Budismo e Filosofia em Debate
Budismo e Filosofia em Debate
Budismo e Filosofia em Debate
em diálogo
Conselho Editorial
Adriano Naves Brito
Alcino Eduardo Bonella
Daniel Omar Perez
Eder Soares Santos
Henry Burnett
Jeanne Marie Gagnebin
Luiz Paulo Rouanet
Marcio Suzuki
Marcos Lutz Muller
Oswaldo Giacoia Jr.
Robson Ramos Reis
Sofia Stein
Editora Phi Ltda
www.editoraphi.com.br
e-mail: editoraphi@editoraphi.com.br
Editor responsável
Antonio Florentino Neto
Diagramação
Eva Maria Maschio
E-book
Eduardo de Andrade Silva
ISBN
978-85-66045-24-6
Apresentação
Organizadores
O pensamento de Nishitani e o Budismo
Hisao Matsumaru
Tradutor
Joaquim Antônio Bernardes Carneiro Monteiro
Referências bibliográficas
Gereon Kopf
Introdução
Durante a segunda metade do século vinte, emergiu uma tendência entre
eruditos anglófonos acerca da teologia e da filosofia comparadas,
responsável por retratar a filosofia budista, particularmente o Zen 禅
japonês,1 como uma “filosofia da nadidade (Nothingness)”. Masao Abe 阿
部 正 雄 2 (1915-2006), na obra Zen e o pensamento ocidental (Zen and
Western Thought, 1985), sustentou que a Escola de Kyōto desenvolveu uma
filosofia baseada em uma (nos termos de Abe, “na”) perspectiva budista e
contribuiu para o conceito de “nada absoluto” (zettai mu 絶 対 無 ) na
filosofia mundial (Abe, 1985, pp. 128; 158-9). A despeito do fato de que a
retórica Oriente-Ocidente tenha se tornado completamente insustentável e
que a filosofia budista e mesmo a filosofia da Escola de Kyōto não sejam
monolíticas, a observação de Abe é ainda hoje valiosa. Dois dos maiores
pensadores da Escola de Kyōto, Kitarō Nishida 西田幾多郎 (1870-1945) e
Keiji Nishitani 西 谷 啓 治 (1900-1990), desenvolveram, de fato, sistemas
filosóficos baseados em concepções do “absoluto não-ser” (zettai mu 絶対
無)3 e da “vacuidade” (kū 空), respectivamente. Ambos reivindicaram que
as fontes para tais concepções filosóficas assentavam na tradição budista,
particularmente nos textos da literatura Prajñāpāramitā e nas tradições
Chan e Zen. Ademais, eles concordam que a filosofia que toma o “nada
absoluto” ou a “vacuidade” como seu paradigma fundamental serve bem ao
propósito de resolver problemas basilares criados pelo dualismo cartesiano.
Entretanto, há também diferenças entre eles: Nishitani sugeriu que
“vacuidade” se refere melhor ao paradigma da filosofia que evita as
armadilhas do dualismo, incluindo o dualismo entre “ser” e “não-ser”.4
Nishida argumentou que a filosofia monista, que resolve a tensão entre os
opostos, constitui um dualismo implícito. Usando a fraseologia que conecta
opostos com o caractere soku 即 – literalmente “é”, mas mais
apropriadamente traduzido como “e-ainda” – ele expressa uma
ambuiguidade existencial e sugere que a diferença não deve ser
essencializada, tampouco pode ser abolida.5 Ambos os filósofos identificam
como suas inspirações uma variedade de textos budistas e especialmente os
escritos do Mestre Zen Dōgen 道元禅師 (1200-1253). Acredito que Dōgen
provê o diagrama para tal filosofia não-dualista. Neste trabalho, tentarei
demonstrar como a visão de mundo geral não-dualista de Dōgen afeta suas
filosofias da linguagem e da prática.
Em O tesouro do verdadeiro olho do dharma (Shōbōgenzō 正法眼蔵 ),
Dōgen desenvolve o que alguns filósofos da Escola de Kyōto chamarão
mais tarde de “filosofia da nadidade (Nothingness)”, baseados em seu
exame dos registros dos mestres Chan chineses e de outros textos budistas.
Entretanto, Dōgen, assim como tardiamente Nishitani, parece privilegiar o
termo “vacuidade” sobre o “não-ser”. O termo “vacuidade” constitui o
conceito central da filosofia do Budismo Mādhyamaka, enquanto os
pensadores chineses tendem a empregar os termos “não-ser”, “ser-e-não-
ser” (youwu 有無), ou variações derivadas desses. As razões para isto são
as de que, enquanto os membros da tradição filosófica do movimento
Mahāyāna do Budismo enfatizam “vacuidade”, também nomeada
śūnyatāvāda, sugerindo uma crítica das estruturas dualistas inerentes à
linguagem conceitual de uma terceira perspectiva, muitos dos textos do
Budismo Chan focam diretamente a desconstrução da linguagem em si
mesma. Esta desconstrução pode ser linguística ou não linguística e de
natureza performativa. Dōgen herda da tradição Chan uma profunda
desconfiança das estruturas conceituais e do śūnyatāvāda, um método para
desestabilizar a linguagem. Neste trabalho, lerei as concepções de Dōgen de
“nadidade (Nothingness)” e “vacuidade”, no contexto de seus
predecessores, com o objetivo de explorar o sentido pelo qual sua filosofia
pode ser entendida como uma iluminação a respeito da natureza da
linguagem e sua relação com a comunicação não-verbal.
O conceito de “vacuidade”
Neste ponto da obra, o leitor estará familiarizado com as filosofias dos
filósofos Mādhyamaka, especialmente Nāgārjuna. A filosofia da nadidade
emerge cerca de dois mil anos atrás, na literatura do Prajñāpāramitā
(Perfeita sabedoria). Conforme Paul Williams, “sabedoria” (prajñā 般若) “é
dito de um estado de consciência que entende a nadidade (śūnyatā) como
ausência da consciência ou da essência, mesmo nos dharmas.” (Williams,
1989, p. 43). Esta sabedoria, contudo, evidencia um amplo e diverso corpo
filosófico da literatura Prajñāpāramitā, tanto “conceitualmente” quanto
“não-conceitualmente” (Ibid., p. 44). O sūtra do coração (Mahā-
prajñāpāramitā-hṛdaya-sūtra 般 若 波 羅 蜜 多 心 經 ) (T 8.253), que
especialmente os textos da tradição budista japonesa falsamente identificam
como a versão condensada do que é equivocadamente entendido como o
ensinamento compartilhado do vasto corpo da literatura Prajñāpāramitā,
oferece, entretanto, um rápido vislumbre dos conceitos chave dentro do
śūnyatāvāda.
O Sūtra do coração, retratado como um diálogo entre Avalokiteśvara
Bodhisattva e Śāriputra, pode ser dividido grosseiramente em duas seções:
uma ladainha de negações de tudo o que é importante nos ensinamentos do
Budismo primitivo e uma seção que introduz o mantra “gate gate pāragate
pārasaṃgate bodhisvāhā” como significado para o “despertar insuperável”
(anuttarā-samyak-saṃbodhim 阿 耨 多 羅 三 藐 三 菩 提 , 無 上 菩 提 ). Os
pensadores Huayan irão tardiamente classificar o “despertar insuperável”
como o mais alto dos “cinco tipos de iluminação” (wuputi 五 菩 提 ) no
Budismo Huayan. Um olhar mais cuidadoso, entretanto, revela que esse
texto, extremamente breve e que se tornou famoso por sua fórmula “forma é
vacuidade, vacuidade é forma” (sejishikong kongjishise 色卽是空 空卽是
色 ) (T 8.253.849), introduz três usos básicos de “vacuidade”:
resumidamente, “vacuidade” 1) nega todas as essências; 2) rejeita os
principais ensinamentos do Budismo primitivo como as “quatro nobres
verdades” (āryasatya 聖諦), os “cinco agregados” (pañcaskandha 五蘊), os
“oito mundos sensíveis” (āyatanadhātu 十八界), bem como a noção de um
mundo transcendente de bem-aventurança nirvāṇa (niepan 涅 槃 ),
concebido do contraste com um mundo imanente do sofrimento, saṃsāra
(shengsi 生 死 ), e 3) implica nas funções do desprendimento como meios
soteriológicos. A frase “forma é vacuidade, vacuidade é forma, forma não
difere de vacuidade, vacuidade não difere de forma” (T 8.253.849) expressa
estas três dimensões da “vacuidade”: porque ‘forma’ (rūpa 色 ) e
‘vacuidade’ (śūnyatā 空 ) não possuem uma essência, eles não são
essencialmente diferentes um do outro. Portanto, qualquer privilégio
ideológico de um sobre outro é insignificante. Assim, prender-se a um ou
outro é uma armadilha que obstrui a sabedoria. Este é o tríplice dictum da
“não essência, não ideologia, não prender-se”, enquanto em um sentido
mais rudimentar do Sūtra do coração, a forma é a base para a “teoria da
vacuidade” no pensamento do Budismo Mahāyāna.
Dois dos textos śūnyatāvāda que são importantes para a discussão são o
Mūlamadhyamakārikā de Nāgārjuna (Longshu 龍 樹 ) (segundo/terceiro
séculos) e o Sūtra do diamante (Vajracchedikā-prajñāpāramitā-sūtra 金 剛
般若波羅蜜經) (T 8.235). No primeiro, Nāgārjuna introduz seu tetralema
como método, literalmente uma “medicina”,6 para desestabilizar a
linguagem conceitual dos discursos do Budismo primitivo; o último
constitui a ponte entre a filosofia do śūnyatāvāda e o pensamento Zen. Os
vinte e cinco capítulos do Mūlamadhyamakārikā argumentam que “não há
distinção entre saṃsāra e nirvāṇa. Não há distinção entre nirvāṇa e
saṃsāra”. Isso se dá porque nirvāṇa não é nem um “existente” (bhāva),
nem um “absente” (abhāva), nem “ambos, um existente e um absente”, nem
“nenhum dos dois, nem um existente, nem um absente” (Siderits, 2013, pp.
293-302). Nāgārjuna sugere aqui que, desde que saṃsāra e nirvāṇa são
destituídos de “autoexistência” (svabhāva), a diferença entre eles também
não pode ser essencial. O método que ele aplica sistematicamente revela a
inabilidade da linguagem conceitual para expressar a realidade em um
modo suficiente e apropriado.
