O Ira Sob o Chador - Adriana Carranco
O Ira Sob o Chador - Adriana Carranco
O Ira Sob o Chador - Adriana Carranco
Sobre a obra:
Sobre nós:
Ótima leitura!
Os editores
Autoras
Adriana Carranca e
Marcia Camargos
O Irã sob o chador
Duas brasileiras no país dos aiatolás
Créditos
Copyright © 2010 by Editora Globo S.A. para a presente edição
Copyright © 2010 by Adriana Carranca Corrêa e
Marcia Mascarenhas de Rezende Camargos
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou
reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia,
gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a
expressa autorização da editora.
Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995).
Preparação: Ronald Polito
Revisão: Clim Editorial / Adriana Bernardino Sharada
Projeto gráfico, paginação e capa: ZB Editorial
Diagramação para ebook: Xeriph
Tratamento de imagens: Paula Korosue
Ilustrações: José Carlos Chicuta
Imagem da capa: Adriana Carranca
Fotos de orelha: Marjaneh Aryanasab e Gilson Packer
Imagens de miolo: Adriana Carranca e Marcia Camargos – Foto da
página 07: © Marc Deville/Corbis/Latinstock
1ª edição, 2010
1ª reimpressão
eISBN 978-85-250-5094-6
Dizem que existe a vida antes e depois de conhecer o Irã. Colocada assim, a frase
pode soar exagerada. Mas não é. Quem esteve lá sabe que se trata da mais cristalina
verdade. Porque o Irã fascina e muda a perspectiva do visitante. Seja conservador,
liberal, socialista, feminista, agnóstico, crente ou cético, será marcado de maneira única e
indelével.
Quando milhares de manifestantes lotaram as ruas de Teerã e outras cidades em
protesto contra a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad no pleito presidencial de junho
de 2009, o mundo arregalou os olhos diante da coragem dos iranianos, que insistiam em
ter suas vozes ouvidas, embora fossem brutalmente reprimidos. Aqueles com um
conhecimento mais aprofundado sobre a história do Irã, no entanto, não poderiam
esperar outra reação dos bravos persas, um povo de altiva e prestigiosa linhagem
milenar, que soube preservar como nenhum outro a própria identidade ao longo de
seus 2.500 anos de história.
Incontáveis invasores tentaram dominá-los à força, mas foram expulsos ou se
adaptaram à cultura local — e não o contrário. Quem pisou nessas terras sabe que no
cerne da questão nuclear encontra-se, justamente, o forte legado persa. Algo com que o
regime sabia poder contar, quando preciso fosse, como instrumento de união nacional.
Os aiatolás tinham consciência de que diante da ameaça de um inimigo externo, eles se
uniriam em uma só grande massa.
Além da necessidade de coesão interna cada vez maior, e embora o conflito entre
o Irã e as potências ocidentais sempre fosse latente, as ameaças externas tornaram-se mais
concretas após o 11 de Setembro com a invasão do Afeganistão, em 2001, e do Iraque,
em 2003, ambos vizinhos do Irã, que se viu, portanto, cercado por tropas estrangeiras. O
argumento utilizado pelo então presidente americano George W. Bush e o primeiro-
ministro britânico Tony Blair para invadir o Iraque fora o desenvolvimento pelo
ditador Saddam Hussein de armas químicas letais. Argumento este mais tarde
desmascarado como mentiroso, o que intensificaria as suspeitas do regime iraniano de
que o real interesse das potências ocidentais na região era o petróleo.
Nessa linha de raciocínio, o Irã seria o próximo alvo, acreditavam. Daí a crise
nuclear impetrada pelo regime e protagonizada por Ahmadinejad. Na lógica do
nacionalismo iraniano, a interferência da comunidade internacional sobre o programa
atômico representava um golpe à soberania do país. Por trás disso, haveria uma tentativa
de impedir o desenvolvimento econômico e minimizar o poder político do Irã na
região.
Violações de direitos humanos e os problemas políticos e econômicos que o Irã
enfrenta são largamente denunciados e combatidos pelos próprios iranianos, não raro
com trágicas consequências. Mas, entre eles ainda impera, sobretudo, a herança do
orgulho persa. Se o povo foi às ruas pela Revolução Islâmica, que em 1979 derrubou o
xá Reza Pahlevi para colocar no poder o imã Ruhollah Khomeini, terá de encontrar o
caminho por mudanças.
Não faltam notícias sobre o Irã na mídia internacional, em maior escala desde 1979.
Está nas manchetes dos jornais e nas capas de revistas. Mas, para nós, e a maioria dos
brasileiros, continuava a ser um lugar distante e de difícil compreensão. Diante das
informações, muitas vezes contraditórias, que chegavam de lá e dos testemunhos dos
imigrantes, refugiados e descendentes iranianos vivendo no Brasil, uma singela
pergunta nos perturbava: afinal de contas, que país é esse?
As tentativas de resposta virão ao longo destas páginas. Porque o Irã permanecerá
um enigma. Um lugar onde Ocidente e Oriente se encontram, berço de impérios,
passagem de povos, cruzamento de culturas. Uma nação mutante, com história repleta de
vicissitudes, mas sempre atenta à preservação de sua riqueza cultural. Um país com
cenário de palácios preservados e recobertos de espelhos minúsculos, que multiplicam a
dimensão das salas, pomares e jardins verdejantes em meio à paisagem árida e bazares
que nos levam à dimensão onírica das Mil e uma noites... Sem mencionar as cúpulas em
azul e dourado das mesquitas com suas torres despontando no horizonte a nortear o
peregrino, os pátios internos no lusco-fusco do entardecer, as paredes de adobe
exalando o calor do sol poente como uma praça medieval da Toscana. E, ao mesmo
tempo, uma sociedade dinâmica de trinta milhões de pessoas, com questões tão atuais
quanto o trânsito e a poluição comuns às grandes metrópoles e presentes também na
capital Teerã, a versão moderna de Pasárgada e Persépolis, fincadas no deserto
meridional do Irã há quase três mil anos.
Nem precisa do efeito do álcool, proibidíssimo ali, para se embriagar de emoções
contraditórias. Porque no Irã elas se farão presentes no cotidiano de sinais invertidos.
Apesar da simpatia do povo, da naturalidade simples de acolher o estrangeiro a ponto
de fazê-lo sentir-se em casa, as notas dissonantes soam como alarmes estridentes,
alertando-nos contra o Estado autoritário e impositivo como um Big Brother de
George Orwell. Não dá para fingir que são normais alguns ônibus com espaços
separados para homens e mulheres, praias segregadas, a proibição de música alta e
ocidental ao ar livre, a polícia de costumes vigilante contra deslizes de comportamento
e as interdições às liberdades individuais.
Na fase que precedeu nossas respectivas viagens ao Irã, nos perguntavam se
tínhamos coragem de enfrentar uma região inóspita semeada de homens-bomba, minas
terrestres e outros absurdos beirando o ridículo — o Irã não tem homens-bomba e não
está em guerra. Sim, milhares de civis iranianos foram vítimas de minas terrestres
plantadas durante a guerra com o Iraque, entre 1980 e 1988, segundo a organização
Human Rights Watch. Porém, no momento de nossas visitas ao país, os artefatos se
concentravam principalmente nas fronteiras com o Afeganistão, onde os conflitos entre
o Taliban e as forças de coalizão lideradas pelos Estados Unidos prosseguiam.
Em face desses conflitos, as leituras negativistas e estereotipadas do universo
islâmico forjadas no imaginário ocidental se estendiam ao Irã e ecoaram nos nossos
ouvidos por semanas a fio. A desconfiança crescia na medida em que o noticiário
misturava raízes e estilos de vida daquela parte do planeta, como se o Oriente formasse
um só bloco uniforme. As diferenças entre Irã, Iraque, Afeganistão, Palestina, por
exemplo, fundiam-se em uma incomensurável zona cinzenta de desinformação e
preconceito.
A ideia do perigo iminente estava arraigada de modo tão inexorável que
nenhuma empresa aceitou fazer nosso seguro de viagem. Para nós, porém, a questão era
clara. Não nos sentíamos como cavaleiros das Cruzadas investindo contra muçulmanos
incultos e sanguinários. Já desconfiávamos que, ali, os bárbaros seríamos nós.
Assim, em meio aos preparativos, explicávamos que no Irã se falava farsi e não
árabe, que os números utilizados são diferentes dos algarismos arábicos e que naquele
país a população abraça a linha xiita do islamismo. As mulheres não vestem burca, típica
do vizinho Afeganistão, e tampouco o niqab, que esconde o rosto e é visto nas nações
árabes mais conservadoras como a Arábia Saudita.
Em um país onde política e religião se misturam como no Irã contemporâneo, a
veste islâmica se tornou, sobretudo, um símbolo de identidade e posição política. Jovens
partidárias dos ideais reformistas e mais abertas a mudanças usam o hijab, um lenço
comum que cobre apenas parte dos cabelos. Já as simpatizantes do regime islâmico e
socialmente conservadoras cobrem- -se da cabeça aos pés, exceto pelo rosto, com o
chador, um manto muito parecido com aquele usado por freiras católicas. A veste só é
obrigatória nas mesquitas e em outros locais sagrados. Mesmo nas repartições públicas, as
funcionárias do governo podem usar apenas o hijab, desde que seja preto.
Pouca valia tiveram nossos esforços de esclarecimento. Até porque, àquela altura,
tudo se mostrava ainda confuso também para nós em relação ao Irã. A sensação de que
estávamos diante de um enigma a ser desvendado fez com que registrássemos o que
vimos, ouvimos e experimentamos durante nossas viagens, feitas em momentos
diferentes, mas que voltariam a se cruzar na descoberta comum de uma emocionante
lição de vida.
Essa não é, porém, uma obra definitiva sobre o Irã. Trata-se, sim, de um retrato
filtrado pela lente de valores éticos e morais que formam nosso caráter, ainda que
tenhamos tentado respeitar a imparcialidade exigida no exercício da narrativa
documental. Tampouco é ficção, mas fragmentos de uma realidade vivenciada por nós
apenas. O nosso Irã será diferente do seu, leitor, se um dia decidir visitar o país. Os
conteúdos desse livro escrito em primeira pessoa são baseados em nossa experiência
pessoal nos lugares que visitamos. Gostaríamos de deixar isso claro, antes de convidá-lo a
nos acompanhar nessa experiência que revivemos agora através de seus olhos.
Esperamos que aprecie a jornada!
Adriana Carranca e Marcia Camargos
Citação
Não pertenço a nenhum credo ou religião,
Não sou oriental nem ocidental,
Muçulmano nem infiel,
Zoroastriano, cristão, judeu ou gentio.
Jalaluddin Rumi (1207-1273)
Parte 1 - A caminho de Pasárgada
Parte 1
A caminho de Pasárgada
Teerã sofre dos males típicos das metrópoles que crescem sem planejamento urbano.
Barulhenta, poluída, tem alta densidade populacional e congestionamentos permanentes.
Para compensar, é cercada pela cordilheira do Alborz, que funciona como uma moldura
natural, amenizando seu aspecto caótico. Shiraz, capital da província de Fars e berço dos
poetas Hafez e Saadi, aparece como um oásis no horizonte desértico. Esfahan, a cidade
tida como a “metade do mundo”, ou “Esfahan nesfeh jahan”, segundo legenda da
dinastia safávida, mas ainda perfeitamente aplicável nos dias de hoje graças às suas pontes
sobre o rio Zâyandeh, que se estendem por quase 150 metros desdobrando- -se em
dezenas de arcos e pequenos pavilhões iluminados à noite. No meio do caminho, entre
elas, tem muitas pedras. Milenares. Arcaicas. Numerosas como as miríades de espelhos e
dos mosaicos que recobrem as cúpulas de suas mesquitas. Elas formam os pilares de mais
de vinte metros de altura que em épocas remotas sustentavam o teto das cidades
sagradas de Persépolis e Pasárgada, onde o poeta Manuel Bandeira tornou-se amigo do
rei. Estão nas muralhas e torres do silêncio zoroastras próximas às tumbas dos soberanos
aquemênidas Ciro, Dario e Xerxes, escavadas no alto da rocha bruta, em Naghsh-e
Rostam.
Tudo isso faz parte da primeira seção deste livro, que traz uma série de
informações sobre a história desse país tido como o berço da civilização. As páginas vêm
temperadas com informações históricas e factuais, experiências vividas e impressões
sobre os descendentes dos antigos persas colhidas em uma visita ao Irã em fins de 2008.
2. Contradições
Menos de meia hora. Isto foi o quanto Inka, uma documentarista australiana, conseguiu
suportar antes de adquirir uma veste vermelha, que usaria ao longo de todo o festival.
Desavisada, ela saiu às ruas com um blusão largo e comprido sobre a calça jeans,
achando-se adequadamente vestida. Doce ilusão. Os homens não a deixavam em paz, e
as mulheres soltavam risinhos maldosos, apontando para ela como se fosse um et. Ao cabo
de 27 minutos, pediu a alguém a indicação de uma loja da qual saiu com uma espécie de
paletó de algodão fino que, como num passe de mágica, tornou-a quase invisível aos
olhos críticos da multidão.
Comigo aconteceu algo parecido, mas por razões diversas. Como sufocava de calor
dentro da capa de chuva tipo Burberry, com a ajuda de uma das monitoras fui às
compras. O aspecto retrô das vitrines, com manequins semelhantes a bonecos de cera
em roupas monótonas, lembrava uma cidadezinha do interior da infância. Nas
prateleiras ou pendurados em “araras”, os vestidos descendo abaixo dos joelhos
multiplicavam-se na estreita zona de criatividade exercível neste controlado mundinho
da moda. Escolho um azul-turquesa de malha fresca, pago o equivalente a doze dólares
e saio de lá paramentada e pronta para enfrentar as altas temperaturas que em fins de
outubro já deveriam ter caído. Até um país distante da agenda globalizada não escapa do
aquecimento que vem alterando climas e humores ao redor do planeta. Tampouco
consigo reprimir a surpresa quando vejo a etiqueta da rede Zara na minha roupa nova.
Descubro que, assim como tantos outros donos de grifes, os espanhóis produzem
mercadorias voltadas para os gostos e necessidades deste povo. Da mesma forma, a Coca-
Cola é bem menos doce do que a fabricada no Brasil, já que no Irã as sobremesas não
passam de gelatinas sem sabor e com pouquíssimo açúcar.
Acreditava, no começo, que encontraria resistência ou oposição pacífica ao uso
compulsório do véu. Afinal de contas, as denúncias sobre a opressão feminina ecoam
desde que Shirin Ebadi, ativista dos direitos da mulher, ganhou o Prêmio Nobel da Paz
em 2003. Mas ninguém ousa descobrir os cabelos em público e logo se apressam para
chamar sua atenção quando o lenço escorrega além do permitido, uma tênue linha
indefinida, que depende do lugar, da hora e das pessoas envolvidas. Confesso que não
foi fácil me acostumar ao adereço, principalmente naquele calor desértico. Troquei o
xale de lã por uma echarpe leve, mas só consegui relaxar quando aderi ao costume
local e comprei no bazar um véu fechado, que se enfia na cabeça, deixando apenas o
rosto à mostra. De tecido bem fino, não escorrega a cada virada repentina. Também
coloquei um chador preto que desce aos pés para fazer fotos em meio às ruínas de
Persépolis. Em Roma, faça como os romanos, diz o ditado popular.
Tudo muito pitoresco, não fosse o descontentamento da parcela de mulheres que
não concorda com seu uso, mas não ousa desafiar a lei para evitar interrogatórios e
exaustivos sermões. Em geral, quando detidas por equipes da polícia devido às roupas
“inapropriadas”, acabam soltas depois que um homem da família vai à delegacia e se
compromete em fazê-las usar o vestuário exigido.
Prova disso é que, na espécie de cantina armada para o almoço dos convidados para
o festival de cinema, e onde predominavam estrangeiros, de repente retirei o adereço
para rearranjar os cabelos sem pressa. Era como se eu estivesse protagonizando um
striptease em cima da mesa do bar. “Você nunca deve fazer isso!”, alertou Bani, uma das
monitoras, no mais puro estado de choque. O mesmo pânico tomaria conta de algumas
mulheres quando, dali a alguns dias, entramos numa cidade vizinha. Como havíamos
alugado uma van com motorista, fizemos o percurso sem o hijab. Mas, ao entrarmos na
área urbana, de trânsito lento e semáforos que nos obrigavam a parar no vermelho,
sentimos que as ocupantes dos outros veículos nos olhavam horrorizadas através das
janelas. Após muitas buzinas, mímicas e caretas, percebemos que nos alertavam sobre o
perigo de termos esquecido os lenços, resignadamente recolocados para evitar o risco
de sermos interpeladas por algum policial. Nota-se aí um curioso processo dialético, pois
foi na Revolução Islâmica que se multiplicaram os cursos universitários. Ou seja, se em
trinta anos a população dobrou, os cursos superiores subiram numa proporção
incalculável. Assim, é justamente a parcela que teve acesso ao ensino universitário, à
internet e a outros recursos tecnológicos proporcionados pela modernização que viria,
ao longo do tempo, questionar o regime teocrático, cerceador das liberdades
individuais.
O clima de medo ficou evidente em outras ocasiões. Primeiro, na recepção na
embaixada da Polônia, em que nos foi possível retirar o véu e examinar, com
curiosidade, o comprimento e as cores dos cabelos umas das outras. O que seria um
momento de descontração e alívio quase terminou em confusão. Ao sermos informadas
de que as monitoras seriam obrigadas a mantê-los, ensaiamos um ato de protesto,
sugerindo a todas as estrangeiras que recolocassem os lenços na cabeça em solidariedade
às meninas. “Por favor, não façam isso, vão nos criar sérios problemas”, pediram, em tom
de súplica, empalidecidas ao saberem do nosso intento. E assim morreu a incipiente
rebeldia, ceifada no nascedouro, embora o mal-estar tenha permanecido pelo restante
da jornada.
O limite rarefeito entre o que é ou não permitido trouxe algumas consequências
desagradáveis. Uma cineasta franco-marroquina foi parada pela polícia de costumes, que
zela pelo bom comportamento nas ruas. Os homens não acreditavam que se tratava de
uma estrangeira devido ao semblante moreno. E como estava sem o passaporte, que
ficara no hotel, gastou quase uma hora para convencê-los sobre sua nacionalidade. Não
havia nada de reprovável nas suas roupas de matrona e no jeito de andar, ao contrário
de algumas meninas exageradamente maquiadas às oito horas da manhã. Estas não
parecem ser incomodadas, revelando-se aí as fissuras de um regime autoritário que
outorga decisões e comando a quem detém um micropoder. As medidas arbitrárias
decorrem da falta de cidadania e da noção de que não há direitos automaticamente
garantidos como em um regime laico. Em mais de uma ocasião deparei com a violência
explícita que amedronta mulheres e apavora os jovens. Quando pegos dentro de um
carro sozinhos, por exemplo, os namorados passam por humilhações e podem parar na
delegacia. Mãos dadas, só com certidão de casamento no bolso. Outra imagem que não
me saiu da memória ocorreu perto do Grande Bazar de Teerã, que vende um pouco
de tudo, de tapetes a eletrodomésticos, de especiarias a roupas de cama e banho.
Saía de um almoço no complexo de palácios do Golestân, erigidos na época qâdjâr
e decorados pelo xá Reza nos moldes dos similares europeus que o encantavam,
quando vi uma fileira de rapazes amarrados com uma corda uns aos outros pelos
tornozelos. Conduzidos por policiais uniformizados, olhavam à volta com o ar
delinquente de quem não tem mais nada a perder. Naquela mesma noite li, num site na
internet, que o Irã acabara de assinar um acordo internacional comprometendo-se a não
executar menores de dezoito anos. Mas, segundo informações da Anistia Internacional,
desde 1990 o Irã executou 42, sendo oito deles em 2008 e um em 21 de janeiro de
2009. Note-se que a maioridade legal é de nove anos para as meninas e de quinze para
os meninos.
