TEPT em Policiais Militares
TEPT em Policiais Militares
TEPT em Policiais Militares
Rio de Janeiro
2013
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Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CB-C
CDU 159.942.5
___________________________________ ____________________________
Assinatura Data
Letícia Freire da Rocha
Tese
Dissertação apresentada, como requisito
Doutor
parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:
Política, Planejamento e Administração
em Saúde.
__________________________________________________________
Prof. Dr. Benilton Carlos Bezerra Junior
Instituto de Medicina Social – UERJ
__________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Alberto Pinheiro de Freitas
Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação – IBMR
___________________________________________________________
Prof.ª Dra. Joana Domingues Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
___________________________________________________________
Prof.ª Dra. Paula Ferreira Poncioni
Escola de Serviço Social – UFRJ
Rio de Janeiro
2013
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora, que foi sempre, antes de qualquer coisa, um exemplo
de profissional para mim, competente, ética, comprometida, motivada, sensível, ainda que sob
a capa de forte que precisou tantas vezes vestir para ―sobreviver‖ no ambiente hostil e,
infelizmente ainda machista, da academia. Não é só a polícia militar que tem um ambiente
machista, não! Tem sido muito estimulante caminhar com você, Alba, nesses anos de
mestrado e doutorado. Obrigada por não desistir de mim, apesar de toda minha dificuldade de
organizar ideias e lhe entregar textos prontos. Você cuidou disso sabiamente, ora com doçura
e estímulo, ora com impaciência e pressão. Bravo!
Ao pessoal da secretaria do ITMS, às meninas, sempre bem humoradas e prontas a
ajudar e dar uma força. E à Ana Silvia, paciente e parceira, mais uma vez revisando meu texto
e tornando meus quadros e tabelas possíveis.
Aos policiais entrevistados, mesmo não podendo citar seus nomes, especialmente por
sua sensibilidade durante as entrevistas, quando abriram seus mundos internos e relataram
situações, por vezes delicadas e íntimas, revelando fragilidades trancadas a sete chaves,
embasados na confiança estabelecida em nossa relação. Sem essa participação, esta tese
perderia parte preciosa, que é a riqueza das estórias contadas.
Ao Coronel Teixeira, Presidente do Instituto de Segurança Pública, por seu incentivo
no início desta jornada, me ouvindo, dando sugestões e até emprestando livros e no final me
fornecendo dados estatísticos importantes para a pesquisa e ao Major Médico Pedro Ventura
que me ajudou mesmo fora do seu horário de trabalho a buscar dados estatísticos no sistema
da PMERJ que só ele entende o suficiente para poder me ajudar. Sem estes dados este
trabalho não seria o mesmo.
Minha mãe merece um ―muito obrigada‖ especial, pelo apoio e torcida constantes e
incansáveis, passando por cima das minhas impaciências.
À vida, por esta oportunidade de estudo, de crescimento, por galgar mais este degrau
no meu amadurecimento pessoal e profissional. Esta tese me tocou como ser humano para
muito além do lado profissional.
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RESUMO
Palavras chave: Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, policiais militares, adoecimento
mental, transtorno do estresse pós-traumático.
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ABSTRACT
ROCHA, LeticiaFreire
ROCHA, Leticia Freire
da.da. Posttraumatic
Transtorno stress
do estresse disorder in em
pós-traumático thepoliciais
militarymilitares
police indo
Rio de Janeiro. 2013. 127f. Tese (Doutorado) - Instituto de Medicina Social,
Rio de Janeiro. 2013. 127f. Tese (Doutorado) – Instituto de Medicina Social, Universidade do
Universidade doJaneiro,
Estado do Rio de EstadoRiodo de
RioJaneiro,
de Janeiro,
2013. Rio de Janeiro, 2013.
This thesis intends to point out the involvement of the post-traumatic stress disorder in Rio de
Janeiro State Military Police (PMERJ). For this, the author uses her experience as a
psychologist at PMERJ for 11 years and describes numerous situations on daily life in that
corporation, the challenges of researching the institution where she works, describes the
psychology service and how, from the place of military psychologist, military policeman sees
the man, his identity and the institution Military Police. It contextualizes the scene of violence
and crime found by the police in our state in recent years and discusses aspects of the
formation of these public safety professionals, which include the construction of fear of denial
in the exercise of labor activity and adherence to a standard of fearless and strong man at all
times. There is an attempt to demonstrate how these constructs contribute to mental illness
among these workers, by preventing them from realizing their weaknesses and limitations,
and is always looking to achieve the standard of superman valued as ideal. It discusses mental
illness among policemen, especially the post-traumatic stress disorder as a public health
problem beyond the walls of PMERJ. Current guidelines are presented in our country with
regard to this issue and finally two detailed stories of military police illustrate how the
profession can permeate the life of these workers in order to modify them deeply.
Keywords: Rio de Janeiro State Military Police; military policemen; mental illness; post-
traumatic stress disorder.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 9
1.1 Ser de dentro e ver de fora: o cotidiano como oficial psicóloga num batalhão
operacional ........................................................................................................... 19
3.4 Dados estatísticos sobre licenças de saúde entre policiais militares .......................... 90
4.1 Caso 1 - “Sonhei ser policial, agora não sei mais quem sou”. A vida de Jonas, um
homem cuja realização do sonho devastou sua existência ....................................... 99
INTRODUÇÃO
Este trabalho dá continuidade aos estudos que venho realizando na e sobre a Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) desde 2003, durante curso de especialização na
Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Após esse
curso, ingressei no Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), ―um sonho antigo‖, para
realizar o mestrado entre 2006 e 2008, pesquisando aspectos da cultura organizacional dessa
corporação e da identidade dos policiais militares.
Interessante ressaltar a trajetória percorrida, para me debruçar repetidamente sobre o
tema ―polícia militar‖. Em 2001, foi realizado um grande concurso para a área da saúde da
PMERJ e assim que soube, me interessei. Apaixonada por aquela corporação? Não,
justamente o contrário. Entretanto, idealizei que, para consertar uma instituição estragada,
seria mais fácil trabalhar de dentro. Estragada, exatamente assim eu enxergava a polícia
militar. E também corrupta, preconceituosa, violenta, arbitrária e muitos outros adjetivos
desqualificadores. Não só considerava toda a instituição estragada, como acreditava também
que um inédito quadro de psicólogos oficiais policiais militares poderia mudar esse quadro.
Muitas coisas estavam prestes a acontecer para acabar com aquela idealização,
desvelando um universo paralelo que levou muitas ideias preconcebidas e preconceitos a se
modificarem e fez nascer uma curiosidade crescente que tem instigado esses estudos ao longo
desses anos.
E foi assim que, no mês de março de 2002, marchando sob um sol de 40 graus na
cerimônia de formatura na Academia de Formação de Oficiais da PMERJ D. João VI (APM),
me tornei 1º tenente psicóloga Leticia, fazendo parte da primeira turma de psicólogos
militares da corporação, onde já havia psicólogos civis desde a década de 1970. Contudo, essa
turma viria a descobrir que o fato de sermos militares, estando sujeitos ao mesmo regulamento
disciplinar, era como possuir um código secreto só concedido aos pares – uma chave mágica
que abria as portas para o universo policial militar com todo seu imaginário pronto para ser
conhecido, investigado e estudado, borbulhando nos corredores dos batalhões, na fila do
rancho, nas formaturas, durante as várias cerimônias de trocas de comando, de formatura de
soldados, nas reuniões de oficiais e em inúmeras atividades cotidianas no dia a dia do
batalhão.1
Por sermos militares, tínhamos acesso livre no batalhão e era lá que estava a recém-
1
Ver no primeiro capítulo o funcionamento do batalhão: cerimônias, funcionamento do rancho...
11
formada tenente psicóloga Leticia, visitando todas as seções, fazendo perguntas, desvendando
um novo universo: um batalhão operacional numa área cercada de morros e conturbada para a
segurança pública, especialmente naquela época, quando o enfrentamento de policiais com
marginais2 em conflito com a lei era frequente e a violência assustava os moradores daquela
localidade.
Daquele dia de marcha sob o sol na formatura até hoje se passaram dez anos, de muito
trabalho, de amadurecimento profissional e pessoal, acompanhando o tratamento psicológico
de policiais e seus familiares, convivendo com policiais, com suas armas e coletes, tomando
café da manhã e almoçando entre eles, ouvindo desabafos informais daqueles que tanto
precisavam de atendimento psicológico e este era de fato realizado, só que com o nome de
―bate-papo‖, na varanda ou no pátio. Dez anos também de muito estudo, uma especialização,
um mestrado, e agora o doutorado, voltados para o universo policial militar.
Esta pesquisa é um desdobramento de minha dissertação de mestrado, intitulada
Identidade do policial militar e dinâmica cultural (ROCHA, 2008), na qual busquei compor e
compreender a imagem que o policial faz de si mesmo e a imagem que a sociedade tem da
PMERJ, através de um resumo histórico desde sua criação, e como esta imagem influencia e
modifica a subjetividade de seus integrantes, podendo facilitar o comprometimento de sua
saúde.
Essa categoria profissional convive com um nível de perigo superior a tantas outras e
necessita de uma dose de coragem compatível com os enfrentamentos que se apresentarão
durante a carreira. Todos que se candidatam a uma vaga na polícia militar sabem de antemão
dos riscos e pressupõe-se que tenham a carga de recursos internos necessários para exercer tal
ofício.
É preciso ser forte e frio em determinadas situações em que, principalmente sob
estresse, é necessário tomar decisões rápidas e suas decisões influenciarão na vida de
terceiros, tais como nas profissões de médico e bombeiro. Sabemos que cada profissão exige
dotes específicos e que cada uma pode trazer em si consequências problemáticas específicas –
por exemplo, é comum encontrarmos secretárias e profissionais de informática com lesões por
esforço repetitivo (LER), ou funcionários de call centers com prejuízos na audição. Sendo
assim, entendemos que, para ser um bom policial, deve-se ter a tal dose de coragem que o
impulsione para o enfrentamento de situações com risco de vida e autocontrole que permita
equilibrar o medo de ser morto com o senso de responsabilidade indispensável para executar
2
termo nativo usado cotidianamente pelos policiais e não por mim em minha análise. Estes termos estarão em
itálico ao longo do texto.
12
As doenças mentais, assim como qualquer doença, têm melhor prognóstico quando
tratadas em seu início e o panorama que assisto na PMERJ é que as doenças se agravam e só
vêm à tona quando o caso já está muito comprometido e cheio de complicações.
Sob a ótica econômica, este trabalho se justifica por tentar trazer a público a existência
de um número significativo de baixas de policiais militares devido a transtornos mentais na
corporação, e que ignorá-los ou minimizá-los implica prejuízo econômico para a segurança
pública, pois policiais ficam em licenças prolongadas, não tratando o problema de fato, uma
vez que este, muitas vezes, não é identificado como tal pelos sujeitos em suas tentativas de
alcançar o ideal de homem forte e invencível.
O foco deste trabalho é especialmente uma grave forma de comprometimento da saúde
mental, o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), um transtorno de ansiedade derivado
de um trauma psicológico causado por evento que envolva morte, ferimento grave ou ameaça
à integridade física, própria ou de outrem. Pretendo demonstrar a importância de se investigar
a ocorrência dessa desordem na saúde dos profissionais da segurança pública, que lidam
constantemente com estressantes situações de risco, impactantes não apenas devido à
especificidade da atividade policial, mas também à situação recente vivida na cidade do Rio
de Janeiro, de confrontos armados frequentes entre policiais e suspeitos de cometerem crimes,
especialmente os relativos ao tráfico de drogas, que armou seus participantes e os preparou
para a guerra durante três décadas na cidade.
Sendo assim, este trabalho é voltado especificamente para o indivíduo policial militar,
considerando que, em sua formação, como afirmou um coronel comandante de batalhão em
entrevista para esta pesquisa, ―ele é forjado a ferro e fogo, blindado‖. A tese pretende ressaltar
que, uma vez ―blindados‖ – o que sabemos ser uma utopia, pois na realidade são seres
humanos e não robôs das experiências científicas –, as dificuldades em se tratar o sofrimento
psíquico e se dar conta do sofrimento podem ser intransponíveis para alguns.
O foco não será na corporação, ou nas estratégias de atuação policial ou outras
problemáticas mais frequentemente abordadas em trabalhos acadêmicos, tais como atuação
policial violenta, abusos cometidos em ocorrências e outras inadequações e graves infrações
cometidas por estes profissionais. Pretendemos contribuir para o debate acadêmico sobre a
segurança pública trazendo uma discussão acerca do sujeito policial militar, do homem real
que existe por trás da farda, suas vivências, suas fragilidades, as mazelas emocionais que
recaem sobre eles. Pretendemos lançar luz sobre estórias pessoais que ilustrem como esta
atividade profissional os deixa tão vulneráveis não só a riscos de morte e ferimentos físicos,
mas a uma existência amorfa quando seu psiquismo é seriamente ferido e ele passa a carregar
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feridas invisíveis, e por isso tantas vezes não identificadas ou até mesmo menosprezadas, tal
como ocorre no transtorno que ressaltamos nesta pesquisa.
Com esta abordagem do tema do transtorno do estresse pós-traumático na ótica de sua
ocorrência dentro dos muros da PMERJ, apontamos para sua existência dentro do universo
policial militar, abordamos seus antecedentes históricos, baseamo-nos também em dados
estatísticos sobre o afastamento do serviço por causas psiquiátricas, especialmente as
justificadas pelo grupo de doenças diagnosticadas como ―reações a stress grave e transtornos
de adaptação‖, do qual o transtorno do estresse pós-traumático faz parte.
Observamos que, apesar de estar em crescimento, ainda é pequena a produção de
trabalhos científicos sobre o fator humano da corporação PMERJ, e isso remete a jargões
próprios dos integrantes desta instituição: “somos peça de reposição”, “somos apenas um
número”, “estragou, deu defeito, tira e põe outro no lugar”, que aludem à percepção de não
serem considerados pessoas, e sim peças de uma engrenagem, não importando quem executa
nem como se sente quem executa tal serviço, contanto que o serviço seja executado, não
importando também a qual custo pessoal para quem o executa. O foco maior das pesquisas
nas formas de execução do trabalho, em técnicas, em abordagem, em eficácia parece que vem
corroborar esta percepção dos policiais.
Elaborar então uma tese de doutorado sobre a polícia militar para falar do policial em
si constitui um desafio. Primeiramente porque, devido à imagem negativa dessa instituição,
transformá-la em objeto de estudo requer isolá-la dos estereótipos e abordá-la imparcialmente,
apesar de ser impossível despir-se totalmente dos preconceitos sobre a instituição. Um
segundo desafio é tornar o tema de estudo instigante ao leitor, apesar da dificuldade de
empatia com o objeto, o que só é possível através da separação entre ―instituição PM‖ e o
―policial militar‖. A primeira, com todo seu histórico, tanto do passado mais antigo, de defesa
dos interesses dos mais ricos em detrimento dos mais pobres na época de sua criação, há mais
de 200 anos, quanto do passado mais recente e do presente, de truculência, violação de
direitos humanos e corrupção. E o segundo, que é um sujeito, pai, marido, filho, um cidadão
que tem sonhos, ideais, que ri, que sofre, chora, tem problemas, tem família, faz aniversário,
fica doente, tal qual qualquer pessoa, visto que é humano e parte da sociedade.
É através desta via que este trabalho se torna possível, tentando ultrapassar a divisão
ilusória entre o policial, que reprime, protege e serve (lembremos o lema: servir e proteger) a
sociedade, que é ator e espectador, protetor e protegido, mas também cliente ou persona
criada na própria polícia. Vive e se forma dentro de uma corporação marcada pela hierarquia
militar e pela autoridade incontestável dos seus superiores, mas vive também entre familiares,
15
amigos, vizinhos e concidadãos, entre os quais a interação se dá por outras vias e regras.
Estando eu tão próxima desses sujeitos, não foi difícil enxergar a separação proposta
nesta tese entre instituição Polícia Militar – bicentenária, blindada, rigidamente hierarquizada
– e o ser humano por trás da farda. Pretendo conseguir transmitir essa visão do lado humano
por meio de observações e da narrativa de estórias pessoais detalhadas.
Entendo que uma missão como pesquisadora e psicóloga, com o olhar que tenho a
partir destas identidades e do lugar como observadora participante em que me encontro por
ser membro da corporação – oficial superior (major) – que me propiciou, além de poder
compartilhar o dia a dia da PMERJ, também ter acesso facilitado a informações, estatísticas e
a pessoas, seria apontar para a problemática do homem policial. Por isso, propus-me a
investigar algumas das dificuldades e sofrimentos de ser policial, os mais estressantes porque
decorrentes de suas atividades e da impossibilidade de atingir seu ideal de invencibilidade,
assunto para o qual me sinto convocada como profissional psicóloga e doutoranda da área de
Saúde Coletiva.
Por todos esses motivos, a proposta deste estudo é falar do homem policial militar, o
mais atingido pela inculcação deste ideal do eu, etos ou habitus, cujo dia a dia é composto por
problemas da população, lidar com problemas, solucionar problemas, evitar problemas que a
atingem. Sempre que a polícia é chamada, é porque há um problema.
Apesar de também apontar alguns números, escolhi a narrativa com vistas a cativar o
leitor e sensibilizá-lo para este aspecto da segurança pública, o sujeito policial militar, quase
sempre ofuscado pela maior importância concedida a assuntos estratégicos, como as metas de
diminuição da violência, estratégias de combate ao tráfico de drogas ou armas e tantos outros
assuntos de interesse da sociedade por dizerem respeito à nossa segurança.
Esta é, portanto, uma pesquisa qualitativa e não quantitativa; sua riqueza está na
vivência empírica do campo, a partir de onde foram possíveis as observações aqui narradas,
fruto de atendimentos psicoterápicos, de encontros casuais e informais nos corredores da
corporação ao longo de dez anos de trabalho e das entrevistas realizadas para ilustrar e ajudar
a embasar este trabalho. Escolhi privilegiar experiências, pessoalizar a corporação, o homem
por trás da farda, ao invés de outro caminho mais focado em números e estatísticas para
validar a importância do tema abordado.
As técnicas utilizadas para complementar o trabalho de campo etnográfico foram a
coleta de dados no Setor de Perícias Médicas no Hospital Central da PMERJ e a análise
bibliográfica ou documental existente. Nesta coleta de dados verificou-se a estatística relativa
às licenças de trabalho concedidas pelo setor de psiquiatria para verificar, entre estes, quais
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são os relativos aos transtornos de adaptação, a saber, ―F43‖, classificação nosológica da qual
o transtorno do estresse pós-traumático é um subgrupo no CID 10, manual de classificação
internacional de doenças utilizado pelo quadro de saúde na polícia militar O trabalho de
campo desenvolvido consistiu em todo o tempo de permanência trabalhando na PMERJ, os
dez anos já citados e em 20 entrevistas aprofundadas semidirigidas e voluntárias feitas com
policiais militares ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012 em seus locais de trabalho.
Entrevistei cinco coroneis, cinco tenentes coroneis, dois majores, dois capitães, quatro
sargentos e dois cabos. Privilegiei oficiais uma vez que todos ao atendimentos psicoterápicos
que acompanhei e acompanho são com praças e em muitos deles foram discutidos os assuntos
desta tese, tendo inclusive surgido dali (e também dos bate papos informais) a motivação para
esta pesquisa. Sendo assim, faltava ouvir oficiais, já que com estes eu tinha muitos bate papos
informais que me ajudaram a delinear muito do imaginário e da cultura policial militar, mas
não objetivamente sobre assuntos relacionados com o estresse pós traumático.
A maneira de chegar a todos os entrevistados não foi aleatória, escolhi aqueles que já
conhecia por termos trabalhado juntos ou que conheci em alguma fase da elaboração da tese,
pessoas com quem tinha alguma empatia e sabia estarem dispostas a contribuir, e cheguei até
as praças como par e não como oficial, um superior hierárquico. Mais da metade dos
entrevistados eram oficiais superiores e alguns ocupavam cargos importantes na alta cúpula
da corporação e para mim foi importante ouvir estas pessoas bastante experientes.
Todas as entrevistas foram gravadas com autorização do entrevistado, transcritas e
alguns trechos são usados ao longo do trabalho, com nomes fictícios para preservar a
identidade dos participantes, ilustrando com realidade o assunto tratado. Cabe ressaltar que foi
apresentado a todos o termo de consentimento livre e esclarecido e que esta pesquisa foi
previamente autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IMS-UERJ (registro
0006025900011).
Algumas entrevistas foram, para mim, grandes aprendizados sobre o universo policial
e alguns entrevistados contribuíram imensa e bondosamente com relatos de suas memórias,
trazendo casos vividos ao longo de suas carreiras. Percebi que faziam como que uma ―viagem
no tempo‖, ao falar de assuntos há muito vividos, que tantas vezes ainda estão carregados de
grande carga emocional, chegando, em algumas entrevistas, a deixar o entrevistado com olhos
marejados, o que me incluía por vezes. Notei que, para algumas pessoas, contribuir para um
estudo sobre o homem policial militar é motivo de orgulho e que buscaram responder com
detalhes as perguntas, esforçando-se para transmitir suas vivências e indicar outras pessoas
para também participarem da pesquisa. No entanto, chamou atenção que a maior parte dos
17
3
Ver página 80 em Rocha (2008).
19
ser também oficial do quadro de saúde da corporação. Trago um pouco das experiências
vividas ao longo de 11 anos de trabalho neste campo, para mim uma vivência etnográfica
bastante enriquecedora como profissional e conclusões tiradas a partir de minhas observações
e estudos, algumas retiradas de minha dissertação de mestrado sobre a identidade do policial
militar e a cultura organizacional. Abordo também os desafios de pesquisar a instituição da
qual faço parte como funcionária e sendo assim, parte dos pesquisados, comento sobre as
facilidades e dificuldades dessa posição que ocupo durante todos esses anos de pesquisa.
Encerrando o primeiro capítulo, apresento o serviço de psicologia da PMERJ, como é seu
funcionamento, onde estão alocados os profissionais, como é a busca por tratamento e o
público alvo.
No segundo capítulo, faço um panorama sobre a corporação PMERJ, começando pelo
cenário de grande violência encontrado pelos policiais militares, que não é o mesmo
encontrado por qualquer policial, sigo enfatizando aspectos da formação dos policiais
militares combatentes, que tem um enfoque guerreiro apesar de serem funcionários de
segurança pública e não das Forças Armadas. Ao abordar a formação acadêmica, tenho o
intuito de compreender como se dá a aderência que identifico nesses policiais com um padrão
de super-homens, que devem mostar-se imunes ao medo e a fragilidades, que é o que chamo
de negação do medo, padrão este que dificulta e mesmo chega a impossibilitar a busca por
tratamento psicológico de desordens mentais e emocionais, quando necessário, por esta classe
de trabalhadores. Sendo assim, aponto para o adoecimento mental na corporação e ilustro com
dados estatísticos sobre licenças de saúde obtidos junto à Diretoria Geral de Pessoal da
PMERJ, no Setor de Perícias Médicas e observações do trabalho de psicóloga na PM,
realizado durante os anos de partilha do mesmo ambiente organizacional.
No terceiro capítulo, debruço-me em uma forma específica de adoecimento, o TEPT,
abordando seu histórico, conceituação e discussões atuais como um tema da Saúde Pública,
muito pertinente a este instituto de pesquisa, Instituto de Medicina Social. Dentre tantas
manifestações de sofrimento psíquico, escolhi uma que considero complexa em virtude da
dificuldade de diagnóstico, visto que seus sintomas se confundem com outras formas de
adoecimento, comprometedora, da gravidade de seu desenrolar, das várias comorbidades que
ao TEPT se somam e principalmente pela forma avassaladora com que pode tomar conta da
vida de um indivíduo chegando a paralisá-la, comprometendo sua existência e deteriorando
laços sociais e familiares, quando não identificado e não tratado adequadamente. E também o
coloco especificamente como um transtorno encontrado na PMERJ, com as dificuldades
inerentes ao reconhecimento deste transtorno invisível aos olhos em militares.
20
1.1 Ser de dentro e ver de fora: o cotidiano como oficial psicóloga num batalhão
operacional
4
Categoria nativa para o confronto armado.
5
Atualmente, alguns psicólogos passaram a ser lotados na unidade em que servem e outros continuam lotados na Diretoria
Geral de Saúde à disposição das unidades, o que significa que o comandante do batalhão não tem poder sobre o profissional,
ficando este menos vulnerável a mandos e desmandos.
22
Esse exemplo explicita bem a diferença que faz para os oficiais combatentes o fato de
nós, psicólogos, sermos militares, e marca bem nossa separação em relação aos civis no
imaginário daquele universo policial militar. É uma diferença que nos coloca no mesmo
―time‖, de acordo com o discurso proferido por eles, e é o que me permite estar em alguns
lugares que outros pesquisadores jamais estariam.
Ser oficial do corpo da saúde me mantém à parte das práticas institucionais, pois não
vou para a rua carregando um fuzil e fico a maior parte do tempo aquartelada, o que é
compreendido pelos outros oficiais, apesar das brincadeiras que fazem alusão à possibilidade
de sairmos com eles para uma operação para sentirmos de verdade como é. Contudo, não
estou à parte do discurso institucional: o convívio me proporciona acesso a discursos
interessantes para conhecer o etos policial militar, inclusive me faz ouvir passagens nada
interessantes, insuportáveis e ―não-relatáveis‖, infelizmente também formadoras do etos
policial.
É possível afirmar que percebo um prazer implícito na fala de alguns oficiais com
quem convivi, sobre táticas e ocorrências, principalmente envolvendo mortes, quando são
feitas com prazer descrições em detalhes dos corpos despedaçados com partes de órgãos
caindo. Acredito que seja para assustar e muitas vezes me assusta, mas me esforço para não
atuar como expectadora teatral daqueles relatos dramatizados e, ao contrário, tento extrair
algo mais daquelas histórias: como eles enxergam tais situações, se eles percebem o quão
bizarra pode ser a realidade de trabalho vivida no dia a dia da corporação. Agir dessa forma já
me demandou esforço, mas hoje é com naturalidade que assisto essas atuações, pois é assim
que avalio alguns discursos sobre as ocorrências e mortes.
Assim fui me aproximando, sobretudo dos oficiais, e acessando discursos mais
espontâneos que expõem o sofrimento trazido pela naturalização de acontecimentos de matar
e morrer, de pernas e braços espalhados e a dificuldade de conciliar incursões onde há mortes
violentas, companheiros mortos, o som dos tiros zunindo muito perto dos ouvidos e a vida
familiar que se despedaça aos poucos ou que nem chega a ser construída.
Ao longo dos anos, venho tentando montar em meu imaginário como é ser um policial
militar combatente (os que vão para a rua e sobem morros e participam de confrontos armados
são chamados de combatentes, numa alusão que considero inadequada ao exército) e um dos
aspectos marcantes é a fragilidade dos vínculos afetivos, talvez em virtude dos riscos
assumidos e do perigo enfrentado cotidianamente, que apontam o tempo todo para o quanto a
vida é efêmera.
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Todo esse ―dentro e fora‖ pode parecer um confuso e desnecessário jogo de palavras,
mas tem uma intenção, que é tentar passar ao leitor a realidade, muitas vezes confusa, de ter
que conciliar posturas, ideias, discursos – em resumo, mundos com características, discursos e
objetivos tão opostos. Isto é, a ambiguidade de desempenhar dois papéis tão divergentes em
um: de psicóloga, que não se encerra em si mesmo, mas se desdobra na atuação como
acadêmica, pesquisadora, observadora participante, participante observadora e, ouso aqui
arriscar a repetir, como ―aspirante a antropóloga‖, e ao mesmo tempo de oficial da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro, policial fardada, de branco! (Mas de fato é uma farda).