O Sūtra do diamante seleciona o mesmo tema da insuficiência da
linguagem conceitual, mesmo que seu contexto seja antes o projeto
soteriológico do que propriamente o discurso filosófico. O texto é
construído como a resposta de Śākyamuni à questão de Subhūti de “como
aqueles que se estabelecem no caminho do bodhisattva devem se manter,
como eles devem andar e como eles devem controlar seus pensamentos”
(Sūtra do diamante). Em resposta, Śākyamuni elabora a noção de
“sabedoria” (prajñā). Mesmo que o nome completo do Sūtra do diamante o
identifique como membro de uma literatura sapiencial, o texto mesmo usa o
termo “sabedoria” antes de maneira esparsa e, ainda assim, geralmente no
duplo composto “olho da sabedoria” (prajñācakṣus 慧 眼 ) e “sabedoria
perfeita” (prajñāpāramitā 般若波羅蜜). O termo “vacuidade” (śūnyatā 空)
não aparece ali, em nenhum momento.7 Antes, o objetivo do Sūtra do
diamante é justapor vários opostos com o intuito de questionar a suficiência
da linguagem conceitual como guia da prática religiosa. Das traduções de
Kumārajīva (Jimoluoshe 鳩摩羅什) e na discussão da “vacuidade” no Zen
Budismo, a tradução chinesa é mais relevante que o original em sânscrito,
porque facilita essas justaposições por meio do que D. T. Suzuki 鈴木大拙
(1870-1966) mais tarde chamará de “lógica do sokuhi” (sokuhi no ronri 即
非の論理). Como Suzuki apontou, as traduções de Kumārajīva do Sūtra do
diamante usam a frase chinesa “não é” (jifei 即非) para construir frases da
forma “A não é A”; entretanto, A não é A; portanto, nós chamamos isto de
A (SDZ 5: 380-1). Contudo, enquanto eruditos como Shigenori Nagatomo
(2000) seguem as sugestões de Suzuki e interpretam essa frase para indicar
a “lógica da experiência religiosa”,8 Rein Raud (2003) e eu (Kopf, 2005)
acreditamos que o intento deste tipo de frase é desestabilizar a linguagem
conceitual e sugerir que o método para bodhisattvas de “controlar seus
pensamentos” é não-conceitual.
Discuti em outro lugar (Kopf, 2005) que é possível identificar cinco tipos
de construção conceitual usando a frase “jifei” na tradução de Kumārajīva
do Sūtra do diamante. Os protótipos destas cinco formulações são 1)
“Buddha diz ‘a perfeita sabedoria não é a perfeita sabedoria’” (T
8.235.750); “o mundialmente-honrado uma vez disse ‘as visões do mesmo,
das pessoas, dos seres sencientes e da vida não são tais visões; por isso nós
a chamamos de visão do mesmo, das pessoas, dos seres sencientes e da
vida’” (T 8.235.752); 3), “o que nós chamamos de dharma Búdico não é
dharma Búdico” (T 8.235.749); 4), “o que nós chamamos ‘todos os
dharmas’ não são todos os dharmas, por isso nós os chamamos ‘todos os
dharmas’” (T 8.235.751); 5), “o Tathāgatha diz ‘totalidade não é totalidade,
portanto nós chamamos isso de totalidade’; porque Subhūti é
incompreensível” (T 8.235.752). Caso traduzamos tais frases em fórmulas,
como fez Suzuki, leríamos da seguinte maneira: 1) “A é não A”; 2) “A é
não A, por isso chamamos isto de A”; 3) “o que chamamos de A não é A”;
4) “o que nós chamamos de A não é A, por isso chamamos isto de A”; 5) A
é não A; portanto chamamos isto de A, porque A é incompreensível”. É
realmente importante notar que, em sua maior parte, essas frases não
estabelecem uma contradição lógica, mas antes um contraste entre
conceitos e realidade.9 Nas duas instâncias, quando a fórmula pode ser
interpretada para indicar uma contradição (protótipos um e cinco), os
termos em questão constituem conceitos de significados transcendentes,
“perfeita sabedoria” e “totalidade” não são objetos particulares. Ambos
estão, por definição, além da oposição e, assim, além da contradição. A
tradução de Kumārajīva do Sūtra do diamante parece pontuar que conceitos
e posições não possuem uma relação um-para-um com a realidade que eles
sugerem e são, desse modo, insuficientes. A sabedoria dos bodhisattvas é
não-conceitual e sua obtenção requer uma desconstrução sistemática da
linguagem conceitual, como diríamos hoje. É por essas razões que o Sūtra
do diamante, mais especificamente na tradução de Kumārajīva, desfruta de
tamanha popularidade entre os pensadores e praticantes chineses.
O Sūtra da plataforma (Liuzudashifabaotanjing 六祖大師法寶壇經) (T
48.2008), que é atribuído ao sexto patriarca chinês do budismo Chan,
Huineng 慧能, leva adiante diretamente o Sūtra do diamante. O nome de
Huineng pode ser traduzido como “a possibilidade de sabedoria” e o tema
principal do Sūtra da plataforma é a “sabedoria”. Não apenas o próprio
Huineng disse ter decidido juntar-se à comunidade (sangha) budista após
ouvir a recitação do Sūtra do diamante, mas também o Sūtra da Plataforma
declara explicitamente que “o coração de qualquer um que ouve ou explica
o Sūtra do diamante será aberto pelo despertar” (T 48.2008.350). Mais
ainda, esse texto toma a “sabedoria” (bore 般若) como seu foco central. A
bem conhecida competição poética, o ponto principal da biografia de
Huineng que abre o Sūtra da plataforma, introduz seus ensinamentos como
a “medicina da vacuidade”, que nega o sentido da retificação, senão
também do essencialismo do poema de Shenxiu “o corpo é uma árvore
bodhi, a mente é como um espelho translúcido; polindo-o sempre, não se
permite que a poeira se acumule ali” (T 48.2008.348), respondendo a isso
com “bodhi não é uma árvore, nem tampouco se mantém o espelho
translúcido, originalmente não há nem sequer uma única coisa, em que a
poeira possa se acumular” (T 48.2008.348). O poema de Huineng atinge
nada menos do que uma minuciosa negação das declarações de Shenxiu.
Filosoficamente, objetiva negar qualquer tipo de essencialismo. Nesse
sentido, o texto define “sabedoria” (bore 般 若 ) negativamente, como um
“não-pensamento” (wunian 無 念 ) (T 48.2008.351) e positivamente como
prajñā (zhihui 智慧), ou seja, o conhecimento de que “tudo é um e um é
tudo” (yiqiejiyi yijiyiqie 一切即一 一即一切). Enquanto “a pessoa iludida
explica, o sábio pratica. Há ainda pessoas iludidas que quietamente se
sentam no coração da vacuidade” e novamente “a pessoa iludida profere o
pensamento, o praticante pratica a sabedoria” (T 48.2008.350). Finalmente,
“não possuir pensamentos é correto, possuí-los é maligno” (T 48.2008.355).
“Vacuidade” e a retórica do silêncio
Esta discussão um pouco longa sobre o papel da “vacuidade” na literatura
Prajñāpāramitā e sua continuidade no Sūtra da plataforma identificou os
temas principais que se tornaram formadores da ideologia Chan como foi
desenvolvida no período Tang tardio e principalmente no período Song da
China: 1) uma desconfiança da linguagem conceitual como significados
adequados para atingir o despertar, antes do que para descrever a realidade;
2) uma sistematização relativamente desestabilizadora da linguagem; 3) o
uso do que pode ser chamado um método dialético para destruir o pano de
fundo dualístico da linguagem e do pensamento; e 4) uma ênfase na prática
sobre as palavras. Esses temas se tornaram os blocos de construção para o
discurso Chan que favorece uma retórica do silêncio e o imediatismo sobre
o que foi referido como Budismo doutrinário. Esta retórica do silêncio é
mais visível nos quatro princípios do Chan e no chamado sermão da flor. Os
quatro princípios do Chan, como introduzidos pelos Registros de Linji
(Zhenzhou linji huizhao chanshi yulu 鎭 州 臨 濟 慧 照 禪 師 語 錄 ) (T
47.1985), sumarizam os ensinamentos do Budismo Chan da seguinte
maneira: “Há uma tradição fora das escrituras; ela não depende de escritos e
palavras, mas aponta para o coração da pessoa, vê sua natureza e se torna
Buda” (T 487.1985.495). Aqui, Linji explicitamente justapõe um Budismo
“doutrinário” (jiao 教 ) e um “meditativo” (chan 禪 ) e identifica a
introspecção e o autodespertar como o método base para se tornar Buda. A
frase “vê sua própria natureza” (jianxing 見性) se torna mais tarde o slogan
para muitos professores do Budismo Zen Rinzai japonês.
O sexto caso da Barreira sem portão (Wumenguan 無門關) (T 48.2005)
introduz a retórica do silêncio na forma narrativa. Escrita na dinastia Song,
retoma uma história da vida de Buda que não foi levada em consideração
nas escrituras dos primeiros 1500 anos de Budismo. Quando os discípulos
se reuniram em torno de Śākyamuni no Pico do Abutre, ele simplesmente
ergueu uma flor e seu aluno Mahākāśyapa sorriu. Os estudantes lhe pediram
que explicasse e sua famosa resposta foi: “Eu possuo o tesouro do
verdadeiro olho do dharma; é o coração do nirvāṇa e o misterioso portão
informe do dharma. Ele não se apoia em escritos ou palavras, mas se
constitui em uma tradição especial fora das escrituras. Eu acabei de
transmiti-lo a Mahākāśyapa” (T 49.2005.293). Essa citação é importante
para nossa presente discussão, porque localiza os dois primeiros dos quatro
princípios do Budismo Chan na vida de Buda e, assim, provê a mais alta
autoridade para a retórica do Chan, que permeia muito do ensinamento
Chan e, em especial, do pensamento Zen de D. T. Suzuki, que popularizou o
Zen Budismo em inglês.
Por outro lado, os textos Chan herdaram a concepção Mahāyāna de que
“saṃsāra não é diferente de nirvāṇa e nirvāṇa não é diferente de
saṃsāra”. Esta posição não-dual é expressa em ditos como “esta mente é o
Buda” (jixinshifo 即心是佛) (T 48.2005.296). O Wumenquan localiza essa
frase em uma conversa entre Daoyi Mazu 馬 祖 道 (709-788) e Damai
Fachang 大 梅 法 常 (752-839). É umas dentre as várias frases Chan,
incluindo a famosa sentença de Linji “o dharma de Buda não é útil nem
cumpre nada; não constitui nada senão o cotidiano e ordinário: defecar e
urinar, vestir-se, comer e beber, retirar-se quando estiver cansado” (T
47.1985.498), que colapsaram a distinção entre Buda e os seres sencientes.
Tais ditos são iconoclastas, por um lado, e profundamente filosóficos, por
outro, na medida em que eles não deixam espaço, como argumentarei
adiante, nem para o dualismo, nem para o monismo. Citei a frase de Mazu
porque Dōgen escreveu um comentário sobre ela e Nishida a cita para
desenvolver seu conceito de “identidade das contradições absolutas” (zetai
mujunteki jiko dōitsu 絶対矛盾的自己同一) (NKZ 8: 516). Mesmo o Sūtra
da plataforma declara, a despeito de sua clara distinção entre aqueles que
aderem às palavras e aqueles engajados na prática, que “pessoas ordinárias
são Budas, desejo é a mente desperta” (T 48.2008.350) e assim colapsa a
cuidadosamente construída distinção entre a “mente iludida” (wangxin 妄
心) (T 48.2008.354) das pessoas ordinárias e a “não-mente” (wuxin 無心)
da “sabedoria” (T 48.2008.357).
