1984 - Edicao Exclusiva Amazon - George Orwell
1984 - Edicao Exclusiva Amazon - George Orwell
1984 - Edicao Exclusiva Amazon - George Orwell
Tavares, doutora em
Orwell pela USP.
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Coordenação editorial BÁRBARA PRINCE
Editorial ROBERTO JANNARELLI & VICTORIA
REBELLO
Comunicação MAYRA MEDEIROS
Preparação ELOAH PINA
Revisão NATÁLIA MORI MARQUES,
GIOVANA BOMENTRE & KARINA NOVAIS
Diagramação LEONARDO ORTIZ
Projeto gráfico GIOVANNA CIANELLI &
LEONARDO ORTIZ
Capa GIOVANNA CIANELLI & PEDRO INOUE
com textos de
GREGÓRIO DUVIVIER
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
DÉBORA REIS TAVARES
EDUARDO BUENO
LUIZ EDUARDO SOARES
FOLHA DE ROSTO
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
I
01
02
03
04
05
06
07
08
II
01
02
03
04
05
06
07
08
09
III
01
02
03
04
05
06
APÊNDICE
O AMANHÃ É O HOJE QUE NOS PARECE ONTEM
A ESPERANÇA VEM DO PLURAL
ETERNO 1984
1984: O NOSSO E O DE ORWELL
4 de abril de 1984.
* Novilíngua era a língua oficial da Oceania. Para saber mais sobre sua estrutura e
etimologia, consulte o Apêndice (p. 389).
02
Winston não sabia por que Withers tinha caído em desgraça. Talvez
fosse por corrupção ou incompetência. Talvez o Grande Irmão estivesse
apenas se livrando de um subordinado popular demais. Talvez Withers ou
alguém próximo dele fosse suspeito de tendências heréticas. Ou, talvez — e
isso era o mais provável de tudo — aquilo tivesse ocorrido apenas porque
expurgos e vaporizações eram parte necessária da mecânica do governo. A
única pista verdadeira estava nas palavras “ref despessoas”, indicativas de
que Withers já estava morto. Não podia se presumir que isso acontecia
invariavelmente a todos os presos. Às vezes, eram libertados e se permitia
que permanecessem livres por um ou dois anos antes de sua execução.
Muito de vez em quando, alguém que todos achavam que estava morto
fazia uma reaparição fantasmagórica em algum julgamento público no qual
comprometia centenas de outras pessoas com o seu testemunho antes de
desaparecer, dessa vez para sempre. Withers, no entanto, já era uma
DESPESSOA. Ele não existia: nunca existira. Winston decidiu que não seria
suficiente só inverter o discurso do Grande Irmão. Seria melhor fazer com
que esse tratasse de um assunto completamente desconectado do tema
original.
Ele podia transformar o discurso em uma denúncia comum contra
traidores e criminosos do pensamento, mas isso era um tanto óbvio demais,
enquanto inventar uma vitória no front ou algum triunfo de superprodução
no Nono Plano Trienal poderia complicar demais os registros. Necessitava-
se de uma peça de fantasia pura. De repente, surgiu na sua mente, quase
pronta, a imagem de um certo camarada Ogilvy, que morrera há pouco na
batalha sob circunstâncias heroicas. Havia ocasiões em que o Grande Irmão
devotava sua Ordem do Dia para celebrar algum membro do Partido
humilde, de base, cuja vida e morte se elevavam a um exemplo a ser
seguido. Hoje ele celebraria o camarada Ogilvy. Era verdade que não existia
tal pessoa, mas poucas linhas de texto e algumas fotografias falsificadas
logo o fariam existir.
Winston pensou por um instante e então puxou o falescreve em sua
direção, e começou a ditar no estilo familiar do Grande Irmão: um estilo
que era ao mesmo tempo militar e pedante, e, graças a um truque de fazer
perguntas e logo respondê-las (“Que lições aprendemos deste fato,
camaradas? A lição — que também é um dos princípios fundamentais do
Ingsoc — de que…” etc. etc.), era fácil de imitar.
Aos três anos, o camarada Ogilvy rejeitou todos os brinquedos exceto
um tambor, uma submetralhadora e o modelo de um helicóptero. Aos seis
— um ano mais cedo, devido a uma folga especial das regras — ele se
juntou aos Espiões, e aos nove já era líder de tropa. Aos onze, denunciara
seu tio para a Polícia do Pensar depois de entreouvir uma conversa que
achou ter tendências criminais. Aos dezessete, virou organizador do distrito
da Liga Júnior Antissexo. Aos dezenove, havia desenvolvido uma granada
de mão que foi adotada pelo Ministério da Paz e que, em seu primeiro teste,
matou trinta e um prisioneiros eurasianos com uma só explosão. Aos vinte e
três, morreu na guerra. Perseguido por jatos inimigos enquanto sobrevoava
o Oceano Índico, transportando ordens importantes, ele amarrou a
metralhadora como contrapeso no corpo e se jogou do helicóptero,
carregando as ordens consigo — um fim, disse o Grande Irmão, impossível
de contemplar sem sentir inveja. O Grande Irmão acrescentou alguns
comentários sobre a pureza e a dedicação do camarada Ogilvy. Era um
abstêmio completo, não fumava, não participava de atividades recreativas,
exceto uma hora na academia, e tinha feito votos de celibato por acreditar
que o casamento e o cuidado com a família eram incompatíveis com uma
devoção ao dever vinte e quatro horas por dia. Não tinha assuntos para
conversar além dos princípios do Ingsoc, e não tinha objetivo na vida além
da derrota do inimigo eurasiano e a caça a espiões, sabotadores, criminosos
do pensamento e traidores em geral.
Ernat que nam resent omnim iliate nos et dit et magnis doloris rehendi
picipsandi res ium eniame voluptatur aliquiUgitatem quis que nonsed unt ad
quia doluptat voluptus sit laboribus, si doluptation eium reseque labores sus
etSanduciis cuptass itatur, comnist, offic temquis quibuscia ditinum quo
consequi qui as acestrum vendam
Olhou ao redor do refeitório de novo. Quase todo mundo era feio, e
seria feio mesmo se vestisse algo além dos macacões azuis de uniforme. No
canto extremo do salão, sentado sozinho à mesa, havia um homem mirrado,
que curiosamente lembrava um besouro, tomando uma xícara de café, com
seus olhinhos que se lançavam com suspeita de um lado para o outro. Como
era fácil, pensou Winston, acreditar, se não se olhasse ao redor, que o tipo
físico definido como ideal pelo Partido — jovens altos e musculosos e
damas com seios fartos, de cabelos loiros, vigorosos, bronzeados,
despreocupados — existia e era até predominante. Na verdade, pelo que era
capaz de julgar, a maioria das pessoas na Pista de Pouso Um eram
pequenas, enfermiças e de cabelos escuros. Era curioso como esse tipo meio
besouro se proliferava nos Ministérios: homenzinhos atarracados, que
ficavam gorduchos desde cedo, com pernas curtas, movimentos rápidos e
curtos, e rostos rechonchudos e inescrutáveis, com olhos pequenininhos.
Era o tipo que mais parecia florescer sob o jugo do Partido.
O anúncio do Ministério da Fartura terminou com outro soprar de
trompete e cedeu espaço para uma música metálica. Parsons, que angariava
um entusiasmo vago do bombardeio de cifras, tirou o cachimbo da boca.
— O Ministério da Fartura com certeza fez um bom trabalho esse ano
— ele disse, balançando a cabeça. — Por sinal, meu velho Smith, você não
teria alguma lâmina de barbear para me emprestar?
— Nenhuma — respondeu Winston. — Estou usando a mesma há seis
semanas.
— Ah, bem… Achei que valia a pena perguntar, meu velho.
— Sinto muito — disse Winston.
A voz de pato da mesa ao lado, silenciada durante o anúncio do
Ministério, recomeçou a grasnar, tão alto quanto antes. Por algum motivo,
Winston de repente pensou na sra. Parsons, com seu cabelo ralo e o pó nas
rugas da face. Dentro de dois anos, aquelas crianças a denunciariam para a
Polícia do Pensar. A sra. Parsons seria vaporizada. Syme seria vaporizado.
Winston seria vaporizado. O’Brien seria vaporizado. Parsons, por outro
lado, nunca seria vaporizado. A criatura sem olhos com a voz de pato nunca
seria vaporizada. Os homens mirrados que pareciam besouros, andando de
maneira tão ligeira pelos corredores labirínticos dos Ministérios, também
não seriam vaporizados. E a garota de cabelo escuro, a garota do
Departamento de Ficção… ela nunca seria vaporizada também. Ele parecia
saber instintivamente quem sobreviveria e quem pereceria, embora não
fosse fácil de dizer o que levava alguém a sobreviver.
Naquele momento, foi arrancado de seus devaneios por uma sacudida
violenta. A garota da mesa ao lado tinha se virado e olhava para ele. Era a
garota de cabelo escuro. Ela olhava para ele de lado, mas com uma
intensidade curiosa. No instante em que os dois se encararam, ela desviou
os olhos.
O suor começou a escorrer da nuca de Winston. Um baque de terror o
percorreu. Desapareceu quase no mesmo instante, mas deixou nele uma
inquietação persistente. Por que ela o observava? Por que ela continuava
seguindo-o? Infelizmente, não conseguia lembrar se ela já estava sentada à
mesa quando ele chegou, ou se tinha aparecido depois. Mas ontem, de
qualquer modo, durante os Dois Minutos de Ódio, sentara-se logo atrás dele
sem motivo aparente. Era bastante provável que o objetivo dela fosse ouvi-
lo e garantir que ele estava gritando alto o suficiente.
Um pensamento retornou: provavelmente ela não era de fato membro da
Polícia do Pensar, mas eram justo os espiões amadores que representavam o
maior perigo. Ele não sabia por quanto tempo ela tinha o encarado, mas
talvez tenham sido uns cinco minutos, e era possível que nem todas as
expressões dele estivessem sob controle completo. Era terrivelmente
perigoso deixar seus pensamentos vagarem em um lugar público ou ao
alcance de uma teletela. O menor detalhe poderia denunciá-lo. Um tique
nervoso, um olhar inconsciente de ansiedade, o hábito de murmurar consigo
mesmo — qualquer coisa que indicasse anormalidade, ou algo a esconder.
De todo modo, ter uma expressão imprópria no rosto (parecer incrédulo
quando anunciavam uma vitória, por exemplo) era, em si, uma ofensa digna
de punição. Havia até uma palavra para isso em novilíngua: chamavam de
CRIMERROSTO.
A garota ficou de costas para ele outra vez. Talvez, afinal de contas, ela
não estivesse de fato seguindo-o, talvez tenha sido apenas uma coincidência
ela ter sentado tão perto dele dois dias consecutivos. Seu cigarro tinha se
apagado e ele o colocou com cuidado na ponta da mesa. Terminaria de
fumá-lo depois do trabalho, se conseguisse manter o tabaco dentro dele. Era
bastante provável que a pessoa da mesa ao lado fosse um espião da Polícia
do Pensar, e bastante provável que ele iria para o Ministério do Amor
dentro de três dias, mas uma ponta de cigarro não deve ser desperdiçada.
Syme dobrou sua tira de papel e guardou-a no bolso. Parsons voltou a falar.
— Já te contei, meu velho — ele disse, rindo com o cachimbo na boca
— da vez que os meus dois pirralhos tacaram fogo na saia da velha do
mercado porque eles a viram enrolando salsichas num pôster do G.I.?
Chegaram sorrateiros atrás dela e atearam fogo com uma caixa de fósforos.
Ela se queimou feio, que eu saiba. Que pestinhas, hein? Mas espertos como
uma raposa! Hoje em dia dão um treinamento de primeira nos Espiões;
melhor que na minha época, até. Sabe qual foi a última coisa que deram
para eles? Cones de ouvido para escutar através dos buracos de fechadura!
Minha menina trouxe um desses para casa uma noite, experimentou na
porta da nossa sala de estar, e concluiu que dava para ouvir duas vezes mais
do que só com a orelha grudada no buraco. Claro que é só um brinquedo,
você sabe. Ainda assim, dá a ideia certa para eles, hein?
Nesse momento, a teletela soltou um assovio penetrante. Era o sinal de
voltar ao trabalho. Todos os três homens se levantaram para juntar-se à
batalha para entrar nos elevadores, e o tabaco remanescente caiu do cigarro
de Winston.
06
Katharine era uma moça alta, de cabelo claro, que andava ereta, com
movimentos esplêndidos. Tinha um rosto aquilino e forte, que poderia ser
chamado de nobre, até descobrirem que não havia quase nada por trás dele.
Bem no início da vida de casado ele decidira — embora talvez só porque a
conhecia mais intimamente do que conhecia a maioria das pessoas — que
ela era, sem exceções, a mente mais estúpida, vulgar e vazia que já
encontrara. Não tinha nada na cabeça que não fosse um slogan, e não havia
absolutamente nenhuma imbecilidade em que ela não fosse capaz de
acreditar se o Partido a oferecesse. “A trilha sonora humana” era o apelido
que ele lhe dera em sua cabeça. Ainda assim, ele conseguiria aguentar viver
com ela se não fosse por uma coisa: sexo.
Ele se viu ali parado na luz fraca do abajur, com o cheiro de insetos e
perfume barato nas narinas, e em seu coração agora sentia derrota e
ressentimento, que até aquele momento estavam misturados com a
lembrança do corpo branco de Katharine, congelado para sempre pelo poder
hipnótico do Partido. Por que sempre teve que ser desse jeito? Por que ele
não pudera ter uma mulher de fato, em vez daqueles encontros sórdidos em
intervalos de anos? Mas um caso de amor real era o evento mais impensável
de todos. As mulheres do Partido eram todas iguais. A castidade estava
enraizada nelas como parte da lealdade ao Partido. Graças a um
condicionamento que começava desde cedo, com brincadeiras e água
gelada, com as besteiras que forçavam goela abaixo na escola, nos Espiões
e na Liga Juvenil, com palestras, desfiles, canções, slogans e música
marcial, o sentimento natural fora tirado delas. A racionalidade de Winston
dizia que devia haver exceções, mas seu coração não acreditava nisso.
Todas eram inconquistáveis, como o Partido pretendia que fossem. E o que
ele queria, mais até do que ser amado, era romper essa muralha da virtude,
mesmo se fosse uma só vez durante toda sua vida. O ato sexual, bem
realizado, era uma rebelião. O desejo era um crime do pensamento.
Despertar o desejo em Katharine, mesmo se ele tivesse conseguido isso,
seria uma sedução, ainda que ela fosse sua esposa.
Ele se perguntou, como fizera tantas vezes antes, se ele mesmo era um
lunático. Talvez um lunático fosse apenas uma minoria de uma pessoa só.
Em certo momento, fora sinal de loucura achar que a Terra girava em torno
do Sol; hoje, seria loucura acreditar que o passado é inalterável. Ele podia
estar sozinho naquela crença, e se estivesse, então era um lunático. Mas essa
ideia não o perturbava tanto; o horror é que ele também podia estar errado.
