A Arte de Viver No Jovem Nietzsche Final - SEtica
A Arte de Viver No Jovem Nietzsche Final - SEtica
A Arte de Viver No Jovem Nietzsche Final - SEtica
Mesmo que seja inevitável, temos de admitir que é muito difícil construir
um modo de vida próprio atualmente. Isso porque as imposições do mundo da
vida e do trabalho, a rotina, os compromissos, as normas e as obrigações,
parecem reduzir a margem de liberdade a quase nada. Mas é justamente face
1
BAUMAN, A arte da vida, p. 72.
a esses desafios, face ao fato indubitável de que temos tantas limitações e
deveres em torno de nós, que a filosofia pode nos dar indicações de como é
possível abrir um espaço para novas experiências de vida, que possam
transformar nossa existência. Com um esforço contínuo, com cuidado e
trabalho sobre si mesmo!
Oh, somente aquilo que está a ponto de murchar e perder seu aroma!
(...) Eternizamos o que já não pode viver e voar muito tempo, somente
coisas gastas e exaustas! Apenas para sua tarde eu tenho cores, meus
pensamentos escritos e pintados, muitas cores talvez (...) – mas com
isso ninguém adivinhará como eram vocês em sua manhã, vocês,
imprevistas centelhas e prodígios de minha solidão, vocês, velhos e
amados – maus pensamentos!”4
É em sua juventude solitária e nostálgica que estariam a vivacidade e o
vigor de seus pensamentos. E ainda mais de suas vivências mais
inesquecíveis. A descoberta de Schopenhauer pode ser vista apenas como
veneração por um filósofo ilustre? A amizade com Wagner, apenas a
admiração e respeito pelo venerável músico dramático? Recordemos uma
3
ZA, II, O canto do túmulo.
4
BM, 296.
vivência, do final de ano de 1870, que Nietzsche passou com a família Wagner,
em Tribschen. O jovem professor presenteia Wagner com a gravura “Cavaleiro,
Morte, Diabo”, de A. Dürer, a qual considera símbolo da seriedade da vida
“germânica”. A Cosima, o texto “Nascimento do pensamento trágico”. Nesses
dias são tocados trechos do drama musical Tristan und Isolde, que muito
comovem Nietzsche5.
5
Na noite do dia 27 de dezembro, junto com Cosima e Richard Wagner, eles leem “O pote
dourado”, de E.T.A. Hoffmann. Cosima chama Wagner de arquivista Lindhorst, ao que Wagner
revida, chamando Cosima de Feuerlilie, e Nietzsche de estudante Anselmo. Nietzsche jamais
menosprezou a atmosfera de encantamento e acolhimento, de modo semelhante à criada por
Hoffmann nesse seu romance, em que o estudante Anselmo encarna o tipo do sonhador
romântico, ingênuo e entusiasmado – pela arte e pelo amor. Cf. Friedrich Nietzsche. Chronik in
Bildern und Texten, p. 235.
Schopenhauer e Wagner, sobretudo, recebem essa denominação. A tarefa
enorme de criar o gênio permite reunir as principais questões desse período: i)
a nova relação entre arte e filosofia e ii) a construção da “religião” da arte. Na
primeira questão estão implicados aspectos teóricos e pessoais de Nietzsche,
seu envolvimento apaixonado com a música, sua preparação e ocupação
‘acadêmico-profissional’ com a filologia clássica e seu desejo veemente de
ingressar no universo da filosofia, através da arte. A metafísica de artista, que
ele aperfeiçoa entre os anos 1869 e 1871, está vinculada ao Romantismo,
sobretudo ao romantismo tardio de Schopenhauer e Wagner. A filosofia
compreendida como arte: eis o primeiro cume atingido pelo pensador Nietzsche
em O nascimento da tragédia. Importa-nos mostrar como seu pensamento
estetizante da juventude está intimamente ligado ao projeto de construir uma
nova forma de viver, através da arte e do conhecimento trágico.
6
Cf. JANZ, Friedrich Nietzsche, vol. I, p. 47.
tensão que perpassará todos os anos juvenis, a saber, entre o ímpeto da
criação artístico-genial e o rigor metodológico exigido pelas ciências. Esses
anos, principalmente 1862 e 1863, foram marcados por incertezas, esperanças,
desilusões, e pela nostalgia da morte. Ele escreve, em 1862, na abertura do
poema “Entflohn die holden Träume” (“Fugiram os sonhos encantadores”):
“Prefiro o passado ao presente, mas creio num futuro melhor”. Logo em
seguida, contudo, ele expressa:
Fugiram os sonhos encantadores,
Fugiu o passado,
O presente é horripilante,
O futuro, sombrio e distante7
7
Frühe Schriften, vol. II, p. 68-69. Confira também o poema “Jetzt und ehedem”, de abril de
1863 (ibid., p. 189-192), em que ele questiona o sentido de sua vida, e se lamenta pela dor,
melancolia e insuficiência, que oprimiam seu coração e obscureciam seu tempo.
