sobre a tela do movimento”.10 Provisoriamente, Hamlet é
decantaram, como numa solução química concentrada, importantes interpretado como uma pantomima, mas para poder, um dia, apre-
segredos do palco e da profissão, da condição de ator, segredos que sentar o texto na sua integralidade, sem omitir uma única cena.
devem ser de novo revelados numa prática atual: reencontrar, enten-
der, decifrar, atualizar em fórmulas precisas, parecidas às vezes com
as da álgebra, assimilar, não para voltar atrás, mas para ir mais longe
e acabar com a tirania do declamador ou do “ator-gramofone”. Ou,
para utilizar uma outra imagem: trabalhando os materiais históricos e
os textos, o “ator meyerholdiano” – ficção que corresponderia a uma
síntese ideal das concepções do encenador sobre o ator em dife-
rentes estágios da sua evolução – segue concretamente as pegadas
dos atores do passado, para garantir a exatidão do seu caminhar (no
sentido próprio e figurado) ulterior, autônomo e firme. Meyerhold
anuncia aqui as grandes linhas da sua utopia: “descobrir as leis do
teatro”, em primeiro lugar, abrindo um diálogo fértil com as tradições
“autenticamente teatrais”, entre as quais a commedia dell’arte, vista
não como uma entidade estável, mas em suas variações históricas, e,
em segundo lugar, buscando uma síntese interpretativa que envolva
todas as artes do espetáculo e que não se limite à cultura ociden- Exercício biomecânico sobre o peso do corpo do parceiro, 1922.
tal (circo, teatro oriental). Redescoberta e transmissão dessas tradi- primeira turma de atores meyerholdianos. (D.R., col BPV)
ções ocultas ou rejeitadas que é necessário “trazer do passado para
o presente”.6 Porque olhar para trás não significa voltar para trás...
7. Idem.
8. Tsgali, 998, 1, 715.
9. Cf. Écrits sur le théâtre, op. cit., vol. I, p. 224.
6. Cf. supra nota 4. 10. Idem, p. 185.
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Na experiência meyerholdiana dos anos 1910, predomina uma princípios ideológicos dos vanguardistas produtivistas e construtivis-
concepção ao mesmo tempo romântica e científica do ator e da sua tas: ator-operário, palco-oficina de fábrica, taylorização da atuação
atuação, ligada às obras teatrais e para-teatrais de Gozzi, Hoffmann ecoando as palavras de ordem leninistas a favor do taylorismo que
ou Callot, e abrindo sobre uma busca da forma, um controle técnico entusiasma os artistas de vanguarda, porque o Outubro Teatral re-
cujos princípios são visíveis num corpo treinado em diversas discipli- presenta o prisma através do qual a imensa Rússia camponesa se vê
nas esportivas e acrobáticas e organizado nas aulas de movimentos transformada rapidamente numa América socialista.
cênicos, corpo artificial para o qual se exige constantemente uma A biomecânica tem então tudo a ver, como escrevem os discí-
dupla linha de comportamento, tanto no ritmo, no desenho, no es- pulos de Meyerhold, tanto com “a criação de um novo sistema de
paço, quanto nos temas e no estilo: rapidez das reações (atenção movimentos cênicos, fundados na exteriorização e não no desen-
total ao(s) parceiro(s)), mas também pausas; desenho dinâmico do volvimento da interioridade”, quanto com a “aquisição das bases do
conjunto, mas introdução de segmentos contrários à linha geral do movimento do organismo humano como tal e a possibilidade de criar
movimento, interrupções; enfim, disposição espacial em diferentes uma mecânica do homem em movimento, a sua nova organização
níveis dos planos materiais da apresentação (praticáveis, escadas) e motora”.11 O vaivém entre o ator e o “homem novo” será constante
disposição poética dos contrastes, busca do tragicômico (grotesco). durante alguns anos: é um “ator-homem”12 que se forma nos Ateliês
No lugar da mimese assimilada a uma contrafação do homem de Meyerhold (GVYRM, GVYTM) numa contaminação das noções
vivo, a criação inventiva: o ator polivalente é um “malabarista do pal- de expressividade e de eficiência, numa fusão utópica do teatro e da
co” que mantém o corpo em forma graças à sua bagagem cultural vida na qual o palco é concebido como o laboratório de uma socie-
(visita às salas de exposição de pinturas do Ermitage, aprendizagem dade futura e o ator, operário da cultura de vanguarda, como protó-
das teorias da versificação, do solfejo e do ritmo). Um corpo que se tipo do “homem qualificado” do futuro.
