Além Da Terra Do Gelo
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Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
Para Tio Charles,
Você continuará vivo em nossas memórias e nosso coração.
Capítulo I - O Pequeno Vanhardt
Vanhardt nasceu num lugar chamado "Terra do Gelo", região ao extremo norte
de Kether onde há neve o ano todo. S eria mentira se não dissesse que o garoto teve
uma infância muito difícil e solitária; era o menino da vila de Crivengart que todos
cuidavam para manter à distância. N unca encontrou colegas para brincar, e via de
longe os garotos correrem uns atrás dos outros, subir em pinheiros, lutar com
galhos quebrados como se fossem espadas. O pior, de qualquer maneira, nem era
isso. O pior era que ele já se acostumava. S entia-se diferente, e o fato de ser muito
pequeno comparado aos meninos de sua idade não ajudava em nada. A distração
favorita do garoto era observar o pai, Thomas, o carpinteiro, trabalhar. S ua mãe,
Dóris, morrera logo após seu nascimento, e Thomas teve de criá-lo sozinho.
Certo dia, do alto de seus sete anos de idade (na verdade, ainda era baixinho),
Vanhardt viu os garotos vizinhos montarem fortes de neve. O s meninos simularam
uma guerra, jogando bolas de neve uns nos outros enquanto se escondiam nos
fortes, gritando e gargalhando. Era uma oportunidade! Q ueria viver como qualquer
outro moleque de Crivengart, queria ter amigos, brincar. O s olhinhos de Vanhardt
brilhavam de alegria, e depois de alguns minutos ele tomou coragem e pediu para
entrar na brincadeira:
Posso brincar também? - gritou bem alto, parado no meio do campo de batalha.
Um silêncio profundo pairou no ar por alguns segundos, enquanto todos,
imóveis e sérios, olhavam para Vanhardt.
N ão atrapalhe, D aicecriv! Vá embora daqui, esquisito! - gritou um dos
moleques, jogando uma bola de neve em Vanhardt, no que foi imitado pelos
coleguinhas.
Uma chuva de bolas alvas e úmidas voou e atingiu o menino, cobrindo- o de
branco. S eus olhos ficaram vermelhos e lágrimas tímidas apontaram. N ão
funcionou. S ó que dessa vez, ele não se resignou, como fazia sempre. N ão queria se
acostumar! Também não entendia porque os outros garotos o odiavam tanto assim.
O que fizera de errado? Por que todos o ofendiam o tempo todo? Por que ninguém
brincava com ele? Caminhou para dentro de casa com o corpo tenso, rígido, se
patrulhando para não chorar. O mundo era injusto! A vida era injusta! O pai, que
estava sentado lixando uma mesa, reparou que o garoto estampava uma expressão
estranha:
Que foi, meu filho?
Por que todos me odeiam, pai? Por que fazem isso comigo? - perguntou o
menino com uma voz que alternava tons agudos e graves. Não chorou, entretanto.
A i... Certo meu filho, sente-se aqui do meu lado - Thomas puxou o menino e
colocou-o sentado numa cadeira ao seu lado. - Eu nunca contei isso a você, para
poupá-lo, mas está na hora de saber a verdade. Você está mais crescido, e acho que
tem idade para compreender certas coisas. Por isso, preste bastante atenção, e não
se assuste com o que vou dizer - ele inclinou a cabeça para cima, inspirou
profundamente, e, depositando olhos sinceros no garoto, continuou: - Você não é
filho de D óris, Vanhardt. É verdade que ela pariu você naquela noite terrível, na
qual acabou falecendo. O problema, meu filho, é que minha esposa era infértil, e
não podia ter um bebê. Ela só engravidou depois que pedimos ajuda a uma deusa,
que nos abençoou com um lindo presente! Vanhardt, você é filho de Léia, a deusa
do gelo.
O s olhos do garoto pararam de piscar. Choque. Ele era novo, porém, como seu
pai dissera, podia compreender certas coisas. Permaneceu paralisado por um
instante, pois a notícia surtira um prolongado efeito. D óris não era sua mãe? Ele
era filho da deusa do gelo? E Thomas, o que seria? A inda inseguro, o garoto
perguntou:
Pai, e você? Não é meu pai também?
Ah, sim, sou mesmo seu pai.
Mas como pode você ser meu pai, a minha mãe uma deusa, e quem me deu à
luz uma humana? - Vanhardt complicara tudo.
A h... I sso é difícil de esclarecer... Vou explicar de maneira simples, pra você
entender. A deusa do gelo, a quem sou eternamente grato, nos deu parte de sua
energia divina. S ó que essa energia, sozinha, não podia gerar um filho humano, era
preciso também a essência humana. Então, a deusa pegou parte de minha essência
e juntou à dela, gerando a partir daí uma semente. Ela implantou essa semente em
D óris, que assim ficou grávida de você. D urante o parto, que foi muito complicado,
D óris não suportou a imensa carga de energia que teve de ser liberada, e veio a
falecer. Mas eu não fiquei triste o tempo todo, porque, apesar de ter perdido minha
esposa, ganhei um filho maravilhoso! - Thomas sorriu tentando animar o garoto ou
a si mesmo.
Vanhardt ainda achava aquilo confuso, e não parava de perguntar:
Pai... S e sou filho de uma deusa, posso fazer o que os deuses fazem, como
milagres, não é?
Claro que sim! E é por isso que todos na vila não gostam de manter contato com
você. Porque têm medo. E uma coisa eu pude aprender com minha experiência: as
pessoas temem aquilo que desconhecem. Olha, vou te contar uma história.
"Há muito tempo, quando você era ainda um bebê, nós da vila migramos para o
sul por conta de um inverno especialmente rigoroso. D urante a viagem, um
incidente aconteceu. A carroça em que nós dois viajávamos margeava um lago
quando a roda do meu lado se chocou contra a quina de uma rocha, e com o
solavanco, você foi arrancado de meus braços, e atirado para fora do veículo. Fiquei
assustado, pois se alguém pequeno como você tivesse caído no chão e batido a
cabeça, poderia ter até morrido! Q uando fui para a borda da carroça assustei-me
enormemente quando o vi afundando no lago, se debatendo. D esci rapidamente do
veículo, corri em sua direção e também mergulhei na água gelada. N adei à sua
procura, desesperado, e não consegui encontrá-lo. Comecei a congelar, e acabei
sendo resgatado para fora da água por nossos vizinhos. Q uase morri, e nada
pudemos fazer para salvá-lo, meu filho. Ficamos ainda um dia inteiro acampados,
para eu poder me aquecer e não morrer da 'doença do frio'".
"Não guardava mais esperanças de achá-lo vivo, pois haviam se passado mais de
vinte e quatro horas sem nenhum sinal seu. Por uma daquelas coincidências
providenciais, fui até a margem do lago para dar-lhe o último adeus, e acabei
notando um vulto dentro da água. S em pensar duas vezes quebrei a fina camada de
gelo que recobria o lago e... adivinha quem era? A credita que você saiu chorando
dali? Ficou mais de um dia debaixo d'água, e ainda saiu com vida! I magine,
nenhum humano teria sobrevivido. Foi a partir desse dia que os outros
crivengartenses passaram a se afastar de você."
Vanhardt sentia sua cabeça doer, pois recebera muita informação em um curto
período de tempo. Ele era filho de uma deusa, e podia fazer milagres... D e alguma
forma era especial. Só que ainda não sabia se isso era bom ou ruim.
Pai, e o que mais posso-fazer? - perguntou o garoto, pensando em proezas
divinas.
Isso eu não sei. Só sua mãe pode responder.
E quando irei vê-la?
Veja bem, meu filho, isso é difícil. D euses não costumam ficar circulando pelo
mundo dos humanos. S ó o tempo dirá quando irá vê-la. -Thomas colocou a mão
sobre o ombro do filho.
Mas ela não quer me ver? Ela não quer que eu a encontre?
Eu não sei... Paciência, Vanhardt, o tempo vai...
Ela me abandonou como todo mundo! - exclamou Vanhardt, interrompendo a
frase do pai.
Não meu queri...
Eu já entendi! - gritou novamente e saiu de casa batendo a porta.
Capítulo II - O Fantástico Mundo de Kether
A credito de forma sincera que a parte mais difícil de escrever um livro seja o
começo. É nele que você lutará dramaticamente a fim de prender a atenção do
leitor, e demonstrará o que se pode esperar pela frente. A partir daí, ele fará seu
julgamento (algumas vezes injusto, outras nem tanto) e decidirá se continuará
lendo ou não. S em querer me esticar demais, e cair no velho erro de começos
demasiadamente longos, vou logo me explicando. E tentando enfrentar de cabeça
erguida essa parte tão ingrata de uma obra.
A ntes de mais nada, gostaria de deixar claro que convidaram-me para redigir a
história desse herói, situação pela qual fiquei infinitamente feliz. O seu nome
completo, aliás é Vanhardt Mohr D aicecriv (pronuncia-se Vãrrart Mór D aicecriv), e
quer dizer "Vanhardt filho das terras geladas". N unca me achei digno de tamanha
proeza, e relutei o máximo que pude, porém forças maiores acabaram me
convencendo. Pois o velho bardo aqui promete que irá dedicar todos seus esforços
para contá-la da maneira mais verídica, e mais empolgante, que sua habilidade
comunicativa permitir. S e o leitor achar o texto enfadonho, perdoe-me pela
incompetência; caso contrário, se gostar, me deixará satisfeito apenas por tê-lo lido.
A crescento que não sou daqueles que veneram descrições completíssimas, nos
mínimos detalhes, redundantes, e por isso monótonas e aborrecidas. S e acontecer,
terá todo o direito de reclamar, e prometo que será atendido. O s próximos
parágrafos são uma introdução ao meu mundo, curtíssima para não chatear
ninguém. Pois bem, vamos lá.
Há um lugar diferente desse que vocês chamam de "Terra", governado por
deuses. Esse mundo é Kether. Contam as lendas que não foram tais deuses os
criadores de Kether, e sim uma força maior, chamada "A bsoluto". Q uando as
pessoas daqui ouvem isso, caem na gargalhada, pois para elas é absurdo pensar
que não foram os deuses os criadores de nosso mundo. Eu mesmo, seu fiel
narrador, custei a acreditar quando ouvi o relato da boca de um dragão ancião.
S egundo esse velho, porém sábio dragão (seu nome era Frumbus, só que ele não
gostava nem um pouquinho que o chamassem assim; preferia "O Poderoso S enhor
das Chamas"), o tal de A bsoluto criou o mundo de Kether, e só depois vieram os
deuses. A força do A bsoluto foi responsável pelo surgimento de todos os seres
fantásticos que habitam o planeta, como gnomos, duendes, lagartos, gigantes,
fadas, orcs, trolls, pássaros roca, tigres, além dos reinos mineral e vegetal. A partir
desse ponto, no qual cadeias imensas de montanhas cortavam o continente, mares
e oceanos inundavam vastos territórios, e centenas de milhares de criaturas
habitavam o planeta, os deuses assumiram o controle do mundo.
N esse momento, o A bsoluto deixara de existir. N ão adianta me perguntar, não
sei como isso aconteceu, ele simplesmente sumiu e deixou Kether nas mãos
divinas. Certo, e o que veio antes do Absoluto? Isso o velho Frumbus não soube me
responder. Talvez nem mesmo os deuses saibam! Para os leitores que pela
primeira vez se aventuram nessas páginas, informo que são sete as principais
divindades que governam nosso mundo: S alazar, o deus do sol; N úbia, a deusa da
noite; Laodicéia, a deusa da natureza; N autillus, o deus dos mares e oceanos; Bel, a
deusa da vida; Morgana, a deusa da morte e finalmente J ustus, o deus da J ustiça e
líder do Panteão dos deuses. Existem também dezenas de outras divindades
menores, mas elas exercem pequena influência sobre nosso fabuloso mundo.
Bem, aposto que você já deve estar imaginando quando voltarei a contar a
história de Vanhardt, não é? Então...
Passaram-se muitos meses desde aquele dia que Vanhardt brigou com o pai. Ele
continuava distante dos outros garotos, mas voltara a conversar normalmente com
Thomas. N o meio de uma noite bastante fria, acordou ao ouvir chamarem seu
nome:
Vanhardt... Vanhardt...!
A estranha voz soava baixinho, um sussurro, que vinha do outro lado da janela
do quarto. Continuou deitado na cama, pois podia ter apenas sonhado. Porém a
voz insistiu:
Vanhardt...! Não tenha medo... Venha comigo!
A gora tinha certeza, não era nenhum sonho. Pensou em correr para chamar o
pai, porque era bem capaz de ser um fantasma esperando por ele lá fora. D esistiu
ao se imaginar saindo da proteção da cama e do quarto. Enrolou-se debaixo do
cobertor, esperando os sussurros cessarem, o que infelizmente não aconteceu:
Há algo que eu gostaria de mostrá-lo...! Venha aqui fora!
D essa vez ele pulou da cama e disparou para o quarto de Thomas. A briu a porta
gritando:
Pai, uma coisa está me chamando lá fora!
Thomas gemeu e virou-se com dificuldade. O rosto amassado revelava sono.
O que foi? - perguntou, com a voz espremida e rouca - Quem está te chamando?
Ah, não fui lá ver... Só sei que é um fantasma, com certeza!
Volte a dormir, você estava apenas sonhando! - Thomas pegou o travesseiro de
penas de ganso e o pôs debaixo da cabeça, tornando a roncar logo em seguida.
O garoto ainda balançou o pai duas vezes, desistindo quando se deu conta de
que não o acordaria nem se a casa estivesse desabando. Voltou para o quarto
emburrado e apreensivo, mas em vez de se deitar abriu uma fresta na janela.
Meteu um dos olhos curiosos na abertura e observou. N ão notou nada de estranho,
e podia enxergar muito bem, pois a luz da fogueira no centro da vila, que sempre
ficava acesa para espantar lobos, somava-se à uma lua muito brilhante. É, sonhara
apenas! Virou-se para deitar na cama, e quando puxava as cobertas, pôde escutar a
voz mais uma vez:
Vanhardt, eu estou aqui porque tenho um segredo para te revelar! Não sou nenhuma
assombração, pode me seguir sem medo! Venha aqui fora...!
O garoto sentiu uma curiosidade crescente. S eria uma assombração? Como
poderia ter certeza? O ra, se fosse um fantasma, obviamente não revelaria sua
identidade, e diria que não era uma assombração. Mesmo assim resolveu arriscar.
Vestiu um casaco de lã, bastante fino, que não servia de nada para proteger do
frio. Mesmo sendo óbvio para o pai do garoto que este não sofria os efeitos do frio,
acabava por hábito obrigando o menino a usar proteção para sair de casa. Calçou
também uma bota e cuidou de sair silenciosamente. N ão que achasse que seu pai
acordaria com o barulho de seus passos, pois Thomas costumava dormir como um
urso, mas de qualquer modo era bom prevenir. O lhou para ambos os lados e só via
ruas desertas. A fogueira crepitava tranqüilamente no centro da vila, e uivos
distantes de lobos podiam ser ouvidos. Onde estaria o dono da voz?
Siga-me!
D essa vez ela veio do leste, próxima da casa de seu vizinho Eventorn Runcard.
N ão havia ninguém ali, entretanto. Correu para o local, começando a ficar irritado
com a pessoa (ou fantasma!) que não se revelava. S ussurrou para não acordar
outros habitantes da vila:
Onde você está? Por que não aparece?
Continue me seguindo e você vai me encontrar... Confie em mim!
A voz vinha do final da vila, e Vanhardt continuou a persegui-la. O s sussurros
se seguiram, e guiaram o garoto, que não teve dificuldades em enxergar o terreno
bem iluminado pela lua, para longe de Crivengart (N úbia, a deusa da noite, devia
estar querendo se mostrar para manter seu castelo lunar tão brilhante). S ubiram e
desceram um morro, e passaram próximos a um lago onde os crivengartenses
costumavam pescar. Continuaram por quase uma hora, e quando Vanhardt não
agüentava mais de cansaço, a voz sibilou:
Chegamos!
Vanhardt havia parado em frente a uma majestosa parede de gelo. S eu
comprimento era maior que toda a vila de Crivengart, e tinha a altura de dois
pinheiros empilhados um sobre o outro. O garoto aproximou-se lentamente, e
pôde ver seu corpo refletido na parede de gelo. Tocou-a com as duas mãos
pequeninas, e sentiu uma energia muito estranha, embora agradável, emanando
daquela estrutura.
Pronuncie as palavras mágicas "Abartre daopeolg"! - a voz agora ecoava de dentro da
parede de gelo.
O garoto abaixou as mãozinhas e fez como a voz mandou:
Abartre daopeolg!
O uviu-se um estrondo enorme, e toda a estrutura começou a tremer. Vanhardt
deu três passos para trás, e viu que metade da parede de gelo se abria para fora,
como se fosse uma porta. Q uando estava totalmente aberta, o garoto ficou cego por
alguns segundos com a forte luz branca que emanava de seu interior. A visão logo
se restabeleceu, e ele percebeu que o feixe de luz continuava saindo da abertura,
mas era mais fraco e tranqüilizador. Hesitou: deveria entrar?
Venha! - a voz não era mais um sussurro misterioso, e sim feminina, meiga e
graciosa.
O lhou para os lados, e constatou que ninguém o seguira. Então, com passinhos
curtos e pouco decididos, Vanhardt atravessou lentamente o magnífico portal de
gelo.
Capítulo III - A Casa de Gelo
Entrou em casa com um olho roxo e vários hematomas pelo corpo. Uma das
costelas do lado direito doía terrivelmente, e chegou a acreditar que a havia
quebrado. Levara uma boa surra de Rufus, e só não estava totalmente aborrecido
porque também deixara um olho do adversário sangrando. S ua mãe nem quis
auxiliá-lo na luta! Era uma deusa, poderia ter feito Rufus tropeçar, ou lançado uma
tempestade de neve que o congelasse. Q ualquer coisa que o ajudasse a vencer, e
não passar vergonha na frente dos outros. O s poderes divinos do menino também
não se manifestaram, o que deixava Vanhardt mais descontente ainda. É, talvez ela
não o tivesse ajudado justamente para ensiná-lo a não sair no tapa com qualquer
um que o provocasse. Thomas abriu a porta e tomou um susto ao ver o filho
naquela situação:
Vanhardt, onde você se meteu? Passou a manhã inteira fora de casa, e aparece
assim! N ossa, procurei você pela vila toda, estava muito preocupado... Mas o que
aconteceu? Caiu de algum barranco, ou foi atacado por lobos? - o pai o fitava com
olhos arregalados, assustados.
N ão, pai, isso não foi nada. Eu fui... - relutou um pouco, pois não sabia se devia
contar que havia se encontrado com sua mãe nem que tinha brigado com Rufus. -
Pai, eu vi a minha mãe!
O garoto revelou toda a aventura ao pai. N ão existiam razões para esconder o
acontecimento dele, e acabou contando também sobre a briga que tivera com o
vizinho. Por conta de tudo, Thomas colocou-o de castigo. Uma semana sem poder
sair de casa. S e fosse alguns dias atrás, o castigo nem o incomodaria, porém agora
que descobrira um lugar maravilhoso para passar o tempo, uma semana preso faria
muita diferença. Saiu do castigo no terceiro dia, de tanto insistir com o pai.
O enterro foi triste, silencioso, frio. Ventos fortes do norte atiravam flocos de
neve com fúria nos rostos das pessoas. A vila em peso compareceu, e estavam
todos vestidos de branco (nas terras do N orte esta é a cor do luto). Thomas
carregava o neto no colo, e Vanhardt abraçava S elena que não chorava, pois havia
acabado com quase todas as lágrimas. Ela soltou-se do marido e se aproximou
lentamente do caixão aberto.
O rosto de Lionel continuou branco, mas com feições tranqüilas, de quem
dormia profundamente, diferente de quando Vanhardt o encontrara, quando
parecia tomado de pânico. S elena tocou com carinho o rosto do pai, e ainda
conseguiu derramar duas lágrimas rebeldes, que teimaram em sair. D epois colocou
uma rosa entre os dedos dele, e deu um beijo nas bochechas do homenzinho calvo.
Afastou-se sem dar as costas para o caixão, que foi fechado.
D ois homens com martelos gigantes cravaram pregos, lacrando a enorme caixa
de madeira, e amarraram cordas nas duas pontas dela. Eles mesmos ergueram-na e
a levaram para um barco a remo, ancorado na margem. A s águas revoltosas por
conta dos poderosos ventos dificultaram a remada até o centro do lago, local onde
os homens com algum esforço desceram o caixão, utilizando as cordas. Q uando
este bateu no fundo do lago eles retornaram para junto do povo.
É a nossa tradição. Fizeram a mesma coisa com D óris... - Thomas comentou ao
pé do ouvido de Vanhardt, que enxugava as lágrimas. - Colocaram dentro do caixão
muitas pedras, de modo que ele não irá flutuar. Todos os nossos ancestrais
repousam no fundo desse lago e em outros espalhados pela Terra do Gelo.
Eu só quero saber quem fez isso pai... Pois ele irá pagar por crime tão odioso e
sem sentido! Lionel nunca fez mal a ninguém nessa vila. Q uem teria ousado uma
coisa tão hedionda e vil? - Vanhardt falava alto de modo que se o criminoso
estivesse ali, escutasse.
N ão deveria ficar pensando nisso agora. - tornou Thomas num tom mais baixo. -
Você tem um filho que acabou de nascer, e sua esposa precisa de companhia. Eu
vou procurar a deusa do gelo, pois ela deve saber de alguma coisa. D epois
resolveremos o que fazer com o criminoso.
Mas, pai, você nem sabe como entrar na casa de gelo... N ão consegue decorar as
palavras mágicas.
E antes de você nascer, como acha que eu conversava com sua mãe? N ão se
preocupe com isso. Tome conta de sua esposa e de seu filho que do resto eu cuido.
Vanhardt e S elena voltaram pra casa com o pequeno Erick no colo da mãe, e
Thomas tomou um rumo desconhecido. O bebê, apesar da morte do avô, mantinha
um sorriso expansivo nos lábios. A mãe do garotinho se distraía ao vê-lo sorrir, e
brincava com ele. Vanhardt também brincava com Erick, fazendo caretas, e podia
jurar que o bebê compreendia tudo que estava acontecendo. A quele dia tinha sido
muito triste para os dois, e a única coisa que abrandava o clima pesado era o
pequeno Erick.
Entraram em casa e S elena foi trocar a roupa do menino, pois ele tinha sujado
as fraldas de pano. Enquanto isso Vanhardt foi fazer o almoço. S entia-se muito
cansado, e não parava de tentar imaginar quem teria matado Lionel. Ele se lembrou
de quando, no dia do seu casamento, o pai de S elena havia ficado nervoso. A lgo
parecia perturbá-lo bastante. Ele nunca mais abordou o sogro - na verdade, até se
esquecera daquele fato. Mas agora as lembranças voltavam como uma avalanche
em sua cabeça. Escutou sua esposa cantar ao trocar a roupinha do menino, e um
sentimento relaxante, apaziguador, envolveu a sua mente e acalmou-o.
D e repente, quando acendia fogo na lenha, viu a porta se abrir devagar com um
rangido. Um vento frio invadiu a casa, e o rapaz se assustou ao notar que um
desconhecido entrava pela porta. Vestia um capuz marrom que encobria o rosto, e
uma capa da mesma cor, fechada na frente, que ocultava o resto do corpo. Uma
corrente dourada pendia de um ombro ao outro.
Quem é você? - perguntou Vanhardt.
Eu...Eu sou Hilda! - o desconhecido baixou o capuz, e Vanhardt pôde ver que se
tratava de uma mulher. - E vim aqui pegar o meu neto!
A mulher abriu a capa para os lados bruscamente. Era da mesma altura que
S elena, magra, e tinha os cabelos ruivos e olhos azuis. S em aparentar mais do que
trinta anos, revelava uma beleza intimidadora. Usava uma blusa vermelha com
decote, e uma saia cor vinho, que ia até o chão. A s idéias fluíam velozes na cabeça
de Vanhardt.
Foi você, não foi? Foi você quem matou Lionel! - gritou Vanhardt apontando
para a mulher.
S im, fui eu quem matou aquele inútil. E irei matar você também se tentar
interferir - S ua voz era fria e o olhar malicioso. - Mande minha filha trazer o meu
neto.
Mas por quê? O que Lionel fez para merecer morrer?
Bem, ele roubou a minha filha, não sabia? Mereceu morrer por isso! A gora
chega de papo, não tenho tempo a perder. N ão ouse fazer um movimento, ou serei
obrigada a matá-lo também. E se não vai chamar sua esposa, deixe que eu mesma
pego meu neto.
Hilda deslizou sobre o chão como se flutuasse, e dirigiu-se ao quarto onde
S elena trocava o filho. Vanhardt correu em direção à feiticeira erguendo o braço
para desferir um soco em suas costas. Ela esticou o braço direito com a mão aberta,
e uma força invisível atingiu Vanhardt em cheio, arremessando-o na parede. O
jovem levantou atordoado e escutou o grito de sua esposa vindo do quarto:
NÃO! NÃAAAAAAO! LARGUE-O, SUA BRUXA!
Com Erick chorando escandalosamente no colo, Hilda deslizou de volta à sala, e
seguiu para a porta da rua. S elena agarrou-se ao braço da mãe tentando impedi-la
de sair:
S olte-o! N ão leve o meu filho também... N ão...! - a voz saía sem força, e lágrimas
rolaram pelo seu rosto.
Vanhardt não podia ficar parado sem fazer nada, mas imaginou que não
adiantaria investir contra a mulher como da primeira vez. Rapidamente pegou uma
cadeira e jogou-a contra Hilda. Esta estendeu novamente o braço direito, e a
cadeira desviou sua rota, atingindo S elena que foi derrubada no chão, produzindo
um baque surdo.
D essa vez, sem ser interrompida, Hilda saiu da casa, e Vanhardt correu para
ajudar a esposa a se levantar, pedindo desculpas.
N ão perca tempo comigo, salve nosso filho! - S elena empurrou o marido para
fora.
Um cavalo negro, com a crina e os olhos vermelhos, esperava pela feiticeira do
lado de fora. Ela puxou as rédeas do cavalo e subiu em suas costas, com o bebê
bem seguro no braço esquerdo. Erick continuava a chorar e espernear.
Muito bom Pesadelo. A gora vamos pra casa! - murmurou a mulher ao ouvido
do cavalo.
A ntes que ela fugisse, porém, Vanhardt parou com os braços esticados em sua
frente. Ela depositou os frios olhos azuis no genro, e por alguns segundos
permaneceu parada. J á que o rapaz insistia em bloquear o seu caminho, merecia
morrer como o velho Lionel. Com a decisão tomada, Hilda fechou a mão direita,
apertando-a com força. Vanhardt sentiu dedos invisíveis pressionarem o seu
pescoço, estrangulando-o.
Ughhhh... - inutilmente, a mão de Vanhardt tentava retirar uma força invisível
que constringia seu pescoço.
Mãe, pare com isso! Solte-o, por favor! - gritou Selena.
Sua impertinência será a causa de sua morte. Eu avisei para ele não interferir...
Vanhardt caiu de joelhos no chão, e seu rosto vermelho e banhado de suor
contraía-se em desespero. Ele nem via o que estava acontecendo à sua volta, e
continuava tentando impedir a mão invisível de tirar o seu fôlego.
Mãe, largue-o agora! Ele vai morrer...!
É essa a minha intenção filha... Há!Há!Há! - Hilda gargalhou num tom
agudíssimo - Mas tudo bem, vou lhe oferecer uma alternativa. Volte comigo para
Avendorh, e poderá ver o seu filho todos os dias. O u fique com esse paspalho e
nunca mais tornará a ver o lindo Erick.
S elena olhou para o filho, e depois para o marido que já estava deitado no chão
quase desmaiado. Correu para Vanhardt e abraçou-o com força.
Não irei abandonar nenhum dos dois. Solte meu marido e devolva meu filho!
Hilda abriu a mão, e pegou as rédeas de Pesadelo. I mediatamente Vanhardt
parou de sentir o aperto no pescoço.
Você é uma idiota, como seu pai e seu marido. É melhor deixá-los vivos, para
que sofram a dor da perda de um filho, como eu mesma sofri! - ela puxou as rédeas
com força, o cavalo empinou e relinchou, e começou a cavalgar sobre o ar como se
subisse uma ladeira invisível.
Vanhardt voltou a respirar, e viu Pesadelo flutuar vários metros acima do chão,
indo em direção às nuvens. Levantou-se e continuou a olhar o ponto que foi aos
poucos desaparecendo no céu. S ua esposa estava logo atrás de si, sentada no chão,
arrasada. Ele pegou as mãos dela com delicadeza, ajudando-a a se levantar.
Primeiro meu pai... Agora meu filho. Sinto-me tão só!
N ão se preocupe, eu juro que vou trazer Erick de volta! - Vanhardt falou
calmamente enquanto abraçava a mulher.
Várias pessoas da vila, fora de suas casas, escutaram a gritaria e viram toda a
cena. Eles olhavam com pena para o casal, e murmuravam entre si. D epois de
alguns segundos todos se assustaram com a voz de Thomas que vinha correndo:
Vanhardt! S elena! D escobri quem matou Lionel Risalv - falou afobado o pai de
Vanhardt, ao chegar ao lado dos dois.
Eu também pai. - tornou Vanhardt, que deixou Selena com Thomas.
No meio de uma tempestade de neve, com passos firmes e decididos,
Vanhardt seguiu para a casa de gelo. Era hora de perder a inocência.
Capítulo VII - A Deusa da Morte
Com olhar sério e testa franzida, Vanhardt entrou na casa de gelo e logo
reparou em sua mãe sentada atrás da mesa no centro do salão. Ela usava um
vestido longo, prateado, e seus olhos aparentavam preocupação.
S ente-se aqui meu filho - disse puxando uma cadeira. - Eu já soube de tudo o
que aconteceu, não precisa me dizer nada.
Eu vou atrás de Erick. Vim aqui pedir a sua ajuda. J uro que nada vai me impedir
de fazer isso - o rapaz sentou-se na cadeira que sua mãe lhe oferecera.
E certamente irei ajudá-lo. Mas antes que você saia numa jornada em busca de
seu filho, eu tenho de lhe contar uma história. É sobre o meu passado. Por ser filho
de uma deusa, é muito provável que você encontre pessoas que fizeram parte dele
e deve ter total conhecimento da minha história para que não seja surpreendido.
Entendeu?
Vanhardt confirmou meneando a cabeça.
Pois muito bem.
"A ntigamente, eu não era conhecida como deusa do gelo. Possuía um outro
nome, e outra identidade, que se perdeu ao longo de centenas de anos. Sei que você
conhece todas as seis divindades maiores, meu filho. O que você não sabe é que eu
era a sétima deusa do Panteão, Morgana, a deusa da morte."
Vanhardt revelou uma expressão um pouco assustada. Porém, antes que um
sentimento de desconfiança tomasse conta do rapaz, sua mãe continuou:
N ão tema, Vanhardt. Eu era a deusa da morte, mas nem por isso desejava a
morte dos seres, A minha conduta era ajudar aqueles que morriam a fazer uma
transição tranqüila, sem dor. O u então causar dor suficiente aos que mereciam.
Tenha isso bem claro em sua mente; a morte não é um fim, mas uma transição. S ó
não iremos nos ater a isso no momento. O utro dia lhe explicarei melhor os
mistérios da vida e da morte.
"N em todos os habitantes de Kether denotavam bons olhos para essa que vos
fala, e com alguma razão. I sso porque meu irmão J ustus, o líder do Panteão dos
deuses, muitas vezes recorria a mim quando precisava punir povos específicos.
N essas épocas, eu recebia a tarefa de espalhar pragas sobre tais populações, a
fim de punir os crimes que porventura eles houvessem cometido. A pesar da
desconfiança de uma parcela dos Ketherianos, eu possuía sim, muitos seguidores.
Eles não me pediam para viver mais, pois sabiam que isso não era possível, mas
que tivessem uma morte pacífica; e eu os atendia."
"Q uanto aos meus irmãos de status, sempre cultivei um bom relacionamento.
A pesar de ser a mais nova de todos, não deixava de cumprir com as minhas
obrigações, e nunca revelava fraqueza. A única deusa com a qual mantinha certo
atrito era Bel, a deusa da vida, rixa até natural pelas nossas convicções: ela cuidava
de tudo relativo à vida, e eu do seu oposto, a morte."
"Um determinado dia, quando estava em meu castelo, envolvida com alguns
importantes afazeres, fui interrompida por barulhos que vinham do lado fora. Mal
sabia eu que aquele seria o dia mais sórdido e terrível de toda minha existência.
Entrei em contato telepático com A nael, o general de minha guarda de elite, os
A njos da Morte, e perguntei-lhe o que acontecia. A nael parecia preocupado, e
informou em poucas palavras que estávamos sendo invadidos. O general já havia
mobilizado criaturas, armadilhas e todas as outras defesas do castelo, e acreditava
que os invasores logo seriam debelados."
"I ntuitivamente senti que aquele não era um ataque qualquer. A preocupação
de A nael não condizia com a intensa mobilização dos veículos de defesa do castelo.
I nsisti para ele não encarar o inimigo de frente, o que não adiantou nada. A pesar
de valente e líder nato, motivo pelo qual se tornou general dos A njos da Morte,
Anael nunca foi muito disciplinado,"
"D irigi-me então ansiosamente até a fonte no centro do salão, e pedi para que
ela me mostrasse a batalha. A visão se revelou mais aterradora do que o meu pior
pesadelo. D ezenas de milhares de criaturas adentravam o castelo, como se fossem
uma massa negra devorando o que via pela frente. Individualmente tinham a altura
de seres humanos, e vestiam uma capa preta que cobria o corpo inteiro. A s mãos
que saíam de dentro das capas eram constituídas unicamente de ossos putrefatos,
e empunhavam espadas enferrujadas. D emoraram apenas alguns segundos para
tomarem o perímetro externo da minha fortaleza, e logo estavam no pátio central,
superando as armadilhas e dizimando as tropas de defesa. N esse ritmo não
tardariam a me alcançar. Como um exército daquele tamanho pôde ser reunido?
Como eles chegaram até o meu castelo sem que eu fosse previamente alertada?"
"S em perder mais tempo, peguei minha foice, a poderosa Flama, e fui para a
porta do corredor. A ntes que eu saísse, A nael entrou pela porta, segurando com a
mão a barriga ensangüentada. Exaurido de todas as forças, o general dos A njos da
Morte caiu aos meus pés, de joelhos, e suas últimas palavras foram:"
'D esculpe-me vossa magnificência... Eles são muitos... Estão todos morrendo,
até mesmo nós da guarda de elite... Ele nos...'
"E desabou completamente no chão. Toquei o seu pescoço, mas não senti
nenhum fio de energia vital. S ons de passos vieram do corredor, e quando olhei, vi
que 'Ele' estava parado sob o arco da porta. Usava uma pesada armadura prateada,
dos pés ao pescoço. N o rosto, um elmo com o formato de caveira, e dois chifres
brancos. Podia muito bem notar seus olhos vermelhos, ardentes, por detrás da
máscara que escondia o rosto. Ele também segurava uma espada, muito diferente
de todas que eu já vira. A lâmina era grossa e serrilhada em toda sua extensão, e
exibia um punho longo, com duas projeções semelhantes a caninos cobrindo a mão
de um lado e de outro."
"Com Flama nas mãos, voei em sua direção, girando-a para atingir o pescoço
inimigo. S em demonstrar muito emprego de força, ele ergueu a espada, acertando
Flama em cheio. Um som estridente, e minha foice imediatamente voou pela
janela. N aquele momento eu soube que não venceria a luta. N ão poderia me
teleportar para fora do castelo, pois isso gastaria segundos de que eu não
dispunha. Usando uma velocidade ampliada, tentei sair pela porta dos fundos, mas
o invasor atirou a espada nas minhas costas."
"Vanhardt, nem sei descrever o que senti quando aquela arma atravessou meu
corpo. Foi como se toda a minha força tivesse sido sugada instantaneamente pela
lâmina fria, e quando me dei conta, já estava ajoelhada no chão com uma dor
inimaginável. Ele então se aproximou lentamente, e retirou a espada com um
puxão. Pude ver suas pernas parando na minha frente."
"O invasor ergueu a espada com o braço direito, e desceu-a na direção do meu
pescoço. S ó uma manobra magnífica evitou minha morte: antes do golpe,
transportei as energias que me restavam para uma mosca que passava próximo a
uma janela. E só por muita sorte não fui notada."
"D e posse daquele corpo de inseto, fugi o mais rápido que pude do castelo, com
medo de que ele descobrisse a minha manobra, e assim me encontrasse. Voei por
quilômetros, e por um tempo incontável, visto que para um inseto este se mostra
de modo diferente, e acabei me deparando com a terra do gelo. Q uando pousei,
assumi a forma humana, ainda abalada com o que havia acontecido. Foi tão rápido!
Em cerca de poucos minutos perdi o que havia construído durante toda uma
existência. Minha casa, meus amigos... Tudo irrecuperável! N o mundo dos deuses,
o que faz de cada um aquilo que ele realmente é, se chama quantun, e representa a
energia divina de cada entidade. E os meus praticamente se esgotaram depois
daquela virada de mesa. "
"Recolhi-me então numa caverna que encontrei ali perto de onde pousara.
A quele lugar parecia seguro, e resolvi hibernar por vários anos, pois precisava
meditar sobre tudo que acontecera. Palavras são insuficientes para descrever o
vazio que se apossou de mim. Q uando acordei, chorei uma única lágrima. N ão
sabia quem fizera aquilo comigo, mas tinha certeza que era um de meus irmãos de
status, porque nenhum mortal, nem mesmo um deus menor, teria poder para
tanto. Mas quem? Pensei em todos eles, e não me decidi por nenhum. N em mesmo
por Bel, a deusa com quem eu mais revelava atrito. D e qualquer modo, sentia que
J ustus estava em débito comigo. Ele era o líder do Panteão, e poderia ter impedido
que isso ocorresse. Resolvi precavidamente assumir uma nova identidade, a de
deusa do gelo, que combinava com o lugar onde estava e com meu estado interior.
Era melhor que o invasor acreditasse que eu havia morrido, para não iniciar uma
perseguição."
"A os poucos fui me reerguendo. D errotei várias criaturas, ganhei seguidores e
servos. Passados muitos anos, já havia me tornado bastante conhecida nas
redondezas. D escobrir quem havia feito aquilo comigo se tornou a minha
motivação. Mas para isso eu precisava crescer, pois se voltasse a enfrentar esse ser
maligno, deveria estar muito mais forte que antes."
"Centenas de anos depois, quase um milênio, com meu castelo de cristal recém-
construído, acabei me deparando com um pedido muito especial. Era de um lugar
onde eu não apresentava seguidores, uma vila chamada Crivengart. Fui ver qual era
o pedido: um senhor que não tinha filhos, e necessitava de ajuda para sua mulher
engravidar. O resto você sabe meu filho, meses depois você nasceu."
A o fim da história da mãe, Vanhardt sentia a cabeça doer um pouco. Ele
descobrira todo o passado da mãe, algo que o deixava triste e ao mesmo tempo
curioso. Quem poderia ter traído a deusa do gelo, ou melhor, a deusa da morte?
Até hoje não descobri quem foi o traidor, mas tenho certeza que esse dia irá
chegar. Mas não vá você achando que contei essa história inutilmente. Lembra-se
de quando eu lhe disse que ao chegar à terra do gelo, me refugiei em uma caverna,
e chorei uma única lágrima?
Sim...
Pois veja bem: essa lágrima caiu no chão como se fosse uma semente, e cresceu.
Centenas de anos depois, deu origem a uma planta extraordinária, e dentro dela,
um ser que só você será capaz de libertar. Um calor muito grande, o seu calor
divino, quando entrar em contato com a planta, acordará esse ser, que também é
parte de mim. Para que sua jornada seja bem sucedida, será indispensável que o
leve junto, pois ele provará ser de grande ajuda.
Certo. E onde fica essa caverna?
Preste bastante atenção nas direções. Espere o sol raiar, e saia de Crivengart, no
sentido sul. A o meio dia siga para o sudoeste, e continue nessa direção por sete
dias. Não se desvie nem um pouco, ou não encontrará a caverna. Entendeu bem?
Hummm... Espero que sim! E quanto ao castelo de Hilda, como saberei onde
fica?
Feche os olhos e relaxe.
Vanhardt obedeceu, e segundos depois uma imagem se formou - o castelo,
cercado por um lago, e um rio que vinha do sul. O nome desse rio saltou em sua
mente, Durande, e depois ele viu uma cadeia de montanhas ao leste que sabia
serem as Montanhas Traiçoeiras. Então era ali que ficava o castelo da feiticeira.
Ótimo, eu vi onde fica. Mas mãe, por que você não me mandou também essas
visões do lugar onde fica a caverna? Seria bem mais fácil para encontrar...
E seria bem mais fácil para alguém como Hilda vasculhar a sua mente e
descobrir onde fica a caverna, lugar que eu gostaria de manter intocado. S e você
ficar apenas com as direções, logo esquecerá, e assim Hilda não poderá descobrir a
localização - deu uma boa olhada em Vanhardt, e depois continuou. - A gora, boa
viagem meu filho!, e não se preocupe. Mesmo daqui, estarei acompanhando-o.
Eu sei, mãe. Obrigado!
N em precisa me agradecer. Eu que lhe devo desculpas, por não ter sido capaz
de impedir que seu filho fosse raptado. A pesar de deuses, não somos tão
onipotentes e onipresentes...
Tudo bem, mãe, tenho certeza que se você pudesse não teria deixado aquilo
acontecer. Vou voltar para casa agora, pois tenho alguns preparativos para a minha
jornada. Adeus!
Adeus não, até logo.
Então até logo!
J á era noite quando Vanhardt saiu da casa de gelo, depois de se despedir dos
Pepenjis. Ele estava bem mais animado. A lém de saber aonde ir para encontrar
Erick, encontraria um ser indicado por sua mãe para auxiliá-lo nessa jornada.
Chegou em casa e viu S elena no quarto, deitada na cama. Tinha os olhos inchados,
o rosto mais abatido do que quando o pai falecera. Vanhardt tocou levemente os
seus cabelos e contou apenas que sua mãe o ajudaria a pegar o filho de volta.
N ão irei falhar meu amor, pode acreditar. A gora prometa-me que não irá chorar
quando eu partir.
Eu prometo... - sussurrou a mulher com um rosto triste. - E você também
prometa o mesmo.
Eu prometo - disse, convictamente.
D epois de avisar ao pai de sua decisão de ir buscar o filho, voltou para o quarto
e notou que S elena dormia profundamente. Havia muitas perguntas que gostaria
de fazer à esposa; sobre a mãe dela, o pai, por que foram aparecer em Crivengart.
Pelo que parecia, eles fugiram de um lugar chamado Avendorh... Preferiu não
promover o interrogatório - a esposa já sofrera demasiado, e mais perguntas só
trariam mais dor. A lém disso, as respostas que ela pudesse dar não adiantariam de
muita coisa. Então resolveu fazer o mesmo que S elena, dormir, pois seu corpo e
mente também pediam descanso. O dia seguinte seria de muitas outras surpresas.
Capítulo VIII - A Caverna e o Ser Divino
O jovem filho da deusa do gelo acordou com os primeiros raios da manhã, e viu
Lila sentada em uma pedra à sua direita. Ela mantinha os olhinhos fechados, e
parecia estar dormindo.
A há, sua danada! - Vanhardt se levantou de supetão e soltou um berro, fazendo
a fada tremer dos pés à cabeça com o susto. - Você não tinha dito um dia desses
que não precisava dormir, porque S alazar fez não sei que pacto para dar energia às
fadas? Por que então estava aí tirando um ronco? - perguntou o rapaz com um
olhar desconfiado.
Lila se recompôs do susto, e ficou de pé com uma cara amarrada:
Para sua informação, filho da deusa do gelo, eu estava concentrada a fim de
escutar todos os barulhos à nossa volta. Q uando estamos assim, numa floresta,
com muitos lugares para feras selvagens se esconderem, nossos olhos costumam
nos trair, e o melhor é confiar nos ouvidos! E fique o senhor sabendo que se me der
um susto desses de novo, eu transformo sua cabeça num abacaxi!
A h... Transforma nada... Estressada, foi só um sustinho! Você tem que aprender
a relaxar um pouco e não ficar nervosa com qualquer coisa!
Lila encarava o rapaz ainda zangada com o susto que tomara. Reparou,
entretanto, que ele demonstrava um humor não revelado anteriormente. A lém
disso, havia um brilho penetrante no seu olhar, de extrema confiança, e a fada ficou
satisfeita com isso. A noite bem dormida fora revigorante para o jovem guerreiro.
Lila, estive pensando: já sei como invadiremos o castelo! Veja bem, você poderia
me tornar invisível, de modo que eu subiria furtivamente no muro, e depois
entraria no castelo. Lá dentro encontraria o quarto de Erick, e, quando eles dessem
conta do ocorrido, eu estaria aqui fora, com meu filho nos braços! Q ue tal, ótimo
plano, hã?
Não.
Como assim?
S eu plano nunca daria certo - sentenciou friamente a fada coçando as orelhas
pontudas.
Mas...
D eixa eu te explicar... - interrompeu a fada. - Eu já vi que você sabe bolar planos.
I sso é bom, mas apesar de ser parte da mesma deusa que você é filho, eu tenho
minhas limitações. A lém disso, conjurar magias, executar milagres, é muito mais
do que realizar o que nos vem à cabeça. Existe uma rede intricada que temos de nos
submeter, ou então quando formos realizar qualquer coisa, seremos obrigados a
dispor de muita energia. Resumindo: deuses, semi-deuses, ou criaturas que dispõe
de energia divina, todos têm a capacidade de operar o universo conforme a
vontade. Podemos fazer tudo. A contece que se não obedecemos uma lógica pré-
estabelecida, não teremos energia suficiente. Eu, por exemplo, tenho minha gama
limitada de magias, e dentre elas não consta ficar invisível. A lém disso, mesmo que
pudesse executar essa ação, com certeza Hilda perceberia assim que você entrasse
no castelo. Pelo que você me contou, ela é uma feiticeira poderosa, e não seria nada
difícil constatar a presença de um intruso em sua própria fortaleza por outros tipos
de percepção, diferentes da visão. E com todas as tropas daquele lugar no seu
encalço, duvido que saísse com vida.
A h... Era um plano tão bom... Mas o que faremos? S entamos e esperamos o
tempo passar?
Paciência, paciência! S ua mãe logo mandará reforços, e aí sim teremos
condições de invadir a fortaleza. Enquanto isso, porque não descansa um pouco?
Aproveite para meditar um pouco, vá treinando uma magia qualquer.
N ão vou treinar nada, estou muito ansioso! Eu queria mesmo era... - a frase foi
interrompida por um grande estrondo semelhante a um grunhido, que se espalhou
pela floresta.
Van, fique atento, parece que há algum animal aqui perto! - exclamou Lila
enquanto voava preocupada para o lado do jovem.
Não é animal nenhum, é só o meu estômago!
A fada parou de voar, arregalou as sobrancelhas, e caiu na grama de tanto
gargalhar.
Há!Há!Há!Há! E eu... Há!Há!Há! E eu ainda pensei que fosse um animal!
Há!Há!Há! Minha deusa, que barulho foi esse! Há!Há!Há!
J á chega, já chega! Vamos levantando do chão! - Vanhardt disse, cutucando com
o bico da bota a fada que rolava e socava o chão de tanto rir.
Há!Há!Há! "E o meu estômago", "o meu estômago", Há!Há!Há! - caçoou a
fadinha, enquanto o rapaz ficava com o rosto cada vez mais ruborizado.
Ô Lila, alguém pode te escutar! Vamos logo, estou com fome também. Cansei
dessa sua bolha substituir minha alimentação, preciso de comida de verdade!
Lila enxugou as lágrimas que lhe banhavam a face com o dorso das mãos,
respirou profundamente e alçou vôo.
A i, ai... Pois bem, "animal faminto", vá comer sua refeição matinal, estarei aqui
vigiando.
Vanhardt sacou sua adaga e se embrenhou no meio da floresta. Procurou
durante vários minutos por frutas, ou algum animal que pudesse assar. Encontrou
uma lebre, que o driblou duas vezes e se escondeu numa toca debaixo da terra.
Voltou ao lugar onde Lila esperava meia hora depois, com as mãos abanando.
N ão encontrei nada. Vou pescar, que é o melhor que eu sabia fazer lá na minha
terra.
Encontrou um galho comprido e fino, mas duro, e limpou-o com a adaga,
afinando uma das extremidades. S erviria de lança para a pescaria. Restava saber se
D urande tinha peixes. Caminhou até a margem do rio, seguido por Lila, e
aproveitou para dar uma conferida no castelo: continuava apavorante. A proximou-
se da margem e notou vultos pequenos nadando no fundo do rio. J ogou a lança
mais de vinte vezes e não conseguiu pegar um peixe sequer.
Ah! Desisto, hoje vou passar fome! - nervoso, quebrou a lança no joelho.
Você é muito apressado, quer as coisas sempre na hora, sabia? Muitas vezes
isso é uma virtude, mas também pode ser uma tremenda desvantagem! A posto
que as pessoas vivem dizendo para você ter paciência, não é?
O tempo todo! E você é uma delas, a propósito.
Humpf, sei disso. O que estou tentando lhe dizer é que você deve aprender a ter
mais disciplina! N essa situação, por exemplo, está tendo dificuldades para pescar.
N atural, pois o rio é diferente de onde você costuma pescar, a lança não é muito
boa, os peixes são diferentes daqueles com que você tinha contato. O que pode
fazer então? S e eu fosse filho de uma deusa, tentaria usar meus poderes para me
auxiliarem.
Mas eu não sei usar meus poderes direito, ô fadinha!
Está na hora de aprender, então.
Pois se é assim, me dê licença, você está me desconcentrando. Vá lá pra dentro
da floresta e fique vigiando!
Tudo bem, mal educado! - a fadinha voou emburrada pra a floresta.
Humpf, mal educado nada. "D isciplina", "disciplina"! Ela não vê que tenho
dificuldade pra fazer magias, e me cobra o tempo todo. N inguém agüenta esse tipo
de pressão! - pensou alto.
S entando-se na margem com os pés dentro do rio, Vanhardt observou os peixes,
que por sua vez ignoravam o que se passava fora d'água. Por que eles não se
deixavam ser pescados? Estava com fome, e precisava ir salvar o filho. Mas como
poderia invadir uma fortaleza bem guardada, se nem conseguia pescar? Ele
continuou observando os peixes, concentrado, e passou a escutar um zumbido
grave em sua cabeça. D e uma hora pra outra, o mundo à sua volta começou a girar,
e a sua visão se tornou embaçada. A pesar disso ele não se sentia mal - uma energia
misteriosa e agradável brotava de seu peito. A inda podia ver os peixes, quando de
repente tudo ficou negro, e depois azul. Ele então viu um peixe dourado enorme
em sua frente e tomou um susto. Era gigantesco, deveria ter o seu tamanho! O lhou
para os lados e notou muitos outros peixes, que nadavam ao seu lado e embaixo
dele. Espere um pouco, ele estava dentro da água! Tornou os olhos para si mesmo e
no lugar das mãos viu nadadeiras... Tinha virado um peixe! Era estranho e
engraçado ao mesmo tempo.
Um pouco à sua frente havia pés demasiadamente grandes mergulhados no
lago - os seus pés humanos. Eles continuavam balançando, ou seja, o seu corpo
permanecia lá, e se mexendo. Teve uma idéia. Tomou distância e começou a nadar
freneticamente em direção aos pés. D epois virou para cima e saltou para fora do
lago, indo cair bem no colo do seu corpo humano. Um clarão o cegou por alguns
segundos, e foi aí que sua visão voltou ao normal.
Vanhardt tinha no colo um lindo peixe de escamas douradas, se debatendo.
Lila, olha aqui! Lila, eu consegui! - correu em direção à amiga, que estava
sentada na mesma pedra de antes.
Nem me importo. Depois do jeito que você me tratou...
A h, Lila, me desculpe, sinceramente! Eu realmente fui grosso com você, mas é
porque estou sob muita pressão e ansioso com a proximidade de reaver meu filho.
Por favor, peço desculpas novamente.
Só o desculpo porque se arrependeu!
Ótimo. Agora, vamos comer!
Vanhardt catou alguns gravetos na floresta e depositou-os juntos. D epois,
pegou metade da lança que fizera para pescar e enfiou-a pela boca do peixe, saindo
na traseira.
Falta fazer o fogo...
Tentou se concentrar pra acender os gravetos magicamente por vários minutos,
e nada. Q uando Vanhardt pensou em reclamar do fogo que não aparecia, os
gravetos estalaram, e uma chama laranja surgiu.
Hum... Foi você que acendeu, não foi, Lila?
A fadinha não segurou o sorriso e admitiu:
S im. Você estava demorando demais, e daqui a pouco os reforços enviados por
sua mãe chegarão.
Mal esperou o peixe terminar de assar, e Vanhardt devorou-o em pouquíssimo
tempo, sem nenhum cuidado para separar os espinhos. Com a boca cheia de restos
de carne semi-crua, segurou a fadinha com uma das mãos e perguntou:
O nde estão? Chegaram? - cuspia pedaços de peixe misturados à saliva no rosto
de Lila, enquanto esta tentava se defender da saraivada de comida com os braços.
Vamos sair da floresta pra recebê-los - disse a fada, limpando o rosto
impregnado com a nojenta refeição.
Minutos depois, com Vanhardt bem alimentado, saíram de lá e se dirigiram
para uma planície, de onde não se podia ver o castelo devido às árvores muito altas
e cerradas que o encobriam. Colinas cobertas com uma grama rasteira próximas
aos dois se revelavam extremamente convidativas a um piquenique.
É melhor encontrar nossa tropa aqui, fora de vista da fortaleza de Avendorh -
Lila colocou as mãozinhas na cintura.
Vanhardt olhava para os lados, mas não via nada por perto. Esperaram por
vários minutos, e subitamente a fadinha apontou para o céu.
Lá em cima!
O jovem guerreiro observou vários pontos pequenos e móveis entre as nuvens.
A pertou bem as pálpebras, e segundos depois conseguiu distinguir as figuras. N o
centro havia um pássaro enorme, branco, semelhante a um cisne, e alguém
montado em suas costas. Atrás dele voavam outros tipos de pássaros - esses
maiores que o cisne, e com um bico dourado, curvo, e garras da mesma cor.
A presentavam também penas vermelhas arrebitadas na cabeça, que seguiam uma
linha reta do ponto entre os olhos até a nuca, e contrastavam muito com o resto do
corpo, coberto por penas azuis. Eram vinte e duas aves ao todo, e elas pousaram a
poucos metros de Lila e Vanhardt, levantando uma nuvem de folhas secas.
D o pássaro branco, desceu uma criatura que Vanhardt achou curiosa. N ão sabia
se era um coelho ou um ser humano; na verdade parecia uma mistura dos dois.
Vestia um terno azul bem alinhado e uma gravata borboleta vermelha, e ainda
calçava botas de couro, amarelas. Ele se aproximou com o braço esticado para
cumprimentar Vanhardt, que notou dois dentes saltando de trás dos lábios
sorridentes do coelho.
Muito bem, muito bem, muito bem! - o coelho balançou freneticamente a mão
do rapaz. - E uma grande honra cumprimentar o destemido Vanhardt, filho da
majestosa deusa do gelo! Pode me chamar de O swaldo, seu humilde criado. Como
vai, tudo bem?
Er... Sim! - o rosto de Vanhardt alternava expressões de dúvida e surpresa.
Eu tenho certeza disso! - deu tapinhas de leve no ombro do jovem. - A h, e esta
seria Lila, a fada mais formosa de todo o continente!
Hihihi! - a fadinha sentiu o rosto corar. - S ou eu mesma! Pois então, O swaldo,
essa é a tropa que Léia havia me confirmado?
N ão, ainda faltam os gigantes que logo... Ei rapaz não faça isso! - o coelho gritou
assustado para Vanhardt, que passava ao lado de um dos pássaros azuis e tentava
acariciar a cabeça dele.
N um movimento rápido, O swaldo saltou e derrubou o rapaz no chão,
impedindo que fosse mordido pela criatura alada. Vanhardt sentiu o bico raspar
em seu braço, e percebeu que se a mordida tivesse pegado em cheio, teria um
braço a menos.
S eu louco, não se aproxime tanto de um Grilliardus! - O swaldo falou com o
rosto sério, depois de se distanciar alguns metros dos pássaros. - D esculpe os
modos milorde, mas estas são criaturas muito ferozes, que atacam qualquer um
que se aproxime demais. N ão são poucas as pessoas que tiveram membros
perdidos por elas.
N ossa! I sso é bom! Elas serão uma ótima ajuda na invasão do castelo. -
comentou Vanhardt entusiasmado, enquanto olhava atento para o Grilliardurs que
o atacara. Este bicava o chão numa atitude aparentemente tranqüila - Minha mãe
sabe o que faz. Mas O swaldo, você disse que faltam alguns gigantes, não é mesmo?
E onde eles estão?
O coelho consultou uma ampulheta amarrada ao pulso, por onde escorria areia.
Vanhardt nunca vira aquele instrumento, que achou tão curioso quanto o dono.
Depois de alguns resmungos, Oswaldo continuou:
É verdade, é verdade, é verdade! Eles estão atrasados, o que será que
aconteceu...? A h, sim, veja! - ele apontou para o horizonte, e Vanhardt percebeu
uma nuvem de poeira que se erguia, como se uma manada de touros viesse em sua
direção. - He!He!He! Certamente são eles! Certamente!
S ó a poucas centenas de metros Vanhardt conseguiu ver os gigantes, pois a
poeira não mais os encobria. Eram criaturas realmente grandes, cerca de cinco
metros de altura, e musculatura absurdamente desenvolvida. Vestiam apenas uma
tanga, que cobria a pelve, mas deixava o resto do corpo de fora. A lguns ainda
seguravam porretes do tamanho de um homem nas mãos. O solo trepidava à
medida que seus pés tocavam-no, naquela correria desenfreada. Em segundos eles
pararam ao lado dos Grilliardus, que emitiram guinchos e abriram os bicos
demonstrando uma atitude hostil.
S em briga, sem briga, sem briga! Gigantes, fiquem atrás de mim - O swaldo
apontou para as costas, e os gigantes obedeceram imediatamente. O s Grilliardus
continuavam a olhá-los fixamente, contudo, sem hostilizá-los. - Muito bem,
Vanhardt, agora que o seu exército está reunido, devo retornar para o castelo de
cristal.
Espere aí, como assim? Vai me deixar sozinho com todas essas bestas?
— Não se preocupe! - Oswaldo usou um tom paternal. - Tanto os Grilliardus
quanto os gigantes obedecerão às suas ordens; a deusa do gelo já cuidou disso.
S ó não fique a menos de um metro dos pássaros, pois o resultado você já conhece!
O s gigantes, por outro lado, são mais tranqüilos, e não existe o mesmo perigo com
eles. Minha deusa, já ia me esquecendo... Que cabeça a minha!
O coelho deu um tapa na própria testa e passou a enfiar as mãos nos bolsos do
terno. Q uando chegou ao quinto, tirou de dentro um reluzente cordão prateado.
N ele havia pendurada uma pequena placa preta, fosca, com dois furos em cima e
dois embaixo. O swaldo fungou antes de colocar o cordão no pescoço do rapaz, e
disse:
Esse é um item mágico muito especial! I rá barrar qualquer tentativa de controle
mental de Hilda. S ua mãe me contou que depois da sua luta com lobos brancos há
cerca de oito anos atrás, ela recolheu a flauta quebrada. A inda restava boa
quantidade da energia de Baal naquele item, e ela decidiu guardá-lo, caso um dia
precisasse. E o dia chegou! D epois do rap... Q uero dizer, depois daquele "incidente"
com seu filho, ela transformou a flauta nesse objeto extraordinário, que
provavelmente lhe será muito útil. A lém disso, ninguém saberá que ele é de sua
mãe, pois a energia de Baal irá encobrir a da deusa do gelo.
Interessante! Mas uma pergunta...
D iga - O swaldo batia nervosamente os pezinhos no chão, parecendo estar com
pressa para ir embora.
Minha mãe não mandou nenhuma arma, tipo um machado, ou uma espada, sei
lá... Qualquer coisa assim?
Hum... - o ser metade coelho consultou um pergaminho que estava num bolso
interno. D epois de lê-lo com atenção, continuou: - Gigantes, Grilliardus... O item de
proteção... É, era só isso! Não mandou mais nada.
Aff... Deixa pra lá!
S e for só isso, devo agora voltar para o castelo de cristal. Tome cuidado,
Vanhardt! E Lila, você também! - falou mais alto para ela escutar.
A fadinha sobrevoava a cabeça de um gigante, o qual tentava espantá-la com as
mãos como se ela fosse um inseto. Q uando se afastou o suficiente, vendo-se fora de
perigo, Lila falou de volta:
Pode deixar, Oswaldo! E diga a Léia que eu cuidarei do rapaz!
He!He!He! Boa sorte para vocês dois! - O swaldo subiu nas costas do pássaro
branco e puxou as rédeas presas em seu bico. A cenou para a Vanhardt e a amiga, e
o pássaro começou a bater as asas, voando para o leste.
É... A gora somos nós e Hilda... - disse Vanhardt vendo O swaldo sumir entre as
nuvens. - Pronta Lila?
Prontíssima, comandante! - respondeu batendo uma perninha na outra,
aprumando o peito, e colocando as mãos na cintura.
— Então vamos salvar Erick!
Capítulo XIII - A Invasão
O plano que Vanhardt e Lila bolaram era simples: distração e invasão. Enquanto
as tropas enviadas por Léia estivessem causando um grande tumuto e baderna, os
dois se infiltrariam na fortaleza. Com as equipes defensoras distraídas lutando
contra gigantes e Grilliardus, e as atenções de Hilda voltadas para essas mesmas
criaturas, a dupla teria mais chances de permanecer oculta, e resgatar Erick. O s
gigantes ficariam encarregados de um ataque direto à frente do castelo, depois que
Vanhardt pulasse o muro e abrisse o portão principal. A o mesmo tempo os
Grilliardus dariam cobertura atacando as torres e os possíveis atiradores que
estivessem nos muros. A única dificuldade era que uma parte do rio D urande
envolvia o castelo, e ninguém sabia se os gigantes, mesmo sendo bastante altos,
afundariam totalmente na água e afogariam-se.
A ntes do ataque se iniciar, Lila fechou os olhos e apontou os bracinhos para
Vanhardt:
Crafo adimapla!
D essa vez não houve show de luzes, e Vanhardt apenas sentiu seu corpo
formigar.
O que você fez? Essa magia serve pra dar coceira?
Não! Simplesmente fiz você ficar mais forte, umas vinte vezes, eu acho...
Ótimo! Vamos experimentar!
S em perder tempo, Vanhardt aproximou-se de um pinheiro com quase vinte
metros de altura. Ele fechou os dois punhos, mirou bem o tronco, e aplicou um
soco no local. Para sua surpresa, o braço inteiro penetrou na árvore, abrindo um
grande buraco. O pinheiro que devia ter centena de anos começou a ranger e a
tombar, e acabou caindo sobre outro, quebrando muitos galhos no processo.
Muito bom, Lila! Por que não fez essa magia antes em mim?
Por que não estava na hora! Eu só não sei quanto tempo ela vai durar, portanto
fique atento.
N em tente fazer isso! - uma potente voz percorreu o jardim, atingindo todos ali
presentes, fazendo com que tanto Ghar quanto os gigantes parassem para ver
quem chegara. Léia permaneceu onde estava, e apenas deslocou as pupilas para o
canto dos olhos a fim de ver o intruso.
A criatura que entrara na sala era um minotauro. A cabeça, que juntamente
com os pés compunha a parte do corpo similar ao touro, apresentava chifres negros
que apontavam elegantemente para frente. O s olhos eram da mesma cor,
profundos, e as orelhas - grandes e caídas - apresentavam dois brincos em argola,
um deles com um pingente em forma de cruz. S eu braço direito empunhava um
machado de lâmina dupla, parecido com o de Ghar, mas menor. O esquerdo
segurava um escudo retangular, ligeiramente abaulado para frente, que ia do meio
do seu tronco até quase tocar o solo. Uma semi-esfera no centro garantia maior
resistência ao escudo. Vestia uma armadura completa de batalha, dourada, que
brilhava como o sol, com detalhes finamente esculpidos em prata. Uma longa capa
vermelha cobria suas costas, e se esticava dos ombros até ao chão, reservando-lhe
uma aparência ao mesmo tempo importante e misteriosa.
Q uem é Vossa D ivindade? Veio aqui assistir ao massacre? - perguntou Ghar
debochadamente, tentando se decidir se matava Léia ou partia para cima do
intruso.
O minotauro deu um passo para frente e olhou ameaçadoramente para Ghar e
seu exército. D epois inclinou o corpo de forma educada, numa reverência, e disse
com a mesma voz poderosa:
Meu nome é Taurok, o senhor dos minotauros. E não; não vim assistir a
massacre nenhum. Em verdade, quero oferecer minha ajuda e suporte à deusa do
gelo, de modo a impedir que qualquer injúria possa ocorrer a tão formosa dama.
A s palavras de Taurok surpreenderam Léia, que há pouco havia perdido as
esperanças de sair dali com vida. Ela conhecia esse deus apenas de nome, "Taurok",
mas nunca estivera com ele. S e o que disse era verdade - e a maneira com que
falava não deixava dúvidas - ela apresentava renovadas chances de vencer a
batalha.
Taurok? Senhor dos minotauros? Que patético! - Ghar também não contava com
a inesperada entrada de Taurok, e recorria à atitude zombeteira com o intuito de
ganhar tempo e melhor se situar. - Vejo que está do lado da deusa do gelo... O que
o leva a uma atitude tão leviana, meu caro? Loucura? Burrice? N ão importa, pois
terá o mesmo fim que sua dama. Léia não desfruta de um mísero quantun de
energia, e Vossa D ivindade pode até ser forte, mas não passa de um único
oponente. E então? O que fará contra um deus e um exército de gigantes? Correr de
pavor?
Por que afirma com tanta ciência que estou sozinho? - imediatamente após as
palavras de Taurok, uma dúzia de minotauros penetrou nos jardins, e se
posicionou atrás de seu mestre. Eram todos quase iguais ao seu deus, exceto pelo
fato das armaduras serem corseletes de couro batido. - D esista de matar a deusa do
gelo, e garanto que pouparei a sua vida e de seus irmãos gigantes. O u então, sofra a
fúria da minha lâmina!
A proveitando a distração geral, Léia correu para perto de Taurok e os
minotauros. Ghar assistia vacilante àquela nova conjuntura, e sua mente custava a
elaborar algum plano eficiente.
N ão pense que frases de efeito me inspirarão medo. Vim aqui para acabar com
Léia, e é assim que procederei. S e Vossa D ivindade quer ficar no caminho, que seja.
Irá unir-se a ela na escuridão da inexistência. Gigantes... Atacar!
Ghar disparou na direção de Taurok, seguido por seus gigantes. O deus dos
minotauros fez sinal a seus comandados, e também avançou. O som dos dois
extraordinários exércitos se chocando foi ouvido como um trovão sobre a superfície
de Kether, por centenas de quilômetros. S e um humano estivesse no castelo de
cristal, teria os tímpanos estourados.
Léia continuava fraca, e não se arriscou a participar da batalha. Resignou- se a
assistir, e o resultado não parecia muito bom. A pesar de contarem com maior
número, os minotauros não eram tão fortes quanto os gigantes, e nem tão ágeis.
N o primeiro impacto, vários deles sofreram sérios danos, e a deusa do gelo quase
podia prever um péssimo fim.
N esse embate, Taurok e Ghar empataram - o deus dos gigantes acertou um
golpe em cheio contra o escudo de Taurok, que por sua vez cortou de raspão o
ombro de Ghar com sua arma. A batalha seguia num ritmo alucinado, e aos poucos
Léia entendeu porque Taurok estava tão confiante. D e fato, os minotauros não
mostravam tanto poder ofensivo quanto os gigantes, mas apresentavam certa
capacidade muito especial: sabiam trabalhar em equipe. Enquanto um minotauro
defendia o ataque de um gigante, outro passava uma rasteira nesse e um terceiro
cravava o machado sobre a sua cabeça. Os gigantes foram caindo um a um.
Ghar e Taurok promoviam um duelo emocionante e perigoso. O primeiro
golpeava cerca de dez vezes a cada segundo, mas Taurok conseguia se defender.
A proveitava para conjurar feixes de luz, que saíam das mãos, e ainda tentar acertar
o deus dos gigantes com seu machado. Passaram-se menos de dez minutos e todos
os gigantes tombaram, momento no qual os minotauros aproveitaram para montar
um círculo largo em volta de Taurok e Ghar. Em meio aos ataques e defesas, Ghar
rangeu entre os dentes:
Por que não os manda atacar? Seria mais fácil para me derrotar.
Talvez sim, mas não seria honrado. A cabarei com Vossa D ivindade usando
minhas próprias mãos.
Tolo, se crê que essas luzinhas infantis promovem algum efeito, desista! Meus
olhos não são afetados por magia tão fraca.
Quem disse que eu queria afetar seus olhos?
D e repente, Taurok parou de se defender, baixando a guarda. Ghar percebeu o
movimento de seu rival, e viu a oportunidade de acabar com aquela luta. Ele
perdera os gigantes, mas mesmo assim venceria a luta. D aí seria questão de
minutos até derrotar os minotauros e, por fim, a deusa do gelo. Ghar ergueu seu
machado em direção ao teto, e desceu-o com toda a força sobre a cabeça de Taurok.
Seu golpe, entretanto, parou a menos de um centímetro da cabeça do oponente.
O que... O que aconteceu? - balbuciou Ghar. - S into meu corpo paralisado. Mas
não é uma magia... Isso é... Isso é uma linha!
A proximando-se de Ghar, Léia notou que uma linha extremamente fina
envolvia seu corpo dos pés à cabeça. O deus dos gigantes estava numa posição que
beirava o ridículo, com os braços esticados, segurando o machado sobre a cabeça
de Taurok, mas sem poder atingi-lo.
Mas como? Como fez isso? - grunhiu o deus dos gigantes.
Taurok saiu de debaixo do machado de Ghar, colocou as mãos para trás, e deu
dois passos tranqüilos, se posicionando ao lado deste.
A s luzinhas infantis que viu eram o reflexo da luz ambiente nas linhas que eu
produzi. Chamam-se "linhas de Gaia", e aprendi a técnica com a deusa homônima.
Enquanto defendia seus golpes, aproveitava para passá-las em torno do seu corpo,
e de tão imerso na luta Vossa D ivindade mal conseguiu reparar. Essas linhas são
inextensíveis e também não podem ser partidas. S into dizer, mas a luta terminou, e
Vossa Divindade perdeu.
Não pode ser... NÃÃÃAÃÃÂÃOOOOOO!
A chou-se tão poderoso, e ousou me trair - disse a deusa do gelo, quebrando o
silêncio que guardava desde o aparecimento de Taurok. - Toda ação tem a sua
reação, Ghar. Cada atitude tem o seu oposto. E agora está pagando pelo que fez!
Ficará preso nessa linha eternamente, redimindo dos seus pecados. Estou certa,
Taurok?
É claro, minha dama! - respondeu Taurok confirmando com a cabeça.
Nunca... Não aceitarei destino tão cruel! Prefiro a morte! AAAAAAAH!
A pós gritar como louco, Ghar tomou uma cor vermelha, e depois roxa. S eu
corpo tremia incontrolavelmente, e o rosto se deformava em expressões de terror.
S eguiu-se então uma estrondosa explosão, e uma nuvem de fumaça juntamente
com faíscas de luz surgiu onde estava anteriormente o corpo do deus dos gigantes.
O s presentes olharam admirados para aquele show de som e de luz, que terminou
com cinzas caindo ao chão, e o machado de Ghar tilintando intacto aos pés de Léia.
O que foi isso? - perguntou Taurok olhando para os lados. - Onde está Ghar?
N ão se preocupe. Ghar, o deus dos gigantes, deixou de existir - sentenciou Léia,
abaixando-se para pegar o machado. - E pensando que antes de Vossa D ivindade
chegar seria eu a ter semelhante fim. D evo-lhe a minha vida, ó deus dos
minotauros, e serei eternamente grata a seu gesto de caridade! Tome, isto lhe
pertence por direito.
Contemplativo, Taurok pegou o machado das mãos de Léia. D emorou-se alguns
segundos revistando toda a sua estrutura, e ficou satisfeito com o que viu.
Realmente, é um item fabuloso. Posso dizer que sua faculdade é aumentar a
força do usuário, não é mesmo?
Sim, é verdade, Taurok.
Léia caminhou até o corpo de um dos gigantes e rolou-o no chão, deixando o
abdômen apontando para o teto. Ergueu o cetro bem alto, e desceu-o com força,
atingindo em cheio o estômago da criatura. D epois o rasgou cirurgicamente em um
movimento horizontal. A baixou-se e tirou de dentro do estômago uma criaturinha
molhada com suco gástrico, e com a ponta vermelha do nariz reluzente.
A h, que bom que está viva - a deusa do gelo sorriu para a criatura, que devolveu
o gesto timidamente. - Muito bem, Taurok, venha comigo até o salão do trono. É
um lugar mais apropriado para receber tão nobre companhia.
É claro, minha dama. Runo, leve cinco irmãos e proteja a periferia do castelo.
Um dos minotauros, que usava uma armadura um pouco mais elegante que a
dos outros, respondeu afirmativamente. Ele chamou outros cinco minotauros e a
pequena tropa deixou os jardins.
Lamento muitíssimo pelos que faleceram em batalha tão terrível - disse Léia
olhando para os três corpos caídos. - N ão se preocupe, garanto que lhes
proporcionarei o enterro adequado.
É uma honra ouvir isso, deusa do gelo, mas, se me permite, gostaria que eles
fossem enterrados no meu castelo. Urok, encarregue-se disso.
Léia foi seguida por Taurok e mais dois minotauros, deixando o salão logo após
Urok ter levado os cadáveres dali. O jardim que ficava para trás era apenas uma
sombra triste do que fora no passado. N ão havia mais luz, cor, nem beleza. Era
uma arena destruída, manchada de sangue e dor. Palco de uma luta sem sentido e
propósito, reflexo de uma mente pervertida.
Eles percorreram dois corredores, e subiram um lance de escadas, passando à
frente de várias alas destruídas. Pinguins uniformizados recolhiam papiros
espalhados, e em outra ala Gnomos com braços quebrados recebiam tratamento de
Centauros médicos. O s deuses, enfim, chegaram em frente à porta do salão do
trono.
— I rmãos, guardem essa porta com suas vidas! N ão deixem uma mosca sequer
entrar aqui. Ouviram bem? - Taurok falava tranqüilamente, mas com firmeza.
Sim, irmão, ouvimos. Pode contar conosco. - respondeu um dos minotauros.
Léia entrou na frente e foi até o final do salão, sentando-se no trono. Taurok
permaneceu parado até a deusa se sentar, e depois se curvou longamente,
segurando à frente do corpo a barra da capa que usava. O deus dos minotauros,
apesar de ser grande e possuir uma aparência não muito bela para os padrões
humanos, mantinha um porte altivo e sempre com gestos elegantes e educados.
S eu tom de voz era firme e poderoso, muito diferente daquele urro gutural do deus
dos gigantes. Tamanha educação, aliada a uma inteligência sagaz e demonstrações
de solidariedade, tornaram Taurok bem-visto aos olhos da deusa do gelo. Ela só
não conhecia as reais intenções desse deus, que poderia certamente estar
manipulando a situação. D essa vez, no entanto, Léia não se deixaria enganar tão
facilmente. Manter-se-ia cautelosa até que o deus demonstrasse de maneira
incontestável seu valor.
Eu notei - iniciou Léia, depois de se acomodar confortavelmente no trono de
gelo - que Vossa D ivindade trata suas criaturas como irmãos. É um gesto de
humildade que admiro demasiadamente. Percebi também que eles lutam como
uma equipe, e foi esse fator decisivo na sua vitória de hoje.
D e todo o coração, agradeço as palavras de elogio. Eu os trato como irmãos
porque os considero assim. S omos uma família. Todos se respeitam mutuamente, e
cada um sabe o seu lugar. Existe, é claro, uma hierarquia, onde os mais velhos se
situam numa posição superior aos mais novos. Mas todos entendem e adotam as
regras conscientemente.
Realmente, é muito interessante - continuou a deusa do gelo, lançando um
olhar sombrio para o deus dos minotauros. - S ó não sei ainda o verdadeiro motivo
de Vossa D ivindade ter ajudado uma deusa que estava prestes a morrer. N ão
mantínhamos laço algum; eu só o conhecia de nome. E gestos de caridade como
esse entre deuses são tão raros quanto chuva em um deserto. D esculpe a minha
grosseria, Taurok, mas me diga sinceramente: por que não me matou até agora?
Por que não roubou meus itens mágicos, e minhas reservas de energia? O que está
esperando?
A frase de Léia, fria como o gelo, perpetuou um silêncio incômodo pelo salão.
Taurok enrugou a testa, e tomou uma expressão séria. Ele pigarreou, e começou a
falar com voz gentil:
Eu não vim aqui para matá-la, deusa do gelo. É verdade que não nos
conhecíamos, mas eu a admiro desde que ouvi seu nome. S ua beleza e suas
atitudes eram como uma graciosa paisagem à qual eu contemplava; e sua fantástica
voz, que agora posso ouvir, é como música para meus ouvidos. N ão conseguirei
obrigá-la a acreditar em minhas palavras. Palavras são apenas palavras. D e
qualquer modo, digo que vim aqui porque sabia que corria perigo, e que
necessitava de minha ajuda. E eu a prestei. Fiz isso em parte pelo sentimento que
anda tanto esquecido, mas que acredito ser um dos mais importantes: a amizade.
S ó não digo a outra parte do motivo da minha visita, esse motivo secreto que
guardo no mais fundo de meu ser, e que no momento minha timidez não permite
revelar. Um dia, porém, quando for mais corajoso, garanto que o farei.
A quele discurso, apesar de curto, conseguiu emocionar Léia de modo tão
evidente que a deusa precisou fingir um acesso de tosse para disfarçar. Estaria
Taurok realmente apaixonado pela deusa ou era aquilo apenas um teatro bem
executado?
S ão frases bonitas, Taurok, mas como Vossa D ivindade mesmo disse, palavras
são apenas palavras. E o tempo é que provará a sinceridade delas.
N aquele exato momento, a conversa foi interrompida por gritos que vieram do
corredor. Léia reconheceu a voz de seu criado, Oswaldo.
É meu assistente que está lá fora. Por favor, deixe-o entrar.
Perdoe-me, deusa do gelo, meus irmãos não sabiam disso. - Taurok se mostrou
surpreso e visivelmente constrangido. Foi correndo para a porta, e trouxe O swaldo
para dentro depois de falar com os minotauros. - Peço perdão novamente!
N ão precisa se desculpar. Eles não conheciam O swaldo, e fizeram bem em não
deixá-lo entrar. Podia ser alguém indesejado - ela então desviou o olhar de Taurok
para o assistente. - D iga-me, O swaldo, como está o meu rapaz? Estou preocupada
com ele, não sei o que aconteceu na fortaleza de Hilda - a deusa do gelo disse "meu
rapaz" em vez de "meu filho", pois não queria revelar esse grau de parentesco a
Taurok.
O coelho mirava Taurok com os ombros encolhidos, e as mãos junto ao peito.
Ainda receoso pela presença daquele deus, ele falou em seu tom épico habitual:
Parece que o que aconteceu lá não foi muito diferente daqui, ó magnífica deusa
do gelo. Completa destruição, completa, completa. O s valorosos gigantes de vossa
excelência enlouqueceram e se rebelaram contra os Grilliardus. Cercados pelas
tropas de Hilda e pelos gigantes, nossas feras aladas pereceram. Lamento informar
a derrota de nossos exércitos - as orelhas de Oswaldo murcharam.
Isso eu já esperava; quero saber notícias de Vanhardt! Como ele está?
Léia se esforçava em não demonstrar o quanto estava ansiosa.
A h, sim! D esculpe-me minha deusa, mas não tenho conhecimento do paradeiro
de seu filho, o destemido Vanhardt.
D epois que O swaldo pronunciou a palavra "filho", Léia notou um brilho nos
olhos de Taurok. Oswaldo, por que falou essa palavra? - pensou a deusa, chateada.
N ão podia culpar o coelho, no entanto. S empre fora um fiel assistente, e só falara
aquilo por descuido.
Muito obrigada pelas informações, O swaldo, pode se retirar. A proveite para
organizar o castelo, principalmente os jardins. Q uero aqueles cadáveres imundos
fora daqui o quanto antes.
S im, vossa magnificência - O swando fez uma reverência e saiu, não sem antes
dar uma última olhada receosa no deus dos minotauros.
Perdoe-me novamente, deusa do gelo, contudo creio que posso ajudá-la
Taurok disse, aproximando-se alguns passos. O uso supor que, no momento, a
dama não dispõe de muitas reservas de energia divina, nem criaturas, correto?
Sim, está certo.
A credito, então, estar de posse de um plano ideal, com o qual nós dois
lucraremos.
Então me conte - Léia ficou curiosa para ouvir a idéia de Taurok.
A inda que existam criaturas a guardá-la, a fortaleza de Ghar está sem o seu
líder. O meu plano é o seguinte: iremos nós dois, com alguns minotauros meus, e
acabaremos com as defesas do local. D epois partilharemos os tesouros e a energia
divina que porventura estejam lá. D evemos, contudo, partir logo, pois, quando a
notícia do falecimento de Ghar alcançar os ouvidos de outros deuses, estes cairão
como gafanhotos sobre a fortaleza dele.
A idéia é boa, Taurok, mas por que não vai sozinho? O s tesouros seriam apenas
seus. Não precisa de uma deusa moribunda para invadir esse castelo.
Certamente eu o conseguiria sozinho, mas precisaria mobilizar mais tropas
para fazê-lo. E, com isso, o risco de minha própria fortaleza sofrer um ataque
aumenta. S e formos juntos, praticamente não precisarei mobilizar outras tropas, e
meu castelo continuará protegido.
Caso eu vá, deixarei meu próprio castelo sem proteção - Léia insistia em pensar
negativamente.
É duro dizer minha dama, mas mesmo que Vossa D ivindade fique, creio que
não poderá fazer frente a um novo ataque.
Taurok tinha razão. Ela estava fraquíssima, e não contava com exércitos para
defender o castelo. S e ficasse e sofresse outra invasão, não teria condições de
debelá-la. A solução era partir. Léia foi à sala de energia, que ficava ao lado do
salão do trono. Retirou dos imensos cristais o que restava de quantuns divinos, se
restabelecendo. Ela torcia para que os outros deuses pensassem que havia sido
derrotada, e que Ghar já se apossara de seus tesouros. Só assim eles não invadiriam
o castelo de cristal. D epois de se aprontar demoradamente, ela se uniu a Taurok, e
partiu para o vulcão, ex-lar do deus dos gigantes.
A batalha dentro do vulcão contra os gigantes não foi difícil. Taurok e seus
minotauros compunham uma ótima equipe, e, unidos à Léia, que também era
extremamente habilidosa (o deus dos minotauros por vezes parava de lutar para
admirar os movimentos da deusa do gelo), venceram sem nenhuma baixa os
gigantes que restavam. Decidiram, a partir daí, repartir os tesouros.
Havia uma infinidade de jóias, além de variados itens mágicos, e uma boa
quantidade de energia divina armazenada na lava do vulcão. Enquanto Taurok
descobria o valor total de quantuns que Ghar possuía, Léia se deteve em um item
esquecido sobre uma mesa larga, coberta com um forro dourado. Era um cubo,
apresentando arestas de meio metro de comprimento. Não havia figuras ou mesmo
cor nos lados - na verdade, ao olhar o cubo Léia acreditava estar vendo o infinito.
Ela sentia-se dragada pelo objeto, e uma escuridão envolvia-a completamente. D e
repente, surgiu uma pequena luz que vinha de longe, no recondido mais profundo
do cubo. S entia seus pés flutuando em direção à luz, que aumentava quanto mais
perto ela ficava. A os poucos a luz mudou de forma, tornando-se igual a uma chama
ardente, vermelha, que se dividiu em duas. Léia se lembrava dessas chamas. O que
eram mesmo? S egundos depois, ela viu a imagem que a deixaria perturbada por
dias. Um terror indescritível apossou-se de seu coração como uma sombra a
drenar-lhe as energias. N ão podia ser, ela não estava vendo mesmo aquilo. A deusa
do gelo fechou os olhos e se concentrou em sair daquele cubo, mas a imagem se
multiplicava diante de seus olhos. Mas como? Não fazia nenhum sentido... Só se...
Com o rosto suado, e as mãos trêmulas, Léia se deu conta de que estava parada
e de pé, em frente ao objeto. Taurok mantinha uma mão em seu ombro.
Léia? Está tudo bem, minha dama?
Não, Taurok, nada está bem... Eu vi... eu vi...
— Viu o quê?
Léia sentia que, caso respondesse, todos os seus temores virariam realidade.
Mesmo assim, com os olhos mirando o infinito, ela pronunciou as palavras que
tornaram seu pesadelo muito mais verdadeiro.
Capítulo XX - O Suplício
O ar que cheirava a ovo podre e carne queimada penetrava sem pedir licença
nas narinas de Vanhardt. S eria essa carne a sua própria? Talvez nem quisesse saber
a resposta. Q uanto tempo havia se passado? Horas... dias... semanas? N ão fazia a
menor idéia. Um enxame infinito de abelhas zumbia dentro de sua cabeça,
impedindo-o de raciocinar corretamente. Por sorte não sentia dores. A panhara
tanto que seus membros estavam anestesiados, como se o chicote de Crular
destilasse um poderoso analgésico.
A briu os olhos devagar, para ver o estrago que a criatura fizera em seu corpo.
Tentativa essa inútil, pois só conseguiu enxergar pontos luminosos, vermelhos, que
bloqueavam a visão. Fechou e abriu os olhos repetidas vezes, e o melhor que
conseguiu foi fazer com que os pontos dançassem em círculos.
A mente do rapaz não se prendia a nada específico. I magens iam e vinham: de
sua mãe, seu pai, S elena, Hilda, Crular, um cavalo voador, gigantes. A s abelhas
continuavam a se multiplicar em seu cérebro. Haveria uma colméia lá dentro?
Calma Vanhardt, não há insetos em sua cabeça, isso é apenas sua imaginação! Respirou
profundamente, e mais uma vez abriu os olhos; dessa vez os pontos luminosos
desapareceram. A estranha criatura chamada Crular se encontrava sentada em
uma cadeira, com a cabeça deitada de lado sobre as mãos e as pálpebras cerradas.
Estaria dormindo? A os poucos, o ambiente foi ficando saturado com uma
misteriosa fumaça verde. Não há fumaça verde alguma, é novamente sua imaginação
pregando-lhe peças! A fumaça invadia a sala pelas frestas da porta, e sorrateiramente
foi tomando conta de boa parte do cômodo. Era um cheiro bem familiar: de maçã-
das-neves!
Timidamente, um pequeno ponto amarelo, brilhante, passou por debaixo da
porta. Ele ficou parado na altura da fechadura por alguns segundos, depois
ziguezagueou pelo cômodo, fazendo escalas em locais específicos, como o forno, a
estante com frascos de vidro, a mesa de tortura, e finalmente a parede onde
Vanhardt era prisioneiro. Q uando se aproximou o suficiente, o jovem, com
indescritível felicidade, abriu a boca em um largo sorriso ao ver quem havia
chegado.
Lila!
S im, sou eu! Credo, você está horrível! E fale baixo, não quero acordar ninguém
- a fadinha exibia uma expressão de desagrado, com as sobrancelhas arqueadas. Ela
se mostrava exatamente como Vanhardt a vira pela última vez, exceto pelo fato de
que segurava numa das mãos um saquinho marrom, de couro, amarrado por um
barbante.
Tire-me daqui, por favor! Eu... ai! - a dor voltava a castigá-lo à medida que a
felicidade e esperança fluíam para o seu peito. - Eu vou morrer, não é?
Claro que não, vira essa boca pra lá! - a fada colocou o saco no chão e voou até
as algemas que seguravam o pulso de Vanhardt. Ela coçou o nariz, depois ergueu
os bracinhos para frente. - Vheca venarsuli!
A s algemas se abriram, deixando o rapaz cair estatelado no chão. A dor voltara
completamente, e se estendia desde a unha do pé até a ponta de seus cabelos. Ele
olhou para o próprio peito, e ficou nauseado com o que viu. O corselete de couro
estava rasgado quase por inteiro, e dentro das aberturas, as feridas se banhavam
num sangue grosso, enegrecido, misturado com uma gordura amarelada.
I sso não é nada! - disse a fadinha, consolando-o. - Ei, não vai vomitar, hein?
Fique quietinho que logo não sentirá mais dor. Muito bem... Aruc vanidi!
Uma luz amarela brotou da palma das mãos de Lila, que por sua vez passou
sobre todos os ferimentos de Vanhardt. I mediatamente as lesões se fecharam e o
sangue desapareceu - a pele ficou em estado tão perfeito que nem parecia que ele
havia sofrido uma tortura. Só suas roupas rasgadas denunciavam alguma coisa.
Melhor? - a fadinha pegou o saquinho deixado no chão.
Com certeza... Muito obrigado! Pensei que minha mãe havia me abandonado
aqui...
E óbvio que não! Como ousou pensar uma coisa dessas? A inda não conhece a
sua mãe?
Eu sei, é que... Ah, deixa pra lá. E essa fumaça verde, foi obra sua?
S im, só que agora não é o melhor momento para bater papo. Vamos sair antes
que esse horroroso aí acorde!
Ela serve então pra fazer dormir?
O quê?
A fumaça, ora! - respondeu o rapaz impacientemente.
Claro, né!
E por que eu não dormi?
Simplesmente porque eu não desejei isso!
A fada voou até a porta, parando em frente à fechadura. Vanhardt caminhou
lentamente, temendo que movimentos bruscos fizessem com que a dor voltasse, o
que não aconteceu. Q uando passou ao lado de Crular, a tentação de retirar-lhe a
máscara possuiu-o. Ele parou, e mirou a criatura. Poderia matá-lo naquele exato
momento. Pegar o chicote, e infringir a mesma dor que sentira - ia ser uma atitude
justa. D entro do seu coração, todavia, algo dizia que não era o certo a fazer. A pesar
de nada o impedir de tomar essa atitude, ele pressentia que mesmo assim não
ficaria realizado. O profundo vazio que inundava sua alma, ódio talvez, não se
aplacaria se fosse alimentado com mais ódio. Ele precisava de um alimento
superior, melhor que o ódio - o oposto dele. Foi por isso que seguiu adiante.
D epois que a fada abriu a porta, utilizando mais uma vez a Vheca vernasuli para
destrancá-la, os dois atingiram um corredor inundado com a fumaça verde, da
mesma forma que o quarto. Q uatro ores deitados no chão, próximo à porta,
roncavam ruidosamente.
Essa minha fadinha realmente é muito esperta! Com esses vigias dormindo
ninguém poderá alertar Hilda.
Bem, é verdade... - Lila se segurou para não sorrir, contente com o elogio. - O
fato é que Hilda pode esconder outros truques para se informar do que acontece
em sua fortaleza. Não podemos nos dar ao luxo de perder tempo. Siga-me!
A fada voou em disparada cruzando os corredores, com Vanhardt em seu
encalço. Como não tinha botas, seus pés se machucavam no chão de pedra. A quilo,
incrivelmente, não o incomodava tanto. Chegou a acreditar que a partir daquele dia
não conseguiria mais sentir dor.
Eles viraram à direita, e seguiram em velocidade por mais duzentos metros.
D epois tornaram à esquerda e, no fundo do corredor, a dupla avistou uma janela
alta, de vidros duplos, que ia do teto até quase tocar o chão.
E ali! Vamos sair por aquela janela! - disse a fada.
Eles correram até o local. O mesmo corredor seguia pela direita, e desembocava
numa escada. Lila não seguiu por esse caminho, mais preocupada com a janela.
Vai ficar parado aí ou me ajudar a abri-la? - perguntou a fada.
Vou ajudar, só que estou pensando... Essa é uma fuga impossível. Primeiro,
estamos a uns quinhentos metros de altura. S egundo, pelo que vejo, lá embaixo
está repleto de ores, e teríamos que passar por todos eles. Fora o portão que
também temos de pular. Tudo bem, pra você é fácil, é só sair voando e pronto! Mas
e eu? Se não se recorda, eu não tenho asas!
Você não tem, mas esse bichinho aqui tem! - Lila chacoalhou o saco que
carregava para cima e para baixo.
Bichinho?
É... Veja só.
A fada puxou um dos barbantes, desamarrando o saco. Uma libélula, com
pouco mais de dez centímetros de tamanho, saiu voando. Ela foi até os pés de
Vanhardt, e subiu para sua cabeça.
O lha só, Lila... É uma libélula, eu vi. S ó não sei como essebichinho vai nos tirar
daqui - Vanhardt comentou num tom irônico.
Você e sua impaciência. Eu não terminei, senhor "sabe-quando-as- coisas-não-
vão-funcionar"! Continue observando.
D e dentro da sua roupa feita de pétalas, a fada tirou uma esfera vermelha,
opaca. Ela esmagou-a em sua mão, transformando-a em pó. Passaram-se alguns
segundos até que ela jogasse o pó sobre a libélula, que tentava escapar de todas as
maneiras. N esse momento, o inseto parou de bater as asas, e caiu no chão, onde
passou a tremer.
A bre logo essa janela! - apontou a fada para o vidro, enquanto puxava a libélula
pelo rabo.
I mediatamente o rapaz levantou a trava metálica, e empurrou um dos lados da
janela pra fora. Lila arremessou o inseto através da janela, e o que aconteceu foi
surpreendente. A libélula cresceu a olhos vistos, e de pouco mais de dez
centímetros, instantaneamente passou a ter quase dois metros de comprimento. O
movimento de seus dois pares de asas batendo freneticamente produzia um
barulho muito intenso, como se houvesse milhares de libélulas ali perto.
S enhor, o transporte está ao seu dispor. Realmente, não deve ser muito
confortável, mas, se se segurar com força creio que não vai cair. - Vanhardt notou
um sorriso furtivo no rosto da fada enquanto ela falava.
Está bem. Tomara que pelo menos ela agüente meu peso... O lha Lila, ela está
fugindo!
S e Vanhardt pensou que a libélula ficaria parada esperando gentilmente que ele
subisse nela, enganou-se completamente. O inseto partiu em vôos alucinados,
primeiramente margeando a parede do castelo, e depois disparando em direção ao
chão, assustando os ores ali presentes.
Minha deusa, por essa eu não esperava. Fique aqui Vanhardt, vou atrás do
bichinho. - Lila terminou de dizer e mergulhou atrás do inseto que já estava
próximo ao muro do lado de fora.
N o corredor, Vanhardt assistia impacientemente Lila perseguir o inseto
gigante. Ele não fazia a mínima idéia de como ela traria o "bichinho" de volta,
principalmente depois de notar que ele voava numa velocidade muito maior que
Lila, e chegou a driblá-la duas vezes sem grandes dificuldades. Embaixo, os ores se
encontravam em alvoroço, e se movimentavam. A lguns se armaram com bestas e
tentavam atingir a criatura gigante por meio de setas, enquanto outros atiravam
lanças. S e a fada demorasse muito para pegar a libélula sua fuga seria
comprometida.
O pior de tudo, porém, ainda não havia acontecido. A pós escutar um ruído de
passos, e se virar, Vanhardt viu no final do corredor ninguém menos do que Crular,
portando um chicote, e quatro ores atrás dele. O efeito da magia de Lila certamente
esgotara. O s dois olhavam fixamente um para o outro, desafiando-se. A ntes que o
rapaz agisse, a terrível criatura girou o chicote em movimentos circulares acima da
cabeça, e atiçou-o para frente. A corda de couro da arma, que apresentava menos
de um metro de comprimento, foi capaz de se esticar por todo o corredor e ainda
laçar a perna do rapaz. Crular deu um arranco no chicote, derrubando Vanhardt no
chão, e começou a puxar a corda, arrastando sua vítima no chão e trazendo-a para
perto de si. O rapaz constatou tardiamente que a arma se imbuía de propriedades
mágicas.
Lutando para se desvencilhar do objeto que enrolara no seu tornozelo,
Vanhardt não obteve êxito. S uas costas arranhavam o chão de pedra, e ele se
aproximava do inimigo. A gindo num impulso, o jovem agarrou o laço que o
envolvia, e se concentrou. Por favor minha mãe, ajude-me nesse momento. Que os
ventos gelados de Crivengart envolvam a minha alma. A corda, a partir de então, foi
gradualmente se tornando mais endurecida e gelada, estado que se estendeu até
tocar o cabo de madeira que Crular segurava firmemente. Vanhardt aproveitou
para acertar um soco na corda, que por estar congelada quebrou-se facilmente.
Crular foi arremessado para trás devido à tensão da corda rompida
abruptamente, e os ores dispararam rumo ao rapaz, que se levantou, e foi até a
janela. Ele pensou em seguir pelo corredor, que continuava pela direita, mas notou
que por ali surgia mais um grupo de quatro ores. S em opção melhor, tomou
impulso e saltou pela janela que ainda estava aberta. O vento batia sem piedadade
em seu rosto enquanto ele mergulhava num vôo suicida.
Capítulo XXIII - Arauto de uma Péssima Notícia
Léia mirava com profunda concentração o cubo colocado sobre uma mesa na
sala dos cristais de reserva. Por mais que ela se dedicasse, entretanto, só enxergava
o infinito através daquelas faces. O rosto mascarado do traidor não voltara a se
revelar, minando as esperanças da deusa de descobrir mais sobre ele. E os relevos
indicavam que seria uma "chave", segundo o deus dos minotauros. Mas chave para
quê? E por que Ghar estava de posse dessa chave? Q ual era a relação entre Ghar e o
traidor? Perguntas, perguntas, e nenhuma resposta satisfatória. Talvez o cubo nem
mesmo fosse uma chave, e Taurok tivesse se enganado. Resolveu então se ocupar
com outras meditações na sala do trono.
Um assunto que lhe assaltava os pensamentos era o próprio Taurok. Podia
confiar totalmente nesse deus que aparecera tão de repente? Ele demonstrara
grande valor ao defendê-la e impedir sua derrota para Ghar, e ao ajudá-la a
recuperar sua força com o ataque bem sucedido à fortaleza do mesmo deus. A lém
disso, ela não detectara nenhum traço suspeito no deus dos minotauros. Mesmo
assim, e provavelmente pelo fato de ter sido traída tantas vezes, Léia não se
permitia confiar totalmente em Taurok. Quem sabe o tempo lavasse suas mágoas?
O segundo assunto a refletir foi Vanhardt. A deusa cogitou ir até sua fonte, a
fim de descobrir o que se passava com seu filho, mas conteve o ímpeto. N aquele
ponto, não havia mais nada que ela pudesse fazer para ajudá-lo. A ssistir ao
desenrolar dos acontecimentos apenas poderia atormentá-la ainda mais. S oma-se a
isso o fato de possivelmente ele estar longe da capacidade visual da fonte.
Léia informara Lila que o local onde a fada teria mais chances de encontrar
Vanhardt era a masmorra, e por isso ela deveria entrar sorrateiramente no castelo e
seguir diretamente para lá. A deusa também deu para ela a "pedra de crescimento
rápido" que, se utilizada em forma de pó, era capaz de aumentar o tamanho de
uma criatura pequena em mais de cem vezes. Recomendou que ela a jogasse sobre
um animal que tivesse asas, pois seria uma ótima maneira de fugir do castelo. O
melhor a fazer era acreditar que Lila teria sucesso em sua perigosa missão.
Com relação às defesas do castelo de cristal, a situação não era das melhores.
Taurok deixara alguns minotauros em seu poder, que eram praticamente a única
frente que Léia tinha à disposição. Era óbvio que os pingüins da central de
informações, e os polvos enfermeiros, não serviriam para conter um ataque. Ela
investira toda a energia que conquistara na invasão da fortaleza de Ghar para
refazer sua guarda, deixando na incubação Grilliardus, lobos, ursos das neves, e
seres que há muito tempo não pisavam a superfície de Kether: os A njos da Morte.
Estavam incubados doze deles, que se encaixariam muito bem no papel de generais
dos seus exércitos.
D e repente, O swaldo entrou correndo no salão, e se ajoelhou perante a deusa
do gelo.
Ó magnífica Léia, seu fiel assistente traz terríveis notícias! Temo que elas
deixarão a dama do gelo mais preocupada do que já esteja!
Léia levantou-se prontamente, surpresa.
O que aconteceu, Oswaldo? Diga logo!
N ão, majestade, não é nada com Vanhardt, como provavelmente imagina. É
com outra pessoa de sua afeição. Contudo, insisto em afirmar que é algo terrível - o
assistente da deusa revelava um tom pesaroso, e olhar de mistério.
Então diga logo quem é e me poupe desse suplício! - Léia falava com voz
trêmula e aguda, ansiosa pela resposta de Oswaldo.
O coelho fez um curto silêncio, e tomou fôlego antes de dizer:
- Essa pessoa é Selena, a esposa de seu filho Vanhardt.
Capítulo XXIV - Sonho ou Realidade
A lguém que não conhecesse Vanhardt diria que ele fizera uma loucura.
Mergulhar de uma altura de centenas de metros rumo ao solo, não parecia ser uma
idéia das mais sensatas. Ele se equilibrava sobre aquele fio que traça o limite entre
a coragem e a burrice. A rriscou-se a uma proeza pela qual sem dúvidas seu pai o
recriminaria - se soubesse. Só que Thomas não estava ali.
O chão ia crescendo à medida que ele caía, e seus olhos procuravam como
loucos o alvo que, por cálculo ou destino, surgiu como um raio por baixo dele. Era o
momento. Esticando seu braço o máximo possível, sentiu a mão direita tocar uma
superfície dura, e lutou para segurá-la com força. E conseguiu! Com mais um puxão
ele subiu na cauda da libélula, que entortou para a direita e rumou em direção ao
portão de saída. Era uma sensação indescritível montar em um inseto gigante
voador. Sem dúvidas, melhor que montar um gigante.
Flechas zumbiam a alguns metros de sua cabeça antes que saísse dos limites da
fortaleza de Avendorh. O rapaz sentia-se livre, desfrutando da doce alegria de ter
realizado um feito sem precedentes. Fora realmente muito esperto. Q uando
percebeu que ficaria cercado por ores, ainda no corredor, de relance notou o inseto
seguindo em direção à parede do castelo. Calculou corretamente que cruzaria com
ele na metade da queda.
A fada, que assistira toda a cena com o coração nas mãos, logo alcançou
Vanhardt. N aquela altura ele já aprendera que pressionando com as pernas,
poderia fazer com que a libélula seguisse para onde desejava.
Eu não acredito no que você acabou de fazer - disse a fadinha severamente
pouco antes de se sentar no ombro do rapaz, e cruzar os braços.
N em eu, Lila... N em eu! S ó sei que deu certo, e agora estamos nos afastando
daquele lugar... - ele curvou a cabeça, com feições sombrias, recordando-se do que
acontecera lá.
É verdade. Já sabe para onde vamos?
Sei: atrás de Erick, que está no Templo Dourado.
Ok, e onde fica isso?
Bem, fica no... Hum... Você estava me testando, não é? Vamos lá, sabichona, não
sei onde fica, então nos mostre a direção.
S iga para o sudeste - com um sorriso de satisfação a fada apontou para o lugar. -
N ão vamos direto para o Templo D ourado, pois não teríamos condições de entrar
lá. S ua mãe me disse para te levar até as Florestas S agradas do norte, para que
pegássemos um item primeiro.
Qual item?
Ela não me informou especificamente; apenas disse que de posse dele você teria
condições de rasgar o S elo Proibido, que tranca os portões do templo. É impossível
entrar no templo sem antes destruir o selo.
N ão acredito, a viagem vai demorar ainda mais. Tem certeza que precisamos
desse item? Não dá pra usar uma faca, ou ainda alguma magia?
Claro que não dá - respondeu a fada enfaticamente. - Você sabia que há
milhares de anos pessoas vêm tentado penetrar no templo, e nunca conseguiram?
Esse selo é o que permite que apenas indivíduos selecionados possam entrar. Foi
colocado ali por dois deuses; Justus, o deus da justiça, e Bel, a deusa da vida.
E o que tem lá dentro? - perguntou o jovem, com curiosidade crescente. - E por
que Hilda levou meu filho pra lá?
N em eu nem sua mãe sabemos. I remos descobrir depois que tomarmos posse
do item e rasgarmos o selo.
"I tem", "item"... S ó falta ser tão inútil quanto o último que ela me deu. Ele
desapareceu de uma hora pra outra!
Como assim "inútil"? N ão está falando da flauta de Baal reformulada? Ela
certamente impediu que Hilda lesse seus pensamentos! E não desapareceu; se
reparar bem vai ver que continua pendurado no seu peito.
Vanhardt abaixou a cabeça, e, com os olhos cintilando de surpresa, notou que a
ex-"flauta de Baal", transformada em objeto de proteção mental, estava em seu
pescoço.
Mas o que é isso? Ele tornou a aparecer! Não estou entendendo nada...
D eixa eu te explicar. E o seguinte: todo item mágico tem a propriedade de se
manter oculto dos olhos de qualquer outro ser. Até os deuses mantêm itens ocultos
uns dos outros, e isso já impediu inúmeras vezes que eles brigassem, por
imaginarem que o inimigo mantinha algum objeto escondido. Essa propriedade é
inata a tais objetos. O seu item de proteção ficou escondido de Hilda naquele
momento, porque era o que no fundo você desejava. E se manteve nesse estado até
agora, quando não há nenhum perigo imediato. Entendeu, meu querido?
Mais ou menos... Onde ele fica escondido?
D entro de você, ora. Em algum lugar entre seu corpo físico e o astral - a fada
falou como se fosse óbvio. - Onde mais seria?
Ah... Sei lá! Mas "dentro de mim" é esquisito.
A dupla seguiu voando por centenas de quilômetros. Lila informou a seu amigo
que a viagem provavelmente duraria um dia inteiro, e este resolveu dormir. Eles
cruzariam o D urande, passariam ao sul das Montanhas Traiçoeiras, e continuariam
até atingir as Florestas sagradas do norte.
N em o próprio Vanhardt calculou bem o quanto estava cansado. A s asas da
libélula produziam um som muito intenso, e em nenhuma outra ocasião o deixaria
dormir. Porém, foi só ele se acomodar de uma maneira mais confortável sobre o
inseto, e pedir para Lila fazer uma magia que o prendesse ali (não queria cair de
uma altura daquelas, claro), e o jovem caiu num sono profundo. Pois foi com
pesado susto que ele se viu em frente ã sua mãe, no salão do trono do castelo de
cristal.
Mãe... É você mesma! Espere, por acaso isso não é um sonho?
O ar se mantinha nebuloso, e o cenário desfocado. A deusa do gelo que, ao
contrário, era bem visível, se mostrava tão bonita quanto sempre. Ela não
respondeu imediatamente ao rapaz, e levou um tempo a observá-lo. Caminhou até
ele com passos lentos, e acariciou o seu rosto. Vanhardt sentiu um grande calor e
uma ternura naquelas mãos, provando-lhe que aquilo era muito mais real que
talvez a própria realidade.
-— Meu filho, estava com saudades... N ão sabe o quanto me alegra vê-lo aqui.
I sso demonstra que seus poderes têm despertado. A cada dia você se torna capaz
de realizar mais proezas - a deusa tinha um sorriso maternal, preenchendo com
amor a alma de Vanhardt que se tornara vazia e escura depois da dor em
Avendorh. Um amor quente e renovador.
Mãe... Eu não encontrei Erick. Ele está em outro lugar. Estou ficando
desesperado, acho que não irei encontrá-lo nunca. Sinto-me tão sozinho...
S ozinho? É claro que não! Pois se eu deixei contigo um pedaço de mim, que está
sempre a auxiliá-lo. I sso que você sente é na verdade medo. Medo de não rever seu
filho. Medo de não conseguir superar os desafios para encontrá-lo. Enfim, medo do
desconhecido. Por isso pedi a Lila que o levasse até as Florestas S agradas do norte,
onde irá resgatar o fabuloso item que perdi há tanto tempo.
Qual?
A minha foice, a poderosa Flama. D e posse da minha arma você será capaz de
superar qualquer desafio, e acredito que até mesmo rasgar o S elo Proibido. D evo
alertá-lo, entretanto, que Flama caiu no território da deusa da natureza, Laodicéia.
Não sei que perigos podem advir daquele lugar.
Flama... Nossa...!
D e posse dela você terá uma força poderosíssima em mãos, e é por isso mesmo
que deve ter cuidado. Poder tão grande assim o tornará capaz de muitos prodígios,
para o bem ou para o mal.
— Eu entendo, mãe. Terei cuidado, prometo.
Filho, preste atenção, é realmente importante! Você me conta isso agora porque
não está em posse de tal poder, mas sinto-me segura e triste em afirmar que
quando o obtiver, irá repensar o que disse. N ão deixe o poder seduzi-lo. Entendeu
bem? Muito cuidado! D eixo para discutir esse assunto mais tarde com você, pois
preciso lhe dar uma última notícia.
A deusa pegou na mão do filho, e o trouxe para perto do trono, deixando que se
sentasse ali. Ela mudou completamente de expressão, tornando-se séria, abatida, e
sombria. Vanhardt pressentia que a notícia seria terrível, e no final ela se revelou
muito pior do que ele supunha.
— A última coisa que tenho a dizer é a pior delas. N ão há uma maneira melhor
de contar isso, portanto serei direta: sua esposa, Selena, desapareceu.
Capítulo XXV - O Vazio, e o Amanhecer de um Novo Dia
A s palavras de Léia entraram pelos ouvidos de Vanhardt como um raio. Ele mal
conseguia movimentar um músculo da face. O raio, contudo, produziu uma espécie
de efeito retardado, e um minuto depois o jovem sentiu o barulho do trovão
ressoar em sua mente: Selena desaparecera!
Q uando se deu conta do que havia acontecido, o jovem guerreiro viu o mundo à
sua volta perder o pouco de foco que tinha e ficar escuro, além de começar a girar.
Ele notou também que Léia mexia a boca, mas não podia ouvir o que ela dizia. Uma
fisgada no abdômen fez com que voltasse os olhos para baixo, e percebesse que
havia um cordão de prata ligado ao seu umbigo. Esse cordão se estendia para além
dos limites de sua visão. Estaria ali o tempo todo e ele não notara? Mais uma vez a
fisgada, e de repente, Vanhardt estava sendo seqüestrado pelo cordão em altíssima
velocidade.
Ele saíra do castelo de cristal e cruzava os céus tão rápido que as montanhas e
os rios passavam como flashes sob ele. Era um vôo alucinante, e quando procurou
adivinhar para onde estava indo, viu a libélula gigante cerca de cem metros à
frente, com seu corpo humano deitado em cima dela. O cordão se ligava também
ao umbigo desse corpo. D e uma hora para outra ele foi puxado para dentro do
corpo, e o impacto levantou-o com um solavanco.
Lila!
O que foi? - a fada falava de dentro do seu bolso, rasgado, que a abrigava com
algum conforto.
N ão sei... Eu estava com minha mãe, daí tudo foi ficando escuro e girando.
Havia um cordão preso no meu umbigo, e ele me puxou até que alcancei eu
mesmo, que estava parado aqui! A h, não entendi nada... A cho que foi só um
sonho...
N ão, meu querido, você não sonhou. O que aconteceu foi o que chamamos de
"desdobramento astral", ou "viagem astral". Você simplesmente saiu do seu corpo,
e foi para onde quis. Seu corpo continuou onde estava, esperando que retornasse.
Que estranho, parecia um sonho, mas era muito real!
Foi real - acrescentou a fadinha.
Eu conversei com minha mãe. Ela contou que o artefato que buscamos é Flama,
a arma que usava quando era a deusa da morte. A conselhou-me a ter cuidado com
o poder dela. Depois, disse que Selena havia desaparecido... Será que é verdade?
Se Léia disse, então é verdade.
N ão acredito! N ão pode ser... Primeiro meu filho, raptado por aquela megera, e
agora minha esposa resolveu desaparecer... A posto que Hilda está envolvida nisso
também!
É, não sei dizer.
Vanhardt calou-se por um tempo. Era tudo muito pesado para ele. S entia um
vazio no peito, além de frio, muito frio. Podia não ser afetado pelo gelo ou pela
neve, mas este frio, que pulsava de dentro, castigava-o sem piedade. Estava só. O
peito foi ficando pequenino, apertado, como se uma mão gigante o esmagasse.
Lágrimas brotaram em seus olhos, e ele se esforçou para que elas não corressem.
N ão queria que Lila o visse chorar. N ão queria se sentir menor ainda do que se
encontrava no momento. Pensava que chorar demonstraria fraqueza, e precisava
ser forte. Porém a força que empurrava as lágrimas era maior do que a que as
continha, e elas logo encharcaram seu rosto.
A fada obviamente notou, entretanto não comentou nada. Provavelmente ele
ficaria zangado se ela o incomodasse com perguntas sobre o choro. E também, o
que ela perguntaria? J á sabia o motivo de sua tristeza. Lentamente, o sol foi
surgindo no horizonte, e o dia amanheceu preguiçoso. Horas depois, os dois
conversavam alegremente, como se nada tivesse acontecido.
A quele O swaldo é muito engraçado - disse Vanhardt. - Fica repetindo as
palavras, e parece um pouco estabanado.
Pode até ser estabanado, mas sua mãe confia muito nele. Ele nunca deixou de
cumprir à risca as ordens da deusa do gelo.
Sei... Eu achei que ele estava dando bola pra você, só não quis comentar nada.
Eu não tenho nenhum interesse naquele coelho! - a fada ficou séria de repente,
com as bochechas coradas.
Então por que você está vermelha assim? A h, já sei... J á tem outro
namoradinho, não é?
Lila ficou com o rosto mais corado ainda, parecida com um tomate. S e Vanhardt
a tocasse com os dedos notaria que estava até quente.
-— A minha vida pessoal em nada lhe deveria interessar, filho da deusa do gelo!
- a fada bufava, e parecia querer estrangular o rapaz. - E vamos mudar de assunto!
Está bem, se você insiste... - o rapaz deu um sorriso malicioso.
A fadinha respirou fundo antes de continuar:
S e olhar para baixo, poderá perceber que estamos sobrevoando a Floresta
Sagrada do norte. Mais um pouco e acionarei o instrumento de busca.
Qual instrumento de busca?
A ntes que Lila pudesse responder, a libélula estremeceu, e inesperadamente
sumiu. S em apoio para se sustentar, Vanhardt se viu caindo de uma altura de mais
de mil metros. N aquele ponto, ele já se acostumara a quedas abruptas de grandes
altitudes, e não se preocupou muito. Lila provavelmente faria alguma coisa. Mas
quando mirou o bolso, reparou assustado que a fada não se encontrava ali. O lhou
para baixo - as copas das árvores estavam a menos de cem metros, e se
aproximavam rapidamente. O que fazer, o que fazer? N ão havia tempo para
praticamente nada. D aí a poucos segundos ele atingiria com força as árvores. E
nem mesmo o filho de uma deusa suportaria o baque.
Capítulo XXVI - Duelo de Cavalheiros
A pós deixar a rede que guardava a fada presa aos pés de uma cadeira, Green
caminhou com passos curtinhos até Vanhardt, e revistou os seus bolsos.
N ão fique triste, amigo humano. Você não foi a minha primeira vítima, e não
será a última. O poderoso e esperto Green aqui é...hum... "genial" talvez seja o
melhor adjetivo! O s homens não entendem que o fato desses cogumelos serem tão
vistosos, coloridos, bonitos, é na verdade um sinal da natureza que significa algo
do tipo: cuidado comigo! Não me coma! E vocês fazem exatamente o contrário, há!
O jovem rolava no chão, dificultando o trabalho de revista que Green executava
pacientemente. S ua barriga doía muito, e a cabeça estava zonza. Veneno para
matar um elefante!
Essa fada é sua, não é? S orte que ninguém consegue utilizar magia sobre as
plantas no reino de Laodicéia, de modo que sua amiga não conseguirá se libertar.
Caso contrário seria muito perigosa! Pois é, eu sei, fadas fazem magias. S ó que eu
sou mais esperto! O grande Green nunca será derrotado por tolos que invadem sua
casa e se acham o máximo - a criatura não parava de falar, com a voz que ficava
mais irritante a cada segundo.
Vanhardt, seu molenga, o que você está fazendo rolando nesse chão como
maluco? - inquiriu a fada, zangada.
Eu fui envenenado... - ele fazia um grande esforço para responder. - Vou
morrer... Lila... Minha esposa, meu filho... Eles...
S ua besta, se esqueceu de quem é filho? Como seria envenenado? É impossível
te envenenar.
Como assim? - Green e Vanhardt perguntaram ao mesmo tempo, enquanto esse
último se levantava de sobressalto como se nada tivesse acontecido.
É exatamente o que eu disse! Você não pode ser envenenado! S ó não sei o que
estava fazendo rolando no chão como um idiota.
Green olhou assustado para Vanhardt, que se restabelecera de um
envenenamento que certamente o levaria à morte em menos de um segundo. Ele
pegou a criatura verde com ambas as mãos e ergueu-a no alto, deu dois giros e
atirou-a contra a parede. Em seguida correu até ele e segurou-o pela argola da
algema que balançava na altura do peito.
Então você queria me envenenar! Q ue azar, pegou justamente o filho de uma
deusa pra fazer isso - o rapaz exibia a mão fechada, pronta para esmurrar o duende.
É, e parecia que você iria morrer mesmo! - Green não estava tão seguro de si
como há minutos atrás.
Bem, é que... hum... fui influenciado pelo que você disse. Melhor, fui
sugestionado.
Um filho de uma deusa facilmente sugestionado?
Cala a boca! Eu estou morto? N ão! Então mais respeito. Vou perguntar apenas
uma vez: onde está a bússola?
Hum, aquilo se chama bússola. Legal! - repentinamente Green não se mostrava
mais assustado. - Se eu disser a você, irá me matar. Para quê eu faria isso?
O lá, ainda estou presaaaaa! A lguém poderia me ajudar? - Lila se sentara no
chão, de pernas cruzadas, e batia aborrecida a mão na bochecha.
Você irá me dizer porque do contrário irei te matar! - tornou Vanhardt
ignorando os apelos da fada.
E o que estou te falando? Não te digo, pois se o fizer morrerei.
Mas se não disser irá morrer também.
Então, pra quê falar? Melhor ficar calado, que pelo menos você fica sem o
instrumento. Aliás, pra que serve?
O rosto de Vanhardt ardia em fúria. Ele não era bom em negociações.
Principalmente negociações confusas. S abia intimidar, isso sim, o que obviamente
não adiantava com Green.
Ok, criatura verde, o que posso dar em troca da bússola?
Eu não sou criatura verde. S ou um duende, ouviu bem? D -U-E-N -D -E! E tem
sorte por eu não transformá-lo em uma ameba. A lguns duendes sabem fazer
magias.
Eu ainda estou aquiiiiiiii! Oiiiiii! - Lila insistia de dentro da rede.
Duende, que seja, o que faço pra obter a bússola? - continuou Vanhardt.
Prometa não me matar.
Ok, prometo. E agora, onde ela está?
Prometa que não irá me matar nunca!
Está certo! Prometo!
E nem irá causar qualquer dano físico à minha pessoa. N em mental. O u
qualquer tipo de dano que...
TÁ BO M, S EU CHATO ! EU PRO METO ! EU PRO METO , O UVI U? A GO
ONDE ESTÁ A BÚSSOLA?
A palavra do filho de uma deusa deve valer alguma coisa, não é? Está aqui no
meu bolso. Tome.
Vanhardt puxou o objeto da mão do duende com força, e soltou o pequenino.
D epois tirou a amiga fada de dentro da rede, que se limpou resmungando. A ntes
de sair pela porta, o jovem apontou para Green.
Tente alguma gracinha e quebrarei minha promessa, e a sua cabeça no
processo.
J á entendi... - Green ajeitou a roupa, e acrescentou: - Também nem me importo
com vocês, porque inevitavelmente irão morrer nessa floresta.
Como assim? - Vanhardt parou de supetão antes de sair pela porta, fazendo Lila
trombar com suas costas.
Vocês irão morrer inevitavelmente. N ão conhece essa palavra? I -n-e-v-i-t-a-v-e-l-
m-e-n-t-e. Quer dizer que não importa o que façam, irão...
EU S EI O Q UE Q UER D I ZER INEVITAVELMENTE. N ossa, que cara chato.
Quero que me diga por que iremos morrer.
Por causa deles - o tom de Green era misterioso.
O filho da deusa do gelo, curioso, desistiu de deixar o cogumelo gigante
precipitadamente, desejando ouvir o que mais o duende tinha a dizer. A fada
pousou no seu ombro e se espreguiçou, bocejando logo em seguida.
Eles? Eles são perigosos?
Como chegou até aqui e nunca ouviu falar deles? É mais burro do que eu
imaginava.
Repita isso e eu vou te mostrar a burra da minha mão indo direto nesse seu
nariz.
Calma, eu digo. Também estou louco para vocês irem embora de uma vez. Eles
são habitantes dessa floresta. D iscípulos de Laodicéia, que vivem aqui há milhares
de anos. Muito perigosos, já mataram até alguns deuses menores que apareceram
por aqui. S ão extremamente cruéis, e não poupam nenhum dos seus inimigos.
N em o filho de uma deusa seria capaz de enfrentar todos eles, principalmente
porque eles têm ao seu lado a Guardiã da floresta.
É verdade, Van. Parece que existe um povo nessa floresta que poderia nos
causar problemas. O verdinho aí me lembrou disso agora.
Verdinho é sua bisavó! É claro que eu, o incrível Green, não morri porque
conheço esse território como a palma da minha mão. N o entanto vocês dois serão
presa fácil. Estarei morrendo de rir quando escutar seus gritos de pavor, hem, hem,
hem!
Lila, tive uma ótima idéia! Green nos guiará pela floresta, daí poderemos evitar
um encontro com eles. Certo Green?
O quê? - o duende pulou para trás com o susto.
E isso mesmo. Como conhece as redondezas seria o melhor guia para nós. Faça
isso ou te obrigo engolir um desses cogumelos.
Mas você prometeu não fazer nada!
É verdade. D roga! Então... a Lila é quem fará isso. Ela não prometeu nada -
Vanhardt emendou um sorriso.
Horas mais tarde, o trio abria caminho pela floresta. Green pegou vários
suprimentos e colocou numa mochila que agora carregava nas costas. Caminhava
emburrado, reclamando enquanto afastava arbustos da frente. Vanhardt seguia no
seu encalço, certificando-se de que o duende não se afastasse muito e tentasse
fugir. I a comendo um biscoito que Green cozinhara, limpando os farelos que
grudavam no canto da boca com os dedos.
Até que cozinha bem, verdinho! Esses biscoitos estão... Divinos!
Traidores! Vocês me enganaram! Eu devia é deixar os dois sozinhos à mercê
deles, e voltar pra minha casinha!
—- Tente isso e Lila enfia um dos cogumelos bem grandes nessa sua boca que
não pára de falar. Fecha a matraca e anda!
Green não era um guia muito bom. I a para um lado, depois desistia e seguia
por outro, para minutos mais tarde voltar pelo primeiro caminho. Vanhardt
conferia a bússola para não se desviarem muito do rumo. Q uando estavam longe
da rota ele cutucava Green, obrigando-o a ir por um caminho melhor. Lila se
ocupava em voar sobre a dupla, e observar um pouco mais à frente, para enxergar
possíveis inimigos. Em determinado momento ela desceu, e ficou na altura da
orelha de Vanhardt.
Você confia nesse duende aí? Ele tentou nos matar há pouco tempo, e agora é
nosso guia, Não acha isso perigoso?
Pode até ser, Lila, - sussurrou o jovem de volta - mas não creio que ele nos
levará ao encontro deles. Se fizesse isso, seria uma vítima como nós dois. Concorda?
N ão acredito que nos levará até eles, e sim até uma armadilha escondida em
algum lugar.
A o contrário de Lila, Vanhardt não achava que Green guardasse alguma
armadilha escondida na floresta, porque ele nem parecia saber direito onde estava
indo. Ele aproveitou para dizer ao duende:
E não se esqueça de que se comentar com alguém que sou filho de uma deusa,
Lila coloca um dos cogumelos na sua boca.
Eu já entendi! Eu já entendi! Q ue saco vocês, me ameaçando de morte a cada
minuto. S ó se eu fosse muito burro, característica que vocês estão cansados de
perceber que não possuo. Além do mais...
A frase de Green foi interrompida por um silvo breve, e em seguida Vanhardt
viu o duende cair estatelado ao chão. Logo foi a sua vez de sentir algo lhe passando
uma rasteira, e ele beijar o solo. Rolou e olhou para cima: Lila foi embrulhada por
uma rede que voou ao seu encontro. Tentou se levantar, mas acabou impedido por
um pé que manteve seu tronco junto ao chão. Vanhardt, finalmente, sentiu uma
dor muito forte no topo do crânio, e tudo ficou escuro.
Capítulo XXX - Investigações Secretas
Zing ria com vontade, enquanto erguia bem alto a taça cheia do néctar mais
puro que sua colméia era capaz de produzir. Léia sentava-se à sua frente, numa
cadeira de cera. Ela também degustava o néctar servido pelo anfitrião, com
delicado sorriso. A sala de visitas da colméia gigante não era tão majestosa quanto
o seu salão de festas, mesmo assim estava muito bem decorada. J anelas ovais
circundavam a sala, por onde a luz do sol penetrava através de vitrais
multicoloridos. Um tapete amarelo, bordado por aranhas, ficava ao centro, e uma
harpa prateada adormecia num canto. Léia e Zing se sentavam próximos a essa
harpa e conversavam alegremente. A deusa do gelo ficou séria e muda
repentinamente, e Zing se adiantou, adivinhando o que ela pensava.
Minha dama, imagino o que deseja saber - ele se levantou e puxou a cadeira
para o lado de Léia, voltando a se sentar. - S ei que o motivo pelo qual veio aqui não
foi simplesmente ouvir minhas velhas piadas, nem minhas poesias ridículas e
inúteis!
Não acho suas poesias ridículas ou inúteis! - retrucou a deusa, contrariada.
É uma verdadeira dama por dizer essa graciosidade. Bem, não irei insistir no
quanto sou ruim, seria grosseria de minha parte. Q uanto a Taurok, que é o assunto
de principal interesse, confesso que já o conhecia anteriormente. Posso dizer que
até mantínhamos algum contato, devido aos torneios e outros eventos nos quais
participamos juntos, e ele sempre me pareceu respeitável. S ó que essa minha
impressão não bastaria para ter certeza de suas intenções, seu caráter, então
utilizei todos os recursos disponíveis e investiguei a vida do deus dos minotauros.
Retirando o eufemismo, espionei-o. Posso entregar um relatório de todas as suas
atividades, ou apenas dizer o que descobri. O que prefere?
Vossa D ivindade sabe que não preciso dessas formalidades de relatório, não é
Zing? Conte-me logo, estou curiosa.
Bem, então eu digo - Zing aproximou seu rosto da deusa do gelo, e a voz que
saía era quase um sussurro. - Léia, eu poderia muito bem inventar alguns detalhes
sórdidos sobre esse indivíduo, na verdade pensei em fazê-lo, porém achei que não
seria justo de minha parte. N ão há nada no passado de Taurok que o comprometa.
Todos os deuses que mantiveram negócios, ou qualquer tipo de relacionamento
com ele, têm o mesmo discurso. O deus dos minotauros é honesto, respeitador,
educado e gentil, enfim, é uma perfeição! A pesar de muitas vezes ser duro, e ter
entrado em vários conflitos, não foi além do que estava em seu direito. Resumindo:
não existe prova alguma de que Taurok não mereça confiança, o que, pra ser
sincero, me deixa chateado, pois assim ele demonstra ser um adversário à altura.
Adversário em quê, meu amigo?
A h, bobagens querida; intriga masculina. N ão se perturbe com isso. E então, o
que me diz de tudo isso?
A deusa do gelo passou os olhos pela sala em silêncio, pensativa. Ela conhecia
de outras eras os talentos de espionagem de Zing, e se ele descobrira tais coisas, é
porque não passavam da mais pura verdade. A rrependeu-se naquele momento por
ter sido até dura e seca com Taurok, desconfiando de suas intenções - no entanto,
em virtude de todas as traições anteriormente ocorridas, ela não poderia ter agido
de outro modo. O deus dos minotauros acabara de ganhar sua confiança.
— S ó há uma coisa na qual ele nunca me venceria - disse Zing, interrompendo
os pensamentos de Léia, por ver que ela não respondera a sua pergunta.
E o que seria?
Ele não é tão bonito quanto eu! - os olhos de Zing pareciam muito maiores do
que eram, e refletiam o rosto da deusa milhares de vezes. Lentamente ele foi
encurtando o espaço entre seu rosto e o dela, ao mesmo tempo em que lhe tirava,
com cuidado, a taça das mãos. S eus outros três braços se ocupavam em envolver o
ombro dela, e segurar carinhosamente seus dedos. - A gora vamos deixar esse
assunto de lado, e falar de algo mais interessante, como nós dois?
A investida de Zing só não continuou porque uma abelha, do tamanho de um
ser humano, entrou na sala e pigarreou. I mediatamente o deus dos insetos, que
estava quase completamente curvado sobre Léia, voltou à sua posição original,
sentado na cadeira, deixando a deusa se recompor. Ele respirou profundamente, e,
com desagrado, disse à abelha:
O que foi agora? Como me interrompe dessa maneira?
D esculpe-me, grandioso Zing, excelentíssimo deus dos insetos, só faço isso
porque é assunto deveras importante! Está sendo chamado ao salão do trono, com
urgência.
J ustamente nesse instante, não posso acreditar! A h, se é assim, diga que estou
indo - e voltando-se para Léia, continuou: - Minha dama, perdoe-me pela falta de
decoro, entretanto terei de abandoná-la nem que seja por míseros minutos. S abe
que nada me deixa tão lisonjeado quanto estar em sua presença, e poder trocar
minhas palavras fúteis com ser de tamanha graciosidade e elegância. Garanto-lhe
que minha falta será recompensada com outras poesias ridículas e inúteis, além, é
claro, das velhas piadas. Nada a deixará mais aborrecida e entediada!
Não se preocupe com isso, Zing, estarei esperando ansiosa.
Com o tronco curvado, Zing deu um beijo na mão de Léia, e deixou o salão com
andar cheio de pompa. A abelha que havia entrado no salão olhou com desdenho
para Léia, empinou o nariz e deu-lhe as costas, saindo com um rebolado.
A deusa não perdeu tempo em pensamentos desagradáveis sobre a abelha, e,
displicentemente, caminhou para uma das janelas com vitrais. Após olhar ao redor,
e se certificar que não havia ninguém por perto, puxou uma rosa branca da cintura.
Ela aproveitara o momento em que Zing debruçara-se sobre seu corpo para colocar
uma rosa como essa, mas de menor tamanho, grudada no corpo do deus dos
insetos. A flor que pareceria inofensiva a qualquer observador era uma espécie de
transmissor, que enviaria os sons ao seu redor para a outra flor, que agora Léia
tinha em mãos. A pesar de não ser uma atitude muito honrada, da mesma forma
que a deusa tinha de se certificar das intenções de Taurok, precisava também
conhecer as de Zing. O fato do deus dos insetos ter desaparecido por vários anos,
sem dar notícias, e depois voltar e omitir o que andara fazendo, era no mínimo
digno de suspeita. Ela colocou a rosa cuidadosamente sobre a orelha, e passou a
escutar.
S ons de passos, seguidos pelo barulho de uma porta sendo aberta. Foi aí que
ouviu vozes.
Saudações, Zing, poderoso deus dos insetos. Espero não estar incomodando-o.
D e maneira nenhuma, N úbia, preciosa deusa da noite. É um prazer rever
tamanha beleza. Mas por que não veio pessoalmente ao meu castelo, preferindo
esse tipo de comunicação? Não gosto de falar utilizando esses meios mágicos.
Léia assustou-se ao ouvir o nome - Núbia. Desde que se tornara a deusa do gelo,
renunciando ao status de deusa da morte, ela não conversara, nem mesmo
presenciara diálogos de um dos deuses maiores. E o que estaria Zing tramando
com a deusa da noite?
Vossa D ivindade sabe muito bem porque, Zing, não se faça de tolo. Esses são
tempos perigosos, não podemos nos arriscar assim. E então? Fez o que lhe pedi?
É claro que sim! Como já lhe relatei anteriormente, aqueles anos de
investigações foram infrutíferos, não resultando em praticamente nada. Q uando
voltei, porém, aproveitei o que já tinha feito e consegui ir mais a fundo, e
investiguei- as completamente. A credito sinceramente que elas não estão com o
Manto.
Tem certeza, Zing?
Entenderia como ofensa a falta de confiança em meus serviços. S ou muito bom
no que faço, e, pelo que vi, não há nenhum sinal do Manto. Elas não o têm.
Bem, se não está com elas, com quem estaria?
É o que continuo pesquisando. S egundo minhas fontes, um dos seus últimos
paradeiros foi nas mãos de uma ordem chamada D ivina S erpente. Preciso,
obviamente, investigar mais, para verificar se é mesmo verdade. A partir daí,
teremos mais chances de descobrir a localização precisa do Manto, para que
possamos reavê-lo.
Faça isso, Zing, e terá o que deseja. S eja mais rápido em suas investigações; elas
demoraram um tempo além do esperado! Não temos nem um minuto a perder!
Eu sei, minha dama, e garanto que serei bem sucedido.
Ótimo. Falaremo-nos em breve. Adeus.
Léia parou de escutar as vozes, e tornou a ouvir passos, aproveitando para
guardar a flor na cintura. Q uem seriam "elas", que Zing investigava? E que Manto
era esse? Por que tamanho interesse de N úbia nele? Divina Serpente... O nome não
lhe era estranho, ouvira rumores dessa ordem num dos seus milhares de anos de
existência. A deusa do gelo precisava urgentemente de todas as respostas, que pelo
visto não obteria facilmente. Q uando Zing voltou à sala, e fez os cumprimentos e
lisonjas de praxe, Léia surpreendeu-o com um abraço, através do qual aproveitou
para retirar a rosa, e guardá-la junto da outra. D epois se ocupou em entreter o
anfitrião, enquanto pensava no futuro.
Capítulo XXXI - A Profecia dos Três
Q uem é essa tal de Guardiã da Floresta? O que ela decidirá? Eles irão nos
cozinhar, Green? Fale alguma coisa! - Vanhardt se mostrava ansioso,
principalmente por não poder conjurar suas magias.
N ão sei... Espere um pouco, agora estou me lembrando! S im, hem, hem! Recebi
ensinamentos sobre ela e seu povo. E uma mulher muito perigosa. Essa vila de
discípulos de Laodicéia não tem o poder político apenas nas mãos de um homem,
como acontece com a maioria das outras. O poder é dividido: um homem, chamado
de "S enhor", cuida das questões administrativas e de saúde, enquanto uma mulher,
chamada de "Guardiã da Floresta", cuida da parte de caça, das questões militares,
incluindo aí prisioneiros. Por isso ela decidirá nosso destino. Como me esqueci
disso?
Bom, pelo menos estamos a salvo por enquanto. E seu plano de fuga, não vai me
dizer que era realmente aquele de ficar implorando ao Senhor por sua liberdade?
O duende franziu as sobrancelhas, desanimado, e não respondeu. Ele virou os
olhos para a fada, que procurava inutilmente fugir dos gravetos que as crianças
usavam para cutucá-la. A atitude do duende de ignorá-lo não deixou dúvidas a
Vanhardt de que o plano era mesmo aquele.
S eu duende safado! S em vergonha! Q ue cara de pau! - o herói parou de encarar
Green.
Vanhardt mostrava-se indignado com a criaturinha verde. Era verdade que o
duende tentara matá-lo e também à fada, porém entendia que Green fazia aquilo
por instinto de preservação. Até tomara alguma simpatia pela criatura, mesmo que
ele fosse metido (mais do que a fada), falador, e intrometido. A gora o duende
mostrava que seu instinto de preservação poderia ser muito maior do que qualquer
sentimento próximo de amizade. N ão adiantaria, entretanto, ficar reclamando. Ele
precisava pensar em algo para tirá-los dali. O lhou para os lados, e depois para
cima, e viu aquilo que há muito tempo procurava: um pássaro! A nimal no qual ele
poderia usar seu poder!
Fixou os olhos na criatura solitária, e se concentrou. O s minutos correram, o
pássaro voou de uma árvore para outra, e depois foi embora. Vanhardt não
obtivera sucesso. I sso devia ser culpa de Laodicéia, que por ser a deusa da natureza
deveria proteger também os animais. Procurou Lila, queria conversar com a fada,
mas ela estava longe demais e ele não queria ficar gritando. A partir daí, desistiu
de pensar em qualquer plano de fuga, e deixou o destino seguir seu rumo.
O dia logo terminou, e o sol, avermelhado e sonolento, se escondeu
sorrateiramente no horizonte. Em certo momento, um rebuliço tomou conta dos
habitantes da vila. A lguém havia chegado. Era ela! D o meio da multidão, surgia
uma pessoa pouco mais baixa que Vanhardt, magra, e do mesmo modo que outros
habitantes, usava um capuz e uma capa verde-amarronzada, que encobria o rosto e
parte do corpo. A Guardiã da Floresta se encontrou primeiramente com o líder, ou
S enhor, como Green o identificara. D epois de trocarem algumas frases, o S enhor
apontou para Vanhardt, Green, e também para a fada. A Guardiã da Floresta então
caminhou na direção de Lila, e examinou-a por alguns minutos. Com um aceno
afirmativo, deixou a fada e foi para os troncos que mantinham Vanhardt e Green
presos, parando a menos de um passo dos dois. Vanhardt sentia a sua respiração,
mas não via um centímetro do seu rosto, encoberto pelo capuz. S eria humana? O u
teria cor verde ou azul? Deformada, quem sabe? Ou mesmo bonitona?
A Guardiã permaneceu imóvel, demorando-se com os olhos nos pés descalços
de Vanhardt, e depois foi a vez de fitar Green, reparando nas algemas que pendiam
do seu pescoço. Ela virou-se em seguida para o S enhor, e os dois passaram a
cochichar.
S erá que são eles? - perguntou o S enhor, com a voz baixa, porém a uma altura
que permitia Vanhardt escutar. Talvez ignorasse a curiosidade do rapaz, ou fosse
inocente o bastante acreditando que ele não quisesse ouvir a conversa.
N ão posso garantir. A pesar de se parecerem muito com as figuras da parede,
não percebi nada de extraordinário neles. N ão sei como esse daí - ela apontou
Vanhardt com a cabeça - conseguiu caminhar em nossas florestas descalço. D eve
ter machucado bastante os pés. A manhã poderíamos tentar fazê-los passar pelo
teste - a voz da Guardiã era mesmo de uma mulher, não muito diferente da de
qualquer outra, exceto por ser firme e confiante.
Ótimo. Esperaremos até amanhã, e aí faremos os testes. E então, encontrou
alguma coisa?
N ada. Peguei alguns pássaros, o que evitará que morramos de fome nos
próximos dois dias. Mas não há um animal no raio de dez quilômetros.
D roga! - o S enhor deu um soco no ar. E tudo por causa daquela criatura! A h...
Tomara que esses três sejam a nossa salvação.
O S enhor e a Guardiã se afastaram, e Vanhardt percebeu pelo canto do olho que
Green mirava-o atentamente. N ão retribuiu o olhar. Estava com raiva do duende. O
único fato que lhe atraía a atenção era seus pés descalços. Ele chegara a se esquecer
de que não havia arranjado botas, e só se recordara porque a Guardiã reparou em
seus pés. S entira uma certa vergonha, mas que se fora junto com a Guardiã. Green
ainda o chamou uma ou duas vezes, e como o jovem não lhe desse atenção, o
duende desistiu.
A noite caíra gentilmente sobre a floresta, e as estrelas apontaram no céu.
Green dormia a sono solto, Lila mantinha-se de cabeça baixa, olhos fechados, como
se meditasse, e Vanhardt não conseguira mais do que um leve cochilo. N aquele
momento mantinha os olhos fechados, ouvindo os mínimos ruídos da vila,
imitando sua amiga fada. A s pessoas subiram para as casas no alto das árvores
para dormir, permanecendo dois ou três habitantes no solo, rondando a vila,
obviamente vigiando os prisioneiros.
Um barulho no meio da mata atraiu a curiosidade de Vanhardt. S ubitamente,
dois olhos vermelhos, de gato, surgiram entre as folhas de um arbusto. O jovem,
que estava sonolento, despertou de vez. O s olhos se mexiam no meio da mata, a
cerca de quinze metros de distância, e a altura que estavam do solo indicava que o
dono era grande. Q uem sabe a criatura criasse uma confusão, e no meio dela
surgisse uma oportunidade para que fugissem? S egundos depois os olhos
desapareceram, e um fino tremor abalou o solo. Tochas foram acesas nas casas, e
os habitantes entraram em alvoroço. A lguns pularam entre as casas, e outros,
portando arcos, bestas e lanças, desciam por cipós e escadas. Gritos e berros
acordaram Green e alertaram Lila, e um terror repentino passou a tomar conta da
vila.
O chão, que havia parado de tremer, voltou a chacoalhar, dessa vez muito mais
forte, somado a um barulho ensurdecedor. O s gritos foram abafados, não se
conseguia nem ouvir a própria voz e, de repente, no centro da vila a terra começou
a se abrir. O s habitantes armados formaram um círculo em torno do buraco, e
deste, para espanto de Vanhardt, Lila, e Green, brotou a cabeça de uma animalesca
criatura. Era semelhante a uma minhoca, cilíndrica, da largura de cinco ou seis
tonéis de cerveja juntos. A boca era triangular, com centenas de dentes
pontiagudos dispostos em fileiras sobre uma mucosa vermelha, cada um deles com
quase um metro de comprimento. N ão aparentava ter olhos, a pele era cinza,
enrugada, com alguns pêlos grossos. A ssim que surgiu do chão, emitindo um urro
grotesco, caiu esmagando um habitante, matando-o imediatamente. D everia pesar
dez toneladas ou mais.
O s outros guerreiros da vila atiraram flechas e lanças na criatura, que sequer
arranharam sua pele, certamente muito espessada. O verme se arrastou sobre a
terra ameaçando engolir os habitantes, que decidiam fugir ou continuar lutando
corajosamente. A primeira opção era a mais inteligente.
A aldeia naquele ponto se tornara um caldeirão de pânico e terror. A s pessoas
não encontravam lugar para se esconder, e corriam para o meio da mata ou
continuavam em suas habitações sobre as árvores. O verme, depois de engolir um
bravo guerreiro que jogara uma lança dentro de sua garganta, mergulhou debaixo
da terra.
Vanhardt até aquele momento se mantivera parado. S uas pupilas estavam
dilatadas, as mãos tremiam, a testa suava frio. A visão de um ser tão grotesco, tão
grande, tão cruel, roubava-lhe o raciocínio e perturbava seus sentidos. Foi um
apito, como o som de uma chaleira, que o tirou daquele estado de choque. Vinha do
seu bolso. Virando de lado, e deixando que o objeto caísse, descobriu o que era: a
bússola! A seta não estava parada e apontando para uma direção como sempre
fazia - dessa vez girava incontrolavelmente, emitindo aquele ruído irritante. I sto só
podia significar uma coisa: a foice estava muito perto. Perto até demais.
Capítulo XXXIII - Reunião de Sangue
A gora que Vanhardt tinha certeza que Ravina e Lázarus eram o mesmo ser,
passou a olhar a Guardiã com verdadeiro interesse. Ele pediu à fada:
Ei, Lila, onde estão aquelas cordas que trouxemos? Temos de prender essa daí!
Posso providenciar algo melhor do que as cordas.
A fada sobrevoou a Guardiã, dando voltas em torno dela. Green e Vanhardt
viram os braços de Ravina se colarem junto ao corpo, como se uma corda invisível
os prendesse. A Guardiã acabou caindo no chão, produzindo um baque surdo e
permanecendo imobilizada.
O que foi isso? - indagou o duende.
Essa linha que utilizei para prendê-la é inextensível e também não pode ser
partida. É extremamente fina, e por isso parece invisível. Chama-se "linha de Gaia",
e é uma magia que Léia aprendeu há pouco tempo. Como sou parte da deusa, e
mantemos uma ligação, também acabei aprendendo-a.
Legal! Muito bom, Lila! - Vanhardt se aproximou de Ravina, e agachou-se ao seu
lado. - A gora a senhorita aqui vai nos fornecer algumas respostas. Primeiro me
diga: por que não nos atacou até hoje? O que estava esperando? - a pergunta ecoou
pela floresta.
Eu não atacaria vocês, nem hoje nem nunca. S e quisesse ter feito isso, não
faltaram melhores oportunidades. Estou aqui unicamente para obedecer à profecia
- Ravina notou que todos ao seu redor se iluminavam com uma terrível curiosidade.
A pesar de deitada no chão, ela se mantinha numa postura firme, de guerreira. -
Lembram-se de que vimos desenhado na pedra vocês três e eu; ou melhor, a minha
forma de Lázarus, ao lado? D ispus-me a vir com vocês por esse motivo. Está escrito
que nós quatro derrotaremos aquele verme. A desculpa que dei para acompanhar
vocês, de que seria para protegê-los de Lázarus, serviu direitinho, e Ebeion não
desconfiou de nada.
Espere um pouco, quer dizer que ninguém na vila sabe que você e Lázarus são a
mesma criatura? - a fada enrugou a testa.
D esde que Laodicéia atou o destino de Lázarus ao da Guardiã, vocês são as
primeiras pessoas, exceto as próprias Guardiãs da floresta, que sabem disso.
Sintam-se congratulados.
E por que ninguém em Fhirjn sabe desse segredo? Por que você apareceu no
meio da mata, naquele dia que o verme atacou a vila?
— Uma pergunta de cada vez, duende. D eixe-me contar uma coisa, para que
possam entender perfeitamente a situação. N o início, Lázarus era um ser
completamente independente. Mas como Ebeion contou a vocês, a sua sede de
poder aumentou tanto que ele passou a devorar pessoas. Laodicéia, nossa graciosa
e benevolente deusa, teve compaixão de nós, e para acabar com a matança criou as
figuras do S enhor e da Guardiã, atando o destino dessa última ao de Lázarus. É
lógico que nenhuma de nós Guardiãs reclamou do fardo, pois assim poderíamos
proteger a vila. O s habitantes, por sua vez, acreditavam que lutávamos contra o
lagarto quando na verdade éramos a mesma criatura. N aquele dia em que o verme
atacou, eu me transformei em Lázarus para tentar enfrentá-lo antes que ele
chegasse à vila. A contece que não fui bem sucedida, ele invadiu-a e causou toda
aquela destruição. É lógico que não enfrentei o verme a partir daí, naquela forma
em que eu estava, pois havia muitos guerreiros que provavelmente me atacariam.
Assim voltei a ser a Guardiã, e o resto vocês já sabem.
Eu ainda não entendi por que você não contou a todos que era Lázarus.
Pouparia muitos problemas - Green falava como se fosse óbvio.
Ravina não fez observação alguma ao comentário do duende, limitando-se a lhe
dirigir um olhar incisivo. S em conseguir encarar a Guardiã de frente, Green olhou
numa outra direção, fingindo se interessar pelos galhos de uma árvore.
Então posso imaginar que durante essas caçadas, enquanto estava conosco, você
se transformava em Lázarus para se tornar mais eficiente?
Bem observado, Vanhardt. Como Lázarus, minha força, destreza e vigor
aumentam consideravelmente, tornando-me uma arma mortífera. Porém J ustus,
aquele miserável que se julga líder do Panteão, estabeleceu uma penalidade para a
transformação, justificando que causaria um desequilíbrio se ela fosse feita
livremente. Laodicéia foi obrigada a acatar a ordem com medo de uma punição. A
cada minuto que me mantenho na forma de lagarto, minha alma vai sendo perdida,
e a de Lázarus se sobrepondo a ela. O u seja, quanto mais tempo eu me mantiver
como lagarto, mais próxima fico de me tornar Lázarus para sempre. I sso é
cumulativo, e como vocês podem ver, meus braços já não são totalmente humanos,
o que indica que fiquei bastante tempo como Lázarus - imagino que em torno de
cinco ou seis horas no total. S e continuar nesse ritmo não durarei muito tempo. É
claro que antes que eu me transforme completamente, passarei o meu cargo a uma
substituta, e assim darei fim à minha existência de uma maneira digna, cumprindo
a minha missão - os olhos da guerreira brilharam.
N ossa, que triste - Lila abaixou a cabeça, ao perceber o quão terrível era o
destino de Ravina. - E não dá pra reverter?
Como eu disse, a benção-maldição é cumulativa. N ão dá pra revertê-la, nem
pará-la. A não ser que eu nunca mais me transforme em Lázarus, o que seria difícil.
Muito bem, acho que isso explica tudo. - Vanhardt, com um pouco de
dificuldade, retirou as linhas que atavam Ravina. - D esculpe-me por tê-la amarrado,
mas foi uma medida preventiva.
A Guardiã se levantou ainda séria, e bateu a poeira da roupa. Ela cobriu-se
novamente com a capa, enquanto Yanhardt olhava para Green - naquele momento
os dois perceberam o motivo para ela se manter coberta, que era esconder a pele de
lagarto. D essa vez, entretanto, ela deixou o capuz abaixado, e o rosto descoberto.
S eus olhos verdes cintilavam intensamente sob a escassa luz da lua que penetrava
na floresta.
—A gora sou eu quem gostaria de algumas explicações, Vanhardt. O uvi quando
o duende disse que sua mãe era uma deusa, e agora, quando Lila falou que é parte
de uma deusa; Léia, não é? Imagino que Léia e sua mãe sejam a mesma entidade.
S im. S ou filho de Léia, a deusa do gelo, e vim aqui em busca de um item que
rasgará o selo do Templo Dourado, local que abriga o meu filho desaparecido.
Filho? Entendo - ouvindo aquele comentário da Guardiã, Lila jurou para si
mesma que havia uma pontada de decepção. - Pra mim está tudo explicado. S e
estiverem de acordo, acho que poderemos jantar e depois dormir, pois amanhã
teremos mais uma boa caminhada pela frente.
A ntes que alguém se dispusesse a responder à Guardiã, a bússola que Vanhardt
guardava num dos bolsos da calça passou a apitar desesperadamente, como uma
chaleira. Todos entenderam instantaneamente que o verme estava próximo, e não
se passou mais do que alguns segundos para que o chão começasse a vibrar. Green
foi o primeiro a gritar, com as mãos erguidas:
Ele está aqui!
Lila conjurou a Crafo adimapla em Vanhardt, que por sua vez olhava ao redor
em busca da criatura. Ravina encolheu-se no chão, agachada, e sua pele foi
tomando uma cor esverdeada, brilhante, idêntica às escamas de cobra. S uas roupas
também foram se transformando, como se aderissem à pele, e ela passava aos
poucos a se parecer mais com um lagarto do que um ser humano. O s braços se
alongaram e as unhas cresceram, se tornando garras. A s pernas tornaram-se
compridas e bem torneadas, os pés se esticaram em patas achatadas, e o rosto
afunilou para frente, surgindo uma boca animalesca com dentes afiados. O s olhos
cintilaram vermelhos como fogo e ela soltou um urro grotesco ao se levantar. A
transformação terminara.
A inda aturdido com aquele estranho processo pelo qual Ravina passara, Green
correu até a mochila e se armou da espada, jogando a outra para Vanhardt.
N aquele instante, as árvores em volta do duende se curvaram, e o chão sob seus
pés ergueu-se, abrindo numa fenda. D emonstrando magnífica agilidade, Ravina
passou o braço de lagarto pela cintura de Green e pulou para o lado, salvando-o da
boca do verme que, aberta, surgia pela fenda.
A o ver o verme equilibrando-se em posição vertical, metros acima do solo, e
depois pender para o lado, Vanhardt apressou-se em puxar a fadinha pela perna,
tirando-a da frente da criatura, que caiu revirando quilos de terra.
—Você está louca, por que não voou quando o viu caindo? - gritou Vanhardt,
sem olhar para a fada, e correndo entre as árvores para escapar do monstro que já
estava no seu encalço.
A chei que poderia segurá-lo, como fiz com aquelas pessoas na vila! - berrou Lila
de volta.
S e Vanhardt, no meio daquele desespero, teve tempo para reprovar a idéia da
fada, nunca se soube. O s acontecimentos a partir de então transcorreram numa
velocidade impressionante, e não sei se minha capacidade narrativa conseguirá
apresentá-los adequadamente. Porém vamos em frente; como sempre, deixarei a
cargo do leitor o julgamento.
O verme perseguia Vanhardt, que por sua vez corria entre as árvores com a
bússola ainda apitando. Ele notou que a distância que o separava da criatura
diminuía, pois levava muito tempo para se desviar das árvores. I nteligentemente,
ele largou a espada no chão, e, utilizando sua extraordinária força, passou a socar
os troncos, que caíam imediatamente após receber a pancada. Q uem olhasse de
cima, e conseguisse enxergar além da escuridão que escondia a floresta, se
admiraria com a trincheira que ia sendo aberta no meio da mata. A quela atitude
acabou deixando o deslocamento de Vanhardt mais rápido, equivalente ao do
verme.
Ravina havia saído em disparada atrás da criatura, após deixar Green num lugar
seguro. D entre os quatro ela era a mais veloz: o corpo de lagarto era ágil, e
deslizava com absoluta facilidade pela floresta. S egundos depois de partir em
disparada, a Guardiã já pulava no dorso do verme, e caminhava sobre a couraça
cinza da criatura, que não cedeu às pancadas recebidas. S uas garras podiam
perfurar a madeira, mas não aquela poderosa armadura natural.
Green arfava e olhava pelo imenso caminho aberto na floresta, acompanhando
os acontecimentos assustado. Continuava com a espada em punhos, sem se atrever
a tentar enfrentar o verme. Resmungava consigo mesmo:
Eu sei que eles estão em perigo, mas o que eu poderia fazer contra aquilo?
Vanhardt é filho de uma deusa, Lila tem poderes mágicos, Ravina conta com o
corpo de lagarto, enquanto eu sou apenas um duende com uma espada. Um
duende com uma espada, que piada! Se fosse anos atrás, quando eu derrotava trolls
e ogros num piscar de olhos, tudo bem; mas hoje? N em pensar! E eles que acharam
que eu era "o salvador". A h, se soubessem que foi por medo que subi em uma das
árvores, e me agarrei ao cipó que por azar se soltou... Peguei o moleque no susto!
Vanhardt berrava para a fada, implorando por alguma magia que fizesse o
verme deixar de persegui-lo. A fada conjurou esferas amarelas, que explodiram em
centelhas luminosas ao atingir o couro da criatura, e resultaram em nada. Ravina
por sua vez aproximava-se da boca do verme, e se esforçava para não cair, pois
sofria poderosos solavancos. Q uando chegou ao extremo daquilo que se poderia
chamar de "cabeça" da criatura, ela puxou uma das bordas da sua boca, fazendo
com que ela se abrisse e mostrasse as inúmeras fileiras de dentes. A Guardiã
imaginava que a mucosa da boca era mais fina que a sua couraça, e lá poderia feri-
la. Através de uma belíssima e surpreendente acrobacia, ela segurou a borda da
boca do verme com um dos braços e ambas as patas, e utilizou o outro braço para
acertar as garras entre os dentes, onde a pele seria mais frágil.
O verme freiou ao sentir o ferimento, e se ergueu sobre o próprio corpo,
chicoteando a cabeça e arremessando Ravina metros à frente. A Guardiã arrancou
vários galhos durante o vôo, só parando ao bater com as costas numa árvore de
tronco mais grosso, caindo ao chão com um estrondo. O couro da pele de lagarto
amorteceu a pancada - ela teria morrido se fosse uma humana comum.
D urante aqueles instantes nos quais o verme se ocupou em lutar contra Ravina,
Lila conversava com Vanhardt:
A inda não consigo entrar em contato com a deusa do gelo! O que faremos
contra essa criatura? Ela é forte demais, não conseguimos nem arranhá-la! - a
fadinha voava de um lado para o outro, nervosa.
O couro dela é muito espesso, e apenas se tivéssemos uma arma bem afiada,
aliada a uma força imensa para... Ei, espere um momento... Há! Há! Tive uma
excelente idéia! D epressa, Lila, vá até Green e diga pra ele atrair a atenção do
verme!
Mas o que...?
D epressa! - o jovem berrou para a fada, pois o verme voltara à ativa, agora na
direção de Ravina, que ainda estava desnorteada no chão.
A fada obedeceu prontamente ao filho da deusa do gelo, e cortando o ar na
maior velocidade possível chegou até Green em menos de quinze segundos. O
duende sentara-se entre algumas rochas cobertas de musgos e uma árvore,
perfeitamente protegido. A penas sua cabeça era vista do lado de fora, com os
olhinhos apertados para ver o que estaria acontecendo - tarefa bem difícil, pois a
única fonte de luz era a da lua. Q uando a fada se aproximou, ele perguntou,
curioso:
E então, como estão indo? Os dois já morreram?