8
Cf. EH. Por que sou tão sábio, 2.
as dores de cabeça. Em 1861 e 1862, ele permanece vários dias em
recuperação na enfermaria de Pforta, devido a dores de cabeça (4 a 6 de
novembro de 1861; 4 a 13 de fevereiro de 1862), catarro (28 a 30 de outubro
de 1861; 24 a 29 de março de 1862; 17 a 24 de junho de 1862), reumatismo
(24 a 28 de novembro de 1862). Em poucas semanas teve que se retirar da
guerra franco-prussiana (1870), em que servia como enfermeiro, devido à
difteria e disenteria. Apesar de sua obstinação em suplantar os “estados
doentios”, é necessário que perguntemos: o que essa experiência da doença
trouxe para o pensamento de Nietzsche? E o que se perdeu com ela?
Arriscamos uma primeira resposta: o ganho maior com a doença foi o cuidado
voltado para si mesmo, para a importância da alimentação, dos hábitos, dos
exercícios físicos (caminhadas) e das atividades mentais, principalmente, como
a dedicação disciplinada para a música, para a literatura e para a filosofia.
2. Arte e filosofia
Nietzsche continua isolado no internato de Pforta, apesar de encontrar
alguns amigos, aos quais apresenta composições musicais e poéticas, e com
os quais discute textos por eles escritos, na pequena agremiação Germania. A
“Carta a um amigo, na qual lhe recomendo a leitura de meu poeta preferido”,
mostra o quanto o jovem aluno se sente isolado e incompreendido por seus
“amigos” e professores. Ela revela a atmosfera ‘romântica’ de sua época de
Gymnasium9, assim como sua atração pelo destino e pelo pathos do “infeliz
poeta” Hölderlin. Hyperion e Empédocles são vistos como dois tipos elevados
de homem, que Hölderlin, o ‘monge grego’, constrói de modo genial.
Empédocles, ao desprezar os homens e sentir nojo da realidade, eleva-
se a alturas ‘divinas’, morrendo por esse desprezo e por seu orgulho. Ele é o
protótipo da morte trágica, à qual Nietzsche, mais de vinte anos depois, projeta
em Zaratustra, mas não leva a cabo. Já Hyperion é a figura da incompletude,
da ânsia sempre insatisfeita pela Grécia, pela pátria mítica. Para o jovem
Nietzsche, essa prosa (Hyperion) é uma música, entremeada de “dissonâncias
dolorosas”: nela, Hölderlin falaria de si mesmo, de sua melancolia e desejo de
repouso, predizendo sua loucura de muitos anos. Quando fala do vínculo do
9
Nietzsche cursou o liceu (Gymnasium) em Schulpforta, internato prussiano de elite, próximo a
Naumburg, do início de outubro de 1858 a 7 de setembro de 1864.
gênio melancólico de Hölderlin com a loucura, o jovem estudante fala de si
mesmo, de seus temores, de seu pathos melancólico.
10
Cf. JANZ, Nietzsche, vol. I, p. 97.
cotidiana. O que é mais romântico do que esse lirismo, essa concentração do
poeta sobre seu próprio ego esfacelado e múltiplo? Com isso, notamos que o
jovem Nietzsche já era pessimista antes mesmo de conhecer o pensamento de
Schopenhauer – e via traços sombrios mesmo naquilo que o mundo e seus
anos de infância tinham de mais sublime e radiante. Esses traços nostálgicos e
sombrios, no entanto, são assumidos como inerentes ao seu próprio destino,
de ser solitário e de exceção.
A ciência e a história poderiam ser contrapesos ao “pessimismo
ilimitado”, que ele percebe em poetas modernos, na Antiguidade grega e em si
mesmo. Fatum und Geschichte (Destino e história, 1862), um dos primeiros
ensaios filosóficos nietzschianos, é uma tentativa de limitar o poder do acaso e
do destino cego, para garantir o espaço de afirmação da liberdade humana.
Apesar da audácia em questionar a existência de Deus, a imortalidade da
alma, a evolução moral da humanidade, a ‘solução’ apresentada é de cunho
idealista: a vontade livre (espírito) e o fatum se condicionam reciprocamente: a
“vontade livre nada mais é do que a potência mais alta do fatum”.11
O jovem que compõe músicas, poemas, dedica-se também às
implicações da ciência na vida humana. Diante das inquietações causadas pelo
darwinismo, segundo as quais todas as capacidades humanas evoluíram da
natureza animal, Nietzsche se apega ainda a perspectivas idealistas, como a
de F. A. Lange, na História do materialismo.
