Violência Contra As Mulheres Questões para Psicanálise
Violência Contra As Mulheres Questões para Psicanálise
Violência Contra As Mulheres Questões para Psicanálise
na/para a Psicanálise
1
Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste-Unicentro-PR. Estagiária no projeto
de extensão Núcleo Maria da Penha-Numape/Irati (SETI/UGF-PR). Integrante da equipe da pesquisa “Violência
contra as mulheres em Irati-PR: mapeamento da incidência e da rede de enfrentamento” (CNPq). E-mail:
julianenj@gmail.com.
2
Doutora em Psicologia (FFCLRO-USP-SP). Professora-adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Desenvolvimento Comunitário (PPGDC), da Universidade Estadual
do Centro-Oeste- Unicentro-PR. Coordenadora do projeto de extensão Núcleo Maria da Penha-Numape/
Irati (SETI/UGF-PR). Coordenadora da pesquisa “Violência contra as mulheres em Irati-PR: mapeamento da
incidência e da rede de enfrentamento”(CNPq). E-mail: kalexsandra@unicentro.br.
Introdução
3
A pesquisa é denominada “Violência contra mulher em Irati-PR: mapeamento da incidência e da rede de
enfrentamento” e foi aprovada no Edital Universal MCTIC/CNPq 2018, coordenada por Kátia Alexsandra dos
Santos, segunda autora deste artigo.
bissexuais e transexuais (Peres, Soares, & Dias, 2018; Agência Patrícia Galvão, 2015).
As especificidades são muitas, por isso a decisão de conceber o termo no plural, pois
as existências de mulheres assim o são. O segundo motivo concerne à Psicanálise, que
leva em conta a singularidade do feminino, colocando a impossibilidade do termo “A
mulher”, questão que discutiremos neste trabalho.
Assim, o conceito de violência ainda pode ser discutido à luz das teorias de gênero,
afinal, “é pela perspectiva de gênero que se entende o fato de a violência contra as mulheres
emergir de uma questão de alteridade como fundamento distinto de outras violências”
(Bandeira, 2019, p. 294). De acordo com Scott (1989, p. 21), o conceito de gênero pode ser
compreendido pela ligação de duas proposições: “O gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma
primeira de significar as relações de poder”. A violência de gênero diz respeito ao aspecto
mais amplo (Saffiotti, 2001); a violência contra as mulheres, por sua vez, é uma de suas
facetas e, mais especificamente, a violência doméstica é caracterizada por ocorrer em certo
ambiente/contexto.
O tema da violência contra as mulheres também tem sido pauta constante dos
movimentos feministas, a partir de diferentes vertentes, a fim de compreender qual seria
a “origem” da opressão das mulheres. Autoras como Saffiotti (2015) e Federici (2019)
partem de uma visão que concebe a junção do capitalismo e do patriarcado como principal
causa da dominação da categoria das mulheres pelos homens. Patriarcado é o nome que
se dá à estrutura de dominação masculina, sendo “o regime da dominação-exploração
das mulheres pelos homens” (Saffiotti, 2015, p. 44). As autoras ainda defendem que as
contradições impostas pelos marcadores de classe e gênero atuam em conjunto com as
de raça. Juntas, elas compõem um nó, o novelo historicamente construído: patriarcado-
racismo-capitalismo (Saffioti, 2015). Nesse sentido, Federici (2019, p. 31) pontua que, “se na
sociedade capitalista a ‘feminilidade’ foi construída como uma função-trabalho que oculta
a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história das
mulheres é a história das classes”.
Sob a égide do sistema patriarcado-racismo-capitalismo, a sociedade produz
violência cotidianamente, e o número de ocorrências de violências contra as mulheres,
bem como de feminicídios, só aumenta. Levando isso em conta, torna-se necessário
compreender o ciclo da violência e de que maneira podemos contribuir para que esse
entendimento se torne uma estratégia no enfrentamento à violência. Como afirmamos
anteriormente, há várias formas de se discutir a temática da violência contra as mulheres,
entretanto, prioritariamente, essas discussões têm sido feitas por teóricas/os de gênero e
feministas (Bandeira, 2019; Saffiotti, 2001). Recentemente, têm surgido algumas publicações
que procuram articular discussões de gênero e da Psicanálise (Kehl, 1996; Prates, 2001;
Soler, 2005; Neri, 2005) e, outras ainda, embora em menor número, têm se debruçado a
compreender o fenômeno da violência contra as mulheres. É sobre essas produções que
discorreremos no próximo tópico.