Apesar das perseguições e da falta de liberdades sob o regime teocrático há trinta
anos no poder, é no Irã que se encontra o Cilindro de Ciro, anterior à Magna Carta
em mais de um milênio. O bravo conquistador deixou como legado um decreto
registrado num cilindro de barro, autorizando os povos exilados a retornarem às suas
terras de origem assim que tomou a Babilônia, uma conquista tida como “rápida e sem
batalha”. O “documento” defende a liberdade religiosa e étnica, o fim da escravidão e
de qualquer forma de opressão. O original integra o acervo do British Museum, de
Londres, e há uma réplica na sede das Nações Unidas, em Nova York, para enfatizar a
importância do que é considerado o primeiro tratado de direitos humanos da história,
revelando a tolerância religiosa pregada por Ciro, que declarava em seu reinado:
O Senhor, Deus dos céus, me deu todos os reinos da Terra e me encarregou
de lhe edificar uma casa em Jerusalém de Judá. Quem dentre vós é, de todo
o seu povo, seja seu Deus com ele, e suba a Jerusalém de Judá e edifique a
Casa do Senhor, Deus de Israel; ele é o Deus que habita em Jerusalém.
Todo aquele que restar em alguns lugares em que habita, os homens desse
lugar o ajudarão com prata, ouro, bens e gado, afora as dádivas voluntárias
para a Casa de Deus, a qual está em Jerusalém.
As contradições ficam visíveis a cada minuto. Nos ônibus, as mulheres ocupam os
assentos de trás, e os homens, os da frente; mas nos táxis coletivos, em que se divide a
viagem com outras pessoas de destinos semelhantes, todos e todas se espremem na maior
promiscuidade durante o trajeto. Há alguns anos circulam táxis conduzidos por
motoristas do sexo feminino e exclusivos para mulheres. E como não há taxímetro, o
preço deve ser discutido antes, mas em geral as viagens são baratas, e as corridas custam,
em média, não mais do que seis dólares por uma distância média.
Agora, muita atenção ao atravessar a rua para evitar acidente. As motocicletas, com
seus condutores sem capacete, traçam zigue-zagues estonteantes. Não procure correr
delas, dançando para lá e para cá no meio da pista. Em vez disso, finque o pé, olhe reto
para o outro lado da calçada e cruze a avenida. Elas irão desviar e, com sorte, não
atropelam ninguém. Ao mesmo tempo os automóveis, que quase nunca buzinam, tudo
podem. Não existem regras claras nem respeito ao sinal vermelho, amarelo ou verde,
cuja função não consegui compreender até o final da minha estada. As conversões no
meio da autopista, ultrapassagens pela direita, paradas no meio da estrada e outros abusos
indescritíveis tornam São Paulo um modelo suíço de bom comportamento ao volante.
Sabe aquela lei da física que afirma que dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao
mesmo tempo? Pois ela foi abolida no Irã, onde todos os carros avançam em
movimentos sincronizados na mesma direção. Experimentei fortes emoções ao trafegar
pelas vias carregadas e poluídas, com poucos guardas multando os veículos sem air bag e
com o cinto de segurança não raro cortado fora por falta de uso.
Capitalismo de monopólio
Fundada em 1962 pelos membros da família Khayami, e originalmente
denominada Irã Nacional, a Iran Khodro é a maior empresa automobilística
do Oriente Médio. Dos seus títulos de propriedade, 40% pertencem ao
governo; com a Sapia, configura um monopólio sobre o setor, com 55% e
35% do mercado, respectivamente. Com a abertura às importações, a Khodro
firmou acordos de parceria com diversas sociedades estrangeiras interessadas
na expansão do mercado iraniano, responsável pela venda de 700 mil carros
em 2004, 1,1 milhão em 2006 e 1,5 milhão em 2008, mais do que a Itália,
por exemplo. Além de exportar para a Argélia, Egito, Arábia Saudita,
Turquia, Armênia, Bulgária e Rússia, a empresa aproveitou a onda do
surgimento de bancos privados neste início de milênio para fundar seu
próprio estabelecimento financeiro. É dona de nada menos do que 30% do
Parsian, o banco privado mais importante do Irã, de acordo com Ramine
Mohamed-Nejad, em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil em
junho de 2009.
Para escapar do caos, a parcela endinheirada refugia-se aos pés do Alborz, visível
com seus picos nevados em alguns pontos da metrópole. Lá de cima, pode-se ter uma
vista da cidade abaixo. Ela carece de charme, de certa forma lembrando La Paz, na
Bolívia, pelos tons monocromáticos da cordilheira ressequida e sem vegetação. Os
prédios residenciais da burguesia emergente são erguidos num estilo neoclássico pesado
e quase dramático, com enfeites e uma profusão de materiais que os tornam ainda mais
deslocados e fora de contexto do que os similares brasileiros.
Por outro lado, favelas não existem: os pobres moram precária, mas decentemente
em prédios e casas humildes. Tampouco há crianças ou velhos mendigando pelas ruas e,
muito menos, guardadores de carros. Trabalho e firmeza de caráter fazem parte do
cardápio de uma sociedade religiosa e policialesca. Tive mais de um exemplo da
honestidade a qualquer custo. Esquecida no museu, a máquina fotográfica é devolvida
no dia seguinte no hotel, com aquele gesto característico e tão gentil de palmas das mãos
voltadas para cima no ato de entregar algum objeto. A bolsa a tiracolo recheada de
papel-moeda não corre o risco de ser roubada, numa gostosa e inusitada sensação de
bem-estar e segurança bastante raros nos dias atuais.
Como a gasolina é relativamente barata, o número de veículos cresce sem parar.
As estradas parecem um tapete, mas não se anime: os ônibus param a cada hora para os
passageiros fumarem, irem ao banheiro ou fazerem compras. Ninguém tem pressa em
chegar a lugar algum. Por isso, uma viagem de Esfahân a Shiraz, sem uma única curva,
levaria cinco horas, mas dura nada menos do que oito. É preciso ter esse dado em
mente antes de embarcar. Se puder, opte pelos aviões. Por uma dessas lógicas
ininteligíveis ao capitalismo, uma passagem de ônibus de qualquer ponto para outra
cidade sai por cinco dólares. Via aérea custa quarenta, seja para onde for. E não se deve
confiar nas agências de viagem, que jamais conseguem uma reserva com menos de
quinze dias de antecedência. É recomendável ir direto ao aeroporto e comprar no
balcão, sempre tem uma poltrona ociosa nos aviões. Mas não é aconselhável abusar da
sorte no caso de uma conexão: alguns voos podem atrasar mais de quatro horas sem
nenhum motivo aparente.
No hotel, o café da manhã não varia, seja qual for o número de estrelas. Nada de
frutas como papaia e melão — só uva, banana e maçã. Lá estarão ovos com salsicha de
frango, bolos, iogurte, queijo artesanal e presunto. Café expresso, nem pensar. Servem
chá preto e nescafé. Adoçante, pão francês ou preto são inexistentes. O pão é do tipo
sírio, mais leve e maior, feito nas padarias espalhadas pelos bairros, e nas quais se pode
ver o processo da feitura desses nune sangak. De avental branco e mãos ligeiramente
trêmulas devido ao calor constante que enfrentam todos os dias, os padeiros pressionam
a massa antes de colocá-la direto sobre pequenas pedras incandescentes no forno de
tijolos. Com isso, provocam minúsculas bolhas, tornando ainda mais crocantes os pães,
retirados após alguns minutos com uma pá de madeira.
Engraçada é a música do elevador, que dispara no instante em que se aperta o
botão do andar. O modo sexy como a gravação pronuncia a palavra “lobby” ficará para
sempre guardado na memória de quem passou pela terra dos aiatolás — como são
conhecidos, sob as leis do islã xiita, os mais altos dignatários na hierarquia religiosa.
A sensação de volta ao passado permanece. Os carros são velhos, o layout geral é
antiquado e o gosto, duvidoso para nossos padrões ocidentais de consumo
continuamente exacerbado pela criatividade dos publicitários. O Irã é mesmo outra
civilização. Pelas paredes externas dos edifícios, outdoors que dariam arrepios a uma
agência de fundo de quintal anunciam bancos, filmes e empreendimentos imobiliários.
Efígies dos soldados que tombaram na guerra Irã-Iraque, que durou dez anos, a partir
de 1982, homenageiam os mártires imolados no conflito. Grafites contra o imperialismo
norte-americano e europeu, palavras de ordem conclamando os cidadãos a lutar contra
a nefasta águia de garras afiadas, símbolo dos Estados Unidos e da suposta decadência
“ocidental”, somam-se a outros clichês deliciosamente saudosos, que também remetem à
Cuba de Fidel Castro.
As fotos dos aiatolás Khomeini e Khamenei marcam presença em toda loja, cinema,
hotel, sala de museu ou teatro. Os suportes variam, mas suas figuras presidem sobre a
população que escuta um trecho do hino nacional e algumas suras do Alcorão em forma
de cânticos, obrigatoriamente, antes de qualquer cerimônia oficial. E os discursos
começam sempre com os dizeres: “Be name Khoda”, em nome de Deus...
3. Apesar da censura...
Os refrões da canção de Wilson Simonal vêm à mente de quem passeia pelas cidades
iranianas. Inacreditável como os habitantes locais, em geral jovens que falam um inglês
pouco fluente, abordam os turistas com a maior naturalidade. Não querem levar
ninguém para comprar na lojinha nem estão atrás de dinheiro. Sedentos de
comunicação buscam apenas um contato mais estreito com o exterior. Querem saber das
novidades do “lado de cá” e falam com vaidade sobre as belezas da sua terra. Nos
centros urbanos, reclamam das rígidas imposições religiosas, porém, admiram a política
externa do presidente. Levando a célebre hospitalidade iraniana às últimas
consequências, colocam você num carro minúsculo e lhe mostram os lugares turísticos
com uma delicadeza de fazer inveja aos atribulados habitantes das megalópoles.
Convidam para conhecer a casa deles, oferecem chá preto e guloseimas típicas. O
orgulho da pátria está estampado nos seus rostos, embora lamentem jamais conseguir
economizar o suficiente para viajar a um lugar tão distante como o Brasil. Um bancário
ganha cerca de quatrocentos dólares ao mês, e com isso vive nesse recanto onde o custo
de vida é muito menor do que na maioria dos países ocidentais. Assim mesmo, é bom
pechinchar na hora de fechar um negócio.
As boas maneiras e a disponibilidade do iraniano não param de surpreender. O
dono que foi chamado às pressas para abrir as portas da loja no bazar — e da qual acabo
não comprando nada — ainda se oferece para me levar de volta ao hotel no seu carro.
Ele me dá um cartão e sai feliz da vida simplesmente por ter feito aquela gentileza. Ao
caminharmos pela calçada, as famílias reunidas em piquenique no gramado nos
convidam para sentar e repartir os comes e bebes. Também pedem para tirar fotos
conosco com seus celulares. Não raro me sinto como um animal exótico, mas o carinho
deles me deixa totalmente à vontade. Fico então pensando se, em Londres, algum
cidadão britânico iria pará-lo no meio da rua para trocar ideias ou perguntar sobre suas
impressões, e lamento o quanto nós perdemos em termos de contato humano com
nossos semelhantes. Então me vem à mente um velho ditado popular, que diz: “O
Ocidente tem o relógio, o Oriente tem o tempo”...
No bazar de Teerã, tivemos outro exemplo de como os iranianos não são desta
galáxia — ou ocupam um nível superior ao nosso, pelo menos em termos de transações
comerciais: em uma das lojas do bazar, Luciano, cineasta italiano, apaixonou-se por um
tapete de quinze mil dólares. Não voava nem tinha outros dons mágicos, mas, pela
qualidade das cores e números de nós por milímetro quadrado, valia o preço. Só que
ninguém carrega essa quantia na bolsa. E como não são aceitos cartões de crédito, a coisa
caminhava para um impasse. Diante do sincero interesse do cliente, o vendedor não
pestanejou: “O senhor leva o tapete agora e faz um depósito na minha conta-corrente
quando estiver de volta em casa”.
Negócio fechado com este simples acordo de cavalheiros, Luciano saiu dali feliz da
vida, com a mercadoria nas mãos e um sorriso incrédulo nos lábios...
Com esse cineasta ocorreu ainda outro episódio digno de nota. Ao final da
solenidade de entrega dos prêmios do festival de cinema para o qual fôramos
convidados, eu dei a Luciano meu livro A travessia do albatroz, já que ele conseguia ler
em português. Ao sairmos da luxuosa sala do teatro, onde ocorrera a cerimônia de
encerramento, esperávamos um lauto jantar de despedida. Ao invés disso, deram-nos
uma sacola de papel contendo um refrigerante e um sanduíche. Ele então colocou
dentro da sacola o exemplar recebido. Quando deixávamos o local rumo a uma
confraternização patrocinada por um diretor iraniano, constrangido com aquela espécie
de gafe dos organizadores, meio distraído e levemente indignado com aquele
tratamento inglório, ele deu a sacola para um garoto pobre que passava pelas
imediações. Mais tarde, bateu a mão na testa, lembrando-se que lá se fora o albatroz
pelos ares. Rimos muito da situação, imaginando a cara de espanto do menino ao abrir
aquele livro repleto de imagens familiares, mostrando paisagens e gentes da sua própria
terra, mas escrito numa língua absolutamente incompreensível...
De resto, para onde quer que olhemos, tem sempre um semblante amigo à nossa
espera. Nem nos locais sagrados eles se ofendem com o intruso. Aproveitando minha
aparência levantina, entro na mesquita no momento em que o muezim chama para a
oração do meio-dia. Tento ajeitar o chador branco, pendurado em um varal na parte
reservada às mulheres, mas quase tropeço nos panos e acabo enrolando o corpo inteiro.
Ajoelho e logo aprendo a coreografia da reza, tocando o chão com a cabeça, conforme
as ordens que partem do alto-falante. Lá pelas tantas, uma senhora cutuca meu braço.
Tremo ligeiramente, acreditando que seria repreendida por conspurcar um recinto
sagrado com aquela alma de agnóstica convicta. Para minha surpresa, ela não se
incomoda com a presença de uma estranha. Pelo contrário, retira minha veste e me
ensina como usá-la corretamente. Ajeita meus cabelos dentro do chador e, ao final, ainda
me dá um beijo no rosto. A custo retenho as lágrimas e agradeço a Alá por um
momento tão especial. Como esse povo pode ser hostil ou inimigo?
Não foi a única vez que experimentei o sentimento de pertencer a um lugar que,
em princípio, não me dizia respeito. Na mesquita azul, em Shiraz, tive as roupas ajeitadas
na porta, enquanto um amigo se preparava para fazer uma foto. Com paciência e
delicadeza, a boa mulher arrumou meu traje, explicando no seu idioma que fazia aquilo
para eu ficar mais bonita. E ninguém olha atravessado se você entrar nos espaços de
oração, contanto que mantenha o devido respeito e não saia disparando flashes, embora
até uma câmera discreta possa ser usada com parcimônia. Portanto, não se sinta
intimidado se lhe disserem para evitar alguns locais, eles estão abertos a todos e a todas, e
ninguém vai reprimir ou impedir a visita, pelo contrário. Não evite correr pequenos
riscos para sentir de perto o calor humano e a devoção dessa gente simples e amiga.
Como também é preciso visitar ao menos dois museus em Teerã. O de Arqueologia
abriga uma das mais significativas coleções pré-islâmicas, incluindo o frontão de pedra
trazido de Persépolis, que dá uma ideia das ruínas aquemênidas para quem não tem
tempo ou condições de visitar o lugar propriamente dito. E vale conferir o célebre
Código de Hammurabi, nome do sexto monarca da Babilônia e um dos primeiros a
elaborar um conjunto de leis talhadas na rocha de diorito em 46 colunas de escrita
cuneiforme acádica. Datado de dois mil anos antes de Cristo, o monolito de 2,5 metros
de altura foi transferido de lá para a antiga capital religiosa persa, Susa, no Irã, por um
rei elamita na era de Alexandre, o Grande. Estamos, portanto, diante de uma réplica.
Na linha do ditado de “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”, o original,
encontrado em 1901 pela expedição dirigida por Jacques de Morgan, acha-se numa das
salas do Departamento de Antiguidades Orientais no Museu do Louvre, em Paris. Uma
estátua de Dario, que viveu em 521 a.C., proveniente da passagem leste do complexo
da Apadana, a sala do trono, em Susa, impressiona pelas inscrições no suporte de granito.
Além de alusões ao domínio persa no Egito, estão referências à divindade Ahura Mazda
em nada menos do que três línguas: persa antigo, elamita e o idioma babilônio,
conhecido como acádio.
A antiguidade das peças destoa do projeto cenográfico pobre, que não faz jus à
importância histórica do acervo. O oposto ocorre no pequeno Museu do Vidro e da
Cerâmica, instalado em um prédio qâdjâr que serviu como sede da embaixada do Egito
na década de 1950. Aberto em 1980, expõe peças delicadas como os “recolhedores de
lágrimas” de cores e formatos variados, em vitrines individuais. Sob a penumbra
ambiente, os objetos ganham relevo e luz própria graças ao arrojado projeto
museográfico de autoria de designers italianos.
Igualmente recomendável é um passeio pelo Parque Mellat, ou Parque da Nação,
no bairro residencial de Shemirân. Anteriormente uma pequena cidade fora de Teerã,
é agora ligada à capital pelas avenidas da época do xá e por uma malha de modernas
autoestradas. Ao norte, fica o complexo de palácios dos Pahlevi, erguidos nos anos 1930
num estilo francófilo. Dois deles guardam uma finíssima coleção de tapetes tecidos
especialmente para caber em cada uma de suas salas. No mesmo Parque ainda ficam o
Museu Militar, o Museu da Água e o Museu das Miniaturas.
As particularidades dos iranianos se estendem à questão religiosa. Ao contrário dos
90% dos muçulmanos, eles são xiitas, cuja denominação deriva de Shi’at Ali, ou
“seguidores de Ali”, e não sunitas. No esforço muitas vezes frustrante de construir uma
síntese do islã imposto pelos árabes, com a rica herança dos tempos pré-islâmicos, o
xiismo adota uma visão trágica da vida, enraizado no senso de martírio e sofrimento. Isso
porque os persas já vinham de longa experiência de assimilação de culturas estrangeiras,
dando-lhes uma forma adequada às suas inclinações, adotando certos preceitos e
rejeitando outros. Assim, ao serem obrigados a abraçar a crença de Mohammed,
firmaram uma interpretação própria do Corão, mesclando-a às suas crenças tradicionais.
Como resultado, o Irã é o único país predominantemente xiita no mundo e tem no
aiatolá o chefe supremo de um Estado teocrático, baseado nas leis de Deus.
A divisão começou logo após a morte do profeta, em 632 d.C. Os xiitas
acreditavam que o legítimo sucessor seria Ali, primo criado por ele desde a infância e
seu futuro genro. Foi a ele que Maomé ditou suas revelações, o Corão. Preterido pelo
califado, Ali logo se viu na posição de dissidente, mas contou com aliados descontentes
com a situação econômica e com o materialismo vigente. Por isso, Ali se dedicou a
pregar a justiça social, granjeando muitos seguidores, sobretudo nas classes baixas. Afinal
conquistou o posto em 656 d.C., mas acabou assassinado cinco anos depois, quando
rezava na mesquita de Kufa, cidade fortificada da Mesopotâmia.
