As Contribuições Dos Bantos No Maracatu - Nação

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AS CONTRIBUIÇÕES DOS BANTOS NO MARACATU-NAÇÃO

Larissa Lima de Souza1

RESUMO: O artigo busca reforçar a dimensão diaspórica do maracatu-nação,


sobretudo, relacionando alguns de seus elementos principais a características
simbólico-culturais de origem banto. A pesquisa se dividiu em revisão bibliográfica
e trabalho de campo ao Museu Afro Brasil, permitindo que a autora construísse
sua análise a partir de um diálogo interdisciplinar importante. A transculturalidade
foi uma perspectiva que possibilitou a compreensão dos povos denominados
como bantos enquanto agentes civilizatórios do Brasil, tal qual afirma Nei Lopes.
O texto rompe com a inferiorização desses povos e demonstra que este
patrimônio cultural imaterial brasileiro está estruturalmente marcado por
reelaborações culturais fruto da diáspora africana no Brasil, não devendo ser
compreendido apenas como uma prática cultural com contribuição nagô/ ioruba.
Palavras-chave: Maracatu-Nação; Cosmovisão Banto; Diáspora africana.

THE CONTRIBUTION OF BANTU PEOPLES IN MARACATU-


NATION

ABSTRACT: The article seeks to reinforce the diasporic dimension of the


maracatu-nation, mainly, relating some of its main elements to symbolic-cultural
characteristics of Bantu origin. The research was divides into bibluographic review
and fielwork at the Afro Brasil Museum, allowing the author to constructo her
analysis from na importante interdisciplinary dialogue. Transculturality was a
perspective that made it possible to unerstand Bantu peoples as civilizing agentes
in Brazil, as stated by Nei Lopes. The text breaks with the inferiorizations of these
peoples and demonstrates that such intangible cultural heritage in Brazil is
structurally marked by cultural re-elaborations resulting from the African Diaspora
in this country. Thus, maracatu-nation should not be understood only as a cultural
practice with a Nagô/ Yoruba contribution.
Key-words: Maracatu-Nation; Bantu Cosmovision; African Diaspora.

I. Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa desenvolvida entre 2017 e 2018 ao


longo do curso de Especialização em Ensino de História da África no Colégio
Pedro II. Partindo da permanência de algumas inquietações após a conclusão do
nosso Mestrado em Geografia na Uerj (2015), a referida especialização

1Professora de Geografia no Colégio Pedro II. Doutoranda em Geografia (UFRJ), Mestre em


Geografia (Uerj-Maracanã) e Especialista em Ensino de História da África (Colégio Pedro II).
Email: larissalima_uff@yahoo.com.br.
possibilitou ampliar nosso olhar investigativo acerca do Maracatu-Nação,
estimulando uma análise interdisciplinar. O principal questionamento que nos
trouxe até aqui foi o fato de que algumas nações de maracatu pernambucanas
afirmam uma origem nagô em suas toadas; ao mesmo tempo, percebemos ao
longo de leituras realizadas durante o referido curso de pós-graduação que talvez
o maracatu-nação também possua fortes aportes culturais de origem banto.
Este trabalho, nesse sentido, se dedica a revisitar a diáspora africana e as
(re)ssignificações culturais forjadas na experiência diaspórica no Brasil.
Especificamente, os principais objetivos dessa pesquisa são: evidenciar a
dimensão diaspórica do Maracatu-Nação, trazendo à tona as contribuições dos
bantos para essa manifestação cultural, e romper com o olhar que comumente
inferioriza as suas contribuições na cultura brasileira.
Para tanto, a pesquisa foi organizada em duas frentes: revisão
bibliográfica, voltada ao diálogo interdisciplinar e à transculturalidade (HALL,
2018), e trabalho de campo (visita ao Museu Afro Brasil, na cidade de São Paulo).
A pesquisa bibliográfica foi realizada através do acervo físico da Biblioteca do
Colégio Pedro II – Campus Centro, bem como a partir de bases de dados online
como Scielo, Portal de Periódicos Capes, BDTD (Base de Dados de Teses e
Dissertações) da Uerj. Também utilizou-se parte dos acervos particulares do
orientador da presente pesquisa2, de alguns colegas de turma da Pós-Graduação
e o da própria pesquisadora.
Nosso texto está dividido em três partes principais: Diáspora africana e
ressignificações culturais, em que traçamos reflexões sobre práticas culturais
forjadas na diáspora; Os fluxos diaspóricos dos bantos: cosmovisões, inovações
técnicas e culturais, em que privilegiamos os principais aspectos simbólico-
culturais dos bantos; A cultura afrodiaspórica do Maracatu-Nação: (re)conhecendo
a presença banto, em que apresentamos alguns elementos chave dessa
manifestação cultural que possuem um vínculo com aspectos simbólico-culturais
dos bantos.

