Proposta de Classificação Dos Diferentes Tipos de Estudos Epidemiológicos Descritivos
Proposta de Classificação Dos Diferentes Tipos de Estudos Epidemiológicos Descritivos
Proposta de Classificação Dos Diferentes Tipos de Estudos Epidemiológicos Descritivos
Resumo
A categoria dos estudos epidemiológicos descritivos é tema relevante, uma vez que existem inconsistências na literatura
quanto a sua nomenclatura e classificação. Foram revistos livros de textos acadêmicos de epidemiologia, 19 estrangeiros e seis
nacionais, sendo o critério principal tê-los disponíveis para revisão detalhada dos capítulos de epidemiologia descritiva e tipos
de estudo. Em 11 livros, os autores dão prioridade aos estudos analíticos. Doze textos estrangeiros e dois brasileiros incluem
estudos descritivos, apesar de a maioria não explicitar uma categoria específica com esse nome. Propõe-se uma classificação
com base nas respostas a questões norteadoras de pesquisa, incluindo os seguintes tipos de estudos: relato de caso, série
de casos, coorte clínica, estudo de prevalência, estudo de incidência (coorte) e estudo ecológico descritivo. Discutem-se as
potencialidades do seu uso, a implementação de novos métodos de análise e sua relevância na vigilância à saúde.
Palavras-chave: Estudos Epidemiológicos; Estudos Descritivos; Classificação.
Figura 1 – Livros de texto de epidemiologia produzidos no exterior que priorizam os estudos epidemiológicos analíticos e
que não detalham estudos descritivos
de análise descritiva, sempre se dando ênfase às me- “no campo experimental”. Ao listar os “delineamen-
didas de incidência e prevalência de agravos em uma tos de estudos em medicina”, ela inclui relato de caso,
população, de acordo com as variações segundo pessoa, série de casos e estudo transversal ou de prevalência,
lugar e tempo. Enfatiza-se também a forma de análise citados como estudos descritivos. Os restantes são es-
e apresentação de dados. Entretanto, sua nomenclatu- tudos analíticos.
ra, à semelhança dos livros publicados no exterior, não
inclui especificamente os estudos descritivos. Os seis Classificar estudos descritivos:
autores mostrados na Figura 3 dão ênfase aos estudos faz sentido?
analíticos. Por exemplo, em um mesmo livro de texto,
Percebe-se, pela leitura de capítulos de livros de
o capítulo que aborda os tipos de estudo não menciona
texto, que há uma diferença na abordagem, que
os descritivos,7 enquanto um capítulo específico de es-
varia da completa omissão dos estudos descritivos
tudos ecológicos separa as estratégias “exploratórias”
à sua inclusão. Quando os estudos descritivos são
das “analíticas”. Tais estratégias exploratórias pode-
explicitados, há modos diferentes de conceituá-los
riam ser denominadas descritivas.8 e de classificá-los. Uma primeira dificuldade é a ten-
Na Figura 4, mostram-se dois livros de texto bra- dência a nomear como descritivos apenas aquelas
sileiros em que há menção mais detalhada de alguns pesquisas que são realizadas com base em dados
estudos descritivos. Pereira (1995, p. 278)9 caracteriza secundários macrodemográficos ou de populações
os estudos descritivos como aqueles que não apre- abertas não clínicas.
sentam grupo controle, diferenciando-os dos estudos Também se torna relevante diferenciar entre a
analíticos. O autor lista nove tipos de estudo epidemio- técnica de coleta de dados e o tipo de estudo. Nesse sen-
lógico, sendo os quatro primeiros descritivos: estudo de tido, é importante, neste momento, lembrar a proposta
caso, série de casos, estudo de incidência e estudo de de Laurenti e colaboradores,11 que consideram que
prevalência (transversal ou seccional descritivo). “levantamento de dados estatísticos” é o conjunto de
Ainda no âmbito nacional, Zanetta (2004)10 reco- operações que permitem a coleta de dados que possibi-
nhece a existência de estudos descritivos em contraste litam a caracterização de um evento. Essa coleta pode
com os analíticos. Para a autora, os estudos descritivos ser realizada com aproveitamento de dados existentes
“relatam prevalências ou descrevem uma situação que e registrados (que o autor denomina levantamento
parece anormal”, e eles são úteis para planejamen- propriamente dito); ou com dados existentes, porém
to nos serviços de saúde e para geração de hipóteses não registrados, coletados por meio de entrevistas ou
A menção de estudos descritivos encontra-se incluída nos Na conceitualização dos estudos epidemiológicos, os
“estudos observacionais”. Nesse contexto, é definido o autores observam que a sua caracterização depende
Epidemiologic research: Principles
estudo descritivo como aquele que é realizado “quando do nível em que se implementariam, sendo que este
Kleinbaum DG, and quantitative methods. 1st ed.
