Guerra Peixe e Os Maracatus Do Recife
Guerra Peixe e Os Maracatus Do Recife
Guerra Peixe e Os Maracatus Do Recife
RESUMO ABSTRACT
Este artigo discute as relações cultu- This article discusses the cultural rela-
rais construídas em torno dos mara- tionship constructed around maracatus
catus nas décadas de 1930 a 1950 na from the decades of 1930 to 1950 in the
cidade do Recife, principalmente os city of Recife, mainly of the popular traffic
trânsitos que a música promoveu en- that music promoted between erudite
tre compositores eruditos, artistas composers, artists and so-called folk
populares e grupos considerados fol- groups. The objective was to demonstrate
clóricos. Seu objetivo é demonstrar that in this traffic the cultural means are
que nesses trânsitos as ressignifica- wide and intricate, and its understanding
ções culturais são amplas e comple- presumes the reconstitution of the social
xas, e seu entendimento pressupõe and cultural nets in which they took place.
1
COSTA, F. A Pereira da.
Folklore pernambucano: subsídi- a reconstituição das redes sociais e
os para a história da poesia culturais em que se deram.
popular em Pernambuco. Re-
PALAVRAS - CHAVE : maracatus; Guerra KEYWORDS : maracatus; Guerra Peixe;
cife: Arquivo Público Estadu-
al, 1974 (prefácio de Mauro Peixe; Recife. Recife.
Mota. Primeira edição autôno-
ma). Publicado originalmente
℘
na Revista do Instituto Histó-
rico e Geográfico Brasileiro
em 1908.
2
Katarina Real, nos anos 1960,
vai denominar tal tipo de ma-
racatu rural, nome que hoje A obra de Guerra Peixe, Maracatus do Recife, publicada em 1955,
tem certa prevalência. Esses
maracatus existem em grande pode ainda hoje ser considerada como o estudo mais completo sobre os
número na Zona da Mata per- maracatus e tem como mérito indiscutível uma vasta pesquisa de cam-
nambucana, região canavieira
por excelência, daí a escolha
po, da qual resultou a categorização dos dois tipos de maracatus existen-
de Katarina Real, já que os tes em Pernambuco: o maracatu-nação (ou de baque-virado) e o maracatu
brincantes desses grupos são, de orquestra (ou de baque-solto). Naqueles anos em que Guerra Peixe
em sua maioria, trabalhado-
res rurais. Ver: REAL, Kata- esteve no Recife (1949–1952), havia entre folcloristas, jornalistas e de-
rina. O folclore no carnaval do mais intelectuais uma grande imprecisão quanto à categorização dos
Recife. Recife: Massangana,
1990. Guerra Peixe, no prefá-
maracatus. Tinha-se como legítimo maracatu o tipo hoje denominado
cio à segunda edição de Mara- de nação ou baque-virado, descrito por Pereira da Costa no início do
catus do Recife, faz uma crítica século XX1. Este maracatu é constituído de uma corte real da qual fazem
à antropóloga norte-america-
na por criar um novo nome parte rei, rainha, príncipes e princesas, além de damas da corte, embai-
que nada diz sobre as carac- xadores etc. Integram ainda o cortejo real algumas figuras emblemáticas,
terísticas intrínsecas da mani-
festação, as características
tais como a dama do paço, que carrega a boneca (ou calunga), o pálio,
musicais, e sim sociológicas, que protege rei e rainha, e o estandarte. Esse cortejo é acompanhado por
nem respeita as denomina- um conjunto musical formado por instrumentos de percussão, denomi-
ções criadas pelos brincantes.
PEIXE, César Guerra. Maraca- nado de batuque (bombos, caixas de guerra e tarol, gonguê e mineiro).
tus do Recife. São Paulo-Reci- Nas décadas de 1930 e 1940, outro tipo de maracatu tomava corpo
fe: Irmãos Vitale/Fundação
de Cultura Cidade do Recife,
na cidade do Recife; Guerra Peixe em seu livro chamaria de orquestra ou
1981, p. 14. baque-solto2. Ele se diferencia do nação principalmente pela composição
artigos
campânulas, porca — espécie de cuíca —, ganzá e bombo) e de instru-
mentos de sopro. Além disso, é emblemática do maracatu de orquestra a
presença do caboclo de lança, muito conhecido na atualidade e tido como
um dos símbolos da cultura popular pernambucana. Os tuchaus,
brincantes fantasiados de índios com grandes cabeleiras de pena, tam-
bém ganhavam visibilidade, e os encontramos nos dois tipos de maracatus.
