02-As Alforrias em Minas Gerais No Século XIX
02-As Alforrias em Minas Gerais No Século XIX
02-As Alforrias em Minas Gerais No Século XIX
TARCÍSIO R. BOTELHO
Professor do Departamento de História e do
Mestrado em Ciências Sociais da PUC Minas
Introdução
As alforrias foram um importante elemento do sistema escravista que
se estabeleceu no Novo Mundo. Entretanto, os historiadores são unâni-
mes em apontar sua maior freqüência e amplitude na América Latina em
comparação com a América do Norte. Assim, para o Brasil, é imprescin-
dível compreender o processo como se dava a concessão de alforrias e
o papel dos alforriados em nossa sociedade caso queiramos compreen-
dê-la adequadamente. Ademais, devemos estar atentos às transforma-
ções sofridas por esta instituição ao longo dos tempos e nas diversas
regiões da Colônia e Império brasileiros, para que não comparemos fe-
nômenos diferentes. Neste trabalho, vou me ater a Minas Gerais e ao
século XIX, período em que se dá a transição do trabalho cativo ao tra-
balho livre. Como são poucos os estudos com este corte regional e tem-
poral, procurarei, com a ajuda da produção historiográfica existente so-
bre o tema, levantar algumas questões que possam nortear futuros tra-
balhos. Para testar algumas destas questões, utilizarei alguns dados le-
vantados para uma região específica, qual seja, o norte de Minas Ge-
rais.
O estudo está dividido em dois momentos. Primeiro, procuro carac-
terizar os libertos, segundo se depreende do conteúdo das cartas de
alforria, documento legal que abria ao escravo o mundo do livres. Em
seguida, trabalho os significados que a liberdade assumia, tanto para os
libertos quanto para as elites locais do império. Tomo como base as cha-
madas ações de liberdade, que eram ações cíveis movidas por pessoas
que consideravam-se merecedoras do reconhecimento como libertas.
Assim, procuro mostrar como pode-se avançar na compreensão do ca-
tivo e de sua luta pela liberdade no século XIX.
O alforriado
Vários são os estudos que exploram o tema das alforrias no Brasil
imperial.1 Tentando sintetizar as características apontadas nos vários
1 Levantamento realizado por Eisenberg, Peter. Ficando livre: as alforrias em Campinas no século XIX. In: ___.
Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas (SP): Editora da
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estudos acerca do tema no Brasil, Jacob Gorender indica o seguinte
perfil do alforriado:
“a) maioria de alforrias onerosas e gratuitas condicionais, tomadas
em conjunto; b) proporção relevante de alforrias gratuitas incondicio-
nais; c) maior incidência das alforrias na escravidão urbana do que na
escravidão rural; d) alforrias mais freqüentes nas fases de depressão e
menos freqüentes nas fases de prosperidade; e) maioria de mulheres
entre os alforriados, embora fossem minoria entre os escravos; f) eleva-
do percentual de domésticos entre os alforriados; g) maior incidência
proporcional entre os pardos do que entre os pretos; h) elevado percen-
tual de velhos e inválidos em geral entre os alforriados.”2
Peter Eisenberg, estudando as alforrias em Campinas, reforça al-
guns destes traços mas busca matizá-los, mostrando como ao longo do
século XIX mudam as motivações e, consequentemente, o perfil do liber-
tando. Assim, até 1870 “enquanto a maioria da população escrava era
masculina, negra, crioula, nas idades produtivas e empregada como mão-
de-obra não-qualificada, as alforrias registradas foram desproporcional-
mente distribuídas entre escravas mulatas, crioulas, muito jovens ou, em
grau menor, muito velhas, empregadas no serviço doméstico”.3 Entre-
tanto, nas últimas décadas da escravidão há uma mudança neste perfil:
UNICAMP, 1989, p. 255-314, aponta os seguintes estudos que se utilizaram de cartas de alforrias no Brasil (o
número entre colchetes indica o total de cartas de alforrias utilizadas pelos autores): Daglione, Vivaldo N. F.. A
libertação dos escravos no Brasil através de alguns documentos. Anais de História. Assis (SP). I: 131-4, 1968-
69; Karasch, Mary. Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850. Wisconsin: University of Wisconsin, 1972 (Tese de
doutoramento em história); MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A propósito de cartas de alforria. Bahia, 1779-
1850. Anais de História. Assis (SP). IV:23-52, 1972 [6.969]; Mott, Luiz R. B.. Cautelas de alforria de duas
escravas na província do Pará (1829-1846). Revista de História. São Paulo. XLVII(95):263-8, 1973 [2]; Schwartz,
Stuart. A manumissão dos escravos no Brasil colonial - Bahia, 1684-1745. Anais de História. Assis (SP). VI: 71-
114, 1974 [1.160]; Mattoso, Kátia M. de Queirós. A carta de alforria como fonte complementar para o estudo
da rentabilidade da mão-de-obra escrava urbana (1819-1850). In: Peláez, Carlos Manoel, Buescu, Mircea
(orgs.). A moderna história econômica. Rio de Janeiro: APEC, 1976 [13.127]; Kiernan, James. The manumis-
sion of slaves in colonial Brasil: Paraty, 1789-1822. New York: New York University, 1976 (Tese de doutoramen-
to em história) [325]; Slenes, Robert W.. The demography and economics of Brazilian slavery, 1850-1880.
