O Caso Dos Exploradores de Caverna
O Caso Dos Exploradores de Caverna
O Caso Dos Exploradores de Caverna
FULLER
Professor de “Jurisprudence” da Harvard Law School
O CASO DOS
EXPLORADORES
DE CAVERNAS
FICHA CATALOGRÁFICA
Fuller, Lon L
CDU 340.12
340.11
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IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO
Quer-se significar com isto que não se pode pretender exauri-lo na dog-
mática jurídica e muito menos que se possa esta restringir ao conceptualismo
puro, sem dúvida muitas vezes atraente ao espírito, mas despido de importân-
cia e mesmo nocivo - porque alienante - ao regramento da realidade social. É
de todo imperioso que a dogmática jurídica e a pesquisa em geral, representa-
da pela Filosofia, pela História, pela Sociologia Jurídica, pela Ciência Política (e
aqui a enumeração é meramente exemplificativa), guardem aquela íntima vin-
culação sem a qual não se poderá verdadeiramente apreender o jurídico.
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estudantes que recém transpunham os umbrais da Universidade, surpreendeu-
nos a profundidade de seu conteúdo, que se não revela em uma primeira leitu-
ra, ainda que cuidadosa. Fazendo a sua exposição isenta de posições precon-
cebidas e submetendoo à discussão, vimos os alunos ainda vacilantes esboça-
rem alguns dos traços mais característicos dos votos, correspondentes a dife-
rentes posturas filosóficas, emitidos pelos juízes do Tribunal do Presidente
Truepenny. Daí a nossa decisão de traduzi-lo para o português, para que nos-
sos estudantes penetrassem desde logo nas abstrações jurídicas pela via da
concretude.
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"Perelman combate a opinião de tantos filósofos que consideraram - e continuam considerando - que
toda forma de raciocínio que não se assemelhe ao matemático não pertence à lógica. Contra esta opinião
injustificada e caduca sustenta Perelman que há mesmo formas de raciocínio mais elevadas, que não
constituem propriamente cálculos nem tampouco podem ser formuladas como “demonstrações”, perten-
cendo, em contrapartida, à argumentação". E é esta "precisamente o tipo de raciocínio empregado pelo
jurista... A tradição cartesiana, que busca acima de tudo a evidência, desdenha qualquer proposição que
não possua o caráter do óbvio, do indiscutível, do exato, do preciso. Todavia, esta concepção logicista ou
matematizante do pensamento é demasiadamente estreita, pois não abrange grande quantidade de raciocí-
nios, que não têm e nem podem ter forma demonstrativa... Mas sucede que a própria índole da delibera-
ção e da argumentação se opõem à evidência e à necessidade absoluta; porque não se delibera nos casos
em que a solução tem caráter de necessidade, como não se argumenta contra a evidência. A argumentação
tem seu sentido no verossímil, no plausível e no provável, escapando estes à certeza de um cálculo exato
de que resulte uma única solução justificável em termos absolutos... Já os cultores das ciências naturais
apenas reconhecem a evidência da intuição sensível, da experiência e da indução... Tanto a concepção
cartesiana quanto a dos cientistas empíricos mutilam o campo da razão, posto que lhe negam capacidade
para tratar dos domínios em que nem a dedução lógica nem a observação dos fatos podem fornecer-nos a
solução dos problemas. A aceitar-se esta circunscrição da razão em tais domínios, não nos restaria outro
recurso exceto o de neles entregar-nos às forças irracionais, a nossos instintos ou à violência". Perelman,
Chaim - De la justicia (De la justice) Trad. de Ricardo Guerra. Pref. de Luis Recasens Siches. México,
Universidad Nacional Autónoma de México, 1964, p. II-III.
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Azevedo, Plauto Faraco de - Em que consiste a problemática do Direito Natural. Antigüidade e vastidão
do tema. Estudos Jurídicos, São Leopoldo, 5(12): 100, 1975.
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nos primórdios do curso jurídico, é que poderão solver tais dificuldades, não
confundindo o Direito com a Lei, e nem esta com a Justiça.
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O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNA
Presidente Truepenny, C. J.
Desde que se soube que os exploradores tinham levado consigo apenas escassas
provisões e se ficou também sabendo que não havia substância animal ou vegetal na
caverna que lhes permitisse subsistir, temeu-se que eles morressem de inanição antes
que o acesso até o ponto em que se achavam se tornasse possível. No vigésimo dia a
partir da ocorrência da avalancha soube-se que os exploradores tinham levado consigo
para a caverna um rádio transistorizado capaz de receber e enviar mensagens. Instalou-
se prontamente um aparelho semelhante no acampamento, estabelecendo-se deste modo
a comunicação com os desafortunados homens no interior da montanha. Pediram estes
que lhes informassem quanto tempo seria necessário para liberá-los. Os engenheiros
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responsáveis pela operação de salvamento responderam que precisavam de pelo menos
dez dias, à condição que não ocorressem novos deslizamentos. Os exploradores pergun-
taram então se havia algum médico no acampamento, tendo sido postos em comunica-
ção com a comissão destes, à qual descreveram sua condição e as rações de que dispu-
nham, solicitando uma opinião acerca da probabilidade de subsistirem sem alimento por
mais dez dias. O presidente da comissão respondeu-lhes que havia escassa possibilidade
de sobrevivência por tal lapso de tempo. O rádio dentro da caverna silenciou a partir daí
durante oito horas. Quando a comunicação foi restabelecida os homens pediram para
falar novamente com os médicos, o que conseguido, Whetmore, falando em seu próprio
nome e em representação dos demais, indagou se eles seriam capazes de sobreviver por
mais dez dias se se alimentassem da carne de um dentre eles. O presidente da comissão
respondeu, a contragosto, em sentido afirmativo. Whetmore inquiriu se seria aconselhá-
vel que tirassem a sorte para determinar qual dentre eles deveria ser sacrificado. Ne-
nhum dos médicos se atreveu a enfrentar a questão. Whetmore quis saber então se havia
um juiz ou outra autoridade governamental que se dispusesse a responder à pergunta.