poderia chamar de “versificado” se opõe ao corpo natural, prosaico A inflação discursiva do tipo político e científico inchou a biome-
ou etéreo. A teatralidade não se organiza em torno do personagem, cânica meyerholdiana a ponto de reduzir a totalidade da formação
mas em torno do próprio ator, como “produtor” dessa ficção, a partir do ator aos exercícios e estudos que ela propõe. Também não se
da sua realidade e do seu trabalho-atuação. deve confundi-la com a sua assimilação rápida demais, nos clubes,
por amadores aos quais ela podia ser ensinada com a ideia de um
reinvestimento possível deste saber-fazer, desta aquisição de um
Taylorização da atuação
corpo-máquina, no lugar de trabalho, na fábrica. Igualmente, não se
No início dos anos 1920, os modelos do malabarista, do palhaço, do ator deve confundi-la com a ginástica no trabalho praticada para espetá-
oriental parecem atenuar-se no discurso dos comentaristas da “biomecâ- culos de massa (manipulação coral, conjunta, da pá, por exemplo). Ela
nica”, termo que aparece em 1918, mas esses modelos estão longe de de- não deve ser vista como uma série de exercícios executados ao ritmo
saparecer da boca do Mestre (basta olhar as suas notas estenográficas e de um apito:13 o fundo musical complexo pedido por um estudo (no
suas notas de aulas). Outros modelos se tornam predominantes, ligados caso do “Tiro com arco”, por exemplo, ouve-se sucessivamente Grieg,
à radicalização das posições políticas de Meyerhold, ao seu engajamento
na revolução, ao seu interesse crescente pela máquina, pela fábrica. A
biomecânica, da qual foi feita uma demonstração pública no dispo- 11. “Conversa com os participantes do laboratório de
sitivo histórico do Corno magnífico, em 1922, é um dos slogans do Meyerhold”, em Zrelisca, 1922, n. 10.
Outubro Teatral que estigmatiza a herança idealista dos teatros rus- 12. Idem.
sos do século XIX, Teatro de Arte de Moscou incluído, e cristaliza os 13. Como pode ser visto num filme que a televisão soviética
consagrou recentemente a Meyerhold.
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Chopin, em seguida Bach), com o qual o processo gestual desenvolve o velho, atualiza-se através da fórmula N = A1 + A2, na qual N é o ator:
laços em contraponto, expressa por si só o contrassenso de uma tal A1 é o organizador, o construtor ou o maquinista, que recebe e dá
interpretação. ordens, tendo em vista a realização de um projeto; A2 é o corpo do
Acho que, mesmo estando perfeitamente consciente de que a sua ator, o material organizado, a máquina, que executa a ordem do cons-
formulação é inseparável de um período de intensas mudanças, no trutor. O ator se desdobra em material que recebe informações e em
qual os projetos dos artistas deixam entrever uma preocupante refor- aparelho mental, em princípio passivo e princípio ativo. Para alcançar
mulação da sociedade segundo o modelo do exército (muito presen- uma liberdade na criação, tanto um como outro devem ser treinados.