Cala a boca, seu pessimista, ninguém morreu! E também não irá morrer, se o
plano de Vanhardt der certo. Ele pediu pra você atrair a atenção do verme.
O quê??? - o rosto de Green se contorceu numa careta, não acreditando no que a
fada pedia. - Está louca? N em pensar; esse bicho vai me fazer em pedacinhos!
Mande aquele rapaz inventar um plano que não ameace a minha integridade física,
e talvez eu ajude - o duende fez um biquinho.
A fadinha flutuava na frente dos olhos do duende, e puxou uma das pálpebras
dele com força. Q uando ela a soltou pôde-se ouvir um estalo, e Green atirou as
mãos sobre o olho, gemendo de dor:
Aaaaaaaai! O que está fazendo, baixinha? Quer me deixar cego?
Farei muito pior se não colaborar! Escute bem: Vanhardt pode não ser um amor
de pessoa, e nem ser lá muito inteligente, mas com certeza suas idéias são criativas
e, o que é melhor, funcionam! S e ele diz que tem um plano, quer dizer que há uma
grande chance de dar certo. Então faça o favor de ajudar imediatamente, porque se
aqueles dois morrerem as próximas vítimas seremos você e eu!
Enquanto isso, Ravina e Vanhardt se ocupavam em desviar dos golpes do
verme. O filho da deusa do gelo havia ajudado a Guardiã, ainda aturdida, a se
levantar, e os dois pulavam de um lado para outro a fim de tentar confundir a
criatura. Eles sabiam, no entanto, que aquela situação não poderia durar muito
tempo. Estavam ficando cansados, e a cada nova investida o verme chegava mais
perto de abocanhar um deles. A mbos não duvidavam que nem seus poderes
evitariam a morte caso apenas um daqueles ataques os atingissem. N um momento
em que Ravina tropeçou, e achou que chegara o fim, uma pedra verde, coberta de
musgos, do tamanho de um cavalo, atingiu o verme. D epois veio uma segunda, e
até uma terceira pedra. Espantados, Vanhardt e Ravina viram que as pedras eram
arremessadas do local onde Green e Lila se encontravam. A quilo foi o suficiente
para irritar a criatura, fazendo com que ela abandonasse os seus alvos mais
próximos e fosse atrás do que a importunava.
Green naquela altura já havia recebido a Crafo adimapla de Lila, e ficou satisfeito
ao ver que atingira o objetivo - o verme avançava furioso para o seu lado.
Boa fadinha, essa magia realmente veio na hora certa. Viu como sou bom de
mira, mesmo nessa escuridão eu acertei três vezes! Vou atirar mais umas duas
pedras e depois fugir como Vanhardt, derrubando as árvores. E nem precisarei
arriscar o meu courinho, que bom! Hem! Hem!
Q uando Green tentou levantar uma nova pedra, notou que ela estava pesada e
não saía do lugar. Tentou novamente, mas a pedra insistia em não se mover. Com
certo nervosismo pediu a fada, enquanto enxugava uma gota de suor que escorria
pelo meio da testa:
Parece que a magia acabou... Faça ela de novo, porque o verme está chegando.
A fadinha esticou seus braços e pronunciou as palavras mágicas, porém nada
aconteceu. Ela tentou mais uma vez, com o mesmo resultado.
Oh-oh! - ela balançou a cabeça, piscando várias vezes.
Como assim "O h-oh"? Você está brincando comigo, querendo me assustar, não
é? Eu já sabia... O que quer dizer esse "O h-oh", fala logo, minha filha! - o coração de
Green disparou, e suas mãos passaram a suar frio.
"O h-oh" quer dizer que eu me lembrei que não posso conjurar a Crafo adimapla
mais do que uma vez... N a segunda ela dura apenas um centésimo do tempo, e na
terceira nem funciona. - olhou em direção ao verme e constatou que ele estava
muito próximo, e avançava sem parar. - Ou seja... CORRA!
Capítulo XXXIX - Flama
N a pressa de fugir da criatura gigantesca, Green até deixou a espada para trás.
N ão que ele fosse usá-la, mas era indiscutível a sensação de segurança que ela
proporcionava. O pânico pelo qual agora era arrebatado roubava-lhe quase todo
pensamento racional, e o único que ameaçava cruzar a sua mente era o de como
fazer suas pernas se moverem mais velozes.
Vanhardt e Ravina corriam lado a lado, e o jovem gritou:
A cho que posso segurá-lo, porém se ele continuar nesse ritmo vai chegar até
Green antes que eu o alcance!
O lagarto ao seu lado, que momentos antes era uma bela mulher com o título de
"Guardiã", apenas balançou afirmativamente a cabeça, como se entendesse o
recado. Ravina, depois de se agachar, saltou sobre uma árvore, e passou a pular de
uma para outra, sobre os galhos, balançando-se nos cipós, utilizando ambos os
braços e também as pernas. D eslizava com tamanha beleza e graciosidade, que
parecia voar. Além disso, passou a se deslocar muito mais rapidamente.
Enquanto isso, Green, que não ousava olhar para trás, e sentia um bafo quente
em sua nuca, deduzia que o verme estava a apenas poucos metros atrás de si. Ele se
desviou de um cogumelo gigante, seguido de dois troncos caídos, e, pelo ronco que
escutou, soube que o verme abria a boca. S eu coração por pouco não lhe saltava do
peito, e ele jogava todas as suas energias nas pernas. Foi aí que algo agarrou a gola
de sua camisa, e ele sentiu um puxão no pescoço - desmaiou, acreditando que a sua
vida seria retirada naquele momento. O que ele não sabia era que Ravina o puxava,
e o salvava mais uma vez de uma mordida que seria fatal.
A Guardiã carregou-o para a árvore onde estava, e, com ele sobre os ombros,
pulou para outros galhos, se afastando do verme. Este não desistiu do alvo, e
passou a perseguir Ravina. S ubitamente a criatura passou a se deslocar mais
lentamente, e a Guardiã pôde se afastar do perigo.
O motivo daquela velocidade diminuída era que Vanhardt, em mais uma de
suas proezas heróicas, segurava o rabo da criatura ao mesmo tempo em que
enfiava os pés no chão, tentando fazer com que ela parasse. Esta não se deu por
vencida, e apesar da grande força do filho da deusa do gelo, conseguia continuar
avançando, só que com maior dificuldade. A terra sob os pés do jovem era
revolvida e atirada para os lados, seus braços doíam, e mesmo assim a criatura não
parava. Expulsando com força o que restava de ar nos pulmões, Vanhardt gritou:
LILA, CADÊ VOCÊ?!
A fada, que voava apenas a alguns metros dali, respondeu de imediato:
Aqui! O que você está tentando fazer, seu doido?
A chei que poderia pará-lo com a minha força, só que não deu certo... - Vanhardt
tinha a voz espremida, os olhos fechados, e uma expressão de muita dor. - Lembra-
se daquelas linhas que você criou e prenderam Ravina? S e elas são mesmo
inextensíveis vamos ver agora. Faça o seguinte: dê-me uma das pontas, e siga com a
outra passando por trás de pelo menos uma centena de árvores. D epois me devolva
a outra ponta. Esse bichão aqui pode ser mais forte do que eu, mas não mais do que
a soma de todas essas árvores!
A fada, mesmo não entendendo o plano, obedeceu Vanhardt, colocando uma
das pontas na boca do rapaz (as mãos dele estavam ocupadas, inseridas entre dois
anéis do verme). Ela voou percorrendo um semicírculo, passando por trás de
exatamente cento e oito das árvores, e depois retornou para devolver a outra ponta
ao rapaz. A situação chegara ao seu ponto crítico. O verme seguia sem parar; uma
trincheira de vários metros de comprimento com terra de ambos os lados se abria
sob os pés de Vanhardt, e a fada voava ao lado do rapaz, pensando numa maneira
de entregar-lhe a segunda ponta:
— Como vou te entregar essa ponta, se você está com os braços ocupados? N ão
posso colocar na sua boca, pois corre o risco dela ser arrancada fora! - berrou ela,
que continuava produzindo a linha.
N uma manobra impressionante, Vanhardt tirou ambos os pés do chão e enfiou-
os na fresta entre dois anéis do verme, ao mesmo tempo em que com a mão
esquerda tirava a ponta da linha que tinha na boca e jogava os braços para trás.
D esse modo, estendido na horizontal, ele recebeu com a mão direita a segunda
ponta da linha, e apertou firmemente. A linha provou ser inextensível ao ficar
completamente reta, os ossos de Vanhardt estalaram e as árvores rangeram, uma
dor incrível percorreu todas as fibras do seu corpo, principalmente as da mão, que
até sangrou, mas o inacreditável aconteceu - o verme parou!
A criatura pareceu assustada, e levantou a cabeça, "olhando" para trás. Ela abriu
a boca e baixou a cabeça, mirando a mordida em Vanhardt. O rapaz, que contava
com aquele contra ataque do verme, imediatamente levantou o rabo da criatura,
fazendo com que ela abocanhasse o próprio corpo. Foi o suficiente para que o
couro dela cedesse, mas ao invés de sangue, uma fortíssima luz prateada jorrou do
buraco aberto. O verme rolou no chão, aturdido, e a luz, aos poucos, foi
diminuindo de intensidade. Vanhardt aproveitou um momento oportuno e
instintivamente jogou o braço dentro do buraco, passando a procurar Flama. S e o
couro da criatura era extremamente espesso, o seu interior era macio como um
colchão, e banhado por um líquido rosado, viscoso. A bússola em seu bolso parou
de apitar logo que ele sentiu ter tocado em algo mais sólido.
Com os olhos brilhando, os braços sujos, o corpo cansado, e uma expressão
triunfante estampada no rosto, Vanhardt retirou de dentro do verme uma
belíssima foice, com a lâmina dourada recurvada, e o corpo reto, de madeira,
decorado com pedras preciosas. A o segurar a foice sobre a cabeça, Vanhardt sentia
uma energia quente, intensa, emanando do objeto e fluindo para dentro de si. Ele
mesmo não acreditava que estava com Flama em mãos, a arma da antiga deusa da
morte, sua mãe.
O verme parou de se mexer, e murchou preguiçosamente, como um balão
furado que aos poucos se esvazia. Um minuto depois apresentava alguns
centímetros de tamanho, e não mais voltou a se mover. Vanhardt não ouviu mais a
bússola apitar. J ogou-a no chão, destruindo-a, pois ficou com medo de que ela
pudesse cair em mãos de outras pessoas.
A inda impressionado por ter derrotado a criatura, Vanhardt viu os amigos se
aproximarem: primeiro Lila, seguida de Ravina na forma de lagarto com Green
desmaiado no colo. Ela deitou delicadamente o duende sobre um monte de folhas
e se agachou, transformando-se novamente numa mulher, exatamente do jeito que
era antes.
Uau... então essa é a arma da deusa da morte! Q ue linda! - exclamou a fada,
batendo as mãozinhas.
D eusa da morte? Pensei que esse objeto seria da deusa do gelo... - comentou
Ravina, ajeitando melhor a sua capa.
I sso não importa! S ó sei que me sinto cada vez mais próximo do meu filho.
A gora poderemos romper o selo que protege o Templo D ourado. O que acha disso,
Lila?
A fada respondeu que achava muito bom, abraçando Vanhardt, e dando beijos
animados em sua bochecha. Ravina observava Green se levantar zonzo, e dar três
passos como se estivesse bêbado. Ele colocou as mãos na cabeça, e olhou para a
foice que Vanhardt carregava.
Hum, acho que perdi alguma coisa... O u eu morri e você veio me buscar? - O s
olhos do duende estavam ligeiramente arregalados. - Q uerem fazer o favor de tirar
esse sorriso besta do rosto e me explicar o que está acontecendo?
Graças a Ravina você não morreu, Green! E o verme não será mais problema
nem para nós, nem para a vila de Fhirjn - falou Vanhardt, admirando a foice.
E isso graças a você, Vanhardt - disse Ravina ao mesmo tempo séria e feliz,
abraçando Vanhardt demoradamente, agradecida. - Você foi o principal
responsável pela morte dessa criatura que há tanto tempo flagelava meu povo.
Nem sei como posso lhe pagar por isso.
Está bem, já chega de tanto agarramento, quer deixar Vanhardt em paz?
Lila empurrou o braço da Guardiã, tentando afastá-la de Vanhardt.
S e você não sabe como pagar, eu sei. O uro, comida, e mais ouro! - o duende
parecia plenamente recomposto.
Q uer calar a boca, seu mercenário? N ão fez nada para derrotar o verme - disse a
fada, indignada, apontando para o rosto do duende.
E quem atraiu a atenção dele? A atitude mais corajosa, sem querer me gabar...
Isso não foi nada comparado ao que Vanhardt fez!
Você é que não sabe de nada, sua velha!
O quê? - assustou-se a fadinha.
É, sim, sei que tem mais de mil anos. J á está gagá e não consegue mais observar
algo evidente, como a minha coragem - o duende levantou o peito e empinou o
nariz.
São só trezentos anos, seu miserável! E como descobriu isso?
Foi seu amiguinho Vanhardt aí que me disse...
O quê???
A fadinha virou-se para o filho da deusa do gelo, que logo se adiantou:
Q uerem parar os dois com isso? Essa discussão não vai levar a lugar algum.
Vamos voltar para a vila de Ravina, pois estamos cansados, e aproveitar para contar
as novidades ao povo.
Capítulo XL - Um Gosto Amargo
Todos dormiram mal, pois Vanhardt passara metade da noite fazendo barulho.
Ele insistia em girar sua foice e atacar inimigos imaginários, e num desses golpes
acertou uma árvore, cortando-a ao meio sem o mínimo esforço. A ssustado com
tamanho poder da arma, ele também acertou um golpe numa pedra, explodindo-a
em milhares de pedaços. Flama era fabulosa, e o jovem parecia uma criança depois
de ganhar um brinquedo novo. Foi Ravina quem salvou o resto da noite do grupo:
N ão me entenda mal, Vanhardt, mas não acha que já causamos destruição
suficiente na floresta?
É isso aí, queremos dormir, seu chato! - resmungou Green, revirando-se num
monte de folhas que preparou cuidadosamente, mal-humorado.
Concordo com o duende. Vanhardt, seu fofoqueiro! - Lila falou para o jovem, e
depois emendou baixinho, para si própria. - Q uem deu permissão para ele falar de
minhas intimidades a Green? Revelar minha idade, onde já se viu isso! Fofoqueiro
descarado...
A noite terminou sem mais interrupções, e Vanhardt num canto
experimentando a arma comedidamente. A ntes de dormir, o filho da deusa do gelo
notou que podia guardar a arma dentro do seu braço, entre o corpo físico e o astral.
Um ótimo local, aliás, pois assim ninguém poderia furtá-la quando ele não
estivesse atento, e seria fácil retirá-la dali sempre que desejasse. Com o resto da
noite passada em tranquilidade, o grupo pôs-se na trilha para Fhirjn logo que o sol
nasceu.
A jornada de volta foi muito mais curta que a de ida. Lila resmungou
"fofoqueiro" durante um dia inteiro, mas logo parou, passando a se preocupar com
um detalhe mais importante ao seu ver. Ela achava que Ravina observava Vanhardt
por tempo desnecessariamente longo, e quando esta vez ou outra puxava alguma
conversa com ele, a fada aproveitava para interromper e olhar feio para a Guardiã.
A cho que entendi porque o verme ficou daquele tamanho - comentou Lila
tentando atrair a atenção de Vanhardt. - I magino que antigamente ele não passava
de uma minhoca, ou algum vermezinho ordinário. Certo dia, deve ter se
encontrado com Flama enterrada na terra. Como os itens divinos têm a
propriedade de se juntar aos corpos, Flama ficou dentro da minhoca, e passou a
nutri-la de energia. Com o passar do tempo ele foi crescendo, mas só se tornou
verdadeiramente uma ameaça quando atingiu o tamanho que o encontramos. A
foice não era suficiente para alimentá-lo, pois a superfície de contato com a arma
aumentava ao quadrado, enquanto o volume da criatura seguia o ritmo ao cubo.
I sso é pura matemática, o que talvez você tenha dificuldade de entender, porém
garanto que está correto. A partir daí, ele precisou devorar animais para adquirir
energia; primeiramente os animaizinhos que deveriam abundar pela floresta, e
quando eles se tornaram escassos foi a vez de atacar a vila de Ravina. É por isso que
tivemos tantas dificuldades em encontrar animais o tempo todo!
É, faz sentido... - disse o jovem sem tirar os olhos da foice.
N aquele mesmo dia chegaram à Fhirjn, e quando contaram as novidades foram
saudados com muita festa. Ebeion esbanjava um sorriso de orelha a orelha, e fez
questão de gastar todo o estoque de alimentos que mantinha na comemoração.
Vanhardt parecia levemente envergonhado ao lado de Lila, ao contrário de Green,
que contava com exagerado drama a sua participação na luta. O duende adicionava
nos seus relatos alguns detalhes que os outros três não se lembravam de ter
acontecido - principalmente alguns associados a Green enfrentando o verme cara a
cara, e o feito desmaiar com seus socos. Ravina era quem mais se mantinha calada,
sentada ao pé de uma árvore, e comendo um pássaro assado. Ela se cobriu
completamente com o capuz desde que retornara ao lar.
A pós uma noite regada com festa e alegria, Green, Vanhardt e Lila (esta última
não precisou dormir, é claro) acordaram satisfeitos. O duende procurou Ebeion,
iniciando conversas sobre possíveis tesouros que por ventura existissem na vila, e
que poderiam servir de presentes aos aventureiros. Vanhardt por sua vez, se
dirigiu a um canto sossegado, sem ninguém por perto, e tirou a foice que manteve
até aquele momento dentro do seu braço. A arma exercia uma fantástica força de
atração sobre ele, e o rapaz não perdia oportunidades de utilizá-la a esmo sobre
objetos. Q uanto maior o alvo melhor ainda: nenhum sobrevivia a um simples
ataque da foice. E ele nem precisava empregar muita força - era só deslizar a arma
sobre o alvo e vê-lo se despedaçar. É claro que se a força era maior não sobrava nem
pó para contar a história. Lila viu Vanhardt alisando cuidadosamente a lâmina, e
sentou-se num galho pouco acima de sua cabeça.
Vai, passar o resto do dia apreciando Flama ou rumar para o Templo D ourado
comigo?
Ah, Lila, você está aí? Nem tinha percebido...
Estou vendo que você se preocupa mais com essa arma do que com seu filho.
Vanhardt tomou um susto. Lembrou-se do que sua mãe disse, sobre tomar
cuidado com o poder da arma. S erá que ele estava seduzido pelo poder? N ão, ele
não deixaria que isso acontecesse! Guardou a foice dentro do braço, e voltou-se
para a fada.
—Você está certa, baixinha, vamos imediatamente para o Templo D ourado!
Estou louco para rever meu filho, que aquela megera Hilda Risalv escondeu.
Risalv? Esposa de Lionel Risalv? - Green havia chegado ali perto, e perguntava
com sobrancelhas arqueadas.
Sim, Green, como você sabe? Conhecia-os?
N ossa... - o duende encostou o queixo no peito, e olhou para o vazio. Parecendo
refletir bastante, tocou a algema que se prendia no seu pescoço, e ainda em estado
hipnótico se dirigiu a Vanhardt. - Você vai enfrentá-la?
Eu não sei, Green... Bem, só se ela se interpuser entre meu filho e eu. Mas por
que essas perguntas?
Posso seguir com você? Posso ir pra onde você for?
Como assim Green? Pensei que você gostaria de voltar para seu cogumelo e ter
uma vida em paz.
Eu nunca terei uma vida em paz! - gritou o duende de uma hora pra outra,
assustando Lila e Vanhardt. - N unca. A penas diga que posso ir com vocês! Prometo
não atrapalhar - o olhar do duende era fixo e chamejante.
O jovem olhou interrogativamente para a fada, que deu de ombros. Eles não
entendiam por que depois de ouvir aqueles nomes Green se interessou tanto em ir
com os dois. Pensando um pouco, o filho da deusa do gelo disse ao duende:
O k, pode vir conosco, Green. S erá bom ter mais alguém pra conversar. S ó não
nos atrapalhe, por favor, e deixe a chatice de lado. E outra coisa: se eu mandar, você
obedece sem questionar. Promete cumprir tudo isso?
Tudo bem, eu prometo - o duende se portava incrivelmente sério. - E então,
quando iremos?
A cho que agora mesmo. É melhor sair de fininho, pois do contrário os
habitantes daqui irão querer que fiquemos mais uma semana, e não quero perder
tempo. A creditam que há uma chata que quer dançar comigo o tempo todo? O que
acha Lila?
Boa idéia. Vamos lá!
Ei, estão pensando em ir sem se despedir? - disse Ravina, aparecendo
repentinamente de trás de uns arbustos. Uma mochila pendia em suas costas, e o
velho bastão na mão direita, apoiado no chão.
D esculpe, Ravina, é que não queríamos causar tumultos com nossa ida -
respondeu um Vanhardt desconcertado. - Você me entende, não é?
Entendo sim, se me deixar ir também.
Mas o que é isso, virou festa? A gora todos querem me seguir? Por que isso
Ravina?
Preste bem atenção Vanhardt: o que você fez por meu povo é mais do que eu
mesma consegui todos esses anos. Estou profundamente agradecida, e com uma
dívida. E segundo os ensinamentos provindos de Laodicéia, nossa magnífica deusa,
uma dívida sempre deve ser paga, antes que o tempo a envelheça e cobre os juros
com mãos de ferro. É isso que nos torna honrados, e dignos de entrar em seus
reinos após a nossa morte. Por isso desejo seguir com você, até que consiga saldar
essa divida, ajudando-o ou aos seus semelhantes.
Não há divida nenhuma, esqueça isso. E você tem o seu povo pra tomar conta.
N ão existem perigos imediatos, eles estarão seguros. A lém do mais seria bom
deixar Lázarus longe deles por uns tempos... - a Guardiã deu três passos e ficou
cara a cara com Vanhardt, abaixando o capuz, fitando-o profundamente. - A penas
diga que sim. Minha honra como Guardiã depende da sua permissão.
Err, bem, hum... - Vanhardt olhava para ambos os lados, tentando se decidir. -
Tudo bem, você vai conosco. Mas ainda acho que deveria ficar com sua gente.
Muito obrigada.
S em se despedir de ninguém na vila, o grupo partiu. Como o próprio Vanhardt
comentara anteriormente, acharam que se revelassem suas intenções de seguir
caminho receberiam intermináveis propostas para ficar mais tempo. A lém disso,
haveria um empecilho muito grande em permitir que Ravina deixasse a vila e
acompanhasse o grupo. S endo assim, simplesmente se embrenharam na floresta e
foram embora.
O s primeiros dias seguintes à partida de Fhirjn foram relativamente tranqüilos.
Vanhardt até achou uma boa idéia que a Guardiã fosse com eles. Ela se mostrou
muito forte e guerreira, e podia ser de grande utilidade. Q uem não gostou nada
daquilo foi Lila. A fada passou horas emburrada, com os braços cruzados e a cara
amarrada. N um primeiro momento não quis dizer por que estava assim, mas
depois falava para todos ouvirem que Vanhardt aceitava membros no grupo sem
consultá-la. Vanhardt respondia que ela não era a líder do grupo e por isso não
tinha direito de reclamar.
Quem fez você o líder do grupo?
Lila, não adianta; não irei discutir com você. Fui eu quem iniciou essa jornada,
arrebatou os integrantes, e, além disso, sou o mais forte. Com essa foice serei capaz
de chutar a bunda de Hilda sem dificuldade, e a de qualquer outro que apareça. S e
tivesse Flama antes, aquele verme não faria nem cócegas! - disse Vanhardt com o
peito estufado.
Estou vendo que realmente você está se achando o máximo. Culpa dessa arma
idiota! A função dela é de destruir o selo que protege o Templo D ourado, mas para
você é um objeto digno de se gabar. Reparei que desde que fugimos do castelo de
Hilda você não meditou nem por um minuto.
É que eu estava ocupado...
S ei, ocupado o tempo todo. Principalmente depois que matou o verme, ficou
ocupado polindo Flama.
Cala a boca, Lila, você não sabe o que está dizendo. Preocupe-se com a direção
que estamos seguindo. Tem certeza que é por aqui o caminho até o Templo
D ourado? Ravina disse para seguirmos um pouco mais para leste, e ela conhece
bem essas matas. J á estamos caminhando há três dias para o sudeste, e a comida
que Ravina trouxe na mochila está no fim.
Humpf! Ravina, Ravina! Essa daí chegou ao grupo e agora também está se
achando. Até o anoitecer estaremos lá, seu metido! E trate de começar a meditar,
ou não evoluirá nada.
O ntem eu aprendi a conjurar a Crafo adimapla em mim mesmo, está ouvindo?
Sozinho! E nem precisei ficar nessa idiotice de meditação.
S egundo informações da deusa do gelo, a essa altura você seria capaz de
conjurar paredes de gelo, e não uma magia inicial como Crafo adimapla!
Lila e Vanhardt continuaram, discutindo pelo resto do dia, e anoiteceu sem que
eles saíssem da floresta. A fada ficou mais mal humorada ainda, pois a Guardiã se
mostrou certa: eles deveriam ter seguido mais para leste. Green se divertia com a
confusão, e às vezes dava boas gargalhadas, tomando mordidas na orelha por parte
de Lila logo em seguida.
Terminada a discussão, empatada, o filho da deusa do gelo tornou a olhar
admirado para a arma que adquirira do verme. Por que Lila ficara tão brava? S eria
óbvio que ele se interessasse pelo artefato, mas como tinha consciência de que
poderia ser seduzido por seu poder, não existiria mais perigo. A fada, contudo, era
cega pra tudo aquilo.
D eixando Flama um pouco de lado, ele olhou para a Guardiã que adormecia ao
lado da fogueira crepitante. Ravina se abrira um pouco desde quando eles
derrotaram o verme, porém mantinha algumas antigas atitudes, como permanecer
calada por longos períodos, comentar muito pouco de si própria, e geralmente se
manter séria. N ão que aquilo a tornasse feia; pelo contrário, trazia-lhe um ar
exótico, revelando-a muito mais bonita aos olhos de Vanhardt. D e repente sua
mente ficou confusa, e ele percebeu que não deveria ficar pensando nesses tipos de
coisas. E sua esposa S elena, quase se esquecera dela! Pelo visto continuava
desaparecida. S e bem que eles não fizeram contato com Léia, e talvez sua mãe
tivesse boas notícias para ele. Restava esperar.
N a manhã seguinte, comeram pelo desjejum uma lebre cozida, que Ravina
caçou durante a madrugada. Parecia que os pequenos animais voltavam a correr
pela Floresta S agrada do norte. A lgumas horas depois eles atingiram o final da
floresta, e foram saudados com um belíssimo sol a iluminar suas frontes.
Graças aos deuses saímos! Eu achei que continuaríamos andando por outro dia
inteiro - comentou Green olhando para o céu. S eus olhos então se deitaram para o
horizonte, e o duende se assustou com o que viu. - Ei, pessoal... o... que... é... aquilo?
Um mar negro, de quilômetros de extensão, seguia sobre a terra. Uma visão tão
fantástica, que hipnotizou os quatro por vários minutos. D a distância em que se
encontravam, pelo menos dez quilômetros, podiam notar poucos detalhes. D entre
estes, o mais evidente eram sons, como o de tambores, que ribombavam num
ritmo cadenciado, monótono e incessante. O mar, ou um exército, segundo Ravina
(a Guardiã era a que enxergava melhor), carregava uma espécie de monumento: um
obelisco negro, que se estivesse de pé se ergueria por mais de quinhentos metros.
O peso daquela monstruosa estrutura passaria facilmente de milhares de
toneladas, e eles não faziam idéia de como ela se movia. Mil homens não poderiam
erguer o monumento, e ele de fato parecia deslizar sobre uma plataforma. O utro
fato que logo notaram, era que o exército deixava um rastro na terra por onde
passavam - árvores padeciam mortas e o solo apresentava uma cor escurecida e
fúnebre. O rastro vinha do longínquo oeste, desde onde a vista não mais alcançava,
e seguia em direção nordeste até os pés do exército.
O s quatro sentiram uma energia maligna pairando no ar, que lhes roubava as
forças. Até Vanhardt, que não se incomodava com o frio, passou a tremer. Era
como se um vazio se infiltrasse em seu corpo, e adormecesse no seu coração,
gelando o sangue e todos os outros órgãos. Com o tempo se acostumaram com a
terrível sensação, e como o exército se afastava, logo não sentiam mais nada. Mas
suas almas nunca mais se esqueceram da sinistra impressão.
Capítulo XLII - Terra Morta, Mente Sã
Eu... Eu... Eu não sei o que dizer... - balbuciava Vanhardt com os olhos
brilhantes, em estado de choque.
Minha deusa...! Flama se partiu! - gemeu Lila com as mãos nas bochechas.
Ravina permanecia sentada, mas deixara a sua atitude tranqüila de lado,
exibindo seriedade e preocupação. Green veio correndo, e ao ficar ao lado da foice
se agachou e comentou:
É verdade, ela está quebrada. Vanhardt, como pôde ser tão estúpido?
N ão foi... não foi minha intenção, Green. Como poderia supor? Lila, me
responda, por que a foice se partiu?
S implesmente porque você não estava concentrado o suficiente! - gritou a
fadinha, furiosa. - A gora eu vou abrir o berreiro. N ão gastou um mísero segundo
para meditar, limpar a mente, se achando o poderoso, o maioral. N ão me deu
ouvidos, todo cheio de si, reclamando o tempo todo que "Lila insiste pra eu fazer
isso, pra eu fazer aquilo, não agüento pressão" e nhé nhé nhem! Está vendo agora
seu teimoso, cabeça dura, turrão, resmungão, chato?
Mas eu não meditei nem nada porque não tive tempo... Você mesma viu que
estava ocupado, com aquele verme e tudo o mais.
E depois que matou o verme, hã? É claro que estava ocupado, apreciando o
lindo e poderoso presentinho que ganhou da mãe! Perdia metade do dia polindo a
lâmina e admirando-a, portando-se como um perfeito idiota!
I sso não é verdade, e você sabe muito bem Lila. - ele olhou para Green e Ravina,
procurando conforto e consolação dos amigos. A cabou obtendo uma reprovação de
ambos, que balançaram a cabeça negativamente, e só aí se deu conta da gravidade
da situação.
Era tudo verdade. Ele se portara como um tolo, mais preocupado em fazer a
lâmina de Flama brilhar do que desenvolver e aperfeiçoar seus poderes. Lila
aconselhara-o, porém ele não dera atenção. E sua mãe também havia lhe alertado,
quando encontrou com ela em sonhos, que poderia ficar seduzido pela arma. Como
fora imbecil! Um vazio infinito consumia o peito do filho da deusa do gelo. O único
item capaz de rasgar o selo do Templo D ourado, e ele estragara tudo! O que seria
do pequeno Erick? Vanhardt sentia-se inútil, incapaz de proteger aquele pequenino
ser, e também sua esposa. Era um fracasso como pai e esposo.
O filho da deusa do gelo ajoelhou-se no chão, e passou a socá-lo com força.
Ravina enfim levantara-se, e deitou carinhosamente a mão no ombro do rapaz. O s
olhos dele se encheram de lágrimas, e a Guardiã se agachou ao seu lado, deixando-
o deitar a cabeça em seu peito. Green pegara as duas metades da lâmina e tentava
juntá-las, sem obter sucesso. Lila depois de vários minutos resolveu se aproximar
de Vanhardt e dizer:
Minha raiva passou, pelo menos por enquanto. Eu sei como deve estar se
sentindo, com a possibilidade de nunca mais se encontrar com Erick. O que não
adianta é ficar chorando o leite derramado, os ovos quebrados, e o gelo derretido.