Nenhuma das pessoas integrantes da missão de salvamento mostrou-se disposta a assu-
mir o papel de conselheiro neste assunto. Whetmore insistiu se algum sacerdote poderia
responder àquela interrogação, mas não se encontrou nenhum que quisesse faze-lo. De-
pois disto não se receberam mais mensagens de dentro da caverna, supondo-se (errone-
amente como depois se evidenciou) que as pilhas do rádio dos exploradores tinham -se
descarregado. Quando os homens foram finalmente libertados soube-se que, no trigési-
mo terceiro dia após sua entrada na caverna, Whetmore tinha sido morto e servido de
alimento a seus companheiros.
Das declarações dos acusados, aceitas pelo júri, evidencia-se que Whetmore foi
o primeiro a propor que buscassem alimento na carne de um dentre eles, sem o que a
sobrevivência seria impossível. Foi também Whetmore quem primeiro propôs a forma
de tirar. a sorte, chamando a atenção dos acusados para um par de dados que casualmen-
te trazia consigo. Os acusados inicialmente hesitaram adotar um comportamento tão
desatinado, mas, após o diálogo acima relatado, concordaram com o plano proposto. E
depois de muita discussão com respeito aos problemas matemáticos que o caso suscita-
va, chegaram por fim a um acordo sobre o método a ser empregado para a solução do
problema: os dados.
Entretanto, antes que estes fossem lançados, Whetmore declarou que desistia do
acordo, pois havia refletido e decidido esperar outra semana antes de adotar um expedi-
ente tão terrível e odioso. Os outros o acusaram de violação do acordo e procederam ao
lançamento dos dados. Quando chegou a vez de Whetmore um dos acusados atirou-os
em seu lugar, ao mesmo tempo em que se lhe pediu para levantar quaisquer objeções
quanto à correção do lanço. Ele declarou que não tinha objeções a fazer. Tendo-lhe sido
adversa a sorte, foi então morto.
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pelo juiz. Em um longo veredicto especial o júri acolheu a prova dos fatos como acima
a relatei e ainda que se, com fundamento nos mesmos, os acusados fossem considerados
culpados, deveriam ser condenados. Com base neste veredicto o juiz de primeira instân-
cia decidiu que os réus eram culpados do assassinato de Roger Whetmore. Em conse-
qüência sentenciouos à forca, não lhe permitindo a lei nenhuma discrição com respeito à
pena a ser imposta. Dissolvido o júri, seus membros enviaram uma petição conjunta ao
chefe do Poder Executivo pedindo que a sentença fosse comutada em prisão de seis me-
ses. O juiz de primeira instância endereçou uma petição similar à mesma autoridade.
Até o momento, porém, nada resolveu o Executivo, aparentemente esperando pela nossa
decisão no presente recurso.
Foster, J.
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ler a admitir-se que ela não pretende realizar a justiça.
No que me concerne, não creio que nossa lei conduza obrigatoriamente à mons-
truosa conclusão de que estes homens são assassinos. Creio, ao contrário, que ela os
declara inocentes da prática de qualquer crime. Fundamenta-se a conclusão sobre duas
premissas independentes, cada uma das quais é por si própria suficiente para justificar a
absolvição dos acusados.
Se os trágicos acontecimentos deste caso tivessem tido lugar a uma milha dos
nossos limites territoriais, ninguém pretenderia que nossa lei lhes fosse aplicada. Reco-
nhecemos que a jurisdição tem base territorial. As razões desse princípio não são de
nenhum modo óbvias e raramente são examinadas. Penso que esse princípio baseia-se
na suposição de que só é possível impor-se uma única ordem jurídica a um grupo de
homens se eles vivem juntos dentro dos limites de uma dada área da superfície da terra.
A premissa segundo a qual os homens devem coexistir em um grupo encontrase, portan-
to, à base do princípio territorial, bem como de todo o direito. Pois bem, eu sustento que
um caso pode ser subtraído da esfera de abrangência coercitiva de uma ordem jurídica
tanto por razões de ordem moral quanto por razões de ordem geográfica. Atentando aos
propósitos do direito e do governo e às premissas subjacentes a nosso direito positivo,
concluímos que estes homens, quando tomaram sua trágica decisão, estavam tão distan-
tes de nossa ordem jurídica como se estivessem a mil milhas além de nossas fronteiras.
Mesmo em um, sentido físico, sua prisão subterrânea estava separada dos nossos tribu-
nais è dos nossos oficiais de justiça por uma sólida cortina de rocha que só pôde ser
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removida depois dos maiores dispêndios de tempo e de esforço.
Concluo, portanto, que no momento em que Roger Whetmore foi morto pelos
réus, eles se encontravam não em um "estado de sociedade civil" mas em um "estado
natural", como se diria na singular linguagem dos autores do século XIX. A conseqüên-
cia disto é que a lei que lhes é aplicável não é a nossa, tal como foi sancionada e estabe-
lecida, mas aquela apropriada a sua condição. Não hesito em dizer que segundo este
princípio eles não são culpados de qualquer crime.
Se portanto nossos verdugos têm o poder de pôr fim à vida dos homens, se nos-
sos oficiais de justiça tem o poder de determinar o despejo dos locatários em mora, se
nossa polícia tem o poder de encarcerar o pândego embriagado, estes poderes encon-
tram sua justificação moral naquele contrato originário celebrado pelos nossos antepas-
sados. Se nós não podemos encontrar fonte mais elevada para nossa ordem jurídica, que
outra mais alta deveríamos esperar que estes infortunados famintos estabelecessem para
o ordenamento que adotaram para si próprios?