Stanford University, 1976 (Tese de doutoramento em história) [56]; Kiernan, James. Baptism and manumission
in Brazil, Paraty, 1789-1822. Social Science History. Pittsburgh. 3(1):56-71,1978 [325]; Dean, Warren. Rio Cla-
ro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; Galliza, Diana
Soares de. O declínio da escravidão na Paraíba, 1850-1888. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1979
[947]; Mattoso, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1982; Russel-Wood, A. J.
R.. The black man in slavery and freedom in colonial Brazil, New York: St. Martin’s Press, 1982; Almada, Vilma
Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: o Espírito Santo (1850-1888). Rio de Janeiro: Graal, 1984 [267];
Vianna, Marly de Almeida Gomes. A estrutura de distribuição de terras no município de Campina Grande,
1840-1905. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1985 (Dissertação de mestrado em economia)
[95]. A estes, acrescentaria: Mattoso, Kátia M. de Queirós, Klein, Herbert, Engerman, Stanley. Nota sobre as
tendências dos preços de alforria na Bahia, 1819-1888. In: Reis, João José. Escravidão e invenção da liberda-
de: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, Brasília: CNPq, 1988. p. 60-72.; Bellini, Ligia. Por
amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria. In: Reis, João José. Escravidão e inven-
ção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, Brasília: CNPq, 1988, p. 60-72;
Oliveira, Maria Inês Côrtes de. O liberto: o seu mundo e os outros (Salvador, 1790;1890). São Paulo: Corrupio,
Brasília: CNPq, 1988; e, Gonçalves, Andréa Lisly. “Cartas de liberdade”: registros de alforrias em Mariana no
século XVIII. VII Seminário sobre a Economia Mineira, Anais... Diamantina, 1995. Belo Horizonte: CEDEPLAR/
FACE/UFMG, 1995, p. 197-218.
2 Gorender, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1985, p. 354-355.
3 Eisenberg, P., op. cit., p. 299.
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“Embora a economia local tenha experimentado uma prosperidade ba-
seada no café, o número de alforrias aumentou bem mais rapidamente
do que a população escrava, e o indivíduo alforriado foi majoritariamen-
te um escravo homem, negro e, por força das leis de 1850, 1871 e 1885,
um crioulo na faixa etária mais produtiva de 11 a 49 anos”.4 Portanto, o
perfil do alforriado apresentava-se mais próximo daquele da maioria da
população escrava.
Quando volta-se para o perfil do libertando mineiro do Dezenove,
algumas dificuldades se configuram. Não se consegue, por exemplo,
identificar muitos estudos para o período em tela remontando as carac-
terísticas demográficas desta parcela da população. Apenas os traba-
lhos para o século XVIII, e que eventualmente avançam pelas primeiras
décadas do século XIX, deixam entrever um perfil semelhante ao descri-
to para o Brasil como um todo. Assim, Francisco Vidal Luna e Iraci Del
Nero da Costa, ao estudarem, com base em assentos paroquiais e listas
nominativas, a presença dos forros entre o conjunto de proprietários de
escravos de algumas comunidades mineiras, mostram o predomínio de
mulheres. Entretanto, quando tentam traçar uma relação entre estes pro-
prietários forros e as conjunturas econômicas mineiras, não chegam a
informações mais conclusivas sobre os temas aqui abordados.5 Traba-
lhando com a década de 1830, Herbert Klein e Clotilde Andrade Paiva
traçam um perfil da população livre de cor como um todo, tratando-a
enquanto afro-descendentes e, por isso, originadas de alforrias (diretas
ou indiretas). Não abordam, portanto, o tema específico do perfil do al-
forriado.6
A relação entre os ciclos da atividade econômica e as alforrias é
especialmente problemática quando foca-se a Minas Gerais provincial.
Se, para o século XVIII, o perfil urbano da área mineradora e sua socie-
dade mais diversificada podem ter significado um acesso mais facilita-
do à liberdade e à sobrevivência como alforriado, a passagem da ativi-
dade mineral ao predomínio agrícola pode ter implicado uma diminuição
destas chances.7 Entretanto, o perfil que vem sendo traçado para a eco-
nomia e a sociedade mineiras no século XIX aponta para uma realidade
mais complexa. A região não se caracteriza por uma decadência acen-
tuada após a mineração e o reajuste à agropecuária, mas sim assume
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um novo perfil onde as atividades econômicas se voltam para o abaste-
cimento de mercados vicinais (viabilizados graças ao importante contin-
gente populacional fixado pelas atividades mineradoras) e para o supri-
mento das necessidades de províncias vizinhas (em especial o Rio de
Janeiro após o estabelecimento da Corte em 1808). Estamos diante de
uma realidade que combina dinamismo econômico e ausência de ativi-
dades exportadoras significativas, em um cenário de ausência de gran-
des plantéis ou grandes concentrações escravas, e que cada vez mais
parece ter conhecido um equilíbrio demográfico pouco comum à escra-
vidão brasileira das plantations.8 O que se deve esperar do comporta-
mento das alforrias neste contexto? Esta é uma questão que está por ser
respondida.