2
Professor Arthur José Baptista (Colégio Pedro II).
II. Diáspora africana e ressignificações culturais

O verbete diáspora, do grego diasporá (dispersão), é comumente


associado, por dicionários de amplo acesso pela internet3, à experiência judaica
como se esta servisse de referência geral às grandes migrações populacionais
pelo mundo. No entanto, se recorrermos a outras fontes de glossários, como a
Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana escrita por Nei Lopes,
encontraremos uma definição muito mais significativa por ser orientada à
compreensão dos fluxos de africanos que aportaram no Brasil. Nos termos deste
autor, a Diáspora Africana
compreende dois momentos principais. O primeiro, gerado pelo
comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos africanos tanto
através do Atlântico quanto através do oceano Índico e do mar
Vermelho, caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do
século XV – quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos
foram levados, por traficantes europeus, principalmente para as
Américas. O segundo momento ocorre a partir do século XX, com
a imigração, sobretudo para a Europa, em direção às antigas
metrópoles coloniais. O termo ‘Diáspora’ serve também para
designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos
nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que
construíram. (LOPES, 2014, p.236.)

A partir das reflexões de Nei Lopes, e reconhecendo que uma diáspora


compreende fluxos materiais (pessoas, bens materiais etc.) e/ou fluxos
imateriais/simbólicos, propomos que a diáspora africana seja compreendida como
uma migração compulsória de milhões de africanos e/ou de alguns de seus
elementos culturais e cosmovisões. Ao longo do primeiro momento ao qual Nei
Lopes se refere, a dispersão espacial de milhares de etnias africanas em direção
às Américas possibilitou encontros e trocas interétnicos, resultando em
reelaborações culturais.
Outro autor que contribui para nossas reflexões acerca da diáspora e seus
desdobramentos culturais e identitários nas antigas colônias é Stuart Hall. Em sua
perspectiva, a condição diaspórica favorece a emergência de novas identidades,
bem como torna possível a ocorrência de “reidentificações simbólicas com as
culturas ‘africanas’” (HALL, 2018, p.29). Tal como no Caribe de Hall, o Brasil
também foi construído através da contribuição de muitos povos cujas origens e

3 Consultamos dois dicionários: o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e o Aurelio online.


práticas culturais são diversas; além disso, essa construção cultural também foi
realizada sob a assimetria nas relações de poder, centralizadas pelos europeus.
Hall reforça a importância de considerarmos em nossos estudos acerca da
diáspora africana a perspectiva da transculturalidade. Esta se dedica a
reconhecer as influências culturais entre “colonizado” e “colonizador”,
interessando-se tanto “em como o colonizado produz o colonizador quanto vice-
versa” (HALL, 2018, p.34). Ou seja, os fluxos culturais na diáspora são uma via de
mão-dupla, mesmo que ocorram sob a colonialidade e todas as suas
desigualdades intrínsecas. O grupo colonizador influencia culturalmente o grupo
colonizado e este, por sua vez, também se reinventa culturalmente a partir da
cultura dominante, engendrando uma estética diaspórica4 (HALL, 2018, p.45),
caracterizada pelos hibridismos, pelas misturas, considerados subversivos na
medida em que há a apropriação de determinados símbolos da cultura dominante,
ora desarticulando-os, ora rearticulando-os e atribuindo-lhes novas significações.
No que se refere às reinvenções culturais afrodiaspóricas no Brasil,
partilhamos da concepção de Stuart Hall, quando afirma que a noção de “África”
reivindicada nas antigas colônias acaba por adquirir uma conotação política, pois:
“a ‘África’ é o significante, a metáfora, para aquela dimensão de nossa sociedade
e história que foi maciçamente suprimida, sistematicamente desonrada e
incessantemente negada” (HALL, 2018, p.45-46). Reconhecendo o caráter
processual das identidades culturais, é através da elucidação e da revalorização
das influências africanas nos patrimônios culturais brasileiros que podemos
construir “histórias alternativas àquelas impostas pelo domínio colonial” (HALL,
2018, p.45), contribuindo para a afirmação racial positiva de sujeitos negros no
Brasil.

