Capacitismo e Lugar de Fala

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CAPACITISMO E LUGAR DE FALA: REPENSANDO BARREIRAS ATITUDINAIS

Letícia Souza Mello1


Luiza Griesang Cabistani2

RESUMO: O presente artigo aborda o tema da deficiência e suas diferentes


compreensões ao longo da história até chegar ao atual arcabouço legal nacional e
internacional. A partir do modelo social, são identificadas barreiras que potencializam
a existência do capacitismo, preconceito que classifica os sujeitos conforme a
adequação de seus corpos a um ideal de capacidade funcional. O trabalho propõe
como marco teórico a teoria do lugar de fala, que permite refletir sobre a situação
das pessoas com deficiência enquanto grupo social subalterno desprovido do
discurso hegemônico. Nesse sentido, aborda-se a experiência de uma oficina
proposta pelas autoras, também oficineiras, para debater discursos e práticas
capacitistas a partir da campanha virtual #écapacitismoquando.

PALAVRAS-CHAVE: Barreiras. Capacitismo. Deficiência. Lugar de fala.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Capacitismo e barreiras atitudinais. 3 Discurso e lugar de


fala. 4 #ÉCAPACITISMOQUANDO: repensando o capacitismo a partir de uma
oficina. 4.1 As publicações no Twitter: #écapacitismoquando. 4.2 A experiência da
oficina. 5 Considerações finais. 6 Referências.

1 INTRODUÇÃO

O universo da deficiência é bastante amplo e diverso, com suas


peculiaridades e tipos, os quais se dividem, conforme as classificações mais atuais,
entre sensorial, intelectual, física ou múltipla (quando ocorre a associação de duas
ou mais deficiências). As pessoas com deficiência, entendendo esta como
manifestação da diversidade humana, são diferentes e heterogêneas, sendo que
cada uma delas tem suas predileções e respostas individuais para lidar com a sua
condição (OMS, 2011).
Em dezembro de 2006, a Assembleia Geral da Organização das Nações
Unidas (ONU) adotou a resolução que estabeleceu a Convenção dos Direitos das
1
Psicóloga, analista da Defensoria Pública do Estado do RS
2
Bacharel em Direito, analista processual da Defensoria Pública do Estado do RS

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Pessoas com Deficiência, cujo objetivo é “proteger e garantir o total e igual acesso a
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com
deficiência, e promover o respeito à sua dignidade”. A convenção promove a total
participação de pessoas com deficiência em todas as esferas da vida, desafiando
estereótipos, preconceitos e estigmas. A ONU, através de seu Comitê para os
Direitos das Pessoas com Deficiência, monitora de que forma os países que
ratificaram a convenção estão evoluindo, fazendo análises regulares e emitindo
recomendações sobre como as violações podem ser combatidas e os direitos
garantidos.
Após a pactuação da referida convenção e do seu Protocolo Facultativo 3
entra em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) n° 13.146/2015. O documento legal
consolidou princípios e diretrizes do mais recente tratado de direitos humanos do
sistema global de proteção da ONU, além de pormenorizar as normas que deverão
ser observadas para a garantia do exercício dos direitos das pessoas com
deficiência no país.
Nesse sentido, restou organizado verdadeiro marco regulatório para as
pessoas com deficiência, cujos direitos e deveres antes estavam dispersos em
outras leis, decretos e portarias. Assim, regulamentou-se limites e condições, tendo
sido atribuído responsabilidades para cada ator na consolidação da sociedade
inclusiva (SETUBAL; FAYAN, 2016). Ainda que a lei garanta os mesmos direitos às
pessoas com e sem deficiência, devido às desvantagens impostas pela sociedade,
por meio de barreiras, as pessoas com deficiência nem sempre conseguem exigir
seus direitos nas mesmas condições que uma pessoa sem deficiência.
Apesar do último Censo apontar que 23,9% da população brasileira
possui, ao menos, um tipo de deficiência 4 (IBGE, 2010), falar sobre este assunto é
se aproximar de um campo pouco estudado, por vezes ignorado e, com poucos
incentivos à pesquisa (DINIZ, 2003). A pouca produção acadêmica existente sobre o
tema ainda está muito ligada aos campos da biomedicina, da psicologia do
desenvolvimento ou da educação “especial”.

3
Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março
de 2007.
4
As categorias usadas pelo IBGE, à época, foram visual, auditiva, motora ou intelectual.

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A especificidade da deficiência está descrita nos corpos dos sujeitos. Sua
compreensão passou por várias configurações, desde concepções religiosas e
sobrenaturais, passando pelo modelo biomédico, até chegar ao modelo social, o
qual se sobrepõe nas legislações nacional e internacional. Segundo este modelo, a
deficiência está no meio, e não no sujeito, de modo que a existência de barreiras
limita a autonomia das pessoas com deficiência. Por trás desses obstáculos, surge o
capacitismo, um processo sociocultural que discrimina pessoas cuja variação
corporal é considerada desviante (NUERNBERG, 2018).
Para abordar o tema proposto, utilizou-se como referência teórica a teoria
do lugar de fala, a qual busca visibilizar discursos contra hegemônicos e
experiências historicamente compartilhadas por grupos subalternos socialmente
construídos (RIBEIRO, 2017). Desde esta perspectiva, os acessos possibilitados e
os constrangimentos que os sujeitos – enquanto grupo social – enfrentam são
semelhantes a todas as pessoas que compartilham a mesma localização social nas
relações hierárquicas de poder. Tal marco teórico permite refletir sobre a situação
das pessoas com deficiência enquanto grupo social subalterno, desprivilegiado do
discurso em relação às pessoas sem deficiência, pois está distante do sujeito
“saudável e normal”.
Nesse sentido, o presente trabalho aborda a oficina ministrada pelas
autoras durante o evento de qualificação interna promovido pela Defensoria Pública
do Estado do Rio Grande do Sul (DPE-RS) intitulado “Diversidade e Inclusão Social”.
Além do marco teórico referenciado, para a condução da atividade utilizou-se a
campanha “#écapacitismoquando”, surgida nas redes sociais, a fim de ampliar o
debate a respeito do preconceito contra as pessoas com deficiência. O espaço
promovido buscou pensar tanto a inclusão do público interno – servidores – como o
melhor atendimento do público externo – assistidos.

