Capítulo 6 - Eliane Galvão POESIA E ILUSTRAÇÃO
Capítulo 6 - Eliane Galvão POESIA E ILUSTRAÇÃO
Capítulo 6 - Eliane Galvão POESIA E ILUSTRAÇÃO
In:
AGUIAR, Vera Teixeira de; CECCANTINI, João Luís (orgs.). Poesia infantil e juvenil
brasileira: uma ciranda sem fim. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012, v.1, p. 153-190.
1. Introdução
crianças das reservadas ao adulto. Assim, o que se apresenta não é somente o que se lê,
mas também o que se vê. Essa detecção pelas crianças pode produzir-lhes prazer, pois se
instaura sob a forma de um jogo reflexivo acerca de realidade e encenação, texto verbal e
ilustrado.
Para análise, buscou-se por livros em que a relação entre imagem e texto,
efetivada na folha dupla, fosse de interação, sobretudo, exercesse função de
colaboração, na qual o sentido não emerge só das imagens ou do texto, antes da relação
entre os dois, pois um preenche as lacunas do outro (LINDEN, 2011, p.120-1). A folha
dupla foi priorizada, pois nela tanto o texto verbal, quanto a imagem se dispõem
livremente, possibilitando aos criadores um campo fundamental e privilegiado de
registro, e de expressão. A representação em folha dupla propõe uma leitura que
considera a abertura do livro como um suporte expressivo em si, capaz de escapar ao
movimento de encadear páginas na leitura (LINDEN, 2011, p.65-78). Para a consecução
do objetivo, foram eleitas obras publicadas a partir de 2000 que apresentassem valor
estético tanto no plano verbal, quanto no da imagem, e favorecessem a ruptura com os
conceitos prévios do leitor, ampliando seus horizontes de expectativas. Construiu-se a
hipótese de que a leitura do livro ilustrado, enquanto objeto de cultura, permite um
discernimento de mundo e um posicionamento perante a realidade. Esse livro, em
especial, pode “alfabetizar” o olhar desde a infância, permitindo que as crianças se
tornem leitoras críticas, pois ativa sua memória transtextual ao permitir-lhes
compreender o texto verbal e não verbal em interação, além do seu suporte.
As análises a seguir desdobram-se em dois níveis, o primeiro concerne ao projeto
gráfico-editorial do livro; o segundo, às funções das ilustrações na estrutura do texto.
Além da função de colaboração, buscou-se detectar outras conforme as classificações de
Camargo (1998), pautadas em Jakobson. Entre essas funções, para a consecução dos
objetivos dialógicos e recepcionais em que o leitor implícito é considerado, buscou-se
reconhecer a: narrativa, orientada para o referente, visando situar o representado, bem
como suas transformações ou ações que asseguram a progressão discursiva; a
expressiva, orientada para o emissor da mensagem quando capaz de manifestar seus
sentimentos e emoções, ou para o ser representado na manifestação interior; a estética
quando põe em relevo a forma ou configuração visual com o objetivo de sensibilizar por
meio das cores ou sobreposições delas em pinceladas com textura, manchas,
alternâncias, abstrações, linhas etc.; a lúdica, em que a imagem apresenta-se sob a
forma de um jogo, seja em relação ao emissor, referente, à forma da mensagem visual
6
A oralidade e a dialogia são as marcas do livro Viva eu, viva tu, viva o rabo do
tatu! Trata-se de uma obra pautada pelo ludismo e pelo jogo sonoro próprio das
parlendas que resgata o folclore, a cultura popular e as brincadeiras infantis, com o uso
de rima e do simbólico. O livro possui formato agradável para a criança, pois composto
por 21 cm de largura, 42 cm quando aberto, e 28 cm de altura. Logo, trata-se de um
formato vertical, mais alto que largo. Embora seja o mais corriqueiro do livro ilustrado,
esse formato, classificado pelas crianças de “livro grande”, é preferido por elas, pois
remete à espetacularização e confere a sensação de poder “entrar dentro” da história,
tornando, assim, a leitura uma aventura.
No livro, as imagens são narrativas, pertencem a um continuum que conduz o
olhar para baixo e para cima, para a esquerda e à direita, porque imprimem dinamismo
pelas cores, pelos fundos e despertam a curiosidade pela riqueza de detalhes
representados. As ilustrações possuem cores intensas e alegres que remetem ao aspecto
humorístico da obra e ao seu público. Essas imagens apresentam caricaturas de animais,
adultos e crianças, e ocupam espaços diversos, ora à esquerda, ora à direita da folha
dupla, ora margeiam as páginas, ora as integram. Desse modo, desautomatizam o olhar
da criança que busca a ilustração em locais diversos.
A capa apresenta a imagem de uma menina sorrindo e se equilibrando em um
galho, enquanto segura a pata de um tatu e olha para baixo, para um menino que se
segura no ar apenas pelo rabo do mesmo animal. O que justifica o título cômico, pois a
cena é surpreendente. O aspecto caricatural dessas personagens, com cabeças
aumentadas, confere-lhes humor e as aproxima do olhar da criança. O flagrante de cena
também imprime a ideia de movimento e diversão, já que os personagens estão
sorrindo. Como a menina é negra e o menino branco, a imagem pode gerar identificação
7
com as crianças, pelo efeito de universalização. Composta em papel offset fosco, a capa
possui fundo pincelado, como por meio de aquarela diluída em água. Essas pinceladas
conferem-lhe efeito de textura pelo acúmulo das cores rosa, amarela, branca, mostarda e
magenta. O emprego de verniz localizado no título, nos nomes da autora e do ilustrador,
e na imagem das crianças e do tatu torna o livro mais atraente ao olhar, confere-lhe vida
e dinamismo, pondo em relevo a preocupação em exercer uma função estética. Uma vez
aberto o livro, pode-se ver, finalmente, que o galho da capa pertence a uma árvore em
tons de vermelho e preto, a qual aparece por inteiro na quarta capa. Desse modo, capa e
quarta capa complementam-se no plano da imagem, surpreendendo o olhar da criança.