Percebe-se que há uma ―rivalidade‖, talvez antagonismo se encaixe melhor, ao
descrever o desconforto perceptível em relação ao corpo de saúde, e já tive oportunidade de
colocar o assunto em discussão algumas vezes. É fato que existe grande indignação em torno
do fator temporal, sob dois aspectos: o reduzido tempo de duração do curso de formação de
oficiais realizado na Academia de Polícia Militar (APM), ínfimos 45 dias, enquanto o Curso
de Formação de Oficiais (CFO) tem duração de três anos, sob o regime de internato e semi-
internato. O apelido da nossa turma é ―miojo‖, pela pressa com que fomos preparados para a
atividade, o que sublinha nossa inexperiência ao chegar aos postos de trabalho. Os policiais
antigos são chamados de “cascudos, cascudões”, expressões metafóricas cheias de
significados.
O outro aspecto temporal é referente à nossa carga horária de trabalho, que é
incomparavelmente menor que a deles, que são policiais 24 horas, inclusive na folga e nas
férias, em qualquer momento podem ser chamados no batalhão, tiram serviços de 24 horas,
trabalham nos finais de semana, são convocados a trabalhar nas folgas sem ganho de hora
extra.6 Mas, apesar desses fatores, acredito que o antagonismo tenha bases mais complexas
que a problemática de tempo e salário – esta última não foi mencionada aqui, mas foi citada
como um dos fatores considerados injustos por alguns policiais militares combatentes, que os
oficiais da saúde trabalhem muito menos e ganhem os mesmos salários.
Acredito que exista no fundo toda uma problemática em torno de poder, pois após um
tempo reduzido de formação, os oficiais do Corpo da Saúde se formam duas patentes acima
dos oficiais de carreira, o que eles consideram injusto. Para alguns policiais, os psicólogos da
6
Em 15 de março de 2011, foi regulamentado pelo Decreto nº. 42.875 o Programa Estadual de Integração na
Segurança/PROEIS, que possibilita ao policial militar ser voluntário em turno adicional de oito horas de serviço remunerado
através de gratificação de encargos especiais, denominada ―gratificação especial temporária por participação no PROEIS‖
(GET/PROEIS). O valor pago a oficiais é R$175,00 e a praças é R$150,00. E em 03 de abril de 2012 foi regulamentado pelo
Decreto nº. 43.538 o RAS, Regime Adicional de Serviço para Policiais Civis, Policiais Militares, Bombeiros Militares e
Agentes Penitenciários, que versa sobre turnos extras de seis, oito ou 12 horas de trabalho por participação voluntária ou por
convocação (em datas como eleições, Natal, Réveillon...), recebendo remuneração extra.
25
corporação nem deveriam ser militares. Estes provavelmente acabam por aceitar nossa
presença pela relação amistosa que conseguimos estabelecer ou por falta de opção.
No entanto, a relação amistosa não ocorre com todos os psicólogos, pois cada pessoa
tem uma forma particular de se colocar naquele universo, e algumas não tentam se entrosar e
serem bem-vindas, tendo então maiores dificuldades de desenvolver um trabalho, de acessar
discursos memoráveis para que se delineie a cultura corporativa e de conseguir melhorias para
o setor. Posso garantir que não é o meu caso: prezo as relações interpessoais e sei da
importância que elas têm quando um serviço novo está sendo implantado, ainda mais algo tão
inovador – inclusão de psicólogos. Mesmo com 11 anos de trabalho desde a criação do quadro
de psicologia militar, deve ser considerado que a PMERJ é uma organização com 205 anos e
frente a este tempo, 11 anos é pouco. Mais ainda, somos uma classe profissional ainda em
processo de aceitação pela sociedade em geral, regulamentada por lei apenas no ano de 1962,
composta em sua maioria por mulheres, porém a PMERJ tem, nos seus batalhões,
majoritariamente homens, sendo que as mulheres só tiveram permissão de fazer parte de seu
quadro em 1982. Realmente são muitos obstáculos à aceitação da nossa presença, e frente a
tudo isso acho que temos tido sucesso em nossa empreitada, pois a maioria é bem aceita e tem
bom relacionamento com os policiais.
Para clinicar não é necessário ser militar, mas isso tem sido ponte de aproximação e
para existir qualquer possibilidade de abordagem institucional é importante e faz diferença
que sejamos pares. O discurso oficial nega sermos ―de fora‖, talvez por desejo de que nos
submetamos a tantas regras e privações, assim como eles, militares de carreira. Acontece que
em várias circunstâncias fica evidente que não estamos sob a égide do mesmo nível de
exigência que os demais oficiais, mesmo também o sendo. Quando a Unidade Operacional
fica de prontidão, todos os policiais devem permanecer no quartel – “oops”... exceto nós!
Quando é decretada prontidão, o expediente não termina (que acontece por determinação do
Comandante Geral da PMERJ quando há uma grave situação de conflito, ameaça de conflito
na área do batalhão ou em outro ponto da cidade) e gera um clima de suspense e insatisfação
na tropa. E bem no meio de tanto desagrado, lá vamos nós dando adeus. O portão, que fica
literalmente fechado em situações como estas, se abre para que possamos ir embora. Não
tiramos serviço 24 nem serviços extras, nem nas datas mais movimentadas Natal e Ano Novo.
Mas em contrapartida, temos nossas escalas específicas de nossa profissão, tais como
sobreaviso, aplicação de testes psicotécnicos...
A ambiguidade da posição de militar e psicóloga ao mesmo tempo é notável. Por
sermos ―de dentro‖, podem nos cobrar comparecer às reuniões de oficiais convocadas pelo
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―boca de ferro‖, que é o alto-falante do batalhão. No entanto, foi detectado por alguns oficiais
que minha presença inibe gritos e desrespeito em reuniões, então por isso, quando sabem que
a reunião vai ser pesada e o comandante tem personalidade nervosa, do tipo que grita e se
descontrola, solicitam que eu esteja de qualquer jeito (quando estou no meio de um
atendimento psicoterápico não compareço às reuniões), para servir de freio a esse tipo de
comportamento incômodo e desaprovado por eles. O fato de ser mulher parece de certa forma
inibir os exageros da afirmação da identidade masculina na corporação militar.
Percebo que minha presença já inibiu broncas mais exaltadas dos superiores e tal
peculiaridade deixa entrever a ambiguidade mencionada: já me impediram de entrar numa
reunião porque a ―chapa tava quente‖, o que, traduzindo o ―policialês‖, quer dizer que seria
uma reunião tensa e nervosa, e insisti para participar. Frente a já então ―famosa‖ insistência
em participar do universo institucional, alguns superiores já revelaram abertamente que minha
presença constrange em certos momentos por ser mulher, pois a diferença de gênero exigiria
por parte deles algum recato com as palavras, o que nem sempre acontece quando é preciso
chamar a atenção dos oficiais ou da tropa. Ressalto que esta tem sido minha experiência, e
não um senso comum; outras psicólogas já viveram experiências em que sua presença em
reuniões não inibiu comentários do mais baixo calão, tendo gerado constrangimento geral
devido ao teor das palavras proferidas.
Também já ouvi de várias pessoas que ser psicóloga inibe certos comportamentos,
devido à percepção que as pessoas ainda têm (não só na PMERJ) de estarem ―sendo
analisadas‖ e, por mais fantástico que pareça, devido também à crença fantasiosa de que o
psicólogo ―lê mentes e sabe o que o outro está sentindo‖. Existe até uma brincadeira sobre a
nossa insígnia (broche com o símbolo da Psicologia, que usamos na farda) que seria o tridente
do diabo, um indicativo ―concreto‖ da ligação da Psicologia com a bruxaria e a adivinhação.
Tudo dito em tom de brincadeira, mas guardando uma parcela de verdade, certo ranço antigo
de ignorância sobre a profissão, que não é típico somente na PMERJ e ainda perpassa alguns
âmbitos sociais.
Ambiguamente, é afirmado que antes de psicóloga e mulher, sou policial militar e,
como tal, tenho que me acostumar com os ―assuntos padrão‖ nos momentos de descontração,
mesmo que não adequados a ―meninas‖ que são: mulheres, noitadas, “vagabundos” (como
chamam os traficantes, os assaltantes, os fora-da-lei em geral), mortes, palavrões, assim como
tenho que me acostumar com a forma de tratamento dispensada a todos, que nem sempre é
amistosa. Verifico que na prática não é bem assim. Da mesma forma como minha presença às
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Para situar o leitor no ambiente desta pesquisa, cabe aqui descrever um pouco da
rotina e funcionamento PMERJ. Existem dois grupos dentro da PM, denominados círculos, de
oficiais e de praças. Praças entram na corporação através de concurso público de nível médio
de escolaridade, fazem o curso de formação de soldados (de duração entre seis meses a um
ano) no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) e têm o desenvolvimento
de sua carreira pelas graduações específica das praças: soldado/cabo/sargento (3°-2°-1°), após
as quais aqueles que conseguem ascender tornam-se suboficiais na graduação de subtenente,
podendo alguns ainda ingressarem no círculo de oficiais nas patentes de
tenente/capitão/major. A minoria das praças alcança o oficialato.
Os oficiais entram na corporação através do Exame Nacional do Ensino Médio, antes
faziam o vestibular, realizando a mesma prova que os candidatos a qualquer outra faculdade,
uma vez que este curso de formação é de nível universitário e dura três anos. O grupo entra na
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corporação como aluno, depois dos três anos, quando se formam vão para os batalhões como
aspirantes a oficial por seis meses, depois são promovidos a segundo tenente e a carreira
segue nas patentes 1º tenente/capitão/major/tenente-coronel/coronel, a grande maioria ascende
até o posto de tenente-coronel.
A maioria dos oficiais tem funções mais administrativas que operacionais em seu dia a
dia, chefiando praças nas seções de sua unidade, que se dividem em P1, seção de pessoal; P2,
responsável pelo serviço reservado; P3, responsável pelo planejamento do emprego do
policiamento; P4, responsável pela parte administrativa e logística da unidade (rancho,
manutenção das viaturas, das edificações); e P5, relações públicas. As unidades tem um
número pequeno de oficiais (cerca de 12 a 20) que gerenciam o trabalho de um grande
número de praças (cerca de 400 a 700 praças).
Alguns oficiais trabalham regularmente em escalas, no patrulhamento ostensivo nas
ruas, porém a maioria trabalha no expediente diário de 9 a 17 dentro das unidades, fazendo
trabalho ostensivo nas ruas somente durante as supervisões, que são serviços de 24 horas para
tenentes e capitães, e nas operações eventuais (se o batalhão for numa área conflituosa as
operações são frequentes).
A maioria dos batalhões tem estrutura física de um grande quadrado, com a parte
interna avarandada aberta para o pátio central, normalmente com uma quadra esportiva pouco
utilizada. O pátio e a cantina são os locais das interações informais, na varanda que permeia
toda a estrutura do batalhão e no rancho (refeitório), também são locais de descontração, mas
de certa forma controlados, pois sempre há militares de patente superior presentes no
ambiente ou de passagem, o que regula implicitamente as conversações. Há um rancho para
oficiais e outro para praças em praticamente todas as unidades, e em cada rancho ainda há
subdivisões: no rancho de oficiais, tenentes e capitães distribuem-se em mesas separadas dos
oficiais superiores (os majores, tenentes coronéis e coronéis) e no rancho das praças há
espaços separados, com paredes ou somentes mesas separadas, um para soldados e cabos e
outro para sargentos e subtentes. Esta característica denota o quão militarizada é a instituição
e o quanto a hierarquia perpassa as relações.
Esses ambientes e mais as reuniões e festividades sempre foram para mim um deleite,
por aproveitar ao máximo para observar as demonstrações da identidade grupal, os discursos
identificados a ponto de serem repetitivos, as demonstrações de respeito à hierarquia militar e
de prestígio de alguns policiais, além de servir para me aproximar do grupo.
Outros momentos característicos, e que reforçam a identidade policial militar, são as
reuniões durante o expediente convocadas pelo autofalante, chamado de ―boca de ferro‖, as
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formaturas de troca de comando com tropa formada, hino, banda, coquetel, formatura de
turma de alunos, quando formadas nos próprios batalhões, o que não tem mais ocorrido,
também há os almoços eventuais fora da unidade, normalmente entre oficiais. A divisão entre
praças e oficiais costuma ser bem delimitada.
Outra característica marcante nas unidades operacionais da PMERJ é a ausência de
regularidade de educação física para cuidar da saúde dos policiais; entretanto, nas unidades
especiais isso é diferente e a rotina de exercícios físicos é mantida com esmero.
relativizar minhas defesas preestabelecidas contra essa categoria profissional, pois apesar de
não ter diretamente qualquer parente ou amigo que tenha sofrido com qualquer ―desvio
policial‖, como integrante da minha geração, eu já havia elaborado um discurso negativo
sobre a Polícia Militar.
Entretanto, não considero que essa proximidade tenha dificultado meu estranhamento
no momento de estudar e escrever sobre a corporação. Da mesma forma como o fato de ser
oficial não dificultou o exercício da atividade de psicóloga dentro de um batalhão, como
também receavam alguns oficiais médicos que nos receberam ao ingressarmos na instituição.
E pelo contrário, como disse se mostrou uma ponte de aproximação e identificação, pois
também sendo policiais, conheceríamos a realidade da instituição. Este foi o discurso que
ouvimos repetidamente de policiais em 2002, quando nosso quadro de oficiais psicólogos foi
criado e distribuído em diversas unidades operacionais.
Com tudo isso, mesmo estando inserida no contexto da corporação como membro,
continuo me enxergando como uma pessoa também de fora, porque me preocupo em manter o
olhar de estranhamento que permite ter avaliação crítica, típica da profissional que sou,
especialista nos fenômenos psíquicos e sociais, identidade que se evidencia em toda e
qualquer situação experimentada ou testemunhada naquele universo que hoje já não é tão
estranho para mim como no meu ingresso, mas que ainda tem muito de novo. Continuo a ser
de fora não só na minha percepção, mas também na visão dos oficiais combatentes, e alguns
comportamentos que descrevo são ricos exemplos disso: me aceitam como de dentro mas me
veem como ―estranhamente diferente‖.
Difícil, mas um desperdício não tentar, descrever esta experiência de pesquisar sobre
um assunto estando inserida no campo, sendo ―de dentro da PMERJ‖, a partir de um lugar
ocupo naquela instituição, que é ―de dentro sem nunca deixar de ser de fora‖. Para explicar
melhor esta afirmação, que parece contraditória, remeto-me à minha dissertação de mestrado,
onde dediquei um capítulo, intitulado justamente ―De dentro e de fora‖, a explicar essa
vivência como psicóloga, oficial da polícia militar e pesquisadora (me intitulo assim já que
em 11 anos de trabalho tenho estado inserida também no ambiente acadêmico de estudos e
desenvolvimento de pesquisas: primeiro realizei minha especialização em saúde mental com
trabalho final sobre uma proposta em saúde mental para os batalhões; três anos depois realizei
o mestrado e um ano depois deste, ingressei no doutorado).
É um tipo de vivência que gostaria de conseguir passar em palavras para o leitor, e
quando me vejo em dificuldade para explicar isto, é porque faltam palavras para explicar a
experiência, o vivencial e sensorial, que se aprende no dia a dia, nos corredores, nas relações
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interpessoais propiciadas por esse lugar de dentro, e vai modificando e complementando, sem
que você mesmo perceba, o seu entender daquele ―universo paralelo7‖.
Ao mesmo tempo, as leituras sobre polícia militar sempre me acompanharam, ávida
por conhecimento e ciente da problemática da escassez sobre o tema, tudo e qualquer matéria
que eu tomasse conhecimento sobre a polícia, sobre os policiais, sobre a formação de uma
identidade policial, ou sobre doenças ligadas à profissão, prontamente arquivava para leitura
posterior, não só para a te,se, mas por meu interesse em conhecer o que se produz sobre esta
minha área de interesse e de trabalho. Considero fundamental ler muito sobre o que se
pesquisa e escreve, sobretudo nesta situação específica em que me encontro, de conviver
cotidianamente com o campo de pesquisa, pois é fundamental que me mantenha ―de fora‖
para não perder o olhar de estranhamento, o olhar crítico, não para criticar, e sim para
analisar, sem me confundir nem me misturar com o objeto.
Eis as razões pelas quais considero esta posição extremamente delicada, ser de dentro
sem me confundir nem me misturar, para não perder a capacidade de avaliar, descrever, estar
sempre curiosa e investigativa. E isso vem acontecendo todos esses anos.
Sobre esta riqueza da participação direta no campo de pesquisa, cito o sociólogo
americano Michael Burawoy, da Universidade de Berkeley, que trabalhou durante 40 anos
como operário em diferentes países como Zâmbia, Estados Unidos, ex-União Soviética e
Hungria, estudando as grandes transformações do mundo do trabalho por meio do ―método
etnográfico do estudo de casos desdobrados‖, uma tentativa de aplicar a ciência reflexiva à
etnografia a fim de extrair o geral do singular, mover-se do ―micro‖ ao ―macro‖.
E é um pouco isto que é meu trabalho, observar comportamentos, formas de pensar,
doenças, reações, entrevistar pessoas, ouvi-las, acompanhar tratamentos psicoterápicos nos
locais onde trabalhei, o ―micro‖ e a partir daí compreender o que se passa no macro, que é a
PMERJ como um todo, a instituição para onde são transpostas as ideias geradas no interior
daquele ―micro‖, corporação que também participa de um conjunto de órgãos que tratam da
segurança pública oferecida à população do estado.
Burroway defende que, ao passar um período de tempo longo com os trabalhadores em
uma fábrica, por exemplo, às vezes mais de um ano, ele podia observar as nuances de suas
vidas e compreender as forças sociais que moldaram suas experiências, especialmente nas
relações com outras empresas e com as instituições estatais. Ao observar pequenas mudanças
7
Esta definição de universo paralelo não é nenhum conceito teórico, é exclusivamente minha e ―paralelo‖ é uma
analogia à uma outra dimensão, tamanha a diferença com a realidade da vida civil que encontrei no batalhão,
tanto no que eu via, como no que ouvia e vivenciava e que descrevi detalhadamente neste capítulo.
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outras referências à corporação, sendo mais discretas que as anteriores, mas obviamente da
corporação. E as viaturas descaracterizadas podem ser de qualquer cor, não têm nenhuma
identificação a não ser a placa branca e o grave fato de serem usadas pelo serviço reservado
do batalhão, o que faz com que os marginais as identifiquem, segundo relato dos próprios
policiais – então, resumindo, não há deslocamento seguro.
Esses momentos servem para que eu tenha acesso direto a uma pequena vivência da
pressão que os policiais sentem ao trabalharem cotidianamente na iminência de serem
atacados por criminosos, pois esta é a sensação que tenho quando estou em uma viatura – uma
sensação extremamente ameaçadora e estressante.
Chamo de pequena a minha vivência devido ao reduzido tempo de exposição ao risco
de ser alvejada, mas posso garantir que são momentos de fortíssima tensão, medo e apreensão.
Tento reduzir meu risco a essa exposição ao máximo; sempre que possível, me desloco por
meios próprios, com a farda bem escondida numa discreta bolsa. No entanto, como a
corporação é muito abrangente, muitas vezes tive que me deslocar para locais desconhecidos,
alguns em área de risco, onde seria imprudente ir sozinha – nesses casos sou obrigada a
recorrer às viaturas. Após esses anos de trabalho na corporação, percebo que meu medo
nesses deslocamentos aumentou bastante, creio que isto se dá por um acúmulo de informações
sobre o perigo real e imediato vivido pela figura do policial militar – e eu sou policial militar.
Quando cheguei ao batalhão, fui alertada sobre o perigo de carregar a farda e ser
identificada, sobre o perigo simplesmente de ser policial. A partir dos alertas, das mortes
noticiadas, dos embates cotidianos de que tomo conhecimento no batalhão, fui tendo noção de
que a violência perpetrada e a exposição ao risco estão muito mais perto que imaginava.
Ser psicóloga da Polícia Militar traduziu-se em muitos questionamentos em minha
prática clínica e organizacional, afinal é uma instituição composta por cerca de 45 mil pessoas
na ativa e aproximadamente o mesmo número de inativos, que também podem requisitar
tratamento psicoterápico. Somados a esse grande número de pessoas, ainda estão seus
dependentes, o que significa que a demanda de trabalho é bem grande, assim como a gama de
situações que se apresentam, trazendo à tona para minha ciência a realidade ―nua e crua‖ das
vivências dos policiais militares, tanto no exercício de suas atividades profissionais nas ruas,
quanto nas suas relações sociais e familiares.
A experiência profissional e pessoal em uma instituição de tamanho porte, com a
função de fazer o policiamento ostensivo e conter a onda de criminalidade para dar segurança
à população civil, suscitou sentimentos bastante controversos e trouxe muitos
questionamentos polêmicos, não só quanto ao exercício profissional, mas também em relação
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civis não pretendo diminuir a importância das pesquisas feitas por estes e sim explicitar que
pude aproveitar a aceitação que tenho por também ser policial militar para obter certos dados.
Ressalto que não concordo com esta crença, entendo que a pesquisa é um trabalho sério e
motivado para o progresso dos serviços e das instituições e meu discurso é sempre nesta
direção.
universo e, sem que eu falasse nada, ele foi imediatamente explicando que ―não mataria uma
pessoa, que vagabundo não conta‖. É impressionante como a morte de um criminoso não é
encarada com nenhuma culpa, mal-estar ou responsabilidade, mas sim comemoradas como se
não fossem seres humanos, a desumanização está naturalizada.
Reiner (apud PONCIONI, 2005a) destaca outras características centrais da cultura
policial: o senso de missão sobre o trabalho policial, a orientação para a ação, a visão cínica e
pessimista do mundo; uma clara divisão do mundo social em ―nós (policiais) versus eles
(civis)‖, capaz de implicar a brandura com os abusos de poder de dentro da PM e a
implacabilidade com as pessoas de fora, o conservadorismo político e moral, o machismo e o
preconceito racial.
É possível perceber essas características claramente no convívio dentro do batalhão, e
concordo com a afirmação de que, independentemente da cultura e das características
organizacionais das polícias em diversos contextos sociais onde os policiais estejam inseridos,
há algo em comum na experiência da atividade policial que acaba por favorecer a emergência
de uma forma hegemônica de se colocar no mundo. É isto que permite que se delineie um
perfil policial.
Comentarei algumas características que parecem destacar-se especialmente, tais como
a desconfiança daqueles de fora da corporação, que está relacionada com a divisão do mundo
social em ―nós versus eles‖ e o machismo.
Para os policiais, as pessoas de fora, os civis, não têm como entender inteiramente o
cotidiano da PM, só quem passou por ―tudo isso‖ é capaz de compreender essa rotina, com
suas regras e segredos. Só os que conhecem o cotidiano em primeira mão podem compreender
a PM e sua ação. Professando essa ―visão de dentro‖, os policiais procuraram legitimar seus
atos (incluindo sua brutalidade) e enfatizar a existência de algo essencialmente diferente, uma
espécie de melancolia do policial. Inclusive o mundo externo é frequentemente retratado
como uma realidade invertida, na qual cada cidadão é potencialmente culpado de alguma
coisa, e a polícia tem a tarefa ingrata e implacável de fazer as coisas funcionarem, mantendo-
as em ordem (SANSONE, 2002).
A profissão de polícia leva a uma extrema desconfiança quanto a situações e pessoas e
nada escapa ao olhar de muitos policiais dedicados que estão sempre a procura de algo errado
para combater.
Segundo Sansone (2002), o policial vê a corporação como um grande grupo de pares,
o templo da masculinidade, a parte limpa de uma sociedade podre, ou o lugar e a hora em que
as coisas ficam claras, num mundo em que tudo se torna cada vez mais obscuro, o que nos
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remete ao espírito de corpo, valorizado na PM, que é esse forte sentimento de união
despertado entre os pares ao compartilharem os riscos da profissão.
Sobre a hostilidade da população, creio que os leitores reconheçam que, muitas vezes
quando um policial chega a um estabelecimento, os olhares que se voltam para ele não são de
admiração, mas sim de reprovação e desconfiança, com exceção de algumas localidades como
a Baixada Fluminense, área metropolitana do Rio de Janeiro, onde, de acordo com o relato
dos próprios policiais, eles ainda são respeitados e admirados. Certa vez um policial me
revelou, constrangido, que uma senhora cuspiu na viatura quando ele passava em baixa
velocidade. Esses comportamentos comprovam que não é comum haver reconhecimento
social positivo sobre a atividade policial militar.
Minayo e Souza (2003) realizaram pesquisa com policiais civis na qual estes foram
unânimes em suas percepções de que o ajuizamento da sociedade sobre seu trabalho é
negativo e preconceituoso, revelando falta de reconhecimento, depreciação e incompreensão
de sua missão. Podemos supor que a concepção em relação à polícia militar seja pior, visto
que é ostensiva, o que a faz mais visível e em contato direto com a população. Como exemplo
da impopularidade da PM, cito uma nota tirada do jornal O Globo, de 4 de fevereiro de 2008:
―Onde tem PM neste carnaval, tem surgido um coro mais ou menos assim: ―frutaquefaliu, a
PM é a vergonha do Brasil‖; o coro surgiu por exemplo quando dois policiais militares
desceram de um camburão com fuzis na mão.
Em sua pesquisa, Minayo e Souza (2003) atentam para o fato de que a identificação
negativa produzida pela sociedade não pode ser interpretada somente como uma criação
maldosa do imaginário; ela se alimenta também de fatos reais incorporados pela experiência,
veiculados nas inter-relações e repercutidos pelos meios de comunicação. Na prática, a
imagem preconceituosa se generaliza e acaba por desconhecer as os sujeitos e prejudicar as
relações mais próximas estabelecidas pelos policiais. Muitos são os relatos de
relacionamentos conturbados, desavenças familiares e vários tipos de segregação que se
configuram em preconceitos e outros tipos de dificuldades que acabam levando ao
isolamento.
Poncioni (2005b) entende o isolamento dos policiais do resto da sociedade como
reflexo das condições de perigo extremo em que esses profissionais trabalham e vivem, além
da falta de segurança devido à falta de equipamentos adequados para a proteção do policial
que trabalha nas ruas. Já Graeff (2006) tem também outra explicação para o isolamento dos
policiais: o sacrifício que a profissão impõe, para alguns comparada ao sacerdócio, que requer
entrega plena à missão, com todos os custos que advêm dessa escolha profissional. E, nesse
38
custo, os mais prejudicados são os familiares, pois todo policial se enxerga e se afirma como
um pai de família. É fácil perceber entre os policiais o incômodo de estar ausente nas
comemorações familiares após o ingresso na corporação, e é muito comum o policial não
estar presente num aniversário de família, na primeira comunhão do filho, festas na escola, no
seu próprio aniversário e nas reuniões de família, sem falar em Natal, Réveillon, feriados
prolongados, quando sua ausência é quase certa.
Agrava o sentimento de desvalorização a falta de reconhecimento vinda da própria
corporação aos serviços prestados. ―Somos só um número” é uma frase comum de se ouvir
desses profissionais. A falta de condições adequadas de trabalho muitas vezes é perceptível
desde as péssimas condições das viaturas até a má qualidade da ração fria que é dada aos
policiais quando em serviços extras, que consiste muitas vezes em ovo cozido, maçã e
biscoito dentro de um saco plástico. Já tive oportunidade de realizar um curso no BOPE no
qual, após várias horas sem alimentação, foi oferecido o saco com a ração fria, da qual só
comi os ovos cozidos. Os relatos são de que a qualidade do alimento é ruim, mas no carnaval
de 2008 lembro que foi notável a empolgação dos policiais ao relatarem que a ração fria foi
entregue em vasilhas de plástico, o que melhorou sua apresentação e estava gostosa.