2 CAPACITISMO E BARREIRAS ATITUDINAIS


O preconceito às pessoas com deficiência configura-se como um
mecanismo de negação social, já que as diferenças são vistas como carência, falta
ou impossibilidade. O caráter específico da deficiência está inscrito no próprio corpo
do sujeito, sendo este considerado inábil para uma sociedade que demanda cada
vez mais seu uso intensivo, levando-o ao desgaste ou, ainda, à “construção de uma

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corporeidade que objetiva meramente o controle e a correção, em função de uma
estética corporal hegemônica” (SILVA, 2006, p. 426).
No Egito Antigo, a deficiência era entendida como provocada pelos “maus
espíritos”. Enquanto a nobreza possuía acesso a tratamentos, os pobres com
deficiência eram usados como atrações em circos ou como objetos de estudos
(SILVA, 1987 apud SCHEWINSKY, 2004, p. 8). Já na Grécia e em Roma, o corpo
forte e belo era valorizado para que pudesse participar de guerras, porém aquele
que não correspondia a esse padrão poderia ser, inclusive, eliminado, legitimando,
até mesmo, a condenação de crianças que possuíam algum tipo de deficiência
(SCHEWINSKY, 2004).
Apenas a partir do século XVI a medicina apropria-se do campo da
deficiência e esta deixa de ser compreendida como advinda de questões religiosas e
sobrenaturais, passando a ser vista como científica e passível de tratamento. No
século XVII são criados os hospitais, que serviam para exclusão daqueles que eram
percebidos como doentes. Somente nos séculos XIX e XX, passam a existir
programas de reabilitação global para as pessoas com deficiência, práticas
influenciadas pela filosofia humanista e pela Revolução Industrial, quando os países
começavam a se deparar com a existência de pessoas mutiladas após as duas
grandes guerras, além daquelas que haviam sofrido acidentes de trabalho nas
indústrias (SCHEWINSKY, 2004).
Nas sociedades atuais, grande parte das iniciativas sociais é dirigida a um
sujeito universal, comumente representado pelo homem “padrão” e idealizado,
sendo a exclusão, desse modo, a negação de toda a diversidade humana. Medeiros
e Mudado (2010) explicam que, ao negar os imperativos éticos da responsabilidade
e do compromisso com os seres humanos, a exclusão social tinge-se de preconceito
ao afirmar um ideal de homem biologicamente perfeito. Assim, a desigualdade pode
significar a exclusão de muitas pessoas de uma efetiva participação na vida social.
De acordo com Silva (2006, p. 121), “a deficiência não é uma condição
estática, natural e definitiva”, uma vez que está firmada nas relações e interações
que determinam sua percepção na sociedade. Trata-se, assim, de uma diferença
que surge no processo de produção da existência dos povos, em momentos
históricos e locais distintos, assim como as crenças religiosas ou as diferenças
étnicas, por exemplo.

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Atualmente, o arcabouço legal brasileiro a respeito do tema tem como
base dois principais documentos: a Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e a LBI. A deficiência passa a ser entendida como o
resultado produzido entre a interação do impedimento de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, com uma ou mais barreiras (impedimento x
barreira = deficiência)5. E a avaliação desta, quando necessária, deve levar em
consideração diversos aspectos, tais como os impedimentos nas funções e nas
estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação
no desempenho de atividades e a restrição de participação 6 (BRASIL, 2015).
No entanto, o atual paradigma para o tratamento das pessoas com
deficiência vem se consolidando há poucas décadas. Assim sendo, para
compreender a temática da deficiência, cabe mencionar a discussão acerca de seus
modelos que, em diferentes períodos históricos, tiveram transformações
fundamentadas pela necessidade das pessoas e pelos sistemas social, político e
econômico.
O modelo caritativo compreende a pessoa com deficiência como tendo
uma vida trágica e sofrida, merecedora de ajuda e caridade. Os cuidadores têm
poderes plenos no tipo de atendimento que a pessoa recebe. Com esta perspectiva,
surgem espaços especializados que oferecem serviços, normalmente, menos
desafiadores intelectualmente, limitando a entrada da pessoa com deficiência nos
meios acadêmicos, laborais e sociais (AUGUSTIN, 2012).
Já o modelo biomédico tradicional visualiza, primeiramente, a deficiência,
percebendo a pessoa como possuidora de uma patologia e oferecendo um papel
passivo de paciente. Este padrão busca uma “normalidade” de funcionamento físico,
sensorial e intelectual. Com um precoce diagnóstico, pode reduzir a incidência da
deficiência, pois ignora o papel das estruturas sociais para a opressão dos
deficientes. A crítica se dá no sentido de que seus esforços são voltados
exclusivamente à cura, desconsiderando os aspectos sociais e emocionais
implicados na deficiência (AUGUSTIN, 2012). No século XIX, este modelo
“representou uma redenção ao corpo com impedimentos diante da narrativa religiosa
5
Para explicar a deficiência, adota-se, com fins didáticos, a fórmula “impedimento x barreira =
deficiência”, uma vez que aquela é o resultado da interação entre os impedimentos e as barreiras
impostas. Logo, quando não há barreira, não há deficiência. Nesse sentido, se uma pessoa possui
um impedimento, como a utilização de cadeiras de roda (10), mas não há barreiras, pois há rampas
em determinado local de acesso (0), a deficiência não existirá (10 x 0 = 0)
6
Art. 2º, §1º da Lei Brasileira de Inclusão.

