ARRABAL, Fernando. Guernica
ARRABAL, Fernando. Guernica
ARRABAL, Fernando. Guernica
FERNANDO ARRABAL
TEATRO DO ABSURDO
MARTIN ESSLIN
Personagens:
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LIRA — uma velha basca
LIRA, só a voz — Não posso mais sair. Estou prêsa. Desabou tudo.
FANCHOU sobe com dificuldade na mesa a fim de ver LIRA. Fica na ponta
dos pés. Consegue vê-la fica satisfeito.
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FANCHOU — Faça um esfôrço.
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FANCHOU — Está saindo sangue?
LIRA — Está.
FANCHOU — Muito?
LIRA — É, muito.
Êle procura nos escombros, mas caem cada vez mais coisas. Pára de
procurar e sobe outra vez na mesa.
FANCHOU — Quer que eu te conte uma história, para você se sentir melhor.
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LIRA — Estou sentindo muita dor.
FANCHOU — Vai passar, você vai ver. Vou imitar um palhaço para você
rir.
FANCHOU — Gostou?
Ruído de aviões. Bombardeio. Durante êsse tempo uma mulher e sua filha
pequena atravessam a cena da direita para a esquerda, com ar irritado e
impotente. (Ver quadro de Picasso). Cessa o bombardeio.
FANCHOU — Você vai morrer? (Pausa) Vai morrer de verdade? Quer que
eu previna a família?
LIRA — Você não tem memória mesmo. Já não se lembra que não tenho
mais família?
LIRA — Onde é que você tem a cabeça? Esqueceu que êle foi fuzilado em
Burgos?
FANCHOU — Você não pode dizer que a culpa foi minha. Eu bem te disse
que não queria menino. Um dia vem a guerra e êles morrem. Se tivesse sido
menina, agora, a casa estava arrumada.
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aborrecer.
FANCHOU — É assim, não é? Agora diz que não sou mais homem.
FANCHOU — Não posso mais? Você é a única que diz isso. Já não se
lembra mais de sábado?
FANCHOU — Que sábado você queria que fôsse? Vai me dizer agora que
esqueceu.
FANCHOU — Não estou me gabando. É a pura verdade, mas você não quer
reconhecer. (Pausa).
FANCHOU desce da mesa e vai até a janela. Por trás dela aparece um
oficial. Os dois se olham sérios, durante um bom momento. FANCHOU abaixa a
cabeça, temeroso. O OFICIAL ri sem alegria, enquanto brinca com um par de
algemas. FANCHOU, de cabeça baixa, fecha a janela. Volta com ar assustado e
torna a subir na mesa.
LIRA, queixosa — É isso, estou aqui sem poder sair, peço a você para olhar
se êles derrubaram a árvore e nem isso você quer fazer.
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FANCHOU — Eu não pude.
LIRA, orgulhosa — Bem que eu disse. (Uma pausa, depois, com grande
tristeza) — Mas me ajude um pouco. Não me deixe sòzinha.
FANCHOU se estica o mais que pode, tentando passar o braço por cima dos
escombros. Enquanto está tentando segurar a mão de Lira, o OFICIAL entra pela
direita e fica olhando para êle, que está de costas.
FANCHOU — Me desculpe.
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LIRA — Não posso contar com você.
FANCHOU, todo contente — Pega essa pedra que eu vou jogar. (Joga a
pedra por cima da parede) Segurou?
LIRA — Segurei.
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cruzados. À direita, entram novamente o escritor e o jornalista, sempre com o
bloco de notas. FANCHOU, assustado, se esconde debaixo da mesa. O escritor o
vê e o examina, impedindo-o de se mexer.
ESCRITOR, ao Jornalista — Como êste povo é complexo e doloroso. Diga
isso: não, diga que a complexidade dêste povo doloroso floresce de uma maneira
espontânea nesta guerra fratricida e cruel. (Ar satisfeito) Não está mal, não é?
(Hesita) Não, não, suprima essa frase. Muito enfática. É preciso encontrar algo
definitivo e mais sóbrio. (Reflete) Vou encontrar, vou encontrar. (FANCHOU
continua debaixo da mesa, assustado. O ESCRITOR e o JORNALISTA saem à
esquerda. Ouve-se a voz do ESCRITOR que se perde à distância) Que romance
vou fazer de tudo isso! Que romance! Ou quem sabe uma peça de teatro e até um
filme. E que filme!...
FANCHOU — Ah, madame encontrou a língua. Não está mais muda. Pois
bem, saiba que agora sou eu que não quero mais falar.