Acredito que a linha de argumentação que termino de expor não admite nenhu-
ma contestação racional. Dou-me conta que ela será provavelmente recebida com uma
certa inquietação por muitos que venham a lê-la, os quais inclinar-se-ão a suspeitar que
algum sofisma oculto deve encontrar-se à base de uma demonstração que conduz a tan-
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tas conclusões tão pouco comuns. A fonte desta intranqüilidade é, no entanto, fácil de
identificar. As condições usuais da existência nos inclinam a considerar a vida humana
um valor absoluto, que não pode ser sacrificado em nenhuma circunstância. Há muito
de ilusório nesta concepção, mesmo quando aplicada às relações normais ocorrentes na
vida social. Tivemos um exemplo desta verdade no próprio caso que ora examinamos.
Dez trabalhadores morreram' no trabalho de remoção das rochas à entrada da caverna.
Não sabiam os engenheiros e os funcionários públicos que dirigiam a operação de sal-
vamento que os esforços que estavam empreendendo eram perigosos e envolviam um
sério risco para as vidas dos trabalhadores que os estavam executando? Se é justo que
estas dez vidas tenham sido sacrificadas para salvar as dos cinco exploradores, a que
título diremos ter sido injusto que estes exploradores executassem um acordo para sal-
var quatro vidas em detrimento de uma?
Qualquer rodovia, túnel ou edifício que nos projetamos envolve um risco à vida
humana. Tomando estes projetos em conjunto podemos calcular com certa precisão
quantas mortes a sua construção irá demandar; os estatísticos podem dizer o custo mé-
dio em vidas humanas de mil milhas de uma rodovia de concreto de quatro pistas. En-
tretanto, deliberada e conscientemente incorremos neste risco e pagamos este custo na
suposição de que os valores resultantes para aqueles que sobrevivem sobrepujam a per-
da. Se estas coisas podem ser ditas em uma sociedade desenvolvendo-se normalmente
sobre a superfície da terra, o que se deverá dizer do suposto valor absoluto da vida hu-
mana na situação de desespero em que os réus e seu companheiro Whetmore foram co-
lhidos?
Com isto dou por concluído o primeiro fundamento do meu voto. O segundo vai
mais além, rejeitando hipoteticamente todas as premissas que formulei até o momento.
Concedo, para fins de argumentação, que eu esteja errado dizendo que a situação destes
homens os subtrai à incidência do nosso direito positivo, e suponho que nossas Leis
Consolidadas tenham o poder de penetrar quinhentos pés de rocha e impor-se sobre es-
tes homens famintos e amontoados em sua prisão subterrânea. Nestas condições é per-
feitamente claro que estes homens praticaram um ato que viola a expressão literal da lei
que declara que aquele que intencionalmente mata a outrem é um assassino. Mas um
dos mais antigos aforismas da sabedoria jurídica ensina que um homem pode infringir a
letra da lei sem violar a própria lei. Toda proposição dedireito positivo, quer contida em
uma lei ou em um precedente, deve ser interpretada de modo racional, segundo seu pro-
pósito evidente. Isto é uma verdade tão elementar que é, a rigor, desnecessário alongar-
me a este respeito. Os exemplos de sua aplicação são inumeráveis e se encontram em
todos os setores do ordenamento jurídico. No caso Commonwealth v. Staymore o acusa-
do foi condenado tendo em vista uma lei que considera delituoso estacionar os auto-
móveis, em certas áreas, por um período superior a duas horas. O réu tinha tentado reti-
rar o seu carro, mas foi impedido de faze-lo porque as ruas encontravam-se obstruídas
por uma demonstração política na qual ele não tomara parte, nem pudera prever. Este
Tribunal reformou a sentença, rejeitando a condenação, embora o caso se enquadrasse
perfeitamente dentro do enunciado literal da lei. Também no caso de Fehler v. Neegas
esteve perante este Tribunal, para ser interpretado, um dispositivo legal em que a pala-
vra "não" fora evidentemente transposta da posição em que devia estar. Esta transposi-
ção encontrava-se em todas as redações sucessivas do dispositivo legal, não tendo, apa-
rentemente, sido notada pelos elaboradores ou pelos demais responsáveis pela legisla-
ção. Embora ninguém fosse capaz de explicar como o erro ocorrera, era manifesto que,
tendo em conta as disposições da lei em seu conjunto, um erro tinha sido cometido, uma
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vez que a leitura literal de sua parte final tornava-a incompatível com tudo o que a pre-
cedia e com o, objetivo deste texto tal como enunciado em seu preâmbulo. Este Tribunal
recusou-se a aceitar a interpretação literal da lei, e, de fato, retificou sua linguagem,
transpondo a palavra "não" para o seu lugar exato.
O dispositivo legal cuja interpretação devemos realizar nunca foi aplicado lite-
ralmente. Há séculos estabeleceu-se que matar em legitima defesa é escusável. Não há
nada no texto legal que sugira esta exceção. Várias tentativas tem sido feitas para conci-
liar a aceitação jurisprudencial da legítima defesa com o texto da lei, embora em minha
opinião não constituam senão engenhosos sofismas. A verdade é que a exceção em fa-
vor da legitima defesa não é conciliável com as palavras da lei, mas somente com seu
propósito.
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Whetmore e que a sentença de condenação deve ser reformada.
Tatting, J.
No cumprimento de meus deveres como juiz deste Tribunal, tenho sido normal-
mente capaz de dissociar os aspectos emocionais e intelectuais de minhas reações e de-
cidir o caso sub judice inteiramente baseado no último. Examinando este trágico caso,
sinto todavia que me faltam os recursos habituais. Sob o aspecto emocional sinto-me
dividido entre a simpatia por estes homens e um sentimento de aversão e revolta com
relação ao monstruoso ato que cometeram. Alimentei a esperança de que seria capaz de
pôr estas emoções contraditórias de lado como irrelevantes e, assim, decidir o caso com
base em uma demonstração convincente e lógica do resultado reclamado por nossa lei.
Infelizmente não alcancei esta liberação. Ao analisar o voto que terminou de enunciar
meu colega Foster, sinto que está minado por contradições e falácias. Comecemos pela
sua primeira proposição: estes homens não estavam sujeitos à nossa lei porque não se
encontravam em um "estado de sociedade civil" mas em um "estado de natureza". Não
me parece claro porque isto seja assim, se em virtude da espessura da rocha que os apri-
sionou ou porque estavam famintos ou porque tinham estabelecido uma "nova constitui-
ção", segundo a qual as regras usuais de direito deviam ser suplantadas por um lanço de
dados. E outras dificuldades fazem-se sentir. Se estes homens passaram da jurisdição da
nossa lei para aquela da "lei da natureza", em que momento isto ocorreu? Foi quando a
entrada da caverna se fechou? Quando a ameaça de morte por inanição atingiu um grau
indefinido de intensidade? Ou quando o contrato para o lanço de dados foi celebrado?
Estas incertezas que emergem da doutrina proposta pelo meu colega são capazes de
causar reais dificuldades. Suponha-se, por exemplo, que um destes homens tenha feito
seu vigésimo primeiro aniversário enquanto estava aprisionado no interior da montanha.
Em que data teríamos que considerar que ele completou a maioridade - quando atingiu
os vinte e um anos, no momento em que se achava, por hipótese, subtraído dos efeitos
de nossas leis, ou quando foi libertado da caverna e voltou a submeter-se ao império do
que o meu colega denomina nosso "direito positivo”. Estas dificuldades, no entanto,
servem para revelar a natureza fantasiosa da doutrina que é capaz de originá-las.
Mas não é necessário explorar mais estas sutilezas para demonstrar o absurdo da
posição do meu colega. O senhor Ministro Foster e eu somos os juízes designados do
Tribunal de Newgarth, com o poder-dever de aplicar as leis deste país. Com que autori-
dade nos transformamos em um tribunal da natureza? Se esses homens na verdade se
encontravam sob a lei natural, de onde vem nossa autoridade para estabelecer e aplicar
aquela lei? Certamente nós não estamos em um estado de natureza.
Mas, examinemos o conteúdo deste código de leis naturais que meu colega pro-
põe que adotemos e o apliquemos a este caso. Que código desordenado e odioso é este!
É um código em que as normas reguladoras dos contratos assumem maior importância
do que aquela referente ao homicídio. É um código segundo o qual um homem pode
estabelecer um contrato válido, conferindo poderes a seus semelhantes de comer seu
próprio corpo. Além disso, segundo os seus dispositivos, uma vez feito, tal contrato é
irrevogável, e, se uma das partes tenta rescindi-lo, as outras podem tomar a lei em suas
próprias mãos è executá-lo pela força - pois embora meu colega não refira, por conveni-
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ência, o efeito da rescisão unilateral do contrato feita por Whetmore, esta é uma inferên-
cia necessária de sua argumentação.
Os princípios expostos por meu colega contêm outras implicações que não po-
dem ser toleradas. Meu colega argumenta que quando os acusados lançaramse sobre
Whetmore e o mataram (nós não sabemos como, talvez golpeando-o com pedras), eles
estavam somente exercitando o direito que lhes fora conferido pelo contrato. Suponha-
se, entretanto, que Whetmore tivesse escondido sob suas roupas um revólver e que,
quando visse os réus lançarem-se sobre si para trucidá-lo, os tivesse matado a tiros a fim
de salvar sua própria vida. O raciocínio de meu colega aplicado a estes fatos transforma-
ria Whetmore em um homicida, de vez que a excludente da legitima defesa teria que
ser-lhe denegada. Se seus atacantes estavam atuando legalmente procurando ocasionar
sua morte, então, evidentemente, ele não mais poderia excusar-se argumentando que
estava defendendo sua própria vida, da mesma forma que não poderia faze-lo um prisi-
oneiro condenado que abate o verdugo enquanto tenta legalmente colocar o nó em seu
pescoço.
Todas estas considerações tornam impossível para mim aceitar a primeira parte
dos argumentos de meu colega. Não posso nem aceitar sua noção de que estes homens
encontravam-se regidos por um código de leis naturais, que este Tribunal estaria obri-
gado a aplicar-lhes, nem posso admitir as regras odiosas e desnaturadas que ele pretende
que este código contenha. Chego agora à segunda parte do voto do meu colega em que
ele busca demonstrar que os réus não violaram os dispositivos legais do N. C. S. A. (n.
s.) § 12-A. Neste ponto o raciocínio, ao invés de ser claro, parece-me nebuloso e ambí-
guo, embora meu colega não pareça consciente das dificuldades inerentes às suas de-
monstrações.
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descarga ordenada à instintiva necessidade de retribuição: Commonwealth v. Scape.
Também se afirma,que o seu escopo é a reabilitação do delinqüente: Commonwealth v.
Makeover. E outras teorias têm sido propostas. Supondo-se que nós devamos interpretar
uma lei à luz de seu propósito, o que deveremos fazer quando tiver vários propósitos ou
quando estes forem questionados?
