A Cadeira Que Quis Ser Trono
A Cadeira Que Quis Ser Trono
A Cadeira Que Quis Ser Trono
trono
Esta cadeira não tinha os pés bem assentes no chão. Era uma cadeira um pouco
desequilibrada, como vão apreciar.
— Por mais que queira, não me conformo. Puseram-me para aqui, nesta casa
insignificante, quando podia estar em lugar de destaque, num salão de luxo. Triste sina.
Os bancos voltavam a rir-se, de frente para a cadeira, que nem as costas lhes podiam
voltar.
— É que eu também tive ambições, quando era nova. Quis ser mesa de banquetes,
imaginem! Só me via vestida com uma grande toalha de linho e rendas, enfeitada de
castiçais de prata, coberta de travessas finas e talheres reluzentes... Sonhei com este
banquete mil vezes, mas nunca me deram nenhum.
— Mas não me sinto infeliz — continuou a mesa. — Aqui os talheres são foscos
e os pratos, rachados. Quase nunca me cobrem com toalha, mas as mãos das pessoas
passam sobre mim e fazem-me festas. Os cotovelos apoiam-se ao meu tampo. Os dedos
batem-me ao de leve, enquanto esperam pela terrina da sopa e pelo pão, acabadinho
de sair do forno. Sei que as pessoas matam a fome e a sede à minha volta, sei que gostam
de mim e não me dispensam. Vale a pena ser mesa.
Um dia, passou por ali um vistoso cortejo de cavaleiros. Era o rei que ia à caça, em
companhia dos seus fidalgos. O séquito atravessou a galope a única rua da aldeia.
As mulheres, os homens e as crianças, que nunca tinham visto cavalos tão bonitos nem
cavaleiros tão bem vestidos, vieram às janelas e disseram adeus com lenços.
Na casa desta história, não se falou noutra coisa, durante o resto do dia.
A cadeirinha, essa, só suspirava de si para si: “Ah, se o rei me levasse...!”
Voltaram a passar pela aldeia, ao fim da tarde, os cavaleiros. Traziam caça grossa:
Das portas abertas das casas vinha um cheirinho apetitoso a pão desenfornado. Sua
Majestade tentou-se pelo cheiro e, fazendo um gesto, mandou parar a comitiva.
O estribeiro-mor ajudou-o a descer do cavalo, o que ainda foi difícil, e amparou-o até
à soleira de uma porta, precisamente a porta da casa onde se passa esta história.
Era a única cadeira da casa, a tal de que temos falado. Finalmente, ia provar
aos bancos trocistas que uma cadeira, mesmo de pinho, sabe servir com fidalguia
os grandes da terra e amparar-lhes o peso do poder. Eles que a vissem, frágil cadeirinha,
fazer as vezes de um trono, pois então!
— Coitados, a culpa não foi deles — disse o rei, referindo-se aos velhinhos.
— Dêem-lhes dinheiro para uma cadeira nova. Ai!
Foi-se embora o séquito real. A cadeira, triste monte de tábuas carunchosas, ficou
onde se tinha partido. Lenha para o forno, não tarda...
António Torrado
Trinta por uma linha
Porto, Civilização Editora, 2008