A não-diferenciação entre as manifestações existentes denota que o
significado de maracatu era polissêmico, não se referindo exclusivamen-
te a um tipo específico, visto que algumas “troças”, como o Timbu Coro-
ado, formado de esportistas do clube Náutico, designavam-se igualmen-
te como maracatu3. Estou denominando de troças esses grupos porque
portavam cartazes de crítica, fossem elas sociais ou críticas de costumes.
Esses grupos, no entanto, convidavam os batuques dos maracatus-nação
para desfilarem com eles nos dias de carnaval, a exemplo do Estrela Bri-
lhante, que acompanhou o Timbu Coroado por muitos anos. A imprensa
recifense do período não fazia a mínima distinção entre os maracatus-
nação, como o Elefante ou o Leão Coroado, os maracatus de orquestra,
como o Pavão Dourado ou o Estrela da Tarde, e as “troças”, como o Timbu
Coroado e o Cata Lixo. Todos os três tipos eram tratados como maracatus.
Entretanto, à medida que adquiriam visibilidade, os maracatus de
orquestra começaram a ser encarados como mera descaracterização ou
deturpação do “autêntico” maracatu de origem africana, o maracatu-
nação. Guerra Peixe foi o primeiro a estabelecer as diferenças entre os
dois grupos a partir da análise dos conjuntos musicais e de suas perfor-
mances. Destacou-se, na ótica de Guerra Peixe, a discussão em torno da
extrema complexidade musical existente nos maracatus, contribuindo
para a quebra dos conceitos construídos por estudiosos anteriores, que
caracterizavam esses grupos como uma música primitiva. Além disso,
Guerra Peixe promoveu uma grande revisão bibliográfica, explicitando
incoerências e deslizes nas obras de autores que lhe antecederam no es-
tudo dos maracatus, a exemplo de Renato Almeida, Mário de Andrade e 3
Ou seja, era uma brincadei-
ra com as manifestações da
Ascenso Ferreira.4
cultura afro-descendente. Leo-
Guerra Peixe também foi importante no que diz respeito ao pro- nardo Dantas Silva observa
cesso de mediação entre os maracatus e a sociedade recifense, contribu- que, em meados do século XIX,
grupos de rapazes brancos
indo para que eles fossem vistos de maneira mais positiva. A sua obra foi costumavam sair no carnaval
marcante o suficiente para que ainda hoje seja tomada como referência travestidos de negros, imitan-
do as cortes dos reis e rainhas
que orienta tanto intelectuais interessados no estudo da cultura popular
de Congo. SILVA, Leonardo
como os maracatuzeiros que nele se apóiam buscando um referendo para Dantas. Maracatus no carna-
a legitimidade e autenticidade nos maracatus-nação. val do Recife. Jornal do Com-
mercio, 26 jan. 1991.
Em que contexto Guerra Peixe escreveu esse livro? Quais foram os
4
Ver ALMEIDA, Renato. His-
debates e questões a que o maestro buscava responder na época? Para tória da música brasileira. Rio de
encontrarmos respostas a estas indagações, não podemos prescindir de Janeiro: F. Briguiet & Comp,
uma discussão sobre as relações, bastante complexas, que se estabelece- 1942; ANDRADE, Mário de.
Danças dramáticas do Brasil.
ram entre música erudita, música popular e folclore no Brasil, nas déca- Belo Horizonte-Brasília: Ita-
das de 1930 a 1950, e a inserção de Guerra Peixe nesse debate. tiaia/INL/Fundação Nacio-
nal Pró-memória, 1982; FER-
REIRA, Ascenso. O maracatu;
Folclore e música: o nacionalismo presépios e pastoris; o bumba-
em Mário de Andrade e suas repercussões meu-boi: ensaios folclóricos.
Recife: Departamento de Cul-
tura da Prefeitura da Cidade
A obra de Guerra Peixe pode ser mais bem compreendida se anali- do Recife, 1986.
Pode-se dizer que o populário musical brasileiro é desconhecido até de nós mesmos.
artigos
e bonito do que a gente imagina. E sobretudo mais complexo. (...) Do que estamos
carecendo imediatamente é dum harmonizador simples mas crítico também, capaz de
se cingir à manifestação popular e representá-la com integridade e eficiência.8
artigos
são mais amplos e mais complexos, principalmente quando se trata da
discussão sobre o nacionalismo na história da música brasileira, seja ela
popular ou erudita. É óbvio que nessa questão a contribuição de Guerra
Peixe ainda precisa ser debatida. É notável, por sinal, a ausência na
historiografia brasileira de um debate mais acurado sobre essa temática
na década de 1950, após as críticas ao movimento dodecafônico feitas
por Camargo Guarnieri e as defecções de Guerra Peixe e Carlos Santoro,
seguindo orientações do II Congresso Internacional de Compositores e
Críticos Musicais, ocorrido em Praga, em 1948, em que explicitamente
se recomenda aos compositores que adiram à cultura nacional de seus
países.14
Importa acentuar, para nossa discussão, que, nos anos de 1930 a
1950, em meio à intensa repressão aos maracatus e às religiões afro-des-
cendentes desencadeada pelo governo de Agamenon Magalhães, houve,
sim, um movimento que alçou os maracatus-nação do lugar de “coisas
de negro”, reminiscência de antigas práticas de escravos africanos, para a
condição de cultura autenticamente pernambucana, matriz africana na
mestiçagem cultural que se promoveu e valorizou nesse período. É im-
portante destacar que esse movimento foi perpassado por uma forte ten-
são social e política entre duas grandes tendências, quais sejam, as que
viam na cultura popular as bases para se firmar a identidade regional —
e Gilberto Freyre é seu grande representante — e aqueles que, atuando
no governo de Agamenon, promoveram a repressão à cultura afro-des-
cendente com o intuito preciso e explícito de lançar as bases para a civili-
zação e modernização da cidade15. Tensão social evidentemente também
presente entre os populares, aqueles que precisavam tocar para os orixás,
que desfilavam no carnaval com seus maracatus e que procuravam se
inserir nessa discussão e disputa política, buscando legitimidade e aliados
para manter suas práticas e crenças.
O maracatu encontrava-se no centro desse debate e apareceu pon-
tualmente na obra de alguns dos modernistas que atuavam no Recife,
notadamente Lula Cardoso Ayres, não mais com aquele caráter saudosis- 14
Ver NEVES, José Maria.
ta e melancólico que encontramos na obra de Pereira da Costa ou Mário Música contemporânea brasilei-
Sette16. Esse novo olhar, perceptível na obra de Lula quando elegeu como ra. São Paulo, Ricordi, 1981,
KATER, Carlos. Música viva e
um de seus temas a rainha do maracatu em sua majestade, foi precedido H. J. Koellreutter: movimentos
de um significativo movimento que, entre 1930 e 1950, também em direção à modernidade.
reposicionou o lugar da cultura afro-descendente. A realização do I Con- São Paulo: Musa/Através,
2001.
gresso Afro-brasileiro no Recife, ao final do ano de 1934, causou grande
15
Ver ALMEIDA, Maria das
impacto cultural na cidade. A forma como foi organizado — na verdade, Graças Andrade Ataíde de. A
seu caráter informal — foi decisiva para certa aceitação das “contribui- construção da verdade autoritá-
ções” da cultura afro-brasileira para a formação da nacionalidade.17 ria. São Paulo: Edusp, 2001.
artigos
ças, no entanto, ao trabalho de diversos intelectuais, bem como à atua-
ção de seus próprios dirigentes, encontrava-se em vias de ser alçado a
símbolo da autêntica cultura negra em Pernambuco, presente nas obras
de Ascenso Ferreira, Capiba e Lula Cardoso Ayres.
