Kelvin Nuvens.o

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Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, v. 29, n. 4, p.

509-512, (2007)
www.sbfisica.org.br

Duas nuvens ainda fazem sombra na reputação de Lorde Kelvin


(Two clouds still obscure the reputation of Lord Kelvin)

Peter A. Schulz1
Instituto de Fı́sica ‘Gleb Wataghin’, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brazil

Lorde Kelvin é considerado um dos mais importantes fı́sicos do século XIX. Talento multifacetado e homem
público é autor de aforismos famosos, mas muitas frases a ele atribuı́das não passam de lendas urbanas. Uma
das mais famosas é a de “existem apenas duas nuvenzinhas no céu da fı́sica”, e suas variantes, aludindo à crença
de completude da fı́sica no inı́cio do século passado. As “duas nuvenzinhas” nada mais são do que a teoria da
relatividade e a mecânica quântica, os dois pilares da fı́sica moderna. Ao contrário do que muitos propagam,
Lorde Kelvin na verdade parecia estar bem ciente do impasse da fı́sica clássica na época e deixou para os seus
sucessores uma indicação clara de que rumos deveriam ser seguidos.
Palavras-chave: história da fı́sica, fı́sica clássica, fundamentos da fı́sica moderna.

Lord Kelvin is considered one of the most important physicists of the nineteenth century. With multiple tal-
ents and a public man, he is the author of famous aphorisms, but many phrases attributed to him are not more
than urban legends. One of the most known is that ”there are only two little clouds in the sky of physics”and
many variations, alluding the belief of completeness in physics at the beginning of the last century. The ”two
little clouds”are nothing else than the theory of relativity and quantum mechanics, the two pillars of modern
physics. In opposition to what is often propagated, Lord Kelvin seemed to be quite aware of the dead end of
classical physics at that time and gave a clear indication to the newcomers of the paths to be followed.
Keywords: history of physics, classical physics, fundamentals of modern physics.

Quando a lenda torna-se um fato, imprima- teriam dito que “não há nada de novo para ser desco-
se a lenda. berto na fı́sica, tudo o que resta são medições mais e
mais precisas”. A verdade é bem mais complexa, mas
Essa é a resposta de um jornalista ao Senador Ran- deixando de lado a lenda, vamos aos fatos.
som Stoddart (James Stewart), que tenta desfazer seu Existe uma longa série de frases atribuı́das a Lorde
mito (que fez sua projeção polı́tica) de ter matado o Kelvin, que pode ser verificada na Web [1]. Interessa-
facı́nora Liberty Valance (interpretado por Lee Mar- nos aqui um aforismo em particular, que em uma de
vin), morto na realidade por Tom Doniphon (John suas versões apresenta-se assim:
Wayne) no filme “O homen que matou o facı́nora”, di- No céu azul da fı́sica clássica existem apenas
rigido por John Ford. duas nuvens a serem dirimidas... [2]
Há dois anos comemorávamos intensamente o ano
internacional da fı́sica e as contribuições fundamentais Acho que quase todos nós já lemos ou ouvimos uma
de Albert Einstein foram amplamente recapituladas, palestra mencionando com um toque mais ou menos
pois essas se confundem com os próprios fundamen- irônico sobre “apenas duas nuvens”, que muitas vezes
tos de quase toda a fı́sica desenvolvida nos 100 anos assumem a forma de “duas nuvenzinhas” de Lorde Kel-
seguintes. Um dos efeitos colaterais de comemorações vin. Ouvi um desagravo em uma palestra de Yuval
desse tipo é uma certa facilidade na proliferação de len- Neeman,2 o que me levou a investigar o assunto. Vale
das, tomadas como verdade, mas raramente checadas. lembrar que também existem muitos registros escritos
Afinal, a revolução no conhecimento humano proporcio- que dão a interpretação adequada às nuvens, como a
nada pela fı́sica moderna torna-se ainda mais saborosa discutida a seguir, e que eu obviamente não sou origi-
se lembrarmos de que os cientistas renomados da época nal nesse aspecto.
1 E-mail: pschulz@ifi.unicamp.br.

2 Fı́sico israelense (1925-2006), conhecido pela descoberta, independentemente de Murray Gelmann, do modelo dos quarks.

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fı́sica. Printed in Brazil.


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A fonte original é um artigo publicado em 1901, As dificuldades conectadas com a aplicação


versão revisada de um discurso proferido no ano an- da lei de equipartição de energia para ga-
terior. O tı́tulo do artigo é: “Nuvens do século deze- ses reais vem sendo sentida há muito. No
nove sobre a teoria dinâmica do calor e da luz” [3]. O caso do Argônio, do Hélio e do vapor de
primeiro parágrafo deixa claro do que trata o artigo: Mercúrio, a razão de calores especı́ficos
(1,67) limita os graus de liberdade de cada
A beleza e claridade da teoria dinâmica, molécula aos três requeridos pelo movi-
que coloca calor e luz como modos de movi- mento de translação. O valor de 1,4 apli-
mento, está presentemente obscurecida por cável aos principais gases diatômicos dá lu-
duas nuvens. I. A primeira apareceu com a gar aos três graus de liberdade de translação
teoria ondulatória da luz, desenvolvida por e dois de rotação. Nada sobra para a
Fresnel e o Dr. Thomas Young; envolvendo rotação em torno da linha juntando os
a questão de como pode a Terra mover-se átomos, nem para o movimento relativo dos
através de um sólido elástico, como o é es- átomos ao longo dessa linha. Mesmo que
sencialmente o éter luminı́fero? II. A se- consideremos os átomos como meros pon-
gunda é a doutrina de Maxwell-Boltzmann tos, cuja rotação nada significa, ainda de-
sobre a equipartição de energia. veria existir energia do último tipo mencio-
nado e a sua quantidade (de acordo com a
A primeira observação a ser feita refere-se à ausência lei) não deveria ser inferior...
do diminutivo “nuvenzinhas” ou da palavra “apenas”. ...Os dois átomos continuam dois átomos e
Nem poderiam existir, pois Lorde Kelvin debruça-se os graus de liberdade permanecem seis em
sobre essas duas questões nas 39 páginas seguintes do número.
artigo! O que parece ser desejado é uma escapatória
A discussão do problema do movimento da Terra no da destrutiva simplicidade dessa conclusão
éter, origem da teoria da relatividade (cuja formulação, geral.
na sua versão restrita, de Einstein prescindindo do éter
Logo após essa citação, Lorde Kelvin finaliza seu
foi publicada apenas 4 anos depois) ocupa “apenas”
artigo com um parágrafo que eu interpreto como sar-
as 6 páginas seguintes ao parágrafo inicial. Essa dis-
cástico em relação ao status quo, em vez de desdenhoso
cussão sobre a nuvem I termina com um comentário so-
em relação ao futuro da fı́sica:
bre o experimento de Michelson e Morley, que mostrou
a ausência de movimento da Terra em relação ao éter: A maneira mais simples de chegar a esse re-
sultado desejado é negar a conclusão e, as-
Eu não consigo vislumbrar nenhuma falha, sim, no inı́cio do século XX, perder de vista
tanto na concepção quanto na execução do essa nuvem que tem obscurecido o brilho
experimento. Mas uma possibilidade de es- da teoria molecular do calor e luz durante o
capar da conclusão que o experimento pa- último quarto do século XIX.
rece provar3 , pode ser encontrada em uma
Não muito tempo depois descobriu-se que só a fı́sica
brilhante sugestão feita independentemente
quântica poderia resolver esse problema [5] e uma lei-
por FitzGerald e por Lorentz de Leyden, de
tura cuidadosa do seu artigo leva à conclusão de que
que o efeito do movimento do éter através
Lorde Kelvin reconheceu claramente as limitações da
da materia poderia alterar levemente as di-
fı́sica clássica. A Lorde Kelvin também é atribuı́da a
mensões lineares desta....
frase de que “nada mais existe para ser descoberto na
...Eu temo que devemos considerar a nuvem
fı́sica, restando apenas medidas mais precisas”. Não
I como muito densa.
encontrei registros originais que possam resgatar a ori-
gem dessa frase. Muitas vezes ela é citada como com-
Eu temo que devemos considerar que Lorde Kelvin
plemento à das “nuvenzinhas”, mas não existe nenhum
intuia a dimensão da tempestade.
conjunto de palavras parecido a esse no artigo de 1901
A nuvem número “II” é discutida nas últimas 33 pá-
publicado no Phil. Mag. Essa lenda é alardeada tam-
ginas. É dı́ficil acreditar que álguem dedique 33 páginas
bém na imprensa não especializada, como no trecho
de um artigo impresso a “uma nuvenzinha”. O proble-
abaixo, publicado na revista Carta Capital [6].
ma colocado pela equipartição de energia não podia ser
resolvido no âmbito da fı́sica clássica. A dificuldade era No final de sua carreira, Lorde Kelvin, “o
realmente enorme, pois a equipartição de energia era in- mais famoso fı́sico do fim do século XIX”,
compatı́vel com os resultados experimentais para os ca- recomendava aos jovens não se dedicarem à
lores especı́ficos dos gases. No final de seu artigo, Lorde fı́sica, pois a essa disciplina só restava acres-
Kelvin cita seu eminente colega Lorde Rayleigh [4]. centar casas decimais a algumas constantes
3 Ou seja: a inexistência do éter.
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e resolver problemas secundários. Como as The Completeness of Nineteenth-Century Science [10].