As folhas dessa árvore, pela técnica da bricolagem, ora remetem às obras de Gustav
Klimt, ora a recortes de papel de presente com motivos infantis. Assim, mesclam-se,
nestas folhas, a cultura elevada, proveniente do universo das artes plásticas canônicas, e
a cultura popular, resultante do aproveitamento de materiais reciclados. O texto da
quarta capa enaltece a “viagem agradável, divertida e poética pelas rimadas ritmadas e
bem boladas parlendas”, afirmando que esta será seguida de ilustrações que se
apresentam “como encantamento mágico”. (In: quarta capa, 2009). De fato, as
ilustrações, no livro, podem produzir, pelo humor, pelas cores e simbolismos, efeitos
surpreendentes.
Na folha de rosto, retoma-se o título de forma hiperbólica, como em um
espetáculo que vai começar. Ao lado da ficha catalográfica nota-se um buraco no chão e
uma placa que indica “Buraco do tatu”, a imagem instaura assim a função lúdica, ou
seja, de jogo com o leitor. Na abertura da obra, permanece o efeito hiperbólico de
brincadeira e espetáculo. Na página da esquerda, aparece a palavra de base
onomatopaica “– Alôôôôôôôô!”, seguida, na folha direita, por um tatu de costas para o
leitor, segurando um telefone sem fio dentro de um buraco, representado por uma faixa
nas cores ocres e amarelas, composta por fortes pinceladas. Essa imagem possui função
estética, pois vertical, na folha branca, remete ao efeito de sentido de um buraco
profundo no chão, no qual o tatu se esconde. A primeira história tem a ilustração de um
menino com a outra parte do telefone sem fio, abaixado em direção a um buraco no
chão, supostamente o mesmo do tatu. Vê-se, então, a função lúdica da ilustração que
surpreende o leitor e instaura o jogo no virar de páginas, e o absurdo. No final do livro,
o mesmo buraco do tatu aparece desdobrado; na página da esquerda, com a foto da
autora; e na da direita, com a do ilustrador, estabelecendo, assim, circularidade pela
retomada da abertura.
8
Ninando Açucena
Nos versos da mãe
Vem o que ela imagina:
Ó menininha, ó menininha!
Teu nome é amor, poesia e flor.
Açucena menina
Ou açucena bela?
à direita, para onde se dirige o olhar no momento da abertura. Ela remete aos quadros de
Gustav Klimt, associados ao simbolismo, à art nouveau. Como se trata de um livro
ilustrado híbrido, elementos das artes plásticas associam-se aos da caricatura na
imagem, mas isso se efetiva de forma harmônica e lírica. Pode-se ver, então, na
imagem, uma menininha oriental que dorme dentro de uma flor branca; a açucena. A
eleição pela representação de uma menina oriental confere à obra, pela
desautomatização do olhar acostumado a imagens ocidentais, sentido de
universalização. A caricatura confere aumento à cabeça, revelando pernas e braços
finos, e rosto bem branco que retoma, pela cor, a flor. Os cabelos negros margeiam este
rosto e cria um limítrofe entre o branco do rosto e da flor. A roupa, composta por jogos
de cores e tecidos, remete aos efeitos de cor e textura de Klimt. A cor verde intensa,
agradável e granulada, constitui o fundo da página dupla, produzindo efeito de textura,
calma, frescor, equilíbrio, além da conexão com a natureza da menina com nome de
flor. Essa cor verde, mistura do amarelo com o azul, “contém a dualidade do impulso
ativo e a tendência ao descanso e ao relaxamento” (FARINA; PEREZ; BASTOS, 2006,
p.101). Justifica-se, então, que a menina tenha um dos olhos fechados e o outro
semiaberto, caracterizando, assim, a criança que resiste ao sono, que possui ânsia ativa,
mesmo quando a atmosfera em que está é favorável ao descanso. Essa ilustração
permite o reconhecimento da criança que nela se projeta. O que move o olho da criança
para a menina tão branca, na flor da mesma cor, é a complementação por oposição ao
branco de seu cabelo preto e de sua roupa com detalhes na cor vermelha.
Como se brotassem do chão, caules de flores aparecem compostos por letras ou
arabescos, remetendo à bricolagem na sobreposição de elementos. Esses caules
assemelham-se a páginas de revistas cortadas em tiras bem finas ou a tecidos
elaborados. Eles possuem cores discretas, como o verde mais escuro, o rosa, os tons
terrosos, cinzas e azulados. Em alguns deles, sobem caramujos roseados, com seus
cascos brilhantes, formando uma espiral em marrom intenso. Somente do caule mais
espesso, brota a flor branca, capaz de acalentar e ninar em seu centro a menina;
Açucena. Nessa imagem, avulta a função estética, pois a significação é elevada à
máxima potência pelo jogo de acumulação de significados; o caule acolhe duas
“açucenas”, resgata-se, assim, a ambiguidade deste vocábulo. Nesse jogo, destaca-se
também a função lúdica. Todo cenário remete ao sono, ao sonho, à vigília. Assim, a
menina tem apenas um dos olhos entreaberto, com a pálpebra semicerrada. A mão
direita está embaixo do rostinho, conotando que se posiciona sobre o coração, embora
não se possa vê-la. As pernas balançam para fora da flor e o braço esquerdo aparece
10
como apoio à cabeça, amparado por uma das pétalas da flor. Trata-se de uma imagem
enternecedora, marcada pelo abandono do corpinho em entrega ao sono que se
aproxima e pela delicadeza de seus traços, e também da flor que a acolhe. A mesma
delicadeza avulta no tecido da roupa da menina, composto pela bricolagem. Mesclam-
se, na ilustração, recortes de imagens e de tecidos, de forma criativa e sensível. A
ilustração captura um momento crucial, retirado de um continuum temporal, situado
entre o sono e o sonho: a vigília. O efeito de sentido é o da naturalidade. Desse modo,
embora seja insólito que uma menina durma no centro de uma flor, em momento algum,
pensa-se em artificialidade, porque prevalece o instante mágico. A imagem remete a
personagem Pequeno Polegar, do conto de fadas homônimo, de Perrault, e à
Polegarzinha, de Andersen, que nasce no centro de uma tulipa vermelha e dourada.