Para tentar resolver algumas destas questões, vou lançar mão dos
dados que disponho para o norte de Minas Gerais, mais especificamen-
te a localidade de Montes Claros. Estabelecida como abastecedora de
gado das minas recém-descobertas ainda em finais do século XVII e
princípios do século XVIII, a região logo perderá importância frente a
novas áreas de pecuária do sul da Capitania ou de São Paulo. No século
XIX, vai-se integrar ao novo perfil econômico da província mineira, ligan-
do-se aos circuitos abastecedores da Corte através dos comerciantes
da região central de Minas Gerais. Assim, vou estar estudando uma área
que apresenta uma economia pouco dinâmica e voltada para o abaste-
cimento de mercados internos, sendo, pois, bastante próxima do perfil
de amplas áreas do território mineiro.
Vou trabalhar com as cartas de alforria registradas no Cartório do
Primeiro Ofício de Notas de Montes Claros.9 Construi duas séries de
dados com amplitude de uma década, uma anterior ao fim do tráfico
(1833-1842) e outra no período final do regime escravista brasileiro (1878-
8 Para uma caracterização da economia mineira no século XIX, as referências centrais são: Martins, Roberto. A
economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Texto para Discussão N. 10. Belo Horizonte: CEDEPLAR,
1982; Slenes, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no século
XIX. Cadernos IFCH-UNICAMP, N. 17. Campinas, junho 1985; Libby, Douglas C.. Transformação e trabalho
em uma economia escravista: Minas Gerais, século XIX. São Paulo: Brasiliense, Brasília: CNPq, 1988; e,
PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São Paulo: USP, 1996.
(Universidade de São Paulo - Tese de Doutorado em História Social). Para um perfil da população escrava,
ver, especialmente, LIBBY, Douglas C., GRIMALDI, Márcia. Economia e estabilidade: economia e comporta-
mento demográfico num regime escravista, Minas Gerais no século XIX. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro. 7: 26-
43, dez.1988; PAIVA, Clotilde A., LIBBY, Douglas C., GRIMALDI, Márcia. Crescimento natural dos escravos:
uma questão em aberto. IV Seminário sobre a Economia Mineira, Anais. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/
UFMG, 1988. p. 11-32; PAIVA, Clotilde A., LIBBY, Douglas C.. Caminhos alternativos: escravidão e reprodução
em Minas Gerais no século XIX. Estudos Econômicos. São Paulo. 25(2): 203-233, maio/ ago. 1995; e, BOTE-
LHO, Tarcísio R.. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no Norte de Minas Gerais no século XIX.
São Paulo: USP, 1994. (Diss. Mestrado)
9 O uso dos registros cartorários de alforrias é a fonte principal dos estudos sobre o tema da alforria. Embora
apresentem sérios problemas de sub-registro, que devem ser levados em conta, são a única fonte que traz
informações do momento da alforria. Uma fonte alternativa poderia ser os testamentos, mas eles estão sujei-
tos a modificações até o momento da morte do testador, além de, em geral, conterem muitas alforrias condi-
cionadas. Por outro lado, para fins de prova em juízo, as alforrias concedidas nos testamentos eram registra-
das em cartório pelos testamenteiros.
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1887). A última série apresenta alguns problemas, pois não disponho de
dados para os anos de 1881 e 1882 e não coletei as alforrias arquivadas
nos livros do Cartório do Segundo Ofício que então já existia nesta loca-
lidade. Embora não tenha coletado todo o universo de alforrias de Mon-
tes Claros, isto não compromete minhas análise porque estarei compa-
rando o perfil do alforriado, e não a dimensão deste universo.
A análise da composição das alforrias segundo o sexo mostra um
predomínio de mulheres, reforçando o perfil descrito por Peter Eisen-
berg. 10 Entretanto, este predomínio se amplia no segundo momento,
contrariamente ao observado em Campinas (Tabela 1). No caso em es-
tudo, pode-se atribuir este fato ao equilíbrio entre sexos progressiva-
mente alcançado pela população de Montes Claros após o fim do tráfi-
co11 . Daí também o predomínio ainda maior dos escravos nascidos no
Brasil sobre os africanos (Tabela 2). Se esta já era uma região com popu-
lação africana limitada, ela encontra-se ainda mais reduzida ao final do
regime escravista. Estas evidências apontam para a necessidade de se
realizar a análise do perfil do alforriado sempre em estreita consonância
com o perfil da população escrava em foco.
Tabela 1
Alforriados segundo sexo, Montes Claros, século XIX
Períodos Homens Mulheres Total
N % N % N
1833-1842 35 46.7 40 53.3 75
1878-1887 14 37.8 23 62.2 37
Fonte: BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Livros de Notas Nos 1 a 11
Tabela 2
Alforriados segundo origem, Montes Claros, século XIX
Períodos Brasileiros Africanos S. Inf.
1833-1842 59 78.7 12 16.0 5.3
1878-1887 23 62.2 2 5.4 32.4
Fonte: BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Livros de Notas Nos 1 a 11
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A observação do tipo de alforria também é um elemento importante
nas análises. Em sua grande maioria elas foram dadas a título gratuito.