A tensão entre a retórica do silêncio que permeia a tradição Chan Budista
e o não-dualismo de imanência e transcendência, “essa mente” e o Buda,
deixa pensadores nas tradições Sŏn e Zen advirem com soluções criativas
sobre como reconciliar tais posições aparentemente opostas. Pojo Chinul 普
照 知 訥 (1158-1210) facilita uma síntese entre Budismo doutrinário e
meditativo para fazer de sua ordem Chogye 曹溪宗 a mais forte potência
budista da dinastia Chŏson. Para Chinul, samādhi (sanmae 三 昧 ), o mais
alto estado meditativo, constitui a função e prajñā a essência da mente.
Suscintamente, samādhi e prajñā são dois caminhos e descrições do mesmo
estado cognitivo. Robert Buswell explica:
Samādhi, à guisa de calma, concorda com a vacuidade noumenal; é usado como contra-distração. Prajñā, à guisa de alerta, concorda com pluralidade fenomenal; é usado
para simular a mente fora do ocasional embotamento que obscurece a qualidade penetrativa natural. Em suas formas relativas, samādhi e prajñā são instrumentos para
reagir contra a ignorância e seu alastramento; eles são usados até a iluminação ser alcançada (Buswell, 1983, p. 63).
Soseki Musō 夢 窓 疎 石 (1275-1351), igualmente, enxerga doutrinas e
meditações como cura para a “ilusão e ignorância” (Musō, 2000, p. 110).
Entretanto, ele aborda a divisão entre Budismo doutrinário (kyō 教 ) e
meditativo (zen 禅 ) como um estado anormal e considera-os patológicos.
Ele usa o termo “doença doutrinária” (kyōbyō 教病) e “doença meditativa”
(zenbyō 禅病) para descrever seu estado de dissociação:
No lugar original das pessoas, os aspectos patológicos de ilusão e despertar, de seres ordinários e santos, não existem. Os corretos ensinamentos do portão do dharma
constituem a meditação. Portanto, se você inicia com tais aspectos patológicos, haverá sofrimento baseado em falta de precisão... Se pessoas desenterram ilusões e
ignorância, eles não verão a reencarnação de nascimento-e-morte passado-e-futuro. Não há discriminação entre pessoas ordinárias e santos, ilusão e despertar. (Musō,
2000, pp. 109-10).
Tradução
Luiz Fernando Fontes-Teixeira
Referências bibliográficas
Abreviações
Uma análise atenta desse trecho aponta para uma conjunção entre a
consciência cármica da Mente-da-Fé e o Nome luminoso, como causa e
condição do “ir-nascer” na Terra Pura. O fato de a Mente-da-Fé seja
definida em termos da “consciência cármica” implica que ela é uma função
mental condicionada e incontaminada. A estrutura do trecho pode dar a
impressão de que esta Mente-da-Fé existe como um a priori já dado no
fluxo de dharmas que constitui a condição humana, mas a impossibilidade
dessa interpretação será esclarecida durante o desenvolvimento deste artigo.
Resumindo, é possível sintetizar a estrutura desta “causalidade do ir-nascer”
através dos quatro dharmas do Ensinamento, da Prática, da Mente-da-Fé e
da Realização. O Ensinamento é entendido tradicionalmente como o
Grande sutra da vida imensurável, mas pode ser definido como as causas e
condições que conduzem ao encontro entre o nascimento na condição
humana e o surgimento do Buda Sáquia-Muni no mundo; a Prática,
entendida como a Louvação do Nome pelos Budas, consiste na transmissão
desse Ensinamento pelos sete Patriarcas dos três países (Índia, China,
Japão); a Mente-da-Fé é o primeiro instante de consciência supramundana
que surge em função do ouvir e da reflexão sobre o “Ensinamento”; e a
Realização consiste na completitude do Grande Nirvana, que ocorre no
instante da morte. Nesse contexto, a relação entre a Mente-da-Fé (causa) e a
Realização (fruto) assume uma dimensão central no processo de elucidação
do pensamento de Shinran. Dentre as diversas obras escritas por Shinran,
não existe nenhuma que tenha explicitado de forma tão clara e incisiva a
relação causal entre a Mente-da-Fé e a Realização, assim como a tensão
existente entre o presente (Mente-da-Fé, causa) e o futuro (Realização,
fruto), quanto o Jodo Sankyo Ojô Monrui. Como um claro exemplo, é
possível citar o trecho inicial desta obra:
Chamamos de Outro-poder ao ir-nascer de acordo com o Grande Sutra, ao Voto Original da opção do Tathagatha e ao inconcebível Oceano do Voto. Ou seja: em função da
causa proporcionada pelo Voto de ir-nascer através do Nembutsu, realiza-se o fruto da infalível realização da extinção. Estabelecendo-se no estado corretamente
assegurado na existência presente, alcança certamente a Terra da verdadeira fruição. Como isso se deve à causa proporcionada pelo direcionamento para o ir-nascer
derivado do Tathagatha Amitabha, conduz à abertura da iluminação do Supremo Nirvana. A isso chamamos de essência do Grande Sutra. Assim sendo, é intitulado o ir-
nascer de acordo com o Grande Sutra, ou ainda, de ir-nascer difícil de ser concebido (Ibid., p. 551).
É possível concluir daqui que para Shinran não faz sentido algum
pressupor um conceito de “religião em geral” ou buscar uma
fundamentação da verdade religiosa em supostos “fatos de experiência
espiritual” no sentido moderno do termo.
A perspectiva de Nishida na filosofia da religião apresenta um contraste
essencial com essa visão. Existem duas razões para pensar dessa forma. A
primeira delas é que, mesmo supondo um vínculo essencial entre sua
filosofia e uma perspectiva religiosa, ele nunca foi um filósofo da religião
no sentido rigoroso do termo. Seu pensamento inclui reflexões decorrentes
de sua postura, enquanto pensador da modernidade japonesa, sobre a ética,
a estética e a ciência. A segunda e mais importante é que a filosofia da
religião em Nishida possui mais o caráter de uma “filosofia da religião em
geral” do que de uma filosofia exclusivamente budista. Nishida não
pressupõe em momento algum uma relação autoevidente com a tradição
budista e procura pensar a essência da religião a partir de supostos “fatos da
experiência espiritual”. É possível demonstrar a existência desse ponto de
vista através da citação dos seguintes trechos de sua obra final, a Lógica do
topos e a visão de mundo religiosa: “A religião é um fato espiritual”
(Nishida, 2002, p.299); “Os filósofos não devem inventar a religião a partir
de seus sistemas. Eles devem apenas explicar esses fatos espirituais” (Ibid.).
“Não existe religião sem Deus: Deus é o conceito central da religião” (Ibid,
p. 300). “Deus surge como um fato espiritual de nosso si-mesmo” (Ibid.). A
referência ao conceito de “Deus” pode parecer estranha em um filósofo
associado à tradição budista, mas esse “Deus” pressuposto pela filosofia de
Nishida pode ser pensado como um denominador comum de todas as
religiões. Nesse sentido, é possível apontar para uma diferença essencial na
abordagem da religião em Shinran e Nishida. b) Uma diferença essencial do
conteúdo teórico da filosofia da religião em Shinran e Nishida pode ser
detectada através da diferença entre os conceitos da “causalidade do ir-
nascer” e da “autodeterminação do presente absoluto”. A “causalidade do
ir-nascer”, conforme entendida por Shinran, pressupõe uma forte tensão
entre o presente e o futuro. Uma consequência dessa tensão é a contínua
ultrapassagem da realidade dada: essa ultrapassagem se dá, tanto em relação
ao ódio, à cobiça e à ignorância, como em relação aos pensamentos
hegemônicos em uma época dada. No entanto, será possível identificar uma
perspectiva semelhante no conceito da “autodeterminação do presente
absoluto” em Nishida? É possível situar essa questão a partir dos trechos
seguintes de sua obra final: “Chamo a este mundo de mundo da
autodeterminação do presente absoluto” (Ibid., p. 305). “Isso é
verdadeiramente a autodeterminação do presente absoluto a que me refiro”
(Ibid., p. 362). “O verdadeiro indivíduo surge em função do instante da
autodeterminação do presente absoluto” (Ibid., p. 369). “Nosso si mesmo
consiste verdadeiramente na criação do mundo histórico como a
autodeterminação do presente absoluto” (Ibid.).
Para Nishida, a “autodeterminação do presente absoluto” surge a partir
do nascimento do indivíduo histórico, que se dá em função da consciência
da morte e da irreversibilidade do tempo histórico. Esse nascimento é
considerado como o fator que possibilita a práxis da criação do mundo
histórico. Essa abordagem pareceria promissora em termos de inaugurar
uma relação tensa entre o presente e o futuro, assim como a ultrapassagem
da realidade dada, não fosse pela característica explicitada no trecho
seguinte: “Ele torna-se o centro do presente absoluto, que inclui em si o
passado e o futuro eternos” (Ibid., p. 307).
Essa concepção de um centro do presente absoluto que inclui em si o
passado e o futuro eternos aponta para uma perspectiva estática que anula a
tensão entre o presente e o futuro e a possibilidade de uma ultrapassagem
crítica da realidade dada. Acredito existir aí uma diferença irredutível entre
as perspectivas de Shinran e Nishida. Essa visão de um presente absoluto
que abarca o passado e o futuro em seu interior parece trazer em si o risco
de transformar em um absoluto a realidade histórica dada. c) O ponto final a
exigir nossa atenção é a relação de Shinran e Nishida com o “pensamento
da Iluminação Original”. Caso a questão da continuidade ou da
descontinuidade em relação a esse pensamento seja considerada como a
questão central da avaliação do pano de fundo do pensamento de Shinran
no Budismo da idade média japonesa, coloca-se diante de nós um problema
que exige uma análise rigorosa dos diversos aspectos de sua obra. No
entanto, caso seu pensamento seja compreendido através da articulação do
conceito da “causalidade do ir-nascer”, torna-se necessário reconhecer uma
ruptura radical em relação a este padrão de pensamento. A relação de
Nishida com o “pensamento da Iluminação Original” é mais complexa e
exige uma atenta consideração. Em que pese sua pretensão de não assumir
uma postura inequivocamente budista em sua filosofia, Nishida não só se
interessa pelo pensamento do Prajnaparamita, como também alimentou a
expectativa de aplicá-lo na compreensão da historicidade e da
individualidade. A presença desta intenção pode ser claramente atestada
através da citação seguinte: “É precisamente o pensamento do
Prajnaparamita no Budismo que é verdadeiramente capaz de realizar a
dialética absoluta” (Ibid., p. 329). Na medida em que não existe uma
relação inequívoca entre o pensamento do Prajnaparamita e o conceito da
“Iluminação Original”, não é possível apontar para o trecho acima como
demonstrando a existência de um vínculo entre a filosofia de Nishida e este
último conceito. No entanto, é possível conferir a forma com que Nishida
compreende o Prajnaparamita através das citações seguintes: “Podemos
nos referir a isto como consistindo na identidade entre o Sânsara e o
Nirvana” (Ibid., p. 352); “Em função disso, trata-se da autoidentidade entre
o Sânsara e o Nirvana” (Ibid., p. 354).