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do pecado ou da ira divina”, sendo posteriormente contestado pelo modelo social
(DINIZ, BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 66).
O modelo social, surgido entre as décadas de 60 e 70 7, critica a forma
como a sociedade organiza-se ao não considerar a diversidade e acaba por excluir
as pessoas com deficiência dos meios políticos e sociais (AUGUSTIN, 2012). Este
modelo entende a deficiência como qualquer desvantagem resultante da relação do
corpo com lesões e a sociedade, compreendendo-a como um fenômeno sociológico
cuja solução não deve ser terapêutica, mas política. As dificuldades de uma pessoa
com deficiência, nesta abordagem, não devem ser entendidas a partir das restrições
causadas pela lesão, mas como um processo social construído pelas barreiras que
limitam a manifestação da capacidade dos sujeitos (DINIZ, 2003).
Por trás dessas barreiras e preconceitos está um processo sociocultural
que tem sido chamado na pesquisa acadêmica de “capacitismo”, termo surgido junto
às discussões acerca da inclusão social das pessoas com deficiência
(NUERNBERG, 2018). Para Mello (2014), o capacitismo é a materialização de
atitudes permeadas pelo preconceito que categorizam os sujeitos conforme a
adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional. É um
conceito presente no social que avalia as pessoas com deficiência como desiguais,
menos aptas ou incapazes de gerir suas próprias vidas, sendo para os capacitistas,
a deficiência como um estado diminuído do ser humano. Trata-se de uma forma de
preconceito subliminar e encravado na produção simbólica social, mostrando-se
uma construção universalizada de opressão sobre a compreensão da deficiência
(DIAS, 2013).
A expressão tem sido usada como tradução da palavra inglesa ableism,
que expressa “discriminação por motivo de deficiência” (DIAS, 2014, p. 5). Ainda que
esta seja uma categoria insuficiente na língua portuguesa, trata-se justamente da
“capacidade de ser e fazer que é reiteradamente negada às pessoas com deficiência
em diversas esferas da vida social” (MELLO, 2014, p. 56).
Mello (2016, p. 3267) propõe que, a exemplo de Portugal, o Brasil utilize a
tradução capacitismo para o termo ableism por duas importantes razões: a primeira
é a urgente necessidade de visibilizar a existência de uma forma específica de

7
Diniz (2003) explica que os estudos sobre deficiência foram iniciados nos Estados Unidos e no
Reino Unidos no início dos anos 1970 por homens com deficiência decorrente de lesões físicas na
medula e que tinham tradição em estudos marxistas.

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opressão contra as pessoas com deficiência, dando maior visibilidade social e
política a esta população. O segundo motivo objetiva romper com os limites entre
deficientes e não deficientes a partir da exploração dos “meandros da
corponormatividade”, nomeando um tipo de preconceito pautado pela premissa da
“(in)capacidade”, que avalia o que as pessoas com deficiência podem ou são
capazes de ser e fazer. Segundo Campbell (2001), o capacitismo está para as
pessoas com deficiência, assim como o racismo está para os negros e o sexismo
para as mulheres (apud MELLO, 2016).
Assim, a autora propõe que o termo seja cada vez mais introduzido nas
produções científicas, nos movimentos sociais, em documentos oficiais e nas
políticas públicas a fim de conquistar espaço e provocar a reflexão naquele que
produz práticas e discursos capacitistas. O pouco material e bibliografia encontrados
sobre o tema evidencia a necessidade de se discutir e produzir sobre o assunto,
inclusive, porque muitas vezes, estes discursos aparecem travestidos de atitudes
agradáveis.
Entendendo capacitismo como o preconceito contra as pessoas com
deficiência, a medida que valora sujeitos e corpos a partir de um referencial
padronizado de corpo “normal”, uma das formas dessa opressão revela-se na
sociedade por meio das barreiras atitudinais. Estas são definidas, conforme a
legislação vigente, como qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que
limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o
exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de
expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação
com segurança, entre outros. E as classificou enquanto barreiras urbanísticas,
arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações e na informação, atitudinais e
tecnológicas (BRASIL, 2015).
Nesse sentido, as barreiras atitudinais são aquelas que se estabelecem
na esfera social, cujas relações humanas centram-se nas limitações dos indivíduos e
não em suas potencialidades. Referem-se a atitudes ou comportamentos que
impedem ou prejudicam a participação social da pessoa com deficiência em
igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.
Amaral (1998) conceitua barreira atitudinal como uma defesa intercalada
na relação entre duas pessoas em que uma está numa posição mais favorável em
relação à outra, por esta ser diferente, especialmente quanto às condições ditas