“duas nuvens” na teoria da luz e do calor Segundo levantamento bibliográfico feito por Badash,
que citou em sua famosa palestra de 27 de a origem se deve, de forma involuntária, pois ele não
abril de 1900: o fracasso da tentativa de me- acreditava nisso, a James Clerk Maxwell numa palestra
dir a velocidade da Terra por meio do éter realizada na Universidade de Cambridge em 1871:
e a dificuldade de explicar a distribuição de
energia na radiação de um corpo aquecido. Essa caracterı́stica dos experimentos mo-
dernos – de que consistem principalmente
O problema da radiação do corpo negro [7] não de medidas – é tão proeminente, que a
é discutido por Kelvin, embora a solução encontrada opinião de que em uns poucos anos todas as
por Planck fornecesse o conceito de quantização, que grandes constantes da fı́sica serão aproxima-
também seria a solução para o dilema colocado pela damente estimadas e que a única ocupação
equipartição para a teoria cinética dos gases. Lorde que será deixada para os homens de ciência
Kelvin nem ao menos cita o trabalho de Max Planck será aprimorar esses experimentos e aumen-
como possı́vel caminho de solução, como fez com os tar a precisão em mais uma casa decimal,
trabalhos de FitzGerald e Lorentz no caso da Nuvem parece ter se generalizado [10].
de número I, provavelmente por ainda não conhece-lo:
a palestra de Lorde Kelvin (o artigo é a reprodução Temos então uma fonte mais remota para o tal “não
da palestra) foi proferida a 27 de abril de 1900 e o há nada de novo a ser descoberto” atribuı́do a Kelvin;
trabalho de Planck introduzindo o quantum foi apre- mas outro trecho, agora de um texto de A.A. Michelson
sentado só alguns meses depois a 14 de dezembro de de 1894, merece uma divulgação mais ampla:
1900. No resumo de seu artigo, Lorde Kelvin comenta
que faz adições à palestra, que descrevem o trabalho Embora nunca é seguro afirmar que o fu-
realizado por ele após a palestra. Esse trabalho é vol- turo das ciências fı́sicas não tem maravilhas
tado, no entanto, ainda à teoria cinética dos gases e há em estoque ainda mais impressionantes que
um agradecimento especial a seu secretário e assistente, as do passado, parece provável que a maior
Mr. William Anderson, responsável pelos cálculos des- parte dos grandes princı́pios foram firme-
critos ao longo das 33 páginas dedicadas à nuvem de mente estabelecidos e que avanços futuros
número II. precisam ser buscados arduamente na apli-
Esses cálculos merecem um artigo à parte. Para cação rigorosa desses princı́pios a todos os
verificar alguns aspectos da “doutrina de Boltzmann- fenômenos de que tomamos conhecimento.
Maxwell” sobre a teoria cinética dos gases, Anderson Aqui é que a ciência da medida mostra sua
gerou números aleatórios com um baralho de cartas nu- importância - onde os resultados quantita-
meradas e calculou um total de 5000 impactos molecu- tivos são mais desejados do que o trabalho