Pegou o livro de história para crianças e olhou para o retrato do Grande
Irmão no frontispício. Os olhos hipnóticos fitavam os seus próprios olhos.
Era como se uma força enorme pressionasse quem olhava — algo que
penetrava dentro do crânio da pessoa, golpeando seu cérebro, afugentando
suas crenças, quase persuadindo-a a negar a evidência de seus sentidos. Ao
final, o Partido anunciaria que dois mais dois eram cinco, e a pessoa teria
que acreditar naquilo. Era inevitável que afirmassem isso cedo ou tarde: a
lógica da posição deles exigia isso. Não apenas a validade da experiência,
mas a própria existência da realidade externa era negada de maneira tácita
por sua filosofia. A heresia das heresias era o senso comum. E o
aterrorizante não era o fato de poderem matar uma pessoa por pensar
diferente, mas que talvez eles tivessem razão. Pois, afinal, como sabemos
que dois mais dois são quatro? Ou que a força da gravidade funciona? Ou
que o passado é inalterável? Se tanto o passado como o mundo externo só
existem dentro da mente, e a mente em si é controlável, então…?
Mas não! Sua coragem pareceu se fortalecer de repente. O rosto de
O’Brien flutuou em sua mente, sem nenhuma associação óbvia. Ele sabia,
com mais certeza do que nunca, que O’Brien estava do seu lado. Ele estava
escrevendo aquele diário dedicado a O’Brien — para O’Brien: era como
uma carta interminável que ninguém nunca leria, mas era destinada a uma
pessoa específica e, portanto, tinha razão de existir.
O Partido disse que era preciso rejeitar as provas que os olhos e ouvidos
forneciam. Esse era o comando decisivo, e mais essencial de todos. Seu
coração afundou ao pensar no enorme poder reunido contra ele, a facilidade
com que um intelectual qualquer do Partido o derrubaria num debate, os
argumentos sutis que ele não seria capaz de entender, quem dirá responder.
E, no entanto, ele estava certo! Eles estavam errados e ele estava certo. O
óbvio, o tolo e o verdadeiro tinham que ser defendidos. Truísmos são
verdadeiros, agarre-se a isso! O mundo sólido existe, suas leis não
mudaram. Pedras são duras, a água é molhada, objetos sem apoio caem em
direção ao centro da Terra. Com a sensação de que falava com O’Brien, e
também de que definia um axioma importante, escreveu:
De repente, foi como se o seu coração virasse gelo e suas vísceras, água.
Uma pessoa de macacão azul vinha descendo pela calçada, e não estava a
mais de dez metros de distância. Era a moça do Departamento de Ficção, a
garota de cabelo escuro. A luz era fraca, mas era fácil reconhecê-la. Ela
encarou o rosto dele e prosseguiu caminhando com rapidez, como se não o
tivesse visto.
Por alguns segundos, Winston ficou paralisado demais para se mexer.
Então virou à direita e se afastou a passos largos, sem notar que estava indo
para o lado errado. De todo modo, uma questão tinha sido sanada. Não
restavam dúvidas de que a garota o espionava. Devia ter seguido Winston
até ali, porque não era crível que ela caminhasse pela mesma ruela obscura,
na mesma noite, a quilômetros de distância de qualquer quarteirão onde os
membros do Partido moravam. Era muita coincidência para ser verdade.
Tanto fazia se ela era de fato uma agente da Polícia do Pensar ou apenas
uma espiã amadora instigada a ser oficiosa. Ela já o observara o suficiente.
Provavelmente o vira entrar no boteco também.
Ficou difícil de caminhar. O pedaço de vidro no bolso dele batia contra
a coxa a cada passo, e ele cogitou tirá-lo e jogar longe. A pior coisa era a
dor na sua barriga. Por alguns minutos ele teve a sensação de que morreria
se não chegasse a um banheiro em breve. Mas não havia banheiros públicos
em um lugar como aquele. O espasmo passou, deixando uma dor amorfa.
A rua era um beco sem saída. Winston parou por vários segundos,
perguntando-se o que fazer, e então virou-se e começou a refazer os passos.
Ao se virar, ocorreu-lhe que a mulher só passara por ele havia três minutos,
e se corresse, poderia alcançá-la. Poderia segui-la até chegarem a um lugar
isolado e esmagar seu crânio com uma pedra do paralelepípedo. O pedaço
de vidro no seu bolso também era pesado o bastante para a tarefa. Mas
abandonou de imediato a ideia, pois só a noção de fazer um esforço físico já
era insuportável. Ele não conseguia correr, dar um golpe. Além disso, ela
era jovem e vigorosa e capaz de se defender. Ele também pensou em correr
ao Centro Comunitário e ficar lá até o lugar fechar, para estabelecer um
álibi parcial para a noite. Mas isso também era impossível. Uma lassidão
tomou conta dele. Tudo o que queria era voltar rápido para casa, sentar-se e
ficar quieto.
Já tinha passado das vinte e duas horas quando ele chegou no
apartamento. As luzes seriam desligadas na central às vinte e três. Ele
entrou na cozinha e engoliu quase uma xícara inteira de Gim da Vitória.
Então foi para a mesa na alcova, sentou-se, pegou o diário da gaveta. Mas
não o abriu de imediato. Uma voz feminina estridente guinchava uma
música patriota. Sentou-se encarando a capa marmorizada do livro,
tentando, sem sucesso, calar a voz de sua consciência.
EU TE AMO.
Por vários segundos, ficou chocado demais até para jogar aquele troço
incriminador no buraco da memória. Quando o fez, embora conhecesse
muito bem os riscos de demonstrar muito interesse, não resistiu a ler a
mensagem de novo, só para ter certeza de que as palavras estavam mesmo
lá.
Foi muito difícil trabalhar pelo resto da manhã. Pior do que precisar
focar sua mente numa série de trabalhos chatos era a necessidade de
esconder da teletela a sua agitação. Ele sentia como se um fogo ardesse na
sua barriga. O almoço no refeitório quente, lotado e barulhento foi um
tormento. Ele esperava ficar sozinho por um tempo durante o horário de
almoço, mas por azar, o imbecil do Parsons colou atrás dele, e o fedor do
seu suor quase derrotava o cheiro metálico do ensopado, e engatou numa
enxurrada de tagarelice sobre as preparações para a Semana do Ódio.
Estava especialmente entusiasmado com uma réplica em papel machê da
cabeça do Grande Irmão, com dois metros de largura, que estava sendo
elaborada para a ocasião pela tropa de Espiões à qual pertencia sua filha. A
coisa mais irritante era que, naquela algazarra de vozes, Winston mal
conseguia escutar o que Parsons dizia, e precisava pedir várias vezes para
ele repetir seus comentários insensatos. Só por um instante vislumbrou a
moça, na mesa com outras duas mulheres ao final do salão. Ela parecia não
tê-lo visto, e ele não olhou mais para aquela direção.
A tarde foi mais fácil de suportar. Logo depois do almoço chegou um
trabalho difícil e delicado que podia levar muitas horas e necessitava que
ele deixasse todo o resto de lado. Consistia em falsificar uma série de
relatórios de produção de dois anos antes, de modo que um membro
proeminente do Partido Interno, que agora estava sob suspeita, perdesse a
credibilidade. Era o tipo de coisa em que Winston era bom, e por mais de
duas horas conseguiu tirar a garota da cabeça. Então, a lembrança de seu
rosto reapareceu, junto com um desejo violento e intolerável de ficar a sós.
Até que ficasse sozinho, seria impossível pensar no que havia ocorrido.
Hoje à noite ele teria que ir ao Centro Comunitário. Ele devorou outra
comida insossa no refeitório, correu para o Centro, participou da estupidez
solene de um “grupo de discussão”, jogou duas partidas de pingue-pongue,
engoliu vários copos de gim e ficou sentado por meia hora durante uma
palestra intitulada “Ingsoc em relação ao xadrez”. Sua alma se contorcia de
tédio, mas pela primeira vez ele não teve o impulso de fugir da noite no
Centro. Ao ler as palavras EU TE AMO, um desejo de permanecer vivo
brotara nele, e correr pequenos riscos, de repente, parecia algo estúpido. Só
às vinte e três horas, quando estava em casa, na sua cama — na escuridão, a
salvo até da teletela desde que ficasse em silêncio —, ele conseguiu pensar
naquilo de forma contínua.
Havia um problema físico para ser resolvido: como entrar em contato
com a garota e marcar um encontro. Ele não estava mais considerando a
possibilidade de ela preparar-lhe uma armadilha. Sabia que não era o caso
em razão do nervosismo inconfundível dela ao entregar o recado. Era claro
que ela estava apavorada, com razão. A ideia de rejeitar sua investida
também não passou pela cabeça dele. Apenas cinco noites antes ele
cogitava esmagar o crânio dela com um pedregulho, mas isso não
importava. Pensou no corpo jovem dela nu, como vira em seu sonho. Ele a
imaginou como uma idiota igual a todas as outras, a cabeça cheia de
mentiras e ódio, a barriga cheia de gelo. Uma espécie de tremor febril o
dominou ao pensar que ele poderia perdê-la, que aquele corpo branco e
jovem poderia escorregar de suas mãos! O que ele temia, mais do que
qualquer outra coisa, era que ela apenas mudasse de ideia se ele não
entrasse logo em contato. Mas a dificuldade física de encontrá-la era
enorme. Era como tentar fazer um movimento no xadrez depois de receber
um xeque. Para onde virasse, havia uma teletela encarando-o. Na verdade,
pensara em todas as possibilidades de se comunicar com ela cinco minutos
depois de ler o recado; mas agora, com tempo para pensar, repassou-as uma
a uma, como se depositasse uma fileira de instrumentos numa mesa.
Era óbvio que o tipo de encontro que acontecera naquela manhã não
podia se repetir. Se ela trabalhasse no Departamento de Registros seria mais
simples, em comparação, mas ele tinha uma ideia muito vaga de onde
ficava o Departamento de Ficção no prédio, e não tinha nenhum pretexto
para ir lá. Se soubesse onde ela morava, e a que horas saía do trabalho,
podia desviar para encontrá-la em algum lugar no caminho para casa; mas
tentar segui-la até em casa não era seguro, porque precisaria ficar vagando
pelo lado de fora do Ministério, e alguém iria percebê-lo. Quanto a mandar
uma carta pelo correio, isso estava fora de cogitação. Não era segredo que
todas as cartas eram abertas. Na verdade, poucas pessoas escreviam cartas.
Havia cartões-postais com uma lista longa de frases caso você precisasse
mandar uma carta, e você riscava as que não serviam. De qualquer maneira,
ele não sabia o nome da garota, que dirá o seu endereço. Enfim, decidiu que
o lugar mais seguro seria o refeitório. Se conseguisse encontrá-la sozinha
numa mesa, em algum lugar no meio do salão, não muito perto das
teletelas, e com um vozerio suficiente de conversas ao redor — se essas
condições durassem, digamos, trinta segundos, seria possível trocar
algumas palavras.
Por uma semana, a vida foi como um sonho inquieto. No dia seguinte,
ela não apareceu no refeitório até o momento em que ele estava saindo,
depois de soar o apito. Podia-se presumir que tinham mudado o turno dela
para um posterior. Passaram um pelo outro sem trocar um olhar. No dia
seguinte, ela estava no refeitório no horário de sempre, mas com três outras
mulheres, e logo abaixo de uma teletela. Depois, por três dias pavorosos ela
sequer apareceu. Todo o corpo e a mente dele pareciam padecer de uma
sensibilidade insuportável, uma espécie de transparência, que transformava
cada movimento, cada som, cada contato, cada palavra que ele falava ou
ouvia, numa agonia. Nem em sonhos ele escapava da imagem dela. Não
tocou no diário nesses dias. O alívio, se havia algum, estava no seu
trabalho, que o fazia esquecer de si por dez minutos seguidos. Não fazia
ideia do que tinha acontecido com ela. Não tinha como se informar. Podia
ter sido vaporizada, podia ter se suicidado, podia ter sido transferida para o
outro lado da Oceania; o pior e mais provável era que ela apenas mudara de
ideia e decidira evitá-lo.
No dia seguinte ela reapareceu. O braço não estava mais na tipoia e ela
tinha um esparadrapo ao redor do pulso. O alívio de vê-la foi tão grande que
ele não se conteve e a encarou por vários segundos. No dia seguinte, quase
conseguiu falar com ela. Quando ele chegou ao refeitório, ela estava
sentada numa mesa longe da parede e bastante isolada. Era cedo e o lugar
não estava muito cheio. A fila avançou até que Winston estava quase
chegando ao balcão, e então ficou dois minutos parada porque alguém na
frente reclamava que não recebera seu tablete de sacarina. Mas a garota
continuava sozinha quando Winston pegou a bandeja e começou a caminhar
em direção à mesa dela. Andou casualmente rumo a ela, com os olhos em
busca de um espaço na mesa à sua frente. Mais dois segundos e conseguiria.
Então uma voz vinda detrás dele o chamou:
— Smith! — Ele fingiu não escutar. — Smith! — repetiu a voz, mais
alto. Não tinha o que fazer. Virou-se. Um jovem loiro, com cara de tonto,
chamado Wilsher, que ele mal conhecia, o convidava com um sorriso a se
sentar no lugar vago em sua mesa. Não era seguro recusar. Depois de ter
sido reconhecido, ele não podia ir sentar-se com uma garota sozinha. Iam
perceber. Ele se sentou com um sorriso amigável. O rosto loiro e idiota
retribuiu o sorriso. Winston teve uma alucinação em que cravava uma
picareta bem no meio daquele rosto. A mesa da garota se encheu poucos
minutos depois.
Mas ela devia ter visto ele caminhar em sua direção, e talvez se tocasse
do plano. No dia seguinte, ele cuidou para chegar cedo. E lá estava ela,
numa mesa mais ou menos no mesmo local, sozinha outra vez. A pessoa
logo à frente dele na fila era um homem pequeno, rápido, com um jeito de
besouro, um rosto achatado e olhos diminutos e desconfiados. Ao passo que
Winston se afastou do balcão com a bandeja, ele viu que o pequeno homem
andava na direção da mesa da garota. Suas esperanças afundaram outra vez.
Havia um lugar livre a uma mesa de distância, mas havia algo na aparência
do pequeno homem sugerindo que ele se importava tanto com o próprio
conforto que escolheria a mesa mais vazia de todas. Com o coração
congelado, Winston o seguiu. Qualquer outra coisa exceto ficar a sós com a
garota seria inútil. Naquele momento, houve uma tremenda colisão. O
homenzinho estava caído de quatro. Sua bandeja saíra voando, dois jorros
de sopa e café escorrendo pelo chão. Levantou-se, lançando um olhar
maligno a Winston, suspeitando que ele o derrubara. Mas estava tudo bem.