A responsabilidade da resistência passou ao filho, Hussein, igualmente morto ao
liderar 72 discípulos contra um exército de milhares de homens na revolta suicida de
Karbala, em 680 d.C.. Para liquidar o legado de Hussein, a maior parte da sua família
foi executada e as histórias de “o senhor dos mártires” atingem o paroxismo em Qom e
outras cidades sagradas iranianas a cada aniversário de sua morte. Homens e meninos
vestidos de negro saem em procissão entoando versos fúnebres sobre o destino de
Hussein enquanto se autoflagelam com chicotes de cravos metálicos na celebração
conhecida como Ashura. Nessas ocasiões, teatros improvisados narram o drama,
semelhante à Paixão de Cristo, com tal fervor que leva os devotos aos prantos.
Reverenciados, o genro Ali e o neto Hussein são um paradigma moral a ensinar não
apenas como o fiel deve viver, mas também morrer. Dizem os estudiosos que
apreender a profundidade desse estado de espírito é essencial para o entendimento do
Irã moderno.
5. Unificando a nação
Depois que os profetas Ali e Hussein cumpriram sua missão no século vii, o império
árabe atingiu o auge e começou a declinar. Com o recuo do poder árabe, os xiitas
ganharam força, em parte porque suas advertências contra a corrupção das dinastias
terrenas foram corroboradas pelos excessos dos conquistadores turcos seljúcidas e pela
selvageria das hordas mongólicas de Gengis Khan, que devastaram o Irã nos anos
seguintes à invasão de 1220. Quando os mongóis começaram a perder o controle, o
poder passou às mãos da dinastia revolucionária safávida, que se inspirava na crença xiita.
Seu líder, Ismail, era um militante que levava seus guerreiros à batalha gritando:
“Somos homens de Hussein, e essa é a nossa honra! Somos escravos devotados do Imã!
Nosso nome é Zelote e nosso título é mártir!”.
Após uma série de vitórias obtidas com a ajuda de xiitas vindos de outras terras,
Ismail proclamou-se xá em 1501 e declarou o xiismo a religião oficial do Estado. A
cena está retratada em uma famosa pintura em miniatura com a seguinte legenda: “Na
sexta-feira, o excelso rei se dirigiu à mesquita congregacional de Tabriz e ordenou ao
seu pregador, um dignitário xiita, que subisse ao púlpito. O rei dirigiu-se então até a
frente do púlpito, desembainhou a espada do Senhor do Tempo, que a paz esteja com
ele, e lá ficou como o sol a brilhar”.
Mais do que um mero ato religioso, a adoção do xiismo foi um passo da maior
importância rumo à implantação da nação iraniana. Ismael utilizou essa vertente para
erguer um império que, dez anos após sua coroação, não apenas abarcava a maior parte
do Irã dos dias atuais, como se estendia da Ásia Central a Bagdá e das montanhas geladas
do Cáucaso aos areais do Golfo Pérsico. Durante o reinado de Ismail, o Irã de hoje
emergiu em termos políticos e espirituais. Seus habitantes já eram unidos pela geografia
diversificada, uma língua comum e uma memória coletiva de glórias ancestrais, mas
nenhum desses laços evocava algo que se assemelhasse ao fervor do xiismo. Ao abraçar
essa crença, os iranianos aceitaram o islã, embora não da forma pretendida pelos sunitas.
Eles se rebelaram aparentando se submeter. Assim, tanto para o xiismo como para o
zoroastrismo, os governantes só têm direito de exercer o poder na medida em que são
justos. Em última instância, essa crença conferiu às massas xiitas, e por extensão aos seus
líderes religiosos, força para promover a debacle do regime laico, construindo o
paradoxo de uma modernização autoritária e religiosa jamais prevista por nenhum
manual de teoria política.
Esse substrato zoroástrico sintonizado com a lógica e o conhecimento, e no qual o
islamismo xiita se assenta, fez dele uma síntese curiosa. Para entender seu significado é
preciso lembrar que a história da expansão do islã não ocorreu de forma linear. Logo
no início, na medida em que a área conquistada se ampliava, tornou-se necessária uma
forma mais elaborada de governo, o que representou um desafio e um peso para
Medina. A autoridade dos conquistadores passou a ser exercida nos acampamentos
militares que alojavam os soldados árabes. Aos poucos, deram origem a novas cidades,
com o palácio do governador, a mesquita e o lugar de assembleia pública ao centro.
Assim surgiram Basra e Kufa no Iraque e Fustat no Egito, da qual derivaria o Cairo. Nas
proximidades da Síria-Palestina, porém, a maioria dos acampamentos militares ficava em
cidades já existentes.
Durante o terceiro califado de Uthman, o poder começava a ser atraído para o
norte, em direção a terras mais ricas e populosas da Síria e do Iraque, onde os
governadores locais tentavam tornar seu mando mais independente. Uthmam foi
assassinado, sendo Ali ibn Abi Talib (656-661) o sucessor apontado, em meio à primeira
guerra civil. A escolha de Ali não se deu de forma unânime e o novo califa não
conseguiu superar as tensões nem apaziguar os conflitos entre as partes. O califado
encontrava-se em franca transformação. Tendo deixado Medina e estabelecido a capital
em Kufa, Iraque, Ali se viu assim mesmo desafiado pelo primo e governador da Síria,
Mu’awiyah (do clã dos omíadas), que se revoltara por ele não ter vingado a morte de
Uthman. No verão de 657, as tropas de Mu’awiyah enfrentaram as de Ali no norte da
Síria, em Siffin. Mas a questão não foi resolvida em batalha, e sim em negociações
fracassadas conduzidas por Ali que começou também a perder a já frágil base de apoio.
Então, uma após a outra, as províncias migraram para o controle de Mu’awiyah e Ali
acabaria assassinado em 661.
O assassinato de Uthman em 656, portanto, abrira uma crise política e religiosa que
Ali não conseguiu controlar. Ela só cessaria com o advento de Mu’awiyah em 660,
inaugurando o califado omíada. Durante o califado do seu filho, Yazid, ocorreu uma
rebelião de amplo alcance, que daria origem ao xiismo. Hussein, filho de Ali e Fátima e
neto do Profeta, liderou um grupo de revoltosos contra a nomeação de Yazid e o
estabelecimento da dinastia omíada. Partiram de Medina a Karbala, mas perderam
muitas forças no caminho. Quando chegaram, contavam apenas 72 homens, que foram
massacrados pelas tropas omíadas. O ano era 680. Hussein tornou-se mártir, juntamente
com o pai, Ali, e toda uma leva de opositores do regime, jurou jamais reconhecer os
omíadas como legítimos califas. Vieram a se chamar Shi’at Ali (o partido de Ali), de onde
veio o nome xiita ou xiismo. Do Iraque, expandiram-se pelo império, desafiando
sempre que possível o poder omíada. Formaram estados independentes, em oposição ao
califado sunita, o primeiro dos quais foi o de Fatimida, no Egito. A partir de 1500, os
governantes da Pérsia seriam sempre xiitas, que atualmente compõem a segunda maior
corrente do islã, após os sunitas. Outra vertente importante do islamismo seria a caridjita,
surgida na mesma época.[2]
O Irã no contexto do Oriente Médio
O que significa, exatamente, “ser árabe”? Esse conceito escorregadio é
tão difícil e elaborado quanto a tentativa de definir alguém como “europeu”.
Na verdade, os 22 países que pertencem à Liga Árabe, incluindo aí a
Palestina, formam um heterogêneo aglomerado de mais de 350 milhões de
pessoas. Há maronitas, coptas, berberes, curdos, africanos, árabes e muçulmanos
que habitam uma miscelânea de terras que vão do Atlântico ao Golfo Pérsico,
do deserto do Saara aos pés da Anatólia. Não integram um grupo religioso
nem linguístico, adotando dialetos que muitas vezes tornam a comunicação
difícil entre eles. Isso porque a maioria das nações árabes não surgiu a partir
de agrupamentos humanos com características comuns entre si. Elas foram,
antes, forjadas no pós-guerra pelos colonizadores europeus e pelo
expansionismo norte-americano, que as partilharam de acordo com seus
interesses econômicos na região abundante em reservas petrolíferas. Assim,
muitos países daquela faixa foram criados sem levar em consideração suas
especificidades, a exemplo da Arábia Saudita e do Iraque, ou resultam da
unificação relativamente recente de tribos guerreiras e clãs rivais, como no
Marrocos. O Irã é o oposto. Trata-se de um dos Estados nacionais mais antigos
do planeta. Contudo, existe uma identidade pan-muçulmana e também outra,
de caráter político, que une diferentes povos do Oriente Médio.
O célebre ditado popular, forjado no apogeu da Pérsia, continua atual. Com sua
belíssima praça Imã Khomeini, Esfahan ainda pode ser considerada a “metade do
mundo”. Um dos mais significativos legados de Abbas ibn Abd-al-Muttalib, é a cidade
mais esplêndida que já conheci.
Para projetar os domos das mesquitas azuis e douradas, as residências reais, avenidas
e jardins floridos, o soberano safávida contratou artífices armênios que depois ali se
estabeleceram, dando origem ao bairro de Djolfa. Sua bela catedral ortodoxa do século
xvii, conhecida como Vânk, tem pouca luz e uma decoração interna de cores vivas e
muito rebuscadas, bem ao estilo ortodoxo, destoando da serenidade e iluminação
abundante das mesquitas de motivos puramente florais e geométricos.
Interessante que as rezas islâmicas parecem mais democráticas e descentralizadas do
que as do universo cristão. Dentro das mesquitas há apenas espaços livres a serem
ocupados por homens e mulheres, separados entre si por enormes tapetes pendendo do
teto. Na verdade, elas funcionam como lugares de meditação e prece, que cada qual
realiza a sós, falando diretamente com Deus sem a intermediação de um pároco nem de
imagens de santos e virgens, proibidas pelos preceitos do Alcorão. Tampouco existe um
altar esplendoroso, cravejado de ouro, para capturar a atenção do fiel e fazê-lo sentir-se
diminuído em relação à potência do Senhor. Para rezar basta ter em mente a direção
da cidade sagrada de Meca, marcada por símbolos e flechas nas paredes, no chão e nos
muros de qualquer lugar por onde se passa, orientando os fiéis. Esta parece ser a função
dos minaretes que sobressaem na paisagem urbana, indicando ao viajante que chega de
longe a localização exata das mesquitas. Do alto dessas torres, o almuadem, também
chamado de muezim, anuncia o momento das cinco preces diárias. O chamamento
consiste em proferir a frase Allahu Akbar (Alá é grande), seguida da chahada, a “profissão
de fé” islâmica, que diz: “Não há outro Deus além de Alá, e Maomé é o seu profeta”. A
convocatória (adhan) é entoada de forma melodiosa e sua musicalidade fica
gostosamente reverberando por horas seguidas nos ouvidos.
Atravessando a ponte dos 33 arcos, erguida em 1600 no reinado de Abbas i,
entramos no bairro armênio de Djolfa. Estabelecido em 1603 como passagem
obrigatória para as caravanas vindas de Shiraz e outras regiões do Sul, rapidamente
transformou-se num quartier comercial. Mas isso não aconteceu por acaso e sim devido
ao desejo do xá de estimular o comércio do seu império com o exterior, contribuindo
para a prosperidade da nova capital Esfahan. Por isso, ele deportou para lá famílias
armênias retiradas compulsoriamente da cidadezinha de Djolfa, na fronteira com o
Azerbaijão. Em compensação, os armênios gozaram de completa liberdade religiosa e
certa autonomia administrativa, incluindo um prefeito da comunidade que logo
abrigaria trinta mil pessoas, incluindo alguns cristãos portugueses. Construíram a catedral,
com o interior recoberto por cenas de inspiração europeia representando o suplício
dos santos, além de várias igrejas durante o século xvii, até começarem as perseguições
e confisco de bens sob os descendentes de Abbas. Essa história é contada pelos trajes,
bordados, tapeçaria, manuscritos com iluminuras e outros objetos do museu da cultura
armênia, num prédio aos fundos da catedral. Ali também se pode ver uma exibição
permanente do massacre perpetrado pelos turcos no final da Primeira Grande Guerra.
Filmes de época, documentos e imagens dão uma noção do que foi o genocídio,
mostrando a matança e a deportação forçada de um milhão de pessoas de origem
armênia que viviam sob o Império Otomano.
Mas não foi só. Abbas trouxe comerciantes holandeses para enfeitar o bazar central,
emaranhado de ruelas com uma entrada decorada de mosaicos e arabescos, e acolheu
diplomatas para dar um ar cosmopolita à capital do seu reino, habitado por meio milhão
de pessoas.
Embora a maioria dos marcos arquitetônicos dessa fase tenha desaparecido, resta o
palácio Ali Qâpu, ou da Grande Porta, que se impunha como entrada aos demais
monumentos no vasto parque que se estende até a avenida Xá Bâgh. Destinado às
cerimônias oficiais e às recepções aos embaixadores estrangeiros, é rico em afrescos
retratando figuras indianas e até mesmo uma Virgem Maria com o Menino Jesus no
colo, num clima amistoso e ecumênico para receber visitantes de outros credos
religiosos. Com seis andares acessíveis por escadas em caracol que dão aos salões de teto
finamente decorados, tem um vasto terraço que servia como sala de trono no verão e
do qual o soberano assistia aos jogos de polo ou passava a tropa em revista. Entre seus
pontos altos está a sala de música, enfeitada com espécies de alvéolos de estuque em
forma de instrumentos musicais. Além de inusitado, esse recurso decorativo tem a
propriedade de fornecer a acústica indispensável à sua função.
Reverenciado como herói, nome de avenida e do melhor hotel de Esfahan, o xá
Abbas, que ocupou o trono por mais de quarenta anos, unificou o povo, dando-lhe um
senso de destino comum tão profundo quanto o de seus contemporâneos Elizabeth i, da
Grã-Bretanha, e Felipe ii, da Espanha. Ele construiu estradas para trazer os mercadores
europeus e criou oficinas para produzir seda, cerâmica e outros produtos. Para manter a
coesão das terras, implantou um sistema de comunicação ágil e eficiente, com
entrepostos de muda de animais a cada 24 ou 35 quilômetros, para que os mensageiros
cumprissem suas missões com presteza em quaisquer confins do império. Montou uma
competente rede burocrática de coleta de impostos, organizando o país como não se
fazia desde Ciro e Dario, dois mil anos antes.
Por outro lado, o xá impôs uma cruel tirania e não tolerou desafios ao seu
absolutismo. Torturas e execuções eram lugares--comuns no reinado. Manteve a prole
trancafiada no palácio real, permitindo-lhe o prazer das concubinas e eunucos, mas não o
acesso ao treinamento e à educação para exercer a liderança no futuro. O filho mais
velho foi assassinado e os dois outros ficaram cegos, assim como seus irmãos e o pai.
Do apogeu à queda
O Estado safávida alcançaria o ápice no reinado de Abbas (1587-1629),
também conhecido como o Grande. De início, o xá enfrentou a árdua tarefa
de reerguer o enfraquecido império em situação de colapso iminente desde
a morte de Tahmasp, em 1576, sucessor de Ismael, o primeiro soberano
safávida que ascendeu ao trono em 1501. Sob Abbas, a cultura iraniana atingiu
níveis extraordinários. Desde o século ix, seus intelectuais tinham percorrido
os domínios islâmicos à procura dos mais sábios filósofos e cientistas, bem como
traduzido as obras de Platão, Aristóteles, Arquimedes, Euclides, Ptolomeu e
outros pensadores gregos. Seus artífices deram saltos empolgantes na
arquitetura e na arte da cerâmica. Os estilos criados pelos miniaturistas persas
foram copiados por mestres de toda a região, de Constantinopla às estepes da
Ásia Central.
Mas a brutalidade com que Abbas tratou os potenciais herdeiros levaria
o Irã à desordem depois de sua morte, despertando a cobiça das nações
vizinhas. Seguiu-se um período de anarquia e luta pela supremacia entre as
tribos afshar, qâdjâr, afegã e zand. Em 1722, foi devastado por afegãos que
saquearam a própria capital, Esfahan, mas acabaram sendo expulsos pelo
último dos grandes líderes históricos do Irã, o xá Nadir. Turco sunita, mais
tarde ele conduziria seus exércitos na tomada de Délhi. Um dos tesouros que
pilhou foi o Trono do Pavão, incrustado de joias, que se tornou o símbolo da
realeza iraniana. Nadir foi assassinado em 1747, desencadeando uma disputa
que durou quase cinquenta anos, até uma nova dinastia subir ao trono.
Os Qajar, de uma tribo turca proveniente do mar Cáspio, governaram
o Irã do final do século xviii até o ano de 1925. Dizem os historiadores que a
seus reis tacanhos e corruptos cabe a culpa pela decadência que se abateu
sobre eles. Enquanto a maior parte do mundo avançava para a modernidade,
o Irã da dinastia Qajar estagnava. Independentemente de qualquer coisa,
porém, conforme notou Stephen Kinzer no seu fundamental e inspirador
estudo sobre a Operação Ajax, responsável por alterar definitivamente os
rumos do país, é importante considerar que a própria geografia colocou o Irã
no caminho das duas potências imperiais. A Grã-
-Bretanha o enxergava na rota terrestre para a Índia, sua mais rica e preciosa
colônia. Os russos, por sua vez, especulavam assumir o controle de uma valiosa
extensão de terra situada além de sua desprotegida fronteira meridional. O
fato de o Irã ser governado por monarcas fracos e autocentrados o tornava
um alvo atraente demais para ser ignorado por ambos os impérios, que
trataram, portanto, de preencher o vácuo deixado pelos incultos Qajar.
Estes optaram por tirar o máximo proveito de um destino supostamente
inevitável. No que acabou se revelando um enorme erro de cálculo,
acreditaram que o povo iraniano aceitaria qualquer coisa ditada pelos
governantes. Ledo engano. Imbuídos do princípio xiita, que dá ao cidadão
comum o direito inalienável de derrubar o despotismo, os iranianos se
rebelaram de forma nunca experimentada pelos antepassados. Exigiram o fim
do domínio por potências estrangeiras e um Parlamento que expressasse a
vontade popular. Esse programa determinou a derrubada da dinastia Qajar e
marcou toda a história subsequente.
Qualquer aspecto minimamente negativo, porém, sucumbe diante desse
patrimônio da humanidade cujas belezas seriam mais bem apreciadas com um bom
cálice de vinho. Na falta disso, aventurei-me sem pressa pelo bazar e entrei na mesquita
de Sexta-feira — nome frequente por se referir ao dia de preces islâmico, que cai na
sexta e não no domingo dos cristãos. Ligeiramente afastada do centro, a menos de
quinze minutos de táxi, é uma visita imperdível. A entrada esconde-se entre as ruelas
do bazar, em meio às barracas que vendem um pouco de tudo — de artesanato local até
as quinquilharias típicas das lojas de departamento ou de regiões como a 25 de Março,
em São Paulo, e Saara, no Rio de Janeiro. Estive lá ao cair da tarde por algumas horas
de puro encantamento. Com um dos maiores pátios internos que vi, a mesquita exala
uma atmosfera mágica que relembra certos recantos da Toscana, o ar saturado de
histórias e as cores de adobe de San Gimignano. Batida pelo solzinho enfraquecido,
emana um calor que consola e restaura as forças do viajante fatigado de tantas belezas e
desafios. Mas também acolhe o morador local. Um grupo de senhores, decerto
aposentados, bate papo ao redor da fonte como se estivessem numa taverna. Dão a
impressão de se sentirem inteiramente à vontade. Ocupam a casa de Deus como se
estivessem no próprio lar ou no bar da esquina — faltando apenas o copo de cachaça
para acompanhar as conversas num tom respeitosamente mais baixo. Só não consegui
visitar a madrassa, escola teológica cuja cúpula azulada sobressai na paisagem e pode ser
vista do jardim interno do hotel Abassi, que integrava o complexo de edifícios erguidos
por volta de 1706 para funcionar como abrigo para as caravanas. Sua entrada se destaca
na fachada austera de arcos cegos da avenida Chahâr Bâgh. Com um teto decorado de
estalactites em faiança, chama a atenção pelas portas de madeira revestidas por placas de
prata com motivos florais e inscrições. Pelo vão entreaberto para dar passagem aos
professores barbudos que chegavam, pude espiar o vestíbulo decorado com azulejos
azuis e brancos. Vi o jardim com a fonte de mármore no meio, alimentada por um
pequeno canal que refletia os plátanos plantados ao redor. Para mais não tive tempo,
pois a pesada porta fechou-se com estrondo, a despeito dos meus protestos e pedidos
veementes. Não há horários de visita nem regras sobre quem pode ou não ser
admitido. É tudo uma questão de sorte...