Lula foi inegavelmente um dos grandes responsáveis por um olhar
positivo sobre os maracatus (tanto o de baque-virado quanto o de baque-
solto). Desempenhou um papel-chave no sentido de firmar uma ima-
gem da rainha do Maracatu Elefante — Dona Santa — através dos seus
desenhos e suas fotografias. Em 1941, em plena repressão aos xangôs e
catimbós, Lula surpreendeu o Recife com os murais que elaborou para
decorar o Clube Internacional, introduzindo temas do carnaval de rua,
como maracatus, caboclinhos e ursos. Toda a imprensa reagiu favoravel-
mente, admirada com a beleza da cultura popular. Mais do que isso, seus 22
Ver FERREIRA, Ascenso. O
murais suscitaram um rico debate sobre a identidade do carnaval maracatu. Arquivos, n. II. Re-
pernambucano e as contribuições da cultura popular para a tradição. cife, nov. 1942; publicado
também em Contraponto, Re-
À revista Contraponto, editada em Recife a partir de 1946, coube, cife, ano II, n. 7, mar. 1948,
em larga medida, a difusão do traço de Lula. Nela, ele publicou muitas acompanhado de fotos de
gravuras que tinham como tema a cultura popular, principalmente o car- Lula Cardoso Ayres, em que
retrata membros do maracatu
naval e, em especial, o maracatu. Nos seus primeiros números, Lula colo- Nação Elefante (D. Santa, Rei
cou na capa gravura sobre o maracatu e, no número 7, de março de 1947, Eudes, Dama do Paço com a
Calunga). Ver idem, É de to-
vemos Dona Santa estampada na capa. A divulgação que Lula promoveu roró: maracatu. Rio de Janei-
de Dona Santa a tornou célebre, através não só das fotografias que publi- ro: Livraria Editora da Casa
cou, mas também das gravuras que fez da rainha de maracatu, com a do Estudante do Brasil, 1951,
cujo volume traz ainda ensaio
legenda “quem não conhece, nas ruas do Recife carnavalesco, esta rainha de Ariano Suassuna sobre os
de Maracatu apanhada pelo lápis de Lula?” E lá estava Dona Santa consa- maracatus de Capiba. Sobre o
compositor ver: CAMARA,
grada e reconhecida como “a” rainha de maracatu. Contudo, é na figura Renato Phaelante da. Capiba é
do que hoje denominamos de caboclo de lança que Lula revelou seu po- frevo, meu bem. Rio de Janeiro:
der de observação. Foi indubitavelmente um dos primeiros a difundir Instituto Nacional de Musica,
1986, e SANTOS, Carlos Edu-
imagens dos caboclos de lança e dos tuchaus, interessando-se pela sua ardo Carvalho dos et. al.. Ca-
exuberância dessas manifestações e distinguindo a diferença em meio às piba: sua vida e suas canções.
Recife, 1984 (edição comemo-
várias personagens da cultura popular. Devido às lentes de Lula, e a seu rativa do 80º aniversário de
traço, o olhar se esmiuçou no detalhe que o conjunto oculta. Não mais Capiba).
descrições generalizadas, e, sim, personagens específicos, pessoas que fa- 23
É de tororó (música de Capiba
zem o carnaval. e letra de Ascenso Ferreira),
composto em 1933, obteve o
Mas, sem dúvida alguma, é a atuação dos compositores de maracatu segundo prêmio, em 1935, da
que devemos aqui discutir, com o intuito de estabelecer uma relação com Federação Carnavalesca Per-
as composições de Guerra Peixe. Capiba, no início dos anos 1930, tinha nambucana. Eh! Uá! Calunga
(letra e música de Capiba),
composto uma série de “maracatus”, musicando algumas poesias de composto em 1935, foi o pri-
Ascenso Ferreira e compondo outras22. Venceu concursos musicais com meiro colocado em concurso
realizado em 1937 pela mes-
É de tororó e Eh! Uá! Calunga23. O maracatu constituía-se, ou estava se ma associação.
constituindo, portanto, num gênero musical da “cultura popular” não 24
Além de Capiba, Sebastião
folclórica. Assim como o frevo e as marchinhas, era composto especial- Lopes, Odilon Ferreira, den-
mente para o carnaval, animando os bailes nos clubes em dias de festa de tre outros, compuseram ma-
racatus que foram interpreta-
momo24. Existiam concursos promovidos pela Federação Carnavalesca dos nos anos trinta por canto-
Pernambucana, e os vencedores tinham suas composições publicadas nas res famosos. Trata-se de um
páginas dos jornais. Houve um grande esforço por parte da FCP e, sobre- gênero esquecido e não estu-
dado pela historiografia da
tudo, de seu dirigente, Mário Melo, para que o maracatu se firmasse na- música popular brasileira. Po-
cionalmente como gênero musical genuinamente pernambucano. Para de-se achar uma série de gra-
vações de maracatu na Fono-
tanto, se incumbiram de divulgar esses maracatus nas rádios cariocas, teca da Fundação Joaquim
gravavam essas músicas na voz de Francisco Alves e outros mais. O esfor- Nabuco, Recife, PE.