Os dois trechos acima citados apontam claramente para uma das
características do “pensamento da Iluminação Original”: a autoidentidade
entre o caráter impermanente e insatisfatório dos dharmas e sua essência
não nascida e imperecível. Esse aspecto não pode ser considerado como
uma demonstração suficiente da relação entre a filosofia de Nishida e o
“pensamento da Iluminação Original”, mas o trecho seguinte pode ser
bastante esclarecedor a este respeito: “Nosso si mesmo não penetra no
mundo do não surgimento e da não extinção abandonando a sua vida. Ele é
não nascido e imperecível desde o começo” (Ibid., p. 352). Nesse trecho,
Nishida aponta para o caráter originário do si mesmo humano como
idêntico à natureza não nascida e imperecível dos dharmas. Essa asserção
não só parece apontar para uma identidade entre o pensamento de Nishida e
o conceito da “Iluminação Original”, como também fornece uma
inequívoca fundamentação metafísica para a visão do tempo histórico como
um absoluto, expressa no conceito da “autodeterminação do presente
absoluto”. É possível apontar aqui para uma diferença essencial entre as
perspectivas de Shinran e de Nishida.
A conclusão é que, como existe uma diferença essencial entre as
perspectivas de pensamento em Shinran e Nishida, uma compreensão do
pensamento de Shinran em termos da Escola de Kyoto deve ser considerada
pelo menos problemática.
Conclusão
É possível sintetizar o percurso da análise desenvolvida no presente
estudo através das proposições: a) Shinran e a Escola de Kyoto se
constituem como duas tendências de importância decisiva na história do
pensamento japonês. Shinran é um autor de importância central no contexto
intelectual da idade média japonesa e considerado como um dos possíveis
precursores de uma filosofia especificamente japonesa. A Escola de Kyoto
se constitui como a tendência central da moderna filosofia japonesa. A
perspectiva dessa escola implica por um lado uma leitura especificamente
japonesa da filosofia ocidental e, por outro, uma tentativa de recolocar as
questões do pensamento tradicional japonês. b) Em meio às tentativas de
retomar as temáticas do pensamento tradicional japonês, a obra de Shinran
se tornou objeto de um forte interesse por parte de alguns filósofos da
Escola de Kyoto. Shinran foi pensado nesse contexto como um precursor da
desmitologização existencial dos discursos religiosos e como um
importante filósofo da história. Esse interesse por parte dos autores da
Escola de Kyoto pode proporcionar um importante contraste a partir do qual
e possível que se possa colocar a especificidade do pensamento do próprio
Shinran. Como um exemplo importante desse contraste, é possível colocar a
seguinte questão: será possível compreender corretamente o conteúdo
teórico do pensamento de Shinran através de conceitos como o “Nada
absoluto” e a “autodeterminação do presente absoluto”? c) Uma deficiência
da abordagem dos autores da Escola de Kyoto em relação à obra de Shinran
é a falta de uma perspectiva capaz de situá-la em relação ao seu pano de
fundo no pensamento budista da idade média japonesa. No contexto deste
artigo, esse pano de fundo foi pensado em termos da questão da
continuidade ou da descontinuidade em relação ao “pensamento da
Iluminação Original” (Hongaku Shisô), conforme proposto pela perspectiva
do Budismo crítico (Hihan Bukkyo). d) A obra de Shinran é extremamente
complexa, apresentando matizes bastante diversos. Caso ela seja pensada
em termos de obras como o Yui shinshô Mon-i, é possível detectar traços de
uma forte continuidade com o “pensamento da Iluminação Original”; caso
compreendida através de um trabalho como o Jodo Sankyo Ojô Monrui, ela
se constitui como uma ruptura radical com esse pensamento. O conceito da
“causalidade do ir-nascer” articulado a partir da estrutura lógica dessa
última obra possibilita uma expressão contundente de sua ruptura com esse
padrão de pensamento. e) A “causalidade do ir-nascer” implica uma relação
tensa entre o estabelecimento presente na Mente-da-Fé (causa) e a futura
realização da Grande extinção (fruto). Essa tensão entre o presente e o
futuro implica um processo contínuo de ultrapassagem da realidade dada.
Essa ultrapassagem implica tanto a ruptura com o ódio, a cobiça e a
ignorância característicos da condição humana, como na crítica aos
pensamentos hegemônicos de uma época dada. h) O conceito da
“autodeterminação do presente absoluto”, conforme compreendido na obra
final de Nishida, a Lógica do topos e a visão de mundo religiosa, implica
uma temporalidade estática em que o presente abarca em seu interior o
eterno passado e o eterno futuro. Não existe aí nem a tensão entre o
presente e o futuro, característica da “causalidade do ir-nascer”, nem um
processo de ultrapassagem da realidade dada. Ao mesmo tempo, a
proximidade entre a estrutura lógica do pensamento do Nishida tardio e o
conceito da Iluminação Original traz em si o forte risco de uma
compreensão da realidade histórica como um absoluto. i) É possível
concluir que existe uma diferença essencial entre o pensamento de Shinran,
compreendido em termos da “causalidade do ir-nascer”, e a perspectiva da
Escola de Kyoto, conforme expressa em conceitos como o “Nada absoluto”
e a “autodeterminação do presente absoluto”. Isso aponta para a forte
possibilidade de que talvez seja precisamente em função de uma crítica
radical ao pensamento dessa escola que se tornará possível um renovado
desenvolvimento da perspectiva inaugurada por Shinran em sua relação
com a contemporaneidade.
Referências bibliográficas
Referências bibliográficas
Gereon Kopf
Tradução
Ethel Panitsa Beluzzi
Referências bibliográficas
Introdução
O pensamento filosófico da Escola de Kyoto se constitui a partir de três
pilares básicos que são as ideias de Kitarô Nishida (1880-1945), Hajime
Tanabe (1890-1970) e Keiji Nishitani (1900-1990). Essas três linhas não
podem, porém, ser pensadas isoladamente, pois elas se formam em uma
relação de reciprocidade crítica e de assimilação de elementos comuns entre
si. Este corpus extremamente heterogêneo que se consolida como uma
Escola de Filosofia tem como elemento comum um método aparentemente
simples: pensar as questões centrais postas pela filosofia ocidental a partir
de elementos das tradições filosóficas orientais. A simplicidade, porém, se
desvanece a partir do instante em que entramos com mais cautela no
universo da filosofia de algum desses pensadores. Nishida e Tanabe
constroem sistemas filosóficos bem elaborados e dialogam com pensadores
ocidentais que criaram grandes sistemas metafísicos, tais como Platão,
Aristóteles, Kant, Hegel, Schelling e Fichte, assimilando dessa tradição uma
forte influência na forma de fazer filosofia. Nishitani, por outro lado,
dialoga com os principais filósofos ocidentais tidos como antimetafísicos,
principalmente Mestre Eckahrt, Nietzsche e Heidegger, e esse diálogo
marca decisivamente sua filosofia, que pode ser dividida em dois momentos
distintos, cujo marco divisor é a Segunda Guerra.
A primeira impressão que se tem, ao se iniciar as leituras sobre a Escola
de Kyoto, é que ela se constitui a partir de uma releitura simples da tradição
filosófica ocidental, apresentando apenas alguns aspectos originais
particulares oriundos da fusão de elementos da tradição oriental com temas
pontuais da filosofia ocidental. Um olhar mais próximo, entretanto, coloca-
nos diante de algumas questões que, com seus desdobramentos, apresentam
uma perspectiva filosófica que tem origem em pressupostos diferentes das
bases da tradição ocidental. A filosofia da Escola de Kyoto dialoga com o
pensamento ocidental, todavia, a partir de pressupostos próprios. São
precisamente alguns desses pressupostos que serão tomados aqui, como
referência para a exposição de um aspecto elucidativo da dinâmica
fundamental da filosofia da Escola de Kyoto, especificamente da filosofia
de Nishitani, um de seus principais expoentes.
A filosofia da Escola de Kyoto se insere dentro da tradição filosófica
Zen-budista que tem, em sua história, importantes monges-filósofos tais
como Seng Zhao, Fa Zang, Rinzai, Dōgen e Shinran, pesadores cruciais
para uma das mais importantes vertentes da tradição filosófica oriental.
Todos esses pensadores tem em comum o fato de estarem vinculados de
alguma forma ao Zen-budismo, filiação esta que nos remete diretamente a
duas vertentes filosóficas orientais distintas: a Madyamaka de Nāgārjuna da
Índia e o Taoísmo de Laotzi e Tschuanzi da China, que se encontram e se
fundem, dando origem assim ao Zen-budismo, importante linha do
Budismo Māhāyana, que chega até a Escola de Kyoto.
A escola budista Madyamaka, fundada por Nāgārjuna, constitui-se
fundamentalmente a partir de duas referências centrais: shunyata
(vacuidade) e pratityasamupada (co-originação dependente). Tais
elementos, com seus abrangentes desdobramentos, são as bases do Budismo
que, nos primeiros séculos da era cristã, chega à China, encontra-se com
elementos do Taoísmo e a ele se funde, principalmente com os princípios
wu-wei e wu-wo, dando origem assim ao que denominamos, de forma geral,
Zen-Budismo. Esses conceitos, ou princípios fundamentais, perpassam toda
história da filosofia Zen-budista e permanecem presentes nas referências
orientais que fundamentam a releitura dos problemas da filosofia ocidental,
feita pelos filósofos da Escola de Kyoto, principalmente por Keiji Nishitani.
A superação da metafísica através da superação do niilismo
Com Nishitani, a filosofia da Escola de Kyoto inicia sua “fase
Heidegger” que se torna uma de suas referências filosóficas ocidentais
importantes. Mais de uma década após concluir seu doutorado sobre
Schelling no Japão, Nishitani viaja para a Alemanha, onde frequenta os
cursos de verão oferecido por Heidegger sobre Nietzsche, na segunda
metade da década de 1930, em Freiburg, e apresenta, nessa ocasião, um
seminário sobre o “nada” em Mestre Eckhart e Nietzsche. Tais cursos de
Heidegger, publicados posteriormente com os títulos Nietzsche I e Nietzsche
II (Heidegger, 2007), marcaram profundamente suas duas principais obras
posteriores. A primeira delas, intitulada Niilismo, traz, já no título, uma
referência direta ao tema principal abordado nos cursos de Heidegger e a
segunda, intitulada O que é religião? (Nishitani, 1986), é um
desdobramento das questões principais da obra anterior e se torna o escrito
principal de Nishitani.