Vamos procurar um lugar para acampar, e pensar no que fazer. Enquanto isso,
tentarei estabelecer contato com a deusa do gelo; provavelmente ela nos dirá o que
fazer. É óbvio que deve haver outra maneira de entrar naquele templo, ou pelo
menos recuperar Flama.
Vanhardt não acreditava nem na primeira, e nem na segunda hipótese, mas por
falta de opções decidira seguir o conselho da fada. J á era quase noite quando eles
acenderam a fogueira, e puseram para cozinhar numa panela com água fervente
um esquilo e também ovos que encontraram em um ninho, além de cenouras e
batatas que sobravam na mochila de Ravina. Todos precisavam comer bem após
aquela caminhada, principalmente Vanhardt que se encontrava especialmente
abatido. Um sentimento de culpa martelava no peito do jovem, e seu estômago
parecia cheio de pedras de gelo pontiagudas. Lila se afastara por um tempo, e
retornou dizendo.
N ão consegui contatar Léia porque estamos um bocado longe da terra do gelo.
Mas ainda há esperança, não desanimemos! Estive pensando...
Você pensando? Q ue milagre, hem, hem, hem! - disse Green mastigando os
ovos cozidos com a boca aberta.
N ão é hora pra gracinhas Green - acrescentou a fada com olhos fuzilantes. - E
trate comer de boca fechada, seu porco! Vejam bem, Vanhardt, você já fez isso uma
vez e pode novamente. Encontrará com Léia numa viagem astral! Lembra como foi,
quando você pensou estar sonhando?
O filho da deusa do gelo se recordava vagamente de quando saíra de seu corpo
e se encontrara com Léia. Foi naquela ocasião que ela revelou o desaparecimento
de Selena.
N ão sei se consigo Lila... Eu lembro que estava dormindo, mas ao mesmo
tempo acordado, e daí apareci ao lado da minha mãe no seu castelo...
É exatamente isso! Você tem que aproveitar esse momento, pouco antes de
dormir, naquele estado entre a vigília e o sono. A li você consegue separar seu
corpo astral do físico e encontrar com a deusa do gelo.
Eu sou um fracasso Lila, aquela vez foi sorte, não posso fazer por livre vontade.
A fada voou até a orelha de Vanhardt e deu uma mordida, fazendo com que
este levantasse de um salto e gritasse:
A A A A A A A A A A Auuu!!! D oeu sua maluca! - reclamou o jovem passando a
mão gentilmente sobre a orelha.
Faça o favor de ouvir o que está dizendo! Q ue ridículo - a fadinha colocou as
mãozinhas na cintura. - D esde quando decidiu abandonar o seu filho em um lugar
desconhecido, e não lutar para reencontrá-lo? D esde quando é um c-o-v-a-r-d-e...
Prefere sentar aí, desistir da luta, pois é mais cômodo? N ão tem um pingo de
coragem para levantar e lutar? Então resolveu trocar a força de vontade pela
desesperança?
A s frases de Lila, ditas naquela ocasião e daquela forma, operaram algo
diferente dentro da alma de Vanhardt. Ele lembrou-se de quando passou pela
tortura de Crular, o maior sofrimento de toda a sua vida. Q uando a nojenta criatura
destilava um golpe que ele jurava ser o mais doloroso, sempre vinha um na
seqüência que se mostrava pior. Comparando a situação em que se encontrava
agora, e aquela outra, via que sua dor momentânea não passava de um grão de
areia numa praia extensa. E assim, acabou entendendo que todo sofrimento traz
um ensinamento, e que em vez de abaixar a cabeça e reclamarmos o quanto
sofremos, devemos erguê-la e sentirmos lisonjeados, pois aprendemos uma coisa
nova. D aquela tortura de Crular, ele acabou aprendendo que por mais que sua dor
seja grande, ela passa. Ela passa! Então por que teria de ficar arrasado, sentindo-se
um fracassado? Seria mesmo um covarde, como Lila o chamou?
A quele foi o dia em que Vanhardt mais se decepcionou consigo mesmo, porém
foi o ponto de início de um crescimento que atingiria proporções ilimitadas. N ão
importaria quantas vezes ele caísse, levantaria em todas, com coragem para olhar
para frente e lutar pelos seus objetivos. Uma vontade de ferro foi se lapidando no
espírito desse guerreiro, e esta seria o único escudo que seus inimigos não
trespassariam.
O filho da deusa do gelo encarou os amigos um por um: Ravina, Green, e Lila.
Disse então, com voz pausada e confiante:
Está certa, Lila. Eu não desistirei, e garanto que nessa noite terei um encontro
com minha mãe. Tratemos de nos preparar: Green ajunte as coisas, e apague a
fogueira. Ravina, você poderia fazer uma rápida busca num raio de um quilômetro,
e verificar se não há algum movimento suspeito. Lila ficará de vigia, pois não
precisa dormir. Eu me acomodarei em minha cama improvisada.
Q uem imaginasse que simplesmente se levantar dizendo que dali pra frente
tudo seria mais fácil, como se as coisas ficassem realmente menos complicadas
com uma frase, se enganaria completamente. Ravina fez sua busca, Green roncava
como um porco, porém Vanhardt apenas rolava no seu colchão de folhas, lutando
entre a vontade de desistir de tudo, e a de insistir em sua jornada, mesmo que
doesse. Essa luta interna dificultava mais ainda sua concentração. Passaram-se
uma, duas, três horas, e o filho da deusa do gelo chegou a pensar que o dia
amanheceria e ele passaria o tempo todo acordado. Por algumas vezes quase
dormiu profundamente, acordando assustado em todas. Finalmente, com o sol, o
imponente castelo de S alazar, surgindo, ele conseguiu fazer com que seu corpo
astral abandonasse o físico.
Por alguns segundos Vanhardt se perguntou se era aquilo mesmo, e ao ver os
amigos deitados, Lila sentada no galho de uma árvore com os braços cruzados, e
seu próprio corpo estendido, teve certeza. O próximo passo era ir até o castelo de
sua mãe, o que demorou apenas uma fração de segundos assim que ele mentalizou
o local.
O salão do trono continuava o mesmo, só que a deusa do gelo não se encontrava
presente. Ele resolveu percorrer corredores e outras salas em busca de Léia, e
acabou encontrando-a num maravilhoso jardim, o qual nunca havia visto
anteriormente. A baixada, revirando a terra enquanto plantava flores de uma beleza
tão radiante que até doíam os olhos do rapaz, a mãe de Vanhardt se mostrava
serena. Ele aproximou-se lentamente, flutuando no ar, aterrisando ao lado da mãe.
Esta, de costas para ele, e sem se virar, disse tranqüilamente:
Q ue bom que veio querido, sentia saudades! Fico feliz de ver que encontrou
Flama. Pena que ela não foi tão útil...
Mãe, como sabe...
D epois de afofar a terra sobre as raízes de uma planta que tinha uma flor de
sete pétalas amarelas, e um cálice branco, Léia levantou-se e fitou o filho.
N ão faça perguntas desnecessárias Vanhardt, pois não sabemos quanto tempo
conseguirá permanecer aqui comigo. S ó de olhar pra você percebo seus
sentimentos transbordando, esqueceu-se que é meu filho? Até mesmo uma mãe
humana tem essa capacidade. Mas enfim, o que sucedeu para estar tão
preocupado?
Flama se partiu, mãe, quando tentei romper o selo do Templo D ourado. O que
faço agora...? Tenho medo de nunca mais encontrar meu filho!
A chei que você estaria pronto, mas fui muito adiantada. A culpa é minha, não
se preocupe. Bem, só uma arma muito poderosa é capaz de romper o selo do
Templo, e a que eu vejo ser de mais fácil acesso é Flama. Ela se partiu porque em
verdade não é a arma que romperá o selo, e sim seu portador. A foice é um veículo
para canalizar suas forças, e uma força muito grande precisa de um veículo de igual
poder. A lém disso, meu filho, você necessita ao menos enxergar aquilo que deve
atingir, e pelo visto ainda não tem capacidade para isso.
Mãe, não fale assim, sinto-me ofendido.
Por que se sente assim, se ofendê-lo é a última das coisas que fiz? Pare de
pensar tais bobagens, pois são elas que impedem seu crescimento. I dentificar- se
com o mundo é um passo para o fracasso. N ão irei, porém, ficar aqui a dar-lhe
aulas, pois sei que de nada adiantariam. A vida é a melhor professora, e deixo pra
ela este papel. Escute com bastante atenção o seguinte: Flama apesar de partida
não está morta. Você precisa reavivar a sua chama, e eu conheço o local e quem
poderá ajudá-lo. S iga pra o leste, e busque a caverna do Ciclope, responda o
enigma, e poderá entrar. É na forja do Ciclope que o fogo de Flama irá reacender, e
a arma será consertada. E antes de tentar romper o selo novamente, tenha certeza
de estar preparado.
O filho da deusa do gelo se encheu de dúvidas, e com medo de não conseguir.
Ele queria perguntar à sua mãe como era o enigma, como identificar o momento
em que estaria pronto para romper o selo, se tinha notícias de S elena, mas sua
ansiedade fez com que ele perdesse o foco. N ão conseguindo permanecer naquele
estado, logo se viu afastando de sua mãe, e do castelo de cristal. Finalmente
levantou sobressaltado:
Ei, pessoal! - gritou Vanhardt, acordando Ravina e Green, este último coçando o
olho e resmungando mal humorado. - J á descobri o que temos de fazer. Flama
pode ser consertada na forja do Ciclope, que mora numa caverna ao leste daqui!
O h-oh! - comentou o duende com os olhos arregalados, completamente
acordado. - S ua mãe por acaso citou que para podermos entrar nessa caverna temos
de decifrar um enigma?
Bem, ela falou algo do tipo. Por quê?
N ão é nada não, ah, fique despreocupado. S implesmente quem não consegue
decifrar o enigma morre. E até hoje, todas as pessoas que tentaram entrar lá não
tiveram outro destino!
Droga, minha mãe podia ter me dado a reposta do enigma...
-— Mesmo que ela soubesse, não adiantaria. O enigma muda a cada nova
tentativa de decifrá-lo. Tomara que não tenhamos o mesmo destino das milhares
de pessoas que já tentaram lá entrar...
Capítulo XLIV - Charada Mortal
Novo silêncio, e muitas rugas nas testas. Ravina sentou com a mão sob o queixo.
A fadinha também pesquisou uma posição mais confortável, e decidiu se
posicionar sobre a haste de madeira que segurava o gongo. Green tinha outras
preocupações, e perguntou para o lírio:
Ei, baixinha, quanto tempo temos para resolver o enigma?
O tempo que precisarem. Porém devo alertá-los de que não devem em hipótese
alguma sair do círculo delimitado por minhas irmãs, pois não sobreviveriam.
Q ue azar, estou com fome. N ão pode dar uma dica da resposta? - perguntou o
duende despudoradamente.
Claro que não! E pensem bem antes de responder, pois se errarem... - a frase da
flor morreu no ar misteriosamente. - Então boa sorte, retornarei agora para minha
hibernação.
O lírio tomou o rumo de volta para o seu lugar entre as outras flores, enfiando
as raízes no chão, e ficando imóvel, igual a uma flor comum. N aquele mtervalo,
Vanhardt dava cascudos na cabeça, pensando que facilitaria o processo de
raciocínio:
Esse enigma está errado, só pode ser. O infinito não tem fim, por isso mesmo é
"infinito". Então por que perguntam o que há no fim? S ó se for o próprio infinito...
S erá essa a resposta? N ão parece ser muito boa, óbvia demais. O vazio quem sabe?
Ai, que dor de cabeça.
Green desistira de achar a resposta, pois pensava que tudo aquilo não passava
de um truque, e eles deviam tentar encontrar uma maneira melhor de entrar na
caverna.
Não concorda comigo, Lila?
Claro que não! Até a deusa do gelo disse que teríamos de decifrar o enigma. E
você também viu o cadáver! A cha que ele morreu por causa de um truque? Faça o
favor de usar essa sua cabecinha oca para nos ajudar.
Meia hora se passou. Vanhardt e Lila discutiram se a resposta seria "o próprio
infinito" ou "nada", mas nenhum deles tinha certeza, e não queriam arriscar a vida,
pois pelo visto contavam com apenas uma chance. Ravina continuava calada e
quieta. Green passou a reclamar:
Estou com fome-e-e-e! Não tem nada sobrando aí com vocês, não?
Cale a boca, Green! N ão está vendo que estamos concentrados? - respondeu a
fadinha.
Estou com sede também, o sol está quente! A ff, que ridículo, não há nada no
fim do infinito... Pelos deuses! N ão acredito que irei morrer por culpa de um
enigma idiota como esse! Bem que eu avisei pra darmos meia-volta. Eu sabia, sabia
que era idiotice, mas ninguém me escuta! Agora por insistência de vocês...
Green, pelo amor da deusa, quando é que vai calar a boca? - tornou a fadinha
começando a ficar irritada.
Ei, esperem um pouco... Há!Há!Há! Só pode ser!
Só pode ser o quê, Green? Sabe a resposta? - perguntou Vanhardt esperançoso.
É claro que encontrei! Vocês são mesmo uns palermas, e só a minha inteligência
superdesenvolvida é capaz de nos tirar dessa situação! Salve Green, o imperador do
reino da inteligência! Ufa, que sorte, eim? O Van também pode compartilhar os
elogios, pois ele foi muito sábio ao permitir que um intelecto superior como o meu
se unisse ao grupo, e assim viesse até aqui salvar o traseiro de todos!
Poupe-me desse discurso pedante e nos dê logo a resposta, seu chato! - disse a
fada.
Ram-ram... - o duende coçou a garganta. - A resposta é "o céu"!
Vanhardt, Lila e Ravina entreolharam-se surpresos. D e onde Green havia tirado
aquela resposta? Antes que alguém lhe perguntasse, ele se adiantou:
Prestem bem atenção, meus companheiros de limitada sapiência. O terceiro
verso da primeira estrofe diz: "S e a resposta certa a boca conter". Então pensei que
a resposta estaria na boca. N o caso, a boca era a do lírio, ou seja, a resposta estaria
dentro do próprio enigma. E pensei neste trecho "alto e claro" como uma dica! A
pergunta em si seria assim um desvio da real resposta? E claro que não! É só
pensarmos: o que existe depois do infinito, se não o imaginário... o céu?
O duende ria solto, satisfeitíssimo com a excelente dedução que fizera. Seus três
companheiros, entretanto, continuavam calados, sem esboçar um sorriso ou uma
reprovação. Vanhardt foi o primeiro a não se agüentar, colocando a mão na boca:
Pf...Pf... HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ!
N ão só o filho da deusa do gelo gargalhara, mas aliaram-se a ele a fada e a
Guardiã sem se intimidarem. Vanhardt era porém o mais exaltado, e segurava sua
barriga enquanto rolava no chão e derramava um rio de lágrimas de seus olhos. O
duende se mostrou furioso e ofendido, e gritou, abafado pelas risadas:
Não acreditam, não é? Pois vou mostrar a vocês que a resposta é certa!
O duende, ignorando a zombaria dos companheiros, pegou um espeto de ferro
com a ponta envolvida em um tufo de algodão, que repousava encostado numa das
hastes de madeira que sustentava o gongo. Com os pés firmes no solo e os braços
descrevendo um círculo, ele já ia acertando o gongo em cheio quando a Guardiã
pregou-lhe um tapa na nuca, obrigando-o a soltar o objeto. Ela apropriou- se do
instrumento, e terminou o serviço de Green, fazendo o gongo vibrar. O som
penetrou nos ouvidos dos presentes como se fosse mágico, pois transmitia uma
sensação de leveza e pureza, e não era agudo ou grave, mas num tom neutro,
indescritível em palavras. Foi aí que a Guardiã estufou o peito, e disse:
"O"!
O chão começou a tremer como se houvesse um terremoto, e Vanhardt viu o
medo invadir-lhe o pensamento. Como Ravina pôde fazer aquilo, responder sem
consultá-los, e além do mais "o"? Até a tentativa de Green fazia mais sentido. A
fada e o duende não pensaram diferente do filho da deusa do gelo, e o segundo até
fechou os olhos, clamando por misericórdia ao "majestoso Ciclope". N o meio do
desespero, o disco de pedra que bloqueava a entrada da caverna rolou para o lado,
permitindo que uma corrente de ar barulhenta entrasse com força no túnel. O
tremor parou, e as flores que aparentemente acordaram de sua hibernação,
bateram palmas e assoviaram alegremente. Green foi o que demonstrou maior
felicidade, ao ver suas preces atendidas.
Gente, não posso acreditar. Estou vivo! Vivo! E sem nenhum arranhão, a não ser
esse aqui no joelho... Eu sabia, sabia que conseguiríamos!
S im, porém não graças a você, seu bundão! - a fadinha então mostrou-se sem
jeito. - Obrigada Ravina, você decifrou o enigma. Mas diga-nos, por que "o"?
Eu apenas pensei: o que há no fim da palavra "infinito"? A letra "o".
A pós Vanhardt aplicar alguns tapas na própria testa, ao perceber que a resposta
era tão simples, chamou os companheiros:
Está tudo muito bom, está tudo muito bem, mas completamos apenas a
primeira parte. A gora resta-nos encontrar com o Ciclope, e pedi-lo que conserte
Flama. Tomara que ele não fique bravo por termos feito esse barulho todo...
Capítulo XLV - O Oráculo
Vanhardt liderava a fila; atrás dele vinha Lila com a ponta do indicador
emitindo luz, em seguida Green, ressabiado, olhando para as paredes e chão, e na
retaguarda Ravina, com seu bastão de madeira erguido defensivamente. O túnel
seguia por uma escada que descia em linha reta, e era impossível ver o seu fim; na
verdade, era até difícil avistar o que havia dois passos à frente do próprio nariz.
Graças à providencial luz de Lila, eles passaram a enxergar até cinco metros, mas
nada além disso.
N ão bastasse a escuridão que por si só era desconfortável, havia um silêncio tão
sinistro e maçante q e se alguém se esforçasse podia ouvir até as batidas do
próprio coração. A cada lance de escadas vencido, Vanhardt sentia que se
encontrava mais próximo de ser devorado pela escuridão. Green foi o primeiro a
quebrar o clirna:
Cuidado, Van! - gritou o duende, apontando para frente.
- O nde? - o filho da deusa do gelo arregalou os olhos, com os braços prontos
para se defender de algum ataque inesperado.
Há!Há!Há! É brincadeirinha, só pra descontrair... Estão todos muito tensos...
S eu miserável, quase tive um infarto! S e pensar em fazer outra piada como essa,
pode ter certeza que será a última!
Minutos mais tarde eles continuavam em seu curso, só que com calor. Teias de
aranha surgiram nas paredes de terra, e uma delas grudou nos fios de cabelo da
fada. O grupo também percebera que o som de metal se chocando, vindo do fundo
do túnel, fazia o chão vibrar. Vinte degraus mais pra baixo e o calor que era
levemente incômodo se tornara insuportável, a ponto de fazer o duende tirar a
camisa e amarrar na testa, como uma bandana.
Ô fadinha, quer parar de olhar pro meu peito musculoso! - disse o duende,
dando tapinhas no tórax.
Eu não estou olhando pra você, seu convencido! N ão ousaria maltratar meus
olhos com uma visão tão horrorosa - respondeu Lila indignada.
A ntes que a dupla iniciasse mais uma de suas intermináveis discussões,
Vanhardt colocou o dedo nos lábios e chiou, pedindo silêncio. O s dois pararam e
ele apontou para frente, onde uma luz fraca podia ser vista.
O lhem, uma luz! Parece ser um salão... O s barulhos e o calor certamente estão
vindo de lá. A gora façam silêncio para não sermos surpreendidos. N ão sei se o
Ciclope está lá, e se estiver também não posso afirmar com certeza se ele nos
receberá bem. Portanto, estejam alertas!
Com redobrado cuidado o grupo desceu os últimos lances da escada. Um arco
prateado que passava de uma parede para a oposta, e beijava o teto entre elas,
determinava o fim do túnel. A sua frente cuidava o local de onde nitidamente
vinham os sons metálicos. Vanhardt foi o primeiro a se abaixar para poder enxergar
melhor.
O salão tinha o formato circular, iluminado por archotes presos nas paredes,
grande o bastante para abrigar uma festa com mais de cem convidados. A s paredes
e chão eram de pedras da cor verde. Uma fornalha de pedra ocupava todo o lado
oeste, e abaixo dela centenas de quilos de brasa ardiam revoltosas. Mais ao norte,
uma pequena cachoeira de dois metros de largura desaguava em um riacho, que
corria rente ao lado leste e passava debaixo da parede em algum ponto. O que mais
interessou ao grupo, entretanto, foram as pequenas e robustas criaturas que
corriam de um lado para o outro.
Eram bem mais baixos que um humano comum, porém alguns centímetros
mais altos que um duende como Green; seus ombros eram largos, barrigas
proeminentes, e a maioria usava longas barbas que quase tocavam o chão, podendo
ser das cores pretas, marrons ou ruivas. O s cabelos se mostravam das mesmas
cores que as barbas, e alguns usavam tranças, enquanto outros os deixavam
desgrenhados. O s pequeninos, sem nenhuma exceção, trabalhavam arduamente:
uns carregando carvão em carrinhos até o forno, outros balançando abanadores
para avivar as brasas, e alguns martelando chapas de ferro sobre bigornas. Podiam-
se contar pelo menos cinqüenta deles no salão.
Q ue legal, anões! Eu tinha um ótimo amigo anão, que conheci em Karnak. Ele
só era meio rabugento... A h, pra ser sincero era bem chato. Bem, acho que até não
era muito meu amigo. - Green conversava consigo mesmo enquanto os outros se
interrogavam se deveriam falar com os anões ou fingir que não estavam ali.
D e repente, uma corneta soou tão forte que obrigou a todos taparem os
ouvidos. O s anões gritaram e lançaram as mãos pro alto, largando imediatamente
suas obrigações e correndo para uma porta ao leste. S egundos depois os primeiros
saíram carregando uma gigantesca travessa, com três suculentos javalis assados, de
maçãs nas bocas. Eram necessários cinco deles para erguerem a travessa, e se
encaminharam para a cachoeira. Esta, como se obedecesse a um comando
automático, partiu-se ao meio, revelando uma abertura pelos quais os anões
passaram. N ão demorou para que esses voltassem, e quase esbarrassem com outro
grupo que dessa vez levava uma panela para a passagem sob a cachoeira. A panela
era do mesmo tamanho que a travessa, porém continha torta de queijo, recheada
com beterraba e brócolis. O s oito anões que a carregavam passaram debaixo da
cachoeira exatamente como o primeiro grupo, e logo foram avistados mais anões
trazendo dessa vez quase uma tonelada de arroz colorido, juntamente com outro
que sozinho levava pratos e talheres bem maiores que o normal.
Eles estão pensando em alimentar um exército? - perguntou Vanhardt com a
mão sobre a barriga, e língua roçando os beiços.
Puxa, bem que eles podiam oferecer um pouquinho pra gente! - acrescentou
Green imitando Vanhardt com as mãos e a língua.
A cho melhor perguntarmos logo onde está o Ciclope. A inda não entendi por
que estamos parados aqui, sem fazer nada - disse a fada sentada sobre os ombros
de Vanhardt.
A Guardiã não esperou a confirmação de Vanhardt e ficou na frente de cinco
anões que levavam dessa vez uma jarra com três metros de altura, e continha leite.
Os anõezinhos pararam, e um deles com a barba ruiva, disse asperamente:
S aia logo da frente! Q uer que o Ciclope fique furioso por atrasarmos seu
lanche?
Essa comida toda é só para o Ciclope?
É claro, mulher! Agora nos deixe passar ou enfrente a fúria de nosso mestre!
Com dois passos para a direita, Ravina cedeu passagem para os anões que
aceleraram as perninhas rumo à cachoeira. Vanhardt e os outros se aproximaram, e
o filho da deusa do gelo comentou reflexivo:
Pelo que entendi, o Ciclope está em algum lugar debaixo daquela cachoeira.
Vamos esperar outro grupo de anões para seguirmos por ali.
E se eles não nos deixarem entrar? - perguntou sensatamente Lila.
A zar deles! - respondeu Vanhardt, preparando-se para ir atrás de mais anões
que quase morriam de tanto esforço para erguer uma tigela com geléia de maçã.
O s quatro seguiram os anões por debaixo da cachoeira, os quais não ofereceram
resistência alguma. N ão foi grande a surpresa quando viram uma sala, decorada
com lustres e cortinados, e uma mesa de dez metros de comprimento entupida
com todas as iguarias culinárias que viram passar. N a única cadeira que havia, no
final da mesa, um ser parecido com um homem, mas com o dobro da altura e o
triplo da largura, avançava furioso sobre uma das cochas do único javali restante.
O s ossos dos outros repousavam sobre um prato à esquerda da mesa, provas
fúnebres de que a fome daquele enorme ser era assustadora. Q uando Vanhardt e
os outros aproximaram alguns passos, ele parou de comer por um momento, e
virando-se para os intrusos, mostrou-lhes um único olho no meio da testa de uma
cabeça redonda e careca.
Q uem são vocês? - perguntou o Ciclope com os dentes escondidos atrás de uma
montanha de arroz com queijo, e uma fatia gordurosa de javali.
Meu nome é Vanhardt Mohr D aicecriv, e estou aqui para consertar uma arma.
Esses são meus companheiros Lila, Green e Ravina.
Mais um grupo de aventureiros que decifrou o enigma? N ão acredito, já é o
quinto só neste século! Muito bem, esperem-me terminar este lanchinho e aí
veremos o que posso fazer.
Green não escapou de um tapa no pescoço e uma reprimenda por fazê-los se
assustar ao ter dito que ninguém havia decifrado o enigma até hoje. A comida não
sobreviveu a dez minutos de ataques constantes do Ciclope, que terminou com um
sonoro arroto.
Buuuuuuuuuuurrrp! D esculpem-me, é que costumo comer sempre sozinho!
A h, que falta de educação a minha, nem ofereci para que se servissem. S ei que não
é uma boa justificativa, mas é que era tão pouquinho, e talvez não me sustentasse
até a hora do lanche da tarde. Esses anões estão ficando moles e preguiçosos, e não
fazem comida como antigamente. Estão servidos? - o Ciclope, apesar da aparência
bruta, tinha uma voz paternal.
Eles iriam dizer que não, porém Green foi mais rápido e atrevido:
Estamos, sim, senhor! Faz séculos que não comemos direito! - observou o
duende de maneira sincera.
Muito bem, vou providenciar alguns aperitivos enquanto conversamos. Kiki,
diga ao cozinheiro que temos convidados e gostaríamos de mais alguns quitutes!
Um anão que até aquele momento se manteve escondido atrás do Ciclope saiu
rapidamente em direção à cachoeira, resmungando baixinho. O Ciclope se limpou
com um lenço, e levantou-se desajeitadamente da cadeira. Revirou seu único olho,
de tonalidade castanha escura, encarando bem os visitantes, e então tornou a falar:
Estão aqui para consertar uma arma, certo? Pois preciso ser pago para fazer o
serviço, e não é com qualquer moeda mundana. S ó aceito quantuns, ou seja,
energia divina.
Léia não havia dito nada sobre pagar o Ciclope, e por um momento Vanhardt
achou que ela se esquecera de um detalhe importante. Coçando a orelha por trás,
ele disse ligeiramente constrangido:
D esculpe, senhor Ciclope, mas minha mãe não falou nada sobre energia. Ela
apenas disse que era pra decifrarmos o enigma, e que na sua forja, Flama seria
consertada...
A h, Flama, então você é o filho da deusa do gelo! Está tudo certo meu rapaz, eu
e a deusa do gelo já nos acertamos devidamente! N ão precisa se preocupar com
nada. A gora me siga - o Ciclope fez sinal com as mãos, e foi para uma porta no
canto oeste da sala.
Q uando todos passaram pelo arco da porta tiveram a sensação de que o Ciclope
era maior ainda, pois este teve de se abaixar enquanto eles não alcançavam o topo
nem com os braços esticados. Lá dentro uma fornalha se erguia num canto,
enquanto no outro, pilhas com livros de um metro de comprimento e uma cadeira
gigante disputavam espaço. Com um movimento rápido o Ciclope encostou o
indicador no peito desnudo de Green e comentou:
Eu estava aguardando para que você se compusesse de maneira mais distinta
sem que fosse preciso chamar-lhe a atenção, porém vejo que de nada adiantou...
Q uer fazer o favor de vestir essa camisa ou precisarei ser rude? - o Ciclope agora
parecia bravo, e imediatamente o duende atendeu a ordem.
É que estava fazendo calor, e eu acabei esquecendo... Mas já não está tão quente,
até que o clima está bem agradável...! - disse Green com um sorriso amarelo e gotas
de suor brotando na testa.
Hmpf, que seja! Vamos ao que interessa; Vanhardt, onde está a poderosa foice?
O filho da deusa do gelo retirou a arma de dentro do braço, como já estava
acostumado. Por um instante mais rápido que o próprio pensamento, ele imaginou
que fazia a coisa errada, mas acabou se tranqüilizando. Confiava em sua mãe, e
concluiu que ela julgaria bem o Ciclope. Este, depois de tocar nas duas metades de
Flama, balançou a cabeça pra cima e pra baixo, e afirmou:
-— Queridinha, o dano foi realmente sério... Deve ter doído, não?
E "queridinho"; Vanhardt é homem senhor Ciclope! - comentou Green
respeitosamente.
É óbvio que sim, estou conversando com a foice! - o Ciclope contraiu a
sobrancelha e aproximou-se perigosamente do duende. - Está achando que sou
burro?
Excelentíssimo Ciclope, vai realmente se importar com o que uma criatura tão
débil como esse duende aqui diz? - a fadinha se enfiou entre os dois, procurando
apartar um possível conflito, que teria um resultado no mínimo letal para Green.
Então virou o rostinho para ele e sussurrou asperamente. - Q uer calar a boca seu
imbecil? Não vê que o está deixando cada vez mais irritado?
Com o duende devidamente preso entre os braços da Guardiã, e com uma
mordaça em sua boca, o Ciclope pediu a todos que se acomodassem, ou se
preferissem, retornassem à sala de trás para comer, pois a mesa já tinha sido posta
com mais quitutes. Green não ousou se mover, e todos afirmaram que estavam
bem.
— A arma sofreu um trauma severo, e não sei se poderei salvá-la! Terei até
mesmo que fazer algumas modificações. Entretanto estou certo de que se
conseguir, ela ficará mais forte do que jamais esteve. Tomara que funcione, pois
seria uma perda realmente infeliz.
S e o Ciclope não reparasse a arma, Vanhardt não teria como abrir o Templo
D ourado. O jovem andou até a cadeira que se escondia no meio das pilhas de livro,
e sentou-se com pouco conforto, pois ela era muito grande. Então fechou os olhos,
e torceu para que tudo desse certo.