Uma das mais fortes impressões que guardo do tempo da meninice foi o meu primeiro
encontro com um maracatu. Era terça-feira gorda e eu ia para a Rua da Imperatriz, no
Recife, assistir de um sobrado a passagem das sociedades carnavalescas. Filomomos,
Pás, Vassourinhas. De repente, na esquina da Rua da Aurora, me vi quase no meio de um
formidável maracatu. De que “nação” seria? Porto Rico? Cabinda Velha? Leão Coroa-
do? Não me lembro. Dos melhores era, a julgar pelo apuro e dignidade do Rei, da Rainha
e seu cortejo — príncipes, damas de honra, embaixadores, baianas. Pasmei assombrado.
Tudo em volta de mim era carnaval: aquilo não! Mas o que é que me fazia o coração
pulsar assim em pancadas de medo? Analisando agora, retrospectivamente o meu senti-
mento, creio que o motivo do alvoroço estava na música, naquela música que mal parecia
música — percussão de bombos, tambores, ganzás, gonguês e agogôs, num ritmo obsessor,
implacável, pressago... Mesmo de longe (lembro-me de certas noites em que, na velha
casa de Monteiro, a viragem trazia uns ecos de batuque, o ritmo dos maracatu...) invoca-
va. Todas essas memórias dos meus oito anos, impagáveis como o cheiro entre mar e rio do
cais da rua da Aurora, buliram em mim, mais vivas do que nunca, à leitura do livrinho É
de tororó... 27
artigos
Ainda a respeito dos maracatus de Capiba, o ensaio de Ariano
Suassuana analisa as composições em questão, discutindo os caminhos
que os compositores poderiam percorrer quando se tratava da relação
com a música popular. O compositor simplesmente poderia, “sem maio-
res aspirações que lhe seriam insufladas por um talento maior”, compor
novos frevos, maracatus etc. Nessa categoria classifica Eh, Luanda! e
Maracatu Elefante, que Capiba criou em homenagem a Dona Santa. O
segundo caminho apontava para a “superação do popular”. Deixemos
que o próprio Ariano Suassuna nos explique:
Partindo da simples imitação das formas populares, passará ela por uma fase de transpo-
sições, para chegar finalmente à recriação, sua forma mais alta. A imitação é, no caso, o
campo do compositor popular; e a transposição o de uma espécie intermediária, importan-
tíssima para a criação de uma música nacional. (...) Em nossa região, foi Capiba um dos
primeiros que tentou realizar aquilo que chamamos acima de transposição do popular,
rasgando novos caminhos que só mais tarde serão realmente apreciados.28
Três anos de muita pesquisa e muito trabalho, não foi de passeio. Eu estava completa-
mente por fora dos meios musicais. Era só rádio e dali xangô, maracatu, etc. Levei 40 dias
para entender os toques característicos dos tradicionais maracatus. Nenhum músico pro-
fissional no Recife conhecia aqueles toques. Só depois que fui para lá é que passou a ser
questão de honra para os bateristas saberem tocar o ritmo dos maracatus. Antes, ninguém
dava bola. Um toque de xangô levei 60 dias para aprender. E só aprendi por causa do
sábio conselho do preto velho que tocava: “Se ficar olhando para minha mão, o senhor
não vai aprender nunca.”36
artigos
peito dos maracatus de Capiba:
Quanto aos maracatus do Capiba devo dizer o seguinte: conheço-os todos. Como can-
ções são muito bonitinhos e inspirados. Capiba arranjou um ritmo qualquer para cada um
deles. Mas de maracatu eles não têm é nada. Aliás, o maracatu autêntico, o que veio dos
negros bantus — de Angola ou do Congo —, é coisa completamente diferente. Quem
julgar que esses maracatus do Capiba têm alguma coisa a ver com a dança, verificará o
tremendo engano. O maracatu autêntico (com o ritmo autêntico, digo) nunca foi dançado
nos salões de baile e nem as orquestras faziam o seu verdadeiro ritmo. Agora, apesar de
não ser mais executado em bailes, é que as orquestras começam a [fazê-lo] um pouco,
depois que eu consegui escrevê-lo para a rádio. Diziam que o ritmo era muito difícil, e que
a orquestra não o tocaria. Eu, porém, acabei com essa lenda e os poucos que escrevi são
executados com extraordinário sucesso. [...] Acrescente-se: o próprio Capiba parece ter
reconhecido seu erro. Tanto que desde que as orquestras da rádio começaram a executar o
maracatu no seu toque autêntico, ele, o Capiba, nunca mais escreveu outro maracatu. E
levei meses até conseguir grafar o ritmo dos zabumbas, que é, sem nenhum exagero,
aquilo que eu escrevi no artigo que mandei para você: O zabumba no maracatu.37
A carta aponta para muitas questões que precisam ser mais bem
discutidas e analisadas. No entanto, fica muito claro que, para o maestro,
a transposição do maracatu tradicional para a música orquestrada de
Capiba guardava uma enorme distância do “maracatu autêntico”, que só
poderia ser rompida quando se levasse a sério a análise da música folcló-