lares com superfı́cies e 300 colisões inter-moleculares, qualitativo. Um eminente fı́sico ressaltou
realizando assim o que foi provavelmente a primeira si- que as verdades futuras das ciências fı́sicas
mulação de um tipo que depois passou a ser conhecida devem ser procuradas na sexta casa deci-
por método de Monte Carlo [8]. mal [10].
Para finalizar seria útil averiguar um pouco melhor
a possı́vel origem dessas frases, cuja atribuição a Lorde Ainda segundo o artigo de Badash, o “eminente
Kelvin talvez seja devida a sua proeminência no cenário fı́sico” de acordo com o colega de Michelson, Robert
cientı́fico da época. Em particular volto a uma frase A. Millikan, seria provavelmente Lorde Kelvin. Milli-
apócrifa já mencionada: kan notou ainda que Michelson se recriminou por esse
comentário.4
Não existe nada de novo para ser descoberto
A Lorde Kelvin são atribuı́das ainda outras frases,
em fı́sica agora, tudo o que resta são expe-
algumas verdadeiras e outras apócrifas, mas quanto ao
rimentos mais e mais precisos [1] (1900?).
futuro da fı́sica no limiar do século XX, dificilmente
Essa frase ilustra um sentimento de completude, que poderı́amos imaginar um visionário mais arguto. No
volta e meia ressurge na comunidade cientı́fica. Sem centenário de sua morte deve-se publicar mais uma vez
me deter com um possı́vel sentimento desses do final o fato e deixar a lenda de lado.
do séulo XX, que alardeia a famosa “Teoria de Tudo”
[9], no final do século XIX tal atitude parecia ser razoa- Referências
velmente generalizada e é objeto de estudo em história
da ciência. No que se refere a Lorde Kelvin, é espe- [1] http://www.physics.gla.ac.uk/Physics3/
cialmente interessante o artigo de Lawrence Badash, Kelvin{ }online/{#}quotations.
4 Não há dúvidas, porém, de que medidas precisas revelam fenômenos emergentes e que fı́sica nova de fato pode existir não só na

sexta, mas também na oitava casa decimal.


512 Schulz

[2] Francisco Caruso, Revista Brasileira de Ensino de lor da ignorância. Carta Capital, edição 351, julho
Fı́sica 20, 251 (1998). O autor cita a fonte original, de 2005 http://www.cartacapital.com.br/edicoes/
mas menciona um outro trabalho sobre Lorde Kelvin 2005/07/351/2465/.
como referência. [7] Nelson Studart, Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica
[3] Lorde Kelvin, Phil. Mag. S.6. 2, Julho (1901). 22, 523 (2000).
[4] Lorde Rayleigh, On the law of partition of energy. Phil. [8] Veja também o comentário de G.A. Bird, Ann. Rev.
Mag. Jan. (1900). Fluid Mech. 10, 11 (1978)
[5] Uma discussão interessante dessa história e o surgi- [9] R.B. Laughlin e David Pines, PNAS 97, 28 (2000).
mento da mecânica quântica pode ser apreciada em [10] Lawrence Badash, Isis 63, 48 (1972). As fontes origi-
João Pedro Braga, Quı́mica Nova 24, 693 (2001). nais de frases reproduzidas aqui são mencionadas no
[6] Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa, O va- artigo de Badash.

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