CE. Os autores puderam, por meio de estudo de caso, observar certa compulsão à repetição,
por parte de Ana, das narrativas amorosas em sua família (que foram muito permeadas pela
violência psicológica, física e pela permanência das mulheres nesses relacionamentos).
sintomáticas, que se define por relações que se dão a partir de experiências repetitivas
que estabelecemos com o outro e que, nesse caso, influencia as mulheres em situação
de violência a permanecerem nesse lugar, mantendo seus sintomas. Dessa perspectiva,
elas encontrariam no outro uma parceria sintomática, ou seja, alguém que lhes mantêm
nesse lugar de objeto. Nesse sentido, o papel do analista seria desvincular essas mulheres
dessa posição de objeto, fazendo-as refletir sobre essa parceria sintomática, sustentada
pela existência de um gozo encontrado na posição de objeto. Consideramos importante a
contribuição do que diz respeito ao manejo de situações de violência, mas ainda se destaca,
nesse estudo, uma visão psicopatologizante da violência contra as mulheres.
Nessa mesma linha, o livro de Chagas (2020), intitulado O ciclo da violência:
Psicanálise, repetição e políticas públicas, aponta para o trabalho pela Psicanálise em
equipamentos da rede de enfrentamento à violência, mas também calcado em uma leitura
que vai pela via sintomal e da repetição. A autora traz o fenômeno da violência contra as
mulheres e o aborda nas instituições de políticas públicas direcionadas a esse atendimento,
como o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (Cram) e o hospital, no qual a
autora teve acesso a relatos de mulheres adultas sobre violências sexuais que elas sofreram
quando crianças. A partir dessas histórias, a autora realizou uma análise psicanalítica,
abordando o impacto subjetivo do trauma e a repetição de experiências de violência sexual
ao longo de suas vidas, bem como a questão do segredo (pois a grande maioria nunca
havia contado sobre esse acontecimento para ninguém). É nesse contexto que a autora
propõe um dispositivo clínico, interdisciplinar, sustentado na escuta desses sofrimentos
singulares, a fim de operar uma mudança subjetiva: “A repetição, conceito fundamental da
teoria psicanalítica, talvez possa revelar o modo de uma mulher estabelecer seus vínculos
afetivos, seus laços sociais” (Chagas, 2020, p. 22).
Como apontado por várias autoras e autores (Lima & Werlang, 2011; Silva, 2018;
Souza & Cunha, 2018; Ferreira & Danziato, 2019; Chagas, 2020), o fenômeno da violência
contra as mulheres, na Psicanálise, tem sido ancorado no conceito de repetição. O primeiro
momento em que Freud se referiu à repetição foi no texto Repetir, Recordar e Elaborar
publicado em 1914. O segundo momento no texto Além do Princípio de Prazer, de 1920, no
qual, então, surge o conceito de pulsão de morte, quando a repetição ocupa o lugar de
força pulsional, uma com(pulsão) à repetição.
recentemente, de modo que há muito a se construir. Consideramos que esse diálogo entre
os campos – Psicanálise e violência contra mulheres – faz-se necessário, tendo em vista que
se trata de um fenômeno complexo, que não se esgota em si mesmo, e sempre pede por
explicações, colocando-se como espaço de disputas em várias áreas do saber.
Uma leitura possível que congrega alguns pontos de vista dos estudos descritos iria
pela via da articulação entre os elementos da repressão ao feminino, fundamentada a partir
do constructo histórico do patriarcado, passando pela visão psicanalítica da sexualidade,
articulando os elementos presentes na violência por meio da noção de gozo. Por intermédio
do conceito lacaniano de mais-de-gozar, podemos visualizar a questão da violência contra as
mulheres mediante uma leitura psicanalítica compromissada com o social.
Antes dessa tentativa de teorização, é preciso pontuar que a Psicanálise se encontra
em um momento de rever alguns postulados, de apostar em aproximações com outras
áreas do saber, caminhando para uma leitura do social mais comprometida criticamente.