Segundo Dejours, o reconhecimento é uma reivindicação central para os trabalhadores,
e quando o ambiente de trabalho é bom, mesmo que as tarefas sejam difíceis e desafiadoras,
os estímulos positivos funcionam como fatores de êxito. O prazer no trabalho existe quando
este propicia valorização e reconhecimento ao profissional (DEJOURS, 1999a, 1999b). Se um
policial recebesse o reconhecimento social pelo serviço que presta, poderia se sentir mais
motivado para enfrentar os possíveis sofrimentos, desgastes e estresses inerentes ao caráter da
atividade que desempenha, tal como sugerem Minayo e Souza (2003).
Um traço que chama atenção na Polícia Militar é o machismo, ―ao ter várias mulheres,
eles se exibem para os companheiros e os discursos são recheados de comentários maliciosos
sobre as namoradas, os casos extraconjugais, mais um filho que vai nascer, como se fosse um
troféu. Existe a brincadeira de que o policial nunca tem uma família só, mas paga várias
―PAs‖, as pensões alimentícias. Ao conviver entre eles, descobri que essas brincadeiras são
verdadeiras, vários policiais têm realmente duas famílias, algumas vezes clandestinas e em
outras, oficialmente, até. O ―macho‖ caçador que tem várias ―fêmeas‖ é sinal de força, poder
e hegemonia perante os ―machos rivais... E não são poucos os relatos de brigas entre mulheres
em enterros, e judicialmente, após a morte de um policial que tinha outra família e filhos sem
que a primeira esposa e família tivessem conhecimento do relacionamento extraconjugal. Não
é necessário dizer que sempre há a conivência dos outros policiais; é de praxe não dar
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“vagabundos”,8 não falo palavrões, não tenho arma, continuo num lugar bem diferenciado de
psicóloga e talvez me manter nesse lugar traga como consequência o tratamento diferenciado
que recebo.
Detendo-nos um pouco na questão de gênero, cito Almeida (2000), que afirma que ser
homem se define por um conjunto de atributos morais de comportamento, socialmente
sancionados e constantemente reavaliados, sendo um constante processo de construção. Ser
homem não é o mesmo em localidades diferentes, nem em classes sociais ou níveis de
instrução diferentes, ou em quaisquer outros níveis de identidade social que se cruzem com o
gênero. Sendo assim, compreendemos como ser homem policial militar tenha uma série de
especificidades compartilhadas somente entre os mesmos, construídas através de suas
atividades, do dia a dia da profissão e muitas baseadas nos riscos vividos, na coragem exigida
no enfrentamento desses riscos.
A diversidade de situações limite de vida ou morte vividas no serviço de rua tem efeito
importante na vida das pessoas e acaba se traduzindo em convocação ao desafio de riscos, à
luta do bem contra o mal, típicos de jovens e crianças desde a época das brincadeiras de
―polícia e ladrão‖, onde se dividiam dois grupos e o grupo de policiais corria para pegar o
grupo de ladrões.
Assim como a fantasia da juventude, existe um ―[...] encantamento natural dos PMs
com a descoberta de que quando vestem suas fardas podem se transformar em ‗outra pessoa1,
dotada de poderes especiais, o que necessita ser contrabalançado com juízo e maturidade...‖
(MUNIZ, 1999, p. 203).
Com todas essas características, vejo uma identificação desses homens com uma
imagem de homem idealizada tal como um super-homem. Foram citadas muitas
características de virilidade, força, firmeza, ousadia, coragem, destemor, características de
heróis, sempre prontos para o que der e vier sem se abalar.
Corrobora essa percepção a pesquisa de campo de Minayo, Souza e Constantino
(2008), que mostrou que os policias operacionais se veem e são vistos pela instituição como
homens que possuem algo mais do que seres humanos normais.
Almeida (2000) cita três injunções morais elencadas por Gilmore sobre a estrutura da
masculinidade que estariam presentes em todos os contextos etnográficos. Seriam elas que o
homem deve engravidar as mulheres, proteger seus dependentes e prover os parentes. Os
homens alimentariam sua sociedade vertendo sangue, suor e sêmen. Percebam que justamente
8
―Vagabundo‖ é termo usado correntemente para designar marginais à lei.
41
estes três pontos já foram aqui elencados com grande peso e de forma exagerada em alguns
indivíduos, como características marcantes da identidade de policial.
É recorrente entre os policiais militares que trabalham no batalhão operacional o
discurso de que a profissão vicia e o policial sente falta da adrenalina, e esta é uma das
mudanças percebidas por eles: eles passariam a desejar a adrenalina presente numa ―troca de
tiros” e o suspense de ficar horas de tocaia no morro para encontrar determinados criminosos,
mesmo com todos os riscos que essas atividades implicam, enfrentá-los seria uma
necessidade.
Mais uma vez, trago a pesquisa de Minayo, Souza e Constantino sobre a PMERJ, que
registra frases de policiais que tanto ouço em meu dia a dia: ―Tem algo neles que os faz ir ao
encontro do perigo‖, ―No fundo a gente quer ir para a rua combater‖.
Especialmente sobre verter sangue, durante meu trabalho tenho tido notícia de que
alguns se viciam no combate, na adrenalina e até mesmo no ato de matar. Este trecho ilustra
que também isto não seria característica única da PMERJ.
Viciado em combate... Isso acontece quando, durante a batalha, o corpo libera grandes
quantidades de adrenalina em seu sistema nervoso e você adquire algo conhecido por
―excitação do combate‖. É como receber uma injeção de morfina: você fica leve, acha graça,
conta piadas e diverte-se a valer, inteiramente desligado dos perigos ao redor. É uma
tremenda experiência, se você conseguir sobreviver para contá-la. [...] Os problemas tem
início quando você começa a querer mais uma dose de combate, e mais uma, e outra mais, até
que, sem perceber, já se viciou. Assim como acontece com a heroína ou a cocaína, o vício em
combate vai acabar matando-o. E exatamente como em qualquer outro vício, você fica
desesperado e faz qualquer coisa para conseguir sua dose. (THOMPSON,- Hidden Enemies
apud GROSSMAN, 2007, p. 293).
O oficial de polícia precisa ter uma identidade própria. O nosso problema é que estamos em
uma encruzilhada entre coisa alguma e coisa nenhuma. Que tipo de profissional estamos
formando com essa vidinha de caserna? Isto nos serve? Nós precisamos formar um
especialista em segurança pública. (Oficial com 25 anos de serviços prestados à PMERJ).
Nós vivemos uma crise de identidade. Nós, policiais, nos olhamos no espelho e não
enxergamos a nossa farda. Ainda vemos o fantasma verde-oliva ou o fantasma do bacharel em
direito. Afinal, o que nós queremos ser? (Oficial reformado, 35 anos de serviços prestados à
PMERJ).
de que ele é um policial e em algumas localidades, inclusive o nosso Rio de Janeiro, isto é
suficiente para que ele seja executado por marginais à lei se identificada sua profissão, como
já assistimos em diversos noticiários. O perigo é inerente a esta profissão.
[...] Os policiais constituem uma categoria de servidores públicos para quem o risco não é
mero acidente, mas desempenha papel estruturante das condições laborais, ambientais e
relacionais. Esses profissionais têm consciência de que perigo e audácia são inerentes aos
atributos de suas atividades. Seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não
descansam...‖. (MINAYO; SOUZA; CONSTANTINO, 2007, p. 2.768).
Saúde quando da implantação do Serviço de Psicologia nessas unidades, mas a maioria das
ações iniciais com a tropa foi, em pouco tempo, interrompida por causa da urgência dos
policiais estarem nas ruas, uma vez que a prioridade nas unidades operacionais é o
policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Desde então, cada unidade
desenvolveu percursos, trabalhos e atividades diferentes, com cada psicólogo apresentando o
Serviço de Psicologia e discutindo com o comandante de sua unidade a melhor forma de
atuação possível.
Ao longo dos anos, os oficiais psicólogos foram sendo alocados também em outras
áreas da PMERJ. Hoje a Psicologia está inserida em diversas unidades da corporação, o
quadro foi expandido e conta com cem vagas e em julho de 2011, dez anos depois do primeiro
concurso que abriu o quadro de psicologia da corporação, entrou uma nova turma de oficiais
psicólogos.
Na PMERJ, o oficial psicólogo atua em diferentes âmbitos, a saber: unidades
operacionais, unidades de ensino, unidades de saúde, unidade responsável pela seleção dos
candidatos. Algumas atribuições do oficial psicólogo são comuns, seja qual for a unidade da
PMERJ em que esteja atuando, devido à inserção da Psicologia no universo de saberes que se
inter-relacionam no campo da saúde.
Estas atribuições em comum dizem respeito à especificidade do saber do profissional
psicólogo, que está orientado pelo compromisso ético e moral com o outro, seja este seu
paciente ou não, pois sendo um profissional de saúde, o pressuposto básico que norteia sua
práxis é a atenção e o cuidado com o ser humano.
O Serviço de Psicologia atende não somente o policial, mas também seus dependentes.
Em relação ao policial, o atendimento ocorre por demanda espontânea, quando o mesmo
procura o psicólogo e marca uma consulta, ou por encaminhamento de outro profissional de
saúde, ou ainda do seu comandante ou qualquer oficial. Ainda que esta seja uma modalidade
de encaminhamento menos comum, alguns comandos estão atentos à saúde psíquica de sua
tropa e têm a noção do trabalho que pode ser realizado pelo psicólogo.
Esses atendimentos psicológicos, ainda que solicitados pelo comando do policial, são
sempre regidos pelo pressuposto básico da profissão de psicólogo, que é o sigilo. E o superior
hierárquico do policial que motivou o atendimento não tem nenhuma informação do mesmo e
não autoriza nem desautoriza o mesmo.
Para conhecimento do leitor da abrangência da oferta de suporte psicológico na
PMERJ, descreverei todos locais atualmente contemplados com o Serviço de Psicologia.
44
Estas lotações estão sempre sujeitas a mudanças de acordo com as demandas que surgem e
também de acordo com solicitações e determinações.
2 O PANORAMA DA PMERJ
Na atualidade vemos, ao vivo e a cores, em intervalo não muito grande de tempo, que
a vida nas cidades brasileiras se tornou cada vez mais traumática para um número cada vez
maior de pessoas, em virtude de crescente onda de violência. Parte da população chegou
mesmo a internalizar vários comportamentos defensivos, numa espécie de ―paranoia
coletiva‖.
No Rio de Janeiro, a população convive com o medo, tendo internalizado
comportamentos defensivos de evitação de determinados locais, adaptando a programação
social dentro de horários mais movimentados e retornando mais cedo para suas casas,
mecanismos movidos pelo medo, e buscam minimizar a possibilidade de ocorrência de
assaltos, sequestros relâmpagos e outras ocorrências violentas que se tornaram comuns.
A atuação policial militar no Rio de Janeiro pode ser encarada como uma forma de
guerra moderna, visto que a política atual de segurança pública prevê confrontos armados
com as quadrilhas e comandos de traficantes que dominam partes da cidade. Isto não
caracterizaria, teoricamente, uma guerra. Mas basta observarmos policiais armados de fuzis
nas esquinas, comboios policiais que passam ―naturalmente‖ no trânsito com armas expostas
para fora dos veículos e as muitas armas de fogo, inclusive metralhadoras antiaéreas,
apreendidas de traficantes nas favelas cada vez maiores em algumas das áreas mais populosas
da cidade para concluirmos se tratar de uma forma de guerra urbana.
Neste sentido, o presente estudo procura evidenciar que o policial militar é tão
somente um cidadão ocupando lugar ao mesmo tempo de servidor e de usuário do serviço de
segurança pública, e que é tão somente um homem comum com uma profissão incomum, por
expô-lo a um risco de vida muito maior do que a população comum.
Em 2008 foi implantado um novo modelo de policiamento na cidade, as Unidades de
Polícia Pacificadora/UPPs, numa política de aproximação do policial com a comunidade. Este
projeto começou em comunidades da zona sul e foi sendo expandido para várias localidades.
Observando o gráfico abaixo percebemos que no ano seguinte houve um aumento do número
de mortes de policiais, tanto em serviço como durante a folga e nos anos subseqüentes este
número diminuiu, provavelmente pela diminuição dos enfrentamentos armados, uma vez que
46
o projeto das UPPs se tornou uma realidade em localidades antes bastante violentas, onde o
tráfico ostentava grande poder bélico.
O objetivo aqui não é detalhar a formação dos policiais, pois isso desvirtuaria o foco
deste trabalho, que é sugerir que a aderência a um padrão utópico de homem forte e inabalável
atrapalha ou mesmo impossibilita o tratamento de possíveis doenças mentais que acometem
esses policiais. Acreditamos que outros trabalhos possam ser mais úteis a quem desejar obter
mais informações sobre a atual matriz curricular da PMERJ e a orientação histórica e atual
das escolas de formação de policiais ou outros aspectos gerais da formação.
A abordagem de aspectos da formação pretende apontar exclusivamente que ainda se
reproduzem práticas que estimulam e orientam a identificação desses alunos a um padrão de
uniformidade, com enfraquecimento de características individuais, e culminam por estimular
a força e truculência nas atitudes, características que exaltam aspectos condizentes com a
hipermasculinidade e com um etos guerreiro de Elias (1990) que excluem influências mais
sensíveis ou emocionais.
É fundamental apontar esta tendência, uma vez que acredito que isto tudo desestimula
os indivíduos a se darem conta de suas fragilidades e, pelo contrário, busquem constante
superação de seus limites, mesmo que além de suas capacidades. Assisti casos psicoterápicos
de policiais que só buscaram atendimento profissional quando o caso já estava grave o
suficiente para comprometer sua vida visivelmente.
47
refere aos processos formais de socialização, que assumem diferentes formatos e durações
conforme a organização, e são, com frequência, apenas a primeira etapa do processo de
socialização. A segunda etapa, compreendendo a socialização informal, ocorre geralmente
quando o novato é colocado na sua posição organizacional designada e deve aprender
informalmente as práticas reais de seu local de trabalho.
Van Maanen, citado por Poncioni, (2005a), se a ―defasagem‖ que separa os dois tipos
de aprendizagem (formal e informal) for muito grande, pode ocorrer a desilusão com a
primeira etapa da socialização secundária formal, levando o indivíduo a desconsiderar
virtualmente tudo que aprendeu na primeira fase. Muitos trabalhos que pude ler sobre a PM
mencionam o duvidoso valor atribuído pelos policiais à instrução formal que eles recebem
dentro das escolas de formação.
Muniz (2012) cita a fala de um policial militar que, em seu primeiro serviço após
formado, ouviu de policiais mais experientes que não adianta muita teoria que a prática é
outra coisa e que é preciso ―ler as ruas‖ para adquirir o ―olho técnico e o faro policiais‖. A
autora escreve a partir do seu convívio com policiais militares em 17 anos de pesquisa de
campo na corporação e afirma ter ouvido diversas estórias 9 contadas pelos PMs a que teve
acesso, muitas relatadas em seus trabalhos.
Nesta perspectiva, Poncioni (2005a) destaca que os programas de ensino e treinamento
profissional dos policiais nas academias de polícia são a fonte da transmissão de ideias,
conhecimentos e práticas de uma dada visão do papel, da missão, do mandato e da ação deste
campo profissional, que necessariamente envolve a transmissão de valores, crenças e
pressupostos sobre este campo específico e que é revelada, particularmente, nas diretrizes
teóricas e metodológicas dos currículos dos cursos oferecidos para a socialização do novo
membro, em um contexto sócio-histórico determinado.
Adorno (2002) chega a afirmar que a utilização da padronização nas roupas, o corte de
cabelo e a numeração são exemplos de ações praticadas na formação dos militares que se
tornarão extensão do Estado, para que a partir delas sua subjetividade fique restrita, dando
lugar a uma consciência coisificada e levando o sujeito a manipular o outro como objeto, sem
condições para uma profunda análise e reflexão de seu ato. O que importa para o militar não é
compreender, mas perceber o sinal de perigo (social ou subjetivo, imaginário ou não) e reagir
a ele.
Essa afirmação radical de Adorno remete às observações de Kant de Lima (1995),
9
Utilizo o mesmo vocábulo ―estória‖ quando cito discursos dos policiais militares uma vez que trata-se de narrativas
construídas pelos sujeitos entrevistados.
49
[...] nem comer, nem beber, nem dormir têm tanto sabor... quanto ouvir o grito 'para frente', de
ambos os lados, e cavalos e cavaleiros refugando e relinchando... e ver o pequeno e o
poderoso tombarem na grama das trincheiras e os mortos atravessados pela madeira de lanças
adornadas com flâmulas"... "Amo o entrevero do azul e do vermelho dos escudos, das
flâmulas e bandeiras, as tendas e pavilhões espalhados pela planície, a quebra de lanças, a
perfuração de escudos, os capacetes faiscantes fendidos pela clava, os golpes dados e
recebidos."... "Cobrirei de vergonha cada cavaleiro que capturar, cortarei seu nariz ou orelhas.
Se for mercador ou sargento, perderá um pé ou um braço [...] (ELIAS – O processo
civilizador apud ZALUAR, 2012, p.2).
Esta citação de Elias feita por Zaluar me fez lembrar imediatamente das canções que
nos ensinaram durante o curso de formação de oficiais do quadro de saúde na Academia D.
João VI, em 2002, quando ingressei na PMERJ. Independente de sermos do quadro da saúde,
50
era explicitado todo o tempo que o curso era de formação de oficiais e as músicas eram
recheadas de frases agressivas e mórbidas, aludindo a sangue, morte e violência. Cito algumas
delas abaixo:
―Cachorro latindo, criança chorando,
vagabundo vazando, é o Bope chegando
o Bope é mau, quebra geral
bate com a mão, bate com pé, bate com pau
o Bope é mau, quebra geral‖
"Homem de preto,
qual é a sua missão?
É invadir favela
é deixar corpo no chão.
Você sabe quem eu sou?
Sou o maldito cão de guerra.
Sou treinado para matar,
mesmo que custe minha vida,
a missão será cumprida,
seja ela onde for
-espalhando a violência, a morte e o terror.
Sou aquele combatente,
que tem o rosto mascarado,
uma tarja negra e amarela,
que ostento em meus braços
me faz ser incomum:
um mensageiro da morte.
Posso provar que sou um forte,
isso se você viver.
Eu sou... herói da nação
Alegria, alegria
sinto no meu coração,
pois já raiou um novo dia,
já vou cumprir minha missão.
Vou me infiltrar numa favela
com meu fuzil na mão,
vou combater o inimigo,
provocar destruição.
Se perguntas de onde venho
e qual é minha missão:
trago a morte e o desespero,
e a total destruição.
Sangue frio em minha veias,
congelou meu coração,
nós não temos sentimentos,
nem tampouco compaixão,
nós amamos os cursados
e odiamos pés-de-cão
Comandos, comandos,
e o que mais vocês são?
Somos apenas
malditos cães de guerra,
somos apenas
selvagens cães de guerra."
Sendo a profissão policial uma carreira que engloba toda a existência dos indivíduos,
uma forma de estar no mundo devido à especificidade do trabalho policial que não se limita
aos momentos de serviço: ouvimos o tempo todo nos batalhões que se é policial 24 horas por
dia, todos os dias, inclusive nas férias, vale nos perguntarmos quais as conseqüências de um
etos guerreiro introjetado nestes indivíduos desta forma.
Esta tese se preocupa em apontar que a deterioração da saúde psíquica e emocional
pode ser uma destas conseqüências, por isso a menção de que canções com este teor foram
ensinadas durante um curso de formação de oficiais. Com isso tem-se a noção de que, apesar
do discurso oficial da Segurança Pública apontar para uma nova polícia, esses valores de culto
ao combate e de exacerbação da hipermasculinidade ainda são mantidos.
Assim como a identidade profissional invade a vida cotidiana dos policiais, é no
cotidiano que os policiais, oficiais e praças acreditam que aprendem o trabalho de polícia,
tendo que adaptar o que foi aprendido na escola de formação, não porque tenha sido inútil,
mas devido à incompatibilidade com muitas situações concretas que se apresentam no dia a
dia. Já ouvi diversas vezes que há um ―choque de realidade‖.
Durante um dos muitos bate papos informais com um oficial do batalhão que na época
tinha nove anos de serviço, ele fez um comentário que ilustra muito bem esse choque:
A Polícia tem uma maquiagem, e até o recruta recém-formado se acostumar com ela a cabeça
roda e roda e fica como, né? Ensinam uma coisa aos alunos e depois na rua aquilo que era
errado passa a ser permitido e se você for combater vai ter problemas.
Kant de Lima (1995) reafirma esta postura oficiosa dos policiais, ao dizer que a
formação do policial tem sido centrada na ideia de ―treinamento‖ ou ―instrução‖, onde se
busca a padronização de procedimentos, repetições mecânicas reproduzindo uma ideologia
marcadamente repressiva e punitiva, retirando dos policiais a capacidade reflexiva diante de
situações complexas, para depois colocá-lo sozinho diante da realidade conflitiva das ruas,
esperando que ele aja reflexivamente e tome suas decisões com bom senso e equilíbrio. Para o
autor, é esse paradoxo que conduz a uma distonia cognitiva que leva os policiais militares a
rejeitarem informalmente o treinamento formal que receberam para poder sobreviver em seu
cotidiano.
Cito o trote como um dos principais componentes do currículo oficioso e perpetuador
do etos policial militar. Visto como um rito de passagem e acolhimento de novos membros
pelas instituições, segundo Linhares-de-Albuquerque e Paes-Machado (2003), ele se
caracteriza por abusos contrários ao discurso de valorização, humana e profissional, da nova
pedagogia do ensino policial. Sua manutenção pode ser entendida como uma resistência e
52
Como não poderia ser diferente numa instituição em grande parte masculina e militar
como a APM, os desafios do trote são testes de resistência física. Assim, a série de exercícios
penosos, sustos, simulações de percursos de combatentes, prostrações e rastejamentos
contribuem para dar uma antevisão das futuras provas acadêmicas que esperam os recrutas,
enfatizando a necessidade de estes adotarem uma postura corporal compatível com sua nova
identidade. Serão em breve estudantes promissores da academia que espera deles uma
interiorização completa do seu código (CLASTRES apud LINHARES-DE-
ALBUQUERQUE; PAES-MACHADO, 2003).
Trabalhando entre policiais cariocas, observo que os trotes têm os mesmos moldes no
Rio de Janeiro, parece haver grande similaridade entre as academias militares em geral,
provavelmente com alguns pequenos matizes da cultura de cada estado.
Não me lembro de ter conhecido um policial que seja contra os trotes e as sugas.10
Pelo contrário, eles afirmam que esses meios são fundamentais para formar a personalidade
policial e incutir o espírito de grupo. Ilustrando esse discurso oficioso sobre tais práticas,
aponto o blog chamado ―Diário de um policial militar‖, no qual foi discutido o tema ―Querem
me convencer de que eu já fui torturado‖, em fevereiro de 2007, em virtude de um vídeo
exibido nos meios de comunicação, mostrando calouros em treinamento em direção ao rancho
na posição de flexão, que foi noticiado como ―policiais foram obrigados a andar de quatro‖. O
vídeo causou repúdio na sociedade e inúmeras críticas foram lançadas sobre os métodos
utilizados nos treinamentos militares.
O autor do referido blog afirma que o tipo de tratamento dispensado nos trotes
geralmente é aceito pelos próprios calouros, simplesmente porque quem aplica o tratamento já
passou pela mesma situação e amanhã será ele quem provavelmente fará o mesmo. Ou, no
mínimo, se divertirá ao contar os causos do seu curso de formação e se orgulhar de ―como foi
difícil chegar até aqui‖. Ele admite que possa haver exageros e os classifica como exceções.
Também há a crença de que os alunos acabam por ficar ainda mais unidos e o espírito de
camaradagem fica muito mais evidente com a execução de atividades de treinamento como as
mostradas no vídeo do blog, e outras de que tomamos conhecimento e cujo objetivo muitas
vezes não compreendemos, julgando-as autoritárias, machistas e por vezes violentas.
Em certa ocasião, ouvi um relato inesquecível de um oficial que costumava falar
abertamente sobre as práticas correntes na corporação, as oficiais e as oficiosas, que faz
10
Suga é um termo muito usado no meio militar, significa exercício físico difícil, cansativo, usado em treinamento, que
acabou empregado em situações diversas a atividades físicas, adjetivando qualquer situação difícil e cansativa .
54
referência a uma função institucional do trote, não importando onde a Escola de Formação se
situa:
[...] sem os ritos, sem a ―suga‖ que eles promovem, o aluno em formação não aprende o que é
ser policial de verdade, e é através destes mecanismos que o sujeito decide se realmente está
disposto a ser policial. Se não houvesse esse mecanismo se formaria PM uma pessoa que não
tá aí para nada.
Como exemplo do etos guerreiro ainda incutido nos policiais militares em sua
formação, cito trecho tirado do jornal O Dia, de 4 de fevereiro de 2008, que expõe a frase
lema de uma turma em curso atualmente na APM do Rio de Janeiro: ―Turma Garra 2006:
Servir é o nosso lema / Proteger nossa missão / Combatente urbano enfrentando o perigo /
Não tem medo da morte / Cadete destemido‖.
Importante considerar que a questão da formação e do preparo dos policiais militares é
importante não apenas para a afirmação de uma ―identidade policial‖, mas também para a
prestação eficaz dos serviços ostensivos civis de polícia. O que se oferece na formação indica
diretamente o tipo de profissional que se deseja formar.
Há uma indicação para o desejo de formar homens prontos para guerra, ―para enfrentar
a morte e mostrar-se forte no que acontecer‖, como está escrito na Canção do Policial do Rio
de Janeiro, já repetida em inúmeros estados. Nas entrevistas, quando mencionava esse mito de
ter que ser um super-homem e a questão da hipermasculinidade, mesmo as exceções que
disseram nunca terem ouvido falar nisso usaram correntemente expressões como ―policial
brabão‖ e expressaram opinião de que ―polícia é uma profissão onde se está acima da chuva,
dor e fome‖, que claramente afirmam minha percepção, mesmo que neguem quando
questionados diretamente.
Policiais são homens comuns treinados nos cursos de formação (mesmo que
informalmente, uma vez que muitos ―saberes‖ são transmitidos além dos currículos) para
subtraírem suas emoções, como se isso fosse possível, bem ao estilo dos filmes como
―Robocop‖ e ―Rambo‖. Para ilustrar essa afirmativa, cito outra entrevista realizada com um
coronel, comandante de um batalhão, em que ele falava do tipo de formação que os policiais
recebem e afirmava que são forjados a ferro e fogo para serem homens fortes. Bem... a partir
de uma fala destas, me pergunto se é possível que homens sejam forjados a ferro e fogo?
Parece mais estarmos de fato nos referindo a uma ideia de que é possível formar ―Robocops‖.
E justamente naquele trecho da entrevista falávamos sobre o medo e ele tentava, com esta
resposta, me explicar que o medo existe e é natural. Parece que há uma controvérsia entre
realidade e teoria, entre teoria e prática na PMERJ. Pode uma pessoa falar de seus medos
55
neste panorama, com este tipo de formação, a ferro e fogo? Tendo como hino a canção do
policial, que diz que ser policial é se mostrar um forte no que acontecer, citada acima e que se
encontra em anexo na íntegra.