Capítulo XLVII - A Visão do Oráculo
Thomas deixou Erick com uma bonita senhora, tomou o terceiro lugar que
permanecia vazio, e sentou-se cuidadosamente, arredando a cadeira de modo a
ficar confortável sob a mesa. O swaldo deu dois passos para trás, ficando colado à
parede, balançou o nariz de coelho como se espantasse uma mosca, e cruzou os
braços. Todos naquele momento mantinham olhos atentos à Runcard, que por sua
vez coçou a garganta com a mão fechada sobre os lábios, e começou a falar
fingindo importância:
Como todos sabemos, nossa amada vila foi invadida há cerca de uma semana,
por um exército de seres estranhos, do qual prefiro não relembrar, devido a tantos
traumas causados por sua mera presença. Era impossível para nós enfrentá-los,
pois nem haveria uma batalha, e sim um massacre. S abiamente, aceitamos que eles
fizessem o que queriam em troca de que fôssemos poupados. Por sorte, eles
quiseram apenas colocar esse obelisco aí fora, e destacaram um único soldado para
que ficasse de vigia. Partiram do mesmo modo que chegaram, sem dar aviso. D ois
dias depois, por um motivo que até agora desconheço, dez companheiros,
infelizmente, tomaram a liberdade de se rebelar, e atacar o soldado que vigiava o
monumento, e foram mortos instantaneamente. Confesso que se não fossem
nossos amigos, eu teria ficado feliz com o falecimento deles. S e aquele soldado
tivesse morrido no lugar, o exército do qual fazia parte teria tomado conhecimento
e, sem dúvida, retornado e aniquilado Crivengart. Pudemos então continuar nossa
pacata vida, desempenhando as tarefas diárias, sem que fôssemos submetidos a
qualquer mal-trato ou privação. A pesar disso, parece que existem alguns
companheiros insatisfeitos com nossa situação atual, e que querem iniciar uma
nova rebelião, além de vingar os companheiros mortos. A cho que estes não
ouviram o soldado dizer, que não toleraria uma nova revolta, e que toda a vila seria
destruída se ousássemos enfrentá-lo ou derrubar o obelisco!
Runcard, você sabe que não é bem assim! - levantou um aldeão de
aparentemente quarenta anos, cabelos loiros, de fios grossos, e compleição magra. -
D esde que esse obelisco foi plantado aí, nossa vida não tem sido a mesma. S ó um
idiota não perceberia a aura de tristeza que tem tomado conta de todos. Minha
esposa chora o dia inteiro sem motivo, meus garotos não querem mais brincar ou
trabalhar, e nem conseguem sorrir. Algo está acontecendo! É magia, e maligna!
N ão vamos exagerar, Greylok. N ão chega a tanto - tornou Runcard, com a mão
espalmada, em sinal de pare. - Essa tristeza é luto por nossos amigos que
morreram, e também trauma pela passagem do exército. Todos nós sentimos
assim, alguns mais e outros menos... A tristeza é natural, mas garanto que vai
passar, e logo...
D eixe de ser ignorante, Runcard. N ão vê o que está diante dos olhos de todos! -
dessa vez adiantou-se uma moça mais jovem, mas com rugas no rosto inchado, e
semblante preocupado. - A lgo muito ruim está acontecendo, e nos afetando! N ão
temos vontade de trabalhar, conversar, e muito menos festejar! O nde está a alegria
que sempre jorrou nessa vila, mesmo nos dias mais frios?
É, sim, também acho que seja magia! A quele monumento é maligno! - gritou
alguém do fundo.
N esse momento um múrmurio baixo tomou conta do aposento, e em poucos
segundos se tornou uma discussão calorosa em que praticamente todos tomavam
partido. O s únicos calados eram Vanhardt, Ravina, Thomas e O swaldo. Até Green,
que só agora fora apresentado à situação, gesticulava e discutia com um senhor de
idade, defendendo que eles deveriam ficar quietos, em vez de se arriscar a
enfrentar um exército. D e fato, havia dois lados em disputa: um que acreditava que
Crivengart estava sob o domínio de forças do mal, vindas provavelmente do
obelisco, e outro que achava que tudo corria bem e que não deveriam fazer nada,
pois o sentimento de infelicidade geral, e o pessimismo, eram parte do trauma
causado pela passagem do exército. D ez minutos se passaram, e os ânimos não
ficaram menos exaltados: a discussão só parou quando Runcard se armou de um
martelinho e golpeou a mesa com força algumas vezes.
S ilêncio, por favor, S I LÊN CI O ! S e não existir organização, não chegaremos a
lugar algum; além disso, podemos ser ouvidos, e uma conspiração descoberta não
nos cairia bem nesse momento. S eria melhor passarmos logo para a votação, pois
acredito que todos já tem opinião formada, e horas de blá-blá-blá não fariam muita
diferença. A ntes, queria apenas apresentar umas considerações finais. Em primeiro
lugar; vocês querem desafiar o soldado que defende o obelisco, para pô-lo abaixo,
certo? Pois bem, como farão para derrotá-lo? Esqueceram que com um golpe
apenas ele matou dez de nossos companheiros, dentre eles alguns dos melhores
guerreiros? N em vimos o que ele fez, e acredito ser magia! Uma nova investida só
resultaria em mais mortes! Em segundo lugar, repararam no tamanho do obelisco?
Q uanto acham que aquilo pesa? A creditam seriamente que amarrando um ou dois
burros, e puxando o monumento, ele vai ceder? Precisaríamos de no mínimo cem
cavalos, o que está longe das nossas possibilidades. E terceiro...
Runcard - adiantou-se O swaldo, surpreendendo a todos, com voz humilde. -
Meus amigos, meus amigos, meus amigos, e a proposta que da deusa do gelo? Ela
está disposta a ajudá-los, com o que for necessário.
N ão me venha com essa, coelho, - continuou Runcard - essa deusa vive
enclausurada, quase nunca nos ouve, e de repente se prontifica a ajudar? Eu
desconfio muito... E como dizia, em terceiro lugar: o exército! I ndependente do fato
de matarmos ou não o soldado, derrubarmos ou não o monumento, ainda temos
que enfrentar as tropas de Mondovar, e duvido muito que mesmo uma deusa...
Q uando o nome "Mondovar" foi pronunciado, Vanhardt saiu de seu estado de
quase sono, e levantou-se, com os olhos arregalados. Falou então com voz
preocupada, dirigindo-se a Runcard, e atraindo todos os olhares:
Você disse Mondovar?
—... e nunca venceríamos... Hã? Como é rapaz? Sim, Mondovar, o nome que está
na boca de qualquer habitante de Kether nesse instante!
Então Mondovar é mesmo o comandante dessas tropas? E ele esteve aqui?
Ele é o comandante sim, mas não estava junto da tropa. Um de seus
mensageiros veio a nós, representando-o, dizendo que se não nos rendêssemos, a
vila seria dizimada. Não tivemos outra escolha, a não ser...
Eu já sei, você às vezes é bem repetitivo, sabia ,Runcard? Eu quero saber se ele
botou os pés nessa vila? A lguém o viu? S abem se ele tinha prisioneiros? I magino
que Selena poderia estar em seu poder.
N ão, rapazinho, ele não botou os pés aqui, ninguém o viu, e não tinha
prisioneiros! A fama, entretanto, veio com ele, e sabemos das outras vilas por onde
passou, e na qual não restou um prédio de pé, uma alma viva. S e S elena estiver
mesmo com ele, depositamos nossos sentimentos de compaixão, e tomara que
todos os deuses olhem por ela!
Vanhardt passou alguns segundos pensativo, enquanto a turba fofocava
discretamente. Então ele estava certo ao pensar que Mondovar era o comandante
daquelas tropas. Mas pelo visto não esteve em Crivengart, e provavelmente não
levou S elena para lá. O nde será que ele estaria? Uma força fora do comum, já
conhecida de Vanhardt, brotava na base de sua espinha. D essa vez, entretanto, a
força emergia numa mistura de raiva e esperança. Raiva por ele saber como
Mondovar estava tratando S elena, e esperança por saber que ele tinha uma chance
de acabar com aquilo tudo. A cabar com as forças que dominavam a vila, libertar o
seu povo, e ao mesmo tempo derrotar Mondovar. E ele devia tomar a palavra, se
quisesse que a vila o ajudasse.
Runcard, você defendeu o seu lado, agora deixe que eu defenda o meu -
Vanhardt caminhou até a mesa, subiu nela, e virou-se para as quase quarenta
pessoas que se reuniam debaixo daquela casa.
Rapazinho, quem você pensa que é para achar que tem direito a alguma coisa
aqui? - disparou D ona Lavínia, a senhora que se sentava atrás da mesa, ao lado de
Runcard e de Thomas.
Eu sou tão habitante dessa vila quanto a senhora, e tenho os mesmos direitos
que qualquer um daqui. N asci nessa terra gelada, e passei minha infância sentindo
frio em meu coração, pelo modo como era tratado pelos meus vizinhos - olhares de
surpresa e constrangimento foram lançados sobre Vanhardt. Ele continuou, como
se nada visse. - Hoje, porém, ouso afirmar que entendo o medo de vocês. É o
mesmo medo que todos têm de Mondovar, e seu exército de mortos- vivos. O
mesmo medo que eu e meus amigos de jornada tivemos ao observar aquele
exército marchando, centenas de quilômetros ao sul daqui, e deixando a terra
infértil e arrasada por onde passavam.
À medida que o jovem filho da deusa do gelo discursava, mais pessoas
prestavam a devida atenção em suas palavras. Ele não era o garoto ingênuo que
saiu dali, e desconhecia o mundo e as pessoas. Havia retornado como um
verdadeiro homem. A s provas por que passou, as lutas e provações, a morte que
bateu em sua porta inúmeras vezes, proporcionaram material que dava subsídio
para um enorme crescimento espiritual. Vanhardt hoje era um homem feito, com
palavras fortes, e que despertava sentimento de esperança na alma de quem o
ouvia. D iscursava como um orador profissional, dando a entonação certa a cada
palavra, fazendo pausas entre as frases, que por sua vez gerava curiosidade para a
sentença seguinte. S uas mãos não gesticulavam aleatoriamente, mas dançavam
junto com as palavras, que eram derramadas como mel sobre os ouvintes. Ravina e
Green ficaram impressionados com o Vanhardt que viam. Ele saiu bastante
diferente de como entrou no Templo Dourado.
Medo, meus amigos, que só pode ser gerado por um único motivo:
desconhecimento. S ó temos medo do desconhecido. Até mesmo os deuses, dos
quais veneram tanto, temem alguma coisa. D igo isso, pois já estive em mais de
uma oportunidade cara a cara com eles. Mas vocês devem estar se perguntando,
por que ele está dizendo tudo isso? E com muito prazer, irei responder. E óbvio que
esse obelisco, está aos poucos sugando a força vital de todos nós, e quem sabe não
faz o mesmo com habitantes de outras vilas aqui perto? Q uando vi Thomas, meu
pai, achei que ele tinha envelhecido dez anos! E o mesmo acontece com cada um de
vocês. O que será de nós daqui a alguns anos? Ficaremos iguais aos cadáveres que
perambulam como soldados, nas tropas de Mondovar? E vocês o que vão fazer?
Permanecer como escravos, dando dia a dia o seu sopro de vida para aquele
monumento? Vendo seus irmãos, irmãs, filhos, avós, pais, definhando, sem
levantar um dedo sequer? N ão meus amigos! Hoje, eu convido vocês a enfrentar
esse medo, o medo do desconhecido, ao meu lado. Lutar contra as forças
opressoras que roubam as nossas vidas, a fim de recuperar aquilo que é de direito
de cada um. N ão exigimos mais do que é justo, mas aquilo que merecemos! Eu irei
derrotar aquele soldado e derrubar o monumento, recuperando a esperança que sei
que arde como chama no coração de todos vocês, assim que sair desse porão! -
Vanhardt parou de falar dando um soco na mesa, e as pessoas murmuraram
empolgadas. A maioria parecia satisfeita com a idéia, apesar de ainda relutantes.
— Bem, rapazinho, então você quer desafiar não apenas o soldado, mas também
destruir o obelisco, e pelo jeito derrotar todo o exército de Mondovar, não é? E
como pensa fazer isso? S abemos que é o filho de uma deusa, mas tem poder pra
tudo o que disse?
—Tenho, Runcard... - Vanhardt falava misteriosamente, e, com movimentos
deliberados, desceu da mesa e foi retirando Flama de dentro do braço lentamente.
Q uando ela saiu por completo, ele ergueu-a no ar, permitindo que uma luz num
tom avermelhado emergisse de sua lâmina, e banhasse os presentes.
Todos sentiram suas forças retornando aos poucos, como se a aura magnética
que roubava suas energias tivesse desaparecido. Era um verdadeiro sopro de vida.
Até mesmo o rosto das pessoas, marcado por rugas, manchas, e marcas de idade,
rejuvenesceu num piscar de olhos. Muitos deles, outrora extremamente debilitados
física e mentalmente, sentiram a força muscular voltando aos membros e até uma
alegria de viver. O s olhos, cheio de vida, pareciam acreditar em uma vitória. Mas
ainda era apenas um rapaz contra um forte soldado, um imenso obelisco, e um
exército inteiro.
— Ótimo, Vanhardt, você teve direito ao seu discurso, e até a um show de luz,
mas agora vamos definir o futuro de nossa vila com uma votação, que é a maneira
mais democrática - emendou friamente Runcard. Vanhardt guardou Flama
novamente em seu braço, mas o sopro de energia ainda tocava o coração das
pessoas, e permaneceria assim por algum tempo. - Q uem estiver de acordo com
Vanhardt, nessa missão suicida de lutar contra Mondovar, levante a mão! Q uem for
sensato, e se negar a uma loucura como essas, mantenha-a abaixada.
Timidamente, algumas pessoas ergueram o braço acima da cabeça, entre elas
Thomas, Vanhardt, Ravina (esta teve de cutucar Green para que ele imitasse os
outros), e mais 5 ou 6 habitantes. Runcard, ao perceber que Ravina e Green
votavam, apontou para os dois, e disse que como eles não eram habitantes da vila,
não poderiam votar. Com semblantes tristes, os dois abaixaram os cotovelos.
Ravina esperava que mais alguns tomassem coragem e votassem a favor, pois
parecia ser uma vitória esmagadora do não. Ela entendera os planos de Vanhardt:
ao mesmo tempo em que ele pretendia libertar sua vila, queria chamar a atenção de
Mondovar para que ele voltasse até Crivengart. S ó através de Mondovar chegariam
até S elena, pois ele certamente a mantinha em cativeiro. O grande problema seria
derrotá-lo, e o seu exército. E mais difícil ainda, extrair tal informação dele.
O filho da deusa do gelo já ia admitir a derrota, e sair decepcionado de
Crivengart, quando Oswaldo novamente tomou a palavra.
Pessoal, volto a deixar clara a proposta da excelentíssima e digníssima Léia, a
deusa do gelo. Ela está disposta a ajudá-los contra Mondovar, mas é óbvio que
vocês devem deixar ser ajudados. A credito piamente que Vanhardt, aliado às forças
de minha D ama, formarão uma frente respeitável perante Lord Mondovar.
Respeitável, muito, muito respeitável!
Pouco a pouco, novos braços foram sendo levantados, dando mais ânimo para
Vanhardt. Chegaram a uma soma de 18 braços levantados, contra 22 abaixados.
A inda sim era uma derrota. O que o jovem não esperava, foi o que aconteceu em
seguida. Um antigo amigo, ou inimigo, desde os seus tempos de criança, Rufus,
ergueu o braço. Rufus estava muito mudado: rosto mais largo, barba vermelha
cobrindo cada centímetro da mandíbula e bochechas, cabelos da mesma cor que a
barba, tocando os ombros. Crescera bastante também, naquele momento não se via
alguém maior, e mais largo: os músculos de seus braços pareciam melões de tão
avantajados. Rufus cutucou a moça sentada ao seu lado, e que tinha um bebê no
colo (provavelmente a mulher e filho de Rufus), que de cara amarrada também
aderiu ao "sim". A s somas agora se igualavam: 20 braços levantados contra 20
abaixados. Vanhardt cumprimentou Rufus discretamente, com um sorriso nos
lábios, sinceramente agradecido. O seu antigo inimigo fez o mesmo.
É, então temos um empate. D esse modo, serei obrigado a passar a decisão para
a mesa dos delegados, que no caso são Lavínia, Thomas, e eu próprio - disse
Runcard, despreocupado.
Vanhardt gemeu irritado, pois já sabia o resultado da decisão. Runcard e dona
Lavínia eram obviamente contra qualquer tipo de insurreição, apenas seu pai,
provavelmente, seria a favor. E de nada adiantaria discutir, dizendo que não cabia à
mesa dos delegados a decisão, pois não tinha argumentos. A primeira votação fora
empate, e eles precisavam de um novo tipo de votação para desempatar.
Q uem é a favor de nos rebelarmos, levante a mão, e quem for contra, mantenha-
a abaixada.
Thomas foi o único a levantar a mão, com tristeza. A ntes, entretanto, que
Runcard batesse o martelo, outra mão se ergueu, e foi a do próprio Runcard.
N aquele momento, a surpresa não achou lugar dentro da sala, de tão saturada, e
fugiu pela fresta do alçapão, fazendo um pernilongo do lado de fora erguer as
anteninhas. Perplexo, e mais exagerado que os outros, Green grunhiu:
Mas que merda é essa? Runcard mudou de lado? A lguém me explica o que está
acontecendo?
É muito simples, errr... D uende. A cabei me convencendo que um dia ou outro,
alguém iria acabar se rebelando, e entendi que é melhor contar com a ajuda de
Vanhardt, e sua mãe, contra nossos inimigos. S ei que é uma loucura, mas enfim,
você venceu Vanhardt. S e for para morrermos, que seja com honra, e não
definhando como jumentos atolados.
Um urro de alegria percorreu o aposento, e muitos deram tapinhas nas costas
felicitando Vanhardt e seus companheiros. A ntes que ele saísse pelo alçapão,
Rufus tocou o seu braço, e murmurou:
Escute bem... N a infância tivemos nossas desavenças, e talvez tenha o ferido de
algum modo. Peço desculpas por isso. A gora minha família e eu, além de
Crivengart, conta com você e seus poderes. S e não for capaz de fazer o que
prometeu, juro que eu mesmo irei provocar a maior quantidade de dor possível
nesse seu corpo minúsculo - o rosto de Rufus revelava a verdade em suas palavras,
porém não deixava de transparecer uma pontada de esperança.
N ão se preocupe, Rufus. S e eu falhar, provavelmente já sentirei esta dor antes
de morrer - Vanhardt sorriu ironicamente.
O s habitantes da vila empurraram o alçapão pra fora, e levaram Vanhardt e
seus amigos para fora, agitados. Até aqueles que tinham votado contra, sentiam-se
empolgados com a possibilidade da vitória, e da liberdade. Thomas arredou sua
cadeira pra trás, e levantou, tocando gentilmente no ombro de Runcard.
Confio no meu filho. O brigado por fazer o mesmo - o pai de Vanhardt deu um
sorriso, e não disse mais nada. A quele era seu jeito, poucas palavras, mas muita
sinceridade e coragem. Saiu do porão sem fazer muito barulho.
O s últimos a restarem no aposento foram Runcard e dona Lavínia. A senhora
idosa mordia os lábios, e enrugava a testa, juntando as sobrancelhas,
profundamente irritada e insatisfeita.
Q uem é você para dar crédito a um rapazinho mimado e orgulhoso? A cabou de
decretar o fim de Crivengart.
N ão seja inocente, minha cara - a voz de Runcard tornara-se fria e calculista, e
seu rosto fechara-se numa expressão sombria. - Eu nunca faria nada que
comprometesse a nossa sobrevivência. Preste bem atenção: eu não acho que
Vanhardt possa derrotar o soldado que vigia o monumento. Lembra como este
matou nossos companheiros sem se mover? O mesmo acontecerá com o filho de
Thomas. Depois disso, diremos que o rapaz agiu por conta própria, e imploraremos
misericórdia. Pense bem, de um modo ou de outro, esse garoto "mimado e
orgulhoso" iria acabar despertando uma revolta. Com a atitude que eu tomei, ele
será morto, não nos causando problemas, e também servindo para acabar de vez
com a vontade desse povo de se rebelar.
Hmmmm, você é mais astuto que uma raposa velha, Runcard! A minha única
preocupação é se realmente seremos perdoados...
Ah, fique tranquila Lavínia. O soldado preferirá ignorar a revolta de uma pessoa
isolada, não contando nada aos seus superiores, e fingindo que presta um bom
serviço. Melhor manter seus comandantes tranquilos, do que ter de fazê-los voltar
irritados a um vilarejo como o nosso. Eu não gostaria de ter um comandante como
Mondovar irritado.
D epois de olharem para os lados, ajeitarem os cabelos e as roupas no corpo,
Lavína e Runcard saíram do porão. Por um descuido, não tomaram conhecimento
de um pequeno vulto, que debaixo de uma das cadeiras escutou a toda conversa,
enquanto procurava por uma galinha fujona. A pós alguns minutos, e certo de que
ninguém mais estaria próximo, Green se esgueirou para fora de seu esconderijo e
saiu correndo atrás de Vanhardt.
Capítulo LIV - Mais do que Velocidade e Precisão
Longe dali e algumas horas mais tarde, momento em que a noite já cobria toda
a terra do gelo, os pouco mais de duzentos crivengartenses comemoravam a vitória
ao redor de três fogueiras. Eles fincavam espetos na terra obliquamente, a menos
de um metro do fogo, permitindo que as grossas coxas de ovelha fossem assando
aos poucos, com apenas o calor. Um barril de cerveja fora aberto, e era servido em
grandes canecas de ferro. Rufus aproximou-se montado num cavalo negro, de pêlo
devidamente escovado e porte robusto, seguido por dois amigos que também
montavam garanhões. Puxando as rédeas e obrigando o cavalo a parar, ele passou a
cutucar os aldeões com as esporas, e a gritar com eles:
Ei, o que deu em vocês? Esqueceram-se de que Mondovar pode estar aqui a
qualquer momento? Não é hora de festejar, e sim de trabalhar!
Mas senhor Rufus, filho de Runcard, estamos apenas alegres com nossa
pequena vitória. A proveitamos até para agradecer a mãe de Vanhardt, pois a deusa
do gelo nos abençoou. - Um velho, cuja boca contava com apenas três dentes
sobreviventes, foi o único que teve coragem para argumentar com Rufus.
Podem fazer isso depois que derrotarmos Mondovar... se isso for possível! - a
última frase não passou de um muxoxo, e Rufus füstigou a fogueira com uma
espada longa, jogando a lenha na neve. D epois desceu do cavalo e passou a jogar as
canecas de cerveja e a carne dos habitantes no chão, gritando para que
trabalhassem.
Uma mão deteve a tentativa de Rufus de empurrar o velho banguela, e quando
o filho de Runcard se virou, pronto para disparar impropérios contra o
intrometido, encontrou o rosto de seu antigo inimigo dos tempos de criança:
Vanhardt. Balbuciando palavras sem nexo, Rufus soltou o velho.
Vanhardt, que bom vê-lo de volta! Inspirado em seu discurso, estava justamente
animando os nossos vizinhos a se juntarem a nós, para construirmos defesas na
vila. Não concorda que seria um abuso festejar quando o perigo está tão próximo?
N a verdade não, Rufus. Eu não concordo. A cho que faz muito bem
comemorarmos a vitória de hoje, mesmo que o dia de amanhã seja incerto. I sso irá
aumentar o moral de nossos amigos, e a noite proverá um descanso que há muito
eles anseiam. Estou certo de que amanhã estarão muito mais dispostos, e renderão
mais do que se passassem a noite trabalhando. Recomendo que você faça o mesmo
- apontando o indicador para a pilha de lenha apagada, Vanhardt disparou uma
bola de fogo do tamanho de uma laranja, reacendendo a pira. O s aldeões deram
vivas, e o velho banguela agradeceu humildemente. - A lém disso, esta talvez seja a
última ocasião de festejarmos. Vai negar isso a eles? - a última frase foi
devidamente baixa, para que apenas Rufus escutasse.
Você tem razão - Rufus se ajoelhou em frente a Vanhardt, e fez sinal com a
cabeça para que os dois que o acompanhavam se juntassem a ele. - Obrigado!
A ceitarei de bom grado seu agradecimento se não se ajoelhar mais - o filho da
deusa do gelo pôs Rufus de pé - N ão sou nem um rei, nem um deus para que me
trate dessa maneira.
É... É claro!
A festa reiniciou, e logo um trio de aldeões trouxe dois tambores e uma flauta, e
passaram a tocar músicas alegres. Vários crivengartenses puxaram os pares para a
dança, e o clima da vila voltara àquele dos anos mais felizes. lovens mulheres
observavam Vanhardt, esperando que ele convidasse qualquer uma delas para a
dança. O rapaz, entretanto, não se esquecera de sua esposa, e não se permitia um
contato mais íntimo com outra mulher. Green, ao contrário, dançava com todas as
humanas que encontrava, e entornava uma caneca de cerveja atrás da outra.
Pegando um pedaço de carne, e olhando ao redor, Vanhardt encontrou Ravina
sentada sobre um bloco de pedra negra, ruína do obelisco, perto de uma das
fogueiras. Ele juntou-se à Guardiã, oferecendo um pedaço de carne, e perguntando:
Ravina, você viu meu pai? Ele não está aqui.
O brigada - agradeceu Ravina antes de pegar um naco da carne. - S eu pai disse
que ficaria com Erick em casa, pois a noite está muito fria. Ele pediu também para
que você ficasse aqui com todos, em vez de voltar para casa. S eria falta de
educação, e como eles também necessitam de você, e vice-versa, a melhor
alternativa é fortalecer esses laços através de uma confraternização.
Meu pai é um homem sensacional - os olhos de Vanhardt derramavam
sinceridade. - Mesmo sozinho, ele conseguiu me criar, enfrentando tantas
dificuldades. E nunca reclamou de nada! Até hoje ele me ajuda um bocado.
Eu notei que vocês dois se dão bem. A liás, lembrei-me agora de sua luta contra
Rogudim, e algo permaneceu sem explicações. Você disse que mesmo se recebesse
um golpe no pescoço, ficaria vivo, em virtude de uma dificuldade de morrer
semelhante aos deuses...
Há!Há!Há! Ah, aquilo foi um blefe. Eu posso ter poderes, mas não desse tipo. Se
não tomar cuidado, posso morrer como qualquer humano comum. Foi uma sorte
Rogudim ter acreditado,
É, foi mesmo. E como soube da traição de Runcard?
A quilo foi mais fácil, Green me contou. O lha Ravina, eu protelei um pouco uma
conversa com você, por temer a sua reação, porém não posso adiar mais. É um
assunto seríssimo.
A Guardiã se escondeu debaixo do capuz, e cruzou as mãos delicadamente.
S empre que ela fazia assim, se fechava, Vanhardt podia sentir uma frieza sendo
irradiada.
Pode falar.
D aqui há cerca de uma semana, o exército do traidor, liderado por Mondovar,
chegará em Crivengart. Será uma batalha como nenhum de nós dois, Green ou Lila,
e muito menos os moradores daqui presenciaram anteriormente. D e fato, o que
realmente me preocupa são os aldeões, que não podem se defender,
Vanhardt, eu já te conheço há algum tempo, e sei quando está rodeando algum
assunto. Como diria Green, "desembucha" - mesmo a piada não eliminou o ar frio
de Ravina.
Certo. Eu não quero que você lute ao meu lado. N em você, nem Green, e
nenhum dos aldeões. Há um celeiro que pode muito bem abrigar todos com folga,
e você ficaria encarregada de defendê-los.
E pretende enfrentar os inimigos sozinho?
Claro que não. Logo minha mãe enviará criaturas para nos ajudar. A inda há
tempo para os preparativos.
Não vejo de onde tirou essa idéia. De qualquer forma não farei o que me pede.
Eu sabia que você iria dar problema.
Escute aqui, meu rapaz, - a Guardiã se levantou e saiu debaixo do capuz,
colocando seus olhos cor de esmeralda tão perto dos de Vanhardt, que quase se
beijavam - problema eu lhe darei se não me deixar pagar minha dívida. D esde o dia
que salvou meu povo, carrego o peso dessa dívida nas costas. A gora que tenho a
oportunidade de me libertar dela, ajudando o seu povo em troca, não recuarei.
Lutarei sim ao seu lado, mesmo que isso signifique a minha morte. Prefiro deixar
de existir a viver sentindo-me culpada, e com a desonra ferindo o meu espírito. E
nada que diga me fará mudar de idéia.
O filho da deusa do gelo chegou a sufocar com tamanha firmeza e decisão que
transbordavam dos olhos da Guardiã. A o mesmo tempo em que se sentia
desapontado por não poder protegê-la, admirava-se pela coragem da guerreira. E
obviamente, ela era uma força importante a ser somada na luta contra Mondovar.
Que assim seja! Tomara que não nos arrependamos depois. Agora vamos cuidar
daquele baixinho verde, que já deve estar tropeçando nas próprias pernas após
tanta cerveja.
Capítulo LIX - Preparativos
Lorehardt era o terceiro filho mais velho de Evans J andeler. O sol mal deitava
seus primeiros raios dourados sobre o horizonte e o filho mais impetuoso de Evans
se esgueirou atrás de uma casa próximo à parede sul da muralha de gelo, de onde
podia enxergar através das frestas das lanças. D eixou seu escudo e espada
roubados da vila sobre a neve, murmurando impropérios relativos ao
equipamento. A s armas produzidas por Greylock eram de qualidade muito inferior
àquelas que Rufus, S tevens, Bolha e Tagh carregavam. Era verdade que as espadas
portadas pelos melhores guerreiros da vila foram compradas no mercado de
D aicevalor, mas bem que o velho Greylock podia se esforçar para fazer itens mais
bem acabados. N aquele momento, tudo que Lorehardt queria era se dedicar a
pensamentos inofensivos como esses. D esde a madrugada, quando o som agudo
do sino colocado no centro da vila alcançou os ouvidos dos pouco mais de duzentos
aldeões, indicando que Mondovar e seu exército haviam chegado, e ao mesmo
tempo pondo o lugar enlouquecido, o filho de Evans não se sentia bem.
D iferentemente de seu pai, um covarde na opinião de Lorehardt, ele queria fazer
como Rufus, S tevens e os outros. S ubir num cavalo, pegar uma espada ou um
machado, e lutar contra qualquer criatura que invadisse sua vila.
O barulho dos tambores ribombando longe, talvez dois ou três quilômetros, e
uma visão fragmentada, montada pelos retalhos das frestas entre as lanças de gelo,
de um exército que ocupava quase todo o horizonte, aumentaram a ansiedade de
Lorehardt. Enxugou o suor da testa com a manga da camisa, e respirou
profundamente, tentando abrandar as batidas nervosas de seu coração. Voltou sua
mente para os pensamentos inocentes. O pai de Lorehardt nem ousara convencer
seus dois irmãos mais velhos a não irem para a batalha, mas só faltou amarrar o
garoto na cama. D elmécius era apenas cinco anos mais velho que ele, e Karl, dois!
A lém de tudo com dezesseis anos de idade ele já era um adulto para os padrões da
terra do gelo. A desculpa de que deveria ficar dentro do celeiro, para proteger suas
irmãs e a mãe ao lado do próprio Evans era obviamente fruto da covardia. D isposto
a não manchar a honra de sua família, o rapaz roubou uma espada e escudo
displicentemente encostados a uma parede do celeiro, provavelmente esperando
pelo dono que se despedia da esposa ou filhos. O lhando para os lados, e
percebendo que os outros estavam ocupados demais para notar a sua fuga, ele saiu
do celeiro e correu para perto da muralha sul, de onde agora podia avistar o
exército inimigo.
D epois de esticar o pescoço, e fixar os olhos, ele conseguiu enxergar Vanhardt.
Esse sim era um verdadeiro herói. Q uando Lorehardt estava ajudando os outros a
preparar o celeiro, ouviu boatos de como antigamente o filho da deusa do gelo era
ignorado, e por vezes maltratado pelos aldeões. E, no entanto, mesmo depois de ter
passado por essas mazelas, ele colocava sua vida em risco mais de uma vez para
salvar os vizinhos. O filho da deusa do gelo, seu campeão, estava quieto, com a
poderosa Flama fincada no chão, e olhando para os inimigos, enquanto uma leve
brisa insistia em manter seus cabelos atrapalhados. S erá