As Contribuições Dos Bantos No Maracatu - Nação
As Contribuições Dos Bantos No Maracatu - Nação
As Contribuições Dos Bantos No Maracatu - Nação
I. Introdução
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Professor Arthur José Baptista (Colégio Pedro II).
II. Diáspora africana e ressignificações culturais
4 Esta noção foi proposta pelo escritor e historiador da arte britânico Korbena Mercer, citado por
Stuart Hall.
5 Travessia atlântica.
linguísticas entre si (SLENES, 1992). Mais tarde, um linguista europeu agruparia
tais línguas faladas na África Central e Austral no tronco linguístico Bantu6.
Nei Lopes afirma que a despeito de banto constituir-se, inicialmente,
somente enquanto denominação linguística7, seu uso foi ampliado e, a partir da
designação genérica bantos passou-se a se referir ao conjunto de “grupos étnicos
negro-africanos do centro, do sul e do leste do continente que apresentam
características linguísticas comuns e um modo de vida determinado por atividades
afins.” (LOPES, 2011, p.97). É nesse sentido que usamos o termo.
Os povos bantos, de acordo com Reginaldo Prandi, tiveram preferência nos
primeiros séculos de escravidão na América portuguesa e, considerando os
estudos linguísticos acerca da “sobrevivência no Brasil de elementos originários
principalmente do quicongo, quimbundo e umbundo” (PRANDI, 2000, p.54), este
autor afirma que é provável que os bantos oriundos do Congo e de Angola, onde
essas línguas ainda são faladas, tenham apresentado uma “superioridade
demográfica” em relação aos demais grupos escravizados.
No nordeste do Brasil, o primeiro desembarque de africanos escravizados
ocorreu no ano de 1550 em Salvador, para atuarem como mão-de-obra nas
lavouras de cana e nos engenhos de açúcar (LOPES, 2011). De acordo com este
mesmo autor, o fluxo de africanos para o Brasil a partir dos anos 1570 originava-
se, sobretudo, do “Reino do Congo, do Dongo e de Benguela” (LOPES, 2011,
p.159); portanto, provinha de áreas banto referentes aos atuais Congo e Angola,
tal qual afirma Prandi (PRANDI, 2000).
A despeito do amplo quantitativo de povos bantos no Brasil, construiu-se
ao longo do tempo um equívoco evolucionista a respeito dos bantos e dos
sudaneses, originando uma série de estereótipos negativos associados aos
primeiros (OLIVEIRA, 1997; LOPES, 2011). De acordo LOPES (2011), os
intelectuais adeptos do racismo científico no Brasil (como Silvio Romero, Nina
6
Este termo, especificamente, foi criado em 1862 pelo filólogo alemão Willelm Bleek 6 (PRANDI,
2000), mas é uma palavra originária da língua quimbundo para designar o plural de muntu
(indivíduo, pessoa), ou seja, bantu significa “seres humanos”. Em LOPES (2011), encontramos
uma diferença na grafia do sobrenome de Willelm, grafado como Bleck, bem como na data de
criação do termo “bantu”, que seria de 1860.
7 Tal generalização, portanto, deve-se às aproximações linguísticas observadas por linguistas e
etnólogos europeus que chegaram a apontar a existência de “700 e duas mil línguas e dialetos
aparentados, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, compreendendo as
terras que vão do Atlântico ao Índico até o Cabo da Boa Esperança” (PRANDI, 2000, p.54).
Rodrigues, Oliveira Vianna e Afrânio Peixoto, por exemplo) inferiorizaram os
africanos bantos em relação aos povos da África Ocidental em seus estudos. A
partir disso, os bantos foram representados como seres incultos, brutos, feios,
submissos/dóceis, aptos ao trabalho pesado e obedientes ao mesmo tempo.
Infelizmente, como no século XIX esses homens possuíam bastante influência,
tais ideias associadas aos bantos ecoaram em nossa sociedade e foram
reproduzidas até o século XX (LOPES, 2011).
