Martin Dreher
Martin Dreher
Martin Dreher
Martin N. Dreher1
O cristianismo jamais foi uniforme. Nos primórdios, Jesus teve que mediar entre
seus primeiros seguidores. As epístolas do Novo Testamento são testemunho eloquente
das tensões da primeira e da segunda geração. Há judaizantes, helenistas, gnósticos,
apocalípticos, tentativas de encarnar a presença de Deus em Jesus de Nazaré nos mais
diferentes contextos e linguagens. No segundo século, a situação era tão preocupante
que lideranças cristãs tiveram que formular divisores de água através dos quais
pudessem dizer quem era cristão ou não cristão. A cruz era de tal maneira escandalosa
que muitos a negavam por não conseguirem aceitar um Deus que se encarnasse nas
condições humanas ou por consider o Deus de Jesus incapaz de criar o mundo no qual
vivemos. No primeiro momento, o Espírito Santo não estava em discussão. Por isso, a
Regra de Fé, da qual resultaram dois Credos, foi suficiente. Ela acentuou Deus como
Criador, a Cruz e a Morte do Jesus ressurreto. Além disso, a formulação de um Cânone
bíblico estabeleceu que, doravante, tudo o que cristãos afirmassem teria a Bíblia como
norma e nada do que afirmassem poderia estar acima do Cânone. O Jesus da Regra de
Fé seria o fio condutor para sua leitura. No século 16, Lutero diria que a Bíblia seria
manjedoura, na qual Jesus estaria deitado. Se não o encontrássemos, só teríamos palha.
Sua leitura de Jesus, no entanto, não foi consenso entre todos os cristãos, como também
não o havia sido nos séculos anteriores. Até seus dias e, de forma modificada, após eles,
o Estado determinou quem era Jesus e como deveria ser entendido. No século terceiro,
discutia-se a relação de Jesus com o Pai, buscando manter o monoteísmo. Querendo
valer-se do cristianismo como base do Império Romano, Constantino I convocou um
Concílio em sua residência de verão, em Nicéia (325). Os bispos presentes
apresentaram-lhe série de moções, contendo fofocas de uns contra os outros.
Constantino recebeu as moções e mandou queimá-las. Queimadas as moções, ordenou o
estudo da relação de Jesus com o Pai. Como não obtivessem consenso, introduziu ele
próprio no novo Credo a fórmula homoousios=consubstancial com o Pai. Depois, mandou
publicar o Credo de Nicéia como lei imperial. O mesmo aconteceu com as resoluções dos
1
Doutor em Teologia pela Universidade de Munique/Alemanha.
concílios posteriores, algumas por pressão de monges armados de porretes, como o
acontecido em Éfeso. Quem não concordou, foi para o exílio, como os monofisitas, que
sobreviveram entre os árabes e ali preservaram Aristóteles. Outros fizeram missão entre
os godos e preservaram, assim, sua fé ariana, segundo a qual a divindade de Jesus foi
estabelecida quando de sua adoção pelo Pai. Tradições gnósticas foram preservadas
entre nômades da Península da Arábia e, depois, incorporadas ao Islã. Nas fronteiras do
Império Romano houve desde Teodósio, a partir de fevereiro de 390, cristianismo dito
uniforme, “católico”. Fora das fronteiras a questão era outra.
O rei franco Pepino doou, em 755/56, os territórios que conquistou aos langobardos
ao bispo de Roma, Estevão II (752-757). Doravante, os papas também seriam senhores
feudais que entenderiam os bispos como seus súditos e estes fariam o mesmo em
relação aos párocos. Com isso, iniciava-se processo que dominaria boa parte do que
designamos de Idade Média, a luta entre Império e Sacerdócio. Nela buscava-se decidir
quem era o detentor do poder no ocidente: o imperador ou o papa?
Aos poucos foi surgindo forte clamor por reforma. As críticas se voltavam contra o
excessivo centralismo. Em 1324, Marsílio de Pádua afirmava, em seu “Defensor Pacis”
que a igreja de seu tempo nada tinha a ver com a igreja de Cristo. O papa só seria
detentor de poder espiritual e não de poder temporal. Marsílio de Pádua e Guilherme de
Ockham (+ 1349) faziam parte de movimento de pobreza que criticava a igreja rica que
nada mais teria a ver com o pobre de Nazaré e situam-se em corrente que vem de Pedro
Valdo, passa por Francisco de Assis e vai encontrar expressão nas ordens mendicantes.
Influenciado por Marsílio, Ockham defendeu que o poder do imperador, do rei, vem de
Deus e que a finalidade da igreja não é o poder, mas o serviço. Nega a plenitude do poder
do papa. A igreja é para Ockham uma comunidade espiritual.
A luta por poder no seio da igreja enquanto instituição feudal levou a que, em 1378,
houvesse dois papas: Urbano VI, em Roma e Clemente VI, em Avignon. Nesse contexto,
foi desenvolvida a teoria conciliar, sancionada no Concílio de Constança (1414-1418).