Cinco segundos depois, com o coração trovejante, Winston estava sentado à
mesa com a garota.
Ele não a encarou. Desmontou a bandeja e começou a comer. Era
importante falar de uma vez, antes que alguém aparecesse, mas agora um
medo terrível o dominava. Tinha se passado uma semana desde que ela o
abordara. Ela podia ter mudado de ideia, ela devia ter mudado de ideia! Era
impossível que aquele caso tivesse um final feliz; tais coisas não
aconteciam na vida real. Ele podia ter desistido de vez de falar se naquele
instante não visse Ampleforth, o poeta de orelhas peludas, dando voltas
pelo refeitório com uma bandeja, procurando onde sentar. De uma maneira
vaga, Ampleforth estava ligado a Winston, e com certeza sentaria na sua
mesa se o visse. Ele tinha talvez um minuto para agir. Tanto Winston como
a garota comiam ritmados. Tomavam um ensopado ralo, na verdade, uma
sopa de vagem. Winston começou a falar num murmurar baixo. Nenhum
dos dois olhou para cima; levavam a comida aguada para a boca com a
colher firmemente, e entre uma colherada e outra, trocaram as poucas
palavras necessárias em vozes baixas e monocórdias.
— A que horas você sai do trabalho?
— Dezoito e trinta.
— Onde podemos nos encontrar?
— Praça da Vitória, perto do monumento.
— Está cheio de teletelas.
— Não importa, se houver bastante gente.
— Algum sinal?
— Não. Não venha na minha direção até me ver cercada de gente. E não
olhe para mim. Só fique em algum lugar perto de mim.
— A que horas?
— Dezenove.
— Certo.
Ampleforth não viu Winston e sentou-se em outra mesa. Não tornaram a
conversar e, levando em conta que eram pessoas sentadas nas duas pontas
da mesma mesa, não pareciam se conhecer. A garota terminou de almoçar
com rapidez e partiu, enquanto Winston permaneceu para fumar um cigarro.
Winston chegou à Praça da Vitória antes do horário combinado. Ele
vagou ao redor da base da enorme coluna que trazia, no topo, uma estátua
do Grande Irmão, olhando o céu, para o sul, em direção ao local onde
derrubara os aviões eurasianos (anos antes eram os aviões lestasianos) na
Batalha da Pista de Pouso Um. Na rua à frente havia uma estátua de um
homem montado num cavalo que deveria representar Oliver Cromwell.
Cinco minutos depois do horário combinado, a garota ainda não tinha
aparecido. Winston foi tomado por um medo terrível mais uma vez. Ela não
ia aparecer, ela tinha mudado de ideia! Ele caminhou lentamente para a
parte norte da praça e sentiu um prazer pálido em identificar a Igreja de São
Martinho, cujos sinos, quando tinha sinos, soavam “Você me deve três
tostões”. Então viu a garota parada diante da base do monumento, lendo ou
fingindo ler um pôster que subia a coluna em espiral. Não era seguro
aproximar-se dela até que mais pessoas aparecessem. Havia teletelas por
todo o lugar. Mas, naquele momento, houve uma algazarra de gritos junto
ao ruído de veículos pesados vindos de algum lugar à esquerda. De repente,
todos pareciam atravessar a praça correndo. A garota se esgueirou
rapidamente ao redor dos leões na base do monumento e se juntou à
multidão. Winston fez o mesmo. Ao correr, entendeu pelos gritos que um
comboio de prisioneiros eurasianos estava passando.
Uma massa densa de pessoas já bloqueava o lado sul da praça. Winston,
que em geral era uma pessoa que gravitava por fora de uma aglomeração,
agora empurrava, esgueirava-se, acotovelava no meio da multidão. Logo
estava a um braço de distância da garota, mas o caminho estava bloqueado
por um proleta enorme, e uma mulher quase tão enorme — sua esposa,
supunha-se — que pareciam formar um muro impenetrável de carne.
Winston se contorceu pelo lado e com um movimento violento conseguiu
passar o ombro entre eles. Por um instante, sentiu como se suas estranhas
fossem esmigalhadas entre os dois quadris musculosos, e então conseguiu
atravessar, suando um pouco. Estava ao lado dela. Ombro a ombro, ambos
olhavam fixo para o que estava diante deles.
Uma fila comprida de caminhões passava com lentidão pela rua, com
guardas de rosto impassível armados com submetralhadoras, parados eretos
em cada ponta. Nos caminhões, pequenos homens amarelos em uniformes
esfarrapados e esverdeados estavam apinhados juntos, grudados uns nos
outros. Seus rostos tristes, de feições da Mongólia, olhavam para fora da
lateral dos caminhões, com total falta de curiosidade. De vez em quando,
um caminhão dava um solavanco e se escutava o tilintar de metais: todos os
prisioneiros usavam grilhões. Passava um caminhão com rostos tristes atrás
do outro. Winston sabia que estavam lá, mas só os via de forma
intermitente. O ombro da garota, e seu braço, até o cotovelo, estava
pressionado contra o dele. Sua bochecha estava próxima a ponto de ele
quase sentir o calor dela. Ela liderava a situação, assim como fizera no
refeitório. Começou a falar com a mesma voz inexpressiva de antes, com os
lábios quase sem se mover, um mero murmúrio que era facilmente abafado
pela algazarra de vozes e pelo ronco dos caminhões.
— Consegue me ouvir?
— Sim.
— Consegue tirar folga no domingo?
— Sim.
— Então me escute com atenção. Precisa se lembrar disso. Vá para a
Estação Paddington…
Com uma precisão militar que o impressionou, ela traçou a rota que ele
devia seguir. Uma jornada de meia hora de trem; virar à esquerda na
estação; dois quilômetros pela estrada; um portão sem a barra de cima; uma
trilha pelo campo; uma rua com grama; um caminho entre dois arbustos;
uma árvore morta com musgo. Era como se houvesse um mapa dentro da
cabeça dela.
— Vai lembrar disso tudo? — murmurou, enfim.
— Sim.
— Vire à esquerda, direita, esquerda outra vez. O portão não tem a parte
de cima.
— Sim. Que horas?
— Lá pelas quinze. Talvez você precise esperar. Vou chegar lá seguindo
outro caminho. Tem certeza que lembra de tudo?
— Sim.
— Então se afaste de mim o mais rápido possível.
Ela nem precisava dizer isso. Mas, naquele instante, não conseguiam se
livrar da multidão. Os caminhões ainda passavam em fila, as pessoas,
insaciáveis, seguiam os observando boquiabertas. De início, houve algumas
vaias e assovios, mas vieram só de membros do Partido na multidão, e
então logo parou. A emoção predominante era apenas a de curiosidade.
Estrangeiros, fossem da Eurásia ou da Lestásia, eram uma espécie de
animal estranho. Nunca eram vistos, literalmente, exceto como prisioneiros,
e mesmo como prisioneiros, só era possível vislumbrá-los por um instante.
Ninguém sabia o que faziam com eles, além de que alguns eram enforcados
como criminosos de guerra: os outros apenas desapareciam, supunha-se que
eram enviados aos campos de trabalho forçado. Os rostos mongóis
redondos tinham dado espaço a faces mais europeias, sujas, barbudas e
exaustas. Acima das bochechas esfoladas, os olhos deles encaravam os de
Winston, às vezes com uma intensidade estranha, e desviavam o olhar outra
vez. O comboio chegava ao fim. No último caminhão, ele conseguiu ver um
idoso, seu rosto era uma massa de cabelo grisalho, e ele estava parado de
pé, com os pulsos cruzados à frente, como se estivesse acostumado a andar
com eles presos. Tinha quase chegado a hora de Winston se separar da
garota. Mas, no último instante, enquanto a multidão ainda os pressionava,
a mão dela veio na direção da dele e deu um apertão fugaz.
Isso não durou nem dez segundos, mas pareceu que suas mãos ficaram
juntas por muito tempo. Ele conseguiu conhecer cada detalhe da mão dela.
Explorou os seus longos dedos, as unhas bem aparadas, a palma endurecida
de tanto trabalho com sua fileira de calos, a pele suave abaixo do pulso. Só
de senti-la, era capaz de reconhecê-la de vista. No mesmo instante, ocorreu-
lhe que ele não sabia qual era a cor dos olhos dela. Provavelmente
castanhos, mas as pessoas de cabelo escuro às vezes têm olhos azuis. Virar
sua cabeça e olhar para ela seria uma loucura inconcebível. Com as mãos
dadas, invisíveis entre os corpos que os pressionavam, eles mantiveram o
olhar fixo para a frente, e não eram os olhos da garota que fitavam Winston,
mas os do prisioneiro idoso, com pesar, entre tufos de cabelo.
02
— Sim, perfeitamente.
— Detesto a pureza, detesto o bem! Não quero que exista virtude em
nenhum lugar. Quero que todos sejam corruptos até os ossos.
— Bom, então acho que serei adequada, querido. Sou corrupta até os
ossos.
— Você gosta de fazer isso? Não estou falando apenas de mim: a coisa
em si.
— Eu adoro.
Isso era o que ele mais queria ouvir, acima de tudo. Não apenas o amor
de uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples e que não
diferenciava: essa era a força que estilhaçaria o Partido. Ele a pressionou
contra a grama, entre as campânulas caídas. Dessa vez não teve dificuldade.
O arfar do peito, subindo e descendo, reduziu a uma velocidade normal, e
os dois caíram numa espécie de desamparo prazeroso. O sol parecia ter
ficado mais quente. Ambos estavam sonolentos. Ele alcançou o macacão
descartado e cobriu-a parcialmente. Quase no mesmo instante, pegaram no
sono e dormiram por cerca de meia hora.
Winston foi o primeiro a acordar. Ele se sentou e observou o rosto
sardento dela, ainda na paz do sono, usando a própria palma da mão como
travesseiro. Exceto pela boca, não se podia dizer que ela era bonita. Havia
uma ou duas rugas ao redor dos olhos, quando se olhava com atenção. O
cabelo preto e curto era grosso e macio. Ele pensou que ainda não sabia
qual era o sobrenome dela ou onde ela morava.
O corpo forte e jovem, agora dormindo desamparado, despertou nele
um sentimento protetor e de pena. Mas a ternura irracional que ele sentira
sob a avelaneira, enquanto o sabiá cantava, ainda não tinha voltado por
completo. Ele puxou o macacão para o lado e estudou a pele branca e suave
dela. No passado, ele pensou, um homem olhava o corpo de uma mulher,
via que era desejável, e fim de história. Mas agora não era mais possível ter
amor ou luxúria puros. Nenhuma emoção era pura, porque tudo estava
mesclado com medo e ódio. O abraço deles foi uma batalha, o clímax uma
vitória. Foi um golpe desferido contra o Partido. Era um ato político.
03
— Só podemos vir mais uma vez aqui — disse Julia. — Em geral, é seguro
usar duas vezes o mesmo esconderijo. Mas só daqui a um ou dois meses, é
claro.
Assim que ela acordou, seu humor tinha mudado. Tornou-se alerta e
agia como uma mulher de negócios, vestiu as roupas, amarrou a faixa
escarlate na cintura e começou a organizar os detalhes do retorno dos dois
para casa. Parecia natural que ele deixasse isso para ela. Ela com certeza
tinha uma esperteza prática que Winston não possuía, e também parecia
contar com um conhecimento da região rural ao redor de Londres,
armazenado após inúmeras trilhas comunitárias. A rota que ela lhe indicou
era bastante diferente daquela por onde ele viera, e o conduzia a outra
estação de trem.
— Nunca vá para casa pelo mesmo trajeto que você veio — ela disse,
como se enunciasse um princípio geral importante. Ela iria embora
primeiro, e Winston precisava esperar meia hora antes de sair.
Ela disse o nome de um lugar no qual podiam se encontrar depois do
trabalho dali a quatro noites. Era uma rua em um dos bairros mais pobres,
onde havia uma feira ao ar livre, em geral barulhenta e lotada. Ela andaria
entre as tendas, fingindo estar em busca de cadarços ou linha de costura. Se
achasse que o terreno estava limpo, assoaria o nariz quando ele se
aproximasse; do contrário, ele teria que passar por ela sem demonstrar que a
reconhecia. Porém, com sorte, no meio da multidão, seria seguro falar por
quinze minutos e combinar outro encontro.
— Agora tenho que ir — ela disse, assim que ele dominou as
instruções. — Tenho que estar de volta às dezenove e trinta. Preciso dedicar
duas horas à Liga Juvenil Antissexo, distribuir panfletos ou algo assim. Não
é um saco? Pode me pentear? Tô com algum galhinho na cabeça? Tem
certeza? Então adeus, meu amor, adeus!
Ela se jogou nos braços dele, beijou-o de maneira quase violenta, e em
um instante depois embrenhou-se pelas árvores, desaparecendo no bosque
quase sem fazer barulho. Ele ainda não sabia o sobrenome dela ou seu
endereço. Porém, não importava, pois era inconcebível que pudessem se
encontrar entre quatro paredes ou trocar qualquer forma de comunicação
escrita.
E acabou que nunca voltaram para a clareira no bosque. Durante o mês
de maio, só conseguiram fazer amor em mais uma ocasião. Foi em outro
esconderijo que Julia conhecia, no campanário de uma igreja em ruínas,
numa parte do país que tinha sido atingida por uma bomba atômica trinta
anos antes. Era um bom esconderijo uma vez que estavam lá, o problema é
que chegar até ele era muito perigoso. De resto, só podiam se encontrar nas
ruas, em um lugar diferente a cada noite e nunca por mais de meia hora.
Nas ruas era possível conversar até certo ponto. Ao descerem calçadas
cheias de pedestres, não muito próximos, e sem nunca olharem um para o
outro, podiam manter uma conversa curiosa e intermitente que se acendia e
apagava como a luz de um farol, mergulhando de repente no silêncio pela
aproximação de uma pessoa com uniforme do Partido ou pela proximidade
de uma teletela, e retomada minutos depois no meio de uma frase, e
interrompida de forma abrupta quando se separavam no ponto combinado, e
então retomada quase sem introduções no dia seguinte. Julia parecia estar
bastante acostumada a esse tipo de conversa, que ela chamava de “falar em
parcelas”. Ela também era surpreendentemente adepta da fala sem mover os
lábios. Só uma vez, em quase um mês de encontros noturnos, conseguiram
trocar um beijo. Passavam em silêncio por uma rua paralela (Julia nunca
conversava quando estavam fora das avenidas principais) quando houve um
estrondo ensurdecedor, a terra arfou, o ar escureceu e Winston se viu
deitado de lado, ferido e apavorado. Um míssil devia ter caído ali perto. De
repente, viu que o rosto de Julia estava a poucos centímetros do seu, de uma
branquidão de morte, branco como um giz. Até seus lábios estavam
brancos. Ela tinha morrido! Ele a apertou contra si e descobriu que beijava
um rosto quente e vivo. Mas havia alguma coisa empoeirada que colou nos
seus lábios. O rosto dos dois apresentava uma camada grossa de gesso.