Seguindo a linha de raciocínio na qual o policial parece se enxergar como um super-
herói, me parece importante compreender os mecanismos que contribuem para que estes
sujeitos introjetem esta identidade ―super-homem‖. Parece-me que a formação policial tem
algo a ver com isso, assim como a sociedade que deles espera a solução dos problemas,
sempre que a polícia é acionada é para a resolução de um conflito.
O sujeito, ao passar a ser um policial, tem acesso a todo um universo de atitudes que o
identificarão como tal que serão aprendidas tanto no curso de formação (aprendizado formal),
como no dia a dia com seus colegas com mais tempo na profissão (aprendizado informal e
muito valorizado pela tropa). Ele reproduzirá uma série de comportamentos, modificando seu
self e suas ações reforçarão a identidade grupal, a cultura organizacional com suas formas
estereotipadas de ser e agir comuns a esta profissão ao redor do mundo (Burkitt, 2008), aqui
no Rio de Janeiro ainda muito identificadas com o etos guerreiro.
Para Zaluar (2012) essa figuração do etos guerreiro pode ser revertida, pois não é
natural, a não ser na visão de senso comum dos que estão tomados pela identificação com tal
etos, nem é eterno, pois tudo está em perpétua mudança. No entanto, para a reversão do etos
guerreiro, há caminhos já trilhados na sociabilidade e nos rumos tomados há mais de um
século pelo que poderia ser chamado de processo civilizatório no Brasil.
Um modo de superar essa falta de diálogo interno que caracterizaria o etos civilizado
tal como descrito por Elias (1998) se daria pelo surgimento de uma terceira natureza que
induz o diálogo entre as emoções reprimidas (primeira natureza) e a etiqueta social aprovada
socialmente (segunda natureza). A terceira natureza se caracterizaria pela maior flexibilidade
moral e maior entendimento entre consciência e impulsos, de tal modo que os bem-sucedidos
seriam os que combinariam firmeza e flexibilidade, franqueza e tato (WOUTERS apud
ZALUAR, 2012). Em texto anterior, Wouters considerou que criminosos seriam os indivíduos
que não conseguem, por vários motivos, essa nova integração psíquica, na qual as emoções e
os códigos de conduta disponíveis se tornariam objeto de reflexão e de racionalização. E
admite que os indivíduos mais propensos a cometer crimes seriam aqueles que não têm
autocontrole sobre suas emoções e, portanto, falham na negociação entre a consciência moral
e os impulsos. (ZALUAR, 2012, p. 15).
O problema é que essas características não são exclusivas do comportamento
criminoso, mas também de atividades que envolvem risco ou reação impensada, não
56
necessariamente criminosa, como a atividade policial militar aqui em questão. E não parece
que esta é uma questão que pode ser reduzida ao individual, mas que deve ser pensada como
uma questão de identidade grupal (ibidem). Portanto, posso acrescentar, também os policiais
militares adoecem por causa dos conflitos internos que não conseguem simbolizar.
Alguns pontos têm-se destacado naquele universo que denomino de ―paralelo‖, pelo
inusitado que apresenta: tais bate-papos informais e refeições são realizados em meio a fuzis e
pistolas, o que por si só já não faz parte de nossa realidade cotidiana acadêmica e civil. As
conversas giram em torno de assuntos corriqueiros de atividades do final de semana e família,
entremeados com comentários incomuns para a população em geral e tão comuns neste
universo paralelo, sobre as últimas ocorrências, o número de mortos, os braços decepados e as
tripas aparentes.
Mediante o que foi apresentado sobre a formação policial militar no Rio de Janeiro
ainda estimular a aderência a um padrão hipermasculino, como um super-homem, não é de
surpreender que percebo que, uma vez que se tornam policiais militares, após tudo que foi
construído durante a formação, aquelas pessoas incorporam um ―quê‖ de super-heróis11 e
passam a naturalizar todo o inusitado desse contexto, fazendo clara diferenciação entre si
mesmos e a população civil (independentemente de classe social e grau de instrução),
chamada informalmente de ―P-Is‖. O termo nativo significa, em ―policialês‖, ―pés inchados‖,
pessoas consideradas ingênuas e ignorantes acerca da realidade da vida, dos reais perigos e
dos comportamentos adequados em prol de sua segurança.
Em contrapartida, os policiais militares se consideram conhecedores de tais perigos da
vida, experientes e sagazes no enfrentamento da criminalidade, a tal ponto que parece haver a
subtração do medo, emoção natural e inerente ao ser humano no tocante a situações de risco,
onde a vida é ameaçada. No entanto, é natural que animais e seres humanos ajam
instintivamente pela preservação de suas vidas e o medo é primordial para o acionamento de
mecanismos de defesa nestes momentos. Deve-se considerar, portanto, que contra o natural
instinto de defender a vida, quando qualquer ser humano evita as situações de perigo, o
11
Esta ideia é um senso comum e não um conceito analítico.
57
policial, ao contrário dos demais que fogem e se abrigam, vai em direção ao perigo, para
combatê-lo e defender os outros cidadãos em postura que busca o heroísmo, a sensação de
perigo e o enfrentamento da morte.
O medo é uma emoção natural do humano, mas minha experiência de campo mostrou
que, no público interno da corporação, tanto nos atendimentos psicoterápicos, como em
diversos momentos de interação como no rancho, em cerimônias no batalhão em bate-papos
com outros psicólogos, há uma subtração do assunto medo ao se falar sobre enfrentamentos
com os marginais à lei, as incursões em favelas e outras ocorrências com confronto armado e
perseguições, todas situações perigosas em que seria normal a qualquer um sentir medo.
Consideramos, como foi dito acima, que a imagem interna do policial militar no Rio
de Janeiro pressupõe que o indivíduo aja contrariamente aos seus instintos de proteger-se
frente ao perigo. Obviamente, ele vai enfrentá-lo considerando sua segurança, e o medo ajuda
nesta avaliação de risco e segurança. Alguns relatos de entrevistas confirmam esta hipótese.
Contudo, entendemos que no momento do enfrentamento, com a ―bala voando‖, como é a
expressão usada para a troca de tiros durante um confronto armado, o senso de grupo, a
responsabilidade pela vida dos colegas da guarnição (nome dado à equipe de policiais que
trabalha junto), pois a vida de um depende da ação e atenção do outro, a ameaça à vida, esses
e outros fatores disparam adrenalina no organismo e os empurra para o enfrentamento e o
medo fica de lado, como que na retaguarda dos acontecimentos.
Em Freud (1921), a essência de um grupo reside nos laços libidinais que nele existem
e, são esses laços emocionais, que fazem o perigo enfrentado parecer mínimo aos seus
integrantes. Se cessam os sentimentos de consideração que os membros do grupo mostram
uns para com os outros e o indivíduo começa a se preocupar apenas consigo próprio, ele passa
a sentir que está sozinho a enfrentar o perigo, podendo chegar a certamente achá-lo maior,
embora o perigo não tenha aumentado além de um grau que é costumeiro e que anteriormente
já foi amiúde enfrentado. Assim o pânico talvez irrompa. Dessa maneira, o medo pânico
pressupõe relaxamento na estrutura libidinal do grupo. Daí ser tão importante que cada um se
ocupe de ser parte do todo, protegendo uns aos outros e guardando muito bem seus
sentimentos de medo para que não eclodam no grupo, o que seria perigoso demais para a
coesão do grupo e para a sobrevivência de cada um.
Bakhtin apud Burkitt (2008) nos mostra que há momentos de passividade e momentos
de atividade na vida sendo partes de um mundo que não foi criado por nós como indivíduos,
mas de um mundo no qual participamos ativamente e parcialmente reconstruímos o tempo
todo. Há o que é dado e o que é construído, como Mead, ainda apud Burkitt (2008), também
58
acreditava. A criação de ―social selves‖ é de autoria mútua em ação e palavras, nós damos
forma aos outros e estes também nos dão forma. Daí a postura de cada um de firmeza e
coragem é tão importante para que o grupo se mantenha firme e corajoso frente a qualquer
situação.
Mesmo assim, não passa despercebido que nunca, nunca mesmo, haja menção ao
medo na fala dos policiais. Este parece inexistir, apesar de que, quando perguntados, alguns
respondem que sim, sentem medo, que quem não sente é até um companheiro perigoso para a
equipe, pois se expõe e expõe os colegas. Entretanto, tal palavra nunca é mencionada
espontaneamente.
Sempre me causou certa curiosidade que o tema do medo nunca se fizesse presente nas
rodas de conversa, e procurei, nas teorias de psicologia social e do interacionismo simbólico,
o conceitual para interpretar essa ausência. As teorias de Burkitt (2008) foram bastante
elucidativas: trata-se da construção de um self social, que é construído a partir das pressões e
expectativas dos que cercam o indivíduo. No caso dos policiais militares, as pressões, mesmo
que não normativas, de uma instituição onde a coragem no enfrentamento do perigo é marca
primordial. Segundo Dejours (1997), a negação do medo é condição para executar tarefas de
risco. E acredito que a formação de policial militar estimule a construção desta negação no
íntimo de cada um.
Burkitt (2008) afirma que a consciência de si é a coisa mais vaga e imperfeita para se
estudar, entretanto, nesta tese, vou me aventurar a isso, pois me interessa tentar compreender
como os sujeitos que entram para a corporação passam a reproduzir tantas formas
estereotipadas de manifestação da identidade policial militar, da PMERJ assim como algumas
de qualquer polícia ao redor do mundo, uma vez que muitos traços são comuns. O autor
utiliza o termo self para abordar a consciência de si. Para ele, a unidade e forma do self só são
ativadas por vivermos em sociedade com outros seres humanos, embora o self não possa ser
reduzido às relações sociais, mesmo que estas lhe deem vida.
Nossa consciência é considerada uma função do comportamento social em evolução.
O ser humano não mais é guiado por seus instintos e impulsos, mas reflete sobre as demandas
e possibilidades apresentadas e a partir disso escolhe como agir. Contudo, muitas de nossas
ações são feitas habitualmente, sem termos que pensar conscientemente nelas, pois são
hábitos. Quando ela não é adequada para o momento, tornamo-nos conscientes da nossa ação
e do nosso self para escolhermos outro modo de agir – o que seria a plasticidade natural do
cérebro humano em funcionamento. Hábitos e consciência são temporais, estão mudando todo
59
[...] pois o nosso ideal / É algo que nem todos podem entender / Na luta contra o mal! / Ser
Policial / É, sobretudo, uma razão de ser / É, enfrentar a morte, / Mostrar-se um forte / No
que acontecer / Em cada recanto do Estado / Deste amado Rio de Janeiro, / Faremos ouvir
nosso brado, / O grito eterno de um bravo guerreiro! (grifos meus).
comum com superpoderes, o que torna mais fácil a identificação com a personagem, pois tem
uma paixão, deseja proteger a sociedade e tem um emprego, como qualquer pessoa comum.
Assim como ele, outros super-heróis também tem empregos: o Capitão América é
soldado do Exército americano, o Homem Aranha é fotógrafo, o Incrível Hulk é cientista, o
Lanterna Verde é piloto de jatos e o Homem mais rápido do mundo é perito criminalista.
Todos com identidades secretas. Bem ao estilo dos policiais militares do Estado do Rio de
Janeiro, que muitas vezes têm que esconder sua profissão e ensinar seus filhos a fazerem o
mesmo, por causa do risco de vida que correm pelo simples fato de terem escolhido esta
profissão. Bem ao estilo desta categoria profissional também está a identificação com esses
heróis dos quadrinhos e filmes que lutam para defender a sociedades dos malfeitores.
Tenho observado os policiais aderidos a esta identidade idealizada de figuras
masculinas fortes, invencíveis, heróis na defesa dos demais, próximos da figura do Super-
homem. Isto, naturalmente dificulta que eles percebam que possam estar com dificuldades em
lidar com o dia a dia, tanto pessoal, quanto laboral, o que compromete sua vida pessoal, o
relacionamento com a família e pode prejudicar suas relações interpessoais em geral.
Durante uma entrevista realizada para esta pesquisa, um coronel revelou que em sua
família, ele, desde que entrou para a Polícia Militar, se tornou um herói a quem todos
recorrem em qualquer dificuldade, ele é ―o cara que resolve tudo‖. Disse ele:
Tenho que resolver os problemas da minha família, arrumar emprego para todo mundo, eu
tenho que ajudar todo mundo. Eu tenho que ajudar as pessoas que a minha mãe conhece.
Tenho que arrumar médico, tenho que arrumar emprego, arrumar remoção, arrumar hospital.
Tenho que arrumar tudo porque você é o policial militar. Você não pode ficar deslumbrado
com isso. Tem que tratar isso normalmente.
Considero difícil uma pessoa conseguir não se afetar com tamanha expectativa sobre
si, tal mesmo como se fosse um super-homem que deve acionar seus superpoderes para ajudar
a todos como for preciso. A autoimagem de super-homem tende a levar o policial a exigir
comportar-se assim, sem mazelas, sem ―frescuras‖. E no caso do atendimento psicológico,
este é, infelizmente, ainda visto como coisa ―de fresco, de frouxo, medroso‖.
Mais uma vez cito Minayo, Souza e Constantino (2008), que afirmam que o policial
vive um conflito entre o enfrentamento desejado pela instituição e a marca da sua
masculinidades e o medo, sentimento justificado pelas situações de risco, mas geralmente
interdito na cultura policial. Assim, são comuns as válvulas de escape do sofrimento
emocional e psíquico através do álcool, nas aventuras dos casos extraconjugais, na
intensificação de vivências exteriores para escapar de um mundo interior que está fugindo do
62
controle sem o sujeito se dar conta, tamanha a desconexão com seu verdadeiro eu, pela
aderência a esta identidade PM invencível, identidade PM esta que tantas vezes toma a vida
do policial por inteiro.
Realmente, ouço que ser policial militar é uma profissão que toma a vida do indivíduo
de uma forma única, envolvendo a família toda. Os filhos aprendem desde cedo a mentir
sobre a profissão do pai, as fardas muitas vezes têm que secar dentro de casa, atrás da
geladeira, pois é comum o fato de policiais morarem em áreas de risco onde não podem
revelar sua identidade profissional sob pena de colocarem sua vida e a de seus familiares em
risco. Muitas vezes também ouvimos policiais comentando que preferem restringir a vida
social com a família por medo de expô-los a perigos em caso de assalto, por exemplo, pois
podem ser reconhecidos como policiais e sofrerem algum tipo de violência.
Cito Amador (2002) para reforçar a interdição do medo no âmbito das polícias. A
autora fala dos superpoderes que a instituição policial incute em seus agentes e os associa a
categoria ―Ironia do Medo‖, segundo a qual o grupo exclui o colega que o demonstra. O
policial que sente receios precisaria se calar provocando em si um sofrimento psíquico ainda
maior pela interdição da palavra.
A impossibilidade de expressão do medo no exercício do trabalho policial que, para
esta autora, por um lado, parece relacionar-se à prescrição para a coragem no âmbito da
organização policial e, por outro, à possível existência de um código de regras, criado pelo
grupo de trabalho, pressupondo o banimento do medo, código ao qual todos devem
subordinar-se. Desta forma, acredito que a percepção do risco faz parte de uma ―cultura
policial‖, assim como a impossibilidade de manifestação do sofrimento advindo desta
vivência. A autora usa o título de matéria divulgada no Globo Online: “Quando até a polícia
tem medo” para demonstrar como a população civil espera que os policiais sejam imunes a
essa emoção natural do ser humano, o medo, como se esta também esperasse dos policiais
características sobre humanas, de super-homens.
Foi unânime nas entrevistas que realizei a afirmação de que o medo existe e faz parte
da natureza humana; vários entrevistados disseram inclusive que ele ajuda nas operações,
equilibra, segura a impulsividade. Isso reforça toda minha hipótese de que há uma interdição,
um não-dito a respeito deste assunto em prol de um ideal fantasioso, mesmo que inconsciente,
de comportamento esperado. Sendo assim, o motivo de ele não ser mencionado nunca nas
rodas de bate-papo seria a questão do modelo de policial super-herói, que está acima das
emoções humanas, que tem que se mostrar blindado, encarando com naturalidade e até
jocosidade, as situações anormais de confronto e risco de vida enfrentadas em determinadas
63
ocorrências policiais.
As entrevistas reforçaram que se dar conta de fragilidades e sofrimentos iria de
encontro à imagem idealizada que geralmente tem de si mesmos de ―mostrar-se forte no que
acontecer‖ como diz a canção.
Encontramos discursos assim:
Os policiais em sua maioria não temem o risco presente no dia a dia, talvez como defesa
inconsciente para enfrentar tal cotidiano profissional, talvez pelo machismo. Percebo que eles
minimizam o risco e desdenham dele...
Tem que ter medo. Se não tiver medo não consegue trabalhar. Medo é alguma coisa que você
controla. Acho que medo dá mais atenção na ação dá mais cuidado, você fica mais
preocupado com o que pode acontecer, mas eu acho que o medo não pode influenciar na ação
do policial ele tem que estar ao lado, controlado e sempre a postos, mas não ao ponto de
impedir que o policial trabalhe.
Podemos perceber a ilusão de controle que me parece atrelada aos superpoderes que o
―super-homem‖ policial teria no imaginário deste entrevistado, que é um oficial de alta
patente muito respeitado por sua operacionalidade, sua atuação nas ruas, nas operações,
sempre à frente, destemido.
Eu acho que o medo está presente na vida do policial. Se ele perder o medo, ele não é uma
pessoa normal.
[...] cada dia de serviço você vai aumentando sua experiência, policiais mais experientes
lidam melhor que policiais menos experientes com essas situações. Policiais mais experientes
têm uma tranquilidade maior naqueles momentos precisos do que os menos experientes.
[...] os policiais que trabalham em rádio patrulha, que trabalham no patamo, 12 eu acho que
uma simples troca de tiros sem ninguém ter sido alvejado do lado dele, um companheiro ou
então uma vitima, uma coisa que abala muito um policial também é inocente ferido. Se não
tiver um componente desses e ele alegar que está traumatizado... acredito que um policial que
já trabalha na rua há dez anos não vai ser uma simples troca de tiros que vai tirar ele da rua
não.
Ressalto a expressão ―uma simples troca de tiros‖. Será possível de fato ser simples
colocar a vida em risco?
Em alguns destes trechos, encontramos a negação da fragilidade, a naturalização de
uma situação anormal para o psiquismo humano, que é um confronto armado.
[...] tem o Gomes que corre (correr significa fugir do serviço, ou seja, ir ao psiquiatra
alegando não estar apto e conseguir licença, quando na verdade só querem evitar determinado
tipo de trabalho ou escala, na opinião dos outros policias) e tem uns dois mais correndo
também. Pode reparar que antes de eu mudar a escala nada os traumatizava.
12
Patamo é abreviação de ―patrulhamento tático móvel‖, nome que acabou sendo incorporado como um ―apelido‖ para os
veículos de marca Blazer que tanto vemos nas ruas do Rio de Janeiro.
64
real adoecimento de integrantes de sua tropa. Ele explicava que determindaos policiais
recorrem à psiquiatria dizendo-se em sofrimento metal quando alguma situação no trabalho os
desagrada, no caso que ele exemplificou ele trocou a escala do Gomes e outros dois e depois
disso eles entraram de licença, o que para ele caracterizou má fé e encenação. Infelizmente,
ouvimos muitas opiniões semelhantes e não somos ingênuos em imaginar que são todos
ignorantes sobre a existência de doenças psíquicas, mas realmente sabe-se que na PMERJ há
um histórico de ―falsos loucos‖ que já foram flagrados em seus ―bicos‖13 e inclusive
fotografados, enquanto estavam de licença na polícia.
Nos EUA discute-se muito sobre a dificuldade de se avaliar de fato as doenças
emocionais e isto ser uma perigosa porta de entrada para pessoas mal-intencionadas e
inescrupulosas se beneficiarem de licenças e reformas falseando sintomas, em qualquer parte
do mundo.
Não qualificar sintomas emocionais como um dos problemas decorrentes de eventos
estressantes e traumáticos vivenciados em serviço não é ―privilégio‖ de nossa polícia em
decorrência de ignorância ou de policiais mal-intencionados que fazem com que comandantes
desacreditem de antemão que possa de fato haver adoecimento psíquico entre seus
subordinados. No Pentágono dos EUA, há uma opinião sustentada pelos que decidem quem
14
irá receber a Ordem Militar da Purple Heart, que se opõe à expansão da concessão desta
medalha para os portadores de sintomas psicológicos. Quase dois milhões de pessoas já
receberam a medalha desde agosto do ano 2009, 2.743 membros do serviço militar que
serviram no Afeganistão e 33.923 que lutaram no Iraque receberam a recompensa.
Alvarez e Eckholm (2009) ressaltam que há uma diferenciação histórica entre
ferimentos ―com sangue ou sem sangue‖ que falha em reconhecer as profundidades das
cicatrizes mentais (e emocionais, eu acrescento). Os autores explicam que, segundo alguns
veteranos que sofrem de transtorno do estresse pós-traumático,15 há hoje uma guerra moderna
que precisa levar a uma definição modernizada de ferimentos que deveria incluir tanto os
físicos quanto os morais e emocionais. Sem dúvida, temos que estar cientes da necessidade de
novas definições do que pode ser sofrimento ou ferimento advindo de uma nova forma de
guerra, uma guerra sem abrigos, sem corpo a corpo, com armamentos potentes de longo
13
Nome dado pelos policiais ao segundo emprego, que para muitos deles é exercendo função de seguranças particulares.
14
A Purple Heart é uma medalha concedida desde 1932 que melhora os benefícios financeiros recebidos por veteranos de
guerra feridos ou mutilados, isentando-os de copagamentos hospitalares e ambulatoriais e dando-lhes prioridade na marcação
de consultas.
15
Assunto central desta tese, que será apresentado e descrito no próximo capítulo.
65
por avaliação psicológica no serviço seguinte após ocorrência estressante e de risco – seria o
ideal haver esta padronização.
Entretanto, é indispensável ressaltar que várias unidades da PMERJ contam com o
trabalho de oficiais psicólogos, e mesmo que não haja um protocolo de atendimento aos
policiais após ocorrências de risco, qualquer um pode procurar o setor de psicologia de sua
unidade ou de qualquer outra, ou ainda de uma unidade de saúde e será atendido.
Causou-me preocupação encontrar em Minayo, Souza e Constantino (2008) a errônea
afirmação de que não há apoio psicológico e que o pedido para ser atendido por um psicólogo
precisaria passar pelos superiores, o que para as autoras, com a minha concordância,
significaria a possibilidade recorrente de negativa da chefia ou uma tutela sobre a situação
emocional dos que solicitam ajuda.
No caso citado, realizei três entrevistas com cada um e, desde a primeira, todos
apresentavam condições de retornar ao serviço, não apresentando nenhum sintoma de abalo
psíquico, exceto um. Este havia sido rendido pelos meliantes dentro do ônibus, os quais
tomaram sua arma e o ameaçaram, mas ele conseguiu fugir de dentro do coletivo e realizou
todo o procedimento padrão com os colegas após a ocorrência. Entretanto, desde a primeira
entrevista, relatou que pensamentos recorrentes e automáticos sobre o episódio ficavam se
repetindo em sua mente contra sua vontade, causando mal-estar. Estava tendo pesadelos com
o fato e sua esposa havia reclamado que ele estava irritado e impaciente, mas ele não
percebia. Não se sentia em condições de retornar ao serviço na rua. Foi colocado por um
tempo em serviço interno (sem sair do batalhão) e foi convidado a retornar para mais
consultas, mas não o fez. Sempre que eu o encontrava no batalhão, perguntava como estava e
ele dizia que estava melhor, mas me preocupou que ele tenha recusado o tratamento, pois às
vezes a própria pessoa não avalia seus sintomas como problemas que necessitam de
tratamento psicológico.
Policiais enfrentam situações com disparos de armas de fogo mais vezes que este
motorista de ônibus, que se encontra incapaz de retornar ao serviço e, como ele, também
podem sentir consequências destes eventos, mas podem não demonstrar abertamente, como
fez o motorista. Sendo assim, estão expostos ao acometimento de transtornos emocionais num
grau sem dúvida mais elevado que o resto da população civil, devido a se exporem com maior
frequência a eventos estressantes e de risco no seu dia a dia de trabalho. Tais eventos são
tanto de risco de vida em ocorrências policiais nas ruas, nas favelas, em rebeliões em
presídios, em assaltos a banco, como em situações não criminais, mas de impacto emocional,
como atropelamentos e outros acidentes de trânsito, tragédias naturais como enchentes,
67
Adoece porque não é fácil. Porque você simplesmente vê um policial ser baleado ao seu lado,
ser ferido ou ser morto e isso mexe com a cabeça de qualquer pessoa, não só do policial e
também adoece por conta de escalas muito rígidas que há na corporação. Adoece porque é
difícil um policial militar ser tirado do seio da família por conta de algum serviço que ele
tenha que fazer. Adoece de viver no momento tal da polícia do Rio sendo alvo de marginais e
não é fácil o policial ter que ficar parado 12h num ponto sendo alvo de ações criminosas, eu
acho que isso tudo mexe muito com a saúde o policial militar, tanto a saúde psicológica,
quanto a saúde física mesmo.
Eu tenho conhecimento de quem trabalha no combate: fica travado. Já conheci mais de um
policial que travou que não quer mais saber, não aguenta mais a rua, quer ir para um serviço
mais calmo por conta de excessivos problemas com policial ferido do lado, morto ao lado,
amigo que morre que está paraplégico. Conheço mais de um policial que... Bons policiais, que
travaram, não conseguem mais ir para a rua mesmo com tempo de polícia ainda, querem ir
embora da polícia, querem pedir baixa por conta dessa vida meio agitada.
burocracia toda sem saber se seu colega sobreviveria. E no serviço seguinte estava na rua com
outro policial militar a seu lado.
Lopes relatou que as imagens se repetiam rapidamente em sua mente, uma atrás da
outras; todas as cenas repassavam constantemente em seus pensamentos: Anderson ferido no
banco do carona, ele tendo próprio tendo que se esforçar conduzir o veículo em linha reta,
pois com os pneus vazios pelos tiros recebidos era quase impossível.... Ele repetia as
lembranças conforme os pensamentos vinham em sua cabeça, numa demonstração do que
vinham sendo seus dias e noites. Sonhava com as cenas e durante o serviço lutava para afastar
os pensamentos, tentando se concentrar. Acreditava que aos poucos iria voltando ao ―normal‖,
sem sobressaltos, sem achar que todo carro escuro era uma ameaça, sem a imagem do amigo
ensanguentado na sua mente.
Lopes não retornou para outro atendimento e Anderson continuou em
acompanhamento psicoterápico. Estava bastante triste, não tinha motivação para nada,
passava todos os dias em casa, no quarto, tornou-se queixoso, irritadiço, impaciente e
implicante com sua esposa.
O que mais me impressionou em sua estória foi a perda de identidade. Ele sabia que
não trabalharia mais no patrulhamento na rua com a perda da visão de um dos olhos e isso
estava sendo devastador. Sua identidade pessoal estava tão aderida a sua identidade
profissional que ele não se via como nada além de policial. E policial para ele é aquele que
está na viatura, ou preferencialmente no patrulhamento de motocicleta, no combate. E ele
repetiu isso muitas vezes naquele e nos atendimentos subsequentes. Como não se via mais
como policial, não exerceria mais atividade de policial mesmo que não fosse reformado; iria
trabalhar na atividade meio, o que para ele era impensável: ―não é trabalho de polícia e eu só
sei fazer trabalho de polícia‖, dizia ele.