Duas teorias eclesiológicas se defrontariam doravante: a papalista e a conciliar. No
tocante a uma reforma, contudo, nada foi feito. A instituição igreja continuou a ser cabide
de emprego para os filhos mais jovens da nobreza. Seu estilo de vida era idêntico ao de
suas famílias, o que seria motivo de muitos escândalos. A massa do clero, entretanto,
vivia na miséria. Outro descompasso que se tornava flagrante era que enquanto os leigos
tinham sempre melhor formação, era má a formação do clero.
Mas não foi apenas a mística que se fez presente. Havia muitas práticas que se
convencionou designar de “crendice” e que não deixaram de se fazer presentes ao longo
dos últimos quinhentos anos, ressurgindo com vigor no alvorecer no século 21. Bruxas,
duendes, magias, alquimias, astrologia estavam presentes neste mundo e também
aparecem nos textos dos teólogos do século 16. Dois dominicanos, Heinrich Krämer e
Jakob Sprenger, receberam, em 1484, a autorização de Inocêncio VIII para acabar com a
bruxaria no bispado de Constança. Para sistematizarem os procedimentos contra bruxas
e bruxos, formularam o “Martelo das Feiticeiras”. Não foi a Idade Média quem mais
exterminou bruxos e bruxas, mas a Idade Moderna. Quase até o final do século 18,
mulheres e homens foram entregues à fogueira. Católicos, Anglicanos, Luteranos e
Calvinistas, indistintamente, e, depois deles, os Puritanos entregaram pessoas à fogueira,
em nome de Jesus.
Em função dessa alteração profunda, a religião deixa de ser uma questão social
para ser questão pessoal, passando o conceito “conversão” a adquirir um significado todo
especial. Característicos para essa situação são os metodistas. Eles se organizam no
seio de uma Igreja de Estado e propõem a organização de comunidades com método no
seio de uma igreja de massas: a Igreja Anglicana. Comunidade é idéia central na
Modernidade. Com isso, estou sinalizando que na passagem da Antiguidade para a
Modernidade há uma mudança qualitativa de religião, mas também devo dizer que na pré-
modernidade, a religião era ar que se respirava. A pessoa nascia, vivia e morria na
religião. Não se concebia vida sem Batismo, casamento e enterro cristão. A religião
estava ligada organicamente à sociedade. A religião era forte, mas a instituição religiosa
era fraca. Na Modernidade isso vai ser diferente. Aqui religião é questão de opção, pois a
conversão é abandono da tradição. Deixa-se a lei dos pais para entrar na lei dos crentes.
Daí brota e surge a importância da comunidade institucional. Ela é instituição em oposição
a outras instituições, também em relação ao mundo. Para isso, ela tem que ser forte. Ela
vai receber a tarefa de reproduzir a religião. Não podemos entender as profundas
mudanças pelas quais passou o cristianismo no Brasil e na América Latina sem levar em
conta esse fato. Até meados do século 19, a situação da religião no Brasil era,
majoritariamente, de pré-modernidade. Buscou-se aqui manter a universalidade que se
particularizava na Europa, mesmo que sob característica de Modernidade, segundo a qual
o Estado controlava a religião com a finalidade de controle social. Desde meados do
século 19, com a penetração de imigrantes europeus e, depois, com o ingresso de
missões religiosas, a Modernidade penetra no Brasil. Não se pode mais segurar a
aspiração universal presente desde o século 16 que clama pelo direito de opção, palavra
que no vocabulário religioso é traduzida por “conversão”. As histórias eclesiásticas
confessionais vão narrar as “perseguições” que sofriam os que deixavam a religião dos
pais para entrar na religião dos crentes! Aqui, talvez, é importante lembrar a luta pelo
direito à opção travada no século 16 pelos anabatistas. Eles não fazem parte de nossa
memória evangélica ou protestante. Ao se negarem a pedir o Batismo para seus bebês e
se rebatizarem em idade adulta, quiseram sinalizar que o Estado não tinha o direito de
interferir nas consciências. A história da modernidade é a história da luta pela liberdade
de consciência, pelo direito de opção, pelo direito de conversão. Não é por acaso que a
modernidade tenha sido o período da história da humanidade em que mais se queimou
“bruxas” e “bruxos” e em que mais se perseguiu dissidentes políticos e religiosos. Como
base da sociedade, Estado e mercado não admitiam os que tivessem pensamento
autônomo, também dentro das denominações. Infelizmente, as lutas travadas pelos
anabatistas do século 16 e suas conquistas nem sempre foram preservadas em muitas
denominações, na quais não há espaços para dissidentes e suas opções.
Foi nesse contexto que surgiram protestantes e evangélicos. Esses dois conceitos
são polissêmicos. Quando pronunciados são ouvidos e entendidos pelos ouvintes e pelos
que os emitem nas mais diferentes acepções. Exemplifico. Sou descendente de
imigrantes alemães chegados ao Rio Grande do Sul em 1825. Eles fizeram parte do
primeiro grupo de dissidentes religiosos a se instalarem de forma permanente no Brasil.