8. Reencontrando Kurosh
9. Outra civilização
Poucos lugares valorizam a literatura tanto quanto o Irã. Desde a antiga Pérsia, a
tradição poética faz parte do cotidiano das pessoas, que decoram versos e veneram os
autores como se fossem heróis. Não por acaso, os túmulos de Saadi, morto por volta de
1290, e de Hâfez, que morreu em 1389, são visitados nos fins de semana e feriados por
famílias inteiras e noivos no dia do casamento, que fazem preces, pedidos e atiram
moedas ao espelho d’água dos jardins para trazer sorte. O de Saadi, na ponta do bulevar
Bustân, ou avenida do Pomar, título de uma das suas célebres obras, tem colunas esguias.
O monumento foi construído em 1952 para substituir o anterior, bem mais simples.
Andarilho, ele viajou longamente pela Síria e Iraque e foi prisioneiro dos cruzados
antes de se estabelecer definitivamente na terra natal. Todos sabem de cor os gazais,
forma lírica curta que exprime o amor místico, do seu livro Golestãn, ou Jardim de Rosas.
Já no mausoléu de Hâfez, erguido em 1935 em frente ao parque Meli, se vê um
pequeno pavilhão revestido de pastilhas amarelas, brancas e marrom-claro. Os refrãos
estão gravados sobre o esquife de mármore do poeta da corte, nascido entre 1317 e
1326 na cidade que jamais abandonou. Sua obra está compilada no Divân, que traz
quinhentos gazais, formato extremamente difícil de manejar devido à complexidade da
métrica que obriga à limitação de apenas uma rima. Os temas principais incluem o amor,
a celebração do vinho, a intoxicação e a hipocrisia dos que se pretendem os guardiões,
juízes e próceres da moralidade, além de homenagens poéticas à sua terra natal:
Shiraz é ninho de lábios de rubi e manancial de beleza;
Sou um joalheiro sem dinheiro e vivo ansioso.
É uma cidade plena de olhares convidativos e em todo
[lado há beleza;
Mas eu nada tenho, ou de todas seria comprador.
Nesse contexto, a poesia é considerada a forma suprema de expressão literária,
constituindo um dos aspectos mais ricos da criatividade persa. Fortemente influenciada
na sua composição e vocabulário pela poesia árabe, ela resulta de uma literatura muito
antiga, recolhida em parte do Avesta, o livro sagrado dos zoroastras. Os primeiros versos
em persa propriamente dito apareceram por volta do século ix, aos poucos substituindo
os dialetos locais para finalidades literárias.
A função oficial da poesia nas cortes explica o surgimento do estilo panegírico,
escrito na forma de qasida para proclamar, segundo regras estilísticas bem definidas, as
virtudes e a coragem do soberano. Entre os mais conhecidos nesse gênero estão Anvari
e Khâqâni, mortos em 1187 e 1199, respectivamente.
Já a epopeia, que remonta ao pré-islamismo no livro Avesta, inspirou Ferdowsi, no
século x, a elaborar o Shahnameh. Quatro vezes mais longo do que a Ilíada, levou 35
anos para ser escrito. O Livro dos reis narra a história nacional e a mitologia iranianas,
desde a criação da Terra até sua conquista pelos árabes no século vii. Tem 990 capítulos
e 56.700 dísticos, estrofes de dois versos. Num deles, um general se queixa: “Maldito
mundo, maldita época, maldito destino/ Ser obrigado por árabes incultos a me tornar
muçulmano”. Adiante, no mesmo épico, retrata Rostam, o comandante persa derrotado,
lamentando o infortúnio que vê à frente na guerra contra Touran, na Ásia Central:
Ó Irã! Onde estão os reis que te adornaram
De justiça, equidade e munificência, que te decoraram
Com pompa e esplendor; eles se foram?
Desde o dia em que os bárbaros, selvagens e rudes
Beduínos árabes venderam em segredo a filha de seu rei nas ruas
E no mercado de reses, não viste um dia luminoso e
Permaneceste oculto na escuridão.
O célebre episódio da morte de Sohrâb nas mãos de Rostam, seu pai, que
ignorava a verdadeira identidade do filho, bem como a vingança do jovem príncipe
Siavush, são os temas favoritos dos pintores de miniatura — uma arte milenar tanto
quanto o hiper-realismo, que tem em Imán Maleki, discípulo de Morteza Katouziam,
um dos expoentes. De enorme impacto, esses episódios são teatralizados durante o
feriado de Ashura, relembrando o flagelo de Hussein, o mártir do xiismo. Pelas ruas,
atores mambembes emocionam a população, que chora diante das cenas trágicas, por
vezes gloriosas ou patéticas, sobre a luta entre o Bem e o Mal e a lealdade dos vassalos,
entre outros assuntos ligados à época sassânida, constituída em volta do planalto persa
entre 224 e 652 d.C.. O mérito de Ferdowsi foi o de ter recolhido e registrado a
tradição oral ainda vibrante, fresca na memória do povo, com o apoio de um corpo de
colaboradores literários variado e talentoso. E, ao contrário da poesia persa lírica, cujo
vocabulário transita pelo árabe, os versos de Ferdowsi conservam palavras arcaicas,
próximas do pálavi, usado durante o reinado sassânida. Como ele, popular também na
Índia e na Turquia, o místico do século xiii Jalaluddin Rumi, nascido em 1207 na região
hoje conhecida como Afeganistão, teve suas obras traduzidas mundo afora. Morto em
1273 em Konya, cidade central da Anatólia, na Turquia, rejeitava todo tipo de
ortodoxia:
Não pertenço a nenhum credo ou religião,
Não sou oriental nem ocidental,
Muçulmano nem infiel,
Zoroastriano, cristão, judeu ou gentio.
Não venho da terra nem do mar,
Não sou parente dos de cima nem dos de baixo,
Não nasci longe nem perto,
Não vivo no Paraíso nem nesta Terra,
Não me digo descendente de Adão e Eva, nem dos anjos do céu.
Eu transcendo o corpo e a alma.
Minha casa fica além de um nome ou lugar.
Ela está com os entes queridos, num espaço além do espaço.
Eu contenho tudo e sou parte de tudo.
Também beirando a iconoclastia, os rubaiyat do matemático e astrônomo Omar
Khayyam (1048-1123) ganharam notoriedade ao serem traduzidos no século xix por
Edward Fitzgerald. No rubai, o primeiro, o segundo e o quarto versos são rimados, mas
o terceiro é branco. O nome rubaiyat é derivado da palavra de raiz árabe “quarteto”.
Já “Khayyam” significa fabricante de tendas, nome adotado pelo autor, nascido em
Nichapur em 1048, em homenagem à profissão do pai. Além de versos, Omar
escreveu o Tratado de algumas dificuldades das definições de Euclides e as Demonstrações dos
problemas da álgebra. Em 1074, como diretor do Observatório de Merv, reformou o
calendário muçulmano. Na versão em português de Alfredo Braga, as estrofes dos
rubaiyat falam do vinho e amores, temas proibidos na lógica muçulmana.
Nunca murmurei uma prece,
nem escondi os meus pecados.
Ignoro se existe uma Justiça, ou Misericórdia;
mas não desespero: sou um homem sincero.
***
O que vale mais? Meditar numa taverna
ou prosternado na mesquita implorar ao Céu?
Não sei se temos um Senhor,
nem que destino me reservou.
***
Que pobre o coração que não sabe amar,
não conhece o delírio da paixão.
Se não amas, que sol pode te aquecer,
ou que lua te consolar?
***
Somos os peões deste jogo de xadrez
Que Deus trama. Ele nos move, lança-nos
Uns contra os outros, nos desloca e depois
Nos recolhe, um a um, à caixa do nada.
Parte 2 - A terra do meio
Parte 2
A terra do meio[3]
Há algo de especial sobre o Irã que muda a vida da gente. Refratado pela lente de
uma nação milenar, o mundo ganha novo contorno quando visto dali. É como se a
imagem antes desfocada, tal qual aquilo que enxergamos à distância, tomasse forma no
ponto de convergência do Ocidente com o Oriente. Um fascínio que se reflete no
rosto do viajante — é improvável não se encantar a cada passo dado no caminho por
onde peregrinos, mercadores e viajantes atravessavam em caravanas há 2.500 anos. Em
direção ao leste ou oeste, terras nórdicas ou os desertos do sul, os homens se cruzavam
nesse miolo entre Europa, Ásia e África. Um vasto planalto, que nos mapas
contemporâneos seria delineado em torno do Iraque, Paquistão, Afeganistão,
Turcomenistão, Uzbequistão, Tajiquistão, Turquia, Jordânia, Chipre, Síria, Líbano, Israel,
Egito e o Cáucaso, além do próprio Irã.
Num período marcado por guerras e povos bárbaros, a Pérsia emergia como uma
vibrante e cosmopolita civilização, estabelecida sobre os alicerces do respeito pelas
tradições, leis, idiomas e religiões dos grupos que cruzavam suas terras. “Quando da sua
morte, Cirus havia mudado a face do mundo civilizado. (...) Isso introduziu um novo
conceito de benevolência. Pela primeira vez, em grande escala, a força era usada para
proteger, e não para degradar, a condição humana.”[4]
O orgulho dos tempos do império alimentaria o sentimento de superioridade por
gerações e gerações de sucessores. Quando perguntados sobre sua origem ou que
idioma falam, os iranianos respondem “persa”. E são os poetas ancestrais que eles
idolatram: Rumi, Saadi, Omar Khayyam, Hâfez, Ferdowsi. Este, autor do Shahnameh (ou
o Livro dos reis), que retrata a história das várias dinastias até a conquista árabe, no século
vii. Nos quase 60 mil versos do épico, Ferdowsi não usa palavras de origem estrangeira,
exacerbando a identidade persa.
O legado nacionalista servira de escudo de proteção contra intervenções externas.
Assim, os iranianos se mantiveram distintos dos demais povos da região, apesar de
assimilarem coisa ou outra dos que cruzaram ou se estabeleceram em seu território. Isso
explica, em grande parte, as contradições existentes no país transformado em república
islâmica. De uma cultura milenar, mas ainda tão desconhecida. De um povo que cultua a
poesia, mas é frequentemente confundido com radicais terroristas. De mulheres que
ocupam a maioria das vagas nas universidades e postos de trabalho, mas são subestimadas
como frágeis e oprimidas. Uma nação predominantemente jovem, porém, retratada por
imagens de velhos homens de barba longa e turbante. Um país rico em petróleo, mas
marcado pelo atraso imposto por sanções econômicas. Uma civilização de incontáveis
contribuições para a humanidade, porém, julgada pelos acontecimentos dos últimos
trinta anos, como se sua história se resumisse a isso.
Como o leitor descobrirá nas páginas seguintes, que compõem a segunda parte
deste livro, foram três décadas de conturbadas relações políticas, ameaças nucleares,
polêmica aproximação com o Brasil, prisões, protestos e sanções, mas também do
primeiro Nobel da Paz concedido ao povo iraniano e a uma mulher, Shirin Ebadi. Um
tempo durante o qual as iranianas enfrentaram a supremacia masculina supostamente
imposta pela religião. Sob o véu, elas se valeram da cirurgia plástica para aprimorar
traços do rosto, único recurso físico de sedução deixado à mostra. Estudaram, foram
trabalhar fora, casaram-se, deram à luz e educaram as gerações pós-revolução, que
representam o futuro do país. “Um lugar onde o que se vê não é. E o que é não se
vê”, na definição de um diplomata brasileiro que vivera três anos no Irã. A terra do
meio.
O voo ek971 da Emirates Airlines decola às 7h45 com destino a Teerã. Tempo
de viagem previsto: 2h10. Os passageiros são predominantemente homens. Como o
voo é curto e pela manhã, é servida uma espécie de brunch, com omelete e saladinha de
atum. Apesar da restrição a bebidas alcoólicas no Alcorão, percebo que no cardápio da
companhia aérea há vinho tinto francês Cécilia Faugères, branco chileno Chardonnay
Valdivieso e champanhe Moët & Chandon Brut Impérial. “Exceto nos voos à Arábia
Saudita”, avisa discretamente a aeromoça. É onde são impressas e distribuídas para o
mundo, gratuitamente, as traduções oficiais do livro sagrado do islã, inclusive para o
português.
Os monitores do Boeing 777-200 exibem, além da rota da aeronave, a localização
de Meca, em direção à qual os fiéis ajoelham-se em oração cinco vezes ao dia. A
primeira reza acontece antes mesmo de o sol nascer. E, para os mais religiosos, é uma
obrigação. Por isso, a necessidade de apontar no mapa a posição da cidade em relação à
rota. Faz-se o mesmo em quase todos os voos com embarque ou destino nos países
islâmicos.
Chamadas de namaz ou salat, as orações constituem um dos cinco pilares da fé
islâmica. Os outros são ensinar e reconhecer publicamente a religião (shahada), destinar
parte dos recursos aos pobres (zakat), observar as obrigações do Ramadan, o principal
festival religioso, quando os fiéis jejuam e se abstêm de vícios, relações sexuais ou
pensamentos negativos durante um mês; e, pelo menos uma vez na vida, peregrinar a
Meca (hajj). A cidade saudita, onde nasceu o profeta Maomé, é considerada sagrada pelos
muçulmanos.
O voo é curto e eu me esforço para não dormir. Fora instruída a colocar o hijab
assim que a aeronave avançasse sobre o espaço aéreo iraniano, o que seria anunciado
pelo piloto. Mas, desmaio de cansaço graças às poucas horas de sono das noites anteriores.
Ao acordar, percebo que as mulheres já estão devidamente cobertas. Peço ajuda à
jovem ao meu lado, no assento 24d, mas ela não fala inglês. As poucas palavras que eu
havia treinado em farsi não soam certas aos seus ouvidos. Acabamos nos entendendo por
mímica. Com um sorriso, ela me ajuda a prender o hijab, enrolando uma ponta à outra
na frente do pescoço. Agradeço, insistindo no idioma: tashakor! Ela faz sinal com a cabeça
e sorri, quando o piloto anuncia: dentro de vinte minutos, pousaremos em Teerã.
Até aqui, tudo corre bem, eu pensei.
Às 10h35 no horário local, o avião desliga as turbinas no Aeroporto Internacional Imã
Khomeini (ika). Por um minuto, me deu um frio na barriga. O que eu estava fazendo
ali, de férias e sozinha? Não era a primeira vez que eu tinha aquela sensação, que por
um instante me faz lembrar uma cena da infância, num parque de diversões qualquer.
Depois de comprar o ingresso para a montanha-russa, tudo o que se quer é vencer a
fila. Não se pensa em mais nada. Quando o cinto de segurança trava, você começa a
procurar nos arquivos da memória o que a levou até aquele lugar. O carrinho sobe e,
no topo, a pergunta é: por que, afinal de contas, eu fiz isso comigo mesmo? Por que me
coloquei nessa situação por vontade própria? Mas, como não há outra coisa a fazer, você
repete mentalmente que “tudo vai acabar bem” e daí em diante relaxa, vive
intensamente a aventura e curte as emoções que cada momento lhe traz. É com esse
espírito que desembarco em Teerã.
***
De volta ao hotel, naquela noite, pedi à Malileh que subisse comigo até o quarto para
assistirmos juntas ao jornal nacional iraniano, do canal de televisão estatal Irib, em farsi.
Eu queria informações sobre os últimos acontecimentos e o que estava sendo discutido
no país, como os temas internacionais eram abordados, que tipo de notícia era levada ao
ar. Especialmente, por se tratar de uma tv estatal.
O programa começou com um anúncio do governo. A partir de meia-noite,
haveria racionamento de gasolina. O consumo mensal do combustível estaria limitado a
cem litros por carro. A informação pegou de surpresa até mesmo os iranianos. Assentado
sobre um imenso poço de petróleo, o Irã é o segundo maior exportador entre os
membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), atrás apenas da
Arábia Saudita. Mas, apesar disso, é obrigado a importar até 40% da gasolina para
consumo próprio, porque não possui tecnologia e capacidade de refinamento suficiente
para atender a todo o mercado interno.
O tema é sensível para o governo iraniano. Prevendo que novas sanções
internacionais poderiam atingir em cheio o setor, Ahmadinejad lançou em 2007 um
plano de emergência para reduzir a importação de gasolina, envolvendo a construção
de novas refinarias, além das sete existentes, a aproximação com países aliados (Brasil e
Venezuela, entre eles) e a redução do consumo interno por meio da conversão de
todos os veículos de transporte público e os novos carros de passageiros para gás natural
até 2015. Tudo isso, no entanto, levaria tempo. A maneira mais rápida de reduzir as
importações era o racionamento, apesar do altíssimo custo político da decisão.
No Irã e nos países árabes que exportam petróleo em grande escala existe um
entendimento por parte da população de que o combustível é um recurso natural
sobre o qual todos têm direito. Por isso, é comum que o produto refinado, para
consumo final, seja largamente subsidiado. No caso do Irã, o governo financia cerca de
70% do custo, que sai a um mil riais (algo como dez centavos de dólar ou R$ 0,18) o
litro. No Brasil, para se ter uma ideia, o litro da gasolina custava cerca de R$ 2,50 em
abril de 2010.
O racionamento, anunciado por Ahmadinejad em rede nacional pouco mais de
duas horas antes de entrar em vigor, enfurecera os iranianos e Malileh me alertara da
possibilidade de protestos públicos no dia seguinte.
Malileh passou para me buscar no hotel bem cedo, mas, por causa do racionamento,
não quis sair de carro naquele dia. Eu mesma preferi apanhar um táxi. Sempre
inevitavelmente atentos às conversas dos passageiros, os taxistas costumam ser ótimas
fontes de informação sobre quase tudo, que dirá a respeito do assunto que mais lhes
interessa: o acesso ao combustível. Assim que entrei no táxi, um velho Peikan 1968,
fabricado no Irã, uma frase escrita à mão em um papel colado no painel do carro
chamou minha atenção.
“Malileh, o que está escrito ali?”, perguntei. “Você tem o poder de mudar a sua
vida. Está tudo na sua mente.” Usei aquilo como pretexto para iniciar uma conversa.
“Esse é o meu lema”, disse o motorista. Ele se chama Hamid, tem 32 anos, doze dos
quais circulando pelas ruas de Teerã como taxista em seu bom e velho Peikan. Àquela
altura, calculava, já havia somado algo como 35 mil horas ao volante do táxi no trânsito
caótico da poluída capital iraniana. Foi a única forma que encontrou de ganhar a vida,
apesar de ter diploma universitário e mestrado; em breve, será doutor.
Hamid é formado em genética e fazia doutorado na Universidade Azad, em Raraj,
a 32 quilômetros de Teerã. Como ele, há muitos universitários conduzindo táxis
informais pelas ruas da cidade. Alguns têm o trabalho de taxista como segundo emprego,
uma forma de aumentar a renda familiar. Mas há muitos desempregados para os quais o
táxi é a única fonte de recursos — a taxa de desemprego no Irã é de 12%, segundo
dados oficiais do governo, mas pode chegar a 30% nos cálculos de analistas e opositores
do movimento reformista.