pouco se conhece da ocorrência, história natural ou “nível” estaria relacionado com o período da história
Kupper LL, 1982 New York: Van Nostrand Reinhold;
determinantes da doença”. Seus objetivos então seriam natural da doença, adotando-se o modelo de Leavell e
Morgenstern H. Chapter 3, Types of epidemiologic
determinar a frequência ou tendência temporal da doença Clark de níveis de prevenção. Os autores lembram que os
research; p. 40-50.
em uma população específica e formular hipóteses objetivos da pesquisa epidemiológica são os seguintes:
Sem capítulo separado etiológicas. descrever, explicar, predizer e controlar.
de estudos descritivos;
citam-se estudos Mencionam-se dois tipos de estudo sob o item Descritptive
descritivos específicos em Para os autores, os estudos descritivos descrevem a
surveys: o longitudinal (no inglês longitudinal), que estuda
determinados capítulos Research methods in community “situação da doença” na população e sua distribuição
as mudanças, tais como “crescimento e desenvolvimento de
ou citam-se os estudos medicine. Surveys, Epidemiological com relação a sexo, idade, religião, entre outras
crianças, mudança na taxa de suicídio, história natural da
descritivos com outros Abramson JH, research, Programme evaluation, variáveis. Menciona-se o termo survey (equivalente
2008 doença ou estudo de ocorrência de novos casos de doença
Estudos epidemiológicos descritivos: uma proposta de classificação
nomes. Abramson ZH. Clinical trials. 6th ed. West Sussex: provavelmente a inquérito ou a sondagem); entre outras
ou óbitos na população”, e de corte seccional (cross-
John Wiley & Sons; Chapter 2, Types acepções, os autores atribuem o de “estudo descritivo de
sectional). Os autores incluem uma categoria de “estudos
of investigation; p. 13-34. características populacionais”, “inquérito domiciliar” ou
clínicos” para se referir ao estudo de “características ou
“inquérito de campo”.
evolução de uma série de pacientes”.
Epidemiologia, Bioestatística
Inquéritos transversais, que coletam dados da frequência
Figura 2 – Livros de texto de epidemiologia produzidos no exterior que incluem estudos epidemiológicos descritivos Continua
Continuação
Inclusão de estudos
Autores Anos Referências Estudos citados Notas
descritivos
Epidemiology. Beyond the basics. Os autores concebem a epidemiologia descritiva e
Com base na detecção de distribuições não uniformes,
2nd ed. Boston: Jones and Bartlett analítica. A epidemiologia descritiva faz uso de dados
segundo os autores, os epidemiologistas definem
Szklo M, Nieto FJ. 2007 Publishers; Chapter 1, Basic study disponíveis para examinar de que modo as taxas (por
“grupos de alto risco” para propósitos de prevenção e
designs in analytical epidemiology; exemplo, de mortalidade) se comportam segundo variáveis
também para gerar hipóteses causais.
p. 3-43. demográficas (aquelas obtidas no censo).
Sem capítulo separado
de estudos descritivos; Estes autores sugeriram o número de 10 pacientes como
citam-se estudos Epidemiologia clínica: elementos Não há seção de estudos descritivos. Porém, no seu capítulo o critério que separa o relato de casos da série de casos.
Fletcher RH, Fletcher
descritivos específicos em 1996 essenciais. 3ª ed. Porto Alegre: Artes “Estudando casos”, os autores mencionam o relato de casos, Ao descrever a série de casos, eles dizem: “é um estudo
SW, Wagner EH.
determinados capítulos Médicas. a série de casos e os estudos de caso-controle. de um grupo maior de pacientes (por exemplo 10 ou
ou citam-se os estudos mais) com uma doença particular”.
descritivos com outros
Study Design. In: Olsen J, Greene N,
nomes.
Saracci R, Trichopoulos D. Teaching
Não há seção de estudos descritivos. Porém, no seu capítulo Mencionam-se também os estudos de tipo case-only
epidemiology. A guide for teachers
Olsen J, Basso O. 2015 “Study design”, os autores mencionam o survey, definindo-o studies e case-cross over studies sem aprofundar na sua
in epidemiology, public health and
como estudo de prevalência em população definida. caracterização como descritivos.
clinical medicine. 4th ed. Oxford:
Oxford University Press; 37-55.
Estudos de correlação (equivalentes aos ecológicos
Descriptive studies. In: Hennekens
analíticos); relatos de caso; série de casos; e os cross-
CH, Buring JE, Mayrent SL. Há um capítulo dedicado aos estudos descritivos definido
Hennekens CH, Buring sectional surveys, que podem apenas descrever exposições
1987 Epidemiology in medicine. 1st ed. como os que descrevem padrões da ocorrência da doença
JE. e/ou desfechos, ou avançar à categoria de estudos
Boston: Little, Brown and Company; com relação a variáveis de pessoa, lugar e tempo.
analíticos para testar, mesmo com limitações, hipóteses de
p. 101-131.
associação.
Chapter 3. Study designs. In:
Nelson KE, Williams CFM. Infectious
Williams CFM, Nelson Relatos de caso; série de casos; e estudos ecológicos Os autores diferenciam duas dimensões, uma clínica e
2007 epidemiology: Theory and practice.
KE. (analíticos). uma populacional.
2nd ed. Toronto: Jones and Barlett
Há seção de estudos Publishers; p. 63-117.
descritivos. Relatos de caso; série de casos; “estudos descritivos com
5
Figura 2 – Livros de texto de epidemiologia produzidos no exterior que incluem estudos epidemiológicos descritivos
Estudos epidemiológicos descritivos: uma proposta de classificação
Figura 3 – Livros de texto de epidemiologia produzidos no Brasil que priorizam os estudos epidemiológicos analíticos e
que não detalham estudos descritivos
Figura 4 – Citação de estudos epidemiológicos descritivos em livros de texto de epidemiologia produzidos no Brasil em
que há algum detalhamento ou caracterização de estudos epidemiológicos descritivos
exames laboratoriais (que o autor denomina inqué- contemplar duas situações nesse domínio: (i) há es-
rito); ou com dados não existentes e gerados por uma tudos realizados com base em dados macroestatísticos
intervenção, como os eventos adversos de uma vacina referentes a grandes conglomerados de população,
(que o autor denomina dado experimental). Ressalva- comumente secundários, elaborados com numerado-
mos que tipos de levantamento ou de coleta de dados res individualizados mediante a notificação do caso
não determinam o tipo de estudo epidemiológico. ou óbito e denominadores baseados em estimativas
Diante dessa multiplicidade de pontos de vista, é de população; e (ii) estudos realizados com dados
relevante o âmbito em que se realiza a pesquisa para a primários em vários âmbitos comunitários (locais
classificação dos estudos. Inicialmente, há um âmbito de trabalho, de estudo, de lazer, domicílios, creches,
populacional ou comunitário, e surge a necessida- bibliotecas públicas, sindicatos e organizações civis
de de compreender que qualquer classificação deve da comunidade, instituições religiosas, clubes, entre
outros), em que tanto numeradores como denomina- Existem várias possibilidades de classificação. Se o
dores foram abordados ou reconhecidos, e computados critério for a observação de uma realidade ou a afe-
como indivíduos. rição dos efeitos de uma intervenção conduzida pelas
Independentemente desse espaço populacional ou pessoas encarregadas da pesquisa, os estudos podem
comunitário, as instituições de atenção à saúde devem ser observacionais ou de intervenção. Se o critério
ser incluídas como um âmbito específico. A princípio, for a presença ou ausência de acompanhamento de
é nesse âmbito que se concentram os “casos” e se re- pessoas ou coletivos, os estudos seriam longitudinais
gistram atendimentos, intervenções, procedimentos (chamados também de follow-up) ou seccionais (em
e desfechos. Leva-se em conta que muitas dessas ins- um momento no tempo). Com relação à unidade de
tituições não fazem atividades apenas com pacientes análise corresponder a pessoas ou conglomerados,
ou pessoas que já têm uma doença ou agravo. Por os estudos poderiam ser de base individual ou ecoló-
exemplo, vários tipos de consulta (pré-natal, contro- gicos. De acordo com o âmbito em que se estabelece
le de crescimento e desenvolvimento, puericultura, a pesquisa, os estudos podem ser populacionais/co-
alimentação e nutrição, fluoretação tópica dental, munitários ou clínicos. Esta classificação não é
check-ups de adultos), a princípio, trabalham com mutuamente excludente, isto é, um estudo pode ser de
pessoas “da comunidade”, canalizadas ou levadas a unidade de observação individual e observacional, ou
comparecer a um lócus assistencial, sem, no entanto, individual e de intervenção, ou longitudinal e obser-
serem classificadas a priori como “casos clínicos”. vacional, por exemplo. A proposta de classificação é
Outros ambientes semelhantes podem ser consti- mostrada na Figura 5.
tuídos por bancos de sangue ou de doação de outros
fluidos, hemoderivados e órgãos. Também é relevante 1. Estudos de âmbito clínico
salientar que pesquisas em que a população de estu-
Os estudos de âmbito clínico proporcionam dados
do é constituída por pessoas avaliadas na atenção
para se entenderem as características da história na-
primária se encontram muito próximas do ambiente
tural da doença, seu diagnóstico e desfechos após o
domiciliar. Assim, um caso específico pode ser o de
tratamento. O âmbito clínico pode ser caracterizado
estudos realizados nos Serviços de Internação Domi-
como as instituições de atenção primária, secundá-
ciliar que, nesse sentido, têm características clínicas,
ria e terciária. Contudo, ocasionalmente, a atenção
análogas à internação hospitalar. É necessário apon-
primária inclui pessoas não necessariamente com
tar que esses estudos de âmbito clínico são realizados
doença: gestantes em consultas pré-natais, crianças
com dados primários finitos individualizados, opera-
sob controle de crescimento e desenvolvimento, pes-
cionalizados como numeradores e denominadores
soas com problemas posturais e ortopédicos, além de
claramente definidos.
usuários realizando consultas de check-up. Em geral,
Atentamos para o fato de que, tanto nos estudos
correspondem à chamada epidemiologia ao pé do leito
de âmbito clínico como nos de âmbito populacional/
(bedside epidemiology).
comunitário, a validade externa, entendida como
a capacidade de generalizar os dados a partir do 1.1 Relato de caso
conjunto de sujeitos que efetivamente compõe
um determinado estudo, não constitui um determi- No âmbito clínico, um primeiro propósito dos pes-
nante da classificação. quisadores pode ser relatar a existência de um caso ou
de um número pequeno deles. A pergunta de pesquisa
Proposta de classificação de estudos poderia ser a existência ou não de um determinado
descritivos agravo ou doença em um país ou comunidade, as ca-
racterísticas de um número limitado de casos clínicos,
Considerando-se a necessidade de uma ou a maneira como transcorreu a história clínica do
classificação satisfatória, resolveu-se propor uma ta- caso, a suspeição, impressão diagnóstica e confirma-
xonomia que esclareça potencialidades, limitações e a ção. É de fato assim que se constituiu, durante séculos,
consistência entre os objetivos propostos e os tipos de o conhecimento acumulado de entidades nosológicas,
estudos realizados. suas características e suas respostas a tratamentos.
Nesse caso, a pesquisa pode se limitar a descrever em Latina.15,16 É importante assinalar que é mais indicado
detalhe as manifestações da doença, dados da queixa o termo “relato de caso” que “estudo de caso”, porque
principal e da anamnese, sintomas referidos, sinais clí- essa denominação pode corresponder a outras
nicos detectados, resultados de exames de laboratório e situações de pesquisa (tanto em indivíduos como
imagem e a conclusão diagnóstica. em coletivos de diversos tamanhos), no âmbito da
Do ponto de vista epidemiológico, o uso pode ser enfermagem, psicologia, serviço social ou sociologia.
muito restrito para aferição de frequência na popu- Quantos indivíduos podem ser incluídos em um
lação ou mesmo da caracterização de frequência de relato de caso? A resposta não pode ser precisa. Fletcher
manifestações ou achados. No entanto, a utilidade et al.17 consideravam que seria de, no máximo, 10 ca-
deste tipo de estudo no âmbito clínico é alertar aos sos. A partir desse número, seria considerado uma série
profissionais de saúde sobre a existência do evento de casos ou uma coorte clínica. Realmente não haveria
em seu meio, para efeitos de diagnóstico e diferen- base estatística para dizer que, a partir de 10 casos (por
ciação. Tais relatos servem depois para documentar exemplo, um relato de casos que inclui 11 indivíduos),
a distribuição relativa dos eventos que poderiam ser a aleatoriedade diminui o suficiente para se fazer uma
cosmopolitas ou existirem, mesmo que, em algumas ideia da verdadeira frequência de um dado sintoma,
regiões, sejam de rara ocorrência. Um evento raro, sinal clínico, achado laboratorial ou de imagem.