É claro que, refletindo, me dou conta de que estou lidando com um problema
que nunca mais ocorrerá, pois é improvável que outro grupo de homens seja levado a
cometer novamente a terrível ação que ora julgamos. De qualquer forma, continuando a
reflexão, mesmo se nós estamos certos de que um caso similar não ocorrerá novamente,
não é claro que os exemplos que dei demonstram a falta de qualquer princípio coerente
e racional na decisão que meu colega propõe? Não se deve aferir a correção de um prin-
cípio pelas conclusões que ele acarreta, sem que se faça referencia a eventuais proble-
mas decorrentes de um litígio futuro? Entretanto, se assim é, porque nós juízes deste
Tribunal, discutimos tão amiúde se é provável que tenhamos que aplicar no futuro um
princípio que a solução do caso que ora julgamos reclama? É esta uma situação em que
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uma linha de raciocínio, originariamente inadequada, chegou a sancionar-se por via de
um precedente, de modo que daí por diante estejamos obrigados a aplicá-la?
Quanto mais examino este caso e penso sobre ele, mais profundamente envolvi-
do emocionalmente me sinto. Minha mente fica enredada nas malhas das redes que eu
próprio arremesso para salvar-me. Creio que quase toda consideração que interesse à
solução do presente caso é contrabalançada por outra oposta, conduzindo em uma dire-
ção também oposta. Meu colega Foster não me propiciou, nem eu pude descobrir por
mim próprio, nenhuma fórmula capaz de resolver as dúvidas que por todos os lados me
acossam.
Dei a este caso a maior atenção de que sou capaz. Tenho dormido muito pouco
desde que nos foi apresentado à decisão. Quando me sinto inclinado a aceitar o ponto de
vista de meu colega Foster, detém-me a impressão de que seus argumentos são intelec-
tualmente infundados e completamente abstratos. De outro lado, quando me inclino no
sentido de manter a condenação, choca-me o absurdo de condenar estes homens à morte
quando a salvação de suas vidas custou as de dez heróicos operários. Lamento que ao
Representante do Ministério Público tenha parecido adequado acusá-los de homicídio.
Se tivéssemos um dispositivo legal capitulando como crime o fato de comer carne hu-
mana, esta teria sido uma acusação mais apropriada. Se nenhuma outra acusação ade-
quada aos fatos deste caso podia ser formulada contra os acusados, teria sido preferível,
penso, não tê-los pronunciado. Infelizmente, entretanto, estes homens foram processa-
dos e julgados e, em decorrência disto, nós nos vemos envolvidos por este infeliz litígio.
Keen, J.
Eu gostaria de começar deixando de lado duas questões que não são da compe-
tência deste Tribunal.
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mento dos meus deveres como juiz não me incumbe dirigir instruções ao chefe do Poder
Executivo, nem tomar em consideração o que ele possa ou não fazer, a fim de chegar à
minha própria decisão que deverá ser inteiramente guiada pela lei desta Commonwealth.
'
A segunda questão que desejo deixar de lado diz respeito a decidir se o que estes
homens fizeram foi "justo" ou "injusto", "mau" ou "bom". Esta é outra questão irrele-
vante ao cumprimento de minha função, pois, como juiz, jurei aplicar não minhas con-
cepções de moralidade, mas o direito deste país. Pondo esta questão de lado penso que
posso também excluir sem comentário a primeira e mais poética porção do voto do meu
colega Foster. O elemento de fantasia contido nos argumentos por ele desenvolvidos
revelou-se de maneira flagrante na tentativa um tanto solene do meu colega Tatting de
encará-los seriamente.
A única questão que se nos apresenta para ser decidida consiste em saber se os
réus, dentro do significado do N.C.S.A. (n.s.) § 12-A, privaram intencionalmente da
vida a Roger Whetmore. O texto exato da lei é o seguinte: "Quem quer que intencio-
nalmente prive a outrem da vida será punido com a morte". Devo supor que qualquer
observador imparcial, que queira extrair destas palavras o seu significado natural, con-
cederá imediatamente que os réus privaram "intencionalmente da vida a Roger Whet-
more".
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real distribuição da população, bem como à forte personalidade e à vasta popularidade
daquele que era então o presidente do Tribunal. É suficiente observar que aqueles dias
passaram e que, em lugar da incerteza que então reinava, nos agora temos um principio
bem determinado consistente na supremacia do ramo legislativo do nosso governo. Des-
se princípio decorre a obrigação do Poder Judiciário de aplicar fielmente a lei escrita e
de interpretá-la de acordo com seu significado evidente, sem referência a nossos desejos
pessoais ou a nossas concepções individuais da justiça. Não me cabe indagar se o prin-
cípio que proíbe a revisão judicial das leis é certo ou errado, desejado ou indesejado;
observo simplesmente que este principio tornou-se uma premissa tácita subjacente a
toda ordem jurídica que jurei aplicar.
A inclinação de meu colega Foster para encontrar lacunas nas leis faz lembrar a
história, narrada por um antigo autor, de um homem que comeu um par de sapatos.
Quando lhe perguntaram se os havia apreciado, ele replicou que preferira os buracos.
Não é outro o sentimento de meu colega com respeito às leis; quanto mais buracos (la-
cunas) elas tenham, mais ele as aprecia. Em resumo, não lhe agradam as leis.