São iranianos que colocam o próprio carro nas ruas e saem com a janela aberta
anunciando o trajeto, aos berros, nos pontos de ônibus e esquinas. Quase todos eles
fazem lotação, ou seja, vão pegando, no percurso, mais passageiros que tenham o mesmo
destino, ou algo perto disso. Às vezes, levam até seis pessoas, homens e mulheres,
espremidos como sardinha em lata e, é claro, sem cintos de segurança para todos. Apesar
dos mais de sete milhões de veículos em circulação, a 16ª frota do mundo e a maior do
Oriente Médio, praticamente ninguém usa cinto de segurança no Irã. Talvez, por isso
mesmo, o Irã lidere o ranking mundial de acidentes de trânsito fatais — 25 mil por ano,
em média, ou quase uma morte a cada vinte minutos. É a principal causa de morte entre
iranianos.
Como era de se esperar, não existe taxímetro ou nada parecido. No caso de
lotação, você paga quanto achar que vale a corrida. Invariavelmente, o motorista
reclama do valor e procura negociar algo mais. Ou nem tenta, mas reclama de qualquer
forma por força do hábito. Se o passageiro quiser usar o táxi exclusivamente, negocia-se
antes — às vezes, por longos minutos, enquanto o carro, parado no meio da rua,
atravanca o trânsito e os motoristas dos carros que estão atrás gritam com as mãos para
fora da janela e buzinam sem parar. Malileh era boa nisso. Nunca aceitava a primeira
oferta. Pequena e com a voz mansa, negociava feito gente grande, fazia a sua
contraoferta e, diante da recusa, censurava o motorista por tentar tirar vantagem, virava
as costas fingindo desistir da negociação e, dando uma piscadinha cúmplice para mim,
ameaçava pegar o táxi seguinte. Exceto por uma vez em que estávamos realmente
atrasadas, sempre conseguiu o preço que queria. Com Hamid, nós negociamos um valor
pelo dia — valor que eu não anotei, infelizmente. Mas não era nem pouco nem muito,
eu me lembro.
O táxi de Hamid pagou e ainda sustenta seus estudos. Quando terminar o
doutorado, ele quer se mudar com a mulher e o filho “para um país onde possa
exercer a profissão e ter mais qualidade de vida”. E, logo agora, o governo iraniano
decidira adotar uma política de racionamento de gasolina, limitando o consumo mensal a
cem litros por carro, o que reduziria seus ganhos e adiaria, em muito, seus planos para o
futuro. Hamid gasta, pelo menos, seiscentos litros por mês para rodar entre 150 e 200
quilômetros com seu Peikan. Ele trabalha sete dias por semana, oito horas por dia. Para
os táxis registrados e outros veículos de transporte, o governo liberara o consumo de
oitocentos litros por mês. Mas, assim como grande parte da economia iraniana, ele está
no mercado informal.
Isso mexeu com os nervos de Hamid. Ele reclama da falta de emprego, do valor
dos estudos, nos quais calcula ter investido cerca de oito mil dólares somente para o
mestrado, do aumento do preço do aluguel, pelo qual antes desembolsava algo como
seiscentos dólares por mês por uma casa de dois quartos no sul de Teerã e hoje gasta
quase o dobro. Como motorista, ele diz ganhar pouco mais do que isso. A renda é
complementada por outros bicos — ele escreve para a revista Green Garden, de
agronomia, e faz projetos de consultoria para criadores de gado. Sabe tudo sobre o gado
girolando, nascido e desenvolvido no Brasil. Por isso, o país está entre as opções que ele
avalia com a mulher para migrar com a família.
“As coisas pioraram muito no Irã. Tudo está errado: a economia, a política interna, a
imagem que tem sido projetada de nosso país no exterior”, critica Hamid. Nas eleições
que levaram o presidente Mahmoud Ahmadinejad ao poder, em 2005, Hamid anulou
seu voto e faria o mesmo nas urnas em 2009. “Não é o presidente que governa o Irã,
mas uma ideologia. Não aceito essa ideologia nem esse governo, por isso, enquanto
existir esse regime, eu nunca mais vou votar.”
Enquanto conta a sua história, Hamid nos conduz pelas ruas de Teerã. Temendo um
novo aumento no preço da gasolina, por conta do racionamento, motoristas formavam
filas de até quatro quilômetros nos postos de abastecimento. Alguns deixaram o carro
em casa. Pelos cálculos de Hamid, pelo menos 30% dos veículos não circularam naquela
manhã. Um taxista que aguardava para abastecer nos alertou sobre protestos que teriam
começado ainda de madrugada e estariam se espalhando por Teerã. “Estão queimando
tudo e muitos carros vão acabar sem gasolina”, afirmou, complementando que ele
também não concordava com o racionamento. “Não é tempo de racionar porque não
estamos preparados para essa situação. O governo e os economistas têm de dar uma
solução para isso porque muitas pessoas vivem de seus carros e agora perderam a
tranquilidade.”
Hamid liga o rádio. Três postos haviam sido depredados e queimados durante a
madrugada. E, até o fim do dia, outros nove seriam atingidos da mesma forma por
iranianos, em protesto contra o racionamento. Seguimos para um dos endereços, na rua
Hakimieh, onde o fogo atingira também uma agência bancária. De lá, para a rua Rashid,
zona leste de Teerã, onde outro posto estaria em chamas. Quando chegamos, havia
apenas cinzas. Os locais já estavam cercados e eram vigiados por policiais. Prevendo
novos distúrbios, todo o efetivo fora colocado nas ruas e 250 manifestantes foram presos
naquele dia.
Mas, até o chefe da polícia de Teerã, Ismail Ahmadi Moghaddam, declarara
publicamente o seu descontentamento com Ahmadinejad, dizendo ter sido avisado
sobre o racionamento da mesma forma que todos os outros iranianos: por rede nacional,
pouco mais de duas horas antes de a decisão entrar em vigor. “Lamentavelmente, o
Ministério do Petróleo não nos avisou a tempo sobre a data em que o racionamento
começaria”, declarou Moghaddam à imprensa local.
Com as ruas menos congestionadas, mas ônibus mais lotados, muita gente reclamava
da falta de transporte público. O metrô de Teerã é surpreendentemente moderno,
limpo e eficiente, com pouca espera de chegada entre um e outro trem, para um país
supostamente isolado. Com 96 quilômetros de extensão, é maior do que o de São
Paulo, que tem apenas 63 quilômetros. O desenho do sistema foi feito por uma
companhia francesa afiliada à estatal de transportes de Paris (ratp, na sigla em francês)
antes da Revolução Islâmica, mas as obras acabaram suspensas até quase o fim da guerra
entre Irã e Iraque. A primeira linha foi construída por uma empresa chinesa e
inaugurada em março de 1999, ligando Teerã e Karaj em trens elétricos de superfície.
A linha 5 começou a operar no mesmo ano, na capital. E, desde então, o sistema cresce
sobre trilhos austríacos e vagões chineses que transportam quatro milhões de passageiros
por dia, em quatro linhas. Alguns deles são destinados, exclusivamente, às mulheres
conservadoras e adeptas do chador. Os trens mistos costumam levar as mais jovens e
liberais, sob coloridos hijab.
Em termos de extensão e alcance, no entanto, o metrô iraniano é pequeno para a
maior cidade do Oriente Médio. Pressionado internamente e prejudicado por sanções
econômicas e reações turbulentas com o Ocidente, que espantaram o capital externo do
país, o governo Ahmadinejad lançou em 2008 um projeto para incentivar o setor
privado iraniano a investir no sistema de transportes. A estratégia, prevendo uma série
de incentivos às empresas locais, parece ter sido bem sucedida. Com isso, o governo
prometia ampliar o metrô de Teerã em 172 quilômetros extras e inaugurar novas
redes nas cidades de Mashhad, Shiraz, Tabriz, Ahvaz e Esfahan, que somariam outros 380
quilômetros de novas linhas até 2012.
A política de racionamento chegou a proporcionar ao Irã uma economia de quase
20 milhões de litros por dia, que deixaram de ser importados. Mas, criticado por uma
população enfurecida com a política externa iraniana, as sanções do Ocidente e uma
economia declinante, e visando ser reeleito para um segundo mandato no pleito
presidencial de junho de 2009, Ahmadinejad acabou cedendo. Nos anos seguintes ao
anúncio do racionamento, a cota por motorista aumentou para 120 litros por mês e uma
série de exceções às regras foi aprovada pelo governo. Até que, pouco antes das
eleições presidenciais, Ahmadinejad pôs fim ao racionamento, sem dar explicações.
Em abril de 2010, o Irã seguia sendo o segundo maior importador de gasolina do
mundo, a um custo anual de sete bilhões de dólares, com capacidade de refino de cerca
de 40 milhões de litros por dia e quase o dobro, mais de 70 milhões de litros por dia,
consumidos internamente.
Disso tudo, o que mais me impressionara foram os protestos. As cenas de postos de
gasolina queimados, lojas e bancos depredados voltaram à memória muitas vezes
durante as manifestações populares que tomaram as ruas de Teerã e outras cidades
iranianas contra supostas fraudes no pleito que reelegeu Ahmadinejad para o segundo
mandato, em junho de 2009. Vistas pela tv, as cenas não eram muito diferentes daquelas
que eu presenciara ao vivo, sentada no banco de trás do Peikan 1968 de Hamid.
Apenas a proporção era maior.
“Malileh, isso é normal, essas críticas contra o governo e toda a gente sair nas ruas
para protestar contra uma decisão oficial?”, questionei. “Sim, é claro que é normal! Os
iranianos não se dobram facilmente!” Aí está a identidade persa, pensei. Mas não
escondo a surpresa pela coragem dos iranianos de enfrentar um regime que não
costuma medir violência contra dissidentes e opositores. Muitas vezes, em minha visita
ao Irã e ao acompanhar os protestos contra o resultado das eleições presidenciais em
2009, eu voltaria o pensamento para aquele manuscrito no painel do táxi de Hamid:
“Você tem o poder de mudar a sua vida”.
A relação do cinema de Manijeh com o feminino é visceral. Através das lentes de sua
filmadora, ela busca o tempo todo respostas para os dilemas da própria vida como
mulher, iraniana, mãe, muçulmana, profissional. Aos dezoito anos, com a cabeça
fervilhando de ideias, Manijeh iniciava a carreira como produtora e assistente de
direção de filmes, mas, foi surpreendida pelo regime islâmico e teve de se reinventar.
“Era como se alguém tivesse apertado o botão de pausa para as mulheres e a nossa vida
parou”, diz, sentada no sofá da produtora que ela criou e dirige, a Bamdad Film. Planos
e sonhos ficariam congelados pelos anos seguintes.
Não à toa, o primeiro longa-metragem que Manijeh, finalmente, conseguira
realizar como diretora, em 2002, foi Zendãn-e Zanãn, traduzido para o inglês como
Women’s Prison (Prisão de mulheres). O filme retrata dezoito anos da vida de três
mulheres em uma prisão feminina de Teerã — coincidência ou não, o tempo que
levou para Manijeh concretizar o sonho de dirigir um longa sozinha, desde que se
tornara cineasta. Em um enredo contado em tomadas fechadas, que chegam a causar
claustrofobia no espectador, ela fala de violência doméstica, pressão psicológica, suicídio,
execuções sumárias, dogmas, solidão, amizade e solidariedade entre mulheres, num claro
paralelo com as duas primeiras décadas após a revolução. Manijeh quase foi presa por
tentar exibir o filme, sem autorização, em uma inofensiva sessão caseira. A película levou
dois anos para ser aprovada e teve vinte minutos cortados, mas, surpreendentemente,
acabou liberada pelo governo. Quando isso aconteceu, porém, cópias do material já
tinham sido distribuídas mundo afora, exibidas em mais de oitenta festivais de cinema e
abarcado sete prêmios internacionais.
“Quando iniciei as filmagens, tive de apresentar o roteiro no nome do meu
marido (o também cineasta Jamshid Ahangarani) porque, do contrário, não seria
aprovado. Financiei a produção com dinheiro do meu próprio bolso. Era um projeto
de vida. Fiquei doente, achando que eles proibiriam o filme”, diz a iraniana. Em uma
das muitas negativas dadas pelo governo, Manijeh teve uma ideia. Já famosa àquela
altura por participar da produção de mais de vinte filmes, ela ligou para todos os amigos
e jornalistas que conhecia avisando que desistira da profissão de cineasta para vender
cigarros na porta do Palácio do Governo. Toda a imprensa registrou o momento em
que Manijeh postou-se à frente da residência oficial do presidente com uma banca de
maços de cigarro pendurada no pescoço. O Ministério da Cultura e Orientação
Islâmica acabou por lhe dar a autorização. “Às vezes, dá certo. É preciso tentar. Eles
podem até dificultar nosso trabalho, mas não podem nos eliminar a todas. As iranianas
aprenderam a conviver com isso. Se não podemos fazer de um jeito, fazemos de outro;
mas fazemos”, diz. Ela tira o hijab, traz o corpo esguio para a frente, acende um cigarro e
dá um longo trago. “A minha geração, de certa forma, ficou perdida no meio dessas
transformações todas. Mas, ao mesmo tempo, nós somos o elo entre o passado e o futuro
do Irã.”
Em seu último longa-metragem, 3 Zan (3 mulheres), Manijeh nos leva a
(re)descobrir três gerações de iranianas. É uma espécie de reconciliação da diretora
com o tempo e consigo mesma. Sob o hijab, Minu, uma mulher no auge de seus
quarenta anos (como Manijeh, diga-se), está à procura da mãe, Mah Leili, comerciante
de tapetes persas (não há nada mais representativo da tradição milenar iraniana do que
os magníficos tapetes persas, produzidos à mão com o mesmo cuidado de antes). Filha de
Minu, a jovem Pegah, protagonizada pela filha de Manijeh na vida real, desgarra-se e
some no mundo à procura de aventuras. Nessa busca pela mãe e a filha, Minu se dá
conta de que é ela quem está perdida.
Esse simbolismo diz muito sobre as iranianas de hoje. Elas estão situadas em algum
lugar entre Mah Leili e Pegah, entre tradição e modernidade, passado e futuro, família
e profissão, recato e liberdade sexual. Ao revisitar esses dois momentos da própria
história, Minu se reencontra na descoberta do fio condutor que une a todas elas: a
identidade persa, representada no filme pela tradição de fabricar tapetes.
Todas nós carregamos essa identidade persa. Com as nossas mães, aprendemos
as tradições e costumes. Aí, vieram a revolução, a guerra e o regime
opressor, mas atravessamos tudo isso e continuamos vivendo. Aprendemos a
driblar as dificuldades e nos tornamos mais fortes. Agora eu enxergo o futuro
através dos olhos da minha filha, que vive essa outra revolução, dos
computadores, aparelhos de celular e redes sociais que te colocam em
contato com o mundo o tempo todo,
analisa Manijeh. “Essas três gerações fizeram das iranianas mulheres muito poderosas.”
***
A entrada simples não dá sinais de que ali funciona o escritório de uma Nobel da
Paz. O prédio de três andares fica em uma pequena e tranquila via residencial a poucos
metros da arborizada praça Farhang. Corro os olhos pelos nomes ao lado dos números
dos apartamentos no interfone. Lá está. Uma discreta placa de bronze, em farsi e em
caracteres ocidentais, revela que estamos no lugar certo: Shirin Ebadi, advogada.
Malileh nos identifica rapidamente pelo interfone. A porta é aberta, descemos
alguns degraus até o subsolo e tocamos a campainha. Fui informada de que, por questões
de segurança, Shirin Ebadi procura não falar com jornalistas no Irã, mas apenas quando
está fora do país. Por isso, a entrevista não havia sido marcada. Mas eu decidira tentar
pessoalmente, na esperança de poder explicar a uma assistente ou funcionário dela que
venho de longe e a entrevista seria publicada somente no exterior, em português.
Talvez, assim, pudesse convencê-la a me atender.
Para a minha surpresa, no entanto, é a própria Shirin que nos abre a porta. Uma
senhora de estatura baixa, o hijab cobrindo-lhe discretamente parte dos cabelos curtos e
aloirados. “Salam Aleikom”, ela diz, nos cumprimentando com a saudação islâmica. E
aponta em direção à sala para onde deveríamos seguir. Sua voz é enérgica e ela parece
não ter tempo a perder. A recepção está lotada de mulheres.
No escritório espaçoso quase não há paredes. Estão cobertas de cima a baixo por
uma estante repleta de livros de direito internacional, literatura persa e religião. Meus
olhos desviam a atenção para os pequenos quadros apoiados sobre a estante e se
distraem tentando sem sucesso decifrar a caligrafia neles escrita. São versos de Hâfez, o
poeta do amor que, diz-se, sabia de cor o Alcorão. Intercalados com os livros e quadros
estão dezenas de agradecimentos a Shirin, homenagens, diplomas e a medalha de ouro
do Nobel da Paz.
Shirin retira o véu florido, jogando-o sobre os ombros. Então, senta-se descansando
o corpo contra o encosto da cadeira de couro e solta um longo suspiro. Parece exausta,
mas em segundos se recompõe. “E então, o que você quer saber?”, pergunta, dirigindo
o olhar para mim, porém, em farsi. Shirin tem inglês fluente, mas diz à Malileh que
prefere falar no idioma persa. A tradutora me pede a primeira pergunta.
“Os direitos humanos podem existir num estado teocrático?” Religiosa, porém
secular, Shirin responde que, sim, isso é possível. Mas, no entendimento dela, o direito
humano deve ser colocado em primeiro lugar e isso requer liberdade de escolha.
Numa teocracia, porém, os dogmas religiosos são impostos à população por aqueles que
estão no poder. Por isso, Shirin defende a separação entre Estado e Igreja, deixando a
religião como um direito de escolha individual. Se pudesse optar, Shirin usaria o hijab.
Mas, rechaça a ideia de que seja imposto, pois isso fere o sentido de manifestação da fé
existente na simbologia do adereço — assim como a cruz, usada por cristãos, e o quipá,
pelos judeus.
“O problema do Irã não é o islã”, me diz Shirin. Profunda conhecedora do
Alcorão, no qual baseia todas as suas teses de defesa como advogada, Shirin mostra não
existir nada de incompatível entre o islã e a democracia ou os direitos humanos no livro
sagrado. E acusa os líderes iranianos de usar uma interpretação falsa das doutrinas de
Maomé para legitimar injustiças cometidas. “O governo do Irã é antidemocrático, não o
islã. Há muitos governos ditadores, que violam os direitos humanos, inclusive na
América Latina, e não são Estados islâmicos. E há exemplos como o da Malásia, uma
nação predominantemente islâmica e democrática.” O país do sudeste asiático tem o islã
como doutrina oficial do Estado, porém, a Constituição garante a liberdade religiosa a
todos os cidadãos.
Eu reformulo, então, a pergunta: “A democracia pode prevalecer no Irã?”. Mas a
visão da Nobel da Paz sobre democracia é muito particular e vai além do senso comum.
“Os líderes iranianos chegaram ao poder pelo voto da maioria, pelas mãos do povo. E
não podemos nos esquecer de que muitos ditadores chegam ao poder assim, por meio
da democracia. Hitler foi um deles”, diz ela, enfática. Mas o que isso nos revela? “Isso
mostra que o mundo precisa de um novo entendimento sobre a democracia. Não
somente o voto, mas o compromisso com os direitos humanos deveria legitimar um
governo no poder.” Fosse assim, o Irã teria um longo caminho a percorrer.
No sistema de Justiça, por uma interpretação da lei islâmica (sharia), a mulher vale
exatamente a metade de um homem. Ou seja, se ocorrer um acidente de carro, o
seguro pago, se a vítima for mulher, será a metade do valor do que seria pago a uma
vítima do sexo masculino. Em um tribunal, um homem tem o mesmo peso de duas
mulheres como testemunha. Na vida familiar também existem desigualdades. Um
homem pode ter quatro mulheres e elas só podem se divorciar com autorização do
marido. No divórcio, a guarda dos filhos maiores de sete anos é dada aos pais, e as mães
não têm direito a nada. “Mas tudo isso se deve a uma interpretação errada do Alcorão e
da sharia”, defende Shirin. Segundo acredita, o islã, assim como qualquer outra religião,
está sujeito a interpretações. Pode ser usado para oprimir as mulheres ou para libertá-
las.