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ideais. A autora refere-se ao preconceito que, para ela, tem dois componentes
básicos neste caso: uma atitude (predisposição psíquica desfavorável em relação a
alguém) e o desconhecimento concreto e vivencial desse alguém, assim como as
próprias atitudes diante dessa pessoa. Isto é, as atitudes fundamentam-se em
preconceitos e estereótipos que produzem a discriminação, além do
desconhecimento em como agir adequadamente diante da pessoa com deficiência
(MENDONÇA, 2013).
Ainda que projetos e leis venham a assegurar os direitos às pessoas com
deficiência, muitas dificuldades permanecem sendo encontradas por estes sujeitos,
sendo as barreiras atitudinais as maiores delas, cuja existência pode limitar ou
impedir a livre circulação dessas pessoas. No cotidiano, são exemplos de barreiras
atitudinais: não respeitar as vagas de estacionamento destinadas às pessoas com
deficiência, estacionar em locais em que as guias são rebaixadas (rampas), falta de
sinalização adequada, professores que não utilizam didática que contemple as
especificidades de seus alunos, motoristas de transporte coletivo que param muito
afastados das calçadas e o uso de corrimãos para outros fins. Assim, são
necessárias repetidas campanhas de conscientização, a fim de fomentar o respeito
pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência (EMMEL; GOMES;
BAUAB, 2010).
Dias (2014) postula que a barreira atitudinal está no âmago de todas as
outras barreiras existentes (arquitetônicas, comunicacionais, programáticas,
metodológicas e instrumentais), pois se dá devido a uma consequência da
intolerância. Diante disso,

o preconceito e as atitudes negativas em relação às pessoas com


deficiência vão dificultar que a sociedade realize as modificações
necessárias para garantir a acessibilidade na escola, no lazer, na
informação, na cultura e nos outros sistemas sociais (p. 33).

Considerando que a experiência do corpo com impedimentos é


discriminada pela cultura da normalidade, no próximo capítulo serão desenvolvidas a
teoria do lugar de fala e suas contribuições para a visibilidade de discursos contra
hegemônicos.

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3 DISCURSO E LUGAR DE FALA

A expressão lugar de fala tem surgido nos últimos tempos com mais
frequência não só nos debates públicos, entre militantes, acadêmicos e
interessados, mas também nas discussões virtuais, por meio das redes sociais. Em
síntese, pode ser entendida como contraponto ao silenciamento de vozes de grupos
historicamente invisibilizados. No entanto, com sua apropriação por um segmento
mais amplo da sociedade, Berth chama atenção para que seu uso não se torne
incompleto (MOREIRA; DIAS, 2017)8.
Apesar da origem do termo não ser precisa, Ribeiro (2017) afirma que
para conceituar lugar de fala é necessário retomar os percursos intelectuais e de luta
de mulheres negras durante a história. Seu uso advém, segundo a autora, da
tradição da teoria racial crítica, assim como dos estudos sobre diversidade e gênero
que questionam quem tem o poder do discurso. Desde esta perspectiva, o termo
serve para reivindicar o poder de falar e produzir discursos contra hegemônicos e,
assim, quebrar com a autorização discursiva de somente um grupo, o qual se
entende como sujeito universal, comumente representado pelo homem branco, cis e
hétero (e, importante marcar, dotado de um corpo adequado a uma suposta
normalidade).
Nesse sentido, faz-se necessário compreender a noção de discurso, uma
vez que este não se trata de um simples “amontoado de palavras ou concatenação
de frases que pretendem um significado em si” (RIBEIRO, 2017, p. 56). Mais do que
isso, a noção foucaultiana de discurso remete a um sistema que estrutura
determinado imaginário social, pois está intimamente ligado ao poder e ao controle
(RIBEIRO, 2017). Deve-se considerar que os acessos não são garantidos a todos de
maneira justa, ocorrendo um desequilíbrio entre os grupos na ocupação de lugares
de produção e disseminação de conhecimento, como as universidades, e na
ocupação de instâncias de poder, como a política institucional. Assim, as vozes
destes grupos não são representadas, tampouco catalogadas, a ponto de
produzirem um discurso sólido na sociedade. Por isso, o poder de “falar”, para além
de simplesmente emitir palavras, diz respeito ao poder de existir (RIBEIRO, 2017).
Apesar da origem do termo ser imprecisa, é possível pensar lugar de fala
a partir da teoria do ponto de vista feminista, a qual tem origem na tradicional
discussão norte-americana sobre o feminist standpoint (RIBEIRO, 2017). Uma de
8
Trata-se de entrevista concedida pela arquiteta Joice Berth ao jornal Nexo.

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suas principais autoras é a norte-americana Collins (1997), que defende que a teoria
do “standpoint” ou “teoria do ponto de partida” seria um quadro interpretativo
dedicado a explicar como o conhecimento ainda se mantém como elemento central
para manter e mudar sistemas injustos de poder.
Esta teoria refere-se a experiências historicamente compartilhadas por
grupos socialmente construídos, de maneira que se deve dar menos ênfase às
experiências individuais dos sujeitos dentro desses grupos, para atentar às
condições sociais que os constroem. Ou seja, trata-se de uma perspectiva que
considera as histórias e as vivências compartilhadas pelos grupos baseadas na
posição comum que possuem nas relações de poder, uma vez que essa localização
comum acaba por produzir experiências comuns. Collins (1997) explica que
categorias como gênero, raça, cor, classe, idade – e aqui incluímos a deficiência –
não são somente características descritivas individuais de identidade, mas são
dispositivos fundamentais que promovem acessos desiguais para estes grupos.
A autora explica, ao comentar sobre o racismo, que as experiências
individuais dos sujeitos em relação a este tipo de opressão serão únicas, no entanto,
os tipos de oportunidades e constrangimentos que os sujeitos enfrentam diariamente
são semelhantes a todas as pessoas negras enquanto grupo social. Estes ângulos
de visão compartilhados levam aqueles que estão em uma localização social
semelhante a estarem predispostos para interpretar essas experiências de maneira
comparável (COLLINS, 1997).
Isso não deve conduzir a um entendimento de que todos aqueles que
compõem um determinado grupo compartilharão das mesmas experiências ou irão
interpretá-las do mesmo modo, ainda que enfrentem barreiras similares, pois se trata
de uma questão estrutural, não individual. Embora a autora traga seus estudos para
a questão racial, seus conceitos também podem ser explorados a partir da
perspectiva das pessoas com deficiência, já que estas também pertencem a um
grupo historicamente sujeito a diversas formas de opressão.
Entendendo lugar de fala como o locus social ocupado pelos sujeitos nas
relações de poder, esta teoria não deve ser confundida com a questão da
representatividade, ainda que os conceitos estejam interligados. Nesse sentido, um
homem branco não poderá representar uma mulher negra, mas poderá falar sobre o
racismo a partir do lugar que ocupa enquanto homem branco, pois todas as pessoas
possuem lugares de fala, uma vez que estão socialmente localizados nas relações