É tempo de subverter a ordem, visto que, como apontado por Quinet (2017), no livro A
diferença sexual: gênero e Psicanálise, organizado por Daquino (2017), alguns psicanalistas
já foram responsáveis por declarações conservadoras, que realizaram grandes desserviços
em relação às questões de gênero. Por isso, defendemos que
Por meio dessa perspectiva conceitual, destacamos nosso compromisso com uma
leitura psicanalítica que não reforce e nem forneça elementos para qualquer possibilidade
de culpabilização das mulheres em situação de violência. Também tomamos como
pressuposto fundamental não tirar delas a autonomia, visualizando-as apenas como vítimas
e, assim, privando-lhes da possibilidade de se colocar como sujeitos. Esse ponto merece
uma ressalva, tendo em vista que o termo “vítima” congrega em si o reconhecimento
da violação de direitos e a garantia de não se colocar em questão a palavra da mulher.
Todavia, entendemos que permanecer nesse lugar, em um contexto de intervenção, pode
ser danoso, pois retira a possibilidade de mudança de posição subjetiva.
Levando em conta o campo espinhoso em que nos colocamos, ao pretender
articular as contribuições da e para a Psicanálise, no que diz respeito à violência contra
as mulheres, foi preciso, neste estudo, que tivéssemos o cuidado e a sensibilidade que
a temática requer, colocando em questão discursos culpabilizantes, mas procurando
observar, por outro lado, o que a Psicanálise traz como contribuição para a compreensão e
a intervenção nesse contexto, como o próprio espaço de escuta, que permite às mulheres
simbolizar o acontecido pela via da palavra.
Assim, a presente investigação objetiva discutir o tema da violência contra as
mulheres a partir do viés psicanalítico, buscando a experiência de profissionais que tenham
realizado atendimento com mulheres em situação de violência. Isso se faz necessário,
tendo em vista que a busca por atendimento psicológico/psicanalítico se configura como
uma estratégia possível de enfrentamento e proteção.
Aspectos metodológicos
dos modos como os sujeitos são enredados nas malhas da dominação, de modo a indicar
possíveis saídas individuais, sociais e políticas” (Rosa & Domingues, 2010, p. 187).
Os instrumentos da pesquisa foram entrevistas semiestruturadas que contaram
com um roteiro que enfatizava as seguintes dimensões: se já haviam atendido casos em que
havia situação de violência contra as mulheres; quais as formas de violências percebidas;
quais as estratégias utilizadas pelas mulheres no enfrentamento a essas violências; e quais
conceitos psicanalíticos auxiliavam no manejo dos casos. Tais entrevistas foram realizadas
com quatro profissionais4 da Psicologia que trabalham a partir de uma abordagem
psicanalítica e que atenderam (ou estavam atendendo) algum caso que envolvesse
violência contra a mulher. A amostra foi definida por conveniência, por meio do aceite
das profissionais, após envio do convite a psicanalistas atuantes no município. A primeira
entrevista foi presencial, contudo, com o imperativo do isolamento social, em decorrência
da pandemia da covid-19, as outras foram realizadas na modalidade on-line. Foram ofertadas
às participantes diversas modalidades síncronas, como entrevista pelo Google Meet ou por
meio do WhatsApp. Ainda, foi oferecida a possibilidade de envio do roteiro de entrevista,
para que pudessem responder de maneira assíncrona. As três entrevistadas optaram
pela última opção. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
(Comep) por meio do parecer n. 3.687.803. Depois da transcrição e leituras das entrevistas,
os dados foram analisados por meio da sistematização dos principais temas trazidos pelas
participantes, organizados em eixos temáticos na articulação com a literatura psicanalítica.
4
Para que não houvesse identificação das profissionais que participaram da pesquisa, elas foram mencionadas
no texto pela ordem em que concederam as entrevistas (entrevistadas 1, 2, 3 e 4).
Foi possível notar que, para a maioria das profissionais, os casos chegam até suas
clínicas em decorrência de outros tipos de demanda – de saúde mental – e que a questão da
violência aparece no decorrer da análise. Como observamos nesse fragmento de fala, em que a
entrevistada 1 está relatando sobre dois casos que atendeu de mulheres em situação de violência
doméstica: “Os dois chegaram com outras queixas que não tinham a ver com essas questões,
e isso foi aparecendo a à medida que a pessoa ia associando livremente”. Na entrevista 3, a
mesma situação foi levantada: “Atendi algumas mulheres que vieram para a psicoterapia com
queixas sintomáticas (sintomas ansiosos e depressivos, principalmente); [...] e depois se viram
falando das violências sofridas na relação com o parceiro ou mesmo com o pai”. Andrade, Viana
e Silveira (2006), em estudo epidemiológico dos transtornos psiquiátricos na mulher, apontam
que as taxas de incidência de transtornos de ansiedade e humor são maiores nas mulheres, ao
passo que nos homens há uma incidência de transtornos relacionados ao uso de substâncias
psicotrópicas e também de álcool, bem como transtornos de personalidade e atenção.
É importante destacar que essas taxas de prevalência não devem ser compreendidas
a partir de fatores biológicos e/ou constitutivos da mulher, mas relacionados aos modos como
as questões de gênero se distribuem socialmente, produzindo manifestações sintomáticas
diferentes. Desse modo, a escuta do analista deve olhar para a singularidade, mas também
para aquilo que se expressa como resultado de um sintoma da ordem do social.
Acerca dessa visão singular na escuta, a entrevistada 2 destaca que cada caso é um caso.
Sobre isso, Souza e Pimenta (2014) apontam para uma resistência vislumbrada no
acompanhamento psicológico, que acontece quando as mulheres se deparam com uma
possibilidade de refletir sobre as relações violentas.
Eu não vejo muitas estratégias de enfrentamento. Acho que até por isso
leva um pouco ao adoecimento. [...] em um dos casos onde a violência
física e a sexual era bem colocada e reconhecida, ela não conseguiu falar
nem com amigos, nem com mãe, pai, e muito menos denunciar. Então não
tinha uma rede de apoio.
Começando pelo silêncio, creio que podemos pensá-lo não apenas como
imobilidade e paralisia ou perplexidade diante da violência, mas, também,
como luta. O silêncio imposto pela violência pode ser tão destruidor a
ponto de aniquilar uma pessoa, inclusive levando-a ao suicídio. [...] Nesses
casos, o silêncio do oprimido grita. (Nobre, 2006, p. 128).
Mais do que buscar motivos individuais para compreender o que faz com que uma
mulher permaneça em uma relação violenta, cabe ressaltar que os modos como as mulheres
são forjadas, com base em valores patriarcais, produz efeitos nas suas subjetividades. Assim,
como afirma Nobre (2006), nem sempre se trata de uma atitude consciente relacionada à
vontade das mulheres, uma vez que a constituição subjetiva está ancorada no laço social,
ou seja, num emaranhado de discursos que faz laço entre os sujeitos por meio da linguagem
(Lacan, 1969-1970/1992).
Ainda, buscando relatar acerca das formas de enfrentamento, a entrevistada 4
menciona o fato de se recorrer às mulheres próximas.
Além da rede informal de apoio do círculo social, sabemos que a rede formal e
institucional de enfrentamento à violência contra as mulheres é bem ampla, passando pelos
setores da saúde, assistência social, segurança pública, educação e judiciário. A Psicanálise
e os atendimentos psicanalíticos (particulares ou não) são um dos braços dessa extensa
rede: “A psicanálise não deixa de apresentar sua crítica e contribuição, nas várias frentes
de acolhimento e atendimento às mulheres, não cessando em fazer parte de uma ampla
rede de enfrentamento da violência contra a mulher” (Souza & Cunha, 2018, p. 7).
Por fim, no que se refere aos conceitos da Psicanálise que poderiam auxiliar na
compreensão do fenômeno da violência contra as mulheres, as entrevistadas ficaram um
pouco resistentes em apontar conceitos psicanalíticos específicos que as ajudem no manejo,
pois entendem que a Psicanálise trabalha com a escuta e a subjetividade inerente a cada
caso. A entrevistada 3 afirma que, em seus atendimentos clínicos, os casos que envolvem
violência exigem um atendimento diferenciado, mais específico: “Quando se percebe que
há violência contra a mulher envolvida, o manejo da transferência é diferenciado. Vai de
uma postura mais acolhedora de escuta para a possibilidade de construir estratégias de
enfrentamento e contatar dispositivos da rede de proteção, quando necessário”.
Ela também destaca a importância da associação livre: “Com a Psicanálise, atuamos
primeiramente a partir de sua regra fundamental, que é a associação livre. Eu considero
isso muito importante, porque assim não direcionamos a atenção para o suposto motivo
que o sujeito atribui ao seu sofrimento” (entrevistada 3). A participante 2 ainda destaca
algo fundamental da clínica psicanalítica, o conceito de transferência: “A relação de
transferência também é importante, pois é a partir dela que pode ocorrer uma análise e
que é possível conduzi-la”.
arranjos que lhes possibilita lidar com a situação de violência, promovendo uma articulação
entre a clínica e as políticas públicas, pois
[...] deve existir espaços onde os sujeitos possam usar da linguagem para
ressignificar histórias, não como uma solução que abarcará a resolução de
conflitos familiares, que são de outra ordem que não a estatal. Trata-se,
neste sentido, do ponto onde políticas públicas e Psicanálise podem se
encontrar. (Souza & Cunha, 2018, p. 7).
Por fim, podemos dizer que a técnica psicanalítica, em si, não impede o
comprometimento com os aspectos sociais ao olhar para fenômenos como a violência
contra as mulheres. Pelo contrário, a Psicanálise, desde sua gênese, considera os sujeitos
sempre inseridos no laço social. Assim, remetemo-nos à afirmação feita por Quinet (2017,
p. 31): “A Psicanálise é subversiva, mas os analistas são conservadores e reprodutores da
ordem vigente, por demais condescendentes com a ‘civilização’”.
Considerações finais
A segunda visão possível, a partir dos escritos sobre a intersecção das áreas da
Psicanálise e dos estudos de gênero/feministas acerca da problemática da violência contra
as mulheres, coloca justamente uma necessidade urgente de se politizar os consultórios.
De apurar e sensibilizar a escuta para questões concernentes às tramas do social. Uma
mulher violentada, humilhada e, muitas vezes, desacreditada necessita de um atendimento
único, singular, atento, que se afete. Uma possibilidade teórica apresentada neste trabalho
foi a leitura do conceito de mais-de-gozar, visualizando-se a violência como produto de
uma sociedade patriarcal e capitalista. Obviamente, essa discussão mereceria maior
aprofundamento, que ficará para outro trabalho.
Uma das principais perguntas desta pesquisa girou em torno do seguinte: Há algo
da técnica psicanalítica que poderia auxiliar na escuta/tratamento de mulheres em situação
de violência? Concluímos que toda a construção da clínica psicanalítica fornece elementos
para se pensar no sofrimento desse outro, mas, apesar disso, é muito fácil cair na cilada de
localizar o ponto central no sintoma da vítima, de modo que muitas das contribuições da
Psicanálise giram em torno dessa patologização. Sobre isso, Quinet (2017, p. 40) faz uma
provocação que diz muito do lugar da Psicanálise como discurso que abre possibilidades
de se constituir e reconstituir, inventar-se e se reinventar: “Lacan nos deixou a pergunta:
‘E quando a Psicanálise houver deposto as suas armas diante dos impasses crescentes
de nossa civilização, é que serão retomadas – por quem?’. Não esperemos chegar a esse
ponto, temos as nossas armas – as que nos fornecem a teoria e a clínica psicanalíticas”.
O que fica, para nós, é a tentativa de deixar uma contribuição nesse sentido,
tivemos as armas, munimo-nos do arcabouço teórico da Psicanálise e buscamos aqui realizar
um trabalho que minimamente subverta alguma ordem, alguns postulados. Fizemos isso
justamente no movimento de insatisfação com o panorama visto acerca dessas questões
e das saídas apontadas pela Psicanálise. Nosso trabalho se localiza no meio, no batimento
entre o sujeito que se constitui pelo social, mas também pelas experiências singulares a
partir do trabalho com/pela linguagem, entendendo que esses pretensos dois lugares não
estão, de fato, separados. Propusemos discussões sobre um feminino situado na violência
a partir da e para a Psicanálise, esperando que as/os leitoras/es deste texto considerem
essas questões como elementos que, pelos próprios princípios de constante autocrítica da
Psicanálise, voltam-se a ela, transformando-a.
A Psicanálise tem como fundamento um compromisso ético, a partir do qual o
tratamento é fundamentado exclusivamente na palavra, tendo efeitos que reverberam
tanto nas dinâmicas singulares quanto na transformação social. A clínica psicanalítica
se reinventa e pressupõe um trabalho que não é palpável, não há fronteiras, são afetos
ilocalizáveis: “temos a impressão de que não trabalhamos com argila, mas que escrevemos
sobre a água” (Freud, 1937/2020, p. 347).
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Resumo
A presente pesquisa procura estabelecer diálogo entre as áreas da Psicanálise e os estudos
de gênero, no que tange à violência contra as mulheres. O objetivo consistiu em identificar
de que forma a Psicanálise vem abordando a temática, a partir da discussão de autores/as
contemporâneos e também por meio de entrevistas com psicanalistas do município de Irati-PR
sobre seus atendimentos clínicos com mulheres em situação de violência. Debatemos como os
estudos psicanalíticos sobre a temática, em sua maioria, caminham para uma patologização do
fenômeno, localizando-o no sujeito. A partir das entrevistas com psicanalistas, discutimos como
os casos chegam à clínica; o trabalho com a linguagem para que as situações de violência sejam
nomeadas; os processos de enfrentamento que ocorrem por parte das mulheres; e a relação
da teoria e técnica psicanalítica acerca do atendimento a mulheres em situação de violência.
Por fim, defendemos uma leitura e intervenção psicanalítica compromissada com o social, pois
somente por essa via é possível, de um lado, produzir mudança de posição subjetiva e não agir
de forma a coadunar com um discurso de manutenção do sistema patriarcal.
Abstract
This work seeks to establish a dialogue between the areas of Psychoanalysis and Gender
Studies, regarding Violence against Women. Its aim was to identify how psychoanalysis has
been approaching the theme, from the discussion of contemporary authors and through
interviews with psychoanalysts in the city of Irati-PR about their clinical care for women in
situations of violence. We debated how the psychoanalytic studies on the subject, for the
most part, move towards a pathologization of the phenomenon, locating it in the subject.
Based on the interviews with psychoanalysts, we discussed how the cases arrive at the clinic,
the work with the speech, so that situations of violence are named, the coping processes
that occur by women, and the relationship of psychoanalytic theory and technique as for
the care for women in situations of violence. Lastly, we advocate for a psychoanalytical
reading and intervention committed to the social, as only in this way is possible, on one
hand, to produce a change of subjective position and not act in a way that is consistent
with a discourse of maintenance of the patriarchal system.
Résumé
Cette recherche vise à établir un dialogue entre les domaines de la psychanalyse et les
études de genre, en ce qui concerne la violence contre les femmes. L’objectif était
d’identifier de quelle manière la psychanalyse aborde le thème, à partir de la discussion
des auteurs/res contemporains et aussi par des interviews avec les psychanalystes de la
municipalité d’Irati-PR sur leurs soins cliniques avec des femmes en situation de violence.
Nous avons discuté comment les études psychanalytiques sur le sujet, la plupart du temps,
se dirigent vers une pathologisation du phénomène, le localisant dans le sujet. À partir des
entretiens avec les psychanalystes, nous avons discuté de la façon dont les cas arrivent à la
clinique, le travail avec le language pour que les situations de violence soient nommées, les
processus de lutte qui on lieu chez les femmes, et le rapport de la théorie et de la techinique
psichanalytique sur la prise en charge des femmes en situation de violence. Enfin, nous
défendons une lecture et une intervention psychanalytique engagée avec le social, car
ce n’est que par cette voie qu’il est possible, d’une part, de produire un changement de
position subjective et de ne pas agir de manière à concorder avec un discours de maintien
du système patriarcal.
Resumen
Este trabajo busca establecer un diálogo entre las áreas de Psicoanálisis y Estudios de
Género, en lo que se refiere a la Violencia Contra las Mujeres. El objetivo fue identificar
cómo el psicoanálisis ha ido abordando el tema, a partir de la discusión de autores/as
contemporáneos y también a través de entrevistas con psicoanalistas de la ciudad de
Irati-PR sobre su atención clínica a mujeres en situación de violencia. Discutimos cómo los
estudios psicoanalíticos sobre el tema, en su mayor parte, conducen a una patologización
del fenómeno, ubicándolo en el sujeto. A partir de las entrevistas con psicoanalistas,
discutimos cómo los casos llegan a la clínica, el trabajo con el lenguaje para que se
nombren situaciones de violencia, los procesos de enfrentamiento que ocurren por parte
de las mujeres, y la relación de la teoría y la técnica psicoanalítica acerca de la atención a
las mujeres en situación de violencia. Finalmente, defendemos una lectura e intervención
psicoanalítica comprometida con lo social, porque solo así es posible, por un lado, producir
un cambio de posición subjetiva y no actuar de manera a coincidir con un discurso de
mantenimiento del sistema patriarcal.