Não se poderia desejar um caso melhor para ilustrar a natureza ilusória deste
processo de preenchimento de lacunas do que aquele ora pendente de julgamento. Meu
colega pensa que sabe exatamente o que se buscou ao declarar-se o assassinato um cri-
me. Segundo ele seria algo que se denomina "prevenção". Meu colega Tatting já mos-
trou quanto é omissa esta interpretação. Mas penso que a dificuldade jaz mais profun-
damente. Duvido muito que nossa lei, qualificando o assassinato como crime, tenha
realmente um "propósito" em qualquer sentido ordinário desta palavra. Antes de mais
nada, tal lei reflete uma convicção humana profundamente arraigada, segundo a qual o
assassinato é injusto e que algo deve ser feito ao homem que o comete. Se nós fôssemos
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forçados a ser mais explícitos acerca do problema, provavelmente nos refugiaríamos nas
mais sofisticadas teorias dos criminologistas, as quais, por certo, não se encontravam na
mente dos nossos legisladores. Nós poderíamos também observar que os homens execu-
tariam seu trabalho de maneira mais eficaz e viveriam mais felizes se fossem protegidos
contra a ameaça de agressão violenta. Tendo em mente que as vítimas de homicídios
são freqüentemente pessoas desagradáveis, nós poderíamos ajuntar a sugestão de que a
eliminação de pessoas indesejáveis não deva ser uma função apropriada à iniciativa pri-
vada, mas, ao revés, constituir um monopólio estatal. Tudo isto lembra-me um advoga-
do que, certa ocasião, argumentou perante este Tribunal que uma lei sobre o exercício
da medicina era uma boa coisa porque levaria à diminuição dos prêmios de seguro de
vida, eis que elevaria o nível geral de saúde. Há quem pretenda que o óbvio deve ser
explicado.
Se nós não sabemos o propósito do § 12A, como podemos dizer que haja uma
lacuna nele? Como podemos nós saber o que pensaram seus elaboradores acerca da
questão de matar homens para come-los? Meu colega Tatting revelou uma repulsão
compreensível, embora talvez um tanto exagerada, relativamente ao canibalismo. Como
podemos nós saber que seus remotos antepassados não sentiram a mesma repulsa em
um grau mais elevado? Os antropólogos afirmam que o temor sentido em relação a um
ato proibido pode crescer quando as condições de vida tribal criam tentações especiais à
sua prática: é o que ocorre com o incesto, que é mais severamente condenado entre a-
queles cujas relações comunitárias o tornam mais provável. Certamente, o período sub-
seqüente à Grande Espiral trazia consigo implícitas tentações à antropofagia. Talvez
fosse em virtude disso que nossos antepassados expressaram essa proibição de forma
tão larga e irrestrita. Tudo isto é, por certo, conjetura, mas fica suficientemente claro
que nem eu nem meu colega Foster sabemos qual seja o propósito do § 12-A. Conside-
rações similares às que acabei de delinear são também aplicáveis à excludente da legí-
tima defesa que desempenha um papel tão importante no raciocínio dos colegas Foster e
Tatting. É, sem dúvida, verdade que em Commonwealth v. Parry um ponto de vista ex-
presso incidentalmente, sem força de precedente, justificou esta exceção, presumindo-se
que o propósito da legislação penal é a prevenção. Também pode ser verdade que se
tenha ensinado a várias gerações de estudantes que a verdadeira explicação da excluden-
te reside na circunstância segundo a qual um homem que atua em legítima defesa não
age "intencionalmente", e que os mesmos estudantes tenham sido considerados habilita-
dos ao exercício da advocacia repetindo o que os seus professores lhes ensinaram. Natu-
ralmente, pude rejeitar estas últimas observações como irrelevantes pela simples razão
que os professores e examinadores ainda não tem delegação de poderes para elaborar
nossas leis. Mas, insisto, o problema real é mais profundo. Tanto no que se refere à lei,
como no que respeita à exceção, a questão não está no suposto propósito da lei, mas no
seu alcance. No que concerne à extensão da legítima defesa, tal como tem sido aplicada
por este Tribunal, a situação é clara: ela se aplica aos casos de resistência a uma ameaça
agressiva à própria vida de uma pessoa. É, portanto, bastante claro que este caso não se
situa no âmbito da exceção, posto que é evidente que Whetmore não fez nenhuma ame-
aça contra a vida dos réus.
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completo fracasso no desempenho da função judicial. É de todo impossível ao juiz apli-
car uma lei tal como está redigida e, simultaneamente, refazê-la em consonância com
seus desejos pessoais.
Bem sei que a linha de raciocínio que terminei de expor neste voto não será acei-
tável por aqueles que cogitam tãosomente dos efeitos imediatos de uma decisão e igno-
ram as implicações que poderão advir no futuro em conseqüência de assumir o judiciá-
rio o poder de criar exceções à aplicação da lei. Uma decisão rigorosa nunca é popular.
Juízes tem sido exaltados na literatura por seus ardilosos subterfúgios destinados a pri-
var um litigante de seus direitos nos casos em que a opinião pública julgava errado faze-
los prevalecer. Mas eu acredito que a exceção ao cumprimento das leis, levada a efeito
pelo Poder Judiciário, faz mais mal a longo prazo do que as decisões rigorosas. As sen-
tenças severas podem ate mesmo ter um certo valor moral, fazendo com que o povo
sinta a responsabilidade em face da lei, que, em última análise, é sua própria criação,
bem como relembrandolhe que não há nenhum princípio de perdão pessoal que possa
mitigar os erros de seus representantes.
Na verdade, irei mais longe e direi que os princípios por mim expostos são os
melhores para as nossas condições atuais; e, mais, que nós teríamos herdado um melhor
sistema jurídico dos nossos antepassados se estes princípios tivessem sido observados
desde o início. Por exemplo, com respeito à excludente da legítima defesa, se nossos
tribunais tivessem permanecido firmes na letra da lei, o resultado teria sido, sem dúvida
alguma, a sua revisão legislativa. Tal revisão teria suscitado a colaboração de cientistas
e psicólogos, e a regulamentação da matéria, daí resultante, teria tido um fundamento
compreensível e racional, ao invés da miscelânea de verbalismos e distinções metafísi-
cas que emergiram de seu tratamento judicial e acadêmico.