A mulher não é a única vítima desse entendimento discriminatório das leis.
Cristãos, judeus e zoroastras só podem ter um representante no parlamento. E não
podem ser ministros, juízes ou presidente. “Essas minorias não têm direitos no Irã”,
revela Shirin. Ela explica, por exemplo, que o seguro de vida pago pelo governo às
famílias tem valores diferentes, de acordo com a religião. Se um pai morre, sua herança
deve ser dividida igualmente entre os filhos, mas se apenas um deles se converte ao islã,
todo o dinheiro vai para este. “O regime se aproveita dessa lei para convencer os
jovens a se converterem”, diz a jurista. Mesmo dentro do islã há discriminação. Com
90% da população xiita, desde a Revolução Islâmica o governo iraniano nega aos sunitas
o direito de construir a sua mesquita. É contra isso que Shirin luta, incansável.
Sobre a sua mesa de trabalho, há muitos papéis empilhados, o celular para o qual ela
desvia o olhar discretamente minuto a minuto, um prato e o copo de chá vazios,
indicação de que seu almoço fora ali mesmo. Num porta-retrato, a frase: “Se queres a
paz, prepara-te para a guerra”. Guerra que para ela dura mais de três décadas. Aos 31
anos, Shirin foi a primeira mulher a se tornar juíza no Irã. À frente de seu tempo, a
advogada engajou-
-se na luta para derrubar a ditadura do xá Reza Pahlevi. Com um grupo de
revolucionários, invadiu o prédio público onde ficavam os ministérios, numa tentativa
de depor o próprio chefe, então ministro da Justiça do monarca. No hall de entrada foi
surpreendida por um respeitado procurador que, apontando-lhe o dedo, desabafou aos
gritos: “Você? Entre todos, por que você está aqui? Então não sabe que está dando
apoio a pessoas que irão tirar seu emprego se chegarem ao poder?”.
Shirin não sabia. Ela acreditava no desejo genuíno do líder espiritual aiatolá
Ruhollah Khomeini de instaurar no país uma verdadeira democracia. “Prefiro ser uma
iraniana livre a uma juíza escravizada”, respondeu, desafiando o jurista.
Com quem eu teria mais coisas em comum, afinal: uma oposição liderada por
homens religiosos, que falavam num tom muito familiar aos iranianos comuns,
ou a corte extravagante do xá, cujos oficiais saltitavam com jovens estrelas
americanas, em festas regadas a caríssimas garrafas de champanhe francês?
Obviamente não à corte, que tinha entre os fiéis apenas os próprios
cortesãos, alguns altos oficiais e famílias enriquecidas pelos negócios ligados à
monarquia. A maioria no país identificava-se mais com a oposição, que incluía
nacionalistas seculares, socialistas e marxistas. Entre estes opositores, os mulás
falavam mais alto; os clérigos tinham na rede de mesquitas espalhadas por
todo o país um palanque, no qual puderam levantar o tom e se organizar.
Não parecia tão alarmante que assumissem o poder,
escreveu Shirin em seu livro, Iran Awakening. From Prison to Peace Prize: One Woman’s
Struggle at the Crossroads of History (O despertar do Irã. Da prisão ao prêmio Prêmio
pela Paz: a luta de uma mulher na encruzilhada da história, em tradução livre).
Nessa autobiografia, escrita em coautoria com a amiga Azadeh Moaveni, Shirin
relata como aquela sensação de injustiça e desejo por mudança contaminou toda a
população até que, em 16 de janeiro de 1979, o xá deixou o Irã levando consigo
apenas uma caixa com um punhado de terra iraniana. “O povo lotou as ruas,
celebrando”, conta. Dezesseis dias depois, o aiatolá Khomeini desembarcaria em Teerã.
As forças armadas, ainda leais ao xá, colocaram suas tropas e tanques nas ruas e os militares
assumiram o governo em muitas cidades. Naqueles dias, Khomeini teria ordenado ao
povo que se recolhesse em suas casas no pôr-do-sol. E que subissem ao telhado às 21
horas, todas as noites, para a nação inteira gritar junta: Allaho akbar (Deus é o maior!). “A
tática revelou quão efetivamente o aiatolá era capaz de jogar com o sentimentalismo
religioso das massas em sua campanha contra o xá.” Khomeini tinha o povo sob controle;
os iranianos estavam inebriados por aquele momento. Até os soldados e policiais do xá
se deixaram impressionar e acabaram se juntando à massa. O comando militar declarou
que não assumiria nenhum dos lados, pondo fim à resistência contra a Revolução
Islâmica.
“Não levou nem um mês até que eu me desse conta de que, na verdade, eu tinha
por vontade própria e entusiasticamente participado de meu próprio fim”, escreveu
Shirin. Chocada com os abusos do regime praticados contra as mulheres, Shirin se
tornou uma ativista. Em casa, obrigou o marido a assinar em cartório um documento em
que abria mão dos direitos concedidos a ele no casamento pelo novo regime islâmico,
como a guarda dos filhos e a posse de todos os bens do casal. O contrato nupcial se
tornaria um procedimento relativamente comum entre os casais mais modernos, nas
grandes cidades.
Profissionalmente, Shirin julgou estar acabada. As mulheres não podiam mais
sequer exercer uma profissão e a advogada foi impedida de atuar no Judiciário, lei que
prevaleceu no Irã até 1992. Foi quando Shirin obteve uma licença para voltar a
advogar, embora não no Judiciário. A forma que encontrou de continuar trabalhando
foi prestar serviços pro bono como advogada particular. Passou a atender, então, aqueles
sem acesso à Justiça. Em três décadas do regime, a advogada defendeu estudantes,
jornalistas, perseguidos religiosos e políticos, dissidentes presos, mulheres vítimas das mais
diversas violações de direitos, familiares de iranianos mortos sob custódia do Estado.
Quando eu estava no Irã, Shirin defendia a acadêmica americana de origem
iraniana Haleh Esfandiari, chefe do departamento de Oriente Médio do Woodrow
Wilson Center for Scholars, com sede em Washington, Estados Unidos. Acusada pelo
Ministério da Inteligência do Irã de tentar organizar uma rede de iranianos para uma
revolução, Esfandiari, que estava no país para visitar a mãe, fora detida na prisão Evin. A
prisão de Esfandiari reacendeu a crise diplomática entre Irã e Estados Unidos. Quando
foi presa, só deixaram que ela fizesse uma ligação telefônica e foi para o escritório de
Shirin Ebadi que ela ligou, pedindo ajuda. Aos 68 anos, Esfandiari permaneceria
incomunicável durante 110 dias em uma solitária.
Shirin também defendeu os pais da fotógrafa canadense de origem iraniana Zahra
Kazemi, morta em Evin, em 2003, caso que relato no capítulo 11 deste livro. Ela
tentava provar, na Justiça iraniana, que Zahra fora assassinada. O caso permanecia em
aberto.
Em 1999, a própria Shirin enfrentou quase três meses na temida prisão de Evin,
onde estão os presos políticos. Sobre a experiência, relatou a mim, naquela conversa em
seu escritório:
As celas são pequenas, sem janelas. Uma luz fluorescente fica acesa 24 horas
para que você nunca possa dizer o horário. Realmente perde-se a noção do
tempo naquele lugar. Não há acesso a livros, tv, jornais. Até meus óculos
foram tirados de mim. Na minha cela havia apenas um tapete sujo no chão e
dois cobertores, nenhum travesseiro. Eu me sentia muito desconfortável. Foi
uma experiência estressante, mas, ainda assim, melhor do que a de muitos
colegas. Inúmeras denúncias chegam de Evin.
Após sua libertação, Shirin passou a ser intimidada publicamente. E encontraria,
entre documentos sigilosos do governo iraniano, aos quais teve acesso, a própria
sentença de morte. Sua organização, o Centro para a Proteção dos Direitos Humanos,
foi banida em 2002. Acreditavam poder calar Shirin dessa forma. Estavam enganados. O
Nobel da Paz, em 2003, rendeu-
-lhe, além de 10 milhões de coroas suecas (algo como R$ 3 milhões), um enorme
prestígio internacional, que Shirin usa para garantir a própria proteção e para tornar
mundialmente públicas as violações do regime. Com isso, Shirin poderia ter deixado o
país muito antes, mas decidiu ficar.
Desde que se tornou uma Nobel da Paz, Shirin enfrentou cada vez mais pressão. Sua
autobiografia foi proibida de circular no Irã pelas autoridades, seu escritório foi
invadido e a medalha do Nobel confiscada pelo governo. Dessa vez, a população estava
com ela, mas não foi sempre assim. Nos primeiros dias após a revolução, Shirin teve de
enfrentar até colegas e os jornais iranianos. “Eles me discriminavam, me chamavam de
feminista, como se isso fosse um defeito. Naqueles tempos, ninguém sabia o que eram
direitos humanos”, revela. Ao longo dos anos, porém, trabalhar pela defesa dos direitos
humanos se tornou um valor. A percepção das pessoas mudou em todas as partes do
mundo. Censura, perseguição à imprensa e aos jornalistas, prisão de estudantes,
dissidentes e acusados sem provas, limites à liberdade de expressão, execuções sumárias,
tudo isso passou a ser rechaçado pelas sociedades civis mundo afora, com o crescimento
das organizações não governamentais.
Apesar da situação e das dificuldades encontradas, Shirin acredita na força da pressão
internacional sobre o governo iraniano. “Eles tentaram me prender três vezes, mas a
repercussão foi tão grande que desistiram da ideia”, diz. Shirin explica também que, em
algumas situações, a Justiça iraniana funciona bem. Mas não nas questões políticas ou
religiosas. “Nestes casos, a Justiça no Irã está contaminada”, ela diz, complementando que
o governo iraniano não deixa claras as acusações contra presos, mantém em cárcere
pessoas sem julgamento, dificulta o acesso dos réus a advogados de defesa, limita visitas
dentro dos centros de detenção. Muitas das prisões são feitas sob a acusação de ameaça à
segurança nacional, cuja definição é abrangente e subjetiva — o crime prevê pena
capital.
Eu quero saber se Shirin Ebadi não tem medo, por si própria e pela família.
O perigo de prisão e morte sempre existiu e sempre existirá no futuro para
mim. Mas eu não presto atenção nisso, não deixo que tome conta de mim.
Tenho uma missão e vou continuar o meu trabalho. Eu sou uma defensora
de direitos humanos e tenho de estar presente e defender meus clientes. É
claro que é horrível ver seu nome numa lista negra e saber que a sua vida
corre risco. Mas quando se está no meio do mar, desesperar pode levar à
morte. Minha única alternativa é seguir nadando.
Prevendo o resultado nas urnas, Shirin deixou o Irã em 2009, um dia antes das
eleições que levaram o presidente Ahmadinejad ao segundo mandato. O marido
permaneceu em Teerã para cuidar dos interesses da família. Shirin e as filhas foram para
a Europa, mas o trabalho continuou. A ativista passou pela Alemanha, Inglaterra e
Canadá e continuava levando denúncias contra o regime aos governos e organizações
internacionais de direitos humanos. “Esse governo sequestrou minha irmã (Nooshin
Ebadi ficou dezessete dias na prisão após as eleições de junho de 2009) e a manteve em
condições terríveis para que eu me calasse. Só o que eles querem é me silenciar, mas
perceberam que não adianta. Porque, desde que saí do meu país, estou atuando junto ao
Conselho de Direitos Humanos da onu que, em dezembro, condenou o Irã por
violações antes e após o pleito presidencial”, disse Shirin, em uma segunda entrevista,
por telefone, sobre a aproximação mais intensa entre Brasil e Irã.
Shirin tentava pressionar a comunidade internacional para que esta isolasse
politicamente o Irã, mas não impusesse sanções econômicas “que só prejudicam o povo
iraniano”, em sua opinião. Por isso, nessa segunda entrevista que fiz com a Nobel da
Paz, Shirin tinha um recado para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Lula não
deveria se unir a governos criminosos”, imprimiu em um alto de página o jornal O
Estado de S. Paulo, que publicara a entrevista no dia 23 de janeiro de 2010. Referia-se à
visita oficial de Ahmadinejad ao Brasil, em novembro de 2009, retribuída por Lula, em
maio de 2010. “Será que ele (Lula) não vê o que está acontecendo nas ruas de Teerã?
Como pode fazer amizade com um governo que mata seus jovens e estudantes, sua
gente?”, desabafou.
As amizades do presidente brasileiro preocupavam Shirin na mesma medida em
que o Brasil passava a ocupar uma posição de destaque cada vez maior no cenário
internacional. O Conselho de Segurança da onu discutia novas sanções contra o
programa nuclear do Irã e o Brasil ocupava desde o dia 1º de janeiro de 2010 uma
vaga não permanente no órgão, tendo de se posicionar politicamente, diante da
comunidade internacional, sobre as questões envolvendo o país. No lugar do embargo
econômico, Shirin defendia o isolamento político do presidente Ahmadinejad. Por isso,
a bronca que dirigia ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O discurso de Shirin perante o mundo parecia cada vez mais raivoso. Sua voz
aumentava na mesma medida da violência contra dissidentes no país. “Ouçam a voz dos
iranianos”, ela apelava. Os protestos contra o regime aumentavam a cada dia. Em todas
as cidades, e não só em Teerã, o povo saiu de casa para protestar nas ruas contra o
governo. Essas manifestações eram contidas com grande violência. No início de 2010,
seis meses após a reeleição de Ahmadinejad, o governo falava oficialmente em cinco
mil presos. “Mas sabemos que são mais”, disse Shirin, relatando em seguida o episódio
ocorrido na Universidade de Teerã, em que homens armados invadiram os dormitórios
às três horas, quando os estudantes dormiam. Cinco deles foram assassinados.
“A situação dos direitos humanos vinha piorando nos últimos cinco anos (período
de Ahmadinejad na presidência), mas após as eleições de 2009 se tornou calamitosa”, diz.
“Me surpreende que o Brasil...” Shirin faz uma pausa. Depois, segue exaltada:
Será que o povo brasileiro sabe o que o governo iraniano faz nas ruas ou às
escondidas? Será que não se pergunta por que seu governo despreza as
violações dos direitos humanos no Irã? Entristeceu-me muito ver o
presidente Lula reconhecer publicamente a vitória de Ahmadinejad para
um segundo mandato tão rapidamente. Como pôde fazer isso? Como seu
presidente pode se unir a um governo que tortura e mata seus estudantes e
jovens, sua gente nas prisões, oponentes e minorias? Diga aos brasileiros que
peçam ao presidente para não ir ao Irã. Lula não deveria fazer amizade com
governos criminosos.
Manifestações contra a aproximação dos dois países continuavam reverberando
mundo afora com a notícia da intensificação de prisões e execuções após a reeleição do
presidente Ahmadinejad.
20. De malas
prontas para a prisão
3 de agosto de 2007:
Cara Adriana,
Obrigada pela sua solidariedade. (...) Dessa vez, nós recebemos uma
condenação em família: minha esposa, o sobrinho dela, nossa filha e eu. Tudo
isso é para intensificar e aumentar a pressão sobre mim e impedir que eu
continue com as minhas atividades. Ao mesmo tempo em que determinaram
essa sentença, eles (o Judiciário) fizeram outras duas acusações contra mim: uma
na Corte de Imprensa e outra na Corte Revolucionária (que lida com
assuntos de segurança nacional). (...) Eles decidiram fechar a Sociedade de
Defensores dos Direitos dos Presos. Por agora, estou determinado a
continuar as minhas atividades à frente da organização e da Associação Pelo
Direito à Vida e a Sociedade dos Defensores Iranianos da Paz e ver quais
serão as consequências desses esforços. Mantenho firmemente a minha posição
e acredito que devo seguir com as atividades em favor da liberdade e dos
direitos humanos em quaisquer circunstâncias e a prisão não me impedirá
disso.
Sábado, eu me apresentarei à Corte. Despeço-me aqui, caso não
retorne.
Desejo o melhor a você e seus amigos e um mundo de paz, liberdade e
espiritualidade.
Emadeddin Baghi
A carta chegou em resposta a um e-mail que eu havia encaminhado dias antes ao
ler em um site internacional de direitos humanos sobre a possível prisão de Emadeddin
Baghi, a quem eu entrevistara em Teerã apenas duas semanas antes. Jornalista, escritor,
teólogo muçulmano, ativista e integrante do movimento que defende reformas políticas
no Irã, Baghi me recebeu no escritório da Sociedade de Defensores dos Direitos dos
Presos que vinha reunindo informações sobre tortura e outros abusos nas prisões
iranianas e sobre execuções sumárias, principalmente de jovens, pelo Estado. Eu
chegara até ele por indicação de um amigo, que trabalha para uma organização de
direitos humanos com sede em Genebra. Naquele momento, entidades internacionais
tentavam pressionar o governo iraniano para liberar Baghi de nova sentença pela
Corte Revolucionária, desta vez a três anos de prisão, proferida em junho de 2007.
A primeira vez que Emadeddin Baghi entrou na temida Evin foi nos dias
seguintes à Revolução Islâmica. Então com dezoito anos, ele fora visitar as celas onde
opositores do monarca recém-deposto haviam sido torturados. O revolucionário, que se
engajara na luta armada para derrubar o xá e instaurar a sonhada democracia islâmica,
sob o comando do líder espiritual Ruhollah Khomeini, só não imaginava voltar ali
como prisioneiro, anos depois, pelas mãos do mesmo regime que ajudou a colocar no
poder. “Vivo com as malas prontas para a prisão”, disse durante a nossa conversa.
Baghi aproveitou os primeiros três anos no cárcere, entre 2000 e 2003, para
estudar a história contemporânea do Irã. Saiu de lá pronto para seguir defendendo o
que acredita. Sua luta começou aos dezesseis anos. Neto de um clérigo xiita, filho de um
mercador e ativista político exilado no regime dos xás, Baghi nasceu em Kerbala, no
Iraque. De volta ao Irã, aos quinze anos, formou um grupo de jovens para lutar pela
revolução. Renovado pelos ideais de democracia islâmica, dedicou doze anos à vida de
seminarista, estudando teologia e filosofia religiosa nas madrassas de Qon, reduto de
clérigos e pelo menos duzentos centros de estudos islâmicos. Por isso, é tão perseguido.
Ele desafia o regime dos aiatolás naquilo que lhes é mais valioso: a interpretação do
Alcorão, base da jurisprudência iraniana. Seus artigos em defesa dos direitos humanos
foram publicados em jornais do país — todos, em consequência, fechados pelo Judiciário
— e em vinte livros, seis deles banidos.
No diário Fath (Vitória, em farsi), Baghi e o amigo Akbar Ganji, também jornalista,
publicaram reportagens investigativas sobre a execução de mais de oitenta intelectuais e
ativistas políticos seculares no fim dos anos 1990. Entre eles, estava um amigo de Baghi,
Saeed Hajjarian. A denúncia expôs diretamente o envolvimento do então ministro da
Informação, Ali Fallahian, obrigando-o a admitir, pela primeira vez na história do Irã, o
envolvimento de agentes da polícia secreta no assassinato de opositores. A condenação
de Baghi, em 2000, foi selada sob a alegação de que seus artigos contra a pena de morte
eram anti-islâmicos. Fallahian estava entre os acusadores.
Em liberdade, Baghi fundou em 2003 a Sociedade de Defensores dos Direitos dos
Presos. Em 2004 foi sentenciado a mais um período na prisão após ser interceptado
pelas autoridades iranianas quando embarcava para Nova York para receber um
prêmio. De lá, ele seguiria para o Canadá, onde participaria do 2º Congresso Mundial
Contra a Pena de Morte. Seu passaporte foi confiscado e Baghi impedido de deixar o
Irã desde então. Novamente libertado, fundou a Associação Pelo Direito à Vida, em
2005. A organização tem como objetivo pressionar as autoridades a abolir a pena de
morte no Irã. “Se for necessário, para levar adiante a democracia e a espiritualidade no
Irã, eu estou pronto para voltar à prisão”, declarou naquela entrevista.