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hierárquicas de poder. Berth afirma que se trata de uma postura e um compromisso
ético, em que todos devem se sentir implicados a pensar o seu lugar de fala, pois
saber a partir de onde se fala é fundamental para pensar as hierarquias e as
questões de desigualdade (MOREIRA; DIAS, 2017).
Assim, não somente os “subalternos” ou “oprimidos” têm lugar de fala,
pois os sujeitos do poder podem e devem refletir acerca das suas localizações
sociais, caso contrário haveria uma desresponsabilização desses sujeitos sobre as
situações de desigualdade nas quais estão implicados (RIBEIRO, 2017). Dessa
forma, torna-se indispensável convocar aquele que tem seu corpo “saudável” e
“normal” a refletir e falar sobre a reprodução do capacitismo, a fim de contribuir com
a construção de uma sociedade mais igualitária.
Nesse sentido, a importância da discussão a respeito do lugar de fala
reside na desmistificação da existência de um sujeito universal, que acredita que
todas as pessoas partem de uma posição comum de acesso à fala e à escuta
(MOMBAÇA, 2017). Ao contrário, esse sujeito que acredita ser universal, que se usa
como referência para tudo – branco, masculino, cisnormativo e heterossexual, sem
deficiência – está em desgaste, sendo substituído por uma diversidade de sujeitos,
conforme explica Borges9 (MOREIRA; DIAS, 2017). E é o lugar de fala quem diz
quais são os posicionamentos e as experiências diversas desses sujeitos plurais.
Trata-se, portanto, de uma ferramenta teórico-política que permite a visibilização da
experiência subalterna, para que esta passe a ser entendida como uma forma de
conhecimento, desvelando as opressões sofridas pelos diferentes grupos.
Deve-se pontuar, no entanto, que o lugar de fala não determina
necessariamente uma consciência discursiva a respeito dessa localização social,
mas este lugar proporciona experiências e perspectivas singulares àqueles que
estão inseridos nos grupos subalternizados. A reprodução dos discursos
hegemônicos por parte de pessoas pertencentes a grupos oprimidos deve ser
combatida, desde que a atenção esteja voltada ao discurso e não aos sujeitos, pois
ainda assim, eles continuarão sendo atingidos de maneira individual e estrutural
pelas opressões. Ribeiro (2017) alerta que a existência de uma cobrança maior
sobre os indivíduos pertencentes a estes grupos têm, por fim, o intuito de
deslegitimar as lutas contra hegemônicas.

9
Trata-se de entrevista concedida pela professora e ativista Rosane Borges ao jornal Nexo.

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Ainda que as principais autoras citadas em relação ao marco teórico
escolhido abordem essas teorias para falar sobre opressões mais relacionadas ao
racismo e ao machismo, é possível fazer uso dessa perspectiva também para
pensar as opressões voltadas contra as pessoas com deficiência. Nesse sentido,
entende-se que a opressão voltada contra este grupo não é um atributo dos
impedimentos corporais desses sujeitos, “mas resultado de sociedades não
inclusivas” (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 67). Conforme explica Diniz
(2007), nem todos os corpos com impedimentos vivenciam necessariamente a
opressão pela deficiência, dado que existe uma relação de dependência entre os
impedimentos e o grau de acessibilidade de uma sociedade.
Considerando a teoria do lugar de fala e a importância de ouvir os grupos
em suas diferentes localizações sociais, além da necessidade de discutir sobre os
discursos e práticas capacitistas, uma atividade foi promovida pelas autoras do
presente trabalho. O objetivo foi estimular o debate e a reflexão sobre o tema da
deficiência.

4 #ÉCAPACITISMOQUANDO: REPENSANDO O CAPACITISMO A PARTIR DE


UMA OFICINA

O alcance e a importância da internet e das redes sociais são fatos


inegáveis atualmente. Ainda que fatores socioeconômicos sejam determinantes para
o acesso às tecnologias de informação no Brasil, o impacto da internet em relação
às possibilidades de participação política revigorou a esfera da discussão pública e
ajudou a superar o déficit democrático dos tradicionais meios de comunicação de
massa. Esta ferramenta possibilitou a consolidação de espaços comunicacionais de
interação entre seus usuários, não somente em termos de informação, mas de
aproximação entre sujeitos geograficamente distantes (GOMES, 2005).
É dentro deste universo da internet que diversos conteúdos vêm sendo
produzidos e difundidos para milhões de usuários. O alcance destas ferramentas de
comunicação acaba por assumir um papel considerável na intermediação das
relações sociais e interpessoais. Além disso, é através da ideia de entrelaçamento e
interconexão que as interações humanas e as ações coletivas são articuladas,
evidenciando ainda mais a importância desse dispositivo para difundir debates,
ampliar discussões e formar opiniões sobre assuntos relevantes (AGUIAR, 2006).

