Genealogia Da Malandragem
Genealogia Da Malandragem
Genealogia Da Malandragem
O brasileiro sempre tem um "jeitinho" para tudo. Saiba que relação existe entre a peculiar malandragem do brasileiro e a
construção da Ética e da moral na visão de nietzsche
Costuma-se apontar a corrupção como uma das maiores mazelas da sociedade brasileira. Geralmente, quando questionada
acerca desse assunto, a opinião pública tem como alvo favorito de críticas a classe política. É curioso, no entanto, que boa
parte dessas pessoas que avaliam negativamente seus representantes costuma recorrer, cotidianamente, a pequenos artifícios
que burlam o costume ético e, muitas vezes, até a lei. Estamos nos referindo ao nosso jeitinho brasileiro, à malandragem e ao
jogo de cintura, "categorias" que, já incorporadas à nossa cultura, convivem lado a lado com os valores ético-morais mais
tradicionais. A "ética" do jeitinho e da malandragem coexiste, paralelamente, com a ética oficial. O cidadão que cobra dos
políticos o cumprimento dos preceitos da ética tradicional é o mesmo que usa o expediente do jeitinho e da malandragem.
A DIALÉTICA DA MALANDRAGEM
Em 1970, o crítico literário Antônio Candido publicou Dialética da malandragem, uma referência obrigatória para
qualquer estudo filosófico que aborde o tema da malandragem brasileira. O trabalho, um ensaio sobre Memórias
de um Sargento de Milícias - romance publicado em 1854 por manuel Antônio de Almeida (1831-1861) -, toma o
personagem principal do livro, Leonardo Pataca Filho, como o primeiro malandro da literatura brasileira.
mostrando que Leonardo transita, cotidianamente, entre a ordem estabelecida e as condutas transgressivas,
Cândido afirma que esse romance, já no século XiX, retrata - retrospectivamente - a ambiguidade ética da
sociedade brasileira, na época de Dom joão Vi. A desarmonia entre as instituições ético-legais e as práticas
sociais efetivas não seria novidade: "Há um traço saboroso que funde no terreno do símbolo essas confusões de
hemisférios e esta subversão final de valores. (...) É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas
Memórias é sugestiva. (...) manifesta (...) o jogo dialético da ordem e da desordem". (A título de curiosidade, é
bom lembrar que, em 1946, época em que a difamação de Nietzsche estava em seu apogeu, o mesmo Antônio
Cândido publicou o ensaio O Portador, um dos primeiros textos a apontar a necessidade de se recuperar o
pensa-mento nietzschiano).
Se, por um lado, Nietzsche considera que os referenciais éticos são sempre
relativos a uma cultura específica e, por essa razão, não podem constituir um Bezerra da Silva, autor da letra da m úsica
M alandro é M alandro e M ané é M ané. No Brasil,
critério absoluto de avaliação, por outro lado, ele necessitou de um novo critério a m alandragem ganhou valor positivo com o
pelo qual pudesse avaliar os valores. Nietzsche precisava de um valor que traço de personalidade. É com o se de um lado
estivesse além de toda perspectiva moral e que servisse, ao mesmo tempo, estivessem os m alandros e, de outro, os
como referência para julgar qualquer moral. "m anés"
Brasileiro, que é malandro, sempre dá um jeitinho de lucrar. Quem está no poder, rondado pelas oportunidades de
usar a influência do cargo para ganhar algo por fora, tem usado e abusado desta "ética frouxa" que nossa cultura da
malandragem estimula. A seguir, alguns escândalos políticos brasileiros, do presente e do passado, que bem ilustram
esse hábito de tentar levar vantagem.
O esquema foi além da simples malandragem e virou desvio de verba: assessores passaram a repassar a sobra do
mês para agências de viagem, que vendiam bilhetes para pessoas comuns, pagavam com o crédito da Câmara e
dividiam com os assessores o dinheiro dado por quem adquiriu a passagem.
O escândalo fez muitos parlamentares devolverem o dinheiro gasto em passagens não usadas a trabalho e o
Congresso rever o regimento a respeito das viagens aéreas.
A suposta venda de voto, que deu origem à crise foi só o estopim para a
descoberta de uma série de outros escândalos de corrupção
relacionados ao "mensalão", como o caso Celso Daniel, o escândalo dos
Correios, o dos Bingos e do banco Opportunity, que acabou associado
ao esquema do "valerioduto".
O deputado João Paulo Cunha (PT),
interrogado por acusações de pertencer ao
Cartão corporativo
esquem a do m ensalão
Que tal um cartão em que a fatura no final do mês fica por conta do
Governo? O escândalo dos cartões corporativos foi motivado pelo uso
indevido de um cartão criado para pagar despesas pequenas e urgentes
de funcionários do governo em missões de trabalho, mas foram
descobertas compras de ursos de pelúcia, reformas de mesa de sinuca e
até pagamentos de diárias no hotel Copacabana Palace. Alguns mais
malandros, usavam a estratégia de sacar o dinheiro e pagar em espécie,
assim não deixavam vestígios da ilegalidade, a menos que fossem
investigados - e foram. As primeiras denúncias levaram à demissão da
Ministra da Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, do PT, a
pessoa que mais realizou gastos com o cartão em 2007.