te) e da fábrica, e no qual se impõe a emergência de uma organização “Treino, treino” dirá mais tarde Meyerhold. Mas se for um treino que
das atividades humanas, produtivas, artísticas, quotidianas tendo em exercita só o corpo e não a cabeça, muito obrigado! Eu não preciso
vista uma eficiência mais ou menos imediata, deve se recolocar a bio- de atores que, sabendo movimentar-se, não sabem pensar.”15
mecânica meyerholdiana dentro de um programa geral de formação Os exercícios e estudos biomecânicos têm como objetivo formar
do ator nos Ateliês meyerholdianos. A função dos exercícios da bio- o organizador (sua condição física e sua saúde são alvo de cuidados
mecânica meyerholdiana, que tende a tornar mais leves as obrigações paralelos), para que ele possa controlar o seu material, isso signi-
complexas que o ator “novo” deve enfrentar, é, antes de tudo, teatral, fica ajudar o ator a tomar consciência do seu corpo no espaço da
mesmo que ela seja reutilizável no quotidiano, como atestam certos cena: e primeiramente ajudá-lo a achar e movimentar o seu centro
testemunhos (V. Plutchek, A. Fevralski). de gravidade, já que a arte do ator em movimento exige um senso de
Na verdade, exercícios e estudos biomecânicos14 representam uma equilíbrio igual ao do funâmbulo. É a partir desse equilíbrio sempre
preparação teatral do corpo treinado em outras disciplinas (dife- perturbado e reencontrado que o ator se organiza na área cênica,
rentes esportes, acrobacia, esgrima, boxe, dança clássica e popular, bem estável e flexível sobre suas pernas, ao mesmo tempo ponto de
ginástica rítmica, ginástica em pares etc.). Paradoxalmente, eles não apoio e molas. De algum modo, os exercícios desenvolvem no ator a
têm a ver com situações de trabalho ou de vida “taylorizável” (salto faculdade de sentir interiormente tudo o que pertence ao exterior.
sobre o peito, bofetada, tiro com arco, jogo com punhal, salto sobre as Por outro lado, na medida em que qualquer estado psicológico é
costas), mas reutilizam figuras teatrais ou lazzi despindo-as das impu- condicionado por processos fisiológicos, por construções físicas (cf.
rezas narrativas que no Estúdio levavam de volta ao campo do fantás- W. James), é de um bom posicionamento do corpo no espaço e no
tico, e reduzindo-as a seu esquema dinâmico. A situação das ciências tempo, de seu “posicionamento espaço-plástico”16 que podem nas-
humanas e sociais – psicologia objetiva americana, taylorismo, refle- cer com exatidão a emoção e a entonação. Do pensamento ao movi-
xologia soviética – autoriza uma nova abordagem. Meyerhold toma de mento, do movimento à emoção, da emoção à palavra, sem esquecer
empréstimo tanto as suas ferramentas conceituais quanto seu voca- o papel do reflexo no possível desencadeamento de uma emoção,
bulário a William James, I. Pavlov, V. Bekhteriev, aos etnólogos. eis o processo. E os exercícios e estudos executados em grupo, na
A tradicional dualidade do ator em cena expressa por Coquelin, maior parte do tempo, vão estabelecer os princípios de uma execu-
ção analítica precisa e rápida de diversas ações, oferecer um método
de decomposição do movimento e a possibilidade de recompô-lo, de
14. Para a descrição dos exercícios e um estudo mais detalhado
da biomecânica, cf. Meyerhold, Les voies de la création théâtra-
le, vol. 17, Paris: Éditions du C.N.R.S., 1990, p. 104-125. Cf. igual- 15. Cf. A. Gladkov. Teatr. Vospominanija i razmyslenija, Moskva:
mente meu artigo, “L’ entraînement de l’acteur chez Meyerhold”, Iskusstvo, 1980, p. 274.
em Bouffonneries, 1989, n. 18 e 19. Cf. também Mel Gordon, 16. Notas de S. Eisenstein relativas às aulas de Meyerhold no
“Meyerhold’s biomecanic”, Drama review, 1974, vol. XVIII, (3) T 63. GVrym 1921-1922, in Teatral’naja zizn, 1990, n. 2, p. 27.