Algumas noites, chegavam ao ponto de encontro e precisavam passar
um pelo outro sem trocar um sinal, porque um patrulheiro tinha aparecido
na esquina ou um helicóptero pairava acima deles. Mesmo se fosse menos
perigoso, ainda seria difícil reservar um tempo para que se encontrassem. A
jornada de trabalho de Winston era de sessenta horas semanais, e a de Julia
era ainda maior, e os dias de folga dos dois variavam conforme a pressão do
trabalho e não costumavam coincidir. Julia, de qualquer maneira, quase
nunca tinha uma noite completamente livre. Ela passava uma quantidade
incrível de horas frequentando palestras e comícios, distribuindo literatura
para a Liga Juvenil Antissexo, preparando as faixas para a Semana do Ódio,
arrecadando doações para a campanha de economia e outras atividades do
tipo. Valia a pena, ela disse, era camuflagem. Quem mantiver essas
pequenas regras, pode romper as grandes. Ela até persuadiu Winston a ceder
mais uma de suas noites se inscrevendo para um trabalho em meio-período
com munição, algo realizado de forma voluntária por membros dedicados
do Partido. Então, uma noite por semana, Winston vivenciava quatro horas
de tédio paralisante, parafusando pedacinhos de metal que eram
provavelmente partes de rastilhos de bombas, numa oficina mal iluminada e
com vento frio encanado, onde o som das batidas de martelo se intercalava
de um jeito tenebroso com a música das teletelas.
Quando se encontraram na torre da igreja, puderam preencher as
lacunas de suas conversas fragmentadas. Era uma tarde abrasadora. O ar na
pequena câmara quadrada abaixo dos sinos estava quente e estagnado, e
tinha um cheiro avassalador de cocô de pombos. Ficaram sentados
conversando por horas no chão empoeirado, cheio de galhos, se revezando
para levantar de tempos em tempos para conferir pelas seteiras se ninguém
se aproximava.
Julia tinha vinte e seis anos. Morava numa pensão com outras trinta
garotas (“Sempre aquele fedor de mulher! Como odeio mulheres!”, ela
disse, num aparte), e trabalhava, como ele tinha suposto, nas máquinas de
escrever romances no Departamento de Ficção. Ela gostava de seu trabalho,
que consistia principalmente em operar e manter um motor elétrico
poderoso, mas complexo. Ela não era “esperta”, mas gostava de usar as
mãos e se sentia em casa com o maquinário. Era capaz de descrever todo o
processo de compor um romance, da diretriz geral emitida pelo Comitê de
Planejamento até os toques finais da Equipe de Reescrita. Mas não se
interessava pelo produto finalizado. Ela “não gostava muito de ler”, disse.
Livros eram apenas uma mercadoria que precisava ser produzida, como
geleia ou cadarços de coturnos.
Ela não se lembrava de nada antes do começo dos anos 1960, e a única
pessoa que conhecera que falava com frequência dos dias antes da
Revolução era seu avô, que desaparecera quando ela tinha oito anos. Na
escola, fora capitã do time de hóquei e recebera o troféu de ginástica por
dois anos consecutivos. Ela fora líder de tropa nos Espiões e secretária de
um setor da Liga Juvenil antes de se juntar à Liga Juvenil Antissexo.
Sempre demonstrara um caráter excelente. Até mesmo (e isso era um sinal
infalível de boa reputação) fora escolhida para trabalhar na Pornosec, a
subseção do Departamento de Ficção que produzia pornografia barata para
distribuir entre os proletas. O lugar tinha sido apelidado de Casa da Lama
pelas pessoas que trabalhavam lá, ela ressaltou. Permaneceu lá por um ano,
ajudando a produzir livretos em pacotes selados com títulos como
“Histórias de espancamento” ou “Uma noite no Colégio para Moças”, que
seriam comprados furtivamente por jovens proletários que achavam estar
comprando algo ilegal.
— Como são esses livros? — perguntou Winston, curioso.
— Ah, é só porcaria. São entediantes, na verdade. Existem só seis
tramas, mas eles trocavam uns pedaços. É claro que eu só trabalhei com os
caleidoscópios. Nunca fui da Equipe de Reescrita. Não sou uma literata,
querido, longe disso.
Ele ficou surpreso ao descobrir que todos os funcionários da Pornosec,
tirando os chefes dos departamentos, eram mulheres. A teoria era de que os
homens, cujos instintos sexuais eram menos controláveis do que os das
mulheres, corriam mais riscos de serem corrompidos pela sujeira com a
qual tinham que lidar.
— Nem gostam de ter mulheres casadas no lugar — ela acrescentou. —
Teoricamente as mulheres são tão puras. Bom, eis aqui uma que não é.
Ela tivera seu primeiro caso amoroso aos dezesseis anos, com um
membro do Partido de sessenta, que depois se suicidou para não ser preso.
— Foi um bom negócio — disse Julia —, senão eles arrancariam o meu
nome na confissão dele.
Desde então, esteve com vários outros homens. A vida, como ela via,
era muito simples. Você queria se divertir; “eles”, ou seja, o Partido,
queriam impedir a sua diversão; você rompia as regras da melhor maneira
possível. Ela parecia achar natural que “eles” quisessem tirar seus prazeres
e que você quisesse evitar ser pego. Ela detestava o Partido, e dizia isso
com as palavras mais grosseiras, mas não fazia uma crítica geral. Exceto
quando atingia sua própria vida, ela não se interessava pela doutrina do
Partido. Ele notou que ela jamais utilizava palavras da novilíngua, exceto
aquelas que se tornaram de uso corrente. Nunca tinha ouvido falar da
Irmandade, e se recusava a acreditar em sua existência. Qualquer forma de
revolta organizada contra o Partido era algo fadado ao fracasso, e ela
achava estúpido. O mais inteligente a se fazer era romper as regras e, ao
mesmo tempo, permanecer vivo. Ele se perguntou, de maneira vaga,
quantos outros jovens como ela cresceram no mundo da Revolução sem
conhecer nenhuma alternativa, aceitando o Partido como algo inalterável,
como o céu, sem se rebelar contra sua autoridade, mas apenas se
esquivando dele, como um coelho escapa de um cachorro.
Ela sabia aquela porcaria de música inteira de cor, pelo jeito. A voz dela
flutuava no ar doce do verão, muito melodiosa, carregada com uma espécie
de melancolia alegre. Passava a impressão de que ela estaria completamente
contente se a tarde de junho nunca tivesse fim e o suprimento de roupas não
acabasse nunca, assim permaneceria ali por mil anos, pendurando fraldas e
cantando aquelas besteiras. Achou curioso o fato de que ele nunca ouvira
um membro do Partido cantar sozinho, de maneira espontânea. Pareceria
até pouco ortodoxo, uma excentricidade perigosa, como falar consigo
mesmo. Talvez só quando as pessoas estivessem perto de morrer de fome
elas tivessem um motivo para cantar.
— Pode se virar agora — Julia disse.
Ele se virou e, por um segundo, quase não a reconheceu. Ele esperava
vê-la nua. Mas ela não estava despida. Tinha passado por uma
transformação muito mais surpreendente. Ela se maquiara.
Devia ter entrado em alguma loja na zona proletária e comprado um kit
completo de maquiagem. Os seus lábios eram de um vermelho intenso, as
bochechas tinham rouge e o nariz, pó de arroz; havia até um toque de algo
debaixo dos olhos que os deixava mais brilhantes. Ela não sabia se maquiar
direito, mas os padrões de Winston para essas coisas não eram muito
elevados. Ele nunca vira ou imaginara uma mulher do Partido com
cosméticos no rosto. Era assombroso como a aparência dela tinha
melhorado. Com meros retoques de cor nos lugares certos, ela não apenas
ficara muito mais bonita mas, acima de tudo, mais feminina. Seu cabelo
curto e macacão masculino apenas salientavam esse efeito. Quando ele a
pegou nos braços, uma onda de violetas sintéticas inundou suas narinas. Ele
se lembrou da penumbra do porão e da boca cavernosa daquela mulher. Ela
usava o mesmo perfume; mas, naquele instante, isso pouco importava.
— Perfume, também! — ele disse.
— Sim, querido, perfume também. E sabe o que vou fazer a seguir? Vou
arranjar uma roupa de mulher de verdade para usar em vez destas calças
malditas. Vou vestir meias-calças de seda e sapatos de salto alto! Neste
quarto, vou ser uma mulher, e não uma camarada do Partido!
Tiraram suas roupas e subiram na cama enorme de mogno. Foi a
primeira vez que ele ficou nu diante dela. Até então, ele sentia vergonha
demais do seu corpo pálido e magricelo, com as veias varicosas saltadas nas
panturrilhas, e a pele descolorida acima do tornozelo. Não havia lençóis,
mas o cobertor que colocaram em cima deles era fino e suave, e o tamanho
e a elasticidade da cama impressionou os dois.
— Não consigo lembrar do resto. Mas, seja como for, sei que acaba
assim: “Eis uma vela que ilumina o caminho até sua cama, eis um machado
para cortar sua cabeça!”.
Eram como duas metades, pergunta e resposta, de uma senha. Mas
devia haver algum outro verso antes dos “sinos da Old Bailey”. Talvez
fosse possível desenterrá-lo da memória do sr. Charrington, se ele recebesse
a deixa.
— Quem foi que ensinou isso para você? — ele perguntou.
— Meu avô. Ele cantarolava para mim quando eu era pequena. Ele foi
vaporizado quando eu tinha oito anos… seja como for, ele desapareceu. Eu
me pergunto o que era um limão — ela acrescentou, inconsequente. — Já vi
laranjas. São frutas redondas meio amarelas com casca grossa.
De certo modo, ela era muito mais perspicaz do que Winston, e muito
menos suscetível à propaganda política do Partido. Uma vez, por algum
motivo, ele mencionou a guerra contra a Eurásia, e ela o surpreendeu ao
dizer, de um jeito casual, que, na opinião dela, não havia guerra. Os mísseis
que caíam todos os dias em Londres eram provavelmente disparados pelo
próprio governo da Oceania, “só para manter as pessoas assustadas”. Ele
jamais pensara nisso. Ela também despertava uma inveja nele, ao dizer que,
durante os Dois Minutos de Ódio, a maior dificuldade era não cair no riso.
Porém, ela só questionava os ensinamentos do Partido quando atingiam a
vida dela de alguma maneira. Várias vezes estava pronta para aceitar a
mitologia oficial, apenas porque a diferença entre verdade e mentira não
importava para ela. Acreditava, por exemplo, no que aprendera na escola,
que o Partido tinha inventado os aviões. (Nos seus tempos de escola,
Winston lembrava, ao fim da década de 1950, o Partido dizia ter inventado
apenas o helicóptero; décadas depois, quando Julia foi para a escola, já
afirmavam ter criado o avião; mais uma geração e seria o motor a vapor.) E
quando ele disse que os aviões já existiam antes de ele nascer, muito antes
da Revolução, esse fato pareceu completamente desinteressante para ela.
Afinal, quem se importava com quem havia inventado o avião? Foi mais
chocante para ele descobrir, por causa de algum comentário feito ao acaso,
que ela não se lembrava que a Oceania, quatro anos antes, estava em guerra
com a Lestásia e em paz com a Eurásia. Era verdade que ela via toda a
guerra como uma farsa, mas, aparentemente, nem tinha percebido que o
nome do inimigo mudara. “Achei que sempre estivéssemos em guerra com
a Eurásia”, ela disse, de maneira vaga. Isso o assustou um pouco. A
invenção dos aviões era algo anterior ao nascimento dela, mas a troca na
guerra ocorrera havia apenas quatro anos, quando já era bem crescida. Ele
discutiu isso com ela por quinze minutos. Ao final, conseguiu que ela
forçasse a memória e lembrasse vagamente que, em algum momento, a
Lestásia, e não a Eurásia, era o inimigo. Mas a questão ainda parecia pouco
importante. “Quem se importa?”, ela disse, impaciente. “É sempre uma
guerra idiota depois da outra, e a gente sabe que as notícias são todas
mentirosas.”
Ele se virou para Julia e acrescentou numa voz um pouco mais enfática:
— Você entende que mesmo se ele sobreviver, talvez vire outra pessoa?
Podemos ser obrigados a dar-lhe uma nova identidade. Seu rosto, seus
movimentos, a forma das mãos, a cor do cabelo, até a sua voz ficaria
diferente. E você mesma pode ter que se tornar outra pessoa. Nossos
cirurgiões são capazes de deixar as pessoas irreconhecíveis. Às vezes isso é
necessário. Às vezes até amputamos um membro.
Winston não pôde evitar de lançar outro olhar com o canto do olho para
o rosto mongol de Martin. Não enxergou nenhuma cicatriz. Julia ficou um
pouco mais pálida, revelando as sardas, mas encarava corajosamente
O’Brien. Ela murmurou algo que soou como se concordasse.
— Ótimo. Está resolvido, então.
Havia uma caixa prateada de cigarros sobre a mesa. Com um jeito
desligado, O’Brien empurrou-a na direção deles, pegou um cigarro para si,
e então se levantou e começou a andar lentamente de um lado para o outro,
como se pensasse melhor de pé. Eram ótimos cigarros, grossos e bem
enrolados, com uma textura sedosa desconhecida. O’Brien conferiu mais
uma vez o relógio.
— Você deve voltar para a despensa, Martin — ele disse. — Vou
aparecer em quinze minutos. Dê uma bela olhada nos rostos desses
companheiros antes de ir embora. Você os verá outra vez. Eu, talvez não.
Exatamente como na entrada, os olhos escuros do homenzinho piscaram
diante de seus rostos. Não havia um rastro de amistosidade no jeito dele.
Ele memorizava a aparência dos dois, mas não tinha o menor interesse, ou
aparentava não sentir nada. Ocorreu a Winston que um rosto sintético talvez
fosse incapaz de mudar de expressão. Sem falar ou emitir qualquer espécie
de saudação, Martin saiu, fechando a porta em silêncio atrás de si. O’Brien
andava para cima e para baixo, uma mão no bolso de seu macacão preto, a
outra segurando um cigarro.
— Vocês compreendem — ele disse — que lutarão no escuro. Vocês
sempre estarão no escuro. Receberão ordens e as obedecerão, sem saber o
motivo. Mais tarde, enviarei um livro para que possam aprender a
verdadeira natureza da sociedade na qual vivemos, e a estratégia que
usaremos para destruí-la. Depois de lerem o livro, terão se tornado
membros completos da Irmandade. Porém, entre os objetivos gerais pelos
quais estamos lutando e as tarefas imediatas, vocês nunca saberão de nada.