Em minha experiência profissional, nenhum policial recorreu ao setor de psicologia
após uma ocorrência por se sentir abalado emocionalmente, com dificuldades de qualquer
ordem em sua vida, como fez o motorista do ônibus citado. Será por que são treinados para
essas situações? Por minhas observações e atendimento psicológico a policiais, afirmo que
não. O que há é uma dificuldade dos policiais militares em lidar com as fragilidades naturais
do humano, com reações normais a situações anormais e, consequentemente, identificá-las em
si mesmo. Muitas vezes só descobrimos que existe um problema ele já é tão grave que escapa
ao controle do indivíduo e este, em trabalho ou de folga, comete um erro, que pode ser fatal,
devido à especificidade de sua profissão que é portar arma de fogo.
70
Para citar outro exemplo de situação de adoecimento houve um policial que foi ao
consultório do batalhão falar comigo despretensiosamente, apenas por insistência de um
amigo também policial e acabou se engajando totalmente no tratamento, seu estado clínico era
gravíssimo e cito-o aqui para ilustrar a dificuldade da própria pessoa, por vezes, para
compreender seus sintomas e buscar ajuda profissional, porque ele próprio não identificava
seus sintomas como consequência de situações que havia passado, na verdade ele achava que
estava ―ficando maluco‖.
Uma entrevista em especial nos dá a noção prática do que é no dia a dia a hipótese que
esta tese traz:
Eu tenho amigos que não frequentam determinados lugares porque fica nítido que é para
evitar a possibilidade de uma ocorrência qualquer, não vão à bar, não ficam parados em
determinados lugares, ai acabam assim, não da para caracterizar como uma síndrome de
pânico propriamente dito porque nós temos muitos com síndrome do pânico que nem sabem
que tem, porque a síndrome do pânico não necessariamente a pessoa se tranca dentro de casa,
mas apresentam reações físicas como taquicardia, pressão elevada, sensação de que vai
acontecer alguma coisa a qualquer momento, ansiedade, angustia e eles as vezes não sabem
porque estão passando por isso e atribui, por ignorância e desconhecimento mesmo, a uma
questão física, fala que esta passando mal porque comeu alguma coisa e na verdade não é, a
gente sabre que é efeito do emocional, mas eles não tem noção e deixam de ter uma vida
normal.
Exemplos como estes, em que as pessoas não compreendem as dificuldades que está
passando de manter a vida social, ou de trabalhar, por exemplo, ajudam a explicar a
estranheza que a presença de psicólogos em batalhões causou em 2002, quando da criação do
quadro de oficial psicólogos, lá eles foram alocados. Várias pessoas ainda são resistentes aos
psicólogos nos batalhões: uma vez que psicólogos tratam de problemas psicológicos, se
psicólogos foram alocados em um batalhão operacional isto seria uma indicação de que
policiais ali poderia haver estes problemas. Isto por si só já foi (e ainda é) uma afronta para
muitos, que demonstravam resistência em aceitar a presença daqueles profissionais e só pela
via dos contatos informais, os bate-papos nas seções, na cantina, é que estas resistências
foram sendo amenizadas e através do laço de ―amizade‖ e confiança que foi sendo
estabelecido no dia a dia, fui me aproximando de várias pessoas e passando a conhecer cada
vez mais das mazelas que acompanhavam as estórias de diversos policiais.
Em minha experiência no campo, pude acompanhar o tratamento psicológico de
dezenas de policiais e também ouvi relatos a partir de terceiros sobre colegas e ficou claro que
alguns indivíduos apresentam o que podemos chamar de ―ferimentos invisíveis‖: alteração de
comportamento e no modo de se relacionarem após determinadas situações de risco que
vivenciaram, mesmo que os próprios não percebam, como foi o caso citado do policial
71
rendido por bandidos no sequestro do ônibus, que a esposa reclamou que estava irritado e
impaciente, além das alterações que o próprio percebeu.
A corroborar com estas evidências está Derenusson (2009), outro oficial psicólogo da
PMERJ, afirmando que em sua experiência como terapeuta de família no hospital central da
PM é comum o relato de companheiras de policiais que apontam para uma mudança
indesejável de identidade dos mesmos após a entrada na corporação, quando estes se tornam
mais rígidos, indiferentes à família ou mesmo constantemente agressivos. Também são
comuns os casos de policiais que, após passarem por situações traumáticas, ficaram
impossibilitados de prover à sua família o apoio emocional outrora disponível. E nesta
profissão é inerente lidar com o risco e com o perigo, estando os policiais sujeitos a se
envolverem em situações traumáticas com maior probabilidade que a população civil, ainda
mais no panorama violento que se encontra a política de segurança pública em muitas cidades
brasileiras nos dias de hoje.
Como disse um comandante de batalhão em sua entrevista:
O trabalho é arriscado, ele consome muito do policial, ele é muito pressionado no seu próprio
serviço, ele não pode errar se ele errar responde criminalmente, administrativamente. Eu
acredito que ao longo dos anos isso possa interferir sim na saúde mental dele, mas não é
somente o serviço policial, eu acredito que tem outros fatores paralelos como a família, o
entendimento da família sobre o serviço policial.
de saúde): Retornando para casa após o trabalho sempre passava por uma área perigosa onde
já havia visto ―bondes‖ (grupo armado de bandidos armados que fecham a rua para atravessar
para o outro lado da comunidade) passando, e eis que foi parado por um desses ―bondes‖ e
sua recarga da pistola estava no console do carro e a mochila com a farda atrás do banco do
motorista. O bandido colocou a arma encostada em sua cabeça enquanto o ―bonde‖ passava,
não era uma ameaça pessoal, não era um assalto, era ―apenas‖ para ele ficar com o carro
parado enquanto os bandidos atravessavam, após isso, o bandido que parou o trânsito seguiu
com os outros e o trânsito pode fluir naturalmente.
Mas a vida deste policial não fluiu naturalmente como antes, ele me relatou que
continuava sentindo a sensação de gelado do cano da arma em sua têmpora e, quando o
bandido liberou o trânsito, ele levou alguns segundos para conseguir seguir com seu carro,
suas pernas tremiam, ele tinha achado realmente que iria morrer ali, que o bandido veria seu
carregador da pistola e ele seria identificado como policial e morto, teve certeza disso e a
partir dali continuou tendo lembranças daquela vivência acompanhadas de todas as sensações
do momento em que a vivenciava pela primeira vez, passou a ter taquicardia e os episódios de
desmaio, sem contar as alterações de comportamento com a esposa. Ele estava consultando
um clínico e fazendo exames, mas a causa era psicológica, expliquei a ele. Marcamos algumas
outras consultas e sua vida pode se restabelecer e voltar ao normal. Tenho contato com esta
família até hoje e vejo como a observação atenta e intervenção da esposa com o profissional
de saúde (no caso eu) foram fundamentais para o tratamento da raiz dos problemas que seu
marido vinha enfrentando e hoje ele não sofre maiores danos em virtude daquele fato
estressante e traumático que vinha lhe causando complicações de saúde e de relacionamento
familiar.
Carmo e Constantino (2002) denominam ambientes institucionalizados de risco
aqueles ambientes que gerariam algumas situações dentro das quais os indivíduos podem
escolher arriscar recursos escassos, inclusive suas vidas. Pode-se entender a instituição
policial como um desses ambientes, onde o risco faz parte da natureza do trabalho que apela
para a coragem e até mesmo o heroísmo no enfrentamento armado de criminosos (ou
suspeitos de o serem), ou mesmo o risco de carregarem suas fardas, arma e documentos e
serem identificados no percurso, como parece ter sido o horror vivido por este policial com a
possibilidade de ser identificado.
Preocupava-me constatar que uma série de comportamentos e atitudes naquele
universo de combate, de guerra, são facilitadores de doenças psíquicas em virtude da
peculiaridade da atividade policial, o estresse do dia a dia, a pressão das relações hierárquicas,
73
os conflitos de poder, a tensão envolvida nas situações de perigo onde por vezes a vida é
colocada em risco e podem ser experienciadas como situações traumáticas e o perigo
implícito em simplesmente ser um policial.
Sim, na cidade do Rio de Janeiro os policiais militares são de fato agentes da
segurança pública e não das Forças Armadas, são militares como força auxiliar, mas nesta
cidade o que se vê são policiais armados com armamentos de guerra, fuzis e metralhadoras,
que enfrentam marginais armados muitas vezes com armamento de maior potencial ofensivo
que os agentes da lei, que chegaram a derrubar um helicóptero do Grupamento Especial
Aeromarítmo (GAM) em 2009 na zona norte da cidade matando quatro policiais. Em teoria, a
missão da polícia militar é a preservação da ordem pública, servindo e protegendo, mas a
prática demonstra que nesta cidade seus agentes tem atividades bastante parecidas com as
atividades das forças armadas em zonas de guerra, o que os coloca sob um risco maior que
nas cidades interioranas do Estado do RJ.
Parece-me que esse elevado risco não causa estranheza nem nos policiais nem na
sociedade. Para esta, pode-se pensar que o conceito negativo emitido sobre os policiais pelas
várias camadas sociais está entranhado na cultura e legitima e naturaliza a violência que
vitima os policiais, muito mais do que a qualquer trabalhador, durante a jornada de trabalho
ou nos tempos de folga em que, curiosamente, aumentam as ocorrências de lesões e traumas
de que são vítimas.
Meu interesse neste assunto advém tanto das observações no campo, quanto dos
relatos obtidos nos atendimentos, de terceiros e em outros trabalhos acadêmicos, que me
mostraram o quanto uma pessoa pode ser afetada por uma ocorrência vivenciada, a ponto de
sua vida pessoal, social e laboral ficar comprometida, sendo imperioso lançar o olhar de
profissional pesquisadora e profissional de saúde para o sofrimento que acomete estes
profissionais da segurança pública do nosso estado.
Pesquisas sobre o comportamento humano revelam que no momento em que o
indivíduo coloca sua vida em risco, ele vive uma situação de estresse, pois enfrenta um
desequilíbrio biológico em que componentes físicos e psicológicos se manifestam. Os
policiais são os profissionais que mais sofrem de estresse, pois estão ―constantemente
expostos ao perigo, à agressão e à violência, devendo frequentemente intervir em situações de
problemas humanos de muita tensão‖ (LIPP apud RIFIOTIS et al., 2006, p. 16).
Preocupava-me ainda mais saber que havia tanto a ser cuidado, que tantos sofrimentos
são aqueles experimentados por muitos policiais no exercício de suas funções e em
decorrência deste, porém estes policiais não têm, na maioria das vezes, consciência da
74
natureza (emocional e psíquica) desse sofrimento, ou não se permitem admiti-lo, uma vez que
isto poderá ser visto como incompatível com a imagem que tem de si mesmos, forte e ―sem
frescuras‖. Muitas foram as vezes que ouvimos a analogia de qualquer sofrimento e medo a
―frescuras‖: quando alguém manifesta um comportamento diferente do ―culturalmente
esperado e padrão‖ de firmeza, é recebido com piadas e gozações. Quando vai ao psiquiatra e
recebe uma licença, geralmente os comentários são de insatisfação e menosprezo, girando em
torno da inadequação daquele indivíduo para a corporação.
Credito isto ao fato de as doenças psíquicas e emocionais ainda serem uma espécie de
tabu na nossa sociedade e haver certo mistério acerca destas no tecido social como um todo,
sendo exceções as camadas sociais onde os tratamentos destas são encarados com
naturalidade e sem preconceito. Daí a importância de o psicólogo estar lotado dentro do
batalhão,16 junto dos policiais. Para tentar desmistificar esse comportamento padrão de super-
herói do imaginário masculino, difundido em nossa cultura através de frases como ―homem
não chora‖ que é dita para o sexo masculino desde cedo, introjetando valores que serão
cultivados e reproduzidos posteriormente se não transformados. Para esclarecer sobre as
possíveis ameaças à saúde advindas da identidade e da atividade policial militar. Para também
que essas pessoas em sofrimento psíquico possam identificar sintomas que venham
apresentando secretamente ou não e possam falar destes e de situações traumáticas (inclusive
do passado, que são um fator que predispõe ao desenvolvimento do transtorno psíquico
específico que iremos abordar neste trabalho). A partir daí, poderão ser tratadas, sem se
preocuparem em fingir de modo a não serem ridicularizadas ou mesmo não buscarem
tratamento, por não saberem que tais sintomas são um problema a ser tratado.
Reitero que esta aderência a um padrão de sujeito que ―mostra-se forte no que
acontecer‖, como diz a Canção Policial Militar do Rio de Janeiro, dificulta e mesmo
impossibilita a busca de tratamento psicológico e psiquiátrico, uma vez que não há a
identificação do adoecimento psíquico. Muitas vezes os sintomas são sentidos como um
desconforto difuso ou comorbidades de transtornos psíquicos, como dores de estômago ou
dores de cabeça, levando a pessoa a buscar clínicos gerais que, em consultas rápidas,
medicam o sintoma e sem uma anamnese detalhada, não identificam o problema como
emocional e psíquico e com isso não encaminham o paciente para os profissionais adequados
16
Em 2002, na entrada da primeira turma de psicólogos, todos foram alocados em batalhões e depois, com o tempo, foram
sendo distribuídos nas diversas unidades da Corporação: policlínicas, hospitais, unidades de ensino e instrução, unidades
especiais, centro de recrutamento e seleção, unidade prisional...
75
para tratar a raiz do problema, psiquiatra e psicólogo. Sendo assim, muitas doenças mentais
não são tratadas por não serem identificadas, o que é muito grave.
Reforçando a importância de se lançar luz sobre este lado real, mesmo que encoberto
da população, da corporação e até mesmo do policial – seja por uma cultura de ―super-
homens‖, seja pela falta de disponibilidade da corporação de lidar com os limites de seus
subordinados, seja pelo preconceito ainda presente na sociedade com as questões do mental,
do sofrimento sentido pelos integrantes da corporação PMERJ, cito Soares (2006) ex-
secretário nacional de Segurança Pública, descrevendo as palavras de um oficial da
corporação: ―Quando vejo colegas atirando, matando e acompanhando a morte de
companheiros, sinto que, se eles permanecem frios e tranquilos, inabaláveis, é porque alguma
coisa dentro deles está abalada ou destruída‖.
O autor afirma que qualquer ser humano sofre profundamente quando submetido a
situações extremas e que sofre a tal ponto, que algo em seu espírito ou sua mente se degrada
se a experiência não for elaborada de forma adequada, com o apoio da família, da corporação,
dos amigos e de terapeuta especialmente treinado — psicólogo(a), psicanalista, psiquiatra. Ele
continua dizendo que se os policiais se expõem diariamente a tensões e riscos quase sobre-
humanos, tão ou mais importantes que o seu treinamento, a sua formação, as estratégias e as
táticas que adota ou mesmo a sua condição física, é o tratamento competente de seu
sofrimento psíquico. Ressalta que, entre tantas reformas inadiáveis na segurança pública, a
problemática psíquica tem sido, sistematicamente, negligenciada. E ainda lembra o falecido
Cel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que defendia que sem programas de atenção psíquica,
nenhuma outra mudança alcançará profundidade humana e consistência prática na atuação
policial.
Aproveitando estas reflexões do ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro
e lembrando as estórias que narramos de sofrimento psíquico decorrente de situações
estressantes, de risco e traumáticas vivenciadas, entramos na questão central desta pesquisa,
que é o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT).
76
Meu interesse por esse transtorno em específico é a amplitude e gravidade que pode
adquirir na vida de uma pessoa. Concordo com Castro (2009), que o trauma é uma espécie de
morte em vida. No senso comum, quando se fala em alguém traumatizado, está se falando de
uma pessoa que passou por alguma vivência que alterou sua vida definitivamente. O trauma
produz alterações permanentes.
Trauma pode ser definido como um ―acontecimento da vida do sujeito que se define
pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontrão sujeito de reagir a ele de forma
adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização
psíquica‖ (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991).
As situações traumáticas trazem consigo um impacto psíquico que, muitas vezes,
transcende os sintomas agudos (tais como os citados nas estórias narradas) e pode acabar por
desestruturar a própria personalidade do indivíduo, por isso nosso grande interesse em realizar
esta pesquisa sobre este assunto, pela magnitude da devastação que a vivência de uma
situação traumática deixada sem tratamento pode causar na vida da pessoa e dos que estão à
sua volta. Tratando-se de um grupo profissional responsável pela segurança da sociedade, a
amplitude de seu adoecimento pode alcançar patamares ainda superiores.
Em relação ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), vários autores vêm
chamando a atenção para a importância de medidas de intervenção precoce na redução do
impacto psíquico e social dos eventos traumáticos. Kapczinski e Margis (2007) apontam
como principal motivo para o não-tratamento de casos de TEPT o fato de que as pessoas não
qualificam seus sintomas como um problema.
O TEPT é um transtorno de adaptação, um conjunto de sintomas físicos e emocionais
ligados à ansiedade e que ocorre após a pessoa ter vivido ou presenciado uma situação
traumática, um evento psicologicamente estressante envolvendo morte ou grave ferimento,
real ou ameaçado, cuja reação da pessoa envolveu intenso medo, impotência e horror.
Scarpato (2004) esclarece que passar por situação extremamente estressante não determina a
ocorrência de TEPT; o acontecimento traumático é necessário, mas não suficiente para o
desenvolvimento desta patologia. O significado emocional do estressor para uma pessoa
77
depende do seu universo subjetivo, da sua história singular de agressões e estresses em sua
vida.
Existem duas correntes divergentes sobre o desencadeador do TEPT: uma, defendida
na 10ª edição Classificação Internacional de Doenças (CID-10), afirma que o evento estressor
é o causador por si do trauma. Caracteriza-se como a vivência de um estresse de tamanha
magnitude que seria traumático para qualquer pessoa – ou seja, uma reação normal a um
acontecimento anormal. Nesse manual classificatório, não se considera a hipótese de uma
pessoa reagir a um estresse profundo sem trauma. A outra corrente defende que o impacto do
evento estressor é interpretado como decorrente das vulnerabilidades pessoais de cada um. A
severidade e cronicidade dos sintomas não são proporcionais apenas à magnitude do
acontecimento e sim, sobretudo, ao grau de vulnerabilidade da vítima, que seria composto
pela sensibilidade afetiva da vítima e pela inclusão desta nos grupos de risco, dos quais
militares e policiais fazem parte.
Para Yehuda apud Jardim (2001), a taxa de prevalência do TEPT para a população
americana é de 14%, enquanto nos grupos de risco varia de 5 a 75%, o que torna o TEPT um
problema de saúde pública, exatamente como desejamos ressaltar nesta tese. Jardim (2001)
também cita o estudo de Oster e Doyle, no qual a população geral tem prevalência de 3% para
esta doença e os bombeiros de 17%, e quando envolvidos em quatro acidentes críticos em um
ano, têm risco 150 vezes maior de desenvolver a doença.
Kapczinski e Margis (2007) afirmam que diferentes aspectos estão envolvidos nessa
sintomatologia, tal como a natureza do evento traumático, o número de exposições, a
vulnerabilidade do indivíduo, a reação deste frente ao estressor, a rede de apoio após o evento,
entre outros. Forte argumento deste grupo é que nem todos que vivenciam situações
traumáticas apresentam TEPT, mas o grupo mais determinista afirma que os sintomas existem
em todos que passaram por situação traumática, só não são encontrados devido à metodologia
de busca utilizada ou ao possível aparecimento tardio destes.
Para receber este diagnóstico, a pessoa tem que ter passado ou testemunhado uma
situação traumática com risco de vida, reagindo com intenso medo e horror em algum
momento de sua vida. Existem mais outros três outros critérios diagnósticos que diferenciam
o TEPT de outras síndromes, que são a revivescência, a evitação/entorpecimento emocional e
a excitabilidade aumentada, que necessariamente devem estar causando sofrimento ou
prejuízo significativo no desempenho social, ocupacional ou outras dimensões significativas
na vida do indivíduo. Os sintomas devem apresentar-se por mais de quatro semanas, pois a
reação aguda ao estresse é outro transtorno adaptativo, com sintomatologia semelhante, cujo
78
tempo de duração dos sintomas é breve, diferenciando-a do TEPT. Este pode desaparecer
após algumas semanas ou meses, mas também pode apresentar duração de anos ou de toda a
vida. A temporalidade é um complicador para o diagnóstico, uma vez que os sintomas podem
aparecer após semanas, meses ou até três anos após o evento.
A revivescência é quando a pessoa age ou sente como se o trauma estivesse ocorrendo
novamente no presente. Ela se dá através de recordações aflitivas recorrentes e invasivas do
trauma (imagens, sonhos, percepções e pensamentos) e sofrimento psicológico intenso com
reatividade fisiológica, quando a pessoa é exposta a um estímulo que lembre algum aspecto
do trauma – por exemplo, aniversário do evento, cheiro da pólvora e de sangue, num caso de
trauma em virtude de uma troca de tiros onde seu colega faleceu ao seu lado.
A evitação/entorpecimento emocional é quando a pessoa evita pensamentos,
sentimentos, atividades ou pessoas associadas ao trauma ou que ativem recordações do
mesmo. Pode se manifestar também através da incapacidade de lembrar algo importante
relacionado ao evento traumático, do afastamento das outras pessoas e diminuição do
interesse em atividades diversas, podendo aparecer também um sentimento de futuro
abreviado. A excitabilidade aumentada é percebida através da dificuldade de conciliar o sono
e a concentração, irritabilidade, com a pessoa tornando-se hipervigilante e apresentando
reações sobressaltadas.
O TEPT é uma categoria nosológica que foi incluída em 1980 na terceira edição do
Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais (DSM-III), da Associação
Psiquiátrica Americana. Entretanto, transtornos traumáticos vêm sendo apontados desde o
início do século XIX com a eclosão de quadros psiquiátricos desencadeados pela Primeira
Guerra Mundial, de 1914 a 1918. Em 1941, Abram Kardiner, um psicanalista, incentivado
pelos achados clínicos de uma situação da Segunda Guerra Mundial, publicou o livro As
neuroses traumáticas de guerra, que passou a ser considerado por vários autores
especializados como a obra que viria a definir, pelo resto do século XX, o que seria o
transtorno do estresse pós-traumático.
De acordo com o livro War and Medicine, na Primeira Guerra Mundial, sociedades
inteiras tiveram que lidar com eventos traumáticos e naquela época, psiquiatras acreditaram
ser melhor não medicalizar esse processo, chamado de shellshock. Em Londres, assim como
em outros lugares, foi considerado que aquele estado das pessoas era a condição médica
daquele momento da história e cada pessoa deveria encontrar sua melhor maneira de lidar
com a situação. Não era negação do problema, e sim a crença de que as pessoas eram
saudáveis e resilientes para lidar com experiências horríveis com suporte social. O que era
79
dito para elas era que estavam exaustas e deviam descansar e depois buscar retornar a vida
cotidiana, resistindo à tentação de ficarem exagerando a experiência ruim que passaram. A
pressão social era usada para reforçar a ideia de que não havia nada de errado com elas.
Sabia-se que haveria exceções, casos mais graves para os quais esta ―técnica‖ não seria
suficiente. Para esses casos, se usavam técnicas como análise de sonhos e hipnose, e depois
vieram os medicamentos, barbitúricos e sedação.
Claramente não havia conhecimento sobre trauma, inclusive quatro estratégias usadas
na Primeira Guerra demonstravam isso: não usar o termo shellshock tanto com pacientes
como com a mídia; não pagar pensões para neuroses de guerra para não recompensar o
―neurótico‖; realizar o mínimo de psicoterapia e confiar no efeito da pressão social; e usar a
seleção de pessoal para manter pessoas vulneráveis fora das Forças Armadas, ou seja,
transtornos psíquicos eram considerados eventos que somente ocorriam com personalidades
vulneráveis, frágeis.
Culturalmente, na Inglaterra da Primeira Guerra, a estratégia foi usar um código de
comportamento socialmente aceito de não chorar mágoas, de copiar o modelo de como cuidar
de si mesmo em meio à adversidade, mantendo-se firme. Traduzindo em outras palavras, foi a
forma de controle social da época para lidar com a grande crise emocional trazida pela guerra.
Naquele panorama, a psiquiatria era encarada com estranheza.
Com o passar dos anos, no fim dos anos 1950 e durante os anos 60, o epicentro da
cultura inglesa passou para os EUA. Falando especificamente da psiquiatria epicentro também
se modificou para a América. A Guerra do Vietnã trouxe grande modificação na literatura
psicológica, pois, apesar de esta guerra ter tido menos baixas que em qualquer outra anterior,
aqueles veteranos retornaram mais danificados mental e emocionalmente que em qualquer
outra guerra. Estudando o trauma, psiquiatras e psicólogos americanos observaram
sobreviventes do Holocausto que manifestavam evidências de pós-efeito do trauma,
pesadelos, flashbacks, depressão, ansiedade, que os afetavam profundamente. Os especialistas
denominaram de ―síndrome dos sobreviventes‖ e passaram, como advogados, a pleitear
reparação para essas vítimas. A ideia da síndrome foi difundida e ligou o trauma à
vitimização, ao invés de ligá-lo à resistência do indivíduo.
Em 1970, dois psiquiatras americanos, Chaim Shatan e Robert J. Lifton, começaram a
fazer encontros de grupos com pacientes veteranos da guerra do Vietnã, em Nova York, e ao
mesmo tempo começaram a ler As neuroses traumáticas de guerra, de Abran Kardiner, citado
acima, de onde retiraram uma lista dos 27 sintomas mais comuns de ―neuroses traumáticas‖,
os quais compararam com as fichas clínicas de 700 pacientes veteranos do Vietnã, o que
80
acabou por se constituir no embrião dos critérios usados pelo DSM-III para incluir a categoria
de ―transtorno do estresse pós-traumático‖ na sua classificação diagnóstica.
A aceitação desta categoria foi rápida não apenas nos EUA, mas pela comunidade
médica em geral através dos continentes, pela mídia e pela lei, e modificou os tratamentos
oferecidos, utilizando-se então protocolos criados pelos médicos americanos especialistas em
TEPT.
Os combatentes do Vietnã ganharam uma rede de assistência médica específica, os
Veterans Centers, e isto possibilitou a observação de sintomas traumáticos semelhantes em
um número significativo deles, o que não passou despercebido pelos profissionais, facilitando
a aceitação desta categoria diagnóstica. Somado a isto, vale destacar que esses ex-
combatentes se uniram em associações e sempre foram muito atuantes em mostrar para o
mundo os efeitos traumáticos da guerra, e conseguiram, com apoio da opinião pública, dar
força ao diagnóstico do TEPT e impulsionar pesquisas sobre o tema, bastante forte nos EUA
até os dias de hoje.
Em 1994 foi divulgado o DSM-IV, o TEPT foi reavaliado e a maior modificação foi
relacionada à definição de trauma. Enquanto o DSM-III-R enfatizava que o trauma é uma
experiência fora da normalidade, o DSM-IV enfatiza o quão ameaçador e aterrorizante foi o
trauma para aquele determinado indivíduo, sem mencionar a ―anormalidade‖ do evento
(SCHESTATSKY et al., 2003).
Grossman (2007) lembra que na Segunda Guerra Mundial mais de 800 mil homens
receberam a classificação 4-F, de incapazes para o serviço, por motivos de ordem psiquiátrica.
Apesar dos esforços de eliminar os incapazes do ponto de vista mental e emocional, as Forças
Armadas norte-americanas sofreram 504 mil baixas adicionais em razão de colapsos
nervosos. Em determinado momento, as baixas psiquiátricas chegaram a ultrapassar o número
de recrutas convocados. O autor afirma que o ambiente da guerra desestabilizou
psicologicamente 98% de todos os combatentes e aparentemente os 2% não afetados já eram
doentes mentais, psicopatas agressivos, antes de ingressar no campo de batalha.