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Considerando a importância dessas novas ferramentas e a teoria do lugar
de fala, as autoras do presente trabalho promoveram uma oficina durante o evento
de qualificação interna “Diversidade e Inclusão Social” realizado pela DPE-RS, por
meio da CPAI10 e do NUDDH11, nos dias 04 e 05 de abril de 2019 12. O evento, entre
outros objetivos, buscou qualificar a inclusão e a permanência de servidores com
deficiência na instituição, sensibilizar seus trabalhadores quanto à inclusão e à
cidadania dos assistidos pertencentes a este grupo, além de ampliar o debate e a
reflexão acerca das práticas diárias de trabalho que envolvem essa temática.
Importante destacar o dever imposto pela LBI ao poder público no sentido de
assegurar o acesso da pessoa com deficiência à justiça, obrigando expressamente
as Defensorias Públicas a capacitar seus trabalhadores quanto aos direitos das
pessoas com deficiência13.
A oficina, intitulada “Deficiência física e mobilidade: relato de
14
experiências” , objetivou promover um espaço para que as servidoras oficineiras
realizassem um relato pessoal a respeito de suas condições enquanto mulheres com
deficiência física. Para ampliar o escopo da discussão, as autoras utilizaram-se de
conteúdos disponíveis na internet, principalmente, no Youtube e na rede social
Twitter a respeito do capacitismo.
Com o intuito de desmistificar e promover assuntos relacionados às
pessoas com deficiência, a youtuber Mariana Torquato publicou em seu canal “Vai
uma mãozinha aí?”, um vídeo sobre capacitismo, por meio do qual divulga e aborda
a campanha realizada no Twitter “#écapacitismoquando”. A youtuber, que também é
pessoa com deficiência, explica que a campanha surgiu no dia 03 de dezembro de
2016, quando se comemora o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, cujo
objetivo não é parabenizar as pessoas pela data, mas sim conscientizar a respeito
do tema e dar visibilidade à pauta.
A hashtag #écapacitismoquando, publicada por diversos usuários desde
2016, trouxe para as redes sociais exemplos concretos de preconceitos vivenciados
por pessoas com deficiência, que escondem uma visão capacitista acerca deste
10
Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão
11
Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos
12
O evento contou com a participação de quase 200 pessoas entre defensores públicos, servidores e
estagiários da DPE-RS.
13
Art. 79 da Lei Brasileira de Inclusão.
14
Foram oferecidas aos participantes do evento três oficinas no turno da tarde do dia 04/04/2019
(“Deficiência intelectual e múltipla: vencendo desafios”; “Deficiência auditiva: atendimento ao público e
LIBRAS” e “Deficiência física e mobilidade: relato de experiências”, sendo que nesta participaram
cerca de 25 pessoas, entre servidores e defensores públicos).

130 | Revista da Defensoria Pública RS


grupo. As publicações visibilizam práticas e discursos capacitistas disseminados de
maneira sutil (e, às vezes, nem tanto) na sociedade. Assim sendo, para a realização
da oficina, quarenta e cinco postagens do Twitter foram selecionadas e utilizadas
como recurso propulsor para o início da atividade.
No primeiro momento do trabalho, a teoria do lugar de fala e a perspectiva
de que falamos todos a partir de uma localização social foi exposta aos
participantes. O intuito era que estes tivessem essa teoria como referência, a fim de
instigá-los a pensar a partir do lugar de onde falam, uma vez que participaram da
atividade pessoas com e sem deficiência.

4.1 AS PUBLICAÇÕES NO TWITTER: #ÉCAPACITISMOQUANDO

Considerando a limitação de espaço do presente trabalho, serão citadas


apenas algumas publicações, agrupadas por afinidade temática, com o intuito de
expor parte do conteúdo discutido com os demais colegas participantes da oficina.
O primeiro tema refere-se aos discursos capacitistas que questionam o
direito reprodutivo e a capacidade de mulheres com deficiência de exercerem a
maternidade. Nesse sentido, as publicações “#écapacitismoquando questiona-se a
capacidade e a vontade de uma mulher com deficiência de ter filhos” e “a saúde
reprodutiva de um grande número de mulheres com deficiência é simplesmente
ignorada” denunciam o entendimento de que o corpo da mulher com deficiência
seria um corpo incapaz para a reprodução.
Conforme aponta Bernardes, mesmo quando a gestação não oferece
risco à vida da mulher, a indicação do aborto por médicos é muito comum, por
considerarem que o corpo da mulher com deficiência e suas limitações não seriam
suficientemente aptos para cuidar de outra vida (VENTURA, 2019) 15. Nesse sentido,
as políticas públicas estão ainda muito centralizadas nos recursos de acessibilidade,
sem referenciar outros direitos, tal como a maternidade.
O constante questionamento acerca da capacidade das pessoas com
deficiência para o trabalho também foi tema recorrente nas publicações:
“#écapacitismoquando alguém diz a uma PCD 16: ‘mas nem parece que você é
deficiente, é tão produtiva!’”, “a PCD tem que provar a sua eficiência enquanto
15
Trata-se de entrevista concedida pela psicóloga e integrante do coletivo feminista Helen Keller de
Mulheres com Deficiência, Vitória Bernardes, ao Jornal Estadão.
16
Ao longo deste capítulo será utilizada a abreviação PCD para a expressão pessoa(s) com
deficiência.