no entanto, pode ser o primeiro sinal de uma epi-
demia ou de doença emergente. Há precedentes de 1.2 Série de casos
descrições de padrões de evolução ou distribuição di-
vergentes que levaram à conclusão da existência de Ainda no âmbito clínico, a pergunta norteadora
eventos novos ou comportamentos inéditos de doenças (research question) pode ser conhecer o comporta-
existentes. Nesse sentido, estes estudos têm relevância mento de uma entidade nosológica ou doença, sua
para a vigilância epidemiológica, porque podem reve- história natural e manifestações, a distribuição dos
lar achados preliminares de doenças emergentes ou pacientes segundo sexo, idade, raça/cor da pele, segun-
reemergentes que se estão espalhando em novos cená- do o subtipo de agente etiológico, épocas e locais de
rios epidemiológicos. maior frequência, entre outras possibilidades. Esse es-
Exemplos desse tipo de estudo epidemiológico são os tudo descreve o “perfil” dos casos e pode ser chamado
relatos de casos de sarcoma de Kaposi e Pneumocystis de “série de casos”. Ele avança em relação ao simples
jirovecii (previamente conhecido como P. Carinii), “relato de casos”, cuja importância já foi destacada.
que serviram como evento sentinela para a existência Nesta situação, porém, uma quantidade maior de
de imunossupressão associada à aids.14 Outro exemplo observações é necessária, podendo informar qual é a
pode ser a maneira como se comportam clinicamente proporção de indivíduos que apresentam um determi-
novos eventos até a presente década desconhecidos, nado sintoma, sinal, ou característica de laboratório
tais como Chikungunyia e Zika nos países da América ou imagem. Este tipo de estudo não tem referência
operários de uma fábrica. A alternativa seria ter à dis- técnica de obtenção de dados mediante a formulação
posição várias unidades de conglomerados de pessoas de perguntas (ato de inquirir). O termo inquérito é
ou mesmo sistemas inteiros, o que tornaria necessário semelhante à denominação encuesta, utilizada em
algum tipo de procedimento de amostragem, sendo a espanhol (encuesta epidemiológica), ou a enquête,
população-fonte (ou marco amostral) todas as unida- do francês. Tais termos são usados no mesmo senti-
des ou conglomerados listados: escolas ou colégios de do e com a mesma possibilidade de confusão, apesar
um sistema, setores censitários, templos referentes a de serem utilizados amplamente para propósitos
uma única comunidade de fé, fábricas de um ramo de específicos (inquérito epidemiológico, inquérito nu-
atividade produtiva, um setor de atividade econômica tricional, inquérito alimentar, inquérito sorológico).
(os transportes, por exemplo). Pressupõe-se a existên- De fato, em alguns âmbitos acadêmicos, o termo fran-
cia de uma lista ou cadastro a partir do qual poderia cês tem sido traduzido como enquete. No entanto, na
ser retirada uma amostra, mediante diversas técnicas. literatura epidemiológica francesa e franco-canaden-
Em suma, há uma abordagem de pessoas “sadias” se, esse termo pode ser usado também como sinônimo
(poderiam ser portadoras de uma condição não detec- de “estudo”, por exemplo, em enquête analytique e
tada ou registrada), o que os diferencia dos estudos de enquête descriptive.20
âmbito clínico. Em inglês, como foi mencionado acima, utiliza-se
o termo survey, tendo originalmente a conotação de
2.1 Estudos descritivos observacionais sondagem ou prospecção, e foi muito utilizado por
de prevalência Paul Lazarsfeld o termo opinion survey, para estudos
São estudos observacionais cujo delineamento res- que se tornaram muito populares nos Estados Unidos
ponde à pergunta de pesquisa a respeito da existência após a Segunda Guerra Mundial. Outras expressões
de uma dada característica no momento em que é feita como “estudo transversal descritivo” e “estudo de
a pesquisa ou a abordagem pontual dos participantes. corte seccional descritivo” podem ser sinônimas.