Alvarez e Frosch (2009) discutem a questão da mudança de comportamento
apresentada por alguns militares americanos ao retornarem da guerra do Iraque. O
Comandante do Forte Carson, Maj. Gen. Mark Graham, iniciou uma investigação dos
soldados acusados de homicídio, tendo o inquérito sido recentemente expandido para incluir
outros crimes violentos. Este comandante diz que se os soldados têm bom desempenho antes
de servirem, mas, quando voltam da guerra, se envolvem em problemas de abuso no uso de
81
drogas legais e ilegais ou de conflitos violentos, a corporação tem que se perguntar por que
isso ocorreu? O que aconteceu? O que está causando a diferença no comportamento?
Os Estados Unidos, uma nação que tem o etos guerreiro muito desenvolvido devido a
seu histórico de participações em guerras, têm se interessado em investigar as consequências
danosas do combate para a saúde mental dos militares. É grande o número de soldados que
retornaram das várias guerras nas quais este país se envolveu nas últimas décadas, com
notáveis alterações de comportamento, dificuldades de relacionamento e outros sintomas que
se repetem continuamente e de forma semelhante em vários indivíduos que vivenciaram
situações estressantes e traumáticas. Isto é percebido através das muitas pesquisas que vêm
sendo conduzidas no campo do estresse pós-traumático e que têm contribuído para meu
estudo deste tema.
Alvarez e Frosch (2009) esclarecem que está sendo procurada no inquérito que
propuseram para ex-combatentes, alguma tendência, algo que aconteceu ao longo da vida que
poderia ter contribuído para o aparecimento de problemas, alguma coisa que poderia ter sido
vista e tratada, caso fosse pesquisada. De onde vem essa agressão? Foi algo ocorrido no
Iraque? Se sim, o comando precisa prestar mais atenção nisso, não se pode simplesmente
colocá-los para fora como maçãs podres. Eles declaram que pelo menos quatro dos acusados
do Forte Carson continuavam lutando, apesar de apresentarem sintomas de TEPT e diversos
foram feridos em batalha, alguns fatalmente.
Entretanto, o que parecia ser um fenômeno restrito apenas à guerra, originando as
chamadas ―neuroses de guerra‖, mostrou-se ser muito mais amplo e inespecífico. Hoje
sabemos que ele atinge também vítimas de acidentes automobilísticos, desabamentos,
catástrofes naturais como terremotos, enchentes, tsunamis. Conforme aumenta a exposição à
violência urbana, registra-se também aumento dos casos de TEPT. Como a violência urbana e
a agressão interpessoal vêm constituindo ameaças à vida, à integridade física e à sensação de
segurança, a resposta emocional de algumas desses sob a forma de TEPT tem-se tornado
ocorrência frequente (BALLONE; 2002).
A violência que assombra o mundo contemporâneo atinge todos os continentes. Em
julho de 2011 assistimos, alarmados, as notícias do ataque que matou quase 80 pessoas na
Noruega, país desenvolvido e com baixíssimo índice de desemprego, e em agosto do mesmo
ano o caos atingiu Londres, com prédios e carros incendiados e muita depredação. No Oriente
Médio, as guerras persistem há décadas. Deparar-se com episódios violentos é uma
possibilidade para todas as pessoas na realidade atual, independentemente de idade, classe
social, grau de instrução ou localidade.
82
Através das estórias que fui conhecendo, fui me interessando mais em estudar
possíveis consequências para a saúde mental e emocional em uma profissão como a de
policial militar no psiquismo dos indivíduos, considerando que as estórias que eu ouvia
continham evidências de mudança de comportamento com o exercício da profissão e
raramente para melhor. Não faltavam estórias (que antes me pareciam ―estórias da
carochinha‖) como do homem que sai de um dia estressante no trabalho na rua, chega a casa
nervoso e quando é recebido alegremente pelo cachorro dá um chute neste e depois é
atormentado pela culpa, ou o pai que dá uma surra no filho após um dia de incursão na favela
com troca de tiros quando uma leve bronca teria sido suficiente para repreender uma
travessura, mas em ambos os casos, não conseguiram se controlar, fizeram sem pensar – ou
seja, o estresse do dia abalando seu emocional e precipitando uma reação impulsiva e
desmedida, conhecido também como descontrole emocional.
Eu já sabia que os comportamentos se modificavam a partir da entrada na PMERJ.17
Isto já seria razão para me manter atenta a essas alterações, procurando minimizar os danos na
vida pessoal, nos laços familiares, sociais e inclusive na atividade laboral dos policiais com os
quais interagia, dentro dos limites da psicoterapia com os que buscaram atendimento e
naqueles ―bate papos‖ informais que, na verdade, são atendimentos fora do setting
terapêutico.18 Isto porque o risco de termos policiais adoecidos nas ruas, com transtornos
mentais e emocionais não identificados, parecia-me algo com implicações que poderiam ser
mais graves e que passou a me causar enorme inquietação, sobretudo após constatar, a partir
dos estudos sobre o TEPT que fui aprofundando e do olhar acurado para identificação deste,
que algumas situações de que tive conhecimento anteriormente se encaixavam nesta patologia
e não estavam sendo tratadas adequadamente. Alguns sequer recebiam qualquer tratamento,
uma vez que a própria pessoa dificilmente encarava seus sintomas como doença e muitas
vezes mascarava o sofrimento de um jeito culturalmente aceito e tantas vezes indicado pelos
colegas de farda: com bebidas e mulheres. No entanto, tendo que continuar a dar respostas
adequadas e esperadas pelo seu grau de responsabilidade durante a execução de seu trabalho,
esses sintomas vão algumas vezes se agravando de forma silenciosa, o que é preocupante,
pois esses homens estão patrulhando as ruas ou administrando quartéis, e obviamente sua
17
Ver Rocha (2008).
18
Ambiente específico para a realização da psicoterapia formal – em outras palavras, o consultório psicoterápico.
83
potencial risco subjetivo, com possíveis repercussões em sua condição psíquica e profissional,
proporcionando apoio técnico para retorno ao convívio profissional com a sociedade e
relacionamento com os familiares.
20
Os três trabalhos realizados por oficiais psicólogos no Curso de aperfeiçoamento de oficiais da PMERJ são: Estudo sobre o
Acompanhamento psicológico de Policial Militar em situação de pós-confronto, de 2009; Dando voz a quem escuta:
avaliação de oficiais psicólogos acerca do programa de assistência psicológica para policiais militares envolvidos em
ocorrências com potencial risco de estresse pós-traumático e Levantamento de ações do oficial psicólogo na prevenção a
eventos críticos, ambos de 2012.
87
Outro estado que conta com trabalho voltado para o atendimento a policiais militares
envolvidos em situações de risco ou confronto é Santa Catarina. O Programa de
Gerenciamento de Estresse Profissional e Pós-Traumático da Polícia Militar de Santa Catarina
(PROGESP) funciona desde 2007. Tem como objetivo minimizar os efeitos nocivos do TEPT
e restabelecer as condições psicológicas, fisiológicas e sociais dos envolvidos, oferecendo
acolhimento, acompanhamento e suporte psicológicos. Também faz parte do programa a
promoção de cursos e sensibilizações para as questões ligadas ao estresse profissional
cumulativo e pós-traumático, com ênfase na autoidentificação e autogerenciamento do
estresse, por meio de medidas preventivas.
Segundo dados levantados junto à Junta Médica da Corporação (JMC) da Polícia
Militar de Santa Catarina, cerca de 35% das Licenças para Tratamento de Saúde (LTS) são
decorrentes dos problemas de saúde mental, onde o estresse profissional é fator desencadeante
ou agravante destes quadros. Atenção importante é dada à pesquisa, pois os dados registrados
são sistematizados em um banco de dados específico que permite avaliar os resultados, bem
como serve de fonte de pesquisa para modificações do programa e proposição de novos
trabalhos na área.
A equipe do PROGESP deve ser acionada nas seguintes situações:
sempre que uma ocorrência policial caracterizar um evento crítico, o
Comandante da Organização Policial Militar deverá ficar atento ao
envolvimento de policiais subordinados, informando através da Notificação de
Evento Crítico (NEC) à equipe do PROGESP;
qualquer ocorrência que tenha causado impacto emocional nos policiais
envolvidos;
ocorrência com morte ou lesão grave de policial militar;
ocorrência envolvendo múltiplas vítimas fatais ou politraumatizadas;
ocorrência com morte ou ferimento grave de cidadão civil relacionada à ação
ou operação policial;
ocorrências com grave risco de morte para o policial militar, provocado pela
ação intencional de terceiros;
ocorrências de confronto com a utilização de armas de fogo com o resultado de
ferimento ou morte de cidadão civil;
ocorrência com morte traumática e dolorosa de uma ou mais crianças com
envolvimento, causal ou não, dos policiais.
89
a) Quanto à saúde:
- Item 19: ―desenvolver programas de acompanhamento e tratamento destinados aos
profissionais de segurança pública envolvidos em ações com resultado letal ou alto nível de
estresse‖.
- Item 22: ―Criar núcleos terapêuticos de apoio voltados ao enfrentamento da
depressão, estresse e outras alterações psíquicas‖.
90
Sempre ouvimos nos corredores comentários de policiais sobre colegas ―de farda‖ que
estão com comportamentos ―estranhos‖, nos eventos é comum ouvir reclamações de
familiares sobre alterações na personalidade do pai\marido... após entrarem para PMERJ.
Para ilustrar a relevância deste assunto, citamos dados de outros estados, Rio Grande
do Norte, Bahia e Goiás, que apontam a necessidade de estudos sobre o tema do dano
psíquico, tamanho é o número de baixas emitidas pelos setores de psiquiatria por transtornos
mentais. Logo após, apresentamos dados próprios da PMERJ.
No Estado de Goiás,21 os transtornos mentais e do comportamento são a principal
causa de afastamento de policiais civis e militares do trabalho, segundo dados da Segurança
Pública. Na Polícia Militar (PM), 70% dos PMs aposentados em 2009 eram pacientes da
psiquiatria. E de acordo com dados da Junta Médica da Polícia Militar daquele estado, dos
779 PMs atualmente acompanhados pelo órgão, 53,9% (420) apresentam transtornos mentais.
Segundo a capitã Denilda Carvalho da Silva Colotetyo, secretária da junta, 161
policiais foram considerados aptos para o trabalho, ainda que em tratamento, e passaram a
21
Ver em: http://www.cressgo.org.br/modules/news/article.php? storyid=254.
91
22
Ver em: http://www.progesp.ufba.br/twiki/bin/viewfile/PROGESP/Formacao3?rev=&filename=A_
representa%E7%E3o_social_dos_policiais_militares_da_bahia.pdf
23
Informação disponível em: http://cidadenewsitau.blogspot.com.br/2012/10/ transtorno-mental-afasta-151-pms-no-rio.html
92
serviço, o que é inerente à profissão de militar, por causa de ferimentos recebidos em serviço,
tiros, pancadas, quedas e acidentes.
Na PMERJ, buscar a estatística de quantos policiais estiveram licenciados durante os
últimos anos e quais clínicas licenciaram o maior número de policiais nesses anos não foi algo
simples, como havia imaginado. Acreditei que o sistema, atualmente informatizado,
fornecesse objetivamente esses números a partir de uma rápida busca, mas não funciona
assim... Tive que fazer algumas visitas ao setor de perícia, responsável pela estatística dos
atendimentos da corporação, e buscar esses números diretamente com o médico responsável
pelo sistema, a quem agradeço imensamente pela disponibilidade em me ajudar, procurando
inúmeras telas até compor os dados necessários para minha pesquisa.
O policial atendido no setor de perícia médica recebe um entre quatro tipos de
avaliação: Apto A, Apto B, Apto C ou LTS. ―Apto A‖ é quando não há nenhuma restrição
para o serviço PM; ―Apto B‖ significa que há alguma restrição para a atividade PM, que pode
impedir o serviço de rua ou não, depende da restrição em questão, que não fica registrada no
sistema. Pode ser uma restrição de carregar fuzil, quando o policial pode trabalhar na rádio
patrulha com uma pistola por exemplo. Também pode ser uma restrição ao uso de coturno ou
de serviço noturno, como outros exemplos. O ―Apto C‖ significa que o policial está apto para
o serviço interno não armado (SINA), neste caso sem poder trabalhar na atividade-fim nas
ruas por não poder portar arma de fogo, tendo que trabalhar em serviços internos burocráticos
ou no rancho, na faxina, por exemplo. E ―LTS‖ significa licença para tratamento de saúde,
quando o policial fica liberado de comparecer à unidade de trabalho. Para ilustrar, estão
elencados nos quadros a seguir os quantitativos de policiais avaliados em cada categoria.
que é usada nos diagnósticos na PMERJ) mais usadas nas avaliações do Setor de Perícias
Médicas, em oficiais e em praças. Na categoria Apto B, foram elas: lesões por envenenamento
e outras consequências de causas externas, que incluem traumas externos como perfuração
por arma de fogo, o que explica sua alta incidência e doenças do sistema osteomuscular, que
incluem as doenças degenerativas e idiopáticas. Na categoria ―Apto C‖, o transtorno mental
aparece muito à frente dos outros diagnósticos, e na LTS, as lesões por envenenamento e
outras consequências de causas externas aparecem primeiro, seguidas dos transtornos mentais
nas praças e nos oficiais entre as lesões por envenenamento e outras consequências de causas
externas e os transtornos mentais aparecem as doenças do sistema osteomuscular. Doenças do
aparelho circulatório e digestivo também aparecem com frequência nos diagnósticos, porém
em número bem inferior aos outros diagnósticos citados.
Para termos noção do prejuízo que a corporação tem com doenças que afastem o
policial dos serviços da atividade-fim (patrulhamento ostensivo), primordial atividade da
corporação, devemos somar ―Apto C + LTS‖.
Quadro 7 – Principais diagnósticos por categoria de avaliação em ordem decrescente. Rio de Janeiro,
2010-2013
Apto B Apto C LTS
PRAÇAS 3.054 - doenças do sistema 1.990 - transtornos mentais 7.030 - lesões por
osteomuscular 473 - lesões por envenenamento e outras
2.925 - lesões por envenenamento e consequências de causas
envenenamento e outras outras consequências externas
consequências de causas de causas externas 3.532 - transtornos mentais
externas 241 - doenças do sistema 2.026 - doenças do sistema
2.528 - doenças do aparelho osteomuscular osteomuscular
circulatório 67 - doenças do aparelho 1.050 - doenças do aparelho
circulatório circulatório
O ano de 2012 não foi exposto devido a um erro que apresentou os anos de 2012 e
2013 com os mesmos números e por conta do grande fluxo de trabalho do Setor de Perícia e
estes dados não serem facilmente obtidos por terceiros além do médico responsável pelo
sistema, não consegui incluir os dados corrigidos. Entretanto pode-se notar que nos três anos
apresentados a categoria F43 foi a primeira mais usada como diagnóstico em dois destes anos
e a segunda no outro, o que demonstra que é um diagnóstico que, apesar das dificuldades que
possam haver de identificação do TEPT, o que pode justificar que não seja especificado qual
subgrupo de reação ao ―stress‖ grave está sendo diagnosticado, este grupo F43 tem sido
97
então verificar a ocorrência especificamente do TEPT, entendendo que mesmo assim seu
diagnóstico ainda será um complicador, pelo fato de muitos sintomas se confundirem com
outros transtornos mentais, e em consultas rápidas sem acompanhamento semanal ou
quinzenal continuará sendo bastante improvável a notificação exata deste problema de saúde
pública.
Contudo, o apontamento que considero mais significativo a partir dos números
coletados é que independente de ser F43 ou outra classificação, os transtornos mentais são a
terceira causa de afastamento de oficiais da atividade fim e a segunda causa de afastamento
das praças e isto denota que este tema merece grande atenção tanto internamente da
corporação, quanto dos responsáveis pela Segurança Pública em geral.
99
Para situar o leitor na realidade aqui apontada, descreveremos duas estórias que
ilustram a ocorrência do TEPT. O primeiro caso é de um dos entrevistados na pesquisa e o
segundo é de um paciente acompanhado pela autora em tratamento psicológico. Acreditamos
que esses dois exemplos possam mostrar a importância de se estudar este transtorno na
corporação, tamanha é a repercussão que ele tem na vida dos sujeitos e de pessoas ao seu
redor.
4.1 Caso 1: “Sonhei ser policial, agora não sei mais quem sou”. A vida de Jonas, um
homem cuja realização do sonho devastou sua existência
Cheguei até Jonas, cabo PM, através de indicações que os policiais que eu entrevistava
iam me dando de outros para serem entrevistados. Ele era visto como maluco, os colegas
diziam que ele ficou assim por causa do trabalho, após dirigir por um tempo o vulgo
―caveirão‖, veículo blindado que é acionado em ocorrências complicadas, às vezes para abrir
caminho, às vezes para resgatar uma guarnição que ficou encurralada, mas sempre em
momentos de conflito.
Ele concordou imediatamente com a entrevista, disse que fazia terapia, mas havia
parado e queria voltar e fazia acompanhamento psiquiátrico, pois precisava muito.
Um pouco de sua estória: Jonas tem 39 anos, é solteiro e está há dez anos na PMERJ.
Sempre quis entrar para a polícia, desde novo ouvia as estórias de um familiar policial e isso o
incentivou. Além disso, tinha a estabilidade financeira também como motivação. Quando foi
para o curso de formação, viu que tinha talento para a profissão, atirava bem, dirigia bem,
100
motos, carros, o blindado. Sempre amou dirigir, motos, carros e na polícia já foi motorista de
pesados (micro-ônibus da corporação). E foi por causa desse amor acabou vivenciando
experiências traumáticas e adoeceu.
Antes de adoecer, dividia o trabalho policial com o emprego de motorista de
ambulância. E se dividia entre a casa dos pais e a da namorada. Era extrovertido e brincalhão,
fazia atividade física, esportes e só havia feito tratamento de saúde para alergia.
Certa vez, seu comandante o mandou para um curso sobre veículos blindados. Ele
adorou a oportunidade e aprendeu muito, gostava realmente daquela função, aprendeu não só
a dirigir o blindado, mas também a parte mecânica, seus pontos vulneráveis e a correta forma
de embarque e desembarque, a importância da abertura e fechamento das portas na hora e
posição certa para não entrarem tiros; aprendeu que se não forem seguidas as formas corretas
de utilização, o veículo coloca em risco seus ocupantes.
Durante o curso, um oficial do BOPE, percebendo seu interesse e seriedade, convidou-
o para entrar para aquele batalhão, tão desejado por Jonas, que já havia feito o teste duas
vezes sem sucesso. O oficial disse que o coronel aceitava ―de peito liso‖ (sem ter feito o
difícil curso de entrada), mas depois ele teria que fazê-lo. Era tudo que Jonas queria, ele não
queria trabalhar na tropa, achava que o BOPE era mais correto. Os policiais costumam
chamar de ―tropa‖ os integrantes dos batalhões comuns, diferentemente dos batalhões
especializados como o BOPE.
Ao narrar a experiência de dirigir o blindado, era nítido que aquilo era angustiante
para ele, ter aprendido o certo e ser pressionado pelos superiores hierárquicos para fazer o
errado, sabendo que colocaria as vidas embarcadas em risco. Ele repetiu algumas vezes o que
pareciam ser lembranças de diálogos:
O capitão do BOPE durante o curso falava: ―vocês têm fazer isso ou vão machucar algum
colega aí, porque abrir a porta, o tiro entra e resvala, mata todo mundo.‖ Aí chegava na
operação e me falavam: ―Jonas, faz assim, entra ali‖. Eu dizia: ―capitão, não pode, porque
blindado não pode subir morro‖. ―Como não pode? Sobe sim!‖. E eu falava: ―não pode!‖ E
ele: ―Sobe o morro!‖. Eu subia e o veículo enguiçava e aí era tiro e eu falava: ―Viu? Não
pode.‖ Aí mandava parar no canto e eu dizia que não podia.
Por exemplo, lá numa favela tinha uma ―boca‖, 24 se a gente abrisse a porta eles atirariam e o
tiro iria entrar aí... Não podia abrir a porta. Eles ficavam só esperando abrir a porta e eu ficava
num estado de nervos, se eu abrisse aqui iria dar problema. Pedi ao capitão um minuto para
achar uma posição melhor. Parei com a traseira virada para um beco. A gente tinha entrado na
favela e baleamos um meliante e era preciso tirá-lo de lá mais rápido possível. Conseguimos
pegar ele, tudo bem. Aí o tempo foi passando, foi passando, os colegas foram deixando o
serviço assim: abriam a porta e eu dizia para fechar e ninguém fechava. Teve um dia que um
colega foi ferido com um tiro na perna, porque esqueciam a porta aberta, várias coisas
acontecendo...
24
O ponto de venda de drogas é chamado pelos policiais de boca de fumo, ou somente boca.
101
Certas situações major, quando tínhamos que entrar num beco, não dava para entrar no beco,
tinha uma carrocinha de pipoca, eu me lembro. Tinha um oficial, um tenente. ―Tenente, não
dá para passar, tem uma carrocinha de pipoca ali e o moço está ali, não tem como passar,
não!‖ Ele disse: ―Jonas, isso aqui é um ―caveirão‖, o problema é dele! Passa por cima!, passa
por cima!‖. Aí eu vi o senhor lá chorando. ―Caramba, esse negócio não está dando certo!‖. Aí
eu vi um motoqueiro passando, largou a moto. ―Tenente, a moto está no caminho!‖. ―Passa
por cima, passa por cima!‖. Passava por cima e estragava a moto. E fazia manobra onde não
podia e derrubava moto, derrubava barraco, derrubava botequim e derrubava isso, mas fazia
as operações, apreendíamos armas.
As ações que precisou tomar mediante ordens em operações iam de encontro a seus
conceitos éticos e morais de respeito ao outro e também iam de encontro ao que tinha
aprendido no curso. Sabia que estava agindo contra as normas de segurança, o que o deixava
extremamente ansioso e temeroso, resultando em sintomas físicos que ele não estava dando
atenção, mas que iriam lhe causar sérios transtornos. Suas palavras:
Major, eu já estava sentido alguma coisa, já estava tenso. Já chegava tenso no serviço. O
medo de um colega cometer um erro, ou alguma falha minha e eu querendo fazer tudo correto
e os colegas fazendo tudo errado...
Tomar um tiro por falha de um colega e outra coisa, não podia dar tiro dentro do blindado. O
capitão falou que não poderíamos dar tiro de dentro do blindado e sempre tinha um policial
que dava tiro dentro do blindado, porque podia pegar um paisano. Se pegou paisano, major,
eu não sei, só sei que pegava o malandro, mas podia pegar um paisano e eu não queria ficar
preso, eu não queria responder processo, eu queria fazer o serviço correto...
Ao longo da entrevista, Jonas descreveu uma situação que parece ter mexido com ele
de uma forma mais intensa, ter baleado um homem:
Aí um belo dia eu estava numa operação numa favela, recebemos uma informação e
entramos. Demos de frente com uns malandros juntos e eles correram assim para o meu lado,
aí como ele passou do meu lado, falaram: ― Jonas, passou um aí do seu lado!‖. Aí eu ―pum‖
dei o tiro, não era para ter dado, mas dava para dar e peguei-o. Correu baleado, ele não caiu,
mas eu vi que baleei. Paramos e comecei a ir atrás dele, eu e mais um. Olhei barraco a
barraco. Fui olhando rastros de sangue e não estava achando o cara e teve um barraco que eu
pulei. Pulei porque eu olhei e o barraco tinha uma janela com uma grade. Aí eu falei com o
Silva (nome fictício): ―Silva eu acho que ele foi para o outro.‖ Passamos para o outro e não
achamos. Ligamos, então para um colega: ―Roberto, a gente não conhece aqui, vem para cá
que a gente não está achando o cara.‖ Ele veio. ―Poxa, vocês olharam tudo? Não é possível! O
cara está baleado, está cheio de sangue. Jonas, você olhou tudo?‖, ―Olhei.‖. ―Olhou tudo
mesmo?‖. ―Tem um barraco ali que eu não olhei, porque eu achei que ele não estava ali.‖. Ao
que Roberto respondeu: ―vamos voltar ali então e você olha lá.‖ Então eu voltei, olhei, aí vi
uma coisa mexendo entre a geladeira e o fogão, aí prendi ele e ele falou: ―Chefe, não me mata
não, porque quando o senhor botou a cabeça na porta eu podia ter matado o senhor!‖.
Coloquei a arma na frente, mas preferi não fazer nada. Eu fiquei todo gelado e arrepiado.
―Você está armado?‖. ―Estou.‖. Respondeu o meliante. ―Cadê a sua arma?‖. Peguei ela e o
levei para fora. Aí o ―brabão‖ lá, o Roberto, achou melhor matar ele. Eu falei: ―Olha só
102
Roberto, eu não vou matar ele, ele tem um crédito, pois se ele quisesse atirar ele atirava e ele
se entregou. ―Acho o correto algemar, prender, levar e socorrer ele no Carlos Chagas.‖ ―Não,
não é assim, não pode levar para passear dentro do blindado, tem que fazer isso.‖ ―Eu não vou
fazer!‖ ―Eu vou!‖. Aí eu disse: ―Roberto, faz o que você quiser!‖E deu o fim nele lá. Essas
coisas começaram a me deixar meio estressado...
Outro dia eu entrei no quartel, aí o coração começou a disparar. Eu senti que havia alguma
coisa entranha comigo. Entrei para o alojamento, troquei de roupa e aí o cabo Almeida me
achou esquisito, que eu estava branco e eu disse que não era nada e estava bem. Perguntou de
novo se eu estava com problemas e eu novamente insisti que estava bem, mas ele: ―tem
alguma coisa errada contigo!‖. Eu acho que era medo. Não sei se era medo, preocupação.
Resolvi esperar para ver o que ia acontecer naquele dia e disse: ―só estou sentido, assim, um
cansaço, um desgaste também‖. ―Mas você está branco‖. ―É pressão baixa, eu não tomei
café‖. Aí eu desci para o pátio, quando eu peguei no armamento, eu peguei meio trêmulo, não
era eu. Eu pegava o armamento, fazia tudo perfeito, mas nesse dia eu estava diferente. Tudo
que eu fazia era perfeito, perfeito em tudo. Aí o Almeida estava me observando. Ele olhou
assim, ―Jonas, você não pode ir para a rua, não. Você está estressado, você está nervoso, eu
estou vendo, você está trêmulo, está demorando a fazer as coisas‖. ―Eu estou bem‖. Então, o
Almeida falou com o oficial que chegou perto de mim: ―Jonas, o que está acontecendo?‖
―Tenente, eu estou bem‖. ―Olha há uma operação para fazer agora, se você está nesse estado é
melhor não sair‖. ―Não tenente, eu estou ótimo, estou bem para caramba, acho que dá para
trabalhar sim‖. Fui me aproximando: ―Quem vai dirigir hoje?‖ ―É o Sales. Você está na
tropa?‖ ―Estou na tropa‖. Ele então me segurou: ―Você não vai sair, porque você não está
bem‖. ―Não eu estou bem, pode me dar minha arma‖. ―Não. Não vou dar a arma‖. Pegou a
minha arma, pegou o meu fuzil, mandou que eu tirasse o colete e fosse para a enfe rmaria e lá
o que você está sentindo. Eu fui para a enfermaria e a minha pressão estava baixa. Eu me
sentei e comecei a gelar. A enfermeira: ―Você está sentindo alguma coisa? A sua pressão está
muito baixa‖. ―Está acontecendo alguma coisa agora comigo, está surgindo uma coisa dentro
de mim‖. ―Olha, eu sou técnica em enfermagem, não sou médica, não‖. Meu braço começou a
tremer. ―Você está tremendo por quê? Está com medo?‖ ―Não‖. ―Está com frio?‖ ―Não. Não
sei o que está acontecendo‖. Daqui a pouco meu coração disparou, ela mediu a pressão e
estava alta. Estiquei-me um pouco e comecei a perder o controle das pernas que começaram a
tremer. Ela correu para chamar o oficial. Ele perguntou o que eu tinha e minha fala travou.