Pela Constituição Imperial, outorgada em 1824, tinham o status de “tolerados”. Desde a
Europa designavam-se a si mesmos de “evangélicos”. Na minha infância, numa pequena
localidade do interior do Rio Grande do Sul, somente existiam evangélicos (luteranos) ou
católicos. Já me encontrava em plena adolescência, quando em minha localidade surgiu a
primeira comunidade da Igreja Evangélica Assembléia de Deus. Agora existiam dois tipos
de “evangélicos”. Doravante, éramos evangélico-luteranos. Alguns anos mais tarde, já
adulto, fui comprar sapatos na “Loja Neves”. Quando entrei, o senhor Neves, o
proprietário, estava lendo a Bíblia. Perguntei se era evangélico. Ele respondeu que sim.
Disse que também era. Ele: “De que igreja?” Respondi que frequentava o templo da Igreja
Luterana. Ele: “Pensei que fosse protestante”. As experiências e os diálogos falam por si.
Conceitos devem ser esclarecidos também para a compreensão dos textos que perfazem
o presente volume.
Com esse protesto de leigos, pela primeira vez, tornou-se evidente a cisão
confessional em âmbito jurídico. Os católicos falavam em nome do império, os dissidentes
falavam em nome da consciência. Os conceitos “católico” ou “protestante” passaram a
designar partidos políticos.
Já o conceito “evangélico” tem pelo menos duas vertentes. Uma tem sua origem na
Reforma alemã, outra tem sua raiz na Inglaterra. Na vertente alemã, “evangélico” é um
conceito normativo. Quer caracterizar a doutrina concorde com o Evangelho. Esse é o
ponto de partida de Lutero para usar o conceito. Como houve controvérsia em relação à
doutrina, surgiu a pretensão de que evangélico é aquilo que é cristão. Foi dessa maneira
que Lutero entendeu o conceito e recusou-se a entendê-lo como designação de um
partido, o que aconteceu com os dissenters ingleses do século 17 que eram “evangélicos”
para se diferenciarem da Igreja da Inglaterra. Foi por isso que Lutero também rejeitou a
designação “luterano”, surgida no século 16, e que até o século 18 era sinônimo de
“evangélico”. A designação “luterano” foi usada por João Eck desde 1519, em sentido
polêmico. Eck foi o oponente de Lutero no Debate de Leipzig.
Em 1817, foi criada por decreto do rei da Prússia a chamada União Prussiana:
reformados e luteranos foram unidos em uma “Igreja Cristã Evangélica”. As comunidades
nela congregadas foram designadas de “evangélicas”. Na época, negou-se a
possibilidade de a designação querer ser um novo partido confessional, mas se afirmou a
origem na Reforma do século 16. Para diferenciar os “evangélicos” unidos por decreto,
passou-se a usar as expressões evangélico-luterano ou evangélico-reformado. Mesmo
assim, o mero uso do conceito “evangélico” passou a designar com o tempo uma nova
confissão ou denominação, qual seja: a Igreja Unida.
Culto era, para os quacres, silenciar diante de Deus, sem liturgia, sem cânticos,
esperando pelo chamado do Espírito Santo. É importante conhecermos as origens do
pensamento puritano. Ele molda e conforma o mundo evangélico que tem suas raízes na
Inglaterra, em oposição ao anglicanismo, penetra nos Estados Unidos e, a partir dali,
penetra na America Latina no século 19. Quem traz esse mundo evangélico para o Brasil
são missionários congregacionais e batistas, mas também presbiterianos e metodistas.
No século 20, suas idéias se farão presentes também na onda pentecostal aqui chegada,
acrescida das influências do mundo afro-americano. Buscar entender conceitos como
“protestante” e “evangélico” e saber diferenciá-los de acordo com sua origem histórica
permite leitura e compreensão mais aprofundada do fenômeno religioso cristão.
Ouso afirmar que Pietismo e Ilustração são irmãos, dos quais o Pietismo é o mais
velho. Surgiu no século 18 e ressurgiu de forma explosiva no século 19. Acentuou e
acelerou a individualização e a interiorização da vida religiosa, desenvolvendo novas
formas de piedade pessoal e de vida em sociedade. Também provocou mudanças na
teologia e na igreja. Não esteve restrito a um país ou a uma denominação. É, talvez, o
primeiro movimento transconfessional, perpassando todas as denominações.
Antes de nos voltarmos à Ilustração de forma mais detalhada, seja observado que
o que descrevemos como Pietismo não é propriedade de protestantes/evangélicos. O
mesmo sentimento e o mesmo movimento estão também presentes no mundo católico-
romano, basta lembrar a piedade que encontramos no culto ao sagrado Coração de
Jesus.
Não se olhava mais para o passado com seus modelos clássicos, mas para o
futuro da humanidade. O ser humano seria capaz de tudo, bastava investir na educação.