Corresponde a estudos seccionais ou de corte seccional, Caso não especifiquem sua natureza descritiva, po-
também conhecidos na literatura como inquéritos ou dem causar confusão, porque na literatura são muito
surveys, que documentam eventos existentes em um utilizados para designar os correspondentes estudos
determinado momento, como casos de uma doença analíticos de prevalência.
e fatores de risco ou proteção. Estes estudos incluem Do ponto de vista da análise, os estudos descritivos
os que determinam, na população, as frequências de de prevalência utilizam como medida de frequência o
casos, tanto os já existentes como os novos, segundo cálculo da prevalência. Sua validade externa depende
características das pessoas ou variáveis contextuais da estratégia de amostragem.
tradicionalmente atribuídas aos indivíduos (idade, Para propósitos de vigilância epidemiológica,
sexo, etnia, status socioeconômico, ocupação, situa- alimentar e nutricional, o Estado brasileiro tem pro-
ção conjugal, orientação sexual, hábitos); dos locais movido, nas últimas décadas, a realização de grandes
de ocorrência (ruas, bairros, regiões administrativas, estudos de prevalência que devem ser repetidos perio-
setores censitários, áreas urbanas ou rurais, municí- dicamente, tais como a Vigilância de Fatores de Risco
pios, estados, países); e das épocas de ocorrência (hora, e Prevenção para Doenças Crônicas por Inquérito Te-
dia, mês, ano). lefônico (Vigitel), a Pesquisa Nacional de Saúde do
A pergunta de pesquisa refere-se à frequência Escolar (PeNSE), a Pesquisa Nacional sobre Acesso,
pontual de uma doença, de um fator de risco ou de Utilização e Promoção do Uso Racional de Medica-
uma característica específica dessa população ou mentos no Brasil (PNAUM), a Pesquisa Nacional de
segmento comunitário. Assume-se que há um recor- Saúde (PNS), entre outros. Tais estudos são realizados
te momentâneo no tempo (a chamada sincronia nas com base em amostras complexas e abordagem dos
ciências sociais). O nome que estamos sugerindo, es- participantes mediante comunicação telefônica, entre-
tudo descritivo de prevalência, descreve o que foi feito vistas no domicílio ou no âmbito escolar. A princípio,
sem necessidade de outras explicações. Outra possível nos relatórios publicados, tais investigações fornecem
denominação tem sido a de inquérito, apesar da pos- a possibilidade de estimar prevalências gerais e sua
sibilidade de se confundir o tipo de estudo com uma distribuição e, nesse sentido, são descritivas, tal como
mostra a publicação periódica que relata achados do mas os denominadores correspondem a estimativas,
Vigitel.21 A partir deles, podem ser realizados trabalhos e qualquer comparação torna-se difícil, tanto pelas
analíticos para responder a outro tipo de pergunta diferenças existentes na base populacional – o que
de pesquisa que seria resolvida mediante testes de faz necessário padronizar as taxas, recorrendo a
hipóteses. outros dados (distribuição etária, por exempo) –
quanto pela dificuldade de estabelecer o status de
2.2 Estudos descritivos observacionais exposição de indivíduos, porque se avaliam agregados.
de incidência ou coorte descritiva A pergunta de pesquisa seria: qual é a frequência
Trata-se de pesquisas que envolvem o seguimen- (incidência, mortalidade) do evento em determinada
to ou acompanhamento de um grupo populacional população? Como evoluiu ao longo dos anos? Assim,
para investigar o aparecimento de novos desfechos a agregação nos leva a uma abordagem ecológica,
(casos, recidivas, óbitos ou outros eventos), estabele- frequentemente com base em dados secundários. Tam-
cendo uma dimensão diacrônica análoga ao estudo de bém poderiam ser utilizados para examinar, de modo
coorte clínica. ecológico, os efeitos de uma vacinação no nível da po-
Quando a pergunta norteadora se refere à frequên- pulação, comparando-se a taxa de incidência antes e
cia de novos eventos na população “sadia”, uma vez depois de uma intervenção.23
acompanhada, utiliza-se a denominação de estudo
descritivo de coorte. Neste caso, o seguimento deter- Conclusão
minará a frequência de casos de doença, de óbitos ou Os estudos descritivos têm sido relegados ao ostra-
outros eventos incidentes, tais como iniciação sexual, cismo na literatura científica geral e na epidemiológica
soroconversão, recidivas, entre outros. Acompanha-se em particular. Foi demonstrado anteriormente que
uma população com características definidas. eles respondem a perguntas científicas válidas e rele-
Do ponto de vista da análise epidemiológica, na vantes. A sobrevalorização de métodos de inferência
coorte descritiva, calcula-se a frequência de apare- para responder a questões de pesquisas pertinentes
cimento desses eventos novos, como incidência em aos métodos da epidemiologia analítica levou a uma
relação ao total de pessoas da comunidade efetivamen- rejeição sistemática da epidemiologia descritiva, cujo
te acompanhadas (incidência acumulada). Nos casos resgate foi reivindicado no passado.2 Ao descrever os
de óbito como evento incidente, calcula-se a taxa de estudos, há o cuidado de colocar as perguntas cien-
mortalidade. Nos dois casos, os denominadores expres- tíficas às quais cada tipo responderia. Tais descrições
sam a população “em risco” de acontecer o evento do levam à formulação de hipóteses que seriam ulterior-
numerador. Tanto na mortalidade como na morbida- mente testadas mediante estudos analíticos, com apoio
de, é possível aferir a densidade de incidência, com a da estatística inferencial.