LIRA, queixosa — Querido, estou muito mal... me sentindo muito mal. Você
não tem pena de mim!
LIRA — Não vê que estou tôda coberta de pedras e que não posso mais me
mexer?
LIRA — Que é que vai acontecer com você sem mim? Você não tem cabeça.
FANCHOU, com raiva, fanfarrão — Você sempre diz isso. Pois bem, vou
me casar com outra. Eu ainda provoco paixões. Se você visse como a padeira me
olha tôdas as manhãs quando vou buscar o pão.
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FANCHOU — Eu não fiz nada, te juro.
LIRA — Juras de bêbado. Você também jurou que ia me levar numa viagem
de lua-de-mel.
FANCHOU — Não esqueci. Logo que a guerra acabar, a gente parte. Vou te
levar a Paris.
LIRA — Diga de uma vez que você não quer fazer nada por mim.
FANCHOU — Isso não conta. Depois você diz que sou eu quem não se
lembra de nada. Você já esqueceu como são as coisas?
LIRA — Podia fazer uma exceção para nós, que somos velhos.
LIRA — É isso, agora começa a falar mal de mim. Diga logo que não me
ama.
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LIRA — Você não quis me aborrecer, mas aborreceu. Como você mudou!
Antes, você era cheio de cuidados comigo.
FANCHOU — E agora também.
LIRA — E êsse negócio de instrução. Você acha que não tenho amor
próprio?
FANCHOU — Retiro.
LIRA — De coração.
FANCHOU — É, juro.
FANCHOU — Não, é que êles atiram sem fazer pontaria, sem prestar
atenção.
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ainda por cima arrebentam minha bola.
FANCHOU desce da mesa e vai até a janela. Por ora, aparece o OFICIAL.
FANCHOU olha para êle. O OFICIAL olha sèriamente para FANCHOU e êste,
assustado, abaixa a cabeça. Riso sem alegria do OFICIAL, que brinca com as
algemas. O OFICIAL desaparece. FANCHOU levanta a cabeça e não vê
ninguém. Enfia, cautelosamente, a cabeça pela janela. Olha a árvore. Ar
satisfeito. Risos à direita, por trás dêle. Êle se vira e aparece a cabeça do
OFICIAL, que logo desaparece. FANCHOU, assustado, não sabe o que fazer.
Riso à esquerda, FANCHOU se vira, aparece a cabeça do OFICIAL e
desaparece. FANCHOU, assustado, não sabe o que fazer. Risos à direita, depois
à esquerda, depois à direita, depois à esquerda, depois à direita. FANCHOU,
aterrorizado, não mexe mais. O OFICIAL entra à direita, com ar sério e
observador. Parece estar muito preocupado com FANCHOU, não pára de
examiná-lo, ao mesmo tempo em que tira do bolso um sanduíche embrulhado em
papel de jornal e começa a morder o pão. Coloca-se perto de FANCHOU, que se
afasta dêle. O OFICIAL torna a se aproximar FANCHOU tenta, tìmidamente, se
afastar. O OFICIAL continua colado a êle até encurralá-lo num canto.
FANCHOU não pode mais se mexer. Tem os olhos fitos no chão. O OFICIAL
impede sua passagem abrindo os cotovelos, e continua a mastigar o sanduíche.
Longo silêncio.
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LIRA — E precisou todo êsse tempo para ver?
FANCHOU — Quem é que você pensa que eu sou? Em plena guerra, você
acha que eu vou atrás de aventuras?
LIRA — Que é?
FANCHOU — Você nunca pensa em mim. Eu podia fazer inveja aos outros.
(Pausa) Você devia ter tido ao menos um. (Reflete) Um coronel.
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FANCHOU — Você sempre encontra uma desculpa.
FANCHOU — Mas eu faço por você. (Ri satisfeito: Uma boa idéia) Mais
tarde você podia escrever suas memórias.
LIRA — Ai... as pedras estão caindo outra vez em cima de mim. (Geme) Não
posso mais mexer os pés.
LIRA — É só isso que você achou para dizer. Você nunca se preocupa
comigo.
LIRA — Já sei que você que você quer me pregar uma peça.
FANCHOU — Você é que está dizendo. Quando você morrer eu... (reflete)
vou dormir três vêzes seguidas com você.
FANCHOU, aborrecido — Depois você vai dizer que sou eu que não sou
gentil com você.
Nôvo desmoronamento.
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LIRA — Ai... ai... (ela se lamenta cada vez mais) Vou morrer mesmo.
LIRA — Você não tem memória mesmo: esqueceu que nós não acreditamos
mais?
LIRA — Você disse que, assim, nós seríamos... (Pausa, com ênfase) mais
evoluídos.
LIRA — Claro.
FANCHOU — Estamos em maus lençóis: agora, você vai morrer e vai para
o inferno.
FANCHOU — Claro que é pra sempre. E os suplícios! Você vai passar por
cada uma! Êle sabe fazer as coisas direito.
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FANCHOU — Que foi que aconteceu?
FANCHOU — A culpa é tua: é essa mania que você tem de ler no banheiro.
Você fica horas e horas aí. O que te aconteceu não me espanta nem um pouco.
(Silêncio)
FANCHOU — Você vai dizer outra vez que eu debocho de você, mas você
está vendo que não tem um pouco de instrução. Por que? Por que? Porque é que
você queria que fôsse, se não para ver se elas funcionam?
LIRA — E depois?
LIRA — Ah!
LIRA, zangada — Não sei porque é que você fala assim. Eu sei muito bem
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que não estudei tanto quanto você.
FANCHOU — Você nunca concorda com minha idéia. Foi sempre assim. Se
você recomeçar, está bem, vou-me embora para sempre. (Irritado) Não quero que
você viva com um homem que só diz bobagens. Adeus!
LIRA — Meu querido! Não me deixe sòzinha. (Lira geme, FANCHOU não
se mexe, contínua agachado) Querido, volta! (Silêncio longo, FANCHOU
continua imóvel) Era só brincadeira. (Pausa) Você sabe muito bem que eu te
admiro muito. (Longa pausa) Você seria um professor formidável. (Pausa)
Quando a gente ouve você falar chega a pensar que você é capitão e até mesmo
antiquário. (Pausa longa. FANCHOU fica orgulhoso) Querido! (Pausa) Você me
deixa sòzinha? (Pausa) Volta! (Pausa longa) Ai... Ai... (Chora) As pedras estão
caindo outra vez.
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escolhe para ir embora. Você não tem coração.
LIRA — Juro.
FANCHOU — Mas é por você que eu faço isso. Tôdas as grandes damas
fazem testamento. Você devia fazer o seu e preparar suas últimas palavras.
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FANCHOU — As que a gente pronuncia antes de morrer. Quer que eu te dê
algumas idéias? Você podia falar de... (Pensa e, depois precipitadamente) da vida,
da humanidade...
LIRA — Não posso mais me mexer. Mas quando é que essa guerra vai
acabar?
FANCHOU — É isso, madame queria que a guerra acabasse quando bem lhe
aprouvesse.
LIRA, choramingando — Será que êles não podem parar com isso?
FANCHOU — Claro que não. O general disse que não pára enquanto não
tiver ocupado tudo.
LIRA — Tudo?
LIRA — E o povo?
LIRA — Não posso mais me mexer. Se caírem mais pedras vou ficar
completamente coberta.
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FANCHOU — Que chateação. Não se preocupe. Você vai ver, os
bombardeiros vão parar.
LIRA — Não. (Cética) Como é que você quer que eu duvide? (Estouram
três bombas. Ruído terrível. Lira chora). Querido, estou completamente coberta.
Vem me soltar!
Longo bombardeio. Caem mais pedras. Fanchou fica também coberto pelos
escombros. Assim que termina êste longo bombardeio a Mulher passa da direita
para a esquerda. A Filha já não a acompanha. No ombro, ela leva um pequeno
caixão. Ar irritado e impotente. (Ver quadro de Picasso). A MULHER desaparece
à esquerda. No fundo, as paredes derrubadas deixam ver a árvore da liberdade.
O bombardeio terminou. Em cena só restam ruínas. Longo silêncio. No local
exato onde estavam FANCHOU e LIRA aparecem duas bolas coloridas, de
borracha, que sobem ao céu. Entra o OFICIAL, que atira nas bolas, sem
conseguir atingi-las. As bolas desaparecem no alto. O OFICIAL continua a
atirar. Do alto, ouvem-se os risos felizes de FANCHOU e LIRA. O OFICIAL,
assustado, olha para todos os lados e sai precipitadamente, pela direita. Entra o
ESCRITOR sobe na mesa. Examina o local onde se achavam FANCHOU e LIRA.
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Ar satisfeito, desce da mesa e sai pela esquerda, quase correndo, cheio de
alegria.
PANO
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