Esta conjunção marca decisivamente o trabalho de Nishitani,
principalmente o livro O que é religião? Não temos, nesta obra de
Nishitani, somente as influências das leituras de Mestre Eckhart, em um
curso sobre Nietzsche, ministrado por Heidegger; temos também o pano de
fundo desta leitura, qual seja, sua própria trajetória budista que, de maneira
mais evidente que n filosofia de Nishida e Tanabe, fora fortemente inspirada
pela ontologia madhyamaca, pelo “caminho do meio”, corrente dominante
do budismo do grande veículo, cujas fontes remontam aos escritos do
filósofo indiano Nāgārjuna. Nishitani dialoga, portanto, com pensadores
centrais da metafísica ocidental, principalmente com Eckhart, Nietzsche e
Heidegger a partir de referências orientais e somente a partir de tais
referências podemos compreender seu projeto de superação do niilismo.
Antes, porém, faz-se necessário destacar alguns pontos referentes ao
problema.
O projeto de superação da metafísica em Nishitani se funde com a ideia
de superação do niilismo e é o ponto central de sua filosofia após a Segunda
Guerra Mundial, permanecendo presente em alguns escritos importantes das
gerações posteriores da Escola de Kyoto, principalmente em Ueda (cf.
Ueda, 2013). Somente a afirmação da necessidade da superação do niilismo
já nos coloca diante de algumas questões instigantes que permitem levantar
objeções simples a Nishitani, tais como: por que o niilismo deve ser
superado? Por que não podemos simplesmente conviver em paz com o
niilismo? Em última instância, essa afirmação nos permite pôr ainda uma
questão fundamental: seria o niilismo uma manifestação exclusivamente
ocidental, europeia? Se o niilismo for o resultado da história da metafísica
que se desenvolveu no ocidente, pode-se então perguntar se Nishitani, ao
tratar desse tema, não estaria somente assumindo a perspectiva de
superação do niilismo já apontada por Heidegger em seus seminários sobre
Nietzsche, na segunda metade da década de 1930.
Nishitani tem, portanto, o niilismo ocidental como tema central de sua
pesquisa filosófica e os resultados desse trabalho, publicados em seu livro
intitulado The overcoming of niilism, de 1949 (Nishitani, 1990), reaparecem
de forma ainda mais clara em sua obra principal, O que é religião?,
publicado na década posterior. É, entretanto, a compreensão de Heidegger
sobre a própria origem do niilismo ocidental que se torna o elemento central
para ele. Heidegger não compreende o niilismo como resultado da
construção dos valores que ocorrem no mundo ocidental a partir de Platão,
perpassando toda história a filosofia ocidental, os quais teriam sido
desconstruídos com o anúncio da morte de Deus, em Nietzsche. Mais que a
destruição de todos os valores - morais, religiosos, científicos e filosóficos -
a questão central, a “essência” do niilismo ocidental, estaria, para
Heidegger, diretamente vinculada a um “esquecimento ontológico”, a uma
ineficiência da metafísica ocidental para pensar rigorosamente sua questão
mais importante: o “nada”.
A essência do niilismo talvez resida no fato de não se levar a sério a pergunta sobre o nada. De fato, deixamos a questão sem desdobramento e permanecemos parados
obstinadamente no esquema interrogativo de um ou-ou há muito habitual. Diz-se, com uma concordância genérica: ou bem o nada “é” algo inteiramente nulo, ou bem ele
precisa ser um ente. Todavia, na medida em que o nada nunca pode ser evidentemente um ente, não resta outra coisa senão afirmar que ele é o pura e simplesmente nada.
Quem se disporia a se subtrair a essa “lógica” concludente? Todos respeitam a “lógica”; mas o pensamento correto só pode ser conclamado como o tribunal de uma
decisão derradeira se estiver anteriormente certo de que aquilo que deve ser pensado como “correto”, segundo as regras da lógica, também esgota tudo aquilo que é
pensável, tudo aquilo que há para pensar e tudo aquilo que é entregue ao pensamento (Heidegger, 2007, p. 38).
Referências bibliográficas
same class is conducive to forming the notion ‘blue patch’ as something transcending the individual moment43 […]. Saṃjñā thereby becomes the principal
element in the creation of a single term for a multitude of changing factors, and thus, by virtue of the requirement of a single referent, saṃjñā creates
prajñaptisat entities […]. Necessarily therefore its function is for a Buddhist falsification (Williams, 1980, pp. 16-7)
Em suma, decididamente, os possíveis paralelismos entre a filosofia da
mente budista e a vertente reducionista da reflexão contemporânea sobre a
natureza do si são múltiplos e fecundos. Entretanto, também no que diz
respeito às teorias que examinamos na seção 4 deste escrito – ou seja,
aquelas que, ao negar o si ‘cartesiano’, admitem uma subjetividade
‘transcendental’ – o pensamento budista parece ter muito a oferecer. Como
ressaltado por numerosos autores contemporâneos que se dedicam às
questões aqui analisadas, é possível encontrar, particularmente dentro da
reflexão da escola Yogācāra e da escola lógico-epistemológica,44 um preciso
antecedente conceitual da ideia de que seja necessário distinguir entre si e
subjetividade. Assim, embora, como observado anteriormente, o
reducionismo seja a posição mais frequentemente atribuída ao budismo no
seu conjunto, seria errado considerá-la como sua posição conclusiva com
relação às questões aqui examinadas.
Teorias budistas e distinção si/subjetividade
Ālaya-vijñāna
Referências bibliográficas
Metafísicas Instrumentais
A espiritualidade postula que a Verdade não está disponível para o
sujeito como um direito. (...) Postula que a Verdade não está disponível
para o sujeito por um simples ato de ‘conhecimento’, que seria
justificado pelo simples fato de que ele é um sujeito e porque possui
esta ou aquela estrutura de subjetividade. Postula que para ter acesso à
Verdade, ele deve ser mudado, transformado, deslocado, e tornar-se,
até certo ponto e em certa medida, um outro de si-mesmo. A verdade
disponibiliza-se ao sujeito ao custo de colocar em questão a existência
mesma desse sujeito. (...) Segue-se, necessariamente, dessa
perspectiva, que não pode haver acesso à Verdade sem a conversão ou
a transformação do sujeito. Esquematicamente, podemos afirmar que,
ao longo do que chamamos de Antiguidade, e em modalidades as mais
diversas, a questão filosófica de ‘como se alcançar a Verdade’ e a
prática da espiritualidade (as transformações necessárias do próprio
existir do sujeito que lhe permitem o acesso à Verdade), essas duas
questões, esses dois temas, não se achavam jamais separados.(...) O
cuidado de si (epiméleia heautoû) designa, precisamente, o pacote de
condições da espiritualidade, o pacote de transformações do sujeito,
constitutivo das condições necessárias para o acesso à Verdade.
(Foucault, 2005, pp. 15-7)
Referências bibliográficas
Qual das afirmações podemos tomar como aquela que espelha o que
Heidegger verdadeiramente pensa: a do seu diálogo com o monge budista
que acabamos de citar ou a do seu diálogo com o psiquiatra Boss, vista na
citação anterior, na qual afirmava que “ [...] todo o ‘meditar’ indiano nada
quer senão essa experiência do nunc stans, [...] no qual o passado e o futuro
são abolidos num presente imutável”? Difícil de responder. Essa parece ser
uma das mais agudas ambivalências de Heidegger no tocante à sua relação
com o pensamento oriental, na qual diante de um tema central do budismo,
a questão da meditação, o filósofo assume duas posições inteiramente
opostas.
Todavia, como toda oscilação descreve um movimento pendular, o exame
que realizamos até aqui mostrou um dos lados do pêndulo, o negativo, no
qual procuramos explicitar o ceticismo de Heidegger em relação à mística e
ao pensamento oriental. Qual seria o seu lado pendular positivo? Quais
seriam os reais motivos para, ao mesmo tempo, ele demonstrar um sério e
contínuo interesse para com esses dois modos de pensamento? É do que
trataremos na segunda parte de nossa exposição.
A questão do nada como fundamento do diálogo entre
Heidegger e a tradição pré-metafísica
O lado positivo do pêndulo referente ao ceticismo de Heidegger não é
explícito, mas subentendido, latente. E, salvo breves menções lançadas aqui
e ali, o filósofo nunca, de fato, assumiu de modo claro uma possível
apropriação que fez do caráter positivo da mística e do pensamento oriental.
Não é difícil supor as razões para esse silêncio, ou seja, é compreensível
que ele tenha adotado um cuidado bastante pertinente em relação aos seus
críticos contra o perigo de uma identificação rápida e superficial de seu
pensamento com o misticismo ou com religiões asiáticas, cujo resultado não
seria outro senão uma simples deformação para ambos. Qual seria, por
conseguinte, o lado positivo e oculto de seu interesse pelo pensamento pré-
metafísico?
O caminho apofático: único acesso para a ultrapassagem da
metafísica
A filosofia para Heidegger, ao logo de toda a sua tradição, foi sempre
“uma questão da razão” (eine Sache der ratio), de tal forma que filosofia,
metafísica e racionalidade ocidental devem ser tomadas como sinônimas.
Tais palavras significam um modo de interpretar o real a partir de uma
plataforma comum fornecida pelo principium rationis, que outorga razões
suficientes para a construção de toda proposição, além de oferecer todo
arsenal da lógica para isolar o caráter substancial ou entitativo dos entes.
Nesse sentido, Heidegger não é um renovador da filosofia – como um
Descartes, um Kant, um Husserl, entre outros - mas um recuperador do
pensamento (Caputo, 1986, pp. 3-5). Nesse sentido, se revolução no âmbito
da filosofia é sempre no sentido de afirmá-la ainda mais como filosofia, a
revolução de Heidegger é justamente o contrário, ou seja, é saltar para fora
da filosofia.
Como sabemos, Heidegger – na condição do mais radical dos discípulos
de Husserl, indo além do próprio mestre na conhecida máxima da
fenomenologia “às coisas mesmas” (an den Sachen selbst) – ao longo de
todo o seu itinerário, sempre procurou ultrapassar os limites da filosofia,
justamente pelo traço de cientificismo que a constitui e que se encontra
incrustado no coração do pensamento ocidental. Esse é um modo de pensar
que – desde a antiguidade clássica, toma o ser do real a partir do próprio
homem, segundo sua imagem, semelhança e necessidades – é chamado por
Heidegger de “humanismo”.
Esta palavra deve aqui ser pensada de modo essencial, ou seja, em sua acepção mais ampla. ‘Humanismo’ designa, então, o processo – ligado ao início, ao
desenvolvimento e ao fim da metafísica - pelo qual o homem, em perspectivas cada vez diferentes, mas sempre conscientemente, se coloca em um centro do ente, [...]
(com o intuito) de libertar suas possibilidades, de chegar à certeza de sua destinação e de colocar-se a salvo de sua ‘vida’ (Heidegger, 1968, pp. 160-1).