Comecei a salivar e a perder o controle do corpo. Eu perdi os sentidos, mas via as coisas
acontecerem. Fui colocaram na viatura e levado para a policlínica. Quando cheguei na
policlínica, não sabiam o que tinha e eu voltei ao normal, me colocaram na cama. Os tremores
voltaram e eu perdi os sentidos. Quando acordei, não sabia onde estava, olhei sem entender,
eu estava em casa? O médico disse, ―Olha, você está com diazepan para te acalmar. Fique
calmo. O que você teve? O que você viu? O que te falaram? O que está acontecendo?‖. ―O
que está acontecendo, você tem isso normalmente?‖ ―Doutor. Não tenho isso não‖. ―Você
está num estado de estresse tremendo‖. Aí me deram dispensa. ―Você tem que ir para casa,
relaxa, tome esse remedinho e tudo vai melhorar‖. Aí me dispensaram aquele dia.
Parece que ele teve uma grande crise de ansiedade associada a outras questões
fisiológicas, sua mente não estava dando conta de todos os acontecimentos e toda aquela
tensão, mas ele ainda estava tomado pelo imaginário PM de não demonstrar o sofrimento por
medo das represálias e por querer corresponder aquele ideal de super-homem ―forte no que
acontecer‖. Os dias se seguiram:
No outro serviço, eu voltei. Fiz a mesma coisa. Vesti minha farda, peguei meu armamento, o
Almeida atrás de mim olhando, o comandante da guarnição: ―Jonas, você está melhor?‖
Respondi: ―Estou, estou melhor‖. Eu estava escondendo. Eu não queria mostrar que eu estava
103
com problema, demonstrar medo, demonstrar alguma coisa. Eu não queria mostrar, eu queria
estar ali trabalhando...
Perguntei se ele estava percebendo o que estava acontecendo e sua resposta foi um
exemplo do quanto é difícil a própria pessoa admitir o problema, pois as pessoas a volta no
batalhão tendem a naturalizar os acontecimentos e convivem com alterações de
comportamento sem grandes preocupações, mesmo que achassem que ele devia ficar em casa,
não levavam a sério o problema dele estar trabalhando. Vejamos suas palavras:
Eu não estava dando o braço a torcer. Quando eu falava, ninguém me escutava muito e diziam
para eu deixar as coisas acontecerem, mas eu pensava, vou deixar as coisas acontecerem. Eles
me diziam: ―Ô Jonas, não era para você estar trabalhando hoje‖, mas eu fui trabalhar. Eu
entrei no blindado, quando viram que eu estava num estado de nervos me tiram, tiraram o
colete, tiraram a arma, voltaram comigo, só que dessa vez foi diferente, não foram para a
enfermaria, foram direto para a policlínica. Chegou lá, mais Diazepan, porém, foi outro
médico: ―o que está acontecendo com você? Está com algum problema?‖ E eu estava
tremendo, tremendo e perdi os sentidos, depois voltei. Terceiro serviço, major, por incrível
que pareça não me colocaram de licença, insistiram que era uma coisa normal. No terceiro
serviço no pátio mesmo eu já estava em estado de nervos que eu mesmo já não conseguia
segurar. Entrei na enfermaria, a pressão abaixou, subiu. Quando baixou eu estava querendo
desmaiar, eu lembro que havia um sargento e eu falei: ―sargento, socorro, me segura, eu acho
que eu vou morrer‖. Ele olhou assustado e me ajudou. Quando eu voltei já estava na
Policlínica, mais Diazepan, aí a doutora olhou: ―Esse rapaz não pode continuar‖.
Aí começou a minha luta. Começaram a me dar umas coisas esquisitas na cabeça, eu queria
sair da Polícia...
Tinha medo de entrar pela frente, pela guarda. Eu estava diferente, não era eu mais. Eu não
podia mais dirigir, não podia trabalhar, não podia andar, eu esqueci minha senha, não co nsigo
assinar, não consigo fazer mais nada...
Note que seu discurso sai do passado e invade o presente – ―...esqueci minha senha,
não consigo assinar...‖ – demonstrando que seus sintomas se cronificaram e ele não
―consegue fazer mais nada‖. Em um dado momento da entrevista, ele repetiu mecanicamente:
―Eu tive problemas na rua e fui obrigado a matar uma pessoa que eu não queria, eu nunca
matei ninguém, eu queria trabalhar direito‖. Depois parecia que despertava para o momento
presente e falava comigo, em outros momentos parecia estar divagando por seus pensamentos
e suas lembranças.
Agora eu estou tendo uns sonhos que eu estou trabalhando na rua, fardado, atirando, trocando
tiro, prendendo, mas quando eu estou aqui, eu não quero fazer mais isso. Parece que paralisou
a minha mente, eu esqueci, eu sou outra pessoa‖... Sonhei que estava no CFAP me formando,
sonhei que ia para morro e trocava tiro, fazia isso, fazia aquilo. Nunca gostei de trabalhar com
pessoas que gostassem de roubar, nunca. Sempre gostei de trabalhar certinho, pois tinha medo
de ficar preso. O que eu sempre sonhei era ser policial e depois ir para o BOPE. Polícia
correta é o BOPE mesmo, eu tentei duas vezes, tenho colegas lá. É meu sonho, mas não sei se
tenho possibilidade. Então eu sonhava, só sonhava e fora do sonho não me vejo um policial...
A situação estava muito ruim e ainda sentia desejo de me matar. Eu perdi tudo... Tudo que eu
fazia, fazia errado. Mesmo uma tarefa simples eu não conseguia fazer. Se me mandassem
pegar uma assinatura, eu sentia medo da pessoa. Aí eu ia e voltava e dizia que não tinha
conseguido – ―como você não conseguiu pegar a assinatura?‖ – aí um olhava para a cara do
outro assim e dizia: ―tudo bem Jonas, pode relaxar‖. Aí o sargento que já sabia ia lá e resolvia
o problema. Chegava ao final do dia eu dizia: ―Não estou aguentado ficar dentro do batalhão,
senhor‖. ―Vai embora, pode ir embora, que depois eu falo com o capitão‖. No outro dia
chegava com uma depressão: ―Está com problema, Jonas?‖. ―Estou, não estou legal‖. Aí parei
de tomar remédio, mas escondi do tenente psicólogo...
Eu achava que era o cara. Sabe um exemplo que eu posso te dar? Eu achava que era o super-
homem. Parecia que o super-homem havia perdido os poderes dele. Aí o super-homem voltou
a ser aquela pessoa simples, do nada. Tudo que ele podia fazer estava impedido por ser uma
pessoa simples. Depois que eles retiraram a minha arma, a minha farda eu não me senti mais
nada e eu era uma pessoa normal, mas eu queria voltar. Eu estava tentando voltar, mas eu não
conseguia, parece que eu esbarrava na depressão... Sabe o que eu sinto agora? Eu não me
sinto mais polícia! Eu trabalho aqui, fazendo de conta que eu sou polícia. O pessoal parece
que está notando isso. Eu entro na seção, as pessoas me olham, eu olho para todos, pego a
assinatura e saio. Quando começam a falar assunto de polícia eu saio, não fico perto, se tiver
um pessoal tomando café eu evito. Depois de todos saírem eu entro. Já me perguntaram o
porquê, eu disse que preferia tomar café sozinho.
105
Para tentar compreender melhor perguntei o que ele estava evitando com essa atitude,
ao que ele respondeu:
Parece que eu saí da Polícia. Eu voltei para cá, mas eu estou como um fantoche. Trabalho
aqui fazendo de conta que sou polícia. Eu não encontro mais a minha identidade. Não estou
conseguindo, parece que bloqueou, não estou conseguindo resgatar o que eu era. Eu ainda
sonho. Continuo sonhando que sou o cara: brigando, correndo, prendendo. Quando eu chego
aqui, não tem nada a ver com o meu sonho essa realidade. Eu queria era estar na rua, mas hoje
eu entendo que eu não tenho condições de estar na rua. Hoje eu me enxergo. Estou tomando
remédio controlado? Estou. Não vou para a rua. Tem dificuldades? Tenho. Até aqui eu tenho
dificuldades de trabalhar. Acho que um dia poderia voltar? Não sei. Acho que primeiro eu
tenho que me reconhecer como polícia, ainda não chego perto de arma. É estranho, parece que
eu tive uma amnésia. Eu perdi minha personalidade como polícia. O pessoal conversa assunto
de polícia e eu não consigo me inteirar.
Sua vida foi totalmente comprometida após anos de trabalho policial devido às
experiências vividas em serviços. As informações fornecidas foram preciosas e demonstraram
como pode ser grave o adoecimento causado por vivências traumáticas. Ele não identificou a
princípio que tinha um problema de saúde a ser tratado, porém a re-exposição a tais
experiências foi causando cada vez mais sintomas fisiológicos e psíquicos, impossibilitando-o
gradualmente de exercer sua atividade profissional e mais ainda, de viver normalmente, pois
sua rotina foi impossibilitada por seus sintomas e o ele foi sendo cada vez mais esmagado por
suas lembranças e emoções, interrompendo seus projetos de vida, seu relacionamento
conjugal e paralisando sua vida.
Com os remédios, fiquei ―robotizado‖, eu caía na rua... Meus pais ficaram preocupados. Eu
tinha um relacionamento, tinha uma namorada. Tinha uma vida normal, major, mas quando eu
fiquei doente, todo mundo se afastou de mim, não sei porque, acho que viram que eu não
estava legal e os amigos se afastaram, aí voltei para a casa dos meus pais. Certas coisas eu não
podia fazer. Eu não queria sair de casa, não podia dirigir, não queria falar com ninguém. Eu
tinha que começar a acompanhá-los aonde eles iam, não tinha decisão própria. As decisões
que eu tomava eram todas erradas, falava coisas erradas. Natal e ano novo eu passei sozinho.
As pessoas diziam que eu ficava como um robô, mesmo quando conversavam comigo: ―você
não é mais a mesma pessoa, você era diferente. Brincalhão, extrovertido‖. Eu ficava sem
reação. Eu não sabia que eram os remédios que faziam isso. Eu não me reconhecia. Então
voltei para casa dos meus pais. O meu maior prazer é estar dirigindo moto ou carro, as duas
coisas, é o meu prazer, mas perdi o prazer de fazer essas coisas. Eu fico agora mais
dependente.
A desestruturação em sua vida atingiu suas finanças, que antes era estável. Sendo
assim, podemos imaginar que tal fator tem total implicação com o caos psíquico e emocional
que se instalou em sua vida e se espalhou em todos os setores de sua existência:
Contraí dívidas, me envolvi em um acidente com o carro, sabe por quê? Por que eu não me
via doente, os remédios, eu não sabia o que podiam fazer, aí bateram em mim e eu capotei
com o carro, acabei com o carro. Fiz dívida para consertar o carro, que era financiado, aí não
paguei as prestações e perdi o carro para a financeira. Foi uma série de coisas acontecendo, de
problemas financeiros. Aí o que eu ganhava não dava para fazer mais nada. Eu gastei um
dinheiro para reformar o carro, fazendo um empréstimo, o financiamento do carro acabou no
final foram tantas prestações que eu paguei e eu acabei devolvendo o carro, aí mais um
empréstimo e a conta do remédio, eram muitos remédios, major, e caros, aí fiz dívida.
106
Relatou uma das fases mais difíceis de todo esse processo de adoecimento, que ele
conta segundo relatos, pois não se lembra:
Tive um surto. Eu não sei o que aconteceu. Eu não lembro. Eu comecei a ter umas atitudes:
comecei a faltar. Sabiam que eu estava doente, o pessoal falava que eu ia para a rua com
uma camisa da polícia, uma camisa de fazer atividade física. Estou magro, emagreci. Eu er a
mais forte. Eu fazia atividade física, esportes, tudo eu fazia. Aí o pessoal falava que eu não
dizia coisa com coisa, eu pensava que tinha gente atrás de mim para me matar, escutava
gente entrando em casa. Aí o pessoal começou a ficar com medo de mim, que estava com o
pensamento estranho, mas eu nem percebia, só fazendo besteira, mas não sei realmente,
major o que estava acontecendo, o pessoal observava e eu não sabia. Falavam que eu via
coisas. Aos poucos foram cortando o remédio, ficando com dois que vou continuar por mais
tempo no tratamento.
Jonas entende que as experiências vividas no blindado foram responsáveis por seu
adoecimento, mas não a atividade em si e sim o que vivenciou por causa dos outros policiais:
Era o cara para dirigir e realmente achava que eu tinha talento, até parar dentro do blindado,
eu acho que eu não estava errado. Eu acho que caí com a guarnição errada. Se eu tivesse caído
no blindado do BOPE mesmo não teria acontecido isso. Um queria matar, outro queria
prender, outro queria matar e não prender. Cada um era uma mentalidade. Eu queria trabalhar
de uma forma correta e outro queria trabalhar de uma forma errada. Tinha que ter união, ser
uma equipe como o oficial do BOPE havia orientado: ―Você são dez é preciso pensar junto‖.
Se houver uma falha, tudo pode dar errado. E acho que essa guarnição deu errado. A gente
tinha certa união na brincadeira, mas na hora do trabalho, não. Ou eu pulei de uma atividade
mais devagar para trabalhar no blindado que é de alto estresse. Acho que, de repente, eu não
estaria preparado, porque eu fui jogado. Se eu fosse treinado, todo o dia no BOPE,
treinamento tático, eu iria absorvendo. A Polícia é assim, pega e joga e se o cara não se
adaptar? Por oito meses eu durei um tempo, mas eu acho que não me adaptei a forma do
serviço, porque eu queria trabalhar certo. Queria trabalhar como se estivesse no BOPE, mas
não estávamos no BOPE. Eu falava muito coisa, recomendando que eles treinassem a entrada
e saída, mas ninguém fazia nada e ficavam rindo de mim... Eu tenho dez anos de polícia, mas
acho que os oito meses de ―caveirão‖ contaram mais do que os anos de trabalho que eu tenho.
Tudo que eu não fiz na polícia, eu fiz dentro do blindado.
Hoje ele trabalha em atividade burocrática no batalhão, ficou marcado com o rótulo de
maluco:
O pessoal me trata como doente e isso me quebra, me sinto discriminado me deixa indignado.
Eles falam assim: ―Olha o Jonas aí, ficou maluco!‖. Uma vez eu perdi a fome no rancho. Fui
chamado de menino maluquinho, aí um major que estava aqui e falou: ―ele é maluco não pode
falar assim não!‖. Eu comecei a achar que estava maluco mesmo... Eu não sou mais polícia.
Antes eu achava que não estava acontecendo nada. Depois de três anos é que estou
entendendo as coisas, agora que estou absorvendo tudo. Por isso que eu falo que fico meio
assim, com medo de passar vergonha. Medo de perceber alguma coisa, de ser destratado,
ignorado. Por isso que eu penso talvez voltando para o psicólogo mude as coisas. Hoje
segunda feira eu acordei com essa mentalidade de sair da polícia de desistir de tudo, mas vou
fazer o que da vida? Só sei dirigir... hoje eu me comporto como paisano aqui. Eu estou
fazendo de conta que sou polícia aqui. Eu fico pensando: será que quando eu sair eu vou me
comportar como as pessoas lá de fora? Eu tenho dupla identidade. Não sei! É uma confusão
danada que eu faço. Eu acho que eu vou deixar o tempo passar.
107
Conheci o Bruce por intermédio de uma psicóloga civil que está na PMERJ há mais
tempo que eu; ela o conhecia de outra unidade e o encontrou no batalhão no dia seguinte ao
evento traumático que ele viveu. Percebendo que ele estava muito agitado e nervoso, indagou
o que havia acontecido e ele relatou o fato, que detalharei abaixo. Ela o orientou a conversar
com a psicóloga. Ele aceitou prontamente e a consulta foi marcada para o dia seguinte. Foi
um fator positivo começar o tratamento no segundo dia após o evento disparador do TEPT.
Entretanto, contarei primeiro sua estória de vida.
Ele entrou para a PM em 1986, este já era seu desejo desde cedo, pois seu pai era
policial e seu herói, e Bruce queria ser como ele. O pai era contra, tentou convencê-lo a seguir
outros caminhos, mas Bruce acabou seguindo sua vontade após tentar cinco vezes, estava
certo do que queria e não ia desistir.
Não entrei iludido, tinham muitos iludidos. Quando cheguei ao batalhão, cheguei com o
propósito de fazer polícia, nada de propina, tinha meu ritmo acelerado. Apresentava
ocorrências.
Ver um assalto, impedir. Prender, entrar na favela, trocar tiro. Minha vida era isso, eu achava
bom. Folgar 48 horas era muita folga pra mim, muito tempo em casa e os marginais na rua,
não dava, tinha que correr atrás deles. Paisano, me envolvi em ocorrências, dava voz de
prisão, ia depor. Vivia, respirava polícia.
uma desilusão profunda e não quis mais trabalhar ―na pista‖. Vem trabalhando em outras
funções desde então e só falta um ano e meio para ir para a reserva.
Comentou algumas ocorrências que fizeram juntos:
O que aconteceu comigo que me fez vir pra cá já aconteceu antes, eu virei o cara deu e não
saiu25. Da outra vez que eu fui assaltado, o cara botou a arma na minha cara e falou: ―eu vou
te matar‖ e eu falei, ―mata‖. Mas eu acho que eu estava preparado para receber aquela ação
ali. Fora muitas ocorrências, muita troca de tiro. Vi colega desmaiar. Teve um que caiu na
minha perna e eu caí quando estava me preparando para fazer a visada para dar o tiro nos
caras. Caí, fui pra frente e os caras viram, sorte que o falecido deu neles e eles fugiram. Ele
tinha perguntado, e agora e eu respondi: ―agora a bala vai voar‖. Acho que ele não aguentou a
descarga de adrenalina.
Afirmei que ele muitas vezes colocou sua vida em risco, perguntei se existia um modo
a seu ver de se preparar psicologicamente? Se em algum momento pensava nisso?
Nem todos estão preparados para este trabalho, numa ocorrência foram dois recrutas e os dois
ficaram parados tremendo. Ao voltar ao batalhão, falei com eles: ―olha, procura outra coisa
pra fazer porque polícia, não dá não‖. Todo mundo pode ―colar as placas‖ 26, mas deixa pra
quando já estiver no batalhão, estiver jantando, não lá na hora em que um precisa do outro.
Um virou um excelente policial, um ―polição‖ 27, guerrilheiro, aquilo serviu como um batismo
e o outro trabalha no hospital central da PM até hoje e agradece o conselho. [...] Não é pra
todo mundo, você chega de manhã pro serviço, eu me preparo, eu vou sentar ali naquela
rádio-patrulha e o que vier vamos abraçar, nunca tive problema de horário. Largava à 20
horas, se chegasse ocorrência 19:50, atendia. Sempre foi meu estilo. Comparo com escolta
particular, segurança. É diferente de sair atrás de uma escolta de remédio. Na rádio-patrulha
você fica visado, a qualquer momento pode passar um bonde e dar tiro na gente. Já num
serviço de escolta, a escolta não é padronizada, não tem nada escrito, o preparo já é outro,
você busca quem pode lhe atacar, você tá esperando. Já aconteceu comigo. Emparelhou o
carro com quatro caras e vendo que eu tava escoltando, eu disse ―perdeu‖, ele concordou e os
caras foram embora, cada um correndo atrás do seu da sua maneira. Eles foram atrás de outra
carga, não iam querer uma carga que tinha alguém ali trabalhando para escoltar. [...] Já fui
rendido por oito fazendo entrega da Natura, não deu tempo de descer da moto, muito menos
sacar a arma. Aí um PM bobão, matador, era o chefe daquilo tudo e mandou os caras pararem,
que eu era amigo do batalhão. Ele disse: ―não posso roubar Natura, não posso roubar Avon,
tudo tem coleguinha, vou ter que ir pra Dutra roubar carga.‖ Se não é ele, não tinha conhecido
a senhora, morria ali.
Ao ser perguntado sobre como era visto de forma geral naquela época:
Era autoritário, hoje estou mais light. Aquela pessoa que onde fui criado chegava respeitado,
certas pessoas, um viciado, eu chegava ele saía porque sabia que se falasse alguma coisa que
eu não gostasse, tipo que tinha ido na boca de fumo, eu já ia tomar uma atitude com ele. Então
eu era respeitado, autoritário, nunca violento. A violência vinha depois, porque toda ação tem
reação, se a senhora dá voz de prisão ao elemento e ele se nega, a senhora tem que usar os
meios necessários para contê-lo, aí muita gente diz que a polícia é violenta, não é.
E como os colegas de trabalho o descreveriam? Ele ainda brincou que era o tigre, e
que tinha virado um gatinho medroso.
25
A expressão ―o cara deu e não saiu‖ significa que ele apertou o gatilho da arma, mas esta falhou e o tiro não saiu.
26
―Colar as placas‖ é categoria nativa para paralisar e não conseguir se mover.
27
―Polição‖ é uma palavra muito usada para caracterizar bons policiais operacionais.
109
Como o ―Tigre‖, independentemente de já terem trabalhado com ele, todos o conheciam como
o ―Catiço‖28. Tem gente que me conhece de outros batalhões e calhou de falar para outros
colegas como eu era. Tem um oficial aqui que falou que dava tudo pra me ver trabalhando de
tanto que escuta de quem me conhece. Altamente operacional, se o tiro tá ali, eu vou pra lá.
Que nem uma vez numa favela que a gente começou a entrar e os caras começaram a recuar e
eu falei, ―se a gente não entrar quem é que vai entrar? A Comlurb, o caminhão de gás?‖ Eles
diziam que a bala tá voando e eu respondia: ―ué? Técnica, eu dou um rasteja, eu dou um
rasteja. Se a gente conseguir andar cinco metros a gente chega no poste, e a gente vai
chegando neles, ninguém tá com pressa, daqui a pouco tamo em cima deles. Agora ficar aqui
parado com o fuzil pendurado olhando pra cima que nem um mongol a gente não vai, esperar
o BOPE chegar? Eles são apenas uma polícia com mais treinamento, eles não são homens
diferentes da gente‖. Já falei isso Para um capitão do Bope que veio me dizer: ―ah, que eu sou
caveira‖. E eu respondi: ―só isso, porque entrar na favela com dez, vinte é mole, quero ver
entrar que nem eu entrava, eu e mais meu colega só e correndo‖. E eles corriam fugindo
porque reconheciam a gente. [...] Independente do que fato que aconteceu, 29 o pessoal tem
essa visão de mim e pergunta se não quero voltar a trabalhar na rua, digo que não. Não pelo
fato, mas foi uma opção minha, antes disso. Sou bem conceituado no batalhão, independente
de não estar trabalhando na rua, estou vivendo de fama. Até de short, chinelo e sem camisa no
bar comprando cerveja os garotos novos me respeitam porque sabem quem eu sou, mesmo
que não ande mais armado. Eles olham com estranheza, mas fica o famoso pé atrás: ―será que
o cara tá morto, não tá?‖ Não vão pagar pra ver né? Ficou o respeito.
4.2.1 O fato
Na porta da firma onde fazia segurança e voltava após sacar no banco o pagamento dos
funcionários, fui rendido com a arma na cara, com um tiro que não saiu, 30 me embolei com o
dito cujo, consegui correr pra trás do carro, no que eu fui sacar a arma, a arma tinha caído lá
quando eu me embolei com o cara, aí ele deu outro tiro, com a minha arma, que eu vi
nitidamente aquela luz amarela, o fogo que sai da boca do cano, linda, bela e formosa quando
tá pro outro lado, quando tá pro lado da gente não fica nada lindo, belo e formoso. Aí eu corri
até a esquina, voltei e fui pra delegacia fazer o registro. Fiquei um tempo lembrando, flashes e
mais flashes voltando na cabeça. Um colega me levou em casa e enchi a cara. Sentei no
botequim e enchi a cara pra ver se esquecia porque vinha tudo muito nítido, foi difícil. Essa
vez eu senti muito, me senti impotente. A impotência veio no momento que eu fui rendido, a
impotência veio depois de eu seguir normas de trabalho, de primeiro me abrigar para depois
sacar, aí ver que a minha arma tinha caído, me senti impotente duas vezes. O momento que eu
tive para reagir minha arma tava lá no chão. [...] Já teve uma outra vez, como eu disse, que o
cara veio me assaltar e falou que ia me matar e eu mandei dar, deviam ser ex-policiais. Mas
dessa vez eu senti mais, não sei por quê. No dia seguinte, fui cair na real que faltei o serviço à
noite, aí vim pro batalhão, agitado, sobressaltado, assustado. Encontrei a Ana, 31 que ao me ver
nervoso perguntou o que houve e quando eu contei ele perguntou se eu não queria conversar
com a psicóloga e vim parar na senhora porque ela marcou logo para o dia seguinte.
Na primeira consulta, ele relatou o fato e como ficou depois, e detectei todos os
sintomas de TEPT. Expliquei que o que estava acontecendo com ele era em decorrência do
ocorrido e tinha diagnóstico e tratamento, expliquei ambos em detalhes. Preocupei-me em
demonstrar que era algo conhecido, sem uma causa conhecida para a ciência, mas frisei o fato
de que se ele aderisse ao tratamento, tinha grandes chances de se recuperar.
28
Pedi para ele explicar o que significa ―catiço‖: é atentado, imbatível, destemido e temido.
29
Evento traumático que será descrito adiante.
30
O ladrão atirou mas a arma falhou e não disparou.
31
Psicóloga civil que exerce outras atividades diferentes da clínica de atendimento psicológico e que ele já conhecia há
muitos anos de outra unidade da PMERJ.
110
A senhora me mandou para a psiquiatria direto, lá me deram 15 dias de LTS e foi renovando,
renovando, renovando, depois me deram Apto categoria C, ou seja psiquiatria, maluco. 32 Mas
nunca tomei os remédios porque tenho receio de ficar dependente.
Estava inquieto, foi um impacto muito grande. Foi difícil de aceitar, Foi difícil de aceitar a
perda, não tô acostumado, sempre ganhei, ganhei, um dia perde, aí a cabeça pira, o cara não
aguenta, não. Ainda rodei atrás do cara. Toda hora voltava a cena, principalmente o tiro que
ele deu e não saiu e depois o primeiro tiro que ele deu com a minha arma, foram os dois
lances que mais perturbaram. Voltavam toda hora. [...] Foi difícil voltar a rotina, não
consegui. Andar de trem ficou difícil, minha vida era andar de trem. Tudo que lembrava o dia
do fato eu evitava, a camisa e a calça que eu usei no dia eu dei, o tênis também. Porque eu
olhava e lembrava o fato. Tudo eu mudei na minha rotina, como eu já tava em casa licenciado
não precisava pegar trem, só no dia da terapia, tava até evitando no início e vinha de ônibus
porque na primeira semana deixei passar oito trens sem conseguia entrar, ficava parado
olhando. Eu lembrava, eu indo de manhã naquele dia, olhava o trem, a academia e lembrava.
Ficava olhando o trem chegando e lembrando do dia. Ir ao banco também não ia, tirava
dinheiro só em caixa 24 horas no mercado, pagava pra sacar nesses caixas mas não ia no
banco. Evitava até o programa de rádio que ouvia todos os dias. Não estava dormindo direito,
dormia bem porque enchia a cara e voltava bêbado e apagava. Aí vi que tava entrando num
estágio de alcoolismo, precisava beber pra dormir senão não dormia, aí parei.