A respeito dos conhecimentos e da espiritualidade dos bantos, Nei Lopes
desconstroi a ideia divulgada pela etnologia tradicional de que as suas
manifestações religiosas e artísticas seriam inferiores e, por isso, teriam se
aculturado, tal qual afirmavam os escritores colonialistas portugueses e os
adeptos do racismo científico do século XIX. De acordo com o autor, a principal
diferença entre bantos e sudaneses foi a estratégia agenciada frente à opressão:
os sudaneses costumavam confrontar culturalmente os brancos; já os bantos,
geralmente adotavam a dissimulação como estratégia para sua continuidade
histórica, através das irmandades negras, por exemplo (LOPES, 2011).
É por esse ângulo que o referido autor nos mostra como os bantos também
foram agentes civilizatórios no Brasil. A partir de seu tronco-linguístico, sua
filosofia, suas cosmovisões, sua arte (desde as esculturas, musicalidade,
contação de histórias, danças) e suas instituições sociais, os bantos contribuíram
para diversas das manifestações religiosas e culturais presentes no país até os
dias atuais. Mas vejamos quais eram algumas características em comum aos
povos bantos, bastante importantes para compreendermos muitas de suas
contribuições culturais, inclusive no Maracatu-Nação.
Dois princípios básicos da ontologia bantu são basilares para
compreendermos muitas das manifestações culturais diaspóricas presentes no
Brasil. São eles: 1- A noção de força vital, presente inclusive em seres
inanimados, como os minerais ou mesmo a objetos cotidianos. A existência para
os bantos depende da força vital dos seres, de modo que “toda a cultura banta é
orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra a sua perda ou
diminuição” (LOPES, 2011, p.144). Por exemplo, quando uma pessoa fica doente,
está perdendo força vital e quando vem a óbito, significa que ela não mais possui
força vital. 2- A importância atribuída à ancestralidade. Os espíritos dos ancestrais
(antepassados ilustres da comunidade) são sacralizados e intermediários entre os
seres humanos e a divindade suprema, a qual recebe distintos nomes conforme o
grupo étnico, podendo se chamar Nzambi, Suku, Kalunga etc.
Para os bantos, a vida dos seres humanos é influenciada por seus
antepassados ancestrais, sendo estes onipresentes em todas as cerimônias
importantes, continuando a participar de sua comunidade, mesmo após terem
morrido. Ainda de acordo com Nei Lopes, os cultos bantos geralmente recorrem
muito mais aos espíritos dos ancestrais do que aos espíritos da natureza, apesar
de estes últimos serem hierarquicamente mais importantes e estarem mais
próximos à divindade suprema (LOPES, 2011). Nos termos do referido autor,
8 Plural de inkisi.
[...] alguns inquices entre os povos centro-africanos que são
conhecidos no Brasil. Entretanto, a elaboração dos
assentamentos, assim como a relação dos inquices com as
comunidades africanas onde eles foram encontrados, tem muitas
diferenças com os inquices da religião brasileira. No Brasil, os
inquices ficaram muito parecidos com os orixás dos sudaneses
devido a similaridades que existiam entre as características de
ambos. Os processos de hibridação que sofreram as religiões dos
negros centro-africanos transportados para o Brasil, com a
diáspora, transformaram os inquices, na medida em que os
fundiram com elementos de outras tradições religiosas.
(PREVITALLI, 2012, p.183).
9 Não há uma restrição em com critérios raciais para alguém ser membro de uma Nação de
Maracatu. Entretanto, a maioria dos maracatuzeiros da Zona Norte de Recife é negra (LIMA,
2014).
10 Era dentro dessas irmandades que aconteciam as coroações de reis e rainhas negros nos
maracatus até a primeira metade do século XIX, sendo a última promovida no ano de 1848
(GUILLEN, 2004).
Tais nações, formadas majoritariamente por pessoas negras e de baixa
renda, mantém vínculos religiosos e comunitários com territórios específicos
dentro da Região Metropolitana de Recife, conferindo-lhes uma dimensão política
(FERREIRA; ANJOS, 2012; LIMA, 2014). Historicamente, as nações de maracatu
construíram relações com religiões de matriz afro-indígena no Recife, seja com
terreiros de Xangô, de Jurema ou de Umbanda (LIMA, 2006). É nos terreiros que
os maracatuzeiros e maracatuzeiras realizam seus preceitos religiosos de
preparação para o Carnaval.