Heidegger entende que este traço de cientificidade que acompanha a
filosofia – seja na sua antiga acepção de epistéme ou na moderna acepção
de scientia – é o mesmo que “humanismo”, pois engendrou um modo de
pensar que, em suas diversas variações, proporciona e justifica ao homem
uma posição cada vez mais central na totalidade do ente, ao mesmo tempo
em que, gradativamente, empurra para fora do horizonte do humano
qualquer traço de transcendência. Por conseguinte, desde o início do
itinerário de seu pensamento, Heidegger entende que para pensar o ser na
perspectiva não representacional, terá que demolir as bases da filosofia
interpretada como metafísica. Toda a sua obra, por conseguinte, representa
um esforço sem tréguas para promover a sua conhecida Abbau der
Metaphysik, desconstrução da metafísica, com o intuito de abrir uma nova
perspectiva na abordagem do problema do ser.
A perspectiva que se abre para Heidegger é pensar o ser a partir do
horizonte do tempo, não como categoria ôntica, como sempre fez a
metafísica, mas do tempo vivido, tal como ele se manifesta em nossa
existência fática, concreta, finita. Devemos entender, portanto, que ao
romper com as questões centrais da filosofia, enquanto metafísica,
Heidegger rompe também com esse caráter de centralidade do homem em
meio ao real. O centro não é o homem. O centro está fora do homem. O
caminho que se apresenta a Heidegger é o de resgatar uma experiência
originária, presente no início do pensamento ocidental, numa época anterior
ao nascimento metafísica, mas que não foi devidamente pensada pelos
primeiros pensadores e permaneceu esquecida por toda a posteridade
metafísica: a experiência do sentido do ser.
Ora, que pensamento é esse que apreende o ser como o centro do real,
radicado fora do homem, e que, ao contrário, toma o homem como os
demais entes gravitando em torno, desse centro? Que tipo de pensamento
que, por sua essência, se orienta pelo caráter do ser e do tempo tomados
como experiência, que procura apreender a existência humana em sua
imediatidade concreta e em sua unidade com o real em seu todo, evitando
construções explicativas da mente racional que nos dão a falsa sensação de
que detemos o controle e a posse do real e de nós mesmos?
A resposta a essa pergunta parece clara: um pensamento de tradição pré-
metafísica. Tal pensamento poderia ser chamado de diversos nomes, tais
como: antigo, primitivo, mítico, poético, místico, pré-filosófico, pré-lógico,
pré-científico, pré-teórico, ante-predicativo (Husserl) e ainda outros, uma
vez que é tomado em seu amplo sentido, como modo de apreender o real
em sua presença envolvente, enquanto elemento vivo da vida. Nesse
sentido, conhecer alguma coisa é o resultado da relação direta com ela, de
estar em sua presença efetiva, sem intermediações de instrumentos do
intelecto (noções, ideias, doutrinas, etc.), por meio dos quais se busca
apreender a coisa de modo teórico. Tal pensamento é denominado de pré-
metafísico, por tomar o homem junto à pluralidade de conexões com o todo,
em sua pequenez e finitude, em sua solidão e singularidade, diante da
grandiosidade do real, do enigma da morte, do inefável do mistério, dos
quais ele nunca está separado. Ele é a fonte primordial da experiência
religiosa que dá origem às religiões, mais especialmente do pensamento
místico que preconiza a experiência individual e direta do divino,
prescindindo, assim, dos instrumentos mediadores da religião
institucionalizada.
“Nada” (Nichts) é palavra-chave encontrada por Heidegger para
identificar a essência do pensamento pré-metafísico. Do lado ocidental, ela
está presente, de modo central, no pensamento da mística, especialmente a
de Mestre Eckhart. Do lado oriental é uma de suas palavras fundamentais
que se apresenta através de uma noção similar de “vazio” ou “vacuidade”,
nomeado como śūnyatā (indiano), wu (chinês) e mu (japonês). Em
Heidegger, essa palavra aparece através de múltiplas variações como
finitude (Endlichkeit) e negatividade (Negativität), ou ainda nas variações
desta última como nulidade ou nadidade (Nichtigkeit).
Ora, abordar o problema do ser a partir do tempo da existência finita – de
maneira a poder interpretá-lo fora de sua rigidez atemporal e, assim,
resgatar o originário movimento oscilatório dos entes no seu desvelar (ser) e
no seu ocultar (nada/não-ser) – significa incorporar, pela primeira vez, no
pensamento ocidental, o caráter apofático do ser, sua dimensão privativa, o
seu véu, o seu nada. É nesse contexto, portanto, que se pode compreender,
em nossa opinião, o lado pendular positivo do ceticismo oscilante de
Heidegger, que deu sustentação às suas fortes ligações com o pensamento
de Eckhart e com o pensamento oriental, ligações essas que lhe permitiram
manter com eles um diálogo e confrontação profundos. Isso explicaria
também o atual aparecimento de grande número de pesquisas e publicações
– tanto ocidentais quanto orientais, especialmente japoneses, chineses e
coreanos – procurando aproximar, interpretar e mesmo documentar a
relação entre Heidegger e o pensamento oriental.
Acreditamos não ser demais lembrar aqui algo de grande relevância. É
evidente que o pensamento de Eckhart e o pensamento oriental não
representam o todo do pensamento de Heidegger, de forma que ele apenas
os transpusesse para uma linguagem filosófica; isso seria um equívoco
elementar. O papel desempenhado por eles foi, na verdade, proporcionar ao
filósofo o grande horizonte pré-metafísico que lhe ofereceu os instrumentos
para promover a desconstrução da metafísica e de seu discurso apofântico.
A partir de tal horizonte, Heidegger encontrará as condições indispensáveis
para estabelecer seu intenso e ininterrupto diálogo crítico com toda a
História da filosofia ocidental, dos pensadores pré-socráticos a Nietzsche,
passando por Husserl, por pensadores religiosos e ainda por artistas e
poetas. Esse diálogo crítico fez com que seu pensamento, ao longo de todo
o seu percurso, ganhasse uma densidade crescente e, paulatinamente, se
dirigisse para fora dos limites do discurso filosófico, ao mesmo tempo em
que se mantivesse nas circunvizinhanças do pensamento pré-metafísico,
tanto da mística quanto das tradições do pensamento oriental.
O primeiro indício dessa aproximação é o uso frequente e recorrente de
palavras de tradição pré-metafísica. No início de seu itinerário até os anos
de 1930, os temas heideggerianos seguem muito de perto as noções-chave
da teologia negativa, tais como: a ideia da existência como compreensão
vivencial, a definição de fenômeno, a concepção do ser como nada, a
proximidade entre existência e morte, etc. Apresentamos, a seguir, como a
matriz do pensamento pré-metafísico que se mostra no interior da mística
eckhartiana apoiará Heidegger em seu percurso de pensamento,
especialmente na elaboração de sua primeira etapa.
O primeiro Heidegger e o diálogo com a mística eckhartiana
A importância da mística eckhartiana aparece desde o primeiro trabalho
de Heidegger sobre Duns Scotus (Habilitationscrift), em 1915, e o
acompanha bem de perto até o final dos anos 1920. Quais serão os
estímulos que Heidegger receberá de Eckhart para iniciar um caminho
apofático do pensamento do ser, fora do âmbito da filosofia? Citemos os
mais importantes:
a. Heidegger é interessado no pensamento medieval, especialmente na
mística de Eckhart, que desde 1910 o acompanha “junto a quem
aprendemos a ler e a viver” (Heidegger, 1969, p. 69);
b. o que o atraía no pensamento medieval era o caráter da experiência
viva, concreta, histórica, da vida contra o “‘cinza-cinza’ da filosofia”
(Heidegger, 1978, p. 203), presente tanto na lógica pura quanto no
pensamento teológico-especulativo;
c. Eckhart é uma chave importante para romper com a racionalidade da
filosofia, uma vez que seu pensamento, como o de toda mística, está
fora dos limites do princípio de razão suficiente;
d. há uma proximidade na estrutura analógica entre o salto místico e o
salto para fora da metafísica;
e. há um paralelo analógico entre “o abismo da Deidade (Gottheit)” e
o “abismo do Ser (Sein)”, estreitando, desse modo, o parentesco entre
mística e pensamento ao colocá-los lado a lado;
f. a partir de uma das noções centrais de Eckhart – o “desprendimento”
(Abgeshiedenheit), mediante o qual a alma de desapega das criaturas –
Heidegger apresenta a noção de “angústia” com a qual a essência do
homem (Dasein) perde sua aderência em relação aos entes
intramundanos;
g. em Eckhart, o coração do homem desprendido “nada” pede, “nada”
suplica; vive uma vida “sem porquê”; que não é aniquilação, mas
plenitude. Em Heidegger, o Dasein experimenta na angústia o “nada”
de sua finitude, o “nada” de seu fundamento;
h. para ambos, aquilo que o homem é, a sua essência, não lhe é dado,
mas tem de ser buscado, seguindo um processo: desprender-se
(abgeschieden sich) do que “não é”, para se deixar-ser (sein-lassen) o
que “é”.
Todas essas convergências entre Eckhart e Heidegger podem ser
ordenadas em um paralelo analógico, que segue a mesma orientação em
direção ao “nada”, conforme o quadro abaixo:
Conclusão
A título de uma conclusão, poderíamos dizer que o tema de nossa
exposição – “Mística, Taoísmo, Zen budismo: o ceticismo oscilante de
Heidegger no seu diálogo com fontes de tradição pré-metafísica” – foi e
continua sendo tão instigante quanto polêmico. Ele divide pesquisadores e
comentadores em três grupos que assumem três posições distintas, tanto
aqueles que investigam as conexões de Heidegger com a mística, quanto os
que investigam Heidegger e o pensamento oriental. Vejamos ambas as
conexões e seus respectivos grupos.
A. Heidegger e a mística
Grupo 1: numa extremidade estão aqueles (mais críticos) como
Hühnerfeld e Versényi. Hühnerfeld (simpático à mística) assevera que “a
relação de Heidegger com a mística é falsa e mascarada. A obra tardia é
uma pretensiosa e arrogante tentativa da parte de Heidegger em alinhar-se
com uma profunda e grande tradição. [...] Heidegger é um falso Eckhart”
(Hühnerfeld, 1961, p. 32). Versényi (não simpático à mística) acredita que
“a obra do período final, o pensamento de Heidegger assume um caráter
abertamente místico. [...] Heidegger tenta compensar nas obras tardias a
excessiva posição subjetivista adotado por ele em Ser e tempo” (Versényi,
1965, p. 38).
Grupo 2: no centro, estão aqueles como Philippe Capelle, que afirma que
“Heidegger não foi apenas um leitor assíduo da obra de Eckhart, ele forjou
em sua inspiração as determinações mais profundas da direção do seu
pensamento” (Capelle, 1996, pp. 113-24).