Lessing (1729-1781), Rousseau (1712-1778) e Pestalozzi (1746-1827) são exemplos
desse acento. Com pietistas, fundaram-se centros de formação de professores, as
escolas normais. Foram, no entanto, as experiências feitas na guerra de emancipação
contra a Espanha que fizeram da Holanda chão propício para a gestação do primeiro
sistema filosófico moderno. Foi aí que haviam aportado os dissidentes religiosos do
século 16, foi aí que aportaram os intelectuais refugiados de toda a Europa, fazendo dela
a primeira pátria da Ilustração. Ali, o francês René Descartes (1596-1650), discípulo de
jesuítas, colocou a dúvida radical como princípio do conhecimento e do
autoconhecimento: Penso, logo sou. A filosofia deixava de ser “serva da Teologia” para se
tornar uma ciência autônoma, fundamentada em observações empíricas e em princípios
racionais. Será por acaso que após Descartes os grandes nomes da filosofia são
protestantes ou judeus?
A crítica mais contundente à religião, mas também à glorificação da razão foi feita
por David Hume (1711-1776). Em seus escritos, atacou os argumentos deístas que
buscavam comprovar que o cristianismo era racional. Se para os deístas a fé cristã era
racional em função dos milagres, da harmonia da natureza e do senso comum da
humanidade, Hume fez uma crítica radical a essa argumentação. Milagre e harmonia da
natureza se excluem. Além do mais, não há evidência histórica para o “senso comum” da
humanidade. Milagres são contrários à experiência humana. Além disso, a experiência
humana é de que há falsos testemunhos a respeito de milagres. Para Hume, o
conhecimento vem da experiência empírica. As verdades metafísicas e teológicas não
são lógicas nem derivadas, nem passíveis de teste na experiência empírica. Também o
argumento do senso comum não é aceitável: os deuses primitivos nada mais são do que
uma crassa revelação antropomórfica; sua atuação cheia de falsidades e truques e sua
falsa moral nada refletem de senso comum.
A crítica derradeira à religião, feita por Hume, foi fatal: a religião só desvia a atenção
do ser humano do que realmente acontece na vida. Sua preocupação com salvação é
estreita e egoísta. Só leva a debates e provoca rancores e perseguições. A religião não
tem qualquer base ou fundamento. Ela se baseia na fé, e fé nada é.
Mas a ilustração alemã não ficou só nisso. Houve também colocações críticas em
relação à Igreja. A principal delas veio de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), que
publicou os Fragmentos Anônimos, também conhecidos como Fragmentos de
Wollfenbüttel. Esses Fragmentos são da autoria de Samuel Reimarus (l694-1768),
partidário do deísmo inglês e leitor crítico da Bíblia. Em seus textos, Reimarus faz
observações críticas a respeito da autoria dos escritos bíblicos, aponta para contradições
existentes nos evangelhos e levanta a tese de uma origem fraudulenta do cristianismo.
Esse teria sua origem em uma grande fraude dos discípulos. Quando falira o
messianismo político de Jesus, os discípulos fabricaram a ressurreição para sobreviver a
seu desapontamento e para serem aceitos pelo mundo. Quando publicou os Fragmentos,
Lessing pensou que estava desencadeando uma discussão construtiva acerca da
essência do cristianismo. O que aconteceu foram ataques sem fim contra Lessing. Em
seu decurso, a Ortodoxia foi ridicularizada. Em contrapartida, a Teologia teve que
desenvolver o método histórico-crítico de leitura dos textos bíblicos, depois eficazmente
aplicado a todos os textos históricos.
Kant lutou por autonomia, uma autonomia que é obediência à lei interna da razão.
Isso fez dele o campeão da crítica. Tudo deve ser submetido à crítica: “Ousa ser sábio!”
Toda a forma de heteronomia e de teonomia, imposta por pais, sociedade, Igreja ou Deus,
tem que ser criticada, submetida à crítica. Inclusive a razão deve ser submetida à crítica,
para que possa ter certeza de si mesma.
O filósofo de Königsberg não negou a existência de Deus, mas afirmou que não há
argumentos teóricos que possam provar sua existência. Deus não pode ser conhecido
pela razão. Na Crítica da Razão Pura disse, por isso, que para se poder crer, ter fé, é
necessário colocar o conhecimento de lado. A fé racional de Kant baseia-se na “razão
prática”, na moralidade.
Em Kant, a religião é um sistema moral, baseado na máxima: “Eu devo; por isso,
posso”. O ser humano não pode ser responsabilizado enquanto não for considerado
capaz de fazer algo na situação em que se encontra. Qualquer pessoa sensível pode
verificar a verdade do imperativo categórico (“Eu devo; por isso posso”) e praticá-lo. Tudo
é dever. Também a fé e o dever fazem o bem. Para fazer o bem, para exercer
moralidade, não se necessita de igreja. A fé eclesiástica não acompanha a razão pura.
Nos meios intelectuais, a Revolução Francesa foi recebida com uma gratidão
entusiasmada ou rejeitada por causa do sofrimento que causava: idéias que tinham suas
raízes na Idade Média, no Renascimento e na Ilustração puderam ser concretizadas, mas
o avanço da Revolução com a ditadura sanguinária e a subjugação violenta das
populações européias à França levaram a reações contrárias a ela e levantaram o clamor
por uma restauração das condições anteriores à Revolução. Assim, todo o século 19 está
entre revolução e restauração. Todo ele está amarrado ao que foi desencadeado pela
Revolução Francesa. Essa Revolução Francesa e tudo o que decorreu dela afetaram
profundamente a existência das igrejas. Acelerou-se o processo de dissolução do poder
das igrejas: o secularismo adonou-se da classe média alta, criando a saturação específica
na qual a Igreja se encontra nos tempos contemporâneos. Por outro lado, a
industrialização e a consequente degradação das condições de vida trouxeram desafios
para as igrejas, às quais elas só souberam responder de forma inadequada. Elas não
souberam responder à alienação urbana.