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nos anos 1930 para um ciclo de ensino no Instituto do Cinema em ou dos grupos presentes; a do “raccourci”, que designa as transfor-
Moscou,17 trata-se aqui de um método global de abordagem da atu- mações visuais de um objeto ou de um corpo (como no caso de um
ação como “criação de formas plásticas no espaço”, método que é acrobata excêntrico) colocado numa situação pouco comum para o
exatamente o de Meyerhold na sua maneira de dirigir atores e de espectador; e, finalmente, a do “emprego”. Publicada em 1922, con-
transmitir-lhes por meio de uma demonstração pessoal (pokaz) as temporânea da encenação do Corno magnífico, a brochura O empre-
modalidades plástica, dinâmica e rítmica de qualquer atuação no pal- go do ator18 apresenta em resumo a teoria da atuação biomecânica
co. Se, como matéria de estudos, a biomecânica pode ser substituída sem ligá-la às ideologias revolucionárias, mas inscrevendo-a tanto na
por sessões no Ateliê de boxe (testemunho de Elena Tiapkina sobre perspectiva geral da biomecânica animal – ciência que estuda o cor-
o ano de 1924), os ensaios de Meyerhold (que se tornam, no meio po humano do ponto de vista das alavancas ósseas e musculares em
dos anos 1930, a única formação dos alunos-atores da Escola anexa atividade no movimento, segundo a definição de Meyerhold – como
ao seu teatro), darão sempre ao ator em ação fórmulas corporais e no interior da história do “teatro teatral”, cujas aquisições ela pre-
soluções dinâmicas, propostas tanto para a lógica quanto para o ima- tende racionalizar.
ginário, e não objetos para imitação servil, pelo menos em princípio. Meyerhold nunca publicou os numerosos textos a respeito da
Nessa abordagem da atuação podemos reencontrar um certo nú- biomecânica, a descrição dos exercícios e estudos, no entanto, cui-
mero de características presentes no teatro tradicional. Indicarei algu- dadosamente preparados por seus “aprendizes” e arquivados em
mas. Em primeiro lugar, o princípio de otkaz fundamental, que vem da pastas. Será que, assim, ele dava a entender que a sua busca experi-
pesquisa sobre a commedia dell’arte (1914) – e vai ao encontro do que mental estava longe de se concluir ou expressava a sua desconfiança
E. Barba chama, na sua antropologia teatral, de “princípio das oposi- em relação à utilização desse material?
ções”. O otkaz (literalmente “recusa”) é a indicação plástica e dinâmi- Ao contrário do que parece, a abordagem biomecânica da atu-
ca de uma separação entre o movimento imediatamente anterior e ação não reduz o ator ao estado de máquina (mas pode permitir
a preparação do exercício seguinte, é um ímpeto, uma impulsão, um mostrar a máquina, ou o boneco, dentro do personagem) e, mais,
trampolim, ao mesmo tempo que um sinal ao(s) parceiro(s). No con- não ignora a sua capacidade de improvisação, ela abre a atuação
junto da atuação, é um momento de curta duração, em sentido con- ao princípio da montagem, torna o ator responsável pela criação de
trário, que se opõe ao movimento geral ou à direção desse movimen- imagens espaço-rítmicas sem função ilustrativa redundante em rela-
to: recuo antes de ir para frente, impulso da mão que se eleva antes ção ao texto, ela obriga a ver e se ver dentro do espaço. Esse tipo de
de dar um golpe, flexão antes de se levantar. Podemos estabelecer atuação se apoia sobre a consciência que o ator tem da inscrição do
uma correspondência com o conceito de frenagem (tormoz) toma- seu corpo sobre e dentro da área cênica, sobre seu conhecimento
do de empréstimo à mecânica, que designa qualquer abrandamento da mecânica corporal, sobre conceitos dinâmicos de aceleração, de
da ação antes de uma explosão suscitada ou não por um obstácu- resistência, de frenagem, sobre noções de emprego, de autolimita-
lo exterior no trajeto de um fluxo de energia ou de um movimento ção. A assimilação de um certo número de regras libera a imaginação
orientado. e dá ao ator, além do slogan simplista de eficiente homem-máquina
Outras noções são essenciais aqui: a da “atuação coletiva”, defini- das utopias produtivistas, a disponibilidade do seu corpo e a abertu-
da por uma estreita interação física e vocal da atuação dos parceiros ra, num espaço autolimitado, mínimo, de uma margem de liberdade
que deve ser plenamente aproveitada. A assimilação das regras lhe