Afirmo que a Irmandade existe, mas não posso revelar se tem cem membros
ou dez milhões. Com base no seu próprio conhecimento, nunca poderão
dizer que tem sequer doze pessoas. Vocês terão três ou quatro contatos, que
serão renovados de tempos em tempos ao passo que desaparecem. Como
esse foi o seu primeiro contato, ele será preservado. Quando vocês
receberem ordens, estas virão de mim. Se acharmos que é necessário nos
comunicar com vocês, será através de Martin. Quando forem finalmente
pegos, terão que confessar. Isso é inevitável. Mas vocês terão muito pouco a
confessar, além de suas próprias ações. Não serão capazes de trair mais do
que um punhado de pessoas desimportantes. Provavelmente, nem me
trairão. Nessa hora, já estarei morto ou terei me tornado outra pessoa, com
um rosto diferente.
Capítulo I
Ignorância é força
Ernat que nam resent omnim iliate nos et dit et magnis doloris rehendi
picipsandi res ium eniame voluptatur aliquiUgitatem quis que nonsed unt ad
quia doluptat voluptus sit laboribus, si doluptation eium reseque labores
sinctae omniend ebistiur, odiaectoria nonseque dolorem evelectia qui sus
etSanduciis cuptass itatur, comnist, offic temquis quibuscia ditinum quo
consequi qui as acestrum vendam, cuptat ad modi ide sedIt,
Winston parou de ler, mais para apreciar o fato de que estava lendo no
conforto e em segurança. Estava sozinho: sem teletela, sem orelhas na
fechadura, sem um impulso nervoso de olhar por cima do ombro para cobrir
a página com a mão. O ar doce de verão acariciava sua bochecha. De algum
lugar distante, flutuavam gritos de crianças; no próprio quarto não havia
nenhum ruído além da voz de inseto do relógio. Ele se afundou mais um
pouco na poltrona e colocou os pés em cima da grade. Aquilo era um
prazer, uma eternidade. De repente, fez algo que as pessoas costumam fazer
com um livro do qual sabem que lerão e relerão cada palavra: abriu-o numa
página diferente e encontrou-se no Capítulo III. Continuou lendo:
Capítulo III
Guerra é paz
Ernat que nam resent omnim iliate nos et dit et magnis doloris rehendi
picipsandi res ium eniame voluptatur aliquiUgitatem quis que nonsed unt ad
quia doluptat voluptus sit laboribus, si doluptation eium reseque labores
sinctae omniend ebistiur, odiaectoria nonseque
dolorem evelectia qui sus etSanduciis cuptass itatur, comnist, offic
temquis quibuscia ditinum quo consequi qui as acestrum vendam, cuptat ad
modi ide sedIt,
nes eate voloritIpitatectur audamus, te accabo. Xeratectat es dis nis
saperumquate nectotam sequo inti verum, commos ad molupti voluptur aut
lam fugia veliquatur senit reiciet omni te excero magni nam autatectur,
comnisvCientiun dantotate sinihil il
isi dolut eatem es quidit voluptatem ea qui to iliae sequissum dollect
issimet ut eatus a idebit quam eictus ent accatqu aturibus, voluptat estiumq
uidunt hicteca borero voluptatur sum nonem expernam, si susam fugit,
quunt quo odionse cepror seque omnis aut quatur aut moluptas il minctur?
Capítulo I
Ignorância é força
***
Quando acordou, teve a sensação de ter dormido por muito tempo, mas
ao vislumbrar o relógio antiquado, descobriu que eram apenas vinte horas e
meia. Ficou cochilando mais um tempo; então, a cantoria a plenos pulmões
saltou do quintal abaixo:
Ele segurou Julia por sua cintura maleável, fechando com tranquilidade
o braço ao redor dela. Seus flancos, do quadril ao joelho, pressionavam
contra ele. Nunca sairia uma criança dali daquele corpo. Isso eles nunca
poderiam fazer. Só boca a boca, mente a mente, podiam passar adiante o
segredo. A mulher lá debaixo não tinha mente, só braços fortes, um bom
coração e um ventre fértil. Ele se perguntou a quantas crianças ela dera à
luz. Podiam ter sido facilmente quinze. Ela teve seu momento de florescer,
um ano, talvez, de beleza de rosas selvagens, e então de repente inchou
como uma fruta fertilizada e ficou avermelhada e grosseira, e então sua vida
virou lavar, esfregar, costurar, varrer, polir, consertar roupas, esfregar, lavar,
primeiro para os filhos, depois para os netos, por trinta anos sem parar. Ao
final, ela ainda cantava. A reverência mística que ele sentia por ela se
misturava de alguma maneira com o aspecto do céu pálido, sem nuvens,
que se estendia a distâncias intermináveis por trás das chaminés. Era
curioso pensar que o céu era o mesmo para todos, na Eurásia ou na
Lestásia, assim como aqui. E que as pessoas sob aquele céu também eram
quase as mesmas — em todo lugar, por todo o mundo, centenas de milhares
de milhões de pessoas assim, pessoas ignorantes da existência umas das
outras, mantidas separadas por paredes de ódios e mentiras e, ainda assim,
quase exatamente as mesmas — pessoas que nunca aprenderam a pensar,
mas que armazenavam em seus corações e ventres e músculos a força que
um dia derrubaria o mundo. Se havia esperança, estava nos proletas! Sem
ter lido até o fim o livro, ele sabia que essa deveria ser a mensagem final de
Goldstein. O futuro pertencia aos proletas. E será que era possível ter a
certeza de que, quando chegasse a vez deles, o mundo que construíssem não
seria tão alienígena para ele, Winston Smith, quanto era o mundo do
Partido? Sim, porque pelo menos seria um mundo de sanidade. Onde há
igualdade, há sanidade. Cedo ou tarde isso aconteceria, a força se
transformaria em consciência. Os proletas eram imortais, não era possível
duvidar disso quando se observava a figura valente no quintal. No fim, o
seu despertar chegaria. E até isso acontecer, ainda que demorassem mil
anos, eles permaneceriam vivos, contra todos obstáculos, como os pássaros,
transmitindo de corpo a corpo a vitalidade da qual o Partido não dispunha e
não conseguia matar.
Antes de ser levado àquele lugar, ele tinha sido transportado a outro, que
devia ser uma prisão comum ou uma cela temporária usada pelas patrulhas.
Não sabia há quanto tempo estava lá; algumas horas, de qualquer maneira;
sem relógios ou luz do sol, era difícil medir o tempo. Era um lugar
barulhento e com cheiro maléfico. Colocaram-no numa cela similar à que se
encontrava agora, mas podre de suja e sempre cheia, com dez a quinze
pessoas. A maioria era de criminosos comuns, mas havia alguns
prisioneiros políticos entre eles. Ele ficara sentado em silêncio contra a
parede, enquanto corpos imundos o empurravam, tomado demais pelo medo
e pela dor na barriga para se interessar pelo que estava ao seu redor, mas
ainda assim capaz de notar a diferença impressionante de comportamento
entre os prisioneiros do Partido e os outros. Os prisioneiros do Partido
estavam sempre em silêncio e aterrorizados, mas os criminosos ordinários
pareciam não se importar com ninguém. Gritavam insultos para os guardas,
retaliavam com ferocidade quando confiscavam seus pertences, escreviam
palavrões no chão, comiam comida contrabandeada que tiravam de
esconderijos misteriosos das roupas, e até gritavam mais alto que a teletela
quando esta tentava restaurar a ordem. Por outro lado, alguns pareciam se
dar bem com os guardas, chamavam-nos por seus apelidos, e tentavam
adulá-los passando cigarros pelo postigo da porta. Os guardas também
tratavam os criminosos comuns com certa tolerância, mesmo quando
tinham que ser duros com eles. Falava-se muito dos campos de trabalho
forçado aos quais a maioria dos prisioneiros esperava ser enviada. Os
campos eram “aceitáveis”, pelo que ele entendeu, desde que você tivesse
bons contatos e soubesse se virar. Havia suborno, favoritismo e extorsão de
todo tipo, havia homossexualidade e prostituição, e até álcool ilícito
destilado das batatas. As posições de confiança eram cedidas apenas a
criminosos comuns, em especial os gângsteres e os assassinos, que
formavam uma espécie de aristocracia. Todo o trabalho sujo era feito pelos
criminosos políticos.
Havia um constante vaivém de prisioneiros de tudo quanto era tipo:
traficantes, ladrões, bandidos, vendedores do mercado clandestino, bêbados,
prostitutas. Alguns bêbados eram tão violentos que os outros prisioneiros
precisavam se unir para controlá-los. Uma enorme ruína de uma mulher, na
faixa dos sessenta, com grandes peitos balançantes e cachos espessos de
cabelo branco que tinham se desfeito numa briga, entrou esperneando e
berrando, carregada por quatro guardas que a seguravam, um em cada
canto. Arrancaram as botas com as quais ela tentava chutá-los e jogaram-na
sobre o colo de Winston, quase quebrando as pernas dele. A mulher se
endireitou e, enquanto eles saíam, mandou um grito de “F… seus idiotas!”.
Então, ao notar que estava sentada em algo desigual, ela deslizou para fora
dos joelhos de Winston e sentou-se no banco.
— Desculpa, queridinho — ela disse. — Não quis sentá em você, mas
os babacas me jogaram aqui. Num sabem como tratar uma dama, né? — Ela
parou, deu um tapa no peito, e arrotou. — Desculpa — ela disse. — Inda
num me recuperei.
Ela se inclinou para a frente e vomitou bastante no chão.
— Agora tô melhor — ela disse, recostando-se para trás, de olhos
fechados. — Nunca guarde, esse é o segredo. Bota pra fora enquanto inda tá
fresco no seu estômago.
Ela se reavivou, virou-se para olhar de novo Winston e pareceu gostar
dele no mesmo instante. Ela colocou o braço amplo ao redor do ombro de
Winston e puxou-o na direção dela, exalando um hálito de cerveja e vômito
na cara dele.
— Qualé seu nome, queridinho? — ela perguntou.
Podia mesmo, pensou Winston, ser sua mãe. Ela tinha a idade certa,
assim como o físico, e era provável que as pessoas mudassem algo
depois de vinte anos num campo de trabalho forçado.
Ninguém mais tinha falado com ele. Era impressionante até que ponto
os criminosos comuns ignoravam os prisioneiros do Partido. Os “políticos”,
chamavam-nos, com uma espécie de desprezo indiferente.
duas
ou três
horas
desde que o levaram ali.
Houve momentos em que ele previu o que aconteceria com ele com tanta
nitidez que seu coração disparava e sua respiração parava. Sentia
cassetetes esmagando seus ombros e botas com ferro nas canelas;
enxergava a si mesmo rastejando no chão, implorando
misericórdia
com seus dentes quebrados.
Não conseguia focar sua mente nela. Ele a amara e não a trairia; mas isso
era apenas um fato, conhecido assim como ele conhecia as regras da
aritmética. Ele não sentia amor por ela, e quase não se perguntava o que
aconteceria com ela. Pensava com mais frequência em O’Brien, com uma
centelha de esperança. O’Brien devia saber que ele fora preso. A
Irmandade,
Estava deitado em algo que parecia uma cama de acampamento, só que era
mais alta e ele estava preso de tal maneira que não conseguia se mover. A
luz era mais forte que o normal e atingia o seu rosto. O’Brien estava ao seu
lado, olhando para baixo, com determinação. Do outro lado havia um
homem de jaleco branco que segurava uma seringa hipodérmica.
Mesmo depois de abrir os olhos, demorou para assimilar seus arredores.
Ele teve a impressão de ter entrado nadando naquele quarto, vindo de um
mundo muito diferente, uma espécie de mundo subaquático muito mais
profundo. Não sabia dizer por quanto tempo estivera inconsciente. Desde o
momento que o prenderam, não vira mais escuridão ou luz do dia. Além
disso, suas memórias não eram contínuas. Houve momentos em que a
consciência, até o tipo de consciência que se tem dormindo, tinha parado
por completo e recomeçado depois de uma lacuna. Mas não tinha como
saber se as lacunas eram de dias, semanas ou apenas segundos.
O pesadelo começara com aquele primeiro golpe no ombro. Depois,
percebeu que tudo que acontecera na sequência era apenas uma preliminar,
uma interrogação rotineira à qual quase todos os prisioneiros eram
sujeitados. Havia uma vasta gama de crimes — espionagem, sabotagem e
coisas do tipo — a qual todos tinham que confessar, como algo óbvio. A
confissão era uma formalidade, embora a tortura fosse real. Quantas vezes
ele tinha sido espancado, quanto tempo tinha durado cada uma das surras,
isso ele não era capaz de lembrar. Sempre havia cinco ou seis homens
golpeando-o ao mesmo tempo. Às vezes usavam os punhos, às vezes os
cassetetes, às vezes barras de ferro, às vezes botas. Algumas vezes ele
rastejou pelo chão, de um modo indigno, como um animal, contorcendo o
corpo de várias maneiras, num esforço sem fim e inútil de desviar dos
corpos, apenas incentivando que dessem mais chutes, nas costelas, na
barriga, nos ombros, nas canelas, na virilha, nos testículos, no osso na base
da coluna. Tinha horas que isso prosseguia até que a coisa mais cruel, atroz
e imperdoável não fosse, para ele, que os guardas continuassem
espancando-o, e sim o fato de ele não conseguir perder a consciência. Tinha
horas que perdia tanto os nervos que começava a berrar pedindo
misericórdia antes mesmo do começo da surra, só de ver um punho indo
para trás para dar um soco ele despejava uma confissão de crimes reais e
imaginários. Houve outras vezes que começava decidido a não confessar
nada, que precisavam arrancar palavras dele entre arquejos de dor, e houve
outras vezes que ele tentava debilmente um meio-termo, quando dizia a si
mesmo: “Vou confessar, mas ainda não. Preciso esperar até a dor ficar
insuportável. Três chutes a mais, dois chutes a mais, e então falo o que eles
quiserem”. Às vezes era espancado até mal conseguir ficar de pé, e então
jogado como um saco de batatas no chão de pedra da cela, onde
aguardavam algumas horas para que ele se recuperasse, e então o
espancavam novamente. Também havia períodos mais longos de
recuperação. Lembrava-se vagamente deles, porque os passava
principalmente dormindo ou em estupor. Lembrava-se de uma cela com
uma cama de tábuas, uma espécie de prateleira que saía da parede, e uma
pia de latão, e refeições com sopa quente, pão, e às vezes café. Ele se
lembrava de um barbeiro carrancudo chegando para raspar seu queixo e
aparar seu cabelo, e homens com jeito profissional, nada simpáticos, de
jaleco branco, que mediam seus batimentos, testavam seus reflexos, abriam
suas pálpebras, passavam seus dedos ásperos em busca de ossos quebrados,
e injetavam agulhas no seu braço para que adormecesse.
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As ataduras se afrouxaram. Winston pisou no chão e ficou de pé,
desequilibrado.
— Você é o último homem — disse O’Brien. — Você é o guardião do
espírito humano. Você se enxergará como você é. Tire a roupa.