Essas conclusões finais estão, por certo, além dos deveres que devo cumprir
relativamente a este caso, mas as enuncio porque sinto de modo profundo que meus
colegas estão muito pouco conscientes dos perigos implícitos nas concepções sobre a
magistratura defendidas pelo meu colega Foster.
Handy, J.
Ouvi com estupefação os angustiados raciocínios que este caso trouxe à tona.
Nunca deixo de admirar a habilidade com que meus colegas lançam uma obscura corti-
na de legalismos sobre qualquer problema que lhes seja apresentado para decidir. Nesta
tarde ouvimos arrazoados sobre as distinções entre direito positivo e direito natural, a
letra e o propósito da lei, funções judiciais e executivas, legislação oriunda do judiciário
e do legislativo. Minha única decepção foi que ninguém levantou a questão da natureza
jurídica do contrato celebrado na caverna - se era unilateral ou bilateral, e se não se po-
deria considerar que Whetmore revogou a sua anuência antes que se tivesse atuado com
fundamento nela.
O que é que todas essas coisas tem a ver com o caso? O problema que temos que
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decidir é o que nós, como funcionários públicos, devemos fazer com esses acusados.
Esta é uma questão de sabedoria prática a ser exercida em um contexto, não de teoria
abstrata, mas de realidades humanas. Quando o caso é examinado sob essa luz, torna-se,
segundo me parece, um dos mais fáceis de decidir dentre os que já foram argüidos pe-
rante este Tribunal.
Mas, fora destes domínios, acredito que todos os funcionários públicos, inclusi-
ve os juízes, cumpririam melhor seus deveres se considerassem as formalidades e os
conceitos abstratos como instrumentos. Penso que deveríamos tomar como nosso mode-
lo o bom administrador, que adapta os métodos e princípios ao caso concreto, selecio-
nando dentre os meios de que dispõe os mais adequados à obtenção do resultado coli-
mado.
A mais óbvia vantagem deste método de governo é que ele nos permite cumprir
nossas tarefas diárias com eficiência e senso comum. Minha adesão a esta filosofia tem,
entretanto, raízes mais profundas. Creio que apenas com o discernimento que ela propi-
cia podemos preservar a flexibilidade essencial se quisermos manter nossas ações em
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uma conformidade razoável com os sentimentos daqueles que se acham submetidos à
nossa autoridade. Mais governos soçobraram e mais miséria humana foi causada pela
ausência deste acordo entre governantes e governados do que por qualquer outro fator
que se possa discernir na história. Desde o momento em que se introduz uma cunha en-
tre a massa do povo e aqueles que dirigem sua vida jurídica, política e econômica, a
sociedade é destruída. Então nem a lei da natureza de Foster, nem a fidelidade à lei es-
crita de Keen, não servirão de mais nada.
Aplicando estas concepções ao caso sub judice, sua decisão se torna, conforme
referi, bastante fácil. A fim de demonstrar isso terei que divulgar certas realidades que
meus colegas, como pudico decoro, julgaram adequado omitir, ainda que delas tenham
tanta consciência quanto eu próprio.
A primeira delas é que este caso despertou um enorme interesse público tanto no
país quanto no exterior. Quase todos os jornais e revistas publicaram artigos a seu res-
peito; colunistas partilharam com seus leitores informações confidenciais referentes ao
próximo passo do Poder Executivo; centenas de cartas aos editores foram publicadas.
Uma das grandes cadeias de jornais fez uma sondagem de opinião pública acerca da
questão - "que pensa você que a Suprema Corte deveria fazer com os exploradores de
cavernas?" Cerca de noventa por cento expressaram a opinião de que os acusados deve-
riam ser perdoados ou deixados em liberdade, com uma espécie de pena simbólica. Por-
tanto, é perfeitamente claro o sentimento da opinião pública frente ao caso. Alias, pode-
ríamos tê-lo sabido sem a sondagem, com base no senso comum ou mesmo observando
que neste Tribunal há manifestamente quatro homens e meio, ou seja noventa por cento,
que partilham da opinião comum.
Isto torna óbvio não somente o que deveríamos, mas o que devemos fazer, se de-
sejamos preservar entre nós e a opinião pública uma harmonia razoável e decente. O
fato de declararmos estes homens inocentes não nos envolve em nenhum subterfúgio ou
ardil pouco digno. Tampouco é necessário qualquer principio de interpretação legal que
não esteja de acordo com o modo de proceder deste Tribunal. Certamente nenhuma pes-
soa leiga pensaria que, absolvendo estes homens, nós tivéssemos desvirtuado a lei mais
do que nossos predecessores o fizeram quando criaram a excludente da legítima defesa.
Se uma demonstração mais detalhada do método seguido para harmonizar nossa decisão
com o dispositivo legal fosse julgada necessária, contertar-me-ia em fixar-me nos argu-
mentos desenvolvidos na segunda e menos fantasiosa parte do voto do meu colega Fos-
ter.
Estou convicto de que meus colegas se horrorizarão por eu ter sugerido que este
Tribunal leve em conta a opinião pública. Eles dirão que a opinião pública é emocional
e caprichosa, que se baseia em meias verdades e que ouve testemunhas que não estão
sujeitas a novo interrogatório. Eles dirão ainda que a lei cerca o julgamento de um caso
como este de cuidadosas garantias, destinadas a assegurar que a verdade será conhecida
e que qualquer consideração racional referente às possíveis soluções do caso será toma-
da em consideração. Advertirão que todas estas garantias de nada servem se for permiti-
do que a opinião pública, formada fora deste quadro, tenha qualquer influência na deci-
são.