Strauss provocou uma tormenta com seu livro Vida de Jesus (1835). Afirmou que o
Cristo dos Evangelhos não é histórico, mas mitológico. Jesus foi um mestre humano que
ensinava o amor a Deus e ao próximo. Foi a igreja que acresceu a idéia do Deus-homem
a Jesus. Strauss fez uso da lógica hegeliana. O Deus-homem é a síntese da dialética de
Deus (tese) e ser humano (antítese): a dialética do sobrenatural e do natural leva ao
mitológico. É óbvio que a transformação da cristologia em mitologia levou a muitas
reações.
A questão da relação entre fé e história, formulada por Strauss, foi objeto de estudo
por parte de Martin Kähler (1835-1912). Em sua obra O assim chamado Jesus histórico e
o Cristo histórico-bíblico (1892), Kähler afirmou que a base da fé cristã não é o Jesus
histórico, mas o Cristo pregado e testemunhado pela comunidade. A tentativa de
descrever o Jesus histórico é um equívoco metodológico e teológico. É um equívoco
metodológico, porque os Evangelhos são para a pregação da igreja antes de serem
fontes, recursos históricos para uma biografia de Jesus. Em termos teológicos, a
comunidade cristã não se centraliza no querido Jesus que partiu, mas no Cristo vivo do
presente. Para Kähler, o Cristo pregado é o Jesus terreno. A certeza da fé, porém, não
pode repousar sobre os resultados da pesquisa histórica. Ao retirar a fé do emaranhado
da pesquisa histórica empírica, Kähler ofereceu elementos para a resposta dos teólogos
que tiveram que responder ao colapso do liberalismo após a Primeira Guerra Mundial.
A Teologia Liberal tem suas raízes na Ilustração. No século XIX, porém, ela centrou-
se na temática de fé e história. Como é possível continuar a existir cristianismo, se o
microscópio e o telescópio não nos dão uma evidência de Deus? Para responder a
perguntas como essa, os liberais concentraram-se, então, em estudos históricos. Como
Jesus foi uma figura histórica, é acessível à pesquisa como qualquer outro personagem
histórico. Por isso, os teólogos liberais lançaram-se ao estudo histórico-crítico do Novo
Testamento para encontrar o Jesus “real”, “verdadeiro” e sua mensagem por trás dos
acréscimos da dogmática. Os liberais distinguiram, então, entre a religião de Jesus e a
religião sobre Jesus. A fé cristã foi reduzida à mensagem de Jesus sobre o reino de um
Deus do amor.
As idéias de Ritschl foram acompanhadas pelo historiador Adolf von Harnack, que
pode ser considerado o mais notável teólogo de seus dias. Mesmo sem expressar
concordância com sua interpretação, devemos considerar magistral seu esforço em torno
da recuperação do pensamento da Igreja Antiga. Harnack advogou um cristianismo não-
dogmático. Queria um cristianismo liberado dos acréscimos doutrinais feitos pelas
gerações que se seguiram à primeira geração de cristãos e que transformaram a religião
de Jesus, entendida como o Reino do amor de Deus, em religião acerca de Jesus, um ser
preexistente que expia vicariamente os pecados. O cerne do cristianismo está envolto em
lixo metafísico. O dogma cristão é obra do espírito grego sobre a base do Evangelho. Esta
tese é desenvolvida nos sete volumes da História do Dogma (1886-1890). Harnack
separa o cerne do Evangelho de sua casca helenista e procura recuperar o cristianismo
para seus contemporâneos.
Quando, em 1900, escreveu Das Wesen des Christentums, que podemos traduzir
por “A essência do cristianismo” ou “O que é cristianismo?”, Harnack procurou tornar o
cristianismo plausível para o mundo moderno, reduzindo a fé à paternidade de Deus, à
fraternidade do gênero humano e ao valor infinito da alma humana. No prefácio à
reedição de 1964, Rudolf Bultmann nos dá conta de que, até 1927, o livro de Harnack
alcançara 14 edições alemãs e fora traduzido para 14 idiomas. O livro transpira otimismo
e confiança no progresso. Nesse otimismo e confiança, procurou trazer a proclamação
bíblica para os dias presentes no início do século 20. Esse otimismo de Harnack e sua
confiança no progresso tornaram-se sempre mais problemáticos à medida que se foi
descobrindo o caráter estranho da mensagem bíblica em seu confronto com o mundo
moderno.