Winston soltou o pedaço de barbante que prendia seu macacão. O zíper
tinha sido arrancado havia um bom tempo. Ele não conseguia lembrar se,
em algum momento desde que fora preso, tinham tirado todas as suas
roupas. Por baixo do macacão, seu corpo estava coberto com farrapos
amarelados e sujos, que mal se podia reconhecer como sendo resquícios de
suas roupas de baixo. Ao tirá-las, ele notou que havia um espelho de três
faces no canto do quarto. Ele se aproximou e então parou de repente. Um
grito involuntário saiu de dentro dele.
— Vá em frente — disse O’Brien. — Fique entre as laterais do espelho.
Assim você terá uma visão lateral também.
Ele tinha parado pois sentira medo. Uma coisa que parecia um
esqueleto, toda curvada e acinzentada, vinha na sua direção. A aparência
daquilo era aterrorizante, e não apenas pelo fato de que ele sabia ser aquela
pessoa. Aproximou-se do vidro. O rosto da criatura parecia protuberante
por causa da sua postura torta. Um rosto desamparado, de pássaro
enjaulado, com uma testa elegante que levava a um escalpo careca, o nariz
quebrado e bochechas que pareciam surradas. Acima delas, seus olhos eram
ferozes e observadores. As bochechas tinham rugas, e a boca, uma
aparência retraída. Com certeza era o seu rosto, mas parecia ter mudado
mais do que ele mudara por dentro. As emoções que registrava seriam
diferentes das emoções que sentia. Ele tinha ficado parcialmente calvo. Em
um primeiro momento, ele achou que tinha ficado grisalho também, mas era
apenas seu escalpo que era cinzento. Tirando suas mãos e um círculo no seu
rosto, seu corpo estava todo cinza, com uma sujeira antiga, entranhada.
Aqui e ali, por baixo da sujeira, havia cicatrizes vermelhas dos ferimentos, e
perto do tornozelo, a úlcera varicosa tinha virado uma massa inflamada com
pedaços de pele que descascavam dela. Mas o mais assustador de tudo era
como seu corpo se tornara magro. O barril que formavam as costelas estava
tão estreito quanto o de um esqueleto; as pernas murcharam de tal modo
que seus joelhos eram mais grossos que suas coxas. Agora ele entendia o
que O’Brien quisera dizer com visão lateral. A curvatura da sua coluna era
impressionante. Seus ombros descarnados estavam tão curvos para a frente
que pareciam formar uma cavidade no peito. O pescoço magricela parecia
se dobrar com o peso do crânio. Se tivesse que apostar, diria que aquele
corpo era de um homem de sessenta anos que sofria uma doença maligna.
— Você pensou algumas vezes — disse O’Brien — que o meu rosto, o
rosto de um membro do Partido Interno, parece velho e gasto. O que acha
do seu próprio rosto?
Ele pegou Winston pelo ombro e girou-o de modo que Winston agora o
encarava.
— Olhe a condição em que você está! — disse. — Olhe essa imundície
que cobre todo o seu corpo. Olhe a sujeira entre os dedos dos pés. Olhe essa
inflamação nojenta na sua perna. Você sabia que está fedendo mais que um
bode? Mais provável que você tenha deixado de notar. Olhe essa magreza.
Está vendo? Posso arrodear seu bíceps com meu dedão e meu dedo
indicador. Seria capaz de quebrar seu pescoço como uma cenoura. Sabia
que você perdeu vinte e cinco quilos desde que está em nossas mãos? Está
perdendo cabelo aos chumaços. Olhe! — Puxou a cabeça de Winston,
arrancando um tufo. — Abra a boca. Sobraram nove, dez, onze dentes.
Quantos você tinha quando chegou? E os poucos que restaram estão caindo.
Olhe isso aqui!
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LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
Ele aceitava tudo. O passado era alterável. O passado nunca tinha sido
alterado. A Oceania estava em guerra com a Lestásia. A Oceania sempre
estivera em guerra com a Lestásia. Jones, Aaronson e Rutherford eram
culpados pelos crimes de que os acusavam. Ele nunca tinha visto a foto que
provava a inocência deles. A foto nunca existira, ele a inventara. Lembrava-
se de lembrar coisas contrárias, mas essas memórias eram falsas, frutos de
um autoengano. Como tudo era fácil! Bastava se render e todo o resto vinha
a seguir. Era como nadar contra uma correnteza que arrasta a pessoa para
trás por mais que ela lute, e então decidir se virar e seguir a correnteza em
vez de se opor a ela. Nada mudava, exceto a sua própria atitude: a coisa
predestinada aconteceria de qualquer maneira. Ele quase não sabia mais por
que algum dia se rebelara. Tudo era fácil, exceto…!
Tudo poderia ser verdade. As assim chamadas leis da natureza eram
besteira. A lei da gravidade era besteira. “Se eu quisesse”, O’Brien tinha
dito, “poderia sair flutuando do chão como uma bolha de sabão”. Winston
resolveu a questão. “Se ele pensa que saiu flutuando do chão, e eu ao
mesmo tempo penso que vejo ele fazendo isso, então a coisa acontece.” De
repente, como um destroço submerso que rompe a superfície da água, o
pensamento explodiu em sua mente: “Não acontece de fato. Nós
imaginamos. É uma alucinação”. Afastou o pensamento no mesmo instante.
A falácia era óbvia. Trazia a presunção de que em algum lugar, fora da
própria pessoa, havia um mundo “real” onde coisas “reais” aconteciam.
Mas como poderia existir tal mundo? Que conhecimento temos de algo,
sem ser por meio da nossa própria mente? Tudo acontece dentro da mente.
Tudo o que acontece dentro de todas as mentes acontece de fato.
Não teve dificuldade em se livrar da falácia, e não corria risco de
sucumbir a ela. Percebeu, não obstante, que nunca deveria ter pensado nela.
A mente deveria desenvolver um ponto cego sempre que um pensamento
perigoso surgisse. O processo deveria ser automático, instintivo.
CRIMEPARAR, como chamavam em novilíngua.
Ele passou a se exercitar em crimeparar. Apresentou afirmações para si
— “O Partido diz que a terra é plana”, “o Partido diz que o gelo é mais
pesado que a água” — e se treinou em não ver ou não compreender os
argumentos que as contradiziam. Não foi fácil. Era necessário um poder
forte de raciocínio e improvisação. Os problemas aritméticos que surgiam,
por exemplo, de uma declaração como “dois mais dois são cinco” iam além
da sua capacidade intelectual. Também era necessária uma espécie de
atletismo da mente, uma capacidade de num momento fazer um uso
delicado da lógica, e no instante seguinte estar inconsciente dos erros
lógicos mais grotescos. A estupidez era tão necessária quanto a inteligência,
e igualmente difícil de alcançar.
O tempo todo, como se fosse parte de sua mente, ele se perguntava
quanto tempo faltava para que atirassem nele. “Tudo depende de você”,
O’Brien tinha dito; mas ele sabia que não tinha nenhum ato consciente que
podia fazer para adiantar aquilo. Podia ser em dez minutos ou em dez anos.
Poderiam mantê-lo na solitária por anos, poderiam enviá-lo a um campo de
trabalho, poderiam libertá-lo por um tempo, como às vezes faziam. Era
perfeitamente possível que antes que atirassem nele, reencenariam todo o
teatro de prisão e interrogatório. A única coisa certa era que a morte nunca
viria no momento esperado. A tradição — a tradição não dita, mas que de
certa maneira era conhecida, mesmo sem ninguém falar — era que atiravam
no sujeito quando estivesse de costas; sempre na nuca, sem aviso, enquanto
ele caminhava pelo corredor, indo de uma cela a outra.
Um dia — mas “um dia” não era a expressão certa; era igualmente
provável que fosse no meio da noite — ele caiu num devaneio estranho e
prazeroso. Ele descia pelo corredor, esperando a bala. Sabia que viria a
qualquer momento. Tudo tinha se acertado, ajeitado, reconciliado. Não
restavam mais dúvidas, discussões, não havia mais dor, não havia mais
medo. Seu corpo estava saudável e forte. Andava com facilidade, com
alegria de se mover, a sensação de caminhar à luz do sol. Não estava mais
nos corredores brancos e estreitos do Ministério do Amor, mas numa
passagem enorme banhada pelo sol, de um quilômetro de largura, pela qual
caminhava no delírio induzido pelas drogas. Estava na Terra Dourada,
seguindo os passos no velho pasto comido por coelhos. Podia sentir a grama
curta sob seus pés e o brilho suave do sol no rosto. À margem do campo
estavam os olmos, sacudindo de leve, e em algum lugar mais adiante estava
o córrego onde os peixinhos nadavam em lagos verdes sob os salgueiros.
De repente, ele deu um salto de susto, sentindo um choque de terror.
Suor brotou em suas costas. Escutou a si mesmo gritando bem alto:
— Julia! Julia! Julia, meu amor! Julia!
Por um instante, tinha sido dominado por uma alucinação de que ela
estava presente. Parecia não apenas estar com ele, mas dentro dele. Era
como se ela tivesse entrado na textura de sua pele. Naquele momento, ele a
amara muito mais do que quando estavam juntos e eram livres. Também
sabia que em algum outro lugar, ela ainda estava viva e precisava de sua
ajuda.
Voltou a se deitar na cama e tentou se recompor. O que tinha feito?
Quantos anos acrescentara à sua pena por um instante de fraqueza?
Logo ouviria o pisotear das botas do lado de fora. Não podiam deixar
uma explosão daquelas ficar sem punição. Agora eles ficariam sabendo, se
já não sabiam antes, que ele rompia o acordo que fizera. Ele obedecia ao
Partido, mas ainda odiava o Partido. Antes, tinha escondido uma mente
herege por baixo de uma aparência de conformidade. Agora, ele dava um
passo a mais para trás: havia rendido sua mente, mas tinha a esperança de
manter seu coração imaculado. Sabia que estava errado, mas preferia estar
errado. Eles entenderiam isso — O’Brien entenderia isso. Tudo fora
confessado naquele único grito idiota.
Teria que recomeçar do zero. Poderia levar anos. Passou a mão pelo
rosto, tentando se familiarizar com sua nova forma. Tinha vincos profundos
nas bochechas, seus ossos pareciam afiados, o nariz achatado. Além disso,
desde que se vira pela última vez no espelho, recebera uma dentadura nova
completa. Não era fácil permanecer inescrutável quando não se sabia qual
era a aparência do próprio rosto. De qualquer maneira, apenas o controle de
suas expressões não era suficiente. Pela primeira vez, percebeu que quando
se quer guardar um segredo, é preciso escondê-lo também de si mesmo. É
preciso saber o tempo todo que ele está ali, mas, até que seja necessário,
nunca se deve deixá-lo emergir na consciência de forma que o segredo
receba um nome. De agora em diante, ele devia não apenas pensar direito;
precisava sentir direito, sonhar direito. E durante todo esse tempo precisaria
manter seu ódio preso dentro de si como uma bola de matéria que é parte
dele e, ao mesmo tempo, está desconectada do resto dele, uma espécie de
cisto.
Um dia, decidiriam atirar nele. Não se pode descobrir quando isso vai
acontecer, mas, poucos segundos antes, deve ser possível adivinhar. Sempre
atiram pelas costas, num corredor. Dez segundos seria o bastante. Nesse
tempo, seu mundo interior poderia aparecer. E então, de repente, sem
proferir uma palavra, sem interromper o passo, sem mudar uma linha de
expressão no rosto… de repente, a camuflagem cairia e bum! Lá iriam as
baterias do ódio. O ódio o preencheria como uma chama abrasadora. E
quase no mesmo instante, bum! faria a bala, tarde ou cedo demais. Teriam
explodido seu cérebro em pedacinhos antes que pudessem recuperá-lo. O
pensamento herege ficaria sem punição, sem arrependimento, para sempre
fora do alcance deles. Teriam explodido um buraco na sua própria
perfeição. Morrer odiando-os, isso era liberdade.
Fechou os olhos. Era mais difícil do que aceitar uma disciplina
intelectual. A questão era se degradar, se mutilar. Precisava dar um
mergulho na mais imunda das sujeiras. O que era a coisa mais horrível e
nauseante de todas? Pensou no Grande Irmão. Aquele rosto enorme (por vê-
lo com frequência nos pôsteres, sempre pensou nele como tendo um metro
de largura), com seu bigode preto pesado e aqueles olhos que o seguiam
para lá e para cá, parecia flutuar na sua mente por conta própria. Quais eram
seus verdadeiros sentimentos em relação ao Grande Irmão?
Escutou um pisotear forte de botas no corredor. A porta de aço se abriu
com o barulho de metal. O’Brien entrou na cela. Atrás dele estava o soldado
de rosto de cera e os guardas de uniforme preto.
— Levante-se — disse O’Brien. — Venha cá.
Winston ficou diante dele. O’Brien pegou os ombros de Winston com
suas mãos fortes e o encarou de perto.
— Você pensou em me enganar — ele disse. — Isso foi idiota.
Endireite-se. Olhe para mim.
Ele parou e continuou num tom mais suave:
— Você está melhorando. Intelectualmente, tem pouquíssima coisa
errada com você. Mas emocionalmente você não progrediu. Diga-me,
Winston… e lembre-se, nada de mentiras: você sabe que sempre sei
detectar uma mentira… diga-me, quais são seus verdadeiros sentimentos
em relação ao Grande Irmão?
— Eu o odeio.
— Você o odeia. Bom. Então chegou a hora de dar o último passo. Você
precisa amar o Grande Irmão. Não basta obedecê-lo: você precisa amá-lo.
Ele soltou Winston, dando um pequeno empurrãozinho nele em direção
aos guardas.
— Quarto 101 — disse.
05
A cada etapa do seu aprisionamento, ele soube, parecia saber, onde estava
naquele prédio sem janelas. Possivelmente havia pequenas diferenças na
pressão do ar. As celas onde os guardas o espancaram ficavam no subsolo.
O quarto onde foi interrogado por O’Brien ficava perto do terraço. Esse
lugar ficava a muitos metros abaixo da terra, o mais profundo que era
possível ir.
Era maior do que a maioria das celas onde ele estivera. Mas quase não
percebia seus arredores. Tudo o que notava é que havia duas mesas
pequenas logo à sua frente, as duas forradas com feltro verde. Uma estava
apenas a um ou dois metros de distância dele, a outra um pouco mais longe,
perto da porta. Ele estava atado a uma cadeira, preso com tanta força que
não mexia nada além da cabeça. Uma espécie de almofada segurava sua
cabeça por trás, forçando-o a olhar para frente.
Por um momento, ficou a sós, e então a porta se abriu e O’Brien entrou.
— Você me perguntou uma vez — disse O’Brien — o que tinha no
Quarto 101. Eu disse que você já sabia a resposta. Todo mundo sabe. No
Quarto 101 está a pior coisa do mundo.
A porta se abriu outra vez. Um guarda entrou, carregando algo feito de
arame, uma caixa ou cesto. Largou aquilo na mesa mais distante. Por causa
da posição de O’Brien, Winston não podia enxergar o que era.