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geral, quatro modos segundo os quais ele pode escapar da punição. Um deles consiste
na decisão do juiz, de acordo com a lei aplicável, de que ele não cometeu nenhum cri-
me. Esta é, por certo, uma decisão que tem lugar em uma atmosfera bastante formal e
abstrata. Mas consideremos os outros três modos segundo os quais ele pode escapar da
punição. Estes são: (I) uma decisão do Representante do Ministério Público não solici-
tando a instauração do processo; (II) uma absolvição pelo júri; (III) um indulto ou co-
mutação da pena pelo Poder Executivo. Pode alguém pretender que estas decisões sejam
tomadas dentro de uma estrutura formal, rígida, de regras que impeçam o erro de fato,
excluam fatores emocionais e pessoais e garantam que todas as formalidades legais se-
rão observadas? É verdade que no caso do júri procuramos restringir suas deliberações
ao âmbito daquilo que é juridicamente relevante, mas não nos podemos iludir acreditan-
do que esta tentativa seja realmente bem sucedida. Normalmente, o caso de que ora nos
ocupamos deveria ter sido julgado pelo júri sob todos os seus aspectos. Se isto tivesse
ocorrido, podemos estar certos, de que teria havido uma absolvição ou pelo menos uma
divisão que teria impedido uma condenação. Se se tivesse dado instruções ao júri no
sentido de que a fome dos réus e o convênio que firmaram não constituem defesa à acu-
sação de homicídio, seu veredicto as teria quase que certamente ignorado, torcendo a
letra da lei mais do que qualquer um de nós seria tentado a fazer. É evidente que a única
razão que impediu que isto sucedesse foi a circunstância fortuita de ser o porta-voz do
júri um advogado. Seus conhecimentos capacitaram-no a imaginar uma fórmula verbal
que permitisse ao júri furtar-se de suas usuais responsabilidades.
Meu colega Tatting expressa contrariedade por não ter o Representante do Mi-
nistério Público decidido o caso por si, abstendo-se de requerer a instauração do proces-
so. Estrito como é no cumprimento das exigências da teoria jurídica, ficaria satisfeito
em ver o destino destes homens decidido fora do Tribunal pelo Representante do Minis-
tério Público, fundado no senso comum. O presidente do Tribunal, de outro lado, dese-
jaria que a aplicação do senso comum ficasse para o final, embora, como Tatting, não
queira dele participar pessoalmente.
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nada sabe a respeito das distinções por ele empregadas. Menciono este problema porque
desejo enfatizar mais uma vez o perigo de nos perdermos nos esquemas de nosso pró-
prio pensamento e esquecer que estes esquemas freqüentemente não projetam a mais
tênue sombra sobre o mundo exterior.
Agora chego ao ponto mais decisivo deste caso. Um ponto conhecido de todos
nós neste Tribunal, embora meus colegas tenham julgado conveniente ocultá-lo sob suas
togas. Trata-se da probabilidade alarmante de que, se a solução do caso for deixada ao
Chefe do Poder Executivo, ele se recusará a perdoar estes homens ou comutar sua sen-
tença. Como todos nós sabemos o Chefe do Poder Executivo é um homem hoje de idade
avançada e de princípios muito rígidos. O clamor público normalmente produz nele um
efeito contrário ao esperado. Como disse a meus colegas, acontece que a sobrinha de
minha esposa é íntima amiga de sua secretária. Fui informado por esta via indireta, mas,
segundo me parece, completamente fidedigna, que ele está firmemente determinado a
não comutar a sentença se nós julgarmos que estes homens transgrediram a lei.
Devo confessar que, quanto mais velho me torno, mais perplexo fico ante a recu-
sa dos homens em aplicar o senso comum aos problemas do direito e do governo; e este
caso verdadeiramente trágico aprofundou meu sentimento de desânimo e consternação a
este respeito. Desejaria apenas poder convencer meus colegas da sabedoria dos princí-
pios que tenho aplicado à função judicial desde que a assumi. A propósito, por uma es-
pécie de um triste fechar de um círculo, deparei-me com problemas semelhantes aos que
ora aqui se esboçam, justamente no primeiro caso que julguei como juiz de primeira
instância do Tribunal do condado de Fanleigh.
Uma seita religiosa expulsara um sacerdote que, segundo se dizia, tinha se con-
vertido aos princípios e práticas de uma seita rival. O sacerdote difundiu uma nota acu-
sando os chefes da seita. Certos membros leigos dessa igreja anunciaram uma reunião
pública em que se propunham explicar a posição da mesma. O sacerdote assistiu a essa
reunião. Alguns afirmaram ter-se ele introduzido furtivamente, utilizando-se de um dis-
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farce; o sacerdote declarou em seu testemunho que tinha entrado normalmente como um
membro do culto. De qualquer forma, quando os discursos começaram, ele os interrom-
peu aludindo a certas questões respeitantes aos negócios do culto e fez algumas declara-
ções em defesa de seus próprios pontos de vista. Foi atacado por participantes da reuni-
ão que lhe deram uma enorme surra, do que lhe resultou, dentre outros ferimentos, uma
fratura na mandíbula. O sacerdote intentou uma ação de indenização contra a associação
patrocinadora da reunião e dez indivíduos que alegava terem sido seus agressores.
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Ocorrendo, destarte, empate na decisão, foi a sentença condenatória do Tribunal
de primeira instância confirmada. E determinou-se que a execução da sentença tivesse
lugar às 6 horas da manhã da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4300, ocasião em que o
verdugo público procederia com toda a diligência até que os acusados morressem na
forca.
Tatting, J.
O presidente do Tribunal perguntou-me se, depois dos dois votos que acabam de
ser enunciados, eu desejaria reexaminar a posição que assumi anteriormente. Quero
expressar que depois de ouvi-los sinto-me bastante fortalecido em minha convicção de
que não devo participar do julgamento.
POST SCRIPTUM
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