Grupo 3: no extremo oposto estão aqueles como John Caputo, que diz
que “Heidegger toma emprestado palavras ou temas religiosos ou do
misticismo para os seus próprios propósitos filosóficos” (Caputo, 1986).3
B – Heidegger e o pensamento oriental
Grupo 1: numa extremidade, estão aqueles (mais críticos) como Reinhard
May, que assevera que “a obra de Heidegger foi significativamente
influenciada por fontes da Ásia oriental. Isso pode ser ainda demonstrado
que, em casos específicos, Heidegger ainda se apropriou de forma total e
quase literal das principais ideias das traduções alemãs dos clássicos
taoístas e Zen budistas” (Reinhard, 1996, p. xviii).
Grupo 2: no centro, estão aqueles como Otto Pögeller, que afirma que
“Heidegger, mais que qualquer outro filósofo europeu, iniciou o diálogo
entre o Ocidente e o extremo Oriente; ainda mais, ele acolheu em seu
caminho os temas das grandes tradições [...para atender] a necessidade em
que seu pensamento era compelido” (Pögeller, 1987, p. 76).
Grupo 3: no extremo oposto, estão aqueles (mais próximos) como
Graham Parkes, que diz que “a questão da influência do pensamento
oriental na obra de Heidegger, embora seja interessante, é de importância
secundária, em comparação com a independente congruência de ideias
(Parkes, 1987, p. 2, “Introduction”).
Apesar de estarmos longe de resolver a questão, poderíamos, entretanto,
afirmar que toda a controvérsia em torno da influência ou apropriação da
mística e do pensamento oriental por Heidegger seja de sua própria
responsablidade. Tal afirmação é alicerçada por aquilo, por aquilo que nos
referimos no início de nosso texto; isto é, por suas referências ambíguas em
relação a eles, que fizeram com que ele assumisse duas posturas
antagônicas: insistente recusa e sério interesse, gerando confusão e
polêmica. Talvez uma questão embaraçosa colocada por May seja oportuna
aqui. Ela é importante porque, talvez, seja a pergunta que fazemos a nós
mesmos: “por que deveria Heidegger recusar simplesmente as experiências
orientais do mundo se ele mesmo incorporou algumas delas
construtivamente em sua obra de uma maneira exemplar?”4
Como já nos referimos anteriormente, uma primeira resposta à questão é
o extremo cuidado do filósofo contra o perigo de seu pensamento ser
identificado com misticismo ou religião asiática. A última resposta, aquela
que poria fim a todas essas controvérsias, talvez, nunca a tenhamos.
Todavia, mais importante que uma resposta definitiva é olharmos para o
todo da obra de Heidegger e vermos nela o resultado de um contínuo
amadurecimento de suas experiências e diálogo crítico com o pensamento
pré-metafísico – especialmente em relação à mística de Eckhart, ao taoísmo
e ao Zen-budismo. Desse olhar, podemos afirmar, com algum acerto, que
tais experiências vieram a dar suporte, e consolidação ao caráter apofático
de seu pensamento, o que lhe permitiu, finalmente, ter êxito em seu grande
e ambicioso propósito, que o orientou por mais de seis décadas de trabalho,
qual seja, o de promover a desconstrução da hegemonia da metafísica
racionalista, para com isso poder resgatar, para nós ocidentais, a
originariedade e a liberdade do pensamento.
Referências bibliográficas
Introdução
Aos 27 anos e em meio a grandes problemas familiares e de trabalho (havia
se divorciado e fora demitido da Preparatória #4, onde era professor de
alemão), Nishida Kitarô (1870-1945) recorre ao Zen para dar um novo
rumo à sua vida. De acordo com seu diário, a primeira notícia que temos
sobre sua intenção de praticar o Zen Budismo é de 14 de janeiro de 1897:
“Procurei o mestre Zen Setsumon” (14i1897).1 Trata-se de uma prática do
Zen da seita Sôtô, na qual é dada a máxima importância ao shikan taza, ao
“somente sentar-se”, que no Japão tem como um dos seus grandes pilares a
Dōgen Zenji. Veremos alguns aspectos da sua prática do zazen.2
Depois de várias entrevistas com o mestre Setsumon e de muitas horas de
prática, desloca-se em junho até Kioto para a entrevista com o mestre Zen
Kokan, e em 26 de junho, instala-se no Taizô’in do templo Myôshin-ji
(26vi1897).3 Em 1 de julho, começa o sesshin (1vii1897),4 que termina em 7
de julho (7vii1897).5 Sai do Taizô’in no dia 29 de julho (29vii1897).6 Volta
depois, em 6 de agosto desse mesmo ano, ao Myôshin-ji, para outro sesshin
(6viii1897)7 e termina no dia 12 (12viii1897).8 Esse é o começo formal do
treinamento Zen de Nishida.
Nos 12 anos que vão de 1897 a 1909, além do seu mestre Setsumon
Rôshi (com ele são registradas 18 entrevistas entre o dia 14 de janeiro de
1897 e 11 de janeiro de 1905), Nishida tem contato com uma série de
mestres Zen. Podemos mencionar os seguintes: Kôshû zenji (6iv1897; 19,
20, 23, 25vii1903), Kokan zenji (24vi1897; 13viii1902), Bunki zenji (3-
4i1898), Shûhan rôshi (11, 14iv1905; 28ix1905), e Zuiun rôshi (24-
25vii1905).
São doze os templos em que pratica e consulta com os mestres: Taizô’in
del, Myôshin-ji, Sesshû-ji, Daitoku-ji, Senshin’an, Eijun-ji, Tentoku’in,
Shocho-ji, Kennin-ji, Kimii-dera, Kohô’an, Kôgan-ji.
No período de prática, Nishida faz anotações de reflexões e frases que se
referem a sua prática. Veremos algumas anotações que antecedem sua
penetração do kôan MU. Assim, em outubro de 1898, transcreve as palavras
do mestre Torei oshô: “Se me assento, é Zen; Zen ao caminhar, e Zen ao
dormir. Enquanto como, é Zen; Zen ao falar. Tudo ao trabalhar é Zen”
(ix1898). Em maio de 1899, anota: “Não devo descuidar da meditação da
manhã e da noite” (v1899) e em agosto desse ano: “Não procurar ganância,
nem fama, nem erudição, nem meras repetições do que outros dizem:
somente estudar o Caminho” (6viii1899). Em janeiro de 1901, escreve: “A
essência do sanzen é a liberação de vida e da morte; não há nada além
disto” (6i1901). Em maio desse mesmo ano, registra: “Faz alguns anos que
comecei com o Zen, um passo em frente e outro atrás: nada alcançado”
(13v1901).
Em agosto de 1902, deixa de trabalhar o kôan MU para tomar o kôan do
som de uma mão (8viii1902); porém, em 23 de julho do ano seguinte, volta
a retomar o kôan MU (23vii1903) e, dois dias depois, escreve: “Trocaram-
me o kôan e me sinto perplexo” (25vii1903). Em 23 de julho de 1903
registra: “Estou errado em fazer Zen em favor da erudição. Devo fazê-lo
pelo meu coração e pela minha vida. Não pensarei em religião ou em
filosofia até depois do kenshô” (23vii1903). Em 26 de julho escreve: “À
noite tive uma conversa com o mestre Ikkei oshô. Os monges de hoje em
dia não são interessantes. Qual é o efeito da prática espiritual [shugyô]?”
(26vii1903). No dia seguinte, registra: “Compadeço-me do sofrimento de
Cristo no deserto. Hoje, lutei fortemente contra meus delírios (môsô)”
(27vii1903). Na terça-feira, 28 de julho, escreve: “Quero lutar
denodadamente contra o ennui (tédio). Ao menor perigo, o coração dá uma
virada” (28vii1903).
O período de prática intensa vai de 1898 a 1906, no qual Nishida medita
aproximadamente meio milhar de horas. Cabe destacar que, em abril de
1899, foi-lhe atribuído o kôan MU. Depois de quase dois anos, em 17 de
março de 1901, Nishida recebe os Preceitos no Senshin’an, sob a orientação
do mestre Setsumon rôshi, que lhe atribui o nome de iniciação de budista
leigo, Sunshin koji. Esse período chega ao seu ponto máximo em 1º de
agosto de 1903, quando retorna ao Kohô’an do templo Daitoku-ji, onde se
encontra com o mestre Ikkei oshô, e termina em 3 de agosto de 1903, dia
em que registra em seu diário: “À noite, Dokusan. Recebi aprovação do
kôan MU. Contudo, não estou muito satisfeito” (3viii1903). Às vezes, como
é o caso, nas histórias do Zen, a aprovação não é do mestre Setsumon,
senão do mestre Kôshû. Dessa forma, continua praticando ainda três anos
com alguma intensidade.
Depois da aprovação do kôan MU, o mestre Kôshû lhe atribui o kôan
“Apague o som do sino” (3viii1903), mas aos dois dias o tirou dele
(5viii1903). Em janeiro de 1905, Nishida escreve, citando Hôtô kokushi: “O
coração é o Buda, Buda o coração e Buda o mesmo, antes e agora”
(1i1905). No mês de julho seguinte, reflete: “Não sou psicólogo, nem
sociólogo; quero ser pesquisador da vida. Zen é música, Zen é arte, Zen é
movimento. Além disso, não teria que buscar outro consolo para o coração
[…]. Se meu coração fosse puro e integrado como o de um menino, esse
seria o prazer máximo do mundo. Non multa sed multum” (19vii1905).
Seguindo a inspiração da maneira como Wang Yang-ming (Ôyômei)
interpretava a vida diária, Nishida diz das atividades diárias que “Ali é onde
está o verdadeiro treinamento” (20vii1905).
Chega um momento em que o mestre Setsumon rôshi vai embora;
Nishida, aos poucos, deixa de praticar o zazen e se dedica de cheio a suas
atividades acadêmicas. Enquanto estava no período de confusão prévio à
sua penetração do kôan MU, Nishida escreve dois textos que não vou
examinar aqui, mas que refletem seu estado de ânimo: “Dúvidas do coração
humano” (“Jinshin no giwaku”, ver 12v1903; XIII: 85-89) e “Pensamentos
sobre o espírito religioso” (“Shûkyô-shin no kangae”, ver 21v1903).9
Entre 1904 e 1905, redige seu manuscrito para as palestras sobre
psicologia. Em 1907, depois de ter impresso seu escrito “Teoria da
realidade”, envia-o a alguns de seus amigos (Matsumoto, 19i1907; Tokuno,
12ii1907) e depois revisa o texto (21ii1907). Em novembro do ano seguinte,
(1xi1908) começa a escrever “Teoria da religião”, texto que revisa um ano
depois (12vi1909). Esses textos fazem parte da sua primeira obra publicada,
a Indagação sobre o bem (1911).