A grande questão que se impunha ao jovem Nietzsche era a de escolher
entre Deus e o mundo12. Sua decisão pelo mundo o atraiu para os gregos, para
a visão trágica do mundo. Nos anos subsequentes, a questão mais séria é a de
saber se ciência e arte se excluem mutuamente. Não se tratava apenas de
estabelecer a difícil relação entre ciência (filologia) e arte. A pergunta mais
angustiante era: é necessário escolher um desses dois caminhos?
Como Nietzsche chegou à filologia? Como ele admite nas anotações
autobiográficas, foi devido ao “amor entusiasmado pela antiguidade” 13. Mas foi
também a necessidade de buscar na objetividade da ciência “o contrapeso ao
caos das sensações artísticas”. O esboço autobiográfico de 1868 é bem
11
Fatum und Geschichte. Frühe Schriften. Org. por Hans Joachim Mette. Vol. II, p. 54-63.
12
Cf. Minha vida, 18 de setembro de 1863. Apud JANZ, op. cit., p. 104.
13
Cf. Minha vida (outono de 1868 – primavera de 1869).
elucidativo. O jovem admite que ele próprio assumiu a responsabilidade pela
sua educação, na falta de um guia paterno. Em Pforta ele foi um fiel cumpridor
das regras e deveres. Mas, o que é decisivo, nessa “disciplina uniformizada”,
ele salvou suas inclinações mais íntimas: o “culto secreto de certas artes” (da
música, da poesia) e o impulso incontido por um ‘saber universal’. Entre as
suas inclinações mais íntimas está a consciência (talvez a ilusão) de ser um
tipo excepcional, cujo centro vivo deveria ser moldado tanto pela via da criação
artística, quanto pelo exercício do método científico, pela autodisciplina e
controle do imaginário que ele possibilitaria. Entretanto, ele não encontra
solução definitiva, e admite nesse escrito que já teria abandonado, no final de
sua estadia um Pforta, todos os projetos de vida artísticos. Abandonar a arte
seria destruir suas aspirações mais íntimas, o culto do gênio, a criação do tipo
superior em si mesmo. É um ato de crueldade em relação a si mesmo
abandonar figuras criadas pelo excesso, como Prometeu e Euphorion,
projeções de sua íntima e secreta aspiração ao gênio, e de seus maus
pressentimentos de que um poder demoníaco estivesse na base do todo.
14
Cf. Carta a Erwin Rohde, de 1–3 de fevereiro de 1868.
15
SB III, Carta a E. Rohde, p. 95.
Nietzsche a aprofundar as reflexões do texto “Sócrates e a tragédia” numa obra
de maior vulto, que se chamará O nascimento da tragédia no espírito da
música.
Seria injusto afirmar que os escritos da juventude são meras dedicações
aos grandes mestres Schopenhauer e Wagner. É o vínculo com o grande
músico e com o pensador pessimista, no entanto, que fez ressaltar o que há de
tão próprio e de tão vivo neles. Até o ponto em que seu autor os vê como
decisivos no curso de sua vida.
16
Como estudante de filologia, Nietzsche viveu em Leipzig (Prússia), de 17 de outubro de 1865
até 12 de abril de 1869. No final de outubro de 1865 ele se deparou com a obra capital de
Schopenhauer.
mirava mundo, vida e o próprio ânimo em grandiosidade pavorosa. Ali
eu contemplava o olho solar plenamente desinteressado da arte, ali eu
via doença e cura, banimento e lugar de fuga, inferno e céu17.
17
Apud Friedrich Nietzsche. Chronik in Bildern und Texten, p. 141.
18
NIETZSCHE, Sämtliche Briefe. (SB), vol. 3, n. 4 – carta a R. Wagner, 22 de maio de 1869.
Residência de R. Wagner em Tribschen (hoje, Richard Wagner Museum). Foto de
Clademir Araldi, 23 de junho de 2016.
19
Die Zeit (o tempo) é do gênero feminino, em alemão. Por isso, a alusão à ‘madrasta’.
Monte Pilatus (Suíça). Foto de Clademir Araldi, 24 de junho de 2016.
Questões
1. Você considera ser necessário, nos tempos atuais, construir uma arte
de viver? Justifique sua resposta.
20
FP, 16(11) – outono de 1883.
2. Como o jovem Nietzsche relaciona a arte com a filosofia?
3. Quais são as principais características do ‘homem
schopenhaueriano’, segundo Nietzsche?
4. De que modos a trajetória e as vivências do jovem Nietzsche são
válidas para construir uma arte de viver, do ponto de vista filosófico?