Baghi compartilha da opinião de Shirin Ebadi sobre o Estado teocrático. “Usar o
islã politicamente remove o lado sagrado da fé.” Faço a ele, então, a mesma pergunta
que fiz à Nobel da Paz: a democracia pode prevalecer num Estado islâmico?
O problema no Irã não é religião, mas um sistema repressor que quer se
manter no poder e usa a religião para isso. Dizem que a democracia é
incompatível com o islã por se basear no individualismo e na razão, ao invés
da fé. Mas estão errados. Fazem parte de um grupo pequeno de clérigos que
dominam a política e controlam a mídia. Há outros cem mil clérigos no Irã
que propagam a fé em suas comunidades e conviveriam bem com um
governo independente,
defende Baghi.
Influenciada pela imagem do radicalismo atribuído ao islã no Ocidente, eu insisto
na questão: Liberdade e direitos humanos podem existir num Estado islâmico?
Os fundamentos dos direitos humanos têm apenas duzentos anos. Mas, se
olharmos para nossa herança cultural, veremos a mesma visão filosófica e
humanística na tradição mística do islã. Muitos acreditam que sua rápida
expansão se deu por conta disso. E a decadência veio quando a tolerância foi
substituída pelo dogmatismo religioso e a rigidez. O islã foi reduzido a uma
visão inflexível, baseada em jurisprudência, que permite que prevaleçam
sistemas totalitários. Essa é a causa do declínio da civilização islâmica,
sentencia Baghi. Mas, por que então ele lutara pela revolução para levar os aiatolás ao
poder? “O que movia a geração da revolução eram ideais de liberdade contra o
governo despótico dos xás. Queríamos a democracia islâmica, não outra ditadura”,
explica. O teólogo acredita que o secularismo no Irã florescerá pelas mãos da sociedade
civil. “Eles (os aiatolás) estão ajudando a separar o islã do Estado, sem se dar conta, à
medida que defendem, muitas vezes, posições anti-islã, cometendo atrocidades e
perseguição à população para dominarem pelo medo”. Vítimas desse regime, os
iranianos estão, pouco a pouco, se dando conta de que não há outro caminho senão
separar política e religião, governo e clérigos.
O que mais irrita os aiatolás é o fato de Baghi ser, ele próprio, um religioso — e
um dos homens muito próximos de Khomeini no passado. Seu primeiro livro, Um
estudo sobre os clérigos, foi banido pelo então líder supremo, assim como as publicações
seguintes, Realidades e julgamentos, de 1991, em que discutia o tratamento dado pelos
líderes religiosos contra opositores; e A tragédia da democracia no Irã, de 1998. Em Right
to Life (Direito à vida, em duas edições), Baghi defende a abolição da pena de morte no
Irã, usando como argumento textos do Alcorão e a jurisprudência islâmica.
Considerado uma ameaça à segurança nacional, Baghi seria interrogado pelas
autoridades iranianas 23 vezes entre 2004 e 2009. E, apesar da pressão internacional,
por parte de entidades como Anistia Internacional, Repórteres Sem Fronteiras, Human
Rights Watch e do Alto Comissariado da onu para Direitos Humanos, Baghi voltou para
Evin em 14 de outubro de 2007, aos 52 anos.
Desde então, eu acompanho o caso através de e-mails enviados pela família de
Baghi. “Não permitiram que fizesse sequer uma ligação ou que os advogados o
visitassem”; “Confinado em uma solitária, teve convulsões e foi transferido para um
hospital”; “Em novo interrogatório na Corte Revolucionária, Baghi sofreu um enfarte.
As autoridades iranianas o mandaram de volta à cela na mesma noite”; “Ele se nega a
usar algemas e capuz, tratamentos ilegais contra presos segundo leis internacionais, e por
isso as autoridades de Evin não o deixaram ir ao banheiro por quatro dias”; “Baghi está
sofrendo de problemas no rim e na bexiga. Peço que você reze por sua saúde. Que
Deus possa ajudá-lo a enfrentar e tolerar esses tempos de dificuldades.”
A pressão sobre a imprensa, os jornalistas simpatizantes do movimento reformista e
dissidentes têm se intensificado na mesma medida da pressão por parte da comunidade
internacional sobre o regime islâmico. As leis iranianas limitam a liberdade de expressão
com base em provisões vagas do Código Penal em relação à “segurança nacional”.
Embora o governo não pratique, às claras, a censura prévia, o Judiciário pode
determinar o fechamento de meios de comunicação com base no artigo 24 da
Constituição. Este confere a liberdade de expressão e de opinião a todas as publicações,
porém, desde que elas estejam de acordo com os fundamentos do islã e a moral da
sociedade.
A imprensa tem sido o principal alvo de controle do governo. No ano anterior às
eleições presidenciais que reelegeram Ahmadinejad, pelo menos trinta jornais
reformistas foram fechados. No passado, eles costumavam reabrir as portas sob novo
nome, mas um artigo da lei de imprensa proibiu jornais banidos de fazerem isso. O
Estado é dono da maioria das duas dezenas de impressos ainda em circulação. O
Ministério da Cultura e Orientação Islâmica também baniu o serviço persa da britânica
bbc. O governo mantém o monopólio das tvs, com oito rádios nacionais e uma de ondas
curtas para o exterior, quatro tvs nacionais e quatro canais internacionais de notícias.
Antenas parabólicas são proibidas desde 1994.
A internet também é controlada. Os serviços são fornecidos, principalmente, pela
estatal Companhia de Telecomunicações do Irã. O Parlamento estuda endurecer as leis
contra ofensas feitas pela internet. A partir de janeiro de 2007, o Estado passou a exigir
o registro oficial de sites. Estima-se em mais de 10 milhões as páginas com acesso
bloqueado. E, desde 2008, blogueiros foram presos e blogs tirados do ar. Por sua vez, o
presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, começou a investir na criação de um
novo — e mais moderno — aparato estatal nas áreas de cultura e entretenimento, com
a produção própria de minisséries de tv, um canal de notícias em inglês com transmissão
para o exterior e web sites oficiais de seu governo.
Com o monopólio da produção televisiva e orçamento cinco vezes maior que o
do Ministério da Cultura, a gigante estatal de radiodifusão Irib, diretamente
subordinada ao líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, lançou minisséries nacionais na
linha de sucessos americanos como Friends. Direcionadas aos jovens, exibem cenas antes
impensadas no Irã, como mulheres europeias sem o véu islâmico. Porém, mesmo as
histórias de amor e amizade carregam mensagens políticas. Em julho de 2007,
Ahmadinejad inaugurou a emissora estatal via satélite Press tv, com notícias 24 horas em
inglês. O canal tem 50% de investimento privado, mas seu conteúdo é totalmente
controlado pelo Estado. No discurso de inauguração da emissora, Ahmadinejad fixou
como uma de suas missões “expor as notícias propagandistas dos inimigos”.
Internamente, o governo controla todo o conteúdo de radiodifusão e tenta bloquear o
acesso a canais como bbc e cnn. A Press tv também conta com um site de notícias em
tempo real, alimentado por quase quatrocentos jornalistas, entre eles 26
correspondentes internacionais, em cidades como Washington, Nova York, Londres,
Beirute e Damasco.
A perseguição a jornalistas se acirraria imensamente nos meses após a reeleição de
Ahmadinejad, em resposta ao levante dos apoiadores do opositor Mousavi. Sabendo
disso, eu escrevi para um parente próximo de Baghi, no auge dos protestos contra
fraudes nas eleições presidenciais de junho de 2009. No e-mail, eu pedia informações
sobre a real situação no país e um número de telefone por meio do qual eu pudesse
falar com a família.
19 de junho de 2009:
“Sim. Sei quem você é e me lembro de você, mas a situação atual é terrível.
Agentes de segurança estão por toda parte. Aparelhos de celular e a comunicação via
sms foram cortados. Estamos sob vigilância. Não telefone, por favor. Nem para mim nem
para Emaddedin”.
Diante das ameaças, eu mesma me peguei tomando cuidados de forma a evitar que
meus e-mails não chegassem até iranianos que eu conhecera e sobre os quais eu buscava
notícias frequentemente após a minha volta ao Brasil. No corpo dos e-mails que
disparei pedindo informações, eu dizia apenas “see attached” (veja o anexo). Em uma
das mensagens, quando do julgamento de Baghi logo após a minha volta, intitulei o
documento, “POR FAVOR, LEIA”, em letras garrafais e somente no corpo do
arquivo foi que escrevi a Baghi: “Caro Emad, acabo de ler sobre a sentença à prisão
determinada ao senhor, sua esposa e filha (...). Por favor, me atualize sobre o assunto”.
É uma sensação estranha para quem, como eu, não conhecera diretamente o peso
de uma ditadura, embora tenha nascido no início dos anos 1970, em pleno regime
militar no Brasil. Eu era ainda muito criança, meus pais não tinham ligação com qualquer
movimento político, atividade clandestina ou tampouco a universidade. Vivíamos no
subúrbio de Santos, litoral paulista, como uma típica família brasileira de classe média
baixa, preocupada com o preço do leite, a fila da carne e a inflação. É a única lembrança
que tenho daqueles tempos.
Naquela ocasião, após os protestos, tomei os mesmos cuidados. Diante da resposta,
respeitei o pedido do irmão de Baghi para que não telefonasse à família, embora tivesse
o número em mãos. Mas eu estava ansiosa por informações. As notícias que chegavam do
exterior sobre Baghi eram contraditórias. Para uns, o ativista continuava preso. Outros
diziam que a sua saúde era extremamente precária e, por isso, ele estaria sendo mantido
no hospital do sistema carcerário. Por muito tempo, a família deixara de mandar notícias,
o que me fazia acreditar que Baghi poderia estar solto ou em prisão familiar. Minhas
dúvidas foram esclarecidas quando, em dezembro de 2009, seis meses após os episódios
violentos que sucederam a reeleição de Ahmadinejad, recebi um e-mail da família, o
primeiro com informações sobre Baghi desde o pleito presidencial.
28 de dezembro de 2009:
Caros amigos,
Informo que hoje (segunda-feira) às 6h45 da manhã quatro homens
armados (não uniformizados) invadiram a casa de Baghi e o levaram. Outros
militantes à paisana vigiavam a porta enquanto os demais o capturavam. (...) É
preciso dizer que ele foi severamente espancado pelos homens armados. Eles
o ameaçaram de morte. Quando se despedia da família, Baghi leu um trecho
do Alcorão sobre tolerância e paciência em tempos difíceis, mas um dos
homens disse: “Sua vida será curta o suficiente para ver o futuro”. Não
sabemos onde Baghi está.
A família só soube que Baghi estava vivo dias depois, por meio de um
amigo, que havia estado preso em Evin durante a onda de protestos, e fora
libertado em seguida: “Eu ouvi a voz de Baghi”. Mais tarde, a família teria
informações de que Emaddedin estava sendo mantido na cela 209 da prisão
Evin, controlada diretamente pelo Ministério da Inteligência. Como ele, há
muitos.
Baghi podia até estar de malas prontas para a prisão, mas naquela manhã até mesmo
ele foi pego de surpresa. Às 6h45, quando os quatro homens, todos armados e não
uniformizados, invadiram sua casa, ninguém sabia sequer quem eram aqueles homens.
Eles agrediram o cunhado de Baghi violentamente, ameaçaram a mulher e as duas filhas
do casal e o levaram sem deixar pistas. A suspeita é que Baghi tenha sido levado por
milicianos da Guarda Revolucionária, à paisana. Infiltrados nos bairros onde viviam, eles
foram extensamente usados pelo regime para identificar e prender dissidentes logo
após a Revolução Islâmica, em 1979, instaurando um clima de desconfiança que perdura
até hoje entre os iranianos.
A motivação, desta vez, teria sido a exibição de um vídeo inédito, pelo serviço em
farsi da tv britânica bbc, em que Baghi entrevista o braço direito de Khomeini durante
a revolução, aiatolá Ali Hussein Montazeri, que havia morrido no dia 19, aos 87 anos.
Montazeri era o mais ferrenho e proeminente crítico do regime islâmico, apesar de ter
sido um dos líderes da revolução ao lado de Khomeini. Por sua reputação como
religioso, Montazeri era também o mais ouvido e respeitado dissidente. Embora fosse
um conservador, ele acusava os aiatolás de conduzir a nação de forma anti-islâmica, como
classificava as violações de direitos humanos. Com seu discurso por justiça social,
Montazeri desafiava o discurso dos aiatolás no poder, especialmente do líder supremo
aiatolá Ali Khamenei, quando este tentava usar o islã para legitimar ações de opressão
contra civis. Ao demonstrar o espírito de compaixão contido na religião islâmica,
abarcava grande parte dos clérigos iranianos e representava uma ameaça ao regime.
Após seis anos de prisão domiciliar, entre 1997 e 2003, e longo período de
silêncio, Montazeri fizera uma crítica direta à forma como Ahmadinejad conduzia a
questão nuclear, embora concordasse com o direito do Irã de desenvolver energia
atômica para fins pacíficos. “Suas provocações só criam problemas ao país”, disse,
acusando o presidente iraniano de governar com ideologia, enquanto a economia do
país afundava. Pouco antes de morrer, Montazeri voltou à fala, colocando publicamente
em dúvida os resultados das eleições que deram o segundo mandato a Ahmadinejad.
Convocou a nação para um luto coletivo pelas mortes de manifestantes. E, em suas
últimas palavras, acusou o regime de não ser nem islâmico nem uma república. Para
Baghi, Montazeri era acima de tudo um mentor e amigo, com o qual compartilhava
ideias muito semelhantes e costumava repetir as seguintes palavras: “Quando há medo,
o despotismo prevalece”.
Após a prisão de Baghi em dezembro de 2009, porém, o medo se tornara uma
perturbação constante entre os familiares do ativista. A saúde de Baghi realmente não
era boa, desde a prisão entre 2007 e 2008 numa solitária sem luz ou ventilação, onde
quase morreu. Diante da falta de informação sobre seu destino, havia um imenso temor
de que o ativista tivesse o mesmo destino de Ali Mousavi, morto durante confrontos
entre policiais e opositores em Teerã. Ele era sobrinho do candidato de oposição nas
eleições presidenciais de junho, Mir Hossein Mousavi. O sobrinho de Baghi, o jornalista
Mohammad Ghochani, também estava preso desde as eleições. A mulher e a filha
vinham sendo chamadas a depor e ameaçadas de prisão. Sua angústia só terminaria quase
quatro meses após Baghi ter sido levado.
23 de abril de 2010:
Cara Adriana,
Na quinta-feira, visitamos Baghi e conversamos com ele por uma cabine
telefônica para acesso aos presos em Evin. Ele se mantém extremamente
forte, mas suas condições físicas, dores nas costas, dificuldades de respirar e o
coração fraco, são problemáticas. Amanhã (domingo) é seu aniversário e a
família fará uma celebração e homenagem, mesmo sem a presença dele.
No dia 12 de junho, aniversário de um ano desde os protestos contra a reeleição
de Ahmadinejad, a comunidade baha’i no Brasil realizou uma manifestação pela
“libertação imediata” de todos os prisioneiros no Irã. Informados por reportagens
publicadas no Estadão, pediram especialmente por Emadeddin Baghi.
18 de junho de 2010:[6]
Cara Adriana,
Obrigada pela informação. Eu ficaria agradecido, do fundo do meu
coração, se você pudesse manter meu e-mail em segredo por questões de
segurança.
(...)
Nossa família pôde visitar Emad na segunda-feira, quando ele teve de
se apresentar à Corte. (...) Sua libertação é incerta. (…) Ele sofre de terríveis
dores nas costas, tem problemas respiratórios e de coração. Suas condições
físicas são realmente perigosas, mas sua força mental e determinação, posso
dizer, são como uma montanha. Apesar da fraqueza física, a mente de Emad é
comparável ao Monte Everest.
Segundo relatório da Anistia Internacional, o Irã executou 388 condenados à
morte em 2009. Do total de execuções no ano, 112 ocorreram nos dois meses entre o
pleito, em junho, e a posse de Ahmadinejad, em agosto, período no qual as ruas de
Teerã foram tomadas por protestos contra supostas fraudes nas urnas, na maior
manifestação popular contra o regime desde a Revolução Islâmica de 1979. Embora a
maioria das condenações tenha sido sentenciada antes das eleições presidenciais que
reelegeram Ahmadinejad, a Anistia Internacional interpretou o alto número de mortes
no período como uma tentativa do governo iraniano de intimidar os manifestantes,
usando antigos desafetos como bodes expiatórios. Entre eles, estavam minorias religiosas,
como os baha’is, mulheres, curdos e homossexuais.
Durante a minha estada em Teerã, tive a minha própria experiência, única, em
relação ao controle da imprensa. Naquele dia, acordei cedo e decidi tentar entender
melhor onde cidadãos, governo e religião se unem e se distanciam nessa complicada
colcha de retalhos que é a sociedade iraniana. Não havia melhor lugar para fazer isso do
que a Universidade de Teerã, que todas as semanas, no dia de descanso para os iranianos,
abriga a chamada reza de sexta-feira. Nos arredores do campus, as ruas estão cercadas
por fitas de isolamento e cavaletes, impedindo o tráfego de veículos. O evento reúne
milhares de iranianos da ala mais conservadora, políticos e aiatolás, inclusive,
frequentemente, o líder supremo Ali Khamenei. E, portanto, teme-se que seja alvo de
possíveis atentados contra o regime. Por questões de segurança, nos dias da reza, só é
possível chegar até as dependências da universidade a pé.
Das casas e das esquinas vai surgindo uma profusão de mulheres só com os olhos de
fora, sob o negrume do chador. À medida que elas se deslocam, o tecido voa criando
um cenário para lá de interessante. Eu saco a câmera e começo a fotografar. Em
segundos, não sei de onde veio, alguém segurava meu braço gritando palavras que eu
não entendia. Um carro, que parecia ser de seguranças, estacionou diante da calçada,
outros cinco vieram em seguida. Malileh me pediu o papel de autorização de entrevista
e fazia sinal para que eu ficasse quieta, mas ela mesma falava sem parar. Em farsi. Parecia
brigar com a senhora que ainda me apertava o braço, mas eu não entendia o que
diziam. A mulher balançava meu braço e apontava para a câmera.
De repente me lembrei das fotos do jantar que havia compartilhado, na noite
anterior, com transexuais iranianos, para uma reportagem sobre o assunto. Por um
segundo, entrei em pânico. Não por mim, mas por eles. Vai saber se poderiam ser
acusados de passar ao mundo uma visão anti-islâmica do Irã. E como é que eu iria
explicar meu interesse pelo assunto, diante de pessoas tão conservadoras? Àquela altura,
imaginava qualquer coisa ao ver se aproximarem de nós guardas basijs e homens
munidos de walk-talks. Liguei a máquina fotográfica e, numa atitude impensada ou mal
avaliada, aperto o comando “delet all”. A minha sorte foi eu ter copiado as imagens
feitas dia a dia para o computador. Somente as da noite anterior ainda estavam na
câmera, simplesmente porque chegamos tarde do jantar. E, é claro, as tiradas naquela
manhã. Mais aliviada, mostro à senhora que o cartão está vazio. Ela não se dá por
convencida e tira a máquina da minha mão. Olho para Malileh, indignada. Naquele
momento, o telefone dela toca.