Açucena representada em página dupla sangrada conota que a cena poderia
prosseguir indefinidamente. Esse sangramento advém dos caules, pois não se vê onde
estão plantados, apenas a parte superior deles. O efeito de movimento é produzido pelos
caramujos subindo nesses caules. Como cada um está em determinada altura dos caules,
e também há caules sem caramujos, não se sabe quantos ainda subirão. Desse modo, a
ilustração assume dinamismo e gera expectativa no leitor. A posição dos caracóis
voltados para o alto conota a sua marcha lenta, como a lentidão para Açucena dormir.
Faz-se necessário niná-la, ou seja, que a mãe a “embale em seus versos”. A imagem
remete ao universo do onírico, onde seria plausível a existência dessa flor, dos caracóis,
dos caules compostos por letras e tecidos. Essa imagem, estabelecendo contraponto ao
poema, informa que a menina repousa dentro da flor que lhe confere o nome. A mãe não
aparece porque simbolizada por essa flor que, em seu redondo, acolhe a criança, como
se fosse um ninho. O centro da flor remete à fenomenologia do redondo, que conota
abrigo, refúgio, retorno à mãe, à posição fetal (HELD, 1980, p.82). Essa imagem
aparece multiplicada nos caracóis, dentro de seus abrigos redondos, seus “ninhos”,
marcados pela espiral hipnótica que conduz ao sono.
A focalização da imagem brinca com o olhar da criança, a cabeça aumentada da
menina sugere proximidade com esse olhar, mas os caracóis subindo também solicitam
um olhar de baixo para cima. Assim, a imagem requer vários ângulos de visão,
desautomatizando esse olhar. Com isso, constrói-se o efeito de sentido de movimento,
como se o leitor acompanhasse o olho da menina aberto que observa o lento subir dos
caracóis. A imagem possui, então, função narrativa. Nota-se que há relação de
colaboração entre texto verbal e imagem. Dessa forma, o sentido não está isoladamente
na imagem, nem no texto que, sozinhos, poderiam ter significados diversos, mas na
11
Os caramujos
Os caramujos
Se escondem
Depressa
Na concha que é seu lar.
Sabem que a pressa
É melhor............................de...............................va...................................gar.
ao ser capturado pela ilustração, torna-se objeto cultural do qual o olhar da criança se
apropria quantas vezes ela desejar e no seu próprio ritmo. Essas imagens estabelecem,
então, um contraponto com a afirmação de que esse molusco se esconde “depressa” em
sua concha. Essas imagens saciam sua curiosidade porque figurativizam movimentos
bem específicos que se revelam fascinantes. O caramujo remete à ideia do redondo, do
autorrecolhimento, da introspecção. Ele cativa as crianças, pela repulsa provocada pelo
rastro que deixa no caminho, e desperta sua curiosidade, pelo tamanho pequenino e pelo
formato exótico.
A composição das quatro imagens do caramujo somente pela cor, sem traços
aparentes, assemelha-se às imagens dos quadros de Gauguin, à estética fauvista. Além
disso, confere-lhes, pela função estética, leveza e surpresa que desautomatizam o olhar
acostumado à linha, pela sua representação, por meio de pontos, ziguezages e manchas
em direções diversas, contudo, harmônicas. A dialogia da imagem com o texto verbal
efetiva-se na espacialidade deste que se “espalha” pela página, por meio do vocábulo
“devagar”, parafraseando a imagem, convertendo sua mancha tipográfica em elemento
de significação do poema. Nota-se que há relação de associação entre texto verbal e
imagem, ambos ocupam a folha dupla de forma progressiva. Além disso, estabelecem
uma homologia poética em que o texto verbal busca aproximar-se da iconicidade,
distendendo-se em seu último verso na folha, como se, semelhante ao caramujo, as
sílabas deixassem rastro ao se espalharem. Entre texto verbal e imagem se estabelece
também uma relação de colaboração, pois o sentido não está somente na imagem, nem
no texto, que poderiam ter significados diversos se isolados, mas na junção de ambos.
Para as crianças na fase inicial da alfabetização, a palavra que anseia estatuto de ícone
retoma o sonho de correspondência exata entre significante e significado.
Vale destacar que a homologia entre imagem e texto verbal, longe de ser
desinteressante, permite instaurar um ritmo e criar no leitor uma capacidade de
reconhecimento que o capacita para o efeito de contradição. Essa homologia no livro é,
apenas, aparente, pois nas imagens do caramujo não há um rastro, antes entre as sílabas.
Desse modo, o texto verbal busca assemelhar-se à imagem, enquanto esta busca
representar a narração do caramujo se escondendo na concha. Para isto, bastaria a
última imagem, todavia, a ilustradora amplia a significação, mostrando a ação
desdobrada em quatro cenas. Assim, ela torna a imagem narrativa, pois com progressão
temporal, enquanto o autor busca a iconicidade na divisão de sílabas da palavra
“devagar”. O diálogo entre ambos, como se vê, é complexo e enriquecedor, pois capaz
de inovar e surpreender pelo contraponto. É o texto verbal que conta, pela função
15
lúdica, para o olhar da criança que o caramujo anda devagar, espalhando suas sílabas
bem espaçadas de modo horizontal. As imagens do caramujo, por sua vez, pela função
narrativa, mostram as etapas deste em um deslocamento vertical, no espaço e no tempo,
para dentro de sua “casa”. Imagem e texto subvertem suas especificidades, projetando
um leitor implícito perspicaz. O texto verbal não menciona o andar do caramujo e do
seu rastro, nem a imagem os representa, quem amplia suas significações e figurativiza
esse rastro é a junção entre signos verbais e ícones, pontos de tinta, instaurados no
último verso. Mesmo que a criança não reconheça as letras e as sílabas, ela vê os pontos
de tinta e se diverte com a remissão ao rastro. As crianças, por meio das imagens do
caramujo, apaziguam suas angústias relacionadas ao tamanho dos seres e das coisas.
Elas se sentem superiores diante desse molusco menor do que elas, assim como diante
de seus brinquedos (HELD, 1980).
dupla, pois o escritor é mais valorizado na obra, embora o trabalho da ilustradora seja
inovador e surpreendente. Ao lado dessa foto, o autor se apresenta e afirma que o livro é
de poemas sobre animais. Por meio de uma linguagem próxima a da criança, ele busca
cativá-la: “E quem não gosta de ler poemas sobre animais, ainda mais com ilustrações
como estas [...].” (In: quarta capa).
O formato do livro é vertical, mais alto que largo, com 18 cm de largura, 36 cm
aberto, e 25,8 cm de altura. A folha dupla de guarda apresenta, à esquerda, uma página
em branco, e à direita, uma página em verde água granulado. No alto desta página, nota-
se o título em vermelho, que ganha destaque para o olhar, pois sobre fundo
complementar por oposição em verde. Ao centro, vê-se a imagem de um elefantinho
azul que metaforiza a criança, pelo tamanho e pelo fato de ser filhote. Abaixo desse
elefante, há um canteiro de flores, contudo estas estão apenas dispostas lado a lado de
forma harmônica, sem um solo que, literalmente, as abrigue, como se “voassem”. O
término de seus caules cria a moldura. Como estão em folha verde, a imagem conota
que estão dispostas em um gramado. Nota-se, então, a quebra de expectativas da criança
pela cor do animalzinho e pela representação do canteiro. Instaura o movimento, nesta
página, a imagem do elefantinho em uma suposta troca de passo, pois com uma das
patas traseiras no ar, e a de um inseto que circunda as flores, acompanhado de uma
espiral icônica azul pontilhada. A folha de rosto traz insetos inesperados que provocam
efeito de humor; na página da esquerda, há uma pulga elegante que levanta com uma
das patas o chapéu, como que cumprimentando “o respeitável público”. Em outras duas
patas, ela traz uma cesta de flores e, em mais duas, flores. Estas, por serem as mesmas
da página de guarda, produzem circularidade. Na página da direita, aparece o nome do
autor, o da ilustradora e a logomarca da coleção. Em seguida, surge o título do livro, sob
o qual vê-se uma mosca de patas unidas sobre o tórax, com a cabeça projetada para trás
e a boca bem aberta, conotando que anuncia teatralmente o livro. No canto direito da
página, há somente a cauda do lagarto ou da salamandra da capa. O fundo dessa folha
dupla, em laranja, conota movimento dos bichos que as compõem, bem como gera
expectativa de que também haja dinamismo nos que ainda virão durante a leitura.
Para análise da relação entre imagem e texto, elegeu-se o poema “O jacaré e a
lagartixa” (AZEVEDO; SCHUBACH, 2008, p.13):
O jacaré
É uma
La...
gar...
17
ti...
i...
i...
i...
i...
i...
xa
que espicha...
É ou não é?!
Nas páginas abertas, em que aparecem a ilustração e o poema, pode-se notar o
jacaré desfilando como um modelo na passarela. Vaidoso, ele ergue o pescoço e se
estica, “espicha”, fazendo remissão à brincadeira de que um dia fora lagartixa. Ele é
presunçoso, parece que sabe de sua importância, pois se tornou assunto do texto, por ser
fonte de curiosidade para a criança. Suas patas são flagradas no instante em que troca de
passo. Assim, a pata direita traseira ainda está no ar, suspensa. Desse modo, a imagem
assume função narrativa, pois instaura o instante movimento. A boca entreaberta remete
ao riso, à brincadeira com o leitor. Embora o jacaré ocupe a folha dupla, o fundo desta é
diverso. O da página esquerda é vermelho fosco; o da página direita tem somente a
margem da parte baixa nessa cor, com o restante da folha em branco. Assim, cria-se um
efeito de chão, “passarela vermelha”, por onde o animal desfila. O fundo branco na
página direita põe em relevo o texto verbal e a cauda enrolada e projetada para cima do
jacaré, assim criando efeito de continuidade na folha dupla. Os sombreados em preto
criam perspectiva, como se a passarela prosseguisse na folha dupla e esta possuísse
paredes ao fundo. Como o jacaré é predominantemente verde, sua cor complementa a
cena por oposição e ganha relevo, vindo para o primeiro plano, para mais perto dos olhos
do leitor. A focalização, por causa das linhas simples, exige um olhar frontal da imagem,
posicionando-a ao alcance do olho. Nem por isso, deixa de brincar com esse olhar,
assumindo a função lúdica.
A folha dupla permite ao leitor observar tanto o poema, que desce a página como
se fosse esticado na multiplicação da vogal “i”, ampliada pela assonância em “espIcha”,
quanto requer o olhar que percorre a página de baixo para cima, na análise do jacaré em
imagem sangrada, conotando que esta prossegue para além do limite da folha. O texto
gráfico desvia-se de uma cauda enrolada e empinada que conota a vaidade do jacaré ao
ser analisado e admirado. A contenção do medo ocorre pelo efeito cômico e lúdico
manifesto na pose do jacaré e, no plano verbal, na adivinha: “É ou não é?!”, que encerra
o poema. Nota-se que, embora haja remissão, no título, a uma conjunção entre jacaré e
lagartixa, a ilustração propõe a leitura somente do jacaré, justamente porque mais
fascinante e surpreendente para a criança. Na ilustração, há três triangulações na forma e
na cor. A primeira aparece na distância instaurada entre o focinho para o alto e a cauda
18
único poema, sob mesmo título. Esse poema é narrativo, sua trama retrata as peripécias
de personagens que vivem em um país imaginário. A enunciação em primeira pessoa
dialoga com o leitor e lhe propõe adivinhas: “Você sabe o que é a Cocanha?” (2008,
p.6). Desse modo, o discurso estrutura-se, por meio de um jogo de linguagem próprio da
oralidade, assumindo a função conativa da linguagem.