23ª Edição | 131


profissional para que confiem na sua capacidade” e “desqualificam a sua aprovação
em concurso público por ser na reserva de vagas”.
Apesar da implementação da política de cotas significar um avanço
importante no campo legal, a relação das organizações de trabalho com o processo
de inclusão de pessoas com deficiência também tem sido pautada por retrocessos
sociais (NUERNBERG, 2019). Dessa forma, o capacitismo está na base da imagem
e conceito de “trabalhador ideal”, o qual produz desvantagens àqueles que não se
encaixam no padrão masculino, caucasiano, de camadas médias abastadas, jovem
e heteronormativo. Essa imagem ideal, sempre relacionada ao “homem universal”

determina que corpos e modos de mover-se, funcionar, interagir, pensar e


comunicar são valorizados nos ambientes corporativos. Aliás, é essa
imagem de trabalhador ideal que configura o perfil geral do trabalhador com
deficiência hoje empregado, cujos corpos são mais desejáveis quanto
menos evidentes foram seus marcadores de incapacidade e quanto menos
seus impedimentos demandarem esforço e investimento financeiro e de
recursos humanos das organizações. (NUERNBERG, 2018, p. 3)

O tema acerca da infantilização da pessoa com deficiência também


apareceu nas publicações, tal como “#écapacitismoquando o profissional de saúde
trata a pessoa com deficiência com voz infantilizada”. Infelizmente, esta não é uma
situação excepcional, pois o tratamento infantilizado é uma realidade que circunda
as pessoas com deficiência, especialmente aquelas com deficiência intelectual. As
pessoas com deficiência, assim como as pessoas sem deficiência, devem e
merecem ser tratadas de acordo com sua faixa etária, sem terem sua autonomia
subestimada para escolher e decidir. Não reforçar ou incentivar atitudes e falas
infantis, elogios desnecessários no diminutivo, a não ser que você esteja
efetivamente se reportando a uma criança, é muito importante para romper com
discursos e práticas capacitistas (SÃO PAULO, 2009).
Nessa mesma esteira, o discurso capacitista julga que todas as pessoas
com deficiência precisam aceitar qualquer tipo de ajuda oferecida. Assim denuncia a
publicação: “#écapacitismoquando você se ofende quando sua ajuda é recusada por
uma pessoa com deficiência”. Este é um exemplo de barreira atitudinal cuja ideia
central baseia-se na noção de que ter uma deficiência específica implica a total
incapacidade do sujeito, como se todo o organismo, inclusive as funções cognitivas
deste, fosse inferior (NUERNBERG, 2018). Esta postura contraria aquilo que as
legislações mais avançadas preconizam: o incentivo à autonomia dos sujeitos com
deficiência.

132 | Revista da Defensoria Pública RS


Outro exemplo de barreira atitudinal existente é aquele que considera que
as pessoas que possuem uma deficiência do mesmo grupo (sensorial, física,
intelectual ou cognitiva) terão necessariamente as mesmas necessidades de
adaptação e tratamento. Nesse sentido, a publicação “#écapacitismoquando você
acha que todas as pessoas com deficiência passam por situações idênticas” expõe
esse entendimento equivocado, como se o universo das pessoas com deficiência
fosse homogêneo e as pessoas não fossem sujeitos singulares tal qual as pessoas
sem deficiência.
Por fim, a ideia que concebe pessoas com deficiência como heróis ou
que as coloca sempre em situação de superação está baseada em um discurso
capacitista: “#écapacitismoquando você vira um super-herói por se locomover pela
cidade de transporte público sozinho”; “você chama uma PCD de 'especial',
negando-lhe o direito a uma vida ordinária”, “utiliza-se do termo superação para
pessoas com deficiência” e “dizem a PCD: ‘você é especial, Jesus te ama e Deus
tem um plano para você na eternidade’”.
Esse entendimento impossibilita a percepção de que a deficiência é
somente mais uma característica que constitui o indivíduo, como tantas outras. E,
como bem denunciado por uma das postagens, isso acaba por negar à pessoa com
deficiência o direito a uma vida normal. Não por acaso caiu em desuso a
terminologia “portador de necessidades especiais” ou ainda “pessoa especial” (muito
utilizada para pessoas com deficiência intelectual), uma vez que esta nomenclatura
não define o grupo de pessoas com deficiência, pois todos os sujeitos têm
necessidades especiais, de acordo com a idade, sexo, situação de saúde, etc. Do
mesmo modo, “portador de deficiência” também já não é mais utilizado, pois as
pessoas não portam deficiências.
Apesar dos avanços conquistados pelas lutas travadas pelos movimentos
das pessoas com deficiência, este grupo social ainda ocupa poucos lugares nas
universidades, na política institucional, nos cargos de chefia e nas mídias, ou seja,
nos lugares onde os discursos são produzidos e mais amplamente disseminados.
Assim sendo, o objetivo principal ao trazer estas publicações para o debate foi
mostrar o quanto esses discursos escondem um entendimento restrito acerca dos
sujeitos com deficiência. A ideia foi, então, questionar a reprodução desses
discursos e ações, que julgam e valoram corpos e sujeitos de acordo com um

23ª Edição | 133


padrão de normalidade e capacidade, como se pudesse existir um sujeito universal
sem imperfeições.

4.2 A EXPERIÊNCIA DA OFICINA

A presença das mais diversas áreas do conhecimento que atuam na DPE-


RS através dos servidores e defensores participantes da oficina mostrou-se
relevante, pois denota a importância e necessidade de ouvir o discurso de um outro
lugar e, assim, refletir suas práticas de modo efetivo. Como exemplo disso, pode-se
citar a participação de pessoas que trabalham na área de engenharia, que possui
responsabilidade nas obras da instituição e adaptações de acessibilidade dos
prédios locados. Apesar do conhecimento técnico acerca das normas que regem a
acessibilidade ser fundamental, ouvir pessoas com deficiência sobre as adequações
físicas enquanto sujeitos que vivenciam, de fato, a experiência diária de se
locomover pelo seu espaço de trabalho revelou-se transformador.
Durante a atividade, todos os participantes puderam expressar suas
ideias referentes à temática e compartilhar suas experiências enquanto pessoa com
deficiência ou não. A oficina contou com a participação espontânea de servidores e
defensores de diversas regiões e realidades bastante distintas, elementos que
potencializaram a discussão.
Após o debate, as responsáveis pelo trabalho puderam compartilhar suas
vivências a respeito do eixo central da oficina: “Deficiência física e mobilidade: relato
de experiências”. Assim, pôde-se discutir pontos importantes sobre a deficiência,
como as diferenças entre esta ser congênita ou adquirida, visível ou não visível,
dando destaque às peculiaridades de cada uma, pois ainda que as duas servidoras
sejam pessoas com deficiência física, experienciam esta condição de formas muito
diversas uma da outra.
Uma das servidoras possui deficiência física congênita, isto é, já nasceu
com esta condição, enquanto que a outra apresenta deficiência física adquirida,
manifestada ao longo de sua adolescência. Assim, puderam dividir parte de suas
vivências e, também, sobre o processo de entendimento acerca da própria
deficiência, que nem sempre é uma experiência simples, pelo contrário, tarefa
bastante complexa, que demanda compreensão e rede de apoio afetiva.