Sabe-se que a posição da Escola de Kioto tem sido, desde os primeiros
comentários escritos acerca do pensamento de Nishida, de que a experiência
Zen de Nishida encontra sua expressão filosófica na ideia da “experiência
pura”. Entre a experiência direta ou imediata, que não inclui artifícios
mentais, e a reflexão acerca da experiência pura, existe uma distância maior
ou menor, de acordo com a postura filosófica do comentarista. Contudo, é
inegável que a experiência pura dos primeiros tempos de Nishida merece
ser examinada a fundo.
Embora a experiência pura, na segunda parte da Indagação sobre o bem,
tenha uma dimensão cósmica que nos faz pensar numa metafísica, na
primeira parte dessa obra, a experiência pura tem um aspecto
epistemológico, já que no início nos diz: “Experienciar significa conhecer
os fatos tal e qual [eles são]. É conhecer seguindo os fatos, abandonando
completamente os artifícios do self,” (I: 9). Vem depois a explicação de por
que é pura: “Dizemos que é ‘pura’ porque […] não lhe acrescentamos
nenhum tipo de discriminação, e essa é a condição verdadeira da
experiência” (I: 9): “é [pura] somente por existir consciência presente no
fato tal e qual [este é]” (I: 10). E especifica que a experiência pura “reside
na estrita unidade da consciência concreta” (I: 12). Surge o problema de se
pode ser considerada uma epistemologia, já que se refere a uma maneira de
conhecer, que é a “experiência pura”, que posteriormente vem a ser
equivalente à “experiência direta” ou “experiência imediata” (I: 9), que
provém da caracterização psicológica de um tipo de conhecimento em
Wilhelm Wundt,10 ou em William James.11
A experiência pura em seu aspecto epistemológico
Porém, um dos aspectos mais difíceis de serem tratados na filosofia
nishidiana é sua epistemologia. A maior parte dos comentaristas tem se
ocupado, para o bem ou para o mal, da metafísica, da ética, da política, da
estética, da religião, enquanto outros temas, como a lógica, a metodologia e
a teoria do conhecimento, têm recebido menos atenção.
Além do mais, há temas que em sua maioria tem passado desapercebidos,
como a preocupação de Nishida com os aspectos psicológicos da atividade
humana em sua relação com o conhecimento, tanto no início de sua carreira
textual (em que recorre a Fechner, Stout, Wundt, etc.), como no período
médio (em que principalmente incorpora a teoria Gestalt).
A interpretação ortodoxa da Escola de Kyoto nos diz que o último
referente da experiência pura é o “satori” do Zen, uma vez que alguns
discípulos deram a entender que era necessário chegar ao satori do Zen para
poder ter acesso à experiência pura.12 Ao condicionar sua compreensão
vivencial a uma prática confessional específica, restringe-se a possível
universalidade da filosofia nishidiana. Porém, aqueles nos quais estamos
interessados em pesquisar a universalidade dessa filosofia requerem de nós
uma base menos restritiva da qual partir. Sabendo que o próprio Nishida
não ficou satisfeito com a formulação inicial e sem negar que a experiência
pura possa ser interpretada nos termos do budismo Zen, podemos examinar
livremente em quais pontos o conceito de “experiência pura” se apoia e em
quais pontos é discrepante com as posturas dos psicólogos e filósofos que
serviram de base à sua formulação inicial. Por isso, a problematização desse
conceito não consiste em se pode ou não servir para expressar
filosoficamente o que é o “satori” do Zen. Torna-se, melhor dizendo,
necessário voltar a examinar os requisitos básicos da experiência pura que
são apontados nos escritos de Nishida.
O próprio Nishida rejeita que se diga que seu pensamento é expressão do
“satori” (iluminação).13 Houve, além disso, monges Zen que têm negado
que a compreensão que Nishida tinha do Zen fosse muito profunda, já que
“sua ‘prática’ [shugyô] não foi muito exaustiva [tettei-teki]” (Maruyama,
1971, p. 18). Se considerássemos esse tipo de avaliação, haveria de se dizer
que, nesse caso, tratar-se-ia de uma idealização da experiência de
iluminação no budismo Zen. Contudo, isso não é o que aqui queremos
problematizar.
Ao estudar a epistemologia de Nishida, queremos saber por que ele não
conseguiu ficar satisfeito com a formulação que fez na Indagação sobre o
bem, de janeiro de 1911, nem com as obras ocidentais que lhe serviram
como base, já que ele mesmo as critica. Por essa razão, será necessário
tocar em alguns dos principais documentos que nos permitem chegar a ter
uma possível resposta.
Problematizar a experiência pura
Quando tratamos de penetrar nos fundamentos da epistemologia
nishidiana, abrem-se muitos caminhos insuspeitados e corremos o risco de
que esses talvez não nos levem a nenhuma parte, ou bem possível que não
levem nossos questionamentos até o mais básico. Por exemplo, poderíamos
começar com as palavras-chave que Stout identifica na epistemologia do
seu tempo: “ato”, “conteúdo” e “objeto”, que podem ser encontradas em
Meinong, Husserl, Lipps, Külpe e Messer, os quais “estão de acordo em
distinguir claramente entre o que a mente menciona ou intenciona ao
perceber, pensar ou ter ideias, e as experiências reais ou ‘Erlebnisse’, que
pertencem a sua própria existência particular como indivíduo psíquico”
(Stout, 1930, p. 353). Seguindo o mesmo autor, poderíamos propor que a
consciência é “o campo da apresentação” dos objetos da consciência (Id.,
pp. 126; 119), ou que a consciência é um “contínuo plástico de
apresentações” (Id., pp. 101; 118) particular de cada indivíduo (Id., p. 106).
Ou, também, poderíamos começar questionando a definição de
“experiência pura” que encontramos no começo da Indagação sobre o bem
(1911), tomando como base algumas das leituras de obras da psicologia que
Nishida tinha lido antes de 1911. Entre as obras que leu, estão, por
exemplo, as do energetismo de Wilhelm Ostwald, as da psicologia analítica
de George Stout, as de Wilhelm Wundt e as de William James. Diante de
tudo, teria que ser levado em consideração a possibilidade da “distinção
entre o que experienciamos de maneira imediata e o que conhecemos acerca
de nossa experiência imediata” (Stout, 1915, p. 4). Teria que ser levado,
também, em consideração que Stout fala da unidade de consciência na
experiência, e que a experiência não somente é noética, já que o desejo e o
prazer podem ser experienciados sem que intervenham elementos noéticos.
Isto é, frente à experiência, a consciência pode ser uma consciência noética
ou uma “consciência anoética” (Id., 1896). Ora, se a experiência é
“conhecer os fatos tal e qual são”, dando ênfase a “conhecer”, e se a essa
condição noética lhe é acrescentada a frase “sem acrescentar nenhum tipo
de discriminação” (I: 9), que implica uma consciência anoética, então,
muito possivelmente, poderíamos apontar uma contradição na definição
nishidiana da experiência. Pois bem, cabe apontar que o vocábulo japonês
“shiru” não necessariamente se refere a um conhecer explícito de uma
consciência noética. Nesse caso, teria que se interpretar o “shiru” como
“perceber na consciência”, que poderia ser uma consciência noética ou
também, uma consciência anoética.
O problema que deriva dali é se em qualquer um dos dois casos poderia
dar-se a unidade de consciência, isto é, a unidade de seus elementos que,
como veremos depois, são: intelecto, sentimento e vontade. Se ao dizer
“sem acrescentar nenhum tipo de discriminação”, de antemão se está
eliminando a atividade do intelecto, que é um dos elementos da consciência,
a pergunta seria como se pode conseguir a unidade de consciência, a menos
que se trate da consciência anoética.
Esse apontamento é apenas um dentre muitos possíveis, pelo qual vamos
proceder passo a passo.
Três aspectos a serem levados em consideração
Um primeiro ponto que é conveniente levar em consideração é a reflexão
que faz Yura Tetsuji: “para conseguir a partir de hoje em dia uma verdadeira
compreensão das obras que em vida publicou o doutor [Nishida], é
necessário antes de tudo continuar uma reflexão seguindo seu
desenvolvimento histórico; e, também, o âmago do assunto está em fazer
mediante a ela uma crítica imanente” (Yura, 1972, p. 52). Esse ponto nos
leva ao exame, não só da Indagação sobre o bem, mas dos textos que o
antecedem em sua redação, embora não tenham sido publicados enquanto
Nishida estava vivo, e daqueles que são sequela e reflexão sobre as mesmas
propostas. Em poucas palavras, torna-se necessário levar em consideração o
conteúdo dos escritos anteriores ou contemporâneos à Indagação sobre o
bem. Do contrário, é muito provável que passemos por alto aspectos da
conformação do ponto de vista da experiência pura que não aparecem na
primeira obra publicada de Nishida. As mudanças subsequentes e as
transformações na teoria do conhecimento de Nishida serão vistas noutra
ocasião.
Um segundo ponto que terá que ser considerado é que, pelo menos para
um bom número de intérpretes, “o marco básico e a postura fundamental da
filosofia de Nishida estão já pensados e estabelecidos na Indagação sobre o
bem. Em consequência, seu pensamento posterior não é, em sentido macro,
senão a ampliação do ponto de vista fundamental da Indagação sobre o
bem, isto é, sua consistência lógica e sistematização” (Miyajima, 1960, p.
3). Embora não possamos aceitar esse segundo ponto tal como ali se
encontra expresso, podemos pelo menos estar de acordo em que, no período
inicial da filosofia de Nishida, a “experiência pura” tem um papel
fundamental e esse conceito vem a ser ponto de referência ao qual retorna
em cada uma das etapas do desenvolvimento do seu pensamento.
Um terceiro ponto a considerar é que, como apontei num escrito anterior,
o conceito de experiência pura não só faz parte somente da arquitetura da
epistemologia nishidiana, mas também da sua metafísica, da sua ética e da
sua filosofia primeira da religião.
A experiência pura tem três aspectos básicos: a) o fator unificador da consciência; b) a unidade da consciência; e c) o estado primordial da consciência. Além disso, tem
várias características que gostaria de apontar aqui: 1) constitui o indivíduo por meio da vontade (Parte I, cap. 3); 2) é um retorno ao estado primordial da consciência, mas,
num plano mais elevado; 3) é fragmentária nos planos intermediários de seu desenvolvimento (Parte I, cap. 2); 4) seu desenvolvimento é dialético (Parte II, cap. 7); 5) é
um estado de consciência “antes da separação de sujeito e objeto” (I: 11). Na Indagação sobre o bem, a experiência pura tem um caráter básico dual: por um lado, é a
própria realidade, a única realidade; e, por outro, é um estado unificado de consciência que é base do desenvolvimento da realidade e que, além disso, é base
epistemológica para a interpretação da realidade. A experiência pura é um estado que só está acessível mediante o desenvolvimento da própria consciência e é a própria
realidade que vem a ser norma epistemológica para nós (Jacinto, 2002, p. 151).
Referências bibliográficas
Tradução
Joaquim Antonio Bernardes Carneiro Monteiro
Referências bibliográficas