Entretanto, dentro deste universo encontra-se um predomínio daquelas
que condicionavam sua efetivação à prestação de serviços por parte do
cativo. Assim, em verdade a grande maioria dos cativos alcançou sua
liberdade em troca de remuneração, em dinheiro ou em serviços aos
seus ex-senhores (Tabela 3).
Tabela 3
Alforriados segundo o tipo de alforria,
Montes Claros, século XIX (%)
Períodos Gratuita Prestação Pagamento Prestação Sem
de de serviços infor-
serviços e pagamento mação
1833-1842 28.0 38.7 28.0 1.3 4.0
1878-1887 29.7 48.6 8.1 0.0 10.8
Fonte: BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Livros de Notas Nos 1 a 11
12 Castro, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista,
Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 72. Outro estudo na mesma linha é: Chalhoub,
Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1990.
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miliares e comunitárias. Um exemplo do apoio representado pela família,
tanto na busca da liberdade quanto na garantia da sobrevivência após o
cativeiro, pode ser encontrado no caso de Maria Guilhermina de Jesus,
ex-escrava de José Guilherme dos Santos, que em dezembro de 1881
iniciou a luta pela liberdade do seu filho João.13
Também Vicente Ferreira Leal, morador no Arraial do Coração de
Jesus, “pobre e miserável”, em petição de 21 de Outubro de 1868, foi
perante o Juiz Municipal de Montes Claros “requerer o que for a bem e
direito de sua Irmã Firmina parda idade de 35 anos e de sua sobrinha
Sebastiana idade de 15 anos, escravizadas por Sancho Ramos”. Alegou
que a finada D. Ana Francisca Leal libertara Firmina. Porém, os herdei-
ros de Manuel Antônio e Sancho Ramos deram a descrever no inventário
esta escrava e sua filha nascida depois da morte da doadora. Na condi-
ção ilegal de cativas, serviram por mais de 15 anos aos herdeiros, com
sua filha trabalhando desde os 7 anos de idade.14
Outro exemplo vem do papel desempenhado por Simplício da Ro-
cha Queiroz, avô de João, Honória, Josefa, Nicodemos, José, Luzia e
Honória, no processo de Ação de Liberdade movido por ele contra os
herdeiros do antigo senhor, o coronel Lásaro da Rocha Queiroz. Em 19
de Outubro de 1878, Simplício entrou com uma petição no Juízo Munici-
pal de Montes Claros em que dizia que seus netos João e Tereza foram
inventariados como escravos do coronel Lásaro, quando na verdade
haviam sido libertados pela filha do mesmo, D. Emília da Rocha Queiroz,
sua verdadeira senhora. Quando morreu sua filha, o coronel Lásaro de-
clarou, na matrícula de escravos instituída pela Lei do Ventre Livre (1871),
serem estes escravos livres e os entregou a seu avô para com ele mora-
rem, e viviam na companhia deste, distantes da fazenda do coronel cer-
ca de uma légua.15
Simplício aproveitara da sua condição de liberto para intervir em fa-
vor de seus netos. Estes encontraram proteção e segurança na casa do
avô, como atestou Honória, em uma petição de 10 de dezembro de 1884.
Para defender-se de tentativas de reescravização por parte de um her-
deiro do Coronel Lásaro, seu antigo senhor, ela alegou que “não foi cha-
mada ao cativeiro vivendo em abandono há cerca de seis anos, em lu-
gar sabido, provendo as suas próprias necessidades pelo seu Trabalho,
e em casa própria. Neste estado a suplicante tem tido filhos continuando
a promover a subsistência dos mesmos, sem que jamais a chamassem
13 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Ação de liberdade de João, filho de
Maria, contra José Luiz Esteves Viana, 05/12/1881.
14 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Ação de liberdade de Firmina e
Sebastiana contra Sancho Ramos, 21/10/1868. Todas as transcrições de documentos de época tiveram a
ortografia atualizada, preservando-se a pontuação.
15 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Ação de Liberdade de João, Honó-
ria e outros contra os herdeiros do Coronel Lásaro da Rocha Queiroz, 19/10/1878.
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à escravidão”. Residia nas terras ocupadas pelo seu avô, que desta
forma lhe garantira o acesso à terra após a sua libertação.16
O crioulo João demonstrou ter esta capacidade de se articular e
buscar apoio entre os livres. Em abril de 1881, ele entrou com uma peti-
ção contra sua senhora Joaquina de Freitas, alegando ter direito à liber-
dade por já ter sido alforriado por alguns dos condôminos. Assinara esta
primeira petição um certo João Martins de Sant’Ana que, ao longo do
processo, foi arrolado como testemunha do escravo. Fica-se, então, sa-
bendo que João Martins, 18 anos, era caixeiro, morador na cidade de
Montes Claros. Em seu depoimento, afirma que: “o Autor tem sido aluga-
do a Lucas Pereira dos Anjos em cuja companhia serve ele testemunha,
à razão de doze mil réis por mês, e que nisso tem decorrido cerca de
quatro anos de aluguel o qual tem sido recebido e gozado pela ré”. Cer-
tamente, João o conheceu quando estava alugado a seu patrão e apro-
veitou-se do acesso a uma pessoa alfabetizada e bem informada para
tentar obter a sua libertação.17
Estas lutas pela liberdade reforçavam ainda mais os laços familia-
res. Vemos escravos que lutam não apenas por si, mas também por seus
irmãos e outros parentes, reafirmando a importância da família para o
cativo. O apoio mútuo permitido por ela reanimava o empenho em so-
breviver dentro da escravidão e abria esperanças para um futuro de li-
berdade. Neste futuro de liberdade, era necessário levar em conta tam-
bém a liberdade material.