III. Os fluxos diaspóricos dos bantos: cosmovisões, inovações técnicas e


culturais

No processo de travessia da Kalunga5, os malungos (companheiros de


viagem e de cativeiro) provavelmente perceberam afinidades culturais e

4 Esta noção foi proposta pelo escritor e historiador da arte britânico Korbena Mercer, citado por
Stuart Hall.
5 Travessia atlântica.
linguísticas entre si (SLENES, 1992). Mais tarde, um linguista europeu agruparia
tais línguas faladas na África Central e Austral no tronco linguístico Bantu6.
Nei Lopes afirma que a despeito de banto constituir-se, inicialmente,
somente enquanto denominação linguística7, seu uso foi ampliado e, a partir da
designação genérica bantos passou-se a se referir ao conjunto de “grupos étnicos
negro-africanos do centro, do sul e do leste do continente que apresentam
características linguísticas comuns e um modo de vida determinado por atividades
afins.” (LOPES, 2011, p.97). É nesse sentido que usamos o termo.
Os povos bantos, de acordo com Reginaldo Prandi, tiveram preferência nos
primeiros séculos de escravidão na América portuguesa e, considerando os
estudos linguísticos acerca da “sobrevivência no Brasil de elementos originários
principalmente do quicongo, quimbundo e umbundo” (PRANDI, 2000, p.54), este
autor afirma que é provável que os bantos oriundos do Congo e de Angola, onde
essas línguas ainda são faladas, tenham apresentado uma “superioridade
demográfica” em relação aos demais grupos escravizados.
No nordeste do Brasil, o primeiro desembarque de africanos escravizados
ocorreu no ano de 1550 em Salvador, para atuarem como mão-de-obra nas
lavouras de cana e nos engenhos de açúcar (LOPES, 2011). De acordo com este
mesmo autor, o fluxo de africanos para o Brasil a partir dos anos 1570 originava-
se, sobretudo, do “Reino do Congo, do Dongo e de Benguela” (LOPES, 2011,
p.159); portanto, provinha de áreas banto referentes aos atuais Congo e Angola,
tal qual afirma Prandi (PRANDI, 2000).
A despeito do amplo quantitativo de povos bantos no Brasil, construiu-se
ao longo do tempo um equívoco evolucionista a respeito dos bantos e dos
sudaneses, originando uma série de estereótipos negativos associados aos
primeiros (OLIVEIRA, 1997; LOPES, 2011). De acordo LOPES (2011), os
intelectuais adeptos do racismo científico no Brasil (como Silvio Romero, Nina