criação do artifício pessoa-tempo no denominador. Ao se mostrar que vale a pena refletir sobre o papel
Apresenta-se, como exemplo, uma coorte de estu- dos estudos descritivos e sua classificação, podem-se
dantes de escolas de ensino fundamental na Tailândia, enxergar outras potencialidades destes estudos. Algu-
cuja experiência é acompanhada para aferir a inci- mas técnicas que apoiam a análise descritiva podem
dência de dengue.22 ter sido subutilizadas, em virtude da hegemonia dos
estudos analíticos inferenciais. Por exemplo, a utiliza-
2.3. Estudos ecológicos descritivos
ção de análise fatorial de correspondência e de análise
Finalmente, é necessário considerar os estudos de componentes principais para descrever a agregação
com base em dados agregados, taxas ou proporções de indivíduos conforme variáveis, as análises geográ-
calculadas para um grupo populacional, em que os ficas com base em dados georreferenciados, apoiadas
numeradores correspondem ao número de eventos pela estatística espacial, as séries temporais e análi-
notificados ou registrados (óbitos, casos de doença ses de sobrevida. Um maior emprego de técnicas e de
de notificação, outros eventos, acidentes, violência), métodos quantitativos enriqueceria os estudos acima
e os denominadores são estimativas de população in- classificados e contribuiria para os objetivos e a me-
tercensitária. Neste caso, os numeradores são finitos, lhor utilização da epidemiologia descritiva.
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Abstract Resumen
Descriptive epidemiological studies are of relevance, La categoría de estudios epidemiológicos descriptivos
given that there are inconsistencies in the literature with es relevante para los servicios de atención de salud ya
regard to their nomenclature and classification. We que existen inconsistencias en la literatura con relación
reviewed 19 international and six national academic a su nomenclatura y clasificación. Se revisaron libros
de texto académicos de epidemiología con ejemplares
textbooks on epidemiology, where the main criterion
disponibles para revisión detallada de capítulos
was to have them available in order to undertake an de epidemiología descriptiva y tipos de estudio: 19
in-depth review of chapters on descriptive epidemiology extranjeros y 6 brasileños. En 11 libros, los autores no
and study types. In 11 books, the authors prioritize consideran ningún estudio que no sea analítico. Doce
analytical studies. Twelve foreign texts and two from textos extranjeros y dos brasileños abarcan estudios
Brazil include descriptive studies, although the majority descriptivos, aunque la mayoría no reconozca esa
did not specifically refer to a category with this name. We categoría explícitamente. Se propone una clasificación
propose a classification based on the answers to research basada en las respuestas a preguntas orientadoras
questions, including the following types of study: case de la investigación incluyendo los siguientes tipos de
report, case series, clinical cohort, prevalence study, estudios: relato de caso, serie de casos y cohorte clínica;
cuatro de ámbito poblacional/comunitario: estudio de
incidence study (cohort) and descriptive ecological
prevalencia, estudio de incidencia (cohorte), estudio
study. We discuss potential uses, implementation of novel descriptivo ecológico. Se discuten las potencialidades del
data analysis methods and their relevance in health uso, la implementación de nuevos métodos de análisis y
surveillance. su relevancia en la vigilancia epidemiológica.
Keywords: Epidemiological Studies; Epidemiology; Palabras clave: Estudios Epidemiológicos; Estudios
Descriptive; Classification. Descriptivos; Clasificación.