As imagens, pela simultaneidade de ações de personagens diversas em páginas
fervilhantes de detalhes em um plano conjunto, remetem aos quadros de Pieter Bruegel
e de Jérôme Bosch. Assim, possuem função narrativa, pois imprimem a sensação de
ações que se desenvolvem no momento em que são vistas. Essas imagens remetem ao
universo fantástico, em que se retrata um mundo de fartura, doçuras e banquetes. Desse
modo, figurativizam os desejos da criança por lugares exóticos e comida em
abundância, sobretudo os doces. Sua apresentação surpreende o olhar, pois difere a cada
página, ora sendo sangrada, ora margeada na folha dupla ou em uma única página. O
livro possui formato vertical, mais alto que largo, tem 20 cm de largura, 40 cm aberto, e
26 cm de altura. A manutenção da atmosfera fantástica se efetiva, por meio da
linguagem verbal, das imagens e das cores. Essa atmosfera também está representada
pelos seres mágicos que compõem a narrativa. A capa, em papel offset fosco, com fundo
azul pincelado de branco e de tons de azul, como por meio de aquarela diluída em água,
remete à paz, tranquilidade e ao mundo dos sonhos. Essas pinceladas atribuem textura a
esse fundo, pelo acúmulo de cores, e também desautomatizam o olhar da criança
habituado a fundos chapados em uma única cor. Ao fundo da cena, em perspectiva,
aparece a imagem de um castelo em verde azulado, que reforça a atmosfera de conto de
fadas. Em primeiro plano, vê-se uma mulher sentada e encostada em um tronco de
árvore, tendo ao seu lado um unicórnio branco, em posição de descanso. Ambos
dividem a mesma árvore e, de olhos fechados, repousam em sua sombra.
No chifre do unicórnio, há um passarinho amarelo de bico aberto e olhos
arregalados, como que assustado com o fato de dois homens dormirem na copa dessa
árvore. Dessas personagens caricaturais, aparecem apenas imagens metonímicas de
partes do seu corpo. Ambas podem cair a qualquer momento, justamente pela tensão
narrativa que instauram são atraentes para o leitor. Essa tensão está figurativizada no
olhar assustado do pássaro. Esse animal alarmado, por diferir da atmosfera do cenário
de aparente tranquilidade, estabelece um contraponto. Para a criança, é a primeira pista
de que, talvez, a Cocanha não seja um lugar ideal para se viver. Como o passarinho é a
menor personagem da cena, a criança se identifica com ela, presta-lhe atenção.
20
O movimento também se instaura na imagem por uma folha que, como nos
quadrinhos, cai da árvore acompanhada de um ícone em espiral. Dessas personagens
que compõem a capa, o unicórnio e o passarinho voltam a aparecer em outras cenas e
situações, durante a leitura, permitindo o reconhecimento prazeroso para o olhar da
criança curiosa e atenta. O nome da escritora, na cor branca, situa-se na copa da árvore
em caixa alta e com letra serifada. Essa letra é usada também no título e na referência ao
ilustrador. O título, escrito na cor preta e disposto à esquerda, possui duas linhas e
localiza-se no espaço entre a parte de baixo da copa da árvore e a de cima da torre mais
alta do castelo. As palavras “limeriques da” aparecem na primeira linha, em caixa alta,
alinhadas, e em letra de máquina. Já o nome “Cocanha” aparece em movimento, com as
letras levemente desalinhadas, como se a palavra “voasse” no espaço, em uma fonte
mais lúdica de linhas grossas, mais próxima da cursiva e com a vogal “o” em espiral,
conotando a loucura e o devaneio que prevalecem nesse país. Abaixo do título está a
referência ao ilustrador, em caixa alta e na cor preta. A presença de duas fontes antecipa
a dupla orientação discursiva das imagens e do texto verbal, ou seja, figurativiza a
polifonia.
As folhas de guarda são brancas, somente no centro da direita aparece o título do
livro com a mesma disposição da capa. Essa preocupação do ilustrador com a
manutenção da zona de descanso prepara o olhar para a profusão de cores que se seguirá
na leitura. Ao seu canto, no rodapé à direita, encontram-se abraçados; um cachorro e um
gato, conotando a paz que reina na Cocanha. Entretanto, durante a leitura, esse “abraço”
será ressignificado pela interação com o texto verbal. As folhas de rosto mantêm o
fundo branco, na página da esquerda, pode-se ver, em uma imagem sangrada, dois
homens e um cão dormindo em um gramado florido, à sombra de uma cerejeira. Ao
lado dos homens há comida e bebida em fartura, ao lado do cão, vários ossos,
denotando que comeram demais, o que justifica a barriga estufada do animal. Um dos
homens, com o chapéu sobre os olhos, ainda, traz na mão direita um copo de vinho. O
outro, com um leve sorriso de satisfação no rosto, dorme com uma cereja na boca.
Como está recostado no tronco da árvore, com os braços para trás, com as mãos
servindo de apoio para a cabeça, seus cotovelos se projetam e em um deles está pousado
o mesmo pássaro amarelo da capa, também de olhos fechados. Na copa dessa árvore, há
outro homem de costas dormindo, com seus braços e pernas suspensos no ar. O
movimento na imagem é impresso por uma cereja que se desprendeu da árvore e cai na
direção do pássaro sem que este saiba. Acompanha esta cereja uma espiral icônica,
própria dos quadrinhos. A focalização dirige-se ao leitor, ele vê e sabe mais do que as
21
personagens. Desse modo, o ilustrador busca a empatia com o olhar da criança e eleva
seu estatuto em relação ao das personagens, conferindo-lhe prazer na leitura. Na página
da direita, no alto, aparece o nome da autora, tendo abaixo um magnífico dragão,
ricamente colorido e composto com muitos detalhes, sendo puxado por uma corda por
um bobo da corte. Essa cena, que aparece novamente durante a leitura, instaura uma
lacuna para o olhar que só será preenchida pela interação com o texto verbal. Este, por
sua vez, na presença da imagem, será ressignificado. Abaixo dessa imagem, ao centro,
aparece o título no mesmo formato da capa, seguido pela referência ao ilustrador.