6
Este termo, especificamente, foi criado em 1862 pelo filólogo alemão Willelm Bleek 6 (PRANDI,
2000), mas é uma palavra originária da língua quimbundo para designar o plural de muntu
(indivíduo, pessoa), ou seja, bantu significa “seres humanos”. Em LOPES (2011), encontramos
uma diferença na grafia do sobrenome de Willelm, grafado como Bleck, bem como na data de
criação do termo “bantu”, que seria de 1860.
7 Tal generalização, portanto, deve-se às aproximações linguísticas observadas por linguistas e

etnólogos europeus que chegaram a apontar a existência de “700 e duas mil línguas e dialetos
aparentados, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, compreendendo as
terras que vão do Atlântico ao Índico até o Cabo da Boa Esperança” (PRANDI, 2000, p.54).
Rodrigues, Oliveira Vianna e Afrânio Peixoto, por exemplo) inferiorizaram os
africanos bantos em relação aos povos da África Ocidental em seus estudos. A
partir disso, os bantos foram representados como seres incultos, brutos, feios,
submissos/dóceis, aptos ao trabalho pesado e obedientes ao mesmo tempo.
Infelizmente, como no século XIX esses homens possuíam bastante influência,
tais ideias associadas aos bantos ecoaram em nossa sociedade e foram
reproduzidas até o século XX (LOPES, 2011).
A respeito dos conhecimentos e da espiritualidade dos bantos, Nei Lopes
desconstroi a ideia divulgada pela etnologia tradicional de que as suas
manifestações religiosas e artísticas seriam inferiores e, por isso, teriam se
aculturado, tal qual afirmavam os escritores colonialistas portugueses e os
adeptos do racismo científico do século XIX. De acordo com o autor, a principal
diferença entre bantos e sudaneses foi a estratégia agenciada frente à opressão:
os sudaneses costumavam confrontar culturalmente os brancos; já os bantos,
geralmente adotavam a dissimulação como estratégia para sua continuidade
histórica, através das irmandades negras, por exemplo (LOPES, 2011).
É por esse ângulo que o referido autor nos mostra como os bantos também
foram agentes civilizatórios no Brasil. A partir de seu tronco-linguístico, sua
filosofia, suas cosmovisões, sua arte (desde as esculturas, musicalidade,
contação de histórias, danças) e suas instituições sociais, os bantos contribuíram
para diversas das manifestações religiosas e culturais presentes no país até os
dias atuais. Mas vejamos quais eram algumas características em comum aos
povos bantos, bastante importantes para compreendermos muitas de suas
contribuições culturais, inclusive no Maracatu-Nação.
Dois princípios básicos da ontologia bantu são basilares para
compreendermos muitas das manifestações culturais diaspóricas presentes no
Brasil. São eles: 1- A noção de força vital, presente inclusive em seres
inanimados, como os minerais ou mesmo a objetos cotidianos. A existência para
os bantos depende da força vital dos seres, de modo que “toda a cultura banta é
orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra a sua perda ou
diminuição” (LOPES, 2011, p.144). Por exemplo, quando uma pessoa fica doente,
está perdendo força vital e quando vem a óbito, significa que ela não mais possui
força vital. 2- A importância atribuída à ancestralidade. Os espíritos dos ancestrais
(antepassados ilustres da comunidade) são sacralizados e intermediários entre os
seres humanos e a divindade suprema, a qual recebe distintos nomes conforme o
grupo étnico, podendo se chamar Nzambi, Suku, Kalunga etc.
Para os bantos, a vida dos seres humanos é influenciada por seus
antepassados ancestrais, sendo estes onipresentes em todas as cerimônias
importantes, continuando a participar de sua comunidade, mesmo após terem
morrido. Ainda de acordo com Nei Lopes, os cultos bantos geralmente recorrem
muito mais aos espíritos dos ancestrais do que aos espíritos da natureza, apesar
de estes últimos serem hierarquicamente mais importantes e estarem mais
próximos à divindade suprema (LOPES, 2011). Nos termos do referido autor,

Por força de sua herança espiritual, o ancestral assegura tanto a


estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo quanto sua
coesão no espaço. Assim, o culto aos ancestrais (míticos, reais e
familiares) tem uma repercussão inestimável na estatuária e na
escultura da tradição negro-africana, que são as manifestações
mais características da Arte Negra como um todo (e da arte banta
em especial), distinguindo-a da arte europeia, por exemplo.
(LOPES, 2011, p.152).