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consequi qui as acestrum vendam, cuptat ad modi ide sedit, nes eate
voloritIpitatectur audamus, te accabo. Xeratectat es dis nis s
2+2=5
* Pequena criatura mágica do conto de fadas homônimo publicado pelos irmãos Grimm em
1812. [N. de E.]
* Thomas Jefferson (1743–1826), um dos principais autores da Declaração de
Independência dos Estados Unidos, que posteriormente seria eleito o terceiro presidente do
país. [N. de E.]
O AMANHÃ É O HOJE QUE NOS PARECE
ONTEM
por Ignácio de Loyola Brandão
O destino, ou a vida, como queiram, é algo estranho, que tem seus próprios
caminhos, e muitas vezes demoramos para atinar com eles. O romance 1984
foi traduzido para centenas de línguas e hoje é considerado um clássico.
Tudo o que seu autor criou de fato ocorreu, e de modo impactante, por
décadas. Muitas ficções científicas baseadas em “possibilidades” reais
acabaram envelhecendo mal. 1984 se faz e refaz continuadamente. Assim
como Instruções para se tornar um fascista, da escritora e ensaísta italiana
Michela Murgia, o livro de Orwell é um breviário que totalitários devem ler
para se reconhecer. Foi mais fácil para Murgia, bastou olhar e copiar o que
via. Orwell foi criador, base, alicerce do que se tornou imenso edifício de
horror. Mas como estamos vivendo este horror sem nos revoltarmos, sem
incômodos e indignação?
Este romance é um best-seller de longa duração. Sabe-se lá quantos
exemplares foram publicados. Milhões? Talvez bilhões ao longo de sua
polêmica, controversa e assustadora existência. George Orwell viu a
primeira edição do livro em 1949, porém morreu a 21 de janeiro de 1950.
Teve pouco tempo para ler as primeiras resenhas e notícias, mas sentiu logo
a hostilidade de grupos políticos e sociais. A União Soviética e todos os que
a seguiam com fervor odiaram e combateram impiedosamente livro e autor
(as patrulhas existem há muito), acreditando que ele se referia ao regime
comunista, demolido tijolo a tijolo em sua prosa. Iniciou-se uma intensa
produção do que agora se chamam fake news para desmoralizar autor e
livro. Ainda não existiam os robôs para dispará-las sem cessar dos
gabinetes do ódio ao modelo atual, mas foi um projeto estruturado, uma
ação organizada. Os Estados Unidos afirmavam que se tratava de um
comunista arrependido decidido a solapar o regime de Josef Stálin. Na
recente operação Lava Jato brasileira, George Orwell seria visto como um
corrupto transformado em delator. A tal ponto chegaram as difamações que,
para defender Orwell do tsunami de ataques comandados pela União
Soviética — que proibiu a edição — e por seus seguidores no mundo, foi
criada uma rede de historiadores, cientistas políticos e sociais, escritores,
jornalistas de gabarito e políticos. Sabe-se que ainda hoje circulam
defensores de Stálin.
Aqui, a ironia. Tudo o que tinha sido mostrado como ficção no romance
acontecia no mesmo momento em que o livro estava indo para as ruas.
Orwell repetiu muitas vezes: “Escrevi o que poderia acontecer”.
Testemunhamos todas as manobras do totalitarismo. Fascismo, nazismo,
Nicarágua, Coreia do Norte, China, Bielorrússia, Venezuela. Chegaram a
acusar Orwell de ter se vendido ao establishment, afirmaram que ele era
informante da polícia secreta, homem de duas caras, traidor, tudo. Insultos
vieram dos radicais, polarizou-se a questão. Conhecemos bem como a
polarização gera insultos, agressões, difamações. Edições e reedições se
vendiam e Orwell, que passara quase a vida toda na miséria, vivendo em
pousadas infames e albergues públicos, desabafou, dias antes de morrer,
com os pulmões estourados, aos 46 anos de vida: “Ganhei todo esse
dinheiro, e agora vou morrer”, segundo o relato de seu biógrafo Richard
Bradford na biografia Orwell: um homem do nosso tempo, recentemente
publicada no Brasil. Nos anos seguintes à morte, teria ficado muito rico.
Tivesse durado ao menos 75 anos, ou seja, morrendo em 1978, poderia ser
chamado de bilionário, porque seus livros mais populares, A revolução dos
bichos, publicado em 1944, e 1984, venderam continuamente no mundo
inteiro. Vendem até hoje. Livreiros do Brasil divulgaram que entre os livros
mais vendidos do segundo semestre de 2020, Orwell figurou com as duas
obras. O último romance do autor também alcançou pico de vendas nos
Estados Unidos no mesmo período, especialmente após as eleições
presidenciais, nas quais o então presidente Donald Trump fez uma série de
declarações incorretas ou imprecisas sobre o processo eleitoral.
Vocês acabaram de ler o livro. Ou talvez tenham começado pelo
posfácio para ver o que diria o autor de dois romances hoje considerados
distópicos dentro da literatura brasileira, Não verás país nenhum e Desta
terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela. Ficção que
terminou sendo praticamente documentária. A todo instante me perguntam:
como previu tudo? Você é profeta? Respondo como me respondeu, certa
vez, Nelson Rodrigues, nos idos dos anos 1960. Uma tarde eu o encontrei
na redação deserta do jornal Última hora a escrever uma de suas histórias
para a coluna diária A Vida Como Ela É. Nelson dificilmente viajava
(jamais de avião), mas tinha vindo a São Paulo para assistir à estreia de
alguma peça sua. Eu, molecão fascinado, fiquei a distância, observando-o
fumar e bufar sobre o texto. Gemia, dizia “ummrrmmummrmrm”. Em um
intervalo dos bufos, indaguei: “Como o senhor consegue escrever um conto
por dia, todos bons?”. Ele pareceu despertar e disse: “Olho pela janela,
menino. Está tudo aí na rua. Quando nada vejo, exagero um pouco. Pouco
ou quanto eu quiser, pois no final a vida me copia”. Poucos na história
refletiram a classe média brasileira como ele.
Não verás. Nos anos 1970, a notícia de que tinha nevado no deserto do
Saara me impressionou de tal modo, me pareceu tão absurda, que pensei: a
natureza enlouqueceu. Virou de ponta-cabeça. Outra notícia, em que um
grupo de cientistas internacionais afirmava que no futuro a água acabaria
antes do petróleo, me deixou alerta. A cada momento eu recortava um
artigo, reportagem, entrevista sobre o meio ambiente. Certa vez foi sobre
como a comida do futuro será toda produzida nos laboratórios industriais.
Percebi a verdade disso ao ver um hambúrguer sola de couro plastificado de
uma lanchonete estadunidense. Ou as Pringles, as batatinhas em latas
redondas. Tudo falso, fictício. De onde criei a comida fictícia. E cheguei à
comida factícia, aquela que se come no meu romance, sem sabor, sem
cheiro, sem gosto, meleca. Anos mais tarde, e com um arquivo de quatro ou
cinco mil notícias sobre poluição, devastação, aquecimento global, oceanos
se erguendo em ondas gigantescas e geleiras dos polos se derretendo, vi um
ipê de 80 anos ser envenenado por uma vizinha em uma rua de Perdizes,
São Paulo, onde morei. E ela confessou: “Sim, matei! Esta maldita árvore
sujava a minha calçada com suas flores desgraçadas”. Árvore maldita?
Flores desgraçadas? Onde estávamos, em que mundo vivíamos? Estava
tudo ficando de ponta-cabeça?
Na mesma época, indo à cidadezinha de Santana do Parnaíba, interior
de São Paulo, vi o rio Tietê, um dos maiores do estado, totalmente coberto
por uma espuma densa, branca, malcheirosa, produzida pelos resíduos
poluentes e venenosos que as indústrias despejam nas águas. Águas mortas.
Nas ruas da cidade havia faixas colocadas pelos estudantes:
“Queremos saber, queremos saber
quando nosso rio vai parar de feder.”
Algo se passava no mundo e estava errado e comecei a perceber o que
era. Uma tarde senti minha mão coçar, coçar, coçar, tanto que imaginei que
eu poderia furá-la com as minhas unhas, e aí me veio o homem do furo na
mão, o personagem do romance. Um ser diferenciado no meio da multidão.
E os diferenciados incomodam. O aquecimento global, peixes morrendo,
espécies animais desaparecendo, automóveis transformados em sucata nas
avenidas congestionadas. Não verás país nenhum. Amazonas desertificado,
doenças estranhas matando os brasileiros. A roda do mundo girava ao
contrário. E a Covid-19, o que é? Pensar que o livro foi escrito em meados
da década de 1970. A violência, o totalitarismo, as cidades sitiadas,
políticos corruptos fechados em condomínios de luxo (estão todos aí),
sprays com cheiros que não existem mais, como o de ovos fritos, bosta de
vaca, terra molhada pela chuva, um pêssego cortado ao meio, uvas
esmagadas. O resto foi sentar e imaginar o que poderia vir de estranho,
maluco, instigante, fora do normal, esquisito, absurdo. Imaginar ao
contrário. Achei que ninguém leria. Publicado em novembro de 1981, Não
verás vende até hoje. Já vendeu mais de um milhão de exemplares. A vida
real copiou minha imaginação. O fantástico está entre nós, convivemos com
ele, é mais interessante. Absurdo. Está aí ao nosso lado. Como considerar
gripezinha uma pandemia mortífera que devasta o mundo inteiro.
Quanto a Desta terra nada vai sobrar, li uma notícia de que estava
sendo produzido um robô que faria tudo, tudo o que um homem faz. Robôs
não precisam de cérebro, agem. Na mesma hora nasceu a ideia do primeiro
presidente do Brasil sem cérebro, sem coração, e portanto sem compaixão.
Um homem para quem a morte é natural, todos morrem, todos vão morrer.
E isto foi antes das eleições de 2018. O que aconteceu? Está tudo aí, à nossa
volta, ao alcance dos olhos pelas janelas, como dizia Nelson Rodrigues.
Muitas, mas muitíssimas vezes, pensei no processo de criação de 1984,
assunto que me apaixona. De onde vieram os temas, ideias, motivos? O
quê? Por quê? Como? Nunca encontrei nada que me explicasse Orwell e
seu livro, de onde ele teria tirado todo aquele material. Leituras, imaginação
exacerbada, notícias de jornal, exageros? O que se percebe é que é um livro
estruturado de ponta a ponta. Tudo isso, mais a coragem. Não há vazios,
escorregões, incongruências. Caminhamos horrorizados durante anos e
anos, dizendo: que loucura viver num mundo assim! E, quando percebemos,
estamos dentro dele.
Foi aí que li a vida de Eric Arthur Blair, nascido em Motihari em 1903,
território colonial inglês na Índia. Infância complicada, divergências com o
pai arrogante e conservador, que tratava os filhos como resultados infelizes
de um casamento fracassado. Eric era uma criança chorona, irritante, mas
que lia Jonathan Swift e seu As viagens de Gulliver, Edgar Allan Poe.
Estudou em Eton, onde teve Aldous Huxley como professor. Como
imaginar que mais tarde Huxley escreveria Admirável mundo novo e o
aluno, 1984.
Passamos a habitar o mundo descrito neste livro, esteja onde estejamos.
Aí está a Semana do Ódio. A teletela que capta todo som produzido, mesmo
um sussurro muito discreto. E toda a parafernália atual de internet,
microfones, câmeras por toda a parte, hackers? A Polícia do Pensar. O
Miniver ou Ministério da Verdade. O Ministério do Amor. A Liga Juvenil
Antissexo (um estupendo prenúncio da futura existência de nossa
Damares?). A novilíngua.
E os slogans:
GUERRA É PAZ
IGNORÂNCIA É FORÇA
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
(Não saíram da cabeça dos criativos do Planalto?)
A Polícia do Pensar (os blogueiros a serviço do presidente e dos
partidos). Os sagrados princípios do Ingsoc, o duplipensar.
É ou não é a nossa realidade, os cuidados que precisamos ter com o que
falamos, escrevemos, tuitamos, emailamos? Orwell mostra que “Era
terrivelmente perigoso deixar seus pensamentos vagarem em um lugar
público ou ao alcance de uma teletela”.
Quanto ao prazer, ao sexo, ao erotismo, à sensualidade, à excitação, às
transas, tudo nos lembra o moralismo religioso de pastores, ministros,
igrejas que se multiplicaram em busca do dízimo e pregam a castidade, a
continência, o medo do pecado, a condenação pós-morte. Castração total.
Pois já se pensa até mesmo em “estupro culposo”, em que a vítima se torna
ré e o acusado, um santo inocente. Em 1984, a permissão para o ato sexual
“sempre era rejeitada se o casal em questão dava a impressão de sentir
atração um pelo outro”. Transar era permitido quando se tratava de um
“dever com o Partido”. Quando o personagem abraçava sua esposa, “era
como abraçar um boneco de madeira articulado”. Ela estava ali, “sem
resistir ou cooperar, mas submissa”. Não é o que os pastores pregam em
seus templos? Este romance é praticamente um guia, um manual de como
viver em um país em que Deus está acima de tudo, em que o sim é não, dois
e dois são cinco, se assim o presidente quiser, em que pandemias são
conversinhas, em que o fogo da Amazônia é a luz dos cigarros que os
caboclos fumam.
A mutabilidade do passado: a nossa nova História, a não ditadura de
1964, o não holocausto. A falsificação dos fatos históricos. Orwell percebeu
e nos disse, como se estivesse observando este nosso ano, este mês, este
minuto, agora olhando pela janela os dias que passam; “Tudo esmaecia até
chegar a um mundo de sombras no qual, enfim, até a data do ano se tornava
incerta”.
As fileiras de espiões. A vigia para execução das atividades físicas. (Ele
estava vendo o comunismo, o fascismo, o capitalismo, as novas ideologias,
o Olavo de Carvalho, o Bolsonaro, os partidos, os marqueteiros, ao nos
dizer: “É uma coisa bela, a destruição de palavras. Claro que o grande
desperdício está nos verbos e nos adjetivos, mas há centenas de
substantivos de que podemos nos livrar também. Não estou falando só de
sinônimos; também há os antônimos. Afinal, qual a justificativa para uma
palavra, se há outra que é apenas o oposto daquela? Uma palavra contém
seu oposto em si própria […] A cada ano, menos e menos palavras, e o
campo de consciência um pouquinho menor”.
“Toda a maneira de pensar será diferente. Na verdade, não haverá
pensamento, não da maneira como o compreendemos agora.”
E a expressão difundida pelo Ministério da Fartura: “vida nova e feliz”.
Termino com uma revelação que me espantou quando li e que prova que
George Orwell era um predestinado. No capítulo 5, o personagem principal,
Winston, encontra-se com Parsons, que o detém:
— […] Deixa eu contar por que estou atrás de você. Aquele pagamento que você
esqueceu de me dar.