Era o homem responsável pelo escritório de imprensa que nos deu autorização
para fazer entrevistas na Universidade de Teerã. Alguém já tinha ligado para ele e
avisado sobre a nossa presença. “O que vocês estão fazendo aí?”, ele perguntava a
Malileh. Ela argumentara que tínhamos o aval dele próprio para fazer entrevistas na
universidade. Só não sabia que era necessária outra autorização específica para fotos
dentro do local e nos arredores, e outra para a reza de sexta-feira, além da carteirinha
de imprensa local, o que àquela altura eu não trazia. O homem, afinal, se convencera do
fato de que não representávamos perigo algum ao regime e, ainda que sem as
autorizações necessárias, nos permitiu acesso à cerimônia. A senhora finalmente largou
meu braço e ainda um tanto emburrada me levou até a entrada, onde eu deveria passar
por uma revista.
A tensão inicial se dissipou no sorriso das mulheres que trabalhavam dentro do
pequeno contêiner onde era feita a revista. Rindo da minha falta de estilo, explicaram
com gestos que havia algo de errado com a roupa que eu usava. Depois de ver tantas
mulheres de chador, desconfiei de que deveria estar mais coberta para a ocasião
religiosa. Por mais que compreendesse, e tivesse consciência de ser eu a estrangeira
naquele lugar, não consegui esconder a minha irritação diante do calor de 40 graus, o
que fez as moças rirem mais ainda. Uma delas arriscava algumas palavras em inglês e
tentou me fazer perguntas sobre o Brasil, às quais respondi com prazer. Para ser gentil,
acabei me dando por vencida sob o argumento de que a obrigatoriedade da veste seria
tão desagradável para as mulheres quanto a ditadura do biquíni — que o digam as
adeptas de academia, silicone, lipoaspiração & cia. No Irã, no entanto, a maneira de se
vestir é obrigatória e, no Brasil, uma escolha. Faz toda a diferença e, nisso, ela concordou
comigo. Acabei ganhando de presente um camisão largo, comprido, em um discreto
tom de creme e, portanto, mais adequado, além de mais um hijab preto para a minha
coleção particular.
Devidamente vestida, fiquei livre para fotografar no pátio onde estavam as
mulheres — na reza de sexta-feira, assim como nas mesquitas, os espaços para homens e
mulheres são segregados. Lá dentro, curiosamente, ninguém me perguntou mais nada e
eu passei quase a manhã toda fotografando rostos e olhares fixos no ar, compenetrados
na fé, esperançosos sob o chador. Em um espaço livre, ao lado do galpão, meninos jogam
futebol, enquanto as mães rezam pela família toda. Meninos são iguais em qualquer
lugar: onde há espaço e qualquer coisa que se pareça com uma bola, lá estão, eu penso.
Mais mulheres vão chegando. Allaahu Akbar! (Deus é Grande), gritam. A reza começa e
elas se abaixam várias vezes em direção à Meca em uma tocante manifestação de fé.
21. Transexuais e
a fatwa de Khomeini
Em maio de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi recebido pelo líder
iraniano Mahmoud Ahmadinejad no palácio presidencial em Teerã. Na pauta, uma
proposta conjunta do Brasil e Turquia para um possível acordo sobre o programa
nuclear do país, com base em um plano da Agência Internacional de Energia Atômica
(aiea), da onu. Ele previa que o urânio iraniano seria enriquecido na Turquia e
devolvido em níveis que possibilitariam sua utilização em pesquisa e energia alternativa,
e não na fabricação da bomba nuclear.
Assinado pelos três países, o tratado foi celebrado pelo presidente Lula como um
grande feito da diplomacia brasileira, algo que “os Estados Unidos não conseguiram em
trinta anos”. Porém, não convencera a secretária de Estado norte-americana, Hillary
Clinton, sobre o sucesso do diálogo. Para Washington, Ahmadinejad tentava apenas
ganhar tempo, evitando novas sanções contra o país, sem desistir realmente de
desenvolver o programa nuclear até o ponto de enriquecer urânio a 90% — o
necessário para fabricar a bomba atômica. Mas não só isso.
Numa tentativa de reafirmar a influência dos Estados Unidos no cenário
internacional, Hillary Clinton apressara-se em responder ao acordo, intensificando a
pressão sobre o Conselho de Segurança da onu para que aprovasse novas sanções contra
o Irã, embora China e Rússia resistissem — ambos são os principais exportadores de
combustível para o país. Numa queda de braço com o Brasil, Washington acabara por
conseguir a assinatura dos cinco membros do conselho com poder de veto, e em junho,
a quarta rodada de sanções fora aprovada. Os termos do novo documento proibiam
empresas de manter negócios com a Guarda Revolucionária ou mesmo transportar ao
país material balístico e nuclear, e autorizava de antemão aos americanos inspecionar
navios estrangeiros suspeitos de carregar armamento.
Julgando as iniciativas ainda insuficientes, os eua e a União Europeia decidiram
apertar o cerco econômico contra o Irã, aprovando sanções unilaterais ainda mais
restritas que aquelas sancionadas no âmbito nas Nações Unidas. Em um memorando de
três páginas, assinado em janeiro, e vazado ao The New York Times em abril, o secretário
de Defesa Robert Gates alertara a Casa Branca e as agências de inteligência americanas
sobre a necessidade de novas opções, incluindo o uso das forças militares, para barrar a
continuidade do programa. Alegando que o Brasil e a Turquia teriam sido
“manipulados” por Ahmadinejad, Israel aumentava a pressão sobre os aliados americanos
para que lançassem a ofensiva em um ataque contra as instalações nucleares iranianas.
Mas com 150 mil soldados já deslocados para o Iraque e Afeganistão, parecia pouco
provável que a Casa Branca aprovasse a medida.
Teerã, por sua vez, desafiava a comunidade internacional, insistindo no direito de
desenvolver energia atômica para fins pacíficos. Animosidade contra o Ocidente
aumentava. “Todos os dias eles adicionam uma nova folha à sua pilha de erros”, declarou
o chanceler iraniano Manouchehr Mottaki sobre as novas sanções. Desafiador,
Ahmadinejad impedira dois inspetores nucleares da onu de entrar no país sob a
alegação de que teriam vazado para a imprensa informações de um relatório “falso”. E
seguia na sua cruzada pela América Latina em busca de parceiros comerciais, irritando
ainda mais os Estados Unidos. Depois de visitar o Brasil e a Venezuela, o presidente
iraniano esteve no Paraguai, Nicarágua e Cuba. E articulava uma visita oficial do
presidente cubano Raúl Castro a Teerã.
Com a credibilidade colocada em cheque diante da recusa dos eua de aceitar o
acordo assinado em visita do presidente Lula a Teerã, a diplomacia brasileira diminuía o
envolvimento na questão. “Brasil e Turquia são países emergentes imaculados que se
aproximaram de Teerã com boas intenções. As novas sanções lançam dúvidas com
relação à nossa credibilidade”, declarou à imprensa internacional o ministro das
Relações Exteriores Celso Amorim, pivô do acordo com o Irã. O chanceler reafirmava
a necessidade de reforma do Conselho de Segurança, para permitir a entrada de novos
membros permanentes com poder de veto, uma reivindicação antiga do Brasil. Para
ele, o órgão de segurança das Nações Unidas “não mais refletia a realidade política
atual”, uma vez que exclui nações emergentes.
Àquela altura havia apenas uma questão sobre a qual todos concordavam: as novas
sanções não seriam capazes de evitar o desenvolvimento do programa nuclear iraniano.
Poderiam até aumentar os custos econômicos que Teerã pagaria para levar adiante suas
ambições nucleares. Politicamente, contudo, o preço não era tão claro. Ahmadinejad
tinha a possibilidade de usar as resoluções como justificativa para o fraco crescimento da
economia iraniana, a inflação alta e o desemprego registrados no seu governo,
reforçando a ideia defendida por ele de que a verdadeira intenção por trás das sanções
era impedir o desenvolvimento do Irã. E nada seria melhor para o regime iraniano do
que um motivo para reconquistar o apoio da população contra os “opressores”
estrangeiros. No cenário externo, as sanções tampouco haviam prejudicado os aiatolás
até então. Ao contrário disso, o Irã aumentara a influência na região na mesma medida
em que as potências ocidentais perdiam a credibilidade diante de conflitos fracassados,
do avanço incontrolável do gigante chinês e de outras economias emergentes como
Brasil, Rússia e Índia.
No complexo tabuleiro das relações internacionais, o jogo dos poderosos
continuava tenso, e a perspectiva de um acordo real com o Irã era basicamente tão
provável quanto em 2006, quando as primeiras sanções foram aprovadas no âmbito das
Nações Unidas. Talvez, agora, ainda menos provável. Os aiatolás permaneciam no poder
e o programa nuclear seguia, apesar dos eua, da União Europeia e da onu.
Engana-se, no entanto, quem olha para o Irã como uma nação estagnada. Dentro
de um contexto histórico de longa duração, os trinta anos do regime islâmico
representam um período curto, muito curto, para qualquer julgamento. Seus ancestrais
dominaram impérios por duzentos, trezentos, quinhentos anos. E ainda que se tome a
conjuntura recente, o observador atento verá mudanças profundas na era pós-revolução
de 1979, a começar pela demografia. O Irã tornou-se uma nação jovem, de blogs,
páginas no twitter e nas redes sociais, de manifestações via celular. Uma nação de
mulheres universitárias, que trabalham fora, dirigem, protestam e, como a estudante de
música Neda Agha-Soltan, morrem pelo que acreditam. Se a tradição do sacrifício xiita
ainda está presente, os velhos mártires foram substituídos por novas faces, como o rosto
angelical de Neda e de outros jovens mortos nos protestos de junho de 2009.
Longe dos que se revezam no poder nas três últimas décadas, há uma sociedade
pulsante que empurra o país para a frente. Um caldeirão fervilhante, no qual se
misturam ingredientes como história, nacionalismo, juventude, determinação, orgulho,
superação, desejo de mudança, sonhos e o deslumbramento com um mundo que se
tornou pequeno e próximo pelas telas dos computadores.
Um ano após os protestos contra a reeleição de Ahmadinejad, a maior manifestação
pública vista no Irã desde a Revolução Islâmica, a vida cotidiana retomou o ritmo de
antes e os protestos recuaram. Mas a sensação que se tem nas ruas de Teerã é a de que
esse caldeirão está prestes a explodir. As manifestações em massa deram lugar a
iniciativas individuais e permanecerão ativas até que os iranianos encontrem um
caminho comum. Partirá deles a transformação. Tem sido assim há três mil anos.
Dicas essenciais
Dicas essenciais
Como se vestir
As mulheres têm de usar blusões largos até os joelhos, de mangas longas, além de
calças compridas e o véu, bem resolvido como uma echarpe sobre os cabelos. Nada
transparente ou que evidencie o contorno do corpo. Fora de Teerã, os costumes são
ainda mais rígidos e conservadores. Para não ser importunada, prefira roupas e véu
preto que se adquire em qualquer bazar por um preço ínfimo. É aconselhável usá-lo
principalmente nos escritórios da burocracia oficial, caso precise, por exemplo, estender
o visto. O chador — um manto negro cobrindo da cabeça aos pés — pode ser exigido
em lugares especiais, como nos prédios do governo. Para as rezas de sexta-feira nas
mesquitas, usa-se uma das vestes brancas que ficam penduradas em uma espécie de varal
ou dobradas nas prateleiras com os terços e as pedras de ablução. São limpas e gratuitas.
E não tenha medo de entrar, ninguém vai olhar feio para o turista se ele não fizer
estardalhaço e for respeitoso. A hospitalidade iraniana está acima de qualquer suspeita.
Aos homens, basta que sejam discretos com jeans ou camisetas, evitando bermudas e
sandálias. Namorados, amasiados e afins, nem pensem em se hospedar no mesmo quarto
de hotel. Só com certidão de casamento, exigida no check-in.
Comportar-se em público
Beijos e abraços estão proibidos nas ruas. Cantarolar e ouvir música alta também
não pode. E nada de estender a mão e muito menos trocar beijinhos no rosto. Entre
estranhos, só um simples aceno de cabeça, sobretudo entre mulheres e homens. Nos
prédios públicos, universidades e mesquitas, nunca saque a câmera sem antes pedir
autorização.
Outra coisa: mulher não fuma em público e mantém o olhar baixo quando
conversa com um homem.
Documentos
É preciso preencher um formulário de solicitação de visto (webiran.org.br) e
enviá-lo com duas fotos 3x4 para a embaixada do Irã em Brasília (61-3242-5733) com,
pelo menos, quatro semanas de antecedência. A embaixada também pode ajudar na
indicação de tradutores e fornecer um manto às viajantes do sexo feminino. Para os
brasileiros, é possível obter o visto no próprio aeroporto, na chegada em Teerã, desde
que munidos de uma carta convite e mediante o pagamento de cinquenta euros.
Como chegar
Teerã tem dois aeroportos Internacionais: Imã Khomeini, ao sul, e Mehrabad, mais
perto do centro. Via Oriente Médio, a melhor escolha é a Emirates Airlines, com voos
diretos de São Paulo para Dubai e de lá para Teerã. Via Europa, as companhias que
operam voos diretos para Teerã são Lufthansa, de Frankfurt, e British Airways, de
Londres. Desde outubro de 2008 a Air France deixou de atuar nessa rota. A estatal Iran
Air (iranair.com) também opera voos internacionais para Dubai e cidades da Europa.
Lá dentro
Entre cidades: a partir de Teerã, os ônibus são confortáveis, com ar-condicionado,
dvd e lanchinho. Para Qon, Esfahan, Shiraz e Persépolis, eles saem da estação central
(praça Arzhnantin, 9821-8873-2535). Outra opção são os trens. Na estação ferroviária
da praça Rah-Ahan, os destinos estão escritos em inglês (rajatrains.com).
Já de outras regiões mais distantes como de Esfahan a Shiraz, por exemplo, o
transporte rodoviário deixa muito a desejar. Se puder, prefira os aviões, que são baratos
e seguros. Além da Iran Air (iranair.com), há diversas companhias internas que
oferecem voos domésticos para os principais destinos turísticos. Mas fique atento aos
horários, caso dependa de uma conexão, pois algumas vezes atrasam até sete horas sem
motivo aparente nem explicação plausível.
Transporte
Em Teerã, o transporte é um dos maiores desafios para os turistas. Poucos taxistas
falam inglês, as linhas de metrô (tehranmetro.com) são poucas e as de ônibus, confusas
para quem não domina o farsi. Os táxis acabam sendo o meio mais fácil, mas peça no
hotel e negocie o preço antes (três mil riais é o que os locais pagam por uma corrida à
maioria dos destinos centrais), pois não existem taxímetros. Do aeroporto Imã Khomeini
(ika) até o centro pode chegar a 50 mil riais (cheque antes se o hotel não oferece o
traslado). E não se espante se o motorista passar de ponto em ponto pegando outros
passageiros. Compartilhar táxis é usual no Irã. Por isso, para mulheres viajando sozinhas,
uma boa dica é usar o Women’s Táxi (1821, se estiver em Teerã, ou 9821-5586-3380,
womentaxi.ir), cooperativa de taxistas iranianas só para mulheres. As placas de rua com
tradução para o inglês são uma grata surpresa aos turistas. Para não se perder, tenha em
mente que a avenida Valiasr corta a cidade de norte a sul e a avenida Azadi, de leste a
oeste.
Aluguel de carro
Desista. Se as estradas iranianas são uma reta só e têm um asfalto quase aveludado de
tão macio, o trânsito dentro das cidades é caótico, congestionado e nem todas as placas
estão traduzidas. Prefira pegar um avião, ônibus, táxi ou contrate um motorista. É barato,
muito mais seguro e confortável, acredite.
Quando ir
Como quase todo lugar do mundo, as melhores épocas para se visitar o Irã são a
primavera e o outono, de climas amenos, sobretudo para as mulheres, obrigadas a abrir
mão dos shorts e da regata. No verão a temperatura pode ultrapassar os quarenta graus.
No inverno cai neve e os termômetros vão abaixo de zero. Agora, se seu objetivo é
esquiar, a alta temporada é entre janeiro e fevereiro. Confira o calendário e evite
viajar durante o Ramadan, mês do jejum para os muçulmanos, quando quase todos os
restaurantes e casas de chá fecham. O mesmo para o Noruz, o Ano Novo iraniano,
entre 21 e 24 de março, quando os hotéis ficam lotados e os preços vão às alturas.
Entrada nos monumentos históricos
Eles têm hábito de praticar um preço para nativos e outro para estrangeiros. No
caso do ingresso às ruínas de Persépolis, por exemplo, a diferença equivale a uma
quantia razoável. Por isso, se estiver com amigos locais, cubra o rosto e siga adiante sem
dizer nada, pois economizará um bom dinheiro.
Dinheiro
Por causa dos embargos econômicos, o Irã está fora do sistema bancário
internacional, o que significa que nenhum lugar aceita cartão de crédito. Só dinheiro
vivo. Inclusive para pagar o hotel. Há apenas uma única moeda em vigor, o rial. Mas
fique atento, pois é comum o uso corrente do termo toman, herança do passado. Um
toman é o mesmo que dez riais e, portanto, cem toman são mil riais. Um real brasileiro
equivale a seis mil riais iranianos. Euros são mais fáceis de trocar. As casas de câmbio estão
concentradas nas principais avenidas da área comercial, além do aeroporto. Em
compensação, são mínimas as chances de você ser roubado. Poderá transitar
tranquilamente com cash na bolsa sem medo de assaltantes, tão comuns no nosso
cotidiano brasileiro. E não se esqueça de guardar algum comprovante para que possa
converter o dinheiro para a moeda de origem quando deixar o país.
Embaixada
Não há escritórios de apoio aos turistas. Por isso, leve o telefone da embaixada do
Brasil em Teerã para onde for: rua Yekta, 26, com a rua Bahar, 9821-2274-3996/7/8.
embassy@braziliran.org.
Telefone
Cartões de telefone internacionais são incomuns. A melhor opção é ir até um
internet café e ligar pela rede.
Palavras e frases para o dia a dia
Olá – Salam
Sim – Baleh
Não – Nah
Por favor – Loftan
Com licença – Be bakh shid
Obrigada – Merci, como no francês
De nada – Ghabel na-dareh
Desculpe – Mota assef am
Até logo – Khoda Hafez
Eu me chamo – Esmam... e
Eu sou do Brasil – Man ahl-e Brasil hastam
Você fala inglês? – Inglissi mi-danid?
Eu não falo persa – Farsi balad nsitam
Onde é o hotel? – Hotel kojast?
Por favor, mostre no mapa – Lotfan rooy-ey in naghsheh neshian bedid
Por onde devemos ir? – Az kodam rah berim?
Quanto custa? – Che ghadr?
Onde é o banheiro? – Tualet kodjâst?
Mesquita – Masdjed
Banco – Bânk
Museu – Museh
Ponte – Pol
Avenida – Kiaâbân
Estrada – Bozorgrâh, otobân
Praça – Meidân
Igreja – Kelisâ
Consulado – Konsulgâri
Centro – Markaz
Rio – Rud, rud khâneh
Chá – Chay
Kebab de carneiro – Shish kabab
Kebab de carneiro com arroz – Chelo kabab
E, se tudo o mais falhar, pão com manteiga – Nan-o-kareh
Taarof é outra palavra importante, para a qual não existe tradução. Reflete uma
espécie de código social, um meio de sobrevivência que os iranianos apreendem desde
pequenos. De um lado, indica a generosa hospitalidade e cortesia e, de outro, certa
subserviência, já que por meio dela a pessoa consegue disfarçar as verdadeiras intenções.
Em resumo, eles dizem sim para tudo, mesmo quando querem dizer não. Portanto, não
exagere. Mas, se por acaso, se apaixonar por alguém de lá, use e abuse de azizam, que
quer dizer querido(a), do coração.
Tabela de números
Folha de rosto
Autoras
Créditos
2. Contradições
3. Apesar da censura...
5. Unificando a nação
8. Reencontrando Kurosh
9. Outra civilização
Dicas essenciais
Caderno de fotos