32
Preconceito presente na corporação ilustrado claramente.
111
boiola e psiquiatria para maluco: ―Psiquiatria não é pra maluco e psicólogo não é pra boiola,
vocês tem que parar com esse pensamento de vocês.‖
Fui me sentindo melhor com o passar do tempo, a paranoia foi terminando, comecei a entrar
no banco, observar em volta, comecei a andar no trem, voltou minha vivacidade.
Hoje lembro do fato, mas não me perturba nem me faz mal. Sobressaltado eu sempre fui,
sempre acordei com barulho voando no armário pra pegar a arma e ver o que foi. Hoje vou a
banco tranquilamente, tomo as precauções de sempre. Não ando armado só por que não
comprei outra arma, aquela ficou pro bandido. Já retomei minha vida toda. Hoje não bebo
durante o dia, nem de folga. Bebo mais no final de semana como lazer, não como obrigação.
Se der vontade durante a semana, bebo uma cervejinha. [...] Estava assistindo a um seriado
policial e um policial falou para a colega não falar nessa estória de estresse pós-traumático
que isso é besteira de psicólogo, que eles tinham que tocar o barco e daqui a pouco eles
trocavam um tirinho de novo e ficaria tudo bonzinho. Ele lembrou que pensava assim, até que
um dia fiquei abalado, achava antes que nunca ficaria. [...] Com o fato, o tigre virou um
gatinho com medo de tudo. Era um super-homem, continuo sendo, só que agora com uma
criptonita amarrada no pescoço, que tira as forças do super-homem. Mas eu também não tô
mais fazendo questão de ser super-homem, nem de ser tigre. O serviço policial militar acabou,
não vou me envolver em ocorrência, não ando armado, vou pro samba, não sinto falta da
arma, andava com duas armas. Sinto a necessidade de ter arma dentro de casa para uma
eventual necessidade, mas tava com uma no dia do fato e não consegui me defender. Tem
hora que faço essa analogia, tava armado e não consegui me defender, será que ter uma arma
dentro de casa vai resolver meu problema. Mas deixa lá, se o tigre incorporar, usa, se não
incorporar a gente não usa.
Bruce faz a reflexão de que mudou com a vivência dessa situação traumática, tem
consciência do que mudou e considera que no geral foi uma mudança positiva. Concordo que
ele teve uma recuperação positiva do trauma, houve uma ressignificação de vários aspectos da
vida, e isso costuma ocorrer eventualmente com algumas pessoas, não rotineiramente.
Me tornei uma pessoa mais humana, passei a ver que não era Deus, que não ia resolver os
problemas policiais todos do mundo, hoje me dou com a sogra que não gostava de mim, já
tinha ocorrido de ter batido na filha dela. Eu era um troglodita, hoje eu saio e entro
cumprimento todo mundo, independente de ser coronel, gari... Hoje tô mais calmo, mas
quando precisa eu reajo. Bati na ―crackuda‖ 33 que assustou minha filha outro dia, mandei o
cara ir embora do bar porque é grosso e abusado com os outros e ia acabar sendo comigo
também e eu ia querer dar um tiro na cara dele. Tô bonzinho e os outros vão querer montar.
Eles acham que tô morto, dou um esporro e fica todo mundo quietinho de novo. Tem pessoas
que eu chego no bar e ainda vão embora. Mas as pessoas sabem que nem armado eu ando
mais e não escondo, ando de short sem camisa. [...] Não entendo até hoje porque eu fiquei
tanto tempo remoendo isso aí, hoje eu tiro de letra. Hoje aceito, vejo que pra mim foi melhor,
minha vida mudou. Hoje costumo dizer o seguinte: aconteceu comigo, mas adiantou pra
senhora, caí de paraquedas no momento que a senhora tava estudando o assunto, esse fato já
serviu pra alguma coisa. E também hoje eu não faço mais segurança, eu vi que posso viver
sem a segurança, não preciso me estafar, ficar longe da minha mulher, longe da minha filha,
porque é um dinheiro que ás vezes não compensa, é ilusório, você ganha segurança, mas gasta
roupa, calçado, alimentação, no último dia da semana você junta o pessoal e toma aquela
cervejinha e quando vai ver no final não sobra nada. Em casa eu passei a economizar, não
gasto roupa, não tenho que me alimentar fora.
33
Termo utilizado não somente na PMERJ, mas por varas setores da população para designar usuários de crack.
112
Seu tratamento psicológico durou cerca de um ano, e ao longo deste falei sobre esta
pesquisa, expliquei o objetivo de mostrar que TEPT acontece com qualquer um, não tem a ver
com ser frágil, como se pensava na 1ª Guerra Mundial, e os profissionais foram vendo que era
inadequado e que de fato poderia ocorrer com qualquer um, apesar de os transtornos mentais
ainda serem um tabu nos dias atuais, especialmente no meio policial. Afirmei que ele já
passou por inúmeras situações que demonstram que ele não é um ―fraquinho‖, ele tem o etos
guerreiro policial, que não é qualquer pessoa que tem, e ainda assim foi acometido por este
transtorno e pode ter um tratamento imediato que muitos não têm por não buscarem, por
acharem que que não é nada, que vai passar e acabam buscando na bebida ou outras drogas
um subterfúgio, o que não melhora, até piora. Ele próprio não iria procurar atendimento
psicológico se não fosse a orientação da psicóloga que encontrou por acaso e justamente por
não saber que o que vinha sentindo necessitava de tratamento psicológico: ―Achava que
estava ficando maluco‖.
Demonstrei para ele como essa fama de bom policial, de ―brabão‖, pode ajudar
outros policiais a entenderem que um momento em que você precisa de um tratamento mental
não desfaz quem você é, não compromete toda sua competência, toda sua força. Ele não
enfrentou preconceito por estar no psicólogo, psiquiatra e de LTS, por saberem de seu
histórico e convidei-o a participar desta pesquisa por essas razões.
Acredito que alguns fatores tenham contribuído para sua recuperação, a saber:
1) Não foi vítima de brincadeiras ou menosprezo. Ele encontrou apoio social do
entorno, de seus familiares, amigos e mesmo dos colegas de trabalho, incluindo
superiores hierárquicos.
2) O atendimento foi oferecido imediatamente, iniciando-se dois dias após a
vivência do fato traumático. A presteza do suporte é muito importante para o
sucesso do tratamento.
3) Ele foi logo esclarecido tecnicamente sobre os sintomas que vinha apresentando,
o que minimizou as fantasias sobre estar enlouquecendo e a busca por
subterfúgios como o álcool.
113
CONCLUSÃO
Por mais que os discursos atuais da segurança pública alardeiem na mídia um novo
modelo de policial militar, o que eu vejo no dia a dia ainda é o modelo de policial combatente
armado para a guerra e de quem se espera que esteja sempre pronto para tal, exatamente como
as palavras da canção do policial cantada com vigor em inúmeras cerimônias na PMERJ, que
sempre são uma afirmação da identidade de policial militar: ―ser policial é enfrentar a morte e
mostrar-se forte no que acontecer‖.
Busquei demonstrar que esta aderência a um padrão de sujeito que está sempre pronto
para ação e nunca se abala os leva a uma idealização do eu, a de serem super-homens acima
de quaisquer sofrimentos psíquicos e emocionais. Isto dificulta e até mesmo impossibilita a
busca de tratamento psicológico e psiquiátrico, estimulando características de um etos
masculino exacerbado de virilidade, ainda muito presentes em nossa sociedade e introjetadas
desde cedo no sexo masculino, que ensina a não chorar, ser forte, não sentir medo. A negação
do medo é culturalmente introjetada e reforçada sutilmente nos discursos e nos
comportamentos.
Com isso, muitas vezes sintomas psicológicos são desvalorizados e não se busca
tratamento adequado. Comorbidades de transtornos psíquicos, como dores de estômago, dores
de cabeça ou desconforto difuso acabam levando a pessoa a buscar especialidades médicas
onde se medica o sintoma sem identificá-lo como decorrente de um problema emocional e
psíquico e consequentemente sem encaminhamento adequado para o psiquiatra e o psicólogo.
Nos últimos anos, têm sido realizados vários concursos para soldado da PMERJ, com
vistas à criação de efetivo para o novo modelo de policiamento, que são as Unidades de
Polícia Pacificadora e sem dúvida, também por conta dos grandes eventos mundiais, Copa do
Mundo em 2012 e Olimpíadas em 2016. Considerando que cada novo policial traz consigo
uma família, podemos calcular o enorme impacto que o aumento do número de componentes
da corporação tem tido para as unidades de saúde, que não receberam o aumento de pessoal
necessário para acompanhar o aumento da demanda. Os serviços estão lotados e é utopia
exigir um atendimento global, que dê conta deste tipo de situação, de um especialista neste
cenário.
Sendo assim, é muito importante trabalhar no dia a dia desses profissionais a
desmistificação do policial super-homem, com dons superespeciais e acima de fraquezas
114
34
Só para ilustrar: uma oficial psicóloga passou no pátio do batalhão abrigada debaixo de seu guarda-chuva em dia de forte
chuva. O comandante da unidade gritou da varanda para fechar o guarda chuva no pátio porque militar está acima do tempo.
115
sabido e comentado que muitas pessoas encenam sintomas psiquiátricos para obterem
licenças.
Por conta do exposto, uma das sugestões finais desta pesquisa é que sejam realizados
trabalhos constantes com a tropa a respeito da conscientização de transtornos psíquicos
comuns que existem em policiais no mundo todo. A explicitação de que há doenças
ocupacionais comuns a determinadas categorias profissionais minimiza os tabus, os
preconceitos.
A partir da espontaneidade em abordar assuntos do psicológico, que são o tema desta
pesquisa e fazem parte do rol de doenças ocupacionais de policiais, essas pessoas poderão ser
tratadas quando necessário, sem se preocuparem em fingir para não serem ridicularizadas ou
mesmo não buscarem tratamento, por não saberem que os sintomas que os estão afetando são
um problema que pode ser tratado. É importante criar espaços e momentos em que os
policiais possam não só ouvir informações, mas falar de sintomas experimentados e de
situações traumáticas vivenciadas (inclusive do passado, pois traumas anteriores são um fator
que predispõe ao desenvolvimento do TEPT), como uma parte deste processo de
desmistificação de policiais ―blindados‖, super-homens com superpoderes.
Espaços que facilitem e propiciem a fala são fundamentais, uma vez que é preciso
falar sobre o que ocorreu, organizar mentalmente e com isso lidar melhor com as emoções e
sensações associadas à vivência traumática, que não necessariamente tem que ter sido
vivenciada como tal pela pessoa – no caso, pelo policial. E muitas vezes, como foi exposto, o
policial não considera que precisa de nenhuma pausa, mas é realmente preciso ―trabalhar‖
bem um incidente crítico para passar por outro, pois se as reações emocionais provenientes de
um incidente crítico anterior não tiverem sido bem trabalhadas, e sim, suprimidas, fica mais
difícil lidar com um incidente posterior – por ―trabalhar‖ os incidentes, quero dizer falar sobre
eles para elaborá-los, na consulta psicológica individual ou em grupos.
Sendo assim, também se faz necessária uma pausa na rotina de policiamento para
atendimento e avaliação psicológica, pois uma vez que não há nenhum super-homem e o
policial é um homem comum com uma atividade incomum, que é se expor a maiores riscos,
passar por situações estressantse e traumáticas gera um impacto emocional, quer a pessoa
tenha percepção ou não deste impacto em si mesmo, no seu físico e no seu psiquismo. As
reações emocionais causadas por tal impacto precisam ser elaboradas para que as
possibilidades de ocorrência de danos psíquicos maiores ou posteriores sejam evitadas ou,
pelo menos, minimizadas.
116
Para que isto seja possível, é necessário apoio da corporação, do alto escalão, pois
esses espaços têm que ser criados durante o expediente e ser considerados parte das horas de
trabalho. Cabe informar que já me foi sugerido realizar atividades em grupos com policiais
em seus horários de folga, ideia que rejeitei. Entendo que o suporte psicológico deva fazer
parte do dia a dia da atividade profissional do policial militar, e por isso afirmo que isto só
será possível com total apoio da alta cúpula da PMERJ e da Segurança Pública para que esse
espaço seja respeitado.
Pode parecer simples mas não é, pois tirar policiais das ruas quebra a rotina das
unidades operacionais, que é acelerada e faz com que postos de policiamento fiquem
desocupados, causando transtornos aos policiamento da área. Foi isso que sempre ouvi nos
momentos em que tentei realizar atividades com a tropa sem apoio de instâncias superiores.
Nenhum comandante quer ―perder combatentes‖ para que estes estejam numa atividade com o
setor de psicologia, pois ele precisa de homens patrulhando as ruas e, por sua vez, isso lhe é
cobrado por seus superiores. Além do que, os comandos estão acostumados a acreditar que os
policiais estão sempre querendo fugir do serviço. Com isso, o apoio de superiores é
indispensável e estes precisam encarar que esse tipo de proposta pode contribuir na
diminuição futura de licenças médicas por transtornos mentais e emocionais, devido ao
suporte psicológico que estará sendo recebido.
É preciso atentar para a possibilidade de haver manipulação quanto aos sintomas do
trauma e suas consequências psicopatológicas, pois o diagnóstico de TEPT poderia resultar
em importantes ganhos através de licenças e mesmo reforma. Mas essa possibilidade
realmente não pode ser uma justificativa para não dar atenção ao adoecimento psíquico entre
policiais, tantas vezes negado, sobretudo entre oficiais combatentes.
Para endossar a existência desta questão, solicitei aos entrevistados indicações de
policiais que apresentassem alguma mudança de comportamento a partir da entrada na
corporação, para que esses também fossem entrevistados. Todos, sem exceção, mesmo que
durante a entrevista discordassem de que a profissão pudesse adoecer o homem, se lembraram
de conhecidos que apresentavam ―comportamentos estranhos‖ ou ―ficaram malucos‖ (termos
utilizados pelos entrevistados) após alguma situação vivida no trabalho policial. Essa
solicitação de indicações foi a maneira que encontrei de ultrapassar o emparedamento da
corporação, que nega o problema do adoecimento psíquico relacionado à atividade
profissional.
Tenho plena consciência de que o enfrentamento ao crime é necessário e inerente a
essa profissão, e que sempre será um fato que os policiais estarão mais suscetíveis a riscos do
117
que a população civil. Mas é preciso apontar que um alto preço está sendo cobrado por esses
riscos. Sendo assim, o que deve ser aperfeiçoado, além de técnicas policiais e treinamentos
nas escolas de formação, é a estrutura de atendimento em saúde mental oferecida a esses
profissionais, estrutura que deve obrigatoriamente considerar a tendência à ocorrência de
transtornos em virtude dessa atividade laboral arriscada e estressante.
Mesmo que muitos policiais desenvolvam suas atividades sem comprometimento
emocional e psíquico, ainda que desenvolvam comportamentos paranoides – que creio que
são naturalmente desenvolvidos em virtude do dia a dia da profissão, por ficarem com a
atenção sobressaltada as 24 horas do dia, sempre olhando o entorno, procurando algo errado e
sempre prontos para reagir a algum perigo. Acredito e comprovo que muitas pessoas
introjetam todos esses comportamentos, que não são partilhados pela grande parte da
sociedade civil, mas com certeza não são restritos aos policiais militares e sim às pessoas mais
atentas à criminalidade e aos riscos inesperados e conseguem conviver saudavelmente com
eles, podendo até ser consideradas esquisitas e exageradas por amigos civis e familiares, mas
sem prejuízos na convivência.
Na PMERJ, atualmente, só é realizado um trabalho reativo, quando um fato acontece e
somos acionados para agir. Ou quando um policial busca atendimento no serviço e é atendido
por nós. Mas a sugestão que fiz acima é de um trabalho sistemático que se antecipe às
demandas que são disparadas sempre que alguma ocorrência gere polêmica, escândalo
público ou até mesmo uma tragédia pessoal com repercussão midiática.
Ressalto que sugiro esse tipo de ação porque o desgaste e o comprometimento
psíquico e especificamente a ocorrência de estresse pós traumático estão diretamente
relacionados à especificidade do serviço policial militar e não a deficiências na seleção de
pessoal ou ao treinamento recebido. Isto seria dizer que o problema está no indivíduo, tal
como se pensava na Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial. Hoje muitos estudos
comprovam que não está; este é um problema que pode atingir a todas as pessoas e os
combatentes militares são um grupo de risco, independentemente de força ou fragilidade por
terem maior suscetibilidade de estarem expostos a situações traumáticas recorrentemente.
Chega de atribuir erros em ocorrências ao histórico do policial envolvido na situação e
de considerar que a seleção dos recrutas é falha. Chega de abafar questões que são
institucionais com a exclusão da corporação de policiais envolvidos em tais ocorrências. A
PMERJ, assim como a Secretaria de Segurança Pública, precisa encarar tais situações de
forma mais ampla e considerar que, em ocorrências desastrosas, é possível existir alguma
decorrência de adoecimento prévio no trabalho. Importante que esta postura preventiva venha
118
a ser política pública com o investimento contínuo no suporte psicológico dos PMs. É preciso,
pois, repensar como são as condições de trabalho desses profissionais, o reconhecimento (ou a
falta de reconhecimento) dessa classe de trabalhadores para que se possa reverter a situação
atual em que os transtornos mentais passaram a ser a maior causa de afastamento do policial
do serviço de prevenção nas ruas, que é sua principal atividade, na qual ele se reconhece
como policial. Tudo isso tem implicações que vão muito além da redução do efetivo policial
patrulhando as ruas, repercutindo de forma global na vida dos sujeitos acometidos por
transtornos mentais, afetando toda a família, gerando problemas também naqueles que os
rodeiam – por exemplo, problemas de saúde, problemas de relacionamento, problemas
escolares nas crianças.
Dentre as doenças mentais, nesta tese meu interesse especial está no TEPT, e desejo
apontar que existem policiais militares que desenvolvem tal transtorno, e que não se pode
prever quando, como e quem o desenvolverá após uma situação estressante de grave ameaça à
vida. Isto não significa dizer que o transtorno atinge todos e da mesma forma. É fato que nem
todos os policiais vivenciam esse tipo de atividade profissional com sofrimento ou
comprometimento de sua vida e suas relações. Assim, a melhor alternativa de atenção à saúde
mental dos policiais seria sempre oferecer atendimento psicológico em formato que deve ser
definido como protocolo a todas as situações deste porte vivenciadas por policiais militares na
PMERJ, mesmo entendendo que a demanda por esses atendimentos será alta. No Estado do
Rio de Janeiro, ainda são constantes os enfrentamentos com marginais à lei em confrontos
armados, apesar de considerável diminuição dos confrontos, com a nova política de
policiamento das Unidades de Polícia Pacificadora.
Não ouso com esta tese sugerir a cura ou o tratamento mais efetivo para o TEPT;
pretendo apenas demonstrar a necessidade de se considerar este transtorno como existente na
corporação, para que possa ser alvo de atenção e possa haver futuros estudos sobre o tema e
apontar algumas iniciativas dentro de minha especialidade, que é a psicologia, que podem ser
úteis na minimização dos danos do TEPT.
Meu intento é incitar a discussão, pois acredito que uma boa forma de tratar a
dificuldade de aceitação da problemática psíquica é colocá-la à mostra na corporação, é trazê-
la para a discussão entre as pessoas que compõem a corporação. O quadro de psicologia pode
ter grande participação na desconstrução de premissas falsas, tais como ―homem não chora‖
ou ―policial tem que ser forte e destemido sempre e a todo momento‖, que, acredito, trazem
muita complicação e dificuldade para o universo masculino acessar suas emoções e buscar
ajuda profissional, pois só irá buscar ajuda quem entender ter um problema.
119
desse autocontrole depende a própria vida; este mesmo autocontrole se torna prejudicial
quando o indivíduo pretende ignorar estas emoções rigidamente, tentando negar sua
existência. Mas se elas estão dentro do seu psiquismo, encontrarão alguma forma de
eclodirem, o que acaba resultando em somatizações, problemas de saúde físicos que têm
origem psíquica. Nesses casos, quando são tratados somente os sintomas físicos, estes
dificilmente encontram remissão total, pois a raiz deles – os problemas emocionais – continua
não tratada.
A pouca informação sobre este transtorno leva pessoas a não compreenderem suas
dificuldades psíquicas e com isso não buscarem atendimento adequado com profissionais
psiquiatras e psicólogos, apesar de se sentirem inadequadas em seu cotidiano, na realização de
suas atividades profissionais e no convívio social a tal ponto que podem parar de funcionar,
paralisar, o que muitas vezes acontece. Infelizmente, somente nesta fase tão complexa é que a
pessoa é encaminhada ao psiquiatra e inicia o tratamento.
Sei que o assunto que trago é problemático, pois trata-se de um desequilíbrio interno
dos indivíduos, invisível a olho nu. O problema é difuso, tem origem tanto num aspecto
cultural que começa muito antes da entrada na PMERJ, mas ainda crianças, de que os
meninos têm emoções diferentes e não podem admitir nem demonstrar o que é encarado como
fragilidade e coisa de menina, como chorar, admitir sentir uma dor. E também é estimulado
pelas especificidades da atividade profissional, que inclui alto risco, enfrentamento com
marginais à lei dispostos a tirar a vida da pessoa somente por sua profissão, alto nível de
estresse no dia a dia do exercício profissional.
Para reconhecer o transtorno do estresse pós-traumático, há que se ter olhos capazes de
enxergar além do que os olhos nus podem ver, uma vez que estas feridas não são visíveis da
mesma forma que os machucados físicos. Elas são feridas que machucam o íntimo e corroem
a alma, podendo modificar toda a existência do indivíduo e das pessoas a seu redor.
Grossman (2007) aponta que o TEPT sempre esteve presente entre nós, mas o longo
retardo com que ele se manifesta e a natureza errática de sua ocorrência nos tornaram um
pouco parecido com os antigos celtas, que não compreendiam a ligação entre atividade sexual
e gravidez. Hoje, porque conhecemos a magnitude deste problema, devemos dar a atenção
necessária para minimizar sua ocorrência e seus danos, pois é sabido com clareza que a
qualidade da estrutura de apoio social ao traumatizado é determinante da magnitude da reação
pós-trauma. Para tornar o quadro ainda mais complicado, também é preciso levar em conta
que apoio social informal é algo que dificilmente acontece da parte da sociedade em relação
aos policiais militares no Rio de Janeiro.
121
Daí minha preocupação com o apoio que a corporação pode e deve dar a seus
componentes, e a assistência psicológica é uma das formas de demonstrar esse suporte, tanto
na forma do atendimento clínico, como na forma de intervenções institucionais junto à tropa
em geral e junto aos oficiais, com vistas a esclarecer sobre questões psicológicas e desordens
mentais e emocionais, visando minimizar os preconceitos, tabus e resistências a respeito,
porque o apoio dos superiores hierárquicos após ocorrências polêmicas e com morte de
colegas, é fundamental e não muito valorizado, segundo tenho acompanhado.
No capítulo 2, item 4, citei o caso de Anderson, que foi atingido por estilhaços da
janela frontal da viatura enquanto dirigia, além de ter sido alvejado junto com o colega Lopes
ao se aproximarem de um veículo suspeito preparando-se para a abordagem. Lopes teve que
assumir a direção e chegar rápido ao hospital. Quando deixou Anderson no hospital, já estava
muito nervoso e teve que ir à delegacia dar o depoimento sobre a ocorrência. Nos serviços
seguintes, também teve que dar vários novos depoimentos e alegou ter percebido uma grande
preocupação de seus superiores hierárquicos com a perda material – a viatura – e não com o
colega baleado ou com ele. Imediatamente, voltou às ruas com outro policial. Como fica o
estado emocional deste PM, que passou por tal situação com o colega, achando que ele estava
morrendo ao seu lado? Ele foi a uma consulta porque o amigo chamou, mas não voltou.
Talvez por ser longe de seu trabalho e da sua residência, seu batalhão não tem psicólogo e
nenhum outro atendimento havia sido oferecido, nenhum profissional de saúde ficou sabendo.
Eu soube por acaso, através do policial baleado, e tentei dar assistência, mas nada
sistematizado e continuado, o que dificulta até mesmo que os policiais entendam que é
importante dar atenção ao que ocorreu e não simplesmente deixar o tempo passar achando que
assim ―tudo passa‖, que o ‖tempo cura tudo‖.
Pretendo ter instigado o leitor a uma inquietação acerca do adoecimento de quem os
protege. Para considerar a importância deste tema, não podemos levar em conta somente as
centenas de policiais afetados pelo transtorno, mas precisamos incluir as centenas de
casamentos arruinados, com impacto sobre mulheres, crianças e gerações futuras, pois
entendemos agora que este distúrbio psíquico afeta quem está próximo também quando
compromete a vida do indivíduo como um todo, não só sua atividade laboral. É de fato um
caso de saúde pública que não pode ser considerado individualmente e deve ser objeto de
atenção não somente dos profissionais da PMERJ, mas de todos os envolvidos e interessados
em segurança pública.
Espero ter conseguido partilhar a realidade que assisto e com a qual convivo, do
cotidiano desses policiais, para que os leitores conheçam mais da Polícia Militar. Penso que
122
está na hora de se valorizar os policiais militares que são a representação do Estado mais
próxima da sociedade, chamados para intervir nos mais variados problemas e
independentemente de sua missão constitucional de manutenção da ordem, estão sempre,
durante as 24 horas do dia, auxiliando a população, estando acessíveis a todas as camadas da
sociedade.
Um oficial uma vez falou sobre sua percepção de que a população civil vive num
mundo fantasioso e os policiais enxergam a realidade como ela é, perigosa, cheia de
imprevistos perigosos, sendo por isso necessário estar sempre atento e consciente das
situações a todo o momento. Eu própria me sinto uma comprovação da minha pesquisa:
realmente, a experiência de conviver com policiais, seu dia a dia, as estórias de serviço,
transformam a subjetividade do indivíduo, tornando-o mais observador, mais atento e
desconfiado. Infelizmente, na vivência dos policiais operacionais, isso atinge graus elevados e
por vezes é uma paranoia consequente do exercício da profissão. A estatística apresentada,
mesmo contendo algumas falhas devido a dificuldades de sistema, subnotificações e podendo
ser melhor explorada em um desdobramento desta tese, já demonstra claramente a magnitude
dos transtornos mentais na PMERJ quando aponta no quadro 7 na página 92 que estes são a
segunda causa de afastamento do serviço de atividade fim de praças e terceira de oficiais. Esta
é uma informação extremamanente relevante que quero deixar ressaltada no fechamento este
trabalho.
Posso ter falhado na tentativa de desempenhar a função de pesquisadora em ciências
sociais, já que todo meu percurso foi dentro da psicologia clínica. Posso ter deixado de
perceber aspectos importantes nas minhas observações ao longo deste trabalho com PMs, nas
relações deles comigo, ou nas falas registradas em entrevistas e consultas ao longo de anos, ou
mesmo não ter dado a atenção devida a alguns atores nesse processo, mas valho-me das
palavras de Barth (2000, p. 136): ―há posicionamentos e todas as visões são parciais [...] o que
de forma alguma diminui a primazia a ser dada às realidades que as pessoas constroem, aos
eventos que elas ocasionam, e às experiências que elas obtêm‖.
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Ser Policial
é, sobretudo, uma razão de ser
É, enfrentar a morte,
mostrar-se um forte
no que acontecer
Ser Policial
é, sobretudo, uma razão de ser
É, enfrentar a morte,
mostrar-se um forte
no que acontecer.