134 | Revista da Defensoria Pública RS


Outro assunto abordado tratou sobre a visibilidade e a não visibilidade
das deficiências, tendo em vista que grande parte das pessoas está habituada ao
estereótipo da deficiência como aquela pessoa que utiliza cadeira de rodas ou que a
limitação é bastante evidente. Essa também é uma distinção entre as duas
servidoras, pois uma apresenta a deficiência de forma perceptível e a outra, de
maneira bastante sutil. No entanto, isso não significa que uma deficiência é menos
importante que a outra. Em alguns momentos, a não visibilidade pode gerar olhares
de revolta, em razão da pessoa utilizar-se das filas preferenciais, por exemplo, ou
vagas reservadas de estacionamento, ao passo que a visibilidade acaba
despertando olhares piedosos em alguns momentos. Ou seja, ambas as condições
podem provocar, em maior ou menor medida, o preconceito expresso em práticas e
discursos capacitistas.
O debate, ao longo do trabalho, estimulou a reflexão sobre o preconceito
em torno da deficiência e visibilizou as experiências de pessoas com deficiência,
além de contribuir para a conscientização dos servidores e defensores quanto às
necessidades dos colegas e assistidos, auxiliando na eliminação de barreiras
atitudinais e promovendo a acessibilidade dentro dos espaços da instituição. Os
colegas que participaram da atividade demonstraram-se muito satisfeitos com a
oportunidade de refletir sobre o assunto e revelaram que nunca haviam se
questionado a respeito dos diversos temas trabalhados.
Entende-se que a DPE-RS é um espaço privilegiado para o processo de
construção da acessibilidade, já que é a instituição que tem como dever a promoção
dos direitos humanos e a defesa destes. E, as condições que adota, nesse sentido,
podem ter um efeito multiplicador, pois operam como um modelo para outras tantas
instituições.
Cabe à DPE-RS produzir e fortalecer uma política institucional
responsável pela criação de dispositivos de apoio aos assistidos e servidores com
deficiência. De igual forma, também é seu dever promover a permanência qualitativa
desses trabalhadores em seus espaços para além do mero cumprimento da
legislação.

23ª Edição | 135


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a realização da oficina em que se discutiu temas como capacitismo,


acessibilidade e inclusão das pessoas com deficiência, entendeu-se que a escrita do
presente artigo seria um passo importante para o registro da experiência inédita
proporcionada. O espaço proposto permitiu visibilizar algumas experiências vividas
por pessoas com deficiência, principalmente por meio da campanha
#écapacitismquando, que visibilizou experiências subalternas como uma forma de
conhecimento.
Nesse sentido, ainda que pareça muito difícil, é possível pensar em um
ambiente organizacional e uma sociedade sem barreiras atitudinais e livre do
capacitismo. Para isso, é necessário estimular práticas que sensibilizem e
conscientizem os sujeitos sobre como lidar com a diversidade e com o
desconhecido.
Frisa-se que a presença de pessoas com deficiência nos mais diversos
ambientes contribui para o enfrentamento dessas barreiras e discursos. Nesse
sentido, promover a inclusão de pessoas com deficiência nas instituições não cabe
apenas à gestão de pessoas, pois deve ser uma política de toda a organização.
Portanto, não se trata unicamente de cumprir exigências legais, mas conceber a
diversidade como potência, não como algo a ser tolerado (NUERNBERG, 2018).
O contexto da DPE-RS ainda é muito desafiador, seja pelas barreiras
atitudinais, seja pelas barreiras arquitetônicas, comunicacionais e tecnológicas, mas
um primeiro passo foi dado. A criação de espaços como a CPAI, o Evento
“Diversidade e Inclusão Social” e as oficinas, considerando que são espaços
ocupados e conquistados por pessoas com deficiência, já se mostra como
importante avanço para uma instituição e uma sociedade menos capacitista.
A abertura desses espaços legitima a presença de servidores com
deficiência na instituição e desmistifica os preconceitos em torno deste grupo social,
pois amplia o conhecimento a respeito das diversas possibilidades desses sujeitos.
Cabe lembrar que “#écapacitismoquando você chama pessoas com deficiência só
para falar sobre acessibilidade e capacitismo”, de maneira que todas as pessoas
com deficiência podem desenvolver suas atividades de trabalho nos mais variados
contextos institucionais, não apenas naqueles que dizem respeito estritamente a
este tema.

136 | Revista da Defensoria Pública RS


Se o conhecimento é elemento central para mudar sistemas injustos de
poder, espera-se que este breve trabalho contribua para a disseminação de um
conteúdo ainda pouco visibilizado. Nesse sentido, a tentativa de nomear, conhecer e
discutir algumas das faces do capacitismo serve justamente para trazer à tona os
conhecimentos e as experiências vividas pelas pessoas com deficiência a fim de
tornar cada vez menor a incidência de discursos e práticas preconceituosas.

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