Neste e noutros casos precedentes, vê-se que a luta pela liberdade
estava permitindo aos escravos o acesso à terra, mas sob condições de
subordinação econômica e política aos grandes proprietários rurais. Pode-
se perceber elementos originais desta subordinação na forma como os
escravos tinham acesso a uma economia própria dentro do escravismo.
Não entrarei na discussão da chamada “brecha camponesa”, denomi-
nação que vem sendo dada ao direito dos cativos terem uma economia
desvinculada da economia senhorial.18 Neste momento, quero apenas
enfatizar que os escravos tinham de buscar nos homens livres, e mesmo
em seus senhores, o apoio na preservação de seus pequenos patrimôni-
os, da mesma forma como tinham que contar com eles para consegui-
rem sua liberdade.
Buscar a ajuda dos senhores na defesa de seus patrimônios era
16 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Oficio Judicial, Maço Ações, Ação de Liberdade de Brasida ou
Honória contra Hipólito Rodrigues Soares, 10/12/1884.
17 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Ação de liberdade de João, Crioulo,
contra D. Joaquina Martins de Freitas e outros, 05/04/1881.
18 Para uma breve discussão sobre o tema e uma síntese dos achados para varias regiões do pais, ver: Cardo-
so, Ciro F. S.. Escravo ou camponês?. São Paulo: Brasiliense, 1987; e, Silva, Eduardo. A função ideológica da
brecha camponesa. In: Silva, E., Reis, J. J.. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 22-31.
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uma tarefa relativamente simples para os escravos. Como não possuíam
personalidade jurídica, todos os bens acumulados pelos escravos per-
tenciam ao seu senhor; eram, também, patrimônio do senhor. Daí a facili-
dade em se encontrar na documentação cartorial do século XIX petições
como estas presentes no inventário de João Gonçalves de Siqueira: Daniel
Pereira da Costa, em Julho de 1852, alegou que “o finado (...) ficou a
dever a seu Escravo José a quantia de cinco mil réis resto de maior soma
que lhe tomou emprestado no Rio Jequitinhonha em tempo em que o
dito Escravo era pertencente ao mesmo finado”; da mesma forma, Ana
Justina Gonçalves também entrou com uma petição querendo receber
“3:400 [réis] que [o finado] tomou emprestado a seu escravo Serafim”.19
Interessa-me aqui verificar os momentos em que se associam o pa-
trimônio do escravo e sua família, pois acredito serem reforços à subor-
dinação de que falei. Um exemplo interessante vem da localidade de
Guaicuí, próxima a Montes Claros, em um processo de 1867. Raimundo
Pereira da Costa, escravo de Maria da Costa, do município de Curvelo,
com o consentimento desta, doou uma potra a sua filha Domingas, es-
crava de João Manoel de Carlos Buitrago. Raimundo casou-se depois
com Joaquina. Morrendo Raimundo, depois de aproximadamente 4 anos,
sua mulher se apoderou da potra e suas crias, conduzindo-as para Guai-
cuí. O suplicante (João Manoel) alegava que não só a potra como toda a
sua produção sempre foi conservada e tratada pelo doador (Raimundo)
em nome e benefício da donatária (Domingas) na Fazenda da Extrema,
Município do Curvelo, mesmo na época do matrimônio do doador.
Apesar da precariedade de informações sobre este escravo, pode-
se tentar recriar a trajetória de sua vida. Tendo uma primeira filha antes
do casamento, Raimundo procurou repartir com ela seu patrimônio, pro-
vavelmente buscando formar um pecúlio para uma futura alforria da fi-
lha. Esta primeira experiência familiar não impediu que o escravo cons-
tituísse uma nova família, já em Guaicuí e provavelmente com uma livre
ou liberta. Não se conhece o patrimônio deixado por Raimundo. Todavia,
a sua viúva encontrava-se numa situação cômoda o suficiente para ir ao
município vizinho resgatar os animais que julgava pertencer-lhe.20
Entretanto, o exemplo mais acabado de como um cativo consegue
conquistar uma posição relativamente confortável no mundo da escravi-
dão vem de um processo da primeira metade do século XIX. Em 1839,
Geraldo José das Neves entrou com uma ação de rescisão de liberdade
contra seu escravo José Cassange.21 Por não ter herdeiros, ele o havia
19 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço 50, Inventário de João Gonçalves de Si-
queira, 1851.
20 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Petição de João Manoel de Carlos
Buitrago, 23/10/1867.
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libertado com a condição de aquele o servir até a sua morte. O cativo,
porém, não estaria em sua companhia, e sim em constantes passeios
pelas fazendas vizinhas, principalmente a Fazenda de Santa Bárbara,
onde sempre iria “ter com uma escrava da mesma fazenda”. O senhor
tentara rescindir a liberdade, mas o escravo espalhara boatos de que
era forro, o que dificultava sua venda. Daí ter ele entrado com um pro-
cesso para obter judicialmente a rescisão.