rica. No final da carta, refere-se ao primeiro trabalho que publicou sobre
a música dos maracatus, no Diário de Pernambuco38. Esse artigo traz uma
análise preliminar, destacando em especial a atuação dos bombos (ou
zabumba, como prefere Guerra Peixe). Ela seria retomada como ponto
de partida para o livro Maracatus do Recife, publicado em 1955. O maes-
tro salienta que a primeira impressão ao ouvir o Maracatu Elefante era a
de que “os tocadores de zabumba articulavam seus baques sem nenhu-
ma obediência a qualquer disciplina rítmica”. Tal impressão devia-se à
própria concepção de harmonia rítmica que ele como músico tinha e que
se chocava com a produzida pelos maracatus. Para Guerra Peixe, essa
diferença radical provinha “da orientação que cada representante de gru-
pos sociais diferentes recebe no desenvolvimento de suas aptidões e ne-
cessidades espirituais”. Na concepção ocidental, aos instrumentos de to-
nalidade grave cabe uma função rítmica mais básica, o que não ocorre
nos maracatus: “os baques são articulados fora daqueles momentos em
que o sentimento rítmico do homem comumente encontra referência
para medir o tempo”. Nesse sentido, “o maracatu tem uma batucada que
desnorteia o mais experimentado ouvido que o escuta pela primeira vez.”
É notório que a estadia de Guerra Peixe no Recife foi decisiva para
sua carreira a partir desse período. Em Maracatus do Recife, ele afirma: 37
Guerra Peixe para Vasco
Mariz. Recife, 25 abr. 1952.
Pasta de Correspondência (1),
Em junho de 1949 visitamos o Recife pela primeira vez. Influenciados pela leitura de já cit.
trabalhos publicados sobre o maracatu (cortejo), aproveitamos a ocasião para, naquela 38
Ver PEIXE, César Guerra. O
cidade, compor um maracatu (música) a fim de integrar uma “suíte” para quarteto ou zabumba no maracatu. Diá-
orquestra de cordas. Dias depois tivemos a oportunidade de assistir, mais ou menos como rio de Pernambuco, 13 maio
1951. Publicado também na
turista, a uma exibição especial do Maracatu Elefante, e a desilusão sobrevinda é abso- Revista de Música Sacra, n. 7,
lutamente indescritível... Apesar da mencionada obra haver obtido o aplauso de Rio de Janeiro, jul. 1951.
artigos
centrais no texto de Guerra Peixe; elas lhe permitem marcar a diferença
com o saber posto em circulação sobre os maracatus, no momento em
que escrevia. A primeira delas diz respeito à origem do maracatu. Havia,
quanto a isso, um saber instituído, contra o qual Guerra Peixe se insur-
giu, o que é perceptível para seus críticos e resenhadores: Maracatus do
Recife surpreendeu porque deu mostras do “pesquisador paciente, res-
ponsável, cheio de cautelas, amplo nas suas investigações”43 Para Paulo
Afonso Grisolli, Guerra Peixe “foi ao arquivo” e não simplesmente repe-
tiu o que os modernos costumavam fazer ao afirmar que o maracatu “é
um cortejo real cujas práticas são reminiscências decorrentes das festas
de coroação de reis negros, eleitos e nomeados na instituição do Rei do
Congo”44. Fórmula consagrada desde Pereira da Costa, inexistiam, entre-
tanto, quaisquer estudos sobre essa prática cultural e sobre sua relação
com os maracatus. Guerra Peixe trouxe para a discussão em torno da
pesquisa folclórica a necessidade de se desconstruírem esses saberes, ao
apontar para a existência de autos e outros indícios, como as Aruendas,
de que a origem do maracatu não se deu em linha reta com a instituição
dos Reis do Congo. Ele sentiu a necessidade de não repetir simplesmente
o já sabido e admitido. E o fez “sem temer usar o talvez e o parece que,
quando isso lhe é exigido, pela sua responsabilidade de estudioso das
coisas do folclore”.45
Guerra Peixe não temeu discordar de autoridades estabelecidas, a
exemplo de Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga. Questionou inclusi-
ve seus argumentos em relação à etnologia da palavra maracatu, que
ambos os autores remontavam a maracá, e sua origem indígena, portan-
to. Pareceu-lhe mais verossímil a observação de Gonçalves Fernandes,
que associa maracatu ao vocábulo maracatucá (vamos debandar), ressal-
tando a sua proximidade com a língua falada pelos que faziam o
maracatu46. Mas é na discussão sobre a “dama do paço” — grafia hoje
não questionada — que se revelou o tino de pesquisador de Guerra Pei-
xe, sua proximidade com aqueles que praticavam o maracatu, mostran-
do a diferença que faz quando quem escreve se assenta em observação
direta. A calunga do maracatu constituía-se num enigma a ser pensado,
para além do costumeiro jargão “reminiscência de antigos totens africa-
nos”. Mário de Andrade tinha dito que as damas que a conduziam de-
senvolviam um passo distinto e, por isso, eram chamadas de “dama do
43
GRISOLLI, Paulo Afonso.
A partir da instituição do Rei
passo”. Para Guerra Peixe, em uma cuidadosa linguagem em que aventa do Congo, um maestro estu-
“a hipótese da interpretação dos estudiosos haver-se derivado de um en- da os maracatus do Recife.
Folha da Manhã, São Paulo, 22
gano inicial”, podia-se levantar a possibilidade de que o vocábulo se refe- nov. 1955.
ria à posição da dama enquanto membro do cortejo real, ou melhor, do 44
Idem.
paço. Mas concluia que “não há (...) [dúvida], o problema é complexo...”47 45
Idem.
Palavras que não devemos esquecer quando se trata de enfocar duas
46
PEIXE, César Guerra. Mara-
outras questões de enorme complexidade, que Guerra Peixe enfrenta (se catus do Recife, op. cit., p. 26-
bem ou mal, este é um outro problema). A primeira delas envolve a rela- 28.
ção dos maracatus com os xangôs, constatada pelo maestro e posta às 47
Idem, ibidem, p. 41.
claras. No momento em que publicou seu livro, essa associação não pro- 48
Ver FERNANDES, Albino
vocou mais temores ou perseguições policiais, o que lhe facilitou a Gonçalves. Xangôs do Nordes-
constatação. Importa frisar que essa associação não aparecia claramente te: investigações sobre os cul-
tos negros fetichistas do Reci-
na historiografia, a não ser como subterfúgio utilizado pelos populares fe. Rio de Janeiro: Civilização
para escaparem da sanha policial48. O livro de Guerra Peixe não autori- Brasileira, 1937.
O maestro Guerra Peixe, há dias, me contou caso que bem demonstra a mistificação a
que ficam sujeitos muitos pesquisadores. Quando viveu no Recife, catando pontos de
xangôs, seu guia era o famoso babalaô Gobá. Depois de lhe cantar muita música de
terreiro, Gobá se tomou de simpatia e decidiu ser honesto:
— Tudo o que lhe ensinei foi errado.
Ante o espanto de Guerra Peixe, explicou:
— Sempre ensino errado aos “brancos” que vêm aprender pontos. Troco o
nome das entidades, confundo as melodias e as letras. Mas hoje somos amigos e
vamos corrigir tudo o que cantei...
Gobá passou a freqüentar a casa do maestro. Ficou íntimo da família. Um dia:
— Guerra, fiz um ponto novo para xangô. Agradou muito no terreiro. Todos
os cavalos já o aprenderam. Ficou uma beleza! Acrescentou:
— Inspirei-me naquela musiquinha que sua esposa toca no piano.
Cantou o folclore de sua autoria e Guerra Peixe quase caiu pra trás. O novo ponto de
xangô lançado com êxito nos terreiros recifenses era, precisamente, Pour Elise, peça
para piano de Beethoven.
artigos
do orixá... Imagino que daqui a alguns anos, um desses pesquisadores improvisados
descubra a melodia. E saia afirmando que Beethoven se inspirou no folclore brasileiro
para compor Pour Elise...”50
℘
Artigo recebido em dezembro de 2006. Aprovado em maio de 2007.
50
HOLANDA, Nestor de. Te-
lhado de vidro. Diário de Notí-
cias, Rio de Janeiro, 26 set.
1969.
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