Como outras expressões culturais negras no Brasil (samba, capoeira etc.),
os maracatus foram duramente perseguidos devido às práticas religiosas que
fundamentam essa manifestação cultural, especialmente nos anos 1930 e 1940
(GARCEZ, 2012). Atualmente, entretanto, tal vínculo religioso é reivindicado em
busca de legitimidade, conferindo às nações pernambucanas uma ideia de
autenticidade e tradição.
Algumas nações de maracatu se identificam como “nagô”/ “yorubá”,
autoafirmação presente em diversas toadas/loas11. No entanto, através de alguns
de seus símbolos principais (como a boneca calunga), bem como considerando
algumas práticas (como o próprio ritual de coroação de um rei e uma rainha
negros com vínculos religiosos afro-indígenas) podemos afirmar que o Maracatu-
Nação combina não só elementos nagô com símbolos católicos, mas também
ressignifica elementos de origem banto e outros de matriz indígena. Trata-se de
uma cultura afrodiaspórica, forjada a partir das misturas, dos hibridismos como
nos coloca Stuart Hall (HALL, 2018).
Os cortejos das nações geralmente começam com um porta-estandarte,
seguido pelas damas de paço, mulheres responsáveis por carregarem uma
boneca conhecida como calunga - temo aportuguesado do termo polissêmico
kalunga, de origem banto. Conforme afirma Flávia Carvalho,
na cultura desses povos [bantos] o dito termo se refere a vários
tipos de passagem, podendo ser ao mesmo tempo a
representação da viagem de um corpo físico, como uma
passagem sobrenatural. Ainda de acordo com o universo cultural
banto, a água também era um elemento cercado de interpretações
míticas. O mar poderia simbolizar um espaço intermediário entre
uma determinada origem e um novo destino, ou um meio onde se
realizaria a passagem – kalunga.” (CARVALHO, 2010, p.20).
11 Músicas de maracatu.
Também de acordo com Slenes, Kalunga tem distintas acepções para os
povos de origem banto. Por vezes, aparece como mar, mas também significava a
linha divisória entre o mundo dos vivos e o mundo dos ancestrais (SLENES,
1992). Ao consultar o Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, também
verificamos a polissemia do termo Kalunga/ Calunga. Nos termos do autor, temos:
CALUNGA [1] – [...] (2) Boneco pequeno. [...] (10) Falar banto da
Região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba; /// s.f. (11) Cada
uma das duas bonecas que fazem parte do cortejo de
maracatu(BH) - /// s. 2 gên. (12) Mar (MM). (13) Céu, morte. (JD)
/// adj. Do termo multilinguístico banto Kalunga, que se encerra a
ideia de grandeza, imensidão, designando Deus, o mar, a morte –
‘O vocábulo Kalunga (Deus), do verbo oku-lunga (ser esperto,
inteligente), encontra-se no dialeto dos Ambós e em outros grupos
vizinhos. O prefixo ka aparece aqui sem a função diminutiva usual,
sua característica. Antes, pelo contrário, impõe-se como uma
afirmação de coisa importante, grande, valiosa’ (Lima, 1977: 152).
Para os umbundos, ‘Céu é céu, Kalunga é Kalunga (...) Céu é a
morada de Nzambi, Kalunga é o lugar para onde Kalung’a
Ngombe leva as pessoas que vem buscar’ (Manuel P. Pacavia,
Nzinga Mbandi, Luanda, 1985, pág.56). No Brasil, o ícone
antropomorfo (o iteque, a estatueta, representativo de qualquer
entidade divinizada), passou a se chamar calunga. E daí o termo
se estendeu às acepções de (2) a (10).” (LOPES, 2006, p.57-58.
Grifos no original.)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, José Flávio Pessoa de.; MOTA, Clarice Novaes da. Como a Jurema
nos disse: representações e drama social afro-indígena. In: NASCIMENTO, Elisa
Larkin (org.). Guerreiras da natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente.
São Paulo: Selo Negro, 2008. p.229-250.
LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. 3aed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2011.
______. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro,
2014.
______. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
OLIVEIRA, Maria Inês Cortes de. Quem eram os “negros da Guiné”? : a origem
dos africanos da Bahia. Afro-Ásia, n.19/20, p37-77, 1997.