Quem mais refletiu sobre a relação entre fé e história foi Ernst Troeltsch, citado,
mencionado e discutido até o presente. Troeltsch continua atual, pois centrou suas
pesquisas na relação entre cristianismo e cultura moderna, entre revelação e história,
entre liberdade pessoal e condicionamentos sociais. Sua obra sobre as relações entre
cristianismo e cultura, A doutrina social das igrejas cristãs, de 1912, é sempre
mencionada. Troeltsch historiciza todo e qualquer pensamento. Não há nada que escape
ao condicionamento histórico: Senhores, tudo oscila!, dizia a conservadores. Não hesitava
em chocar. E chocou até mesmo seus companheiros, que buscavam tirar a casca para
chegar ao cerne do Evangelho: por baixo da casca não há cerne eterno, não-histórico.
Tudo o que existe persiste em condições históricas. Ao escrever Die Absolutheit des
Christentums (O Absolutismo do Cristianismo), em 1902, Troeltsch comprovou que o labor
histórico não pode reivindicar a superioridade de uma religião sobre outra. Troeltsch
descobriu que o método histórico, quando aplicado à Bíblia, à história da Igreja e à
Teologia, não comprova revelação nem fé.
A Teologia tinha que reiniciar sua reflexão: o liberalismo não era a solução. A
contrapartida, porém, também não foi solução. Ela se manifestou na reação católica
romana, já descrita, e na reação protestante conservadora, conhecida como
fundamentalismo. A melhor solução só veio após a Primeira Guerra Mundial.
Envolvidos por uma ideologia que ligava trono e altar, antes da Primeira Guerra,
pastores e teólogos pouco fizeram contra o crescente nacionalismo. Antes, e em sua
maioria, o apoiaram. Majoritariamente apoiaram os fascismos. O pastor e teólogo Karl
Barth (1886-1968), porém, foi a voz mais clara contra o fascismo, aliando-se a ele aqueles
pensadores que apoiavam a “teologia dialética”.
De outro lado, começaram a ecoar vozes que apontavam para novas possibilidades
na Teologia. O prelúdio dessa nova Teologia foi dado com a obra de Rudolf Otto (1869-
1937), A idéia do sagrado, publicada em 1917 e que, em 1930, já alcançava sua 22ª
edição. Otto apresentava uma nova compreensão de Deus: Deus não é mais visto como
extensão da humanidade, mas como o “totalmente outro”, com o qual as pessoas se
encontram no mysterium tremendum et fascinosum (mistério tremendo e fascinoso).
No entanto, a mais importante reorientação teológica após a Primeira Guerra
Mundial foi a Teologia Dialética que tem a cara de Karl Barth (1886-1968). Após os
estudos teológicos, tornou-se pastor numa comunidade operária em Safenwil, Suíça. Ali
teve que descobrir que a Teologia Liberal de nada lhe servia na prática pastoral, pois
nada dizia para os problemas da vida real. Via os baixos salários dos operários, ficava
atônito ao descobrir que seus paroquianos ricos não viam nenhuma contradição entre fé
cristã e exploração. O contexto fez de Barth um radical em sentido teológico, pessoal e
político. Tornou-se social-democrata, o que lhe valeu o codinome de “pastor vermelho”.
Quando teve que pregar, descobriu que a Bíblia era – no contexto da teologia que lhe fora
transmitida pelo liberalismo – um mundo novo e estranho. No início da Primeira Guerra
Mundial, teve mais uma decepção: descobriu que grande parte de seus professores
teológicos assinara a “Declaração de Intelectuais Alemães” em apoio ao “imperador e à
pátria”. Essa descoberta significou para ele a bancarrota do liberalismo sob o ponto de
vista político, social, ético e religioso.
Outra descoberta importante foi a obra de Fjodor Dostojewski (1821-1881). Ela foi
apresentada a Barth por Eduard Thurneysen (1888-1974), com o qual Barth combateu a
Teologia Liberal, buscando no diálogo com a Bíblia novos impulsos para a pregação.
Desse diálogo e da pregação resultou, em 1919, a primeira edição do comentário de
Barth aos Romanos. A segunda edição é de 1922. Nela, especialmente, apresenta-se
uma ruptura radical e total com a Teologia Liberal e com qualquer forma de
antropocentrismo e de experiência religiosa. A Bíblia é a Palavra de Deus transcendente,
que se revela na morte e na ressurreição de Jesus Cristo. É Palavra que vem de fora e
contra o mundo. Nesse sentido, toda e qualquer religião, inclusive a cristandade, é uma
empreitada humana sujeita ao juízo de Deus. Nesse aspecto, Barth não trouxe novidade.
Ele foi eco do pastor luterano dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Kierkegaard
atacara Hegel e o cristianismo burguês, enfatizando a “diferença qualitativa infinita” entre
Deus e o gênero humano. A Bíblia discute com o mundo religioso, inclusive o cristão.
Barth e Thurneysen tiveram cedo o apoio de outros pensadores, como Emil Brunner
(1889-1966), um suíço que responsabilizou Schleiermacher pela miséria na qual se
encontrava a Teologia; Friedrich Gogarten (1887-1969), um alemão que se destacou na
pesquisa de Lutero; Rudolf Bultmann (1884-1976), alemão e exegeta do Novo
Testamento, que se tornou conhecido em razão de seu programa de demitologização;
Paul Tillich (1886-1965), um alemão que teve que deixar a Alemanha, em 1933, e se
radicar nos Estados Unidos da América do Norte, onde se tornou uma figura exponencial,
especialmente por sua Teologia Sistemática. Comum entre esses pensadores que
recebem um denominador comum na expressão “Teologia dialética” é o “não” de Deus ao
mundo e ao pecado, um “não” que contém seu “sim” redentor. Esse grupo pôde expressar
suas idéias na revista Zwischen den Zeiten (Entre os Tempos) (1923-1933).