Abaixo desta, há uma abelha em pleno voo, carregando um balde de mel. A seguir, vê-
se a logomarca da editora. Essa abelha também será reconhecida pela criança durante a
leitura.
Na folha dupla de abertura, à esquerda, está a ficha catalográfica e, à direita
desta, aparece uma faixa de pedestres em que atravessam um saleiro, um ovo cozido,
um queijo e um salame. Essas personagens serão reconhecidas novamente pela leitura.
Na folha da direita, está o texto de apresentação da obra que elucida para o leitor sua
origem, informando como é a Cocanha, além disso, provoca-o à leitura: “E vocês, meus
jovens leitores, o que acham disso? Vocês gostariam de emigrar para a Cocanha?”.
Abaixo aparece o desejo da escritora de interagir com o leitor ao se apresentar como
familiar: “Respostas para a bisavó Tatiana Belinky” (2008, p.4). Segue essa folha dupla
outra com a função de dar início à obra. Assim, com fundo branco, a página da esquerda
representa a zona de descanso para o olhar, e a da direita apresenta o título, que é
seguido logo abaixo, no canto da direita, pela imagem de um homem bem gordo que
dorme profundamente com a boca aberta, sobre um pequeno morro gramado. Ao lado
dele, vê-se fartura de alimentos e de bebida. Um pouco acima dele, voam uma borboleta
e um ovo frito. De sua camisa salta um botão, enquanto os outros dois estão prestes a
fazer o mesmo, conotando o excesso na alimentação e instaurando o movimento na
imagem. O salto do botão é sinalizado por uma espiral icônica, como nos quadrinhos.
Somente pela leitura, pode-se entender porque o “ovo voa”, pois na Cocanha a comida
vem pronta e “Chega pelo ar, de presente” (2008, p.15). O resto do vinho em uma
garrafa caída ao chão, escorre pelo gramado e para fora da moldura imposta pela
imagem, assumindo função metalinguística. Assim, rompe com a função tradicional da
moldura que, em um espaço narrativo, atua como limite entre ficção e realidade. Esse
resto de vinho, transpondo essa fronteira, conota um sair da narração. No caso, o jogo
do ilustrador com a moldura indica ao leitor seu papel crítico, lembrando-lhe de que as
representações, embora dependam de uma construção imaginária, exigem também senso
22
crítico do leitor no confronto com a realidade. Essa cena aparece de novo, durante a
leitura, ressignificada pela interação com o texto verbal e com novas molduras.
A capa e quarta capa não se completam. Nesta aparece, sobre fundo vinho, um
texto, sob a forma de limeriques. Esse gênero contemporâneo é divulgado pela escritora
e utilizado em suas obras, como um poema curto, com estrofes de cinco versos, que se
organizam, quanto à rima, no esquema AABBA (BELINKY, 2007). Margeiam esse
texto, na parte de baixo da folha, as imagens de um rei e uma rainha bufões, correndo e
empurrando um carrinho de mão, no qual se alojam um galo colorido e um porco cor de
rosa. Esses animais olham preocupados para o que virá à frente. Também aparecem ao
redor deste texto provocativo, iniciado com a seguinte frase “Você sabe o que é
Cocanha?” (In: quarta capa, 2008), imagens insólitas de sorvetes de casquinha voadores
e a do mesmo saleiro da folha de abertura que tira o chapéu para o leitor, conotando um
cumprimento ao “respeitável público”, e de um ovo cozido que foge. Esses alimentos,
personagens e animais voltam durante a leitura do texto, permitindo ao leitor reconhecê-
los em banquetes e refletir que fogem das personagens glutonas da Cocanha. Nota-se,
então, que o ilustrador cria lacunas, produzindo efeito de catáfora. Assim, projeta o
olhar do leitor para o futuro e aguça sua curiosidade para compreensão do representado.
Durante a leitura, essas imagens produzem o prazer do reconhecimento e, na presença
do texto verbal, da revisão de hipóteses iniciais. O livro não possui fólios, conotando a
importância atribuída à fruição sem a presença de sistematização, realizada em folha
dupla, na “abertura” da obra.
Para análise, elegeu-se o seguinte limerique disposto, à direita, na folha dupla:
“Na Cocanha a sociedade/Vive em total liberdade –/Lá ninguém trabalha/(trabalho
atrapalha...),/Lá tudo é só felicidade.” (2008, p.14). Pode-se notar a rima externa no
esquema AABBA. Esse texto aparece na cena em folha dupla que representa, pela
primeira vez, o país imaginário. A moldura interna, em tons marrons, mostarda, ocre,
laranja e magenta, assume, pelas cores e textura, as características de madeira, sendo
inclusive assinada pelo ilustrador. Dessa forma, remete a uma paradoxal representação
de um quadro emoldurado. O paradoxo avulta na materialidade usada para emoldurar o
absurdo e na assinatura do lado “de fora” do quadro; na moldura. Essa opção do
ilustrador revela seu posicionamento em relação à Cocanha; “do lado de fora”, como
observador que não compactua com as atitudes dos seres humanos representados.
Prevalecem, então, as funções metalinguística e estética.
A folha dupla estabelece, em um primeiro olhar, homologia com o universo da
pintura. Há um plano conjunto em um cenário bucólico, com personagens em diferentes
23
situações. Nesse plano, pode-se reconhecer a cena da folha de rosto, em que dormem
homens e cachorro. A princípio, essa cena se integra ao plano conjunto, contudo
também o subverte. Essa revelação ocorre quando se busca pela continuidade da
moldura, nota-se que sua margem esquerda e a lateral também esquerda estão
escondidas, justamente pela cena que as encobre, como se saltasse para fora do quadro,
assumindo um primeiro plano. Dessa forma, a cena cria dois momentos e espaços
cênicos para o olhar: fora da moldura e dentro dela. Toda a cena do plano conjunto
assume, então, a perspectiva de um segundo plano em relação a ela. Assim, a folha
dupla explora, na imagem, a função metalinguística, pois o ilustrador solicita do leitor
uma reflexão acerca da representação, conotando que aquela cena, embora integre o
plano conjunto, pertence também a outros espaços, no caso, à folha de rosto do livro e à
realidade, em que também existem pessoas glutonas e comodistas.
Nessa folha dupla, a cena da folha de rosto cria um primeiro plano, pois mais
próxima para o olhar da criança, do lado de fora da moldura. O ilustrador projeta, então,
um leitor implícito curioso e inteligente que se diverte com o jogo “dentro” e “fora”, ao
mesmo tempo que o desperta para a reflexão acerca do ato de representar, emoldurar.
Essas imagens, por meio da função lúdica, brincam com os olhos da criança, como se
saltassem do encaixe de outras, estabelecendo homologia com as bonecas russas. Dessa
forma, desautomatizam o olhar acostumado a molduras que circundam e fecham uma
determinada cena. Em um segundo momento, o leitor começa a analisar o fundo atrás da
moldura, há assim uma subversão dos conceitos de figura e fundo, pois a cena da folha
de rosto assume relevo de moldura, projetando ao fundo a moldura de um plano
conjunto. Destacam-se, então, as funções: lúdica, pelo jogo instaurado; e estética, pois o
ilustrador põe em relevo a forma, visando sensibilizar o leitor e, justamente por isso,
desautomatizar seu olhar.
Na análise da cena “atrás da moldura”, o leitor percebe que também existem
planos diversos, inclusive pontos de fuga, pois há uma perspectiva. Essa cena estrutura-
se sobre fundo branco. A opção do ilustrador por este fundo põe em relevo as imagens
de cores intensas, conferindo-lhes volume e, pela sobreposição de camadas de tinta,
textura. No primeiro plano da cena situada dentro da moldura, aparece, à direita, uma
caravela com um casal descansando, enquanto passeia pelo lago. Atrás do barco, há um
cisne branco com olhos arregalados e bico aberto. Como seu olhar se dirige para a
esquerda, pode-se imaginar que essa expressão de espanto foi provocada pela
observação dos homens e do cachorro que, fora da moldura, dormem profundamente.
Na margem do lago, aparece um campo de flores em que, à sombra de outra árvore,
24
aparece um homem sentado, dormindo recostado em seu tronco, tendo acima da cabeça
uma maçã com uma flecha atravessada, para a qual olha impressionado um pássaro azul
de olhos arregalados, conotando o risco que o homem correu sem nem perceber,
provavelmente provocado por outro inconsequente. Embora essa cena faça remissão a
Guilherme Tell, esse diálogo estrutura-se de forma paródica, pois prevalece a crítica do
animal ao comportamento de alheamento do ser humano. A focalização se dirige para o
leitor que vê e sabe mais que as personagens e, por isso, sente-se valorizado na obra.
Em segundo plano, vê-se castelos; palácios; plantações; um rebanho de ovelhas, com
seu guardador sentado à sombra de uma árvore; um moinho de vento em uma
propriedade rural; e bem ao fundo, quase no ponto de fuga da direita, nota-se o mesmo
unicórnio da capa, supostamente trabalhando, pois fazendo sulcos com as patas,
“arando” um terreno para o plantio. Os olhos das ovelhas e do unicórnio arregalados
destoam da aparente tranquilidade, produzindo contraponto na imagem. Eles se dirigem
para a esquerda, conotando que estão indignados com os homens e o cachorro que
dormem, enquanto eles trabalham. Ligando dois palácios, que se localizam sobre
morros no ponto de fuga da esquerda, nota-se uma anacronia, pois aparece um
teleférico. Esse elemento, símbolo da tecnologia contemporânea, sugere uma leitura
irônica pós-moderna, levando o leitor a manter os olhos atentos para os demais detalhes
de contraponto. Além disso, produz efeito de humor crítico na obra, pelo insólito de sua
presença em cenário de contos de fadas, e por conotar o comodismo dos habitantes
desse país.
Pode-se deduzir, então, pela folha dupla, que a função da moldura de criar um
limítrofe para o olhar foi rompida. Além disso, o comportamento dos animais, os únicos
que realizam ações na cena, enquanto os humanos descansam ou dormem,
acompanhados de suas expressões de surpresa em relação às atitudes desses humanos,
instaura a ironia, pois invalida a afirmação: “Na Cocanha a sociedade/Vive em total
liberdade –” (2008, p.14). Eles atraem o olhar do leitor e o redirecionam. Assim, a
criança percorre toda cena, sendo conduzida de volta à esquerda, para fora da moldura,
a fim de que perceba o jogo dentro e fora, e note a ironia de que, na Cocanha, alguns
trabalham, enquanto outros descansam. Desse modo, a cena remete ao livro A revolução
dos bichos, de George Orwell. Justifica-se, então, que o unicórnio fuja no final da
história. Ele, certamente, não era feliz nesse espaço, nem tinha “total liberdade”. Assim,
a moldura subverte sua função, ela não polariza o espaço para dentro, antes abandona a
força centrípeta e convoca o olhar crítico da criança, assumindo a função de tela que
projeta esse olhar a se estender indefinidamente no universo, de forma centrífuga. A
25
dialogia da cena com as artes pictóricas ocorre, então, por meio da paródia, o que
justifica a subversão da relação entre figura e fundo.
Na interação entre texto e imagem, pela representação dos animais
desautorizando o discurso verbal, estabelecendo contraponto, põem-se em dúvida a
validade das afirmações deste, logo se começa a notar que há ironias também
instauradas no discurso verbal. Assim, este se propõe à leitura como um jogo, levando o
leitor a desconfiar das afirmações e ler nas entrelinhas, nos parênteses, nas reticências:
“(trabalho só atrapalha...)”. Justamente, esses parênteses instauram a polifonia no
discurso do “eu lírico”, pois, pela ironia, representam as afirmações dos adultos
comodistas de que “trabalho atrapalha”. A paronomásia, pelo jogo sonoro, reforça essa
ideia. Pode-se concluir que esse discurso está diametralmente oposto ao da criança, pois
esta é afeita ao dinamismo, aos desafios e conquistas. Essa afirmação é ampliada pela
imagem paradoxal do unicórnio trabalhando, embora isto não esteja escrito no texto
verbal. O paradoxo avulta na representação de um ser mítico, delicado, utilizando a
força bruta para trabalhar. O livro projeta, então, um leitor implícito que discorda das
opiniões dos adultos e busca pela interpretação tirar suas próprias conclusões.
No livro, as personagens adultas, caricaturais, conduzem ao riso, levando a criança
a refletir acerca de suas atitudes, sobretudo, quando despropositadas e injustas. Assim,
por meio do humor, essas imagens conduzem à reflexão, rompem com conceitos
prévios de que os adultos sempre têm razão e ampliam os horizontes de expectativas do
leitor.
Considerações finais
Pelas análises, pôde-se perceber que a relação entre texto poético e imagem é
rica e surpreendente. Isso decorre do fato de que o livro ilustrado coloca lado a lado
“dois tipos de linguagem que diferem entre si enquanto realizações estéticas”
(PEREIRA, 2009, p. 385). A imagem que ilustra um texto literário não visa superá-lo,
antes adere a ele com a intenção de colaborar na sua percepção e, ao mesmo tempo,
amplificar suas vozes, “dispor da degustação de seus sabores, dando mais asas à
imaginação de seus leitores e mais prazer à leitura e ao uso do livro.” (FITTIPALDI,
2008, p.105-6). A ilustração, inclusive, pode proporcionar ao leitor uma perspectiva
inesperada do texto verbal. Em nossa sociedade contemporânea, repleta de imagens
previsíveis, faz-se necessário considerar a “alfabetização visual” da criança, por meio
desse tipo de livro, pois em seu processo de fruição instaura-se uma relação dialética,
26
combinação entre elas (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p.329). Essa igualdade avulta
no processo de leitura, pois enquanto o texto verbal se dirige ao adulto e requer um
olhar linear, a imagem se dirige à criança, solicitando um olhar holístico. A folha dupla,
pela oferta de simultaneidade dos dois processos, faculta a criança eleger seu próprio
ritmo. A recepção do livro ilustrado pela criança pode, graças à autenticidade de seus
comentários e percepção aguçada aos detalhes, superar as expectativas do adulto e
surpreendê-lo. Essa percepção da criança suplanta a do adulto, segundo Duvoisin (apud
HUNT, 2010, p.241), pelo fato de que ela vê o mundo de forma desinibida, diversa do
adulto que só enxerga o que lhe interessa. Nesse processo de leitura mediada do livro
ilustrado, criança e adulto podem, então, ampliar seus olhares.
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Alexandre. Poeminhas animais. Ilustr. Taline Schubach. São Paulo: Atual, 2008.
BELINKY, Tatiana. Salada de limeriques. Ilustr. Rubens Matuck. São Paulo: Noovha América, 2007.
______. Limeriques da Cocanha. Ilustr. Jean-Claude Alphen. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008.
BIAZETTO, Cristina. As cores na ilustração do livro infantil e juvenil. In: OLIVEIRA, Ieda de (org.). O
que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL,
2008, p. 75-89.
BORELLI, Sílvia Helena Simões. Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massa no Brasil. São
Paulo: EDUC: Estação Liberdade, 1996.
CAMARGO, Luís H. de. Poesia infantil e ilustração: estudo sobre Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles.
214 p. Dissertação de Mestrado pela Universidade estadual de Campinas – UNICAMP, São Paulo, 1998.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Petrópolis, 2000.
COELHO, Ronaldo Simões. Bichos. Ilustr. Angela Lago. Belo Horizonte: Aletria, 2009.
ECO, Umberto. Sobre literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.
FARINA, Modesto; PEREZ, Clotilde; BASTOS, Dorinho. Psicodinâmica das cores em comunicação. 5.
ed. rev. ampl. São Paulo: Edgard Blücher Ltda, 2006.
FITTIPALDI, Ciça. O que é uma imagem narrativa? In: OLIVEIRA, Ieda de (org.). O que é qualidade
em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008, p. 93-121.
GOMES, Lenice. Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! Ilustr. André Neves. São Paulo: Cortez, 2009.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. Trad. Maria da Penha Villalobos e Lólio L. de
Oliveira. São Paulo: T. A Queiroz: Ed. da Universidade de São Paulo, 1985.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. Trad. Carlos Rizzi, São
Paulo: Summus, 1980.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de
Janeiro: Imago, 1991.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo:
Ed. 34, 1996. vol.1.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. 4. ed. São
Paulo: Ática, 1988.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothée de Bruchard. São Paulo: Cosac
Naify, 2011.
NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: palavras e imagens. Trad. Cid Knipel. São
Paulo: Cosac Naify, 2011.
OLIVEIRA, Rui de. Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil. In: OLIVEIRA, Ieda de
(org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com a palavra o ilustrador. São Paulo:
DCL, 2008, p. 13-47.
PEREIRA, Nilce M. Literatura, ilustração e o livro ilustrado. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia
Osana (orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. ampl.
Maringá: Eduem, 2009, p.377-393.
28