[...] dentro do universo artístico banto, as máscaras e as estátuas


dedicadas aos ancestrais representam um papel muito importante.
A figura do ancestral é um símbolo que evoca seus atos. Não se
trata de feiticismo nem de idolatria, já que não se adora um
pedaço de madeira ou de metal. A máscara ou a estátua é o signo
que manifesta a presença espiritual do ancestral entre os vivos.
(LOPES, 2011, p.154).

Além disso, é possível que espíritos de ancestrais se transformem em


forças da natureza, como ocorre no caso dos Nkisi dos bantos de origem centro-
africana, como os Bacongos e os Jagas (LOPES, 2011; PREVITALLI, 2012).
Conforme afirma Ivete Previtalli, “a maioria das descrições de inquice na África se
refere a amuletos pessoais que parecem muito distantes dos assentamentos dos
inquices” (PREVITALLI, 2012, p.182) presentes em terreiros. No Brasil, os
minkisi8 são cultuados como divindades associadas a forças da natureza no
chamado candomblé de nação Angola e no Xangô pernambucano (BARROS;
MOTA, 2008; PREVITALLI, 2012). Nas palavras daquela mesma autora, existem

8 Plural de inkisi.
[...] alguns inquices entre os povos centro-africanos que são
conhecidos no Brasil. Entretanto, a elaboração dos
assentamentos, assim como a relação dos inquices com as
comunidades africanas onde eles foram encontrados, tem muitas
diferenças com os inquices da religião brasileira. No Brasil, os
inquices ficaram muito parecidos com os orixás dos sudaneses
devido a similaridades que existiam entre as características de
ambos. Os processos de hibridação que sofreram as religiões dos
negros centro-africanos transportados para o Brasil, com a
diáspora, transformaram os inquices, na medida em que os
fundiram com elementos de outras tradições religiosas.
(PREVITALLI, 2012, p.183).

De acordo com BARROS e MOTA (2008), ao longo da diáspora africana no


Brasil os “inquices e o panteão dos ancestrais bantos mesclaram-se aos orixás
nagôs e aos voduns jejes. Incorporaram também a figura do caboclo e dos santos
católicos, num sistema de equivalência altamente completo” (BARROS; MOTA,
2008, p.244). Os autores citam, por exemplo, o inquice Angoro associado orixá
Oxumaré nagô ou ao vodun Bessen jeje, cujos arquétipos aparecem
representados pela cobra e pelo arco-íris, todos eles estando vinculados ao culto
da cobra (BARROS; MOTA, 2008). Outro inquice mencionado pelos autores é
Catende, associado ao orixá nagô Ossaim, conhecido como o “‘senhor’ de todas
as folhas mágico-curativas [...]” (BARROS; MOTA, 2008, p. 244). Nesse sentido,
podemos afirmar que na diáspora, muitos dos signos culturais presentes em
diferentes regiões da África passaram a ser cultuados no Brasil, gerando
hibridismos, transformações e diferenciações em relação aos cultos “originais”.
De acordo com Flávia Carvalho, as identidades africanas foram
transformadas ao longo da diáspora, desde sua captação no interior do continente
africano, seu aprisionamento nos barracões construídos na costa africana até o
processo de travessia da Grande Kalunga - o Oceano Atlântico-, ocasionando a
preservação de alguns elementos culturais e a reinvenção de outros, “marcando
de forma singular a heterogeneidade cultural da América Portuguesa.”
(CARVALHO, 2010, p.21-22). Uma das manifestações que evidenciam tal
diversidade cultural brasileira é o Maracatu-Nação, abordado no item a seguir.
IV. A cultura afrodiaspórica do Maracatu-Nação: (re)conhecendo a presença
banto

“Ribeira do mar dos arrecifes do navio/ Tua beleza a que te reverencio


Vim da África e Angola/ Eu aqui fui coroado/
Nação negra do congo,/do povo de Nossa Senhora do Rosário/
Aos pretos vou cantando a minha Loa...”
(Loa aos Pretos)