— Qual? — perguntou Winston, automaticamente procurando dinheiro. Cerca de
um quarto do salário de cada um tinha que ser separado para contribuições voluntárias,
tão numerosas que era até difícil de acompanhar.
Uma das indagações mais recorrentes sobre 1984 gira em torno de como o
livro antecipou o futuro e, supostamente, situações do mundo
contemporâneo, principalmente no campo da tecnologia e da privacidade.
George Orwell é colocado no patamar de um Nostradamus das telas
inteligentes. No entanto, com o passar do tempo o conceito orwelliano teve
seu propósito distorcido: em vez de simbolizar uma crítica à manipulação
política da linguagem, passou a ser relacionado ao sofrimento distópico e à
ausência de subjetividade perante um governo autoritário.
Porém, na maioria das vezes, passa despercebido o fato de ainda
estarmos rendidos às mesmas normas e contradições sociais que deram
fruto a essa obra nos anos 1940. Ainda estamos presos a amarras de uma
lógica que propaga a desigualdade e o sofrimento. As aflições de Winston
Smith diante de um mundo opressor e desigual reverberam na atualidade,
pois foram poucas as transformações sistêmicas desde então.
Isso significa que, anacronismos à parte, as regras do jogo continuam as
mesmas. Oligopólios, exploração, desigualdade são o denominador comum
de um modo de vida em que a grande maioria das pessoas sobrevive em
condições precárias, alimentando uma cadeia que sustenta uma ilusão: a de
que esse sistema é imutável. Orwell foi capaz de entender as tessituras
profundas que amarram e mantêm em pé essa lógica, e seu olhar cirúrgico
dialoga profundamente com todos aqueles que ainda sentem na pele os ecos
da injustiça. O narrador de 1984 se direciona para uma manifestação
específica dessa desigualdade: o totalitarismo. É por meio do enredo
satírico do romance que se forma uma visão analítica precisa, afinal a
principal caraterística de uma obra distópica é o comentário sobre o cenário
social de sua época. Dessa forma, Orwell parece estar muito mais próximo
de célebres figuras que interpretaram o mundo do que de profetas que
vociferam o destino da humanidade aos quatro ventos.
Esse olhar analítico permite que 1984 continue, ao longo dos anos,
tomando novas dimensões, justamente pelo fato de ainda estar muito
próximo dos obstáculos que enfrentamos no tecido social. Quando nos
propomos a um mergulho profundo nas pistas que o narrador do romance
revela, abre-se diante de nossos olhos a trama de contradições exclusiva de
uma parcela específica da população: aqueles que precisam trabalhar em
troca de uma quantia de dinheiro. Em outras palavras, a teia de contradições
na qual Winston Smith se encontra é muito semelhante à de trabalhadores
dentro do sistema capitalista de produção.
Para entender como essa teia se constrói, precisamos compreender a
fundo o lugar que o protagonista ocupa dentro do mundo totalitário da
Oceania. Winston é funcionário do Ministério da Verdade, responsável por
manipular informações a mando do Partido do Grande Irmão, de forma que
o fruto de seu ofício são ideias. Assim, seu trabalho está muito distante da
rotina de um proletário, no maior estilo Charles Chaplin apertando porcas
no filme Tempos modernos. Winston opera com ideias e sua capacidade de
trabalhar o insere na camada mais intelectualizada da Oceania. Dentro da
divisão social de classes do romance, o lugar de nosso protagonista é de
determinado privilégio, pois ele não é explorado de maneira física, e sim
abstrata.
Tendo isso em mente, podemos dividir a estrutura social de 1984 em
quatro camadas, como em uma pirâmide: na base, estão os proletas, à
margem da sociedade e explorados de maneira braçal, abandonados e
esquecidos pelo sistema; um pouco acima ficam os funcionários do Partido,
que ocupam um lugar mediano, lidando com questões burocráticas e de
informação, entre os quais estão Winston e Julia; em um lugar mais elevado
ficam os membros do núcleo interno do Partido, responsáveis pela tomada
de decisões, tal como O’Brien; e, no topo, o próprio Grande Irmão, acima
de tudo e de todos, em contraposição ao seu inimigo Goldstein — ambos
figuras que se concretizam apenas no discurso, sem que ninguém saiba
afirmar ao certo se existem.
Ao examinar essa densa rede de relações, podemos perceber como o
romance representa sistemas de poder existentes na época em que foi
escrito, e, consequentemente, repercussões em nossa contemporaneidade. O
próprio título da obra já nos alerta para a proximidade da estória com a
História — 1984 é uma inversão da data 1948, ano em que Orwell escreveu
o romance, na longínqua e gélida ilha de Jura, na Escócia. Quando
percebemos como esse panorama opera no enredo, fica evidente a divisão
cunhada na iniquidade, em que as questões sociais se transformam em
problemas também dentro do enredo. Em Oceania não há paz, não há
liberdade, tal qual no pós-guerra europeu.
E, em meio a esse emaranhado, em uma rotina repetitiva e monótona,
Winston se encontra constantemente insatisfeito com o que vê. As ruas
empoeiradas, os apartamentos sob o constante monitoramento das teletelas
e os cartazes espalhados pela Londres onde o Grande Irmão observa tudo e
todos. Diante de um cotidiano enfadonho, nosso protagonista procura uma
saída. Para isso, começa a cometer pequenas infrações, em desobediência
ao sistema que o corrói. E suas escolhas disruptivas — como tudo dentro
dessa obra — são cirurgicamente simbólicas: a escrita do diário como
solução à vigilância constante, os objetos antigos adquiridos ilegalmente no
bairro dos proletas como um resgate do passado aniquilado, seu caso de
amor com Julia como uma tentativa de romper com o controle dos corpos e
da subjetividade.
Aos poucos Winston manifesta sua repulsa pelo mundo degradado ao
seu redor e, nas pequenas fugas, ele acredita construir uma rebeldia contra
essa lógica. Quem usufrui desses pequenos lapsos de desacordo e ruptura?
A escrita do diário funciona como um momento de catarse solitária, assim
como o envolvimento amoroso ou a compra dos objetos antigos, do
chocolate amargo. O protagonista trava uma batalha na qual é o único
combatente. Dessa forma, ele procura resolver na esfera privada toda a
penúria que toma conta do contexto social.
Winston é repleto de falhas e contradições, assim como a sociedade que
o cerca. Essas ambivalências surgem de maneira evidente quando
percebemos que ele será o único a usufruir dessas pequenas fugas do olhar
vigilante do Grande Irmão. Ele parece entender como o mundo funciona,
manifestando suas indagações no diário “Eu entendo COMO: não entendo o
PORQUÊ”. O protagonista observa diariamente que existe uma minoria
dentro do Partido que desfruta do esforço feito pela maioria, porém seu
descontentamento parece abarcar somente a si. Esse é um panorama de
insatisfações muito semelhante ao do sujeito contemporâneo que ocupa o
mesmo lugar social de Winston.
E aqui está a profunda contradição de nosso protagonista: ele deseja
romper com o sistema que o destrói, mas falha em desenvolver um nível de
consciência que o situe dentro das relações sociais mais profundas, sendo
uma presa fácil para as armadilhas ideológicas gestadas pela sociedade
totalitária. O protagonista cultiva um extenso propósito de transgressão, no
entanto é massacrado por artimanhas de controle do Grande Irmão,
justamente pelo fato de tentar destruir solitariamente algo que assola as
pessoas em um patamar mais amplo.
E por que afinal Winston escolhe um caminho solitário?
Em uma sociedade cujos alicerces estão pautados no egoísmo e na
ausência de liberdade, a rebeldia isolada parece ser o único caminho
possível. Escapa ao nosso protagonista, cujas privações são de todas as
ordens, levar em conta que uma outra possibilidade para soltar-se das
amarras do Grande Irmão estaria na primeira pessoa do plural, e não na do
singular.
Um lampejo de esperança dentro da Oceania, uma reinvindicação
politizada, é a Irmandade de Goldstein. Mas há um entrave nela: é tão
secreta que ninguém sabe se existe de fato. A única evidência que
sobreviveu à censura do Ministério da Verdade é um manual, que explica o
funcionamento das ideias que sustentam o regime totalitário do Partido.
Winston e Julia têm acesso a esse manual por meio de O’Brien que, no final
das contas, usou o livro de isca para atrair rebeldes como eles.
Esse texto não passava de um estratagema para capturar possíveis
insurgentes que se manifestassem contra a ordem. Ou seja, o verdadeiro
autor do manual não é o opositor Goldstein e a suposta Irmandade, mas sim
o próprio Partido — o olhar atento à linguagem percebe a simetria entre
Irmandade e Grande Irmão. Após ganhar a confiança de quem não suporta
mais viver sob domínio de um estado totalitário, O’Brien ludibria Winston e
Julia com falsas promessas, para só depois revelar que Goldstein nunca
existiu. O desfecho daqueles que ousam escapar dessas amarras reside nos
cômodos do Ministério do Amor, onde não há escuridão.
Ao suprimir literalmente qualquer possibilidade de reivindicação e
transformação sistêmica, o Partido deixa bem claro que todos aqueles que
buscam uma rota alternativa encontrarão um único destino: a tortura. O
controle das ideias na Oceania se manifesta de forma mais sedimentada
quando atinge o nível da linguagem, na novilíngua — o duplipensar, a
coexistência dos opostos que justamente distorce a realidade e cria a
sensação de que apenas o Partido pode ter controle de qualquer situação.
A linguagem no mundo do Grande Irmão tem um caráter de profunda
destruição, unindo palavras sinônimas e antônimas (como em “desescuro”
para se referir a “claro”, o contrário de “escuro”) e, finalmente, acaba por
impedir a expressão de qualquer opinião contrária à do regime do Partido.
Essa é uma entre tantas das artimanhas de manipulação utilizadas por esse
sistema totalitário. Tal procedimento funciona como uma metáfora
poderosa, de um Estado capaz de infiltrar-se em todas as esferas da
sociedade, disseminar mentiras e manipular informações no verdadeiro
conceito de “orwelliano”: a partir da distorção política da linguagem.
Frequentemente nos deparamos com situações orwellianas: o aumento das
fake news, as distorções de informações feitas por líderes totalitários.
Alterar fatos é uma maneira de se posicionar politicamente, que ocorre no
patamar da linguagem. Isso dialoga profundamente com a função social que
a linguagem opera dentro de 1984. Manipular a linguagem com um
propósito político apenas funciona pois a população (tanto da Oceania,
como dentro do capitalismo) se encontra desprovida de direitos elementares
— educação, saúde e moradia — e é incapaz de evitar esse controle.
A análise que leva em conta apenas o desfecho de nosso protagonista
parece soturna e ausente de um lampejo de esperança. Contudo, o narrador
orwelliano nos convida a olhar para além de Winston: ao observar o
apêndice, em um tempo posterior à fracassada jornada de nosso herói,
percebemos que existe algo após o sistema do Grande Irmão. O apêndice
revela que a obliteração do pensamento e da linguagem na novilíngua ainda
não se concretizou em sua plenitude. E essa concretização é posta em uma
segunda projeção temporal: a de que a obliteração da liberdade de ideias e a
condensação da linguagem só haveria de ocorrer de fato no longínquo —
agora nem tanto — ano de 2050.
Novamente estamos diante de um dilema: a paranoia acerca da profecia
orwelliana. Será que o narrador adivinhou a extensa vigilância que opera o
século XXI? É preciso lembrar que o abismo é muito mais profundo, de
forma que o uso das datas procede como mecanismo satírico, criado com
afinco pela voz narrativa para ironizar e criticar situações de seu momento
histórico de produção, os anos 1940. A projeção do apêndice para o ano de
2050 serve como um lembrete: esse tipo de manipulação das ideias é
sistêmico, faz parte da estrutura desse tipo sociedade controlar por meio da
linguagem, das ideias. Assim, o apêndice mostra que enquanto a sociedade
se organizar em torno de uma estrutura desigual e controladora, o papel
principal do discurso linguístico será o de reforçar essas normas. O sistema
do Grande Irmão se mantém em pé pois se segura com todas as forças na
novilíngua e no duplipensar.
Por outras palavras, um modo de viver totalitário pautado na
manipulação, traz em si o apagamento da liberdade e a supressão de
possibilidades de levantes coletivizados. Questionar as origens dessas
estruturas contraditórias é um dos passos que Winston se mostra incapaz de
tomar, pois escolhe romper somente com aquilo que o afeta. E esse
procedimento é recorrente no tecido social, conforme nos lembra o
professor Noam Chomsky: “Quando as pessoas ficam mais alienadas e
isoladas, começam a desenvolver atitudes altamente irracionais e muito
autodestrutivas”*.
Dessa forma, o mundo de Winston não está nem um pouco distante do
nosso. A potência de 1984 reside na capacidade de expandir o nosso olhar
para que sejamos capazes de refletir sobre o que existe à nossa volta. O
próprio Orwell já havia afirmado no ensaio “Por que escrevo”: “a boa prosa
é como uma vidraça”**. Pela janela límpida e transparente da escrita
orwelliana conseguimos compreender profundamente a rede de tensões da
vida em sociedade. O ponto de partida do narrador não é o de criar uma
obra de arte nos termos ortodoxos pautados por uma erudição esvaziada.
Sua prioridade é expor falácias ou trazer atenção para algum acontecimento.
A partir dessa preocupação, a linguagem dentro do romance se faz
enriquecida pelas nuances sociais, conjugando conteúdo e forma.
O esforço de observar as engrenagens do sistema sendo representadas
em personagens, descrições e argumentos retoma a relevância política de
um autor como George Orwell no combate ao poder dominante e às
instituições sancionadas. Seu olhar se concentra na crítica profunda das
contradições de uma parte média da sociedade, ocupada pelo nosso
protagonista. Ao revelar sua pequenez, o narrador orwelliano assinala o
papel fundamental da classe trabalhadora.
A voz narrativa escancara que a podridão do sistema não está em sua
base, os proletas, deteriorados pela marginalização e, sim em sua superfície:
no bolor dos salões elegantes, repletos de opulência, nos núcleos internos
do Partido. A saída não parece estar em meio ao tilintar de taças de
champanhe e acordos esvaziados. A esperança surge justamente em meio
aos lugares mais insólitos, nas beiradas mais abandonadas pela norma
sancionada, conforme Winston afirma no diário: “Se há esperança, está nos
proletas”.
* Tradução livre de: “When people grow more alienated and isolated, they begin to
develop highly irrational and very self-destructive attitudes”. CHOMSKY, Noam. How the
World Works: Interviewed by David Barsamian. Berkeley: Soft Skull Press, 2011, p. 131.
** ORWELL, George. “Por que escrevo”. In: Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
ETERNO 1984
por Eduardo Bueno
A79g
Orwell, George
1984 / George Orwell; ilustrações por Rafael Coutinho;
tradução de Antônio Xerxenesky. – Rio de Janeiro : Antofágica, 2021.
ISBN: 978-65-86490-16-9
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