Os testemunhos incorporaram informações interessantes sobre a vida
deste escravo. Segundo João Moreira Gonçalves, o réu fazia passeios
contrários à vontade de seu senhor, aproveitando-se de sua ausência.
Ia, “em uma sua própria égua”, à Fazenda de Santa Bárbara e à Fazen-
da do Alferes Gregório Caldeira Brant, atrás das suas escravas. Embora
sempre fizesse esses passeios aos domingos e dias santos, e à noite,
alguns foram feitos em dias úteis, faltando ao serviço da casa do senhor.
Além disso, sabia que “o Réu fizera uma fugida, e veio ter-se nesta Vila
na Casa do Sargento-Mor Bernardino da Rocha Queirós, (...) e que de
outra vez foi ter-se na casa do Alferes Gregório Caldeira Brant por ele
Autor o mandar, dizendo que visto o Réu não querer se aprontar para
acompanhar ao Autor para a Serra do Grão-Mogol, e fosse para o dito
Caldeira a comprar”.
Luís Moreira Gonçalves sabia “por ver e presenciar muitas vezes o
Réu se ter na fazenda de Santa Barbara de noite atras de uma escrava
da dita fazenda e que sabe por ouvir dizer que o Réu ia ter-se à fazenda
do Alferes Gregório Caldeira, e lá trabalhava, e que tinha na dita Fazen-
da amizade com uma Escrava do dito Alferes, e que tinha tido um filho
com a mesma escrava, mas que este morrera, e que se desencaminha-
va outras escravas ele testemunha não sabe”.
Este africano conseguira, ao longo de sua vida no Brasil, conquistar
uma posição bastante segura no cativeiro. Possuía liberdade de movi-
mentos, podendo circular entre as fazendas da região. Conquistara in-
clusive a confiança de boa parcela da população livre, já que acredita-
vam ser ele forro, mesmo com as afirmações em contrário do seu (presu-
mido) senhor. Sua liberdade de movimentos permitia-lhe também se re-
lacionar com as escravas de várias fazendas vizinhas. Alguns destes
relacionamentos parecem ter sido estáveis, como aquele com a cativa
do Alferes Caldeira Brant, com quem chegara a ter um filho. Insatisfeito
com seu senhor, obteve dele a permissão de procurar quem lhe com-
prasse. Chegou mesmo a trabalhar para o Alferes Caldeira Brant en-
quanto sua situação encontrava-se pendente.
21 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Libelo cível de rescisão de liberda-
de, movido por Geraldo José das Neves, hoje sua mãe Maria das Neves, contra José Cassange/Angola,
africano, 11/11/1839.
71
Para um escravo que fora escravizado na África, atravessara o Atlân-
tico em navio negreiro e fora levado de algum porto na costa brasileira
para os sertões de Minas Gerais, conseguir recompor a sua vida e al-
cançar a independência por ele conquistada era uma admirável prova
da capacidade de adaptação dos negros à realidade do cativeiro. José
Cassange mostrou todo o seu potencial em se aproveitar de pequenas
conquistas cotidianas para recuperar um mínimo de estabilidade em sua
vida. José Cassange mostrou, também, os caminhos tortuosos percorri-
dos pelo escravismo no Brasil, próprios de toda realidade social marca-
da pela luta.
Todas estas histórias de vidas escravas mostram as várias estratégi-
as que podiam se adotadas pelos cativos para alcançarem uma posição
minimamente confortável. Deixam claro os percursos diversos da
(re)construção de famílias e laços de solidariedade entre os escravos
desta região em estudo. É importante notar, todavia, como este é um
processo de lutas contínuas, onde um lado do campo de batalha molda
a face do inimigo e é por ele moldado. A família, aspecto importante
para o cativo, era também um elemento precioso para o senhor, tanto em
termos de controle social quanto de potencial reprodutivo para seu plan-
tel. A reprodução natural, neste caso, desempenhou um papel impor-
tantíssimo, tendo em vista a realidade econômica e social que cercava o
norte de Minas Gerais ao longo do século XIX. A precariedade econômi-
ca e a pressão exercida pelo avanço da cafeicultura na Zona da Mata
Mineira não impediram a região de manter-se escravista até os últimos
momentos deste regime no país. Isto seguramente deveu-se aos pro-
cessos de reprodução natural de sua população cativa.
Por outro lado, como acabamos de ver, a família escrava parece ter
desempenhado um papel importante na própria transição para o traba-
lho livre. Colocando alternativas para seus senhores, podem ter ajudado
a forjar uma realidade pautada pelo trabalho livre não-assalariado, base-
ada na subordinação econômica e política à mesma classe senhorial e
reforçada pelos laços de dependência pessoal construídos ao longo do
próprio sistema escravista.
Neste sentido, termos como acomodação e resistência, tão presen-
tes nas discussões historiográficas sobre o escravismo brasileiro, assu-
mem uma outra dimensão, uma dimensão de luta. Acomodação e resis-
tência escravas surgem como instantes indissociáveis no escravismo,
assumindo a dimensão de espaço de transformação da realidade rumo
a novas relações de subordinação e exploração do trabalho, mas tam-
bém de libertação e autonomia.
72
Outros significados da liberdade: bacharéis e rábulas
Ao lado da construção de determinados significados da liberdade
para o cativo ao longo do século XIX, temos também uma modificação
destes para a população livre, ou pelo menos a elite letrada. Hebe Cas-
tro aponta para modificações que começam a ocorrer nas discussões
jurídicas travadas nas Ações de Liberdade. Assim, enquanto os advo-
gados baseavam suas argumentações nas Ordenações Filipinas, esta-
mos diante de um Estado que é chamado a arbitrar acerca de dúvidas
levantadas a partir das relações costumeiras, pois “no contexto das Or-
denações Filipinas, a arbitragem estatal procurava repor o equilíbrio en-
tre as relações de poder, enquanto estas não se mostravam em harmo-
nia para definir costumeiramente se alguém era livre ou escravo”.22 En-
tretanto, à medida em que avança o século XIX, percebem-se transfor-
mações nas concepções acerca da liberdade. Assim, “na fase de con-
solidação política do novo Estado, baseado num arcabouço jurídico li-
beral, a liberdade e a propriedade, entendidas como direitos naturais,
tornar-se-iam de foram definitiva o substrato teórico que embasaria, daí
por diante, a resolução jurídica da questão.23
Nas Ações de Liberdade aqui trabalhadas, há um claro acompanha-
mento desta trajetória acima descrita. Nota-se um abandono da simples
prova testemunhal (que procura confirmar uma relação costumeira) e
caminha-se para agregar a ela uma argumentação jurídica que apelava
para os princípios aqui destacados (liberdade x propriedade). Um pri-
meiro exemplo vem de um processo de 1869 que julgou o direito à liber-
dade de um escravo partido em inventário a vários condôminos. Haven-
do pagado parte de seu valor a alguns de seus senhores, o escravo teve
suas ofertas recusadas por outros.24 O curador do libertando argumen-
tou que “a liberdade é direito natural, e que a escravidão é um dos mai-
ores males, que ora pesa sobre nós. Cumpre atacá-la com prudência,
mas com franqueza”. O advogado dos réus, Esequias Teixeira de Carva-
lho, por sua vez, argumenta que “é um fato excepcional, confessamos, a
questão da liberdade e escravidão do indivíduo; mas, uma vez que ain-
da não foi riscado de nossas leis o direito do senhor contra o escravo,
uma vez que o escravo é propriedade, não se trata, em autos cíveis de
jure contituendo, porém sim de jure constituto”.
Em outra ação, de 1878, o curador do cativo, Diocleciano Lino da
Costa Ferreira, iniciou seu arrazoado caracterizando do seguinte modo
a discussão presente no processo: “Não é uma simples questão de di-
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reito de propriedade que se discute nestes autos; a questão é do estado
do indivíduo, e assuntos dessa natureza e magnitude, uma vez agitados,
merecem uma pronta resolução”.25 O curador dos menores herdeiros do
cativo, José Rodrigues Prates, por sua vez, argumentou que: “A escravi-
dão é um mal para a sociedade, mas ela existe segundo as nossas leis e
a sua extirpação não compete ao Poder Judiciário a que não é dado
competência de legislar, mas somente da guarda das leis escritas do
pais”. E acrescentou: “Esses favores [à liberdade] que se acham espa-
lhados em todo o corpo de nosso direito pátrio, são a cornucópia da
atual civilização; mas que não podem ser espalhados arbitrariamente
sem uma regra ou norma de aplicação que se encontra nas mesmas
leis”.
Estes casos são ainda mais interessantes porque os autores de tais
argumentos não eram advogados formados nos centros intelectuais do
Império, mas simples rábulas atuando numa comarca afastada do interi-
or mineiro. É de surpreender como estas pessoas estavam atualizadas
com as discussões que se travavam entre os juristas da época, freqüen-
temente citados nos seus arrazoados. Vislumbra-se, portanto, uma am-
pla difusão das idéias acerca da escravidão entre a elite brasileira, a
qual parece ter conhecido uma enorme capilaridade, podendo ter pene-
trado as regiões mais longínquas do Império brasileiro.
Sou, com isto, levado a pensar em um outro tipo de questão, a saber,
quem eram os indivíduos que advogavam para estes cativos e como se
dava o contato entre eles. Keila Grinberg levanta esta questão e aponta
para a necessidade dos cativos conhecerem seus futuros curadores e,
portanto, terem com eles um contato pessoal, o que só era possível aos
escravos com posição bastante favorável nos plantéis.26 Hebe Castro
indica a possibilidade do uso pelo cativo de desafetos políticos dos seus
senhores.27 Com base nos relatos do item anterior, percebe-se que a
circulação entre livres era um requisito necessário aos cativos para que
pudessem ingressar com ações na justiça local. Por outro lado, obser-
vando-se os advogados envolvidos nas Ações de Liberdade que corre-
ram em Montes Claros, surgem alguns aspectos curiosos. Alguns advo-
gados eram especialmente freqüentes como curadores de cativos, como
Justino de Andrade Câmara28 e Esequias Teixeira de Carvalho29 . Pode-
25 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Ação de Liberdade de João, There-
sa e outros, 19/10/1878.
26 GRINBERG, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade: as ações de liberdade na Corte de Apelação do Rio de
Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 63-70.
27 Castro, H., op. cit., p. 200-1.
28 Curador dos cativos envolvidos nos seguintes processos: BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício
Judicial, Maço Ações, Ação de Liberdade de Theodoria e sua descendência, 09/08/1865; Avaliação para
manutenção de liberdade de Manoel João, 19/11/1872; Ação de Liberdade de Matheos, 28/02/1876; Arbitra-
mento e avaliação de escravos para serem libertos pelo Fundo de Emancipação, 29/02/1876; Ação de Liber-
dade de Brasida, 10/12/1884.
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se pensar em uma possível atuação de abolicionistas, sempre prontos a
defender as causas da liberdade. Entretanto, Justino de Andrade Câma-
ra foi um importante político do Partido Conservador local, chegando a
deputado provincial e a presidente da Assembléia Legislativa Provincial
de Minas Gerais. Em sua atuação política, não aparecem características
que possam aproximá-lo de um perfil abolicionista. Esequias Teixeira de
Carvalho, por sua vez, embora tenha atuado como curador de escravos
em 5 ações, foi o advogado que lutou pela escravidão em um dos pro-
cessos que usei como exemplo acima.30 Por outro lado, não me parece
que estes advogados estavam atuando contra seus desafetos políticos,
muito embora ainda não tenha elementos concludentes acerca disto.
Pode-se estar diante de homens que agiam como profissionais, en-
volvendo-se naquelas ações que lhes apareciam. Reforça esta impres-
são o fato destes dois advogados terem atuado com bastante freqüên-
cia em outros processos da comarca de Montes Claros, como inventári-
os e ações cíveis em geral. Caso seja este o verdadeiro perfil daqueles
que atuavam nas Ações de Liberdade, pode-se tomá-lo como mais um
reforço à imagem já traçada de uma circulação bastante ampla das idéi-
as discutidas por juristas nos grandes centros intelectuais brasileiros.
Assim, tem-se uma compreensão melhor daquilo que Hebe Castro des-
creve como “uma consciência anti-escravagista, que precede o movi-
mento abolicionista propriamente dito, e que se preocupava em garim-
par e embasar juridicamente estas possibilidade [jurídicas de alforria],
bem como se dispunha a representar os cativos contemplados”.31 A meu
ver, esta imagem corresponderia não simplesmente a uma aversão cada
vez maior à instituição escravista, mas à abertura, para o escravo, de
muitas das possibilidades existentes aos cidadãos para se defenderem
sempre que julgassem ter os seus direitos desrespeitados. Não estaría-
mos mais diante daquela situação em que os problemas entre senhores
e escravos deveriam ser resolvidos na esfera privada. Cada vez mais
estes problemas eram também problemas públicos e, portanto, seme-
lhantes àqueles dos cidadãos em geral. Pode-se concluir com uma cita-
ção da mesma autora: “Na segunda metade do século XIX, a pressão
tradicional pelo trânsito da escravidão à liberdade extravasava os limites
do poder privado dos senhores e se fazia presente nos tribunais, questi-
onando judicialmente os limites e a legitimidade daquele poder. (...) esta
29 Curador dos cativos envolvidos nos seguintes processos: BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício
Judicial, Maço Ações, Reforma dos autos de depósito das escravas Silveria e Sebastiana, 28/12/1876; Ação
Sumária de Liberdade de João, filho de Maria, 05/12/1881; Ação de Liberdade de João Crioulo, 05/04/1881;
Ação de Liberdade de Marcelino cabra e Roberta cabra, 19/06/1883; Ação de Liberdade de Veríssimo crioulo,
14/05/1883.
30 BRASIL, Montes Claros, Cartório do Primeiro Ofício Judicial, Maço Ações, Ação de Liberdade de João, There-
sa e outros, 19/10/1878.
31 Castro, H., op. cit., p. 206-7.
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possibilidade não precisava ser generalizada, bastava seu caráter exem-
plar para comprometer na medula o exercício daquela autoridade”.32
Considerações finais
O estudo das alforrias no século XIX mineiro é especialmente rico e,
a meu ver, merecedor de mais e melhores estudos. A compreensão da
dinâmica das concessões de alforrias mostra-se relevante porque, da-
das as características da economia de Minas Gerais no período, pode-
remos abrir novas possibilidades para se compreender as motivações
desta prática. Não bastarão as explicações baseadas nas conjunturas
econômicas, no caráter urbano ou em outras variáveis comuns aos estu-
dos de outras regiões e períodos, sendo necessário lançar mão de mo-
delos explicativos mais variados e dinâmicos.
Outro aspecto relevante diz respeito ao significado assumido pela
liberdade entre a população mineira. O estudo das Ações de Liberdade
nos juizados de primeira instância certamente abrirá novas perspectivas
para o uso desta documentação que surgiu nas últimas décadas para o
historiador da escravidão no período imperial brasileiro. Os trabalhos
que usam estas fontes têm se utilizado dos processos que recorreram
aos Tribunais de Relação. São, portanto, uma minoria que seguramente
guarda determinadas características que podem relativizar as conclu-
sões até agora tiradas. Aguarda-se, pois, a disseminação de tais estu-
dos. Espero que esta contribuição inicial possa estimular outros pesqui-
sadores a se aventurarem pelos arquivos locais espalhados por todo o
país.
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