O Maracatu diferencia-se, grosso modo, em dois tipos: Maracatu-Rural


(também chamado de Maracatu de Baque Solto) e Maracatu-Nação (também
conhecido como Maracatu de Baque Virado), em referência às diferenciações
percussivas. Espacialmente, o Maracatu Rural é mais associado ao interior do
estado de Pernambuco e o Maracatu-Nação territorializado em bairros periféricos
da Região Metropolitana de Recife, principalmente na Zona Norte desta
(FERREIRA, 2012, 2016).
O Maracatu-Nação é foi registrado como Patrimônio Cultural Imaterial
brasileiro em 2014 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN). Esta manifestação cultural afro-pernambucana9; no entanto, é uma
prática que remonta ao período colonial no Brasil, tendo possibilitado a resistência
de cosmovisões e certos elementos culturais de africanos e seus descendentes.
Tal continuidade histórica foi resultado de agenciamentos diversos, dentre eles a
estratégia banto de “dissimulação” (LOPES, 2011), utilizando-se as irmandades
negras como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos10
como espaços de acolhimento, de reelaboração e afirmação identitárias para
negros e negras (SOUZA, 2015).
O Maracatu-Nação se caracteriza por um cortejo simbólico durante o qual
seus integrantes desenvolvem uma corporeidade afrodiaspórica (GARCEZ, 2012)
ao som dos baques/batuques, sendo o “baque virado” um dos padrões
percussivos, por isso podemos encontrar o termo “Maracatu de Baque Virado”
referindo-se à sonoridade percussiva das nações de maracatu. Devemos lembrar
que cada nação desenvolve sua própria identidade percussiva.

9 Não há uma restrição em com critérios raciais para alguém ser membro de uma Nação de
Maracatu. Entretanto, a maioria dos maracatuzeiros da Zona Norte de Recife é negra (LIMA,
2014).
10 Era dentro dessas irmandades que aconteciam as coroações de reis e rainhas negros nos

maracatus até a primeira metade do século XIX, sendo a última promovida no ano de 1848
(GUILLEN, 2004).
Tais nações, formadas majoritariamente por pessoas negras e de baixa
renda, mantém vínculos religiosos e comunitários com territórios específicos
dentro da Região Metropolitana de Recife, conferindo-lhes uma dimensão política
(FERREIRA; ANJOS, 2012; LIMA, 2014). Historicamente, as nações de maracatu
construíram relações com religiões de matriz afro-indígena no Recife, seja com
terreiros de Xangô, de Jurema ou de Umbanda (LIMA, 2006). É nos terreiros que
os maracatuzeiros e maracatuzeiras realizam seus preceitos religiosos de
preparação para o Carnaval.
Como outras expressões culturais negras no Brasil (samba, capoeira etc.),
os maracatus foram duramente perseguidos devido às práticas religiosas que
fundamentam essa manifestação cultural, especialmente nos anos 1930 e 1940
(GARCEZ, 2012). Atualmente, entretanto, tal vínculo religioso é reivindicado em
busca de legitimidade, conferindo às nações pernambucanas uma ideia de
autenticidade e tradição.
Algumas nações de maracatu se identificam como “nagô”/ “yorubá”,
autoafirmação presente em diversas toadas/loas11. No entanto, através de alguns
de seus símbolos principais (como a boneca calunga), bem como considerando
algumas práticas (como o próprio ritual de coroação de um rei e uma rainha
negros com vínculos religiosos afro-indígenas) podemos afirmar que o Maracatu-
Nação combina não só elementos nagô com símbolos católicos, mas também
ressignifica elementos de origem banto e outros de matriz indígena. Trata-se de
uma cultura afrodiaspórica, forjada a partir das misturas, dos hibridismos como
nos coloca Stuart Hall (HALL, 2018).
Os cortejos das nações geralmente começam com um porta-estandarte,
seguido pelas damas de paço, mulheres responsáveis por carregarem uma
boneca conhecida como calunga - temo aportuguesado do termo polissêmico
kalunga, de origem banto. Conforme afirma Flávia Carvalho,
na cultura desses povos [bantos] o dito termo se refere a vários
tipos de passagem, podendo ser ao mesmo tempo a
representação da viagem de um corpo físico, como uma
passagem sobrenatural. Ainda de acordo com o universo cultural
banto, a água também era um elemento cercado de interpretações
míticas. O mar poderia simbolizar um espaço intermediário entre
uma determinada origem e um novo destino, ou um meio onde se
realizaria a passagem – kalunga.” (CARVALHO, 2010, p.20).

11 Músicas de maracatu.
Também de acordo com Slenes, Kalunga tem distintas acepções para os
povos de origem banto. Por vezes, aparece como mar, mas também significava a
linha divisória entre o mundo dos vivos e o mundo dos ancestrais (SLENES,
1992). Ao consultar o Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, também
verificamos a polissemia do termo Kalunga/ Calunga. Nos termos do autor, temos:

CALUNGA [1] – [...] (2) Boneco pequeno. [...] (10) Falar banto da
Região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba; /// s.f. (11) Cada
uma das duas bonecas que fazem parte do cortejo de
maracatu(BH) - /// s. 2 gên. (12) Mar (MM). (13) Céu, morte. (JD)
/// adj. Do termo multilinguístico banto Kalunga, que se encerra a
ideia de grandeza, imensidão, designando Deus, o mar, a morte –
‘O vocábulo Kalunga (Deus), do verbo oku-lunga (ser esperto,
inteligente), encontra-se no dialeto dos Ambós e em outros grupos
vizinhos. O prefixo ka aparece aqui sem a função diminutiva usual,
sua característica. Antes, pelo contrário, impõe-se como uma
afirmação de coisa importante, grande, valiosa’ (Lima, 1977: 152).
Para os umbundos, ‘Céu é céu, Kalunga é Kalunga (...) Céu é a
morada de Nzambi, Kalunga é o lugar para onde Kalung’a
Ngombe leva as pessoas que vem buscar’ (Manuel P. Pacavia,
Nzinga Mbandi, Luanda, 1985, pág.56). No Brasil, o ícone
antropomorfo (o iteque, a estatueta, representativo de qualquer
entidade divinizada), passou a se chamar calunga. E daí o termo
se estendeu às acepções de (2) a (10).” (LOPES, 2006, p.57-58.
Grifos no original.)

A ideia de travessia entre o mundo dos vivos e dos mortos presente na


palavra calunga se mescla à concepção de calunga como boneco pequeno ou
estatueta que simboliza e encarna determinada entidade divinizada. Este
emaranhado simbólico tipicamente banto parece estar presente quando
pensamos na boneca que vai à frente dos cortejos das nações. A calunga do
maracatu é uma boneca, feita de madeira ou de cera, que encarna a força vital de
algum ancestral, geralmente alguma antiga rainha de cada nação, convidada
através de rituais religiosos a continuar participando da coletividade à qual
pertencia quando viva. Por ser um símbolo sagrado das nações, a calunga é
preparada espiritualmente antes de ir para a rua e só pode ser segurada por
pessoas autorizadas. Nesse sentido, é provável que a boneca, um dos mais fortes
símbolos do Maracatu-Nação, ao mesmo tempo em que é regida por um orixá
específico também seja cultuada como inquice (no sentido de amuleto).
Outro indício de que as calungas do Maracatu-Nação possuem vínculos
com a cultura dos povos bantos é a proporcionalidade de suas partes. Na arte
banta, valoriza-se a assimetria e a desproporção como bases na confecção das
esculturas e estatuetas com formas humanas (LOPES, 2011). Baseando-se em
Alioune Sene, Nei Lopes afirma que a arte negra tradicional parte do pressuposto
de que não se deve tentar copiar a natureza, tal qual a arte ocidental indica, pois
ela não é estática. A arte é uma representação, uma linguagem expressa através
de símbolos e significados próprios à cultura do artesão. Além disso, este autor
afirma que “a forma do objeto varia segundo as exigências do espírito. Isto explica
o porquê de certas máscaras ou estátuas serem realistas e outras abstratas.”
(LOPES, 2011, p.153).

Figura 1 - Calunga de Maracatu, boneca que representa os ancestrais, exposta no


acervo do Museu Afro-Brasil

Fonte: A autora, 2018.

No caso da calunga retratada na Figura 1, é perceptível a referência


tipicamente banta da desproporção, pois sua cabeça é bastante grande em
relação ao restante do corpo. Os pés desta calunga tornam-se minúsculos se
comparados ao corpo que sustentam. A respeito da arte tradicional africana, Nei
Lopes traz uma contribuição que nos ajuda a compreender a figura acima. Nas
palavras deste autor, quando as estatuetas são construídas com a cabeça muito
maior que o resto do corpo, isso não é feito sem razão “porque a cabeça é a parte
mais importante do corpo; é onde mora a inteligência, o saber, a personalidade, a
vida enfim” (LOPES, 2011, p.153).
Cada calunga é vestida e adornada de maneira particular e, fora do
momento de cortejo propriamente dito deve repousar em um pegi12, quando a
sede do maracatu coincide com um terreiro. Suas vestes, geralmente, são feitas
com as cores representativas do orixá que as rege. A dama de paço, por sua vez,
deve utilizar roupas exatamente iguais àquelas usadas pelas calungas que
carregam durante os cortejos de sua nação.
Outros personagens fundamentais em uma nação de maracatu que vai às
ruas são as catirinas que possuem a função de proteger outros membros que
desfilam, especialmente a ala chamada de corte real, constituída por personagens
que representam a realeza (baianas ricas, príncipes, princesas, barões,
baronesas etc.). Atrás da corte real, posiciona-se o casal real; rei e rainha
devidamente paramentados com roupas luxuosas, coroa, cetro e espada e
sempre protegidos por um pálio (espécie de guarda sol que simboliza a realeza)
carregado pelo personagem conhecido como vassalo. É preciso pontuar que cada
nação de maracatu possui uma rainha, geralmente mãe-de-santo, a qual se
responsabiliza pelos fundamentos religiosos de sua coletividade. A rainha,
personagem obrigatório nos cortejos, é dotada de poder perante a sua nação. E a
nação que possui uma rainha coroada acaba tendo mais destaque que as
demais, como apontado em trabalho anterior (SOUZA, 2015b).
O casal de rei e rainha é anunciado, também, por um conjunto de músicos/
batuqueiros composto por variados instrumentos percussivos: alfaias, caixas de
guerra, tarois, gonguês, ganzás/mineiros (mais tradicionais), atabaques e agbês
(estes dois últimos introduzidos por algumas nações nos últimos anos). Nesse
sentido, deve-se atentar para o fato de que o Maracatu-Nação não está isento de
inovações. As nações modificaram suas práticas e suas territorialidades ao longo
do tempo, implementadas por seus sujeitos, agenciadores de diferentes
estratégias conforme as intenções, os desafios e os sonhos cotidianos (LIMA,
2005; FERREIRA, 2012, 2016).

12 O pegi é um altar específico para cada orixá.


REFLEXÕES FINAIS
A pesquisa buscou reforçar a dimensão diaspórica do Maracatu-Nação, a
partir da presença banto em seus modos de criar, de se comunicar com o
sagrado, de agir politicamente, entre outras estratégias que lhes garantiram uma
continuidade histórica. Procurou-se demonstrar que não somente o maracatu-
nação não pode ser compreendido apenas como nagô, identidade geralmente
exaltada por algumas nações em suas toadas. Ele também é estruturalmente
banto, pois é fruto da diáspora africana para o Brasil.
Desse modo, a ideia de Nei Lopes de que os bantos também foram
"agentes civilizatórios" do Brasil se confirma e se torna visível através desta
prática cultural, considerada pelo dossiê que embasou seu Inventário Nacional de
Referências Culturais uma das importantes referências para uma afirmação
identitária de sujeitos negros pernambucanos e brasileiros de um modo geral.

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