Impeachment de Collor
No entender de Nietzsche, esse paradigma seria a vida. Vejamos como argumenta o pensador em Crepúsculo dos ídolos: "É
preciso estender ao máximo as mãos e fazer uma tentativa de apreender essa espantosa finesse [finura], a de que o valor da
vida não pode ser estimado. Não por um vivente, pois ele é parte interessada, até mesmo um objeto da disputa, e não juiz; e
não por um morto, por outro motivo". Nesse sentido, a vida seria um critério de avaliação impossível de ser avaliado, pois
qualquer avaliação sempre se dá por meio de uma determinada perspectiva inserida na vida.
Ao examinar o desenvolvimento histórico da civilização ocidental, Nietzsche chega à conclusão de que os fundamentos morais
que têm norteado o Ocidente foram engendrados a partir de uma perspectiva negadora da vida e do mundo terreno. Isso porque
a Ética ocidental - fundada nos pilares do cristianismo e platonismo - teria como referência moral os valores concebidos a partir
de um além. Em ambas as perspectivas fundadoras existiria uma predileção a um mundo extraterreno em detrimento do mundo
terreno. No caso do cristianismo, a esperança de redenção no reino de deus teria provocado a negação da vida e do mundo
terreno.
Nas Ciências Sociais há quem entenda o surgimento do jeitinho e da malandragem como consequência
da imposição de uma cultura legal e formalista proveniente da monarquia portuguesa e da igreja
católica. Não sendo um resultado legítimo da construção popular, as instituições ético-legais abririam
espaço à transgressão. Por outro lado, há também quem enxergue a raiz da "malemolência" brasileira
no nosso caráter cultural mestiço.
HERANÇA DE TRADIÇÕES
Mas não se trata de justificar,aqui, uma transgressão generalizada. Como foi dito anteriormente, essa
posição assume a "conservação da vida" como fundamento originário desse tipo de burla, mas - é
necessário ressaltar - isso não significa dizer que, ainda hoje, a "vida" continue sendo o único
referencial criador para toda atitude de infração à legalidade e ao costume ético tradicional.
APOLOGIA À MALANDRAGEM
Com o desenrolar histórico, a própria transgressão teria se transformado em uma espécie de modelo
"ético". A antropóloga Lívia Barbosa vai nessa mesma direção: "de drama social do cotidiano [o jeitinho
brasileiro] passou a elemento da identidade social. (...) de simples mecanismo adaptativo, reflexo de
nossas condições de subdesenvolvimento, o jeitinho se transformou em elemento paradigmático de
nossa identidade (...)".
Se até o momento defendemos que a conservação da vida foi o ponto de
partida para o surgimento do jeitinho e da malandragem, agora, além
desse fundamento, um fator derivado - também impulsionador e
potencializador da transgressão - teria surgido no desenrolar histórico-
cultural do Brasil: a apologia da malandragem.
A partir disso, o malandro passa a ser visto como exemplo a ser seguido,
torna-se um referencial para o "dever ser" e se transforma em um
"paradigma ético paralelo". Assim, a malandragem - que, de início, foi
impulsionada pelas imposições de conservação da vida - se converteu em
referência para si mesma. Tornando-se uma espécie de categoria ético-
metafísica, ela se transformou em valor moral e passou a ser norteada por
si mesma. A malandragem se transfigurou em modelo ético para a própria
malandragem.
Diante disso tudo se pode questionar: qual o valor da "ética da malandragem"? Ela
tem servido para conservar e engrandecer a vida? Tudo leva a crer que, ao
promovermos essa a apologia da malandragem, perdemos o referencial originário, a
saber, a vida.
Ou seja, por ser constituída de técnicas individuais de sobrevivência, a malandragem impediria estratégias mais amplas de
insurreição popular.
<
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras,
2005
_________. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006
MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993
PASCHOAL e FREZZATTI. Antônio Edmilson e Wilson (org). 120 anos de "Para a genealogia da moral". Ijuí:
Unijuí, 2008
ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Coleção Buriti 41. 23ª ed. Belo Hori
z onte:
Itatiaia, 1986
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Escala Educacional.
DAMATTA, Roberto. Carnavais malandros e heróis - para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro:
Zahar, 1979
CANDIDO, Antonio. "Dialética da Malandragem". In: ____ O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cida
des,
1993 www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/leitura/DIALETICA_MALANDRAGEM.rtf
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1995
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000
SCHWARCZ. Lilia Moritz. Complexo de Zé Carioca. Notas sobre uma identidade mestiça e malandra. In:
www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_03. htm
João E. Neto é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo
(USP), bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e membro do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN)