Textos Tópicos Frasais
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A violência é injustificável por parte de uma polícia que deveria garantir a paz e a ordem nas cidades. No
caso da Cracolândia, há fortes indícios de que sejam policiais os controladores da distribuição da droga. No caso
de Campinas, o ouvidor das polícias do estado de São Paulo, Júlio César Fernandes Neves, declara que há
grande suspeita de participação de policiais nas mortes. “De cada dez pessoas que falam do caso, nove citam a
participação de policiais.”
Já no caso do Rio de Janeiro, a ocupação militar das favelas chega a extremos: invasão de residências na
calada da noite, agressões e torturas praticadas nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Foi na UPP da
favela da Rocinha que Amarildo de Souza, um ajudante de pedreiro, sumiu em julho passado. A campanha “Cadê
o Amarildo?” denuncia que, antes mesmo de Amarildo desaparecer, já se praticavam violências e torturas no
mesmo posto da Polícia Militar. Policiais militares são suspeitos de torturar e matar Amarildo de Souza e de ter
escondido o corpo. O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Rio de Janeiro (CEDDH-RJ)
encaminhou denúncias sobre essas violências ao Comando-Geral da PM e das UPPs. Segundo o CEDDH-RJ, os
comandantes informaram que estavam cientes do que estava acontecendo na Rocinha. Ou os governos desses
estados perderam o controle sobre sua polícia, que parece agir autonomamente, impondo o terror e o arbítrio nas
cidades, especialmente nas áreas mais pobres, ou esse comportamento repressivo e criminoso tem respaldo,
reafirmando suspeitas de uma política que autoriza a violência e chega a acobertar grupos de extermínio em seu
interior, como várias denúncias têm apontado.
Em São Paulo, o 18o Batalhão da Polícia Militar tem um histórico de suspeitas de corrupção e de abrigar
grupos de extermínio. O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) acusa cinquenta PMs de
formar o “Matadores do 18” − uma milícia composta por policiais do batalhão − para assumir o controle do tráfico
de drogas e explorar jogos de azar. Há também denúncias de envolvimento de integrantes do batalhão em roubos
de caixas eletrônicos.
A Polícia Civil, em 2011, responsabilizou dois grupos de extermínio formados por policiais militares por pelo
menos 150 mortes na cidade de São Paulo entre 2006 e 2010. Entre as vítimas, 61% não tinham antecedentes
criminais; 20% dos crimes teriam sido motivados por vingança, 13% por abuso de autoridade, 13% pelo que o
relatório chama de “limpeza” (como o assassinato de viciados em drogas), 15% por cobranças ligadas ao tráfico
ou ao jogo ilegal e 39% “sem razão aparente”.1
A realidade é que as polícias Civil e Militar não estão preparadas para atuar nas cidades, que necessitam
de um policiamento preventivo, articulado com o respeito e a defesa dos direitos humanos. As manifestações da
cidadania não podem ser violentamente reprimidas, assim como não pode haver mais tortura e assassinatos por
parte de quem tem o dever de garantir a paz e o fim das discriminações de gênero, raça, opção sexual e classe
social.
Uma reforma geral nas polícias Civil e Militar é necessária para transformar sua atuação, recuperar a
dimensão cívica de seu trabalho e recuperar sua legitimidade perante a sociedade como um todo. E o caminho
para iniciar esse processo passa pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 51, de autoria do
senador Lindbergh Farias (PT-RJ), cuja finalidade é dar fim a uma arquitetura institucional da segurança pública
que herdamos da ditadura e que permanece intocada.
De onde surgiram essas mulheres?
A exclusão das mulheres é incontornável para compreender os limites da nossa democracia. Foi nesse contexto de
exclusão que as mulheres atuaram na história recente do Brasil. Sem a análise dessa atuação, corremos o risco de
não compreender alguns dos embates agudos na política brasileira hoje e indagar: “De onde surgiram essas
mulheres?”
A política tem sido, historicamente, um espaço masculino. Basta um rápido olhar para as hierarquias nos partidos
políticos, o plenário dos legislativos nacionais, estaduais e municipais ou para os gabinetes onde estão instalados os
integrantes do primeiro escalão nos governos para que se entenda o que isso significa. Não é de agora que é assim.
Embora no Brasil as mulheres tenham direito a voto desde 1932 e o exerçam em condições iguais às dos homens
desde 1946, sua presença em cargos políticos tem sido restrita.
A partir de meados do século XX, foi sendo difundido o entendimento de que há algo de errado quando um processo
regido por regras apresentadas como neutras em relação ao sexo resulta em assimetrias tão visíveis, eleição após
eleição. No Brasil, a sub-representação das mulheres na política passou gradualmente a ser tratada como um
problema, no debate público, a partir do processo de transição da ditadura de 1964 para o regime democrático. Em
1997, foi aprovada a lei que reserva para elas 30% das vagas nas listas partidárias, nas eleições para a Câmara dos
Deputados, as assembleias estaduais e as câmaras municipais. Embora tenha sido pouco efetiva, com ela mais alguns
passos foram dados no reconhecimento público de que a sub-representação das mulheres é algo a ser superado.
Ainda assim, a aposta dos partidos nas candidaturas femininas e os resultados das eleições permaneceram muito
aquém do objetivo. O ambiente político institucional também não se tornou menos hostil para as mulheres que,
apesar das barreiras, vencem eleições e ocupam cargos. A primeira mulher eleita para a Presidência da República no
país foi deposta, em 2016, em um processo marcado pela misoginia. O novo ocupante do posto, Michel Temer,
nomearia, então, um ministério inteiramente formado por homens brancos. A repercussão a essa nomeação
mostrou, mais uma vez, que a denúncia do caráter masculino da política tinha sido incorporada ao debate público de
modo significativo, mas que as barreiras persistiam.
A exclusão das mulheres é incontornável para compreender os limites da nossa democracia, antes e depois de 2016.
O que vou dizer talvez pareça paradoxal, mas foi nesse contexto de exclusão que as mulheres atuaram,
sistematicamente, na história recente do Brasil. Sem a análise dessa atuação, corremos o risco de não compreender
alguns dos embates agudos na política brasileira hoje e indagar inocentemente: “De onde surgiram essas
mulheres?”.
Durante a ditadura de 1964, os feminismos se organizaram na desconfiança em relação ao Estado, algo que se
modificaria com a democratização, nos anos 1980. Conquistas significativas desse período expressam a
institucionalização da agenda feminista, sobretudo na saúde, com a criação, em 1983, do Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher (Paism), e no combate à violência, com a criação das Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher (Deams), a partir de 1985. Esse foi também o ano de criação do Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher (CNDM), na esteira da institucionalização, desde 1982, de conselhos similares nos estados e
municípios.
A atuação na Assembleia Constituinte, que contava com apenas 26 mulheres eleitas (5% do total de parlamentares),
resultou da articulação do CNDM com organizações de trabalhadoras rurais, trabalhadoras domésticas, centrais
sindicais (CGT e CUT), associações profissionais, grupos feministas e movimentos sociais de todo o país. A “Carta das
mulheres aos constituintes” priorizava temáticas “gerais” e “específicas”, simultaneamente. A abordagem dos
problemas das mulheres conjugava gênero, classe, raça e sexualidade na defesa da reforma agrária, de direitos
trabalhistas, de direitos reprodutivos e sexuais, de acesso universal à saúde e à seguridade.
O pacto social expresso na Constituição de 1988 sofreria uma série de reveses, mas criaria também um novo
patamar para as disputas políticas. Nos anos 1990, a incorporação de diretrizes neoliberais do Consenso de
Washington pelo governo brasileiro impôs recuos nos investimentos sociais e na regulação pública de setores
importantes da economia. Ao mesmo tempo, fóruns internacionais de debates com forte participação de diferentes
setores da sociedade civil organizada e acordos multilaterais abriam a possibilidade de constranger mais
diretamente os Estados nacionais a reconhecer a diversidade entre as pessoas e promover o respeito à igual
dignidade por meio de leis e de políticas. Novas compreensões dos direitos em disputa e dos grupos que
demandavam reconhecimento como sujeitos políticos legítimos se estabeleceram. Foi esse o ambiente em que
movimentos LGBT e feministas ampliaram seus recursos materiais e simbólicos para atuar nos espaços nacionais.
Houve custos, ajustes em suas agendas, mas também houve ganhos de legitimidade.
Foi também nos anos 1990 e no processo de mobilização na esfera internacional que foi criada uma das principais
coalizões feministas de abrangência nacional, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), fundada em 1994. Pouco
depois, em 2000, seria fundada a Marcha Mundial de Mulheres, originada do movimento “2000 razões para marchar
contra a pobreza e a violência”. Nos dois casos, o horizonte programático anunciado foi a democratização radical do
Estado e o combate à agenda neoliberal e seus efeitos. Além disso, a larga presença de mulheres e organizações nos
encontros do Fórum Social Mundial desde sua primeira edição, em 2001, anunciava uma participação intensa dos
feminismos na construção de alternativas políticas na virada do século.
Entendo que adentramos o século XX com novos pontos de inflexão na trajetória política dos feminismos. Elenco,
abaixo, três razões para esse entendimento.
A partir da chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo, em 2003, cresceu o diálogo com os movimentos
feministas e a presença de suas representantes no Executivo federal. A Secretaria de Políticas para Mulheres, criada
em 2003, correspondeu à ampliação de recursos e potencial de articulação no âmbito estatal. A maior efetividade
dos dispositivos para participação previstos desde a Constituição de 1988 também teve seu papel. Houve, no
período, quatro Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres (em 2004, 2007, 2011 e 2016), que reuniram
milhares delas em Brasília.
Ao mesmo tempo – e ainda é preciso compreender as conexões entre as duas coisas, uma vez que essa não é uma
realidade apenas nacional –, o feminismo ultrapassou os circuitos dos movimentos, organizações e encontros
existentes até aquele momento. O campo feminista se ampliou e se tornou menos centralizado, com coletivos
surgindo por todo o país e formas de mobilização facilitadas pela internet.
Campanhas contra o assédio sexual e contra o racismo com que se defrontam as mulheres negras no Brasil, para
utilizar dois exemplos, têm migrado das redes sociais para as páginas dos grandes jornais. Nas denúncias feitas pelas
mulheres, é evidente o recurso a uma linguagem proveniente das lutas e da crítica feminista que se acumulou nas
décadas anteriores.
Ao mesmo tempo, e esta é a terceira razão que elenco, o feminismo se tornaria ainda mais diverso. Vem de longe o
diálogo com organizações de mulheres negras e lésbicas e a abordagem interseccional dos problemas das mulheres
brasileiras. Desde pelo menos os anos 1970, documentos e jornais feministas demonstravam preocupação com a
realidade diversa e desigual das brancas e das negras, das que vivem em centros urbanos e em áreas rurais, das que
se profissionalizavam e alcançavam salários acessíveis a uma parcela restrita da população e das trabalhadoras
domésticas em que se apoiaram para que a divisão sexual do trabalho e o cuidado demandado pelos filhos fossem
atenuados. Mas os anos 2000 trouxeram mais vozes à cena. Algumas delas puderam ser ouvidas nas ruas e nos
documentos das Marchas das Margaridas (2000, 2003, 2007 e 2011), da Marcha Nacional das Mulheres Negras
(2015), da Marcha das Vadias (2011 e 2012). Puderam ser ouvidas também nas manifestações em defesa do direito
ao aborto ocorridas por todo o Brasil em novembro de 2015, motivadas por um projeto de lei da Câmara dos
Deputados que, se aprovado, comprometerá o atendimento de mulheres que sofreram estupro na rede pública de
saúde, nas manifestações contra o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e em defesa da
democracia.
É preciso registrar que essas inflexões ocorreram ao mesmo tempo que os conflitos em torno do gênero se tornavam
mais agudos nas disputas políticas. Ao menos desde 2014, com o início dos debates sobre o Plano Nacional de
Educação, vem sendo gestada a versão brasileira da campanha internacional contra a agenda da igualdade de
gênero e do respeito à diversidade sexual. Embora tenha origem no Vaticano ainda nos anos 1990, como reação ao
avanço da agenda de gênero em encontros internacionais como a IV Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU,
que aconteceu em Pequim, em 1995, ela chegou ao centro das disputas políticas em diversos países latino-
americanos na segunda década do século XX. No Brasil, cresce com a onda conservadora que investe contra o pacto
social representado pela Constituição de 1988 e contra os fundamentos da agenda de direitos humanos e sociais que
balizou, desde então, as controvérsias e os eventuais avanços na construção de normas e políticas.
Os feminismos se tornaram mais visíveis, as reações se tornaram mais abertas. O feminismo de Estado, que cresceu
com a chegada do PT ao governo em 2003, pode ser lido por seus limites, mas também pelo que produziu nesse
contexto. Houve alguma aceitação dos termos em que os governos petistas se estabeleceram, é verdade. Mas houve
também uma série de resultados. Os Planos Nacionais de Políticas para Mulheres, produzidos nesse período, são
documentos significativos. Incorporam os resultados das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres e
demonstram a importância da estrutura organizacional adquirida com a Secretaria de Políticas para Mulheres.
Graças a essa estrutura, mulheres ligadas aos movimentos feministas contribuíram para a construção da legislação
que igualou os direitos das trabalhadoras domésticas aos de outros trabalhadores (PEC das Domésticas, 72/2013,
regulamentada em junho de 2015), para a criminalização e combate à violência contra as mulheres (Lei Maria da
Penha, 11.340, sancionada em 2006, e Lei do Feminicídio, 13.104, sancionada em março de 2015), para normas e
políticas públicas com o objetivo de garantir direitos reprodutivos e direitos sexuais (Normas Técnicas do Ministério
da Saúde, editadas em 2005 e 2011), para a adoção de orientações educacionais e políticas de incentivo para uma
socialização mais igualitária (Programa Brasil sem Homofobia, de 2004, e Programa Mulher e Ciência, de 2005). São
alguns exemplos. Muitos deles poderiam também ser utilizados para discutir a dinâmica de avanços e retrocessos
que se estabeleceu, com as exigências de recuos na agenda de gênero pelos grupos conservadores que formaram a
base de apoio dos governos petistas no período.
O que vem sendo definido em algumas abordagens e análises políticas como uma política de “identidades” tem uma
história e um alcance político bem mais amplos. Os feminismos, assim como os movimentos LGBT, negros e
indígenas, contribuíram para politizar a política no período de construção democrática. Esse é, em minha
compreensão, o principal motivo para que se transformem em alvos neste momento. Agenda moral conservadora e
projeto neoliberal convergem na promoção do fechamento da democracia, atuando pela retirada de direitos
fundamentais, mas também para a difusão de uma lógica que depende da despolitização e da reprivatização de
diferentes dimensões da vida.
Uma das maneiras de abordar a história das democracias liberais é pensá-la como um processo em que o acesso a
direitos individuais se ampliou ao mesmo tempo que se definiram barreiras de novo tipo para o acesso de grupos, de
temas e de interesses ao espaço político. A própria conformação do espaço da política é uma questão fundamental
nessa dinâmica. As fronteiras entre o que seria parte da vida doméstica e pessoal e o que teria caráter público e
relevância política permitiram isolar espaços, sujeitos e experiências, retirando-lhes o caráter político. Esse é um dos
sentidos em que as mulheres entraram em desvantagem na esfera pública no mundo moderno.
Essa mesma perspectiva nos leva à ação política dos movimentos sociais. Movimentos feministas, movimentos LGBT,
movimentos negros e movimentos indígenas têm pautas e histórias distintas e, em alguns casos, conflitivas. Mas
chamo atenção aqui para o fato de sua luta envolver o questionamento das fronteiras da política. É que a
conformação do ambiente e das instituições políticas é, em muitos sentidos, a história de sua exclusão. Seu corpo,
suas experiências e, em muitos casos, a linguagem com que as trazem a público em sua luta organizada são
“estrangeiras” à política que assim se definiu. Há uma relação significativa entre a conformação da esfera pública
estatal como “lugar de enunciação de todo discurso que aspire a revestir-se de político”, para citar Rita Segato em La
guerra contra las mujeres, e as barreiras enfrentadas por grupos marginalizados para a politização de relações
cotidianas de opressão.
Nos esforços de politização realizados pelos movimentos sociais que mencionei, outras arenas e identidades vêm a
público. Os feminismos politizaram o cotidiano da exploração do trabalho das mulheres; a violência doméstica; o
controle do seu corpo por pais, companheiros e pelo Estado; o caráter masculino do Estado e da política mais
amplamente. Evidenciaram o caráter de gênero dos modelos explicativos hegemônicos, mostrando que a
neutralidade pode ser bem posicionada, por implicar a reprodução das assimetrias. A tematização da perspectiva das
mulheres, assim como de suas necessidades e de seus interesses, permitiu evidenciar quais perspectivas, quais
necessidades e quais interesses são considerados em uma política masculina. Por isso, a posicionalidade foi trazida
ao debate público como fundamento da legitimidade das pautas defendidas pelos movimentos – ainda que disso
derivem limites que eu não teria como discutir aqui. A caracterização daqueles que são majoritários na política como
“homens, brancos e proprietários” pode ter até se tornado um clichê na luta política, no contexto ambivalente de
que procurei falar neste artigo. Mas ela apresenta um esforço que não é banal: mostrar que a atuação desses
homens é, como qualquer atuação política, posicionada e identificada socialmente.
São mais de 160 pessoas assassinadas por dia. Na Síria, por exemplo, em quatro anos de guerra morreram 256 mil
pessoas. No Brasil, no mesmo período, quase 279 mil.2 Não é uma guerra civil declarada, mas este é o país em que
os policiais mais matam e mais morrem no mundo. Se de um lado estão os policiais e o Estado, do outro lado quem é
o inimigo?
2 de agosto de 2017
A situação ainda não está fora de controle, mas há riscos de entrarmos em um período de confrontos e violência
muito mais agudos do que vivemos atualmente. O que acontece hoje no Rio de Janeiro é sinal do que vem por aí. Já
assusta todo mundo o fato de que o Brasil atingiu a marca recorde de 59.627 homicídios por armas de fogo em 2014,
uma alta de 21,9% em comparação aos 48.909 óbitos registrados em 2003, segundo o Mapa da violência divulgado
em 2016.1
São mais de 160 pessoas assassinadas por dia. Na Síria, por exemplo, em quatro anos de guerra morreram 256 mil
pessoas. No Brasil, no mesmo período, quase 279 mil.2 Não é uma guerra civil declarada, mas este é o país em que
os policiais mais matam e mais morrem no mundo. Se de um lado estão os policiais e o Estado, do outro lado quem é
o inimigo?
O que as classes dominantes nos querem passar – e para isso se utilizam da TV – é que o confronto se dá entre
criminosos, malfeitores, bandidos, vagabundos, narcotraficantes, corruptos e os que defendem a ordem e a lei.
Usam para isso programas como Cidade Alerta.
Ao produzir no imaginário dos brasileiros esse tipo de confronto, a TV oculta a pobreza, o desemprego, a falta de
oportunidades para os jovens, a precariedade de nosso sistema educacional, a falta de moradia, os reais problemas
da grande maioria dos brasileiros e brasileiras. Essa ocultação falseia o diagnóstico. Já que o que aparece na TV sobre
os pobres é a perseguição aos bandidos, o imaginário do brasileiro acabou aceitando a percepção do pobre como um
ser perigoso, que necessita ser controlado.
Na verdade, trata-se de repressão e controle policial sobre as grandes maiorias empobrecidas, controle que tem
como imagem emblemática as Unidades de Polícia Pacificadora – as UPPs – instaladas em favelas do Rio de Janeiro e
que, a pretexto de combater o narcotráfico, chegam a impor toque de recolher em certas áreas da cidade. Isso para
não falar na política de encarceramento maciço sustentada pelo nosso Judiciário, hoje com mais de 200 mil presos
“para averiguação”, em sua maioria jovens e negros, sem nenhuma acusação pesando sobre eles.
Numa sociedade organizada para facilitar os negócios e atender aos interesses das grandes empresas, a imagem
construída da sociedade é a de um grande mercado onde se oferecem produtos e serviços para quem tem recursos
para comprá-los. Consumismo e produtivismo são as molas do que se entende como progresso. A TV aberta é a
vitrine desse mercado e se orienta para seduzir as classes médias e impor um padrão de consumo. O pobre, isto é, a
grande maioria dos brasileiros, não existe na TV. E se é pela TV que a grande maioria se informa, então os pobres
não existem para a sociedade em que vivem. Não se sabe como é a vida nas favelas, como funcionam as escolas
públicas, como são as relações de rua e de bairro, o que fazem os jovens da periferia etc.
Ignorar os pobres tem como duplo propósito ignorar suas demandas, suas necessidades, e mantê-los sob controle,
de preferência alimentando uma situação de apatia.
“A representação de si, neste contexto, é decisiva. Aqueles que não têm nome não podem se nomear, não podem
existir enquanto pessoas e não podem agir coletivamente. Se tivermos essa preocupação no espírito,
compreenderemos melhor o interesse dos dominantes de fazer desaparecer do campo das representações certas
categorias sociais e de querer que outras ocupem todo o espaço, pois aqueles que se tornaram invisíveis aos olhos
dos outros se tornaram também invisíveis para si mesmos. Ao contrário, as categorias sociais superexpostas,
supervisíveis, podem fazer crer que a representação de si mesmas é a única realidade social efetiva. Assim se
constrói o imaginário social coletivo e a ideia que cada um faz de si mesmo.”
Não basta dizer que a solução para a violência presente na sociedade não é o encarceramento maciço nem o
assassinato em massa, como vem sendo feito com os jovens negros da periferia. Soa quase impossível nesse cenário
polarizado identificar as causas da violência com a falta de políticas públicas que ofereçam às maiorias as mínimas
condições de vida, especialmente nas grandes cidades. A juventude que tem perspectivas de futuro (de emprego,
moradia, mobilidade, saúde, educação) não adere à violência, à criminalidade.
As políticas do atual governo cerceiam o futuro de nossa juventude ao impor profundos cortes nas políticas sociais. É
um ataque aos direitos humanos, aos direitos sociais, uma violência deliberada sobre a vida das maiorias.
Nessas condições, a única maneira de essas maiorias se tornarem visíveis para o conjunto da sociedade e verem suas
necessidades e demandas inscritas na agenda política nacional é por meio da mobilização social, do protesto, da
pressão sobre o sistema político.
Se essa pressão vai se radicalizar e assumir formas violentas ninguém sabe, mas parece que somente dessa forma,
somando as demandas de diferentes grupos sociais em um movimento amplo de protesto e questionamento da
ordem estabelecida, é que o povo sai do anonimato, pode se reconhecer na sua existência, nas suas demandas,
tornar-se ator político, apresentar-se para o conjunto da sociedade em toda sua potência. E é disso que as classes
dominantes têm medo.