Barth tornou-se professor de Teologia na Alemanha, até ser deportado por causa de sua
crítica ao nazismo, tornando-se então professor em Basiléia, Suíça. A postura de Barth foi
acompanhada por poucos. Em sua maioria, as igrejas evangélicas apoiaram os regimes
totalitários ocidentais, mesmo ali, onde se apresentavam sob a designação de
“democracia”. Apoiaram a perseguição a comunistas, social-democratas, liberais e judeus,
considerados os “pais” dos movimentos que destruíam o mundo. Por isso,
majoritariamente cristãos, também no Brasil, silenciaram. Aqui o caso mais evidente é o
da judia alemã Olga Benário, entregue pelo regime fascista de Vargas a Hitler. A
preferência pelo fascismo ainda se faria presente nas décadas de 1950 e 1960, quando o
macarthismo teve forte apoio no seio das igrejas evangélicas brasileiras, também
apoiadoras do regime instaurado 1º. de abril de 1964 e seguido da instalação de
comandos de caça a comunistas no seio das próprias denominações. Os poucos que
resistiram, entre os quais Martin Niemöller (1892-1986), Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer
(1906-1945), executado por conspirar contra o regime de Hitler e, por isso, até hoje
condenado por muitos por se haver envolvido em política, ajudaram na formulação da
Declaração Teológica de Barmen (1934) que, principalmente após o final da Segunda
grande Guerra serviu de baliza para parte considerável do mundo protestante/evangélico:
“Jesus Cristo, assim como nos foi testemunhado na Sagrada Escritura, é a única Palavra
de Deus, a qual somos chamados a ouvir, na qual devemos confiar e obedecer na vida e
na morte. Rejeitamos o falso ensinamento, como a Igreja pode e deve, de que há outra
espécie de ensinamento seu fora e ao lado desta Palavra de Deus, nem reconhecemos
outros eventos, poderes, figuras e verdades como revelação de Deus.”
Na Declaração, fica evidente que com a proposta fascista a Igreja deixava de ser
Igreja. Era necessário escolher entre Jesus e os regimes totalitários. Dos que resistiram
viram as lideranças que dariam origem a novos movimentos, entre eles o Conselho
Mundial de Igrejas. A primeira assembléia do Conselho Mundial de Igrejas aconteceu em
Amsterdam, Holanda, no ano de 1948. Muito antes dela, porém, houve inúmeras
propostas que buscavam uma associação internacional de igrejas. Nessa busca refletiam-
se as atividades missionárias do final do século XIX e os reavivamentos religiosos
ocorridos na Europa e na América do Norte. Na década de 1890, o Movimento de
Estudantes Voluntários para as Missões no Estrangeiro fez apelo para a “evangelização
do mundo nesta geração”. Nos campos missionários, detectavam-se as tensões geradas
pelo transplante das divisões confessionais da Europa e da América do Norte para eles. A
problemática foi discutida na Conferência Missionária Mundial em Edimburgo, Escócia,
em 1910 e, na Conferência Mundial sobre Fé e Constituição (Faith and Order) em
Lausanne, Suíça, em 1927. Dois anos antes, a Conferência Universal Cristã sobre Vida e
Obra (Life and Work) em Estocolmo, Suécia, encorajara as igrejas a abraçarem questões
sociais conjuntamente. Nessa conferência, as pessoas presentes eram delegadas de
suas denominações, inclusive de igrejas ortodoxas. Figura central dessa Conferência foi
Nathan Söderblom (1866-1931), Arcebispo de Estocolmo e professor de Ciências da
Religião. Söderblom conseguiu reunir protestantes e ortodoxos. Por causa de suas
iniciativas no campo da atuação comum de cristãos, nas áreas da paz, da liberdade e da
justiça, foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1930.
As razões de seu crescimento estão nas raízes negras do movimento. Dessas raízes
emergiram a liturgia oral, a participação de todos na reflexão, na oração pública e nas
decisões. Daí brota uma espiritualidade de reconciliação. E ainda: uma compreensão
peculiar da relação entre corpo e alma, que encontra sua maior expressão na aplicação
dessa compreensão na oração pelos doentes e na dança litúrgica.
O sofrimento de Seymour e de seus irmãos negros era muito grande. 3.436 negros
foram linchados durante sua vida adulta. As brutalidades eram incontáveis. E é bom
lembrar que, em boa medida, eram cristãos os que matavam e violentavam cristãos.
Mesmo assim, Seymour pôde desenvolver uma espiritualidade que provocou
reavivamento na Los Angeles de 1906. Mais e mais, os historiadores situam nesse
reavivamento o berço do pentecostalismo. Por trás dele, porém, devemos perguntar pelas
raízes da espiritualidade de Seymour. Elas têm origem africana. Essas origens estão
documentadas no fato de ele introduzir música africana e negro spirituals em sua liturgia.
O fato merece destaque em uma época em que tal tipo de música era considerado
impróprio para o culto cristão. Em sua atuação, além disso, Seymour expôs sua
compreensão de pentecostes: amor em meio ao ódio. Sua pregação é uma opção
diferente da do American way of life.
Esse retorno dos pentecostais negros as suas origens é motivo de inquietação para
os pentecostais brancos. Estes não esqueceram que tudo começou em uma congregação
negra de Los Angeles (1906), no mesmo meio em que surgiram o spiritual, o jazz e os
blues. Mas, mesmo tendo aceito a música negra, esqueceram a influência negra. Esse
esquecimento tem consequências; sua redescoberta tem poder revolucionário. De fato, o
reavivamento pentecostal do início do século XX tem algo subversivo. Naqueles estados
em que a celebração inter-racial era proibida, ela era rompida pelos pentecostais, pois era
“lei humana”. Pentecostais reuniam negros e brancos empobrecidos. Negros ordenavam
brancos. Depois, a situação mudou radicalmente. Surgiram igrejas pentecostais brancas,
completamente adaptadas às leis raciais do sul dos Estados Unidos. As igrejas
pentecostais negras não foram sequer admitidas na Pentecostal Fellowship of North
America. Por isso, não puderam concordar com os apelos das Assembléias de Deus de
que tudo seja feito por conversão e não por coerção. Líderes pentecostais negros afirmam
que o pentecostes só é possível como fim da separação racial. Esse foi o milagre que
permitiu o surgimento da Igreja em Jerusalém. Não se pode acentuar e experimentar a
plenitude do Espírito Santo continuando racista.
Há quem diga que os hinos de origem negra são apocalípticos e orientados pela
transcendência. Ora, os spirituals não comprovam que os negros tenham se contentado
com a escravidão! São cânticos de libertação, que confessam ser a libertação dos
escravos um elemento integrante da revelação divina. Não há indícios de que os escravos
negros tenham aceito sua escravidão como vontade divina: os spirituals dizem que Deus
liberta os negros. Sua vontade é a eliminação da escravidão negra. Deus se coloca do
lado dos oprimidos. A libertação dos oprimidos de seu cativeiro é o tema central dos
spirituals.
A grande discussão cristã do século 21 não vai ser a da relação entre protestantes e
católicos, mas entre Teologia oral e Teologia escrita, entre a lógica do instinto e a lógica
da razão, entre negro e branco.
Por outro lado, são igrejas de mercado, em razão das transações comerciais nelas
realizadas. Isso se evidencia já em sua localização geográfica. Mercados são instalados
em áreas estratégicas, pelas quais passam muitas pessoas. As transações comerciais
são regidas pelo que é típico de todo o comércio; a troca do “dou para que dês”. Os
templos são uma entre muitas lojas a oferecer produtos que também podem ser
encomendados através da mídia. Ao invés da comunhão (communio) propiciada pelas
igrejas tradicionais, as igrejas pós-modernas privilegiam o encontro breve, típico do
Shopping Center, com clientela flutuante e móvel, convidada a comparecer por meio de
propaganda da televisão. O estilo desse supermercado é, via de regra, festivo, com muita
música e diversão, tendo a finalidade de estimular e de aumentar o comércio. As
semelhanças com o supermercado não param por aí. Elas se mostram também no
tocante ao sistema econômico. Oferece-se um produto apetitoso por um preço adaptado à
economia do momento. Simplifica-se a filosofia mercantil, que é a de vender mais, e
adapta-se a mesma a uma cosmovisão: a criação de Deus, no princípio muito boa, foi
danificada por Lúcifer e pelos demônios; estes invadiram o mundo e provocam todo tipo
de males entre os seres humanos. Deus, porém, estabeleceu uma solução através de seu
filho Jesus Cristo e através do Espírito Santo para vencer os demônios: o exorcismo e as
curas divinas. Para que o exorcismo e a cura divina sejam realizados com êxito, deve
existir aquela relação entre Deus e o ser humano estabelecida em Malaquias 3.10: “Trazei
todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e provai-
me nisto, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu, e não
derramar sobre vós bênção sem medida.” Deus estabeleceu o pagamento do dízimo para
o novo tipo de Igreja. Estabelecido esse tipo de convênio, há reciprocidade de deveres e
obrigações entre as partes de cumprir e de exigir cada um o que lhe interessa.
Mesmo assim, a relação deve ser caracterizada não apenas por um cumprimento
formal, mas por ofertas voluntárias por amor, cujo valor é fixado segundo a vontade de
cada um. O fiel pode, então, esperar uma vida em abundância: paz, saúde, êxito
econômico e prosperidade. Nessa teologia, não há lugar para aquilo que é fundamental
para o cristianismo: a graça.
DREHER, Martin N. A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. 5ª. Ed. São
Leopoldo: Sinodal, 2010.
DREHER, Martin N. A Igreja no Mundo Medieval. 6ª. Ed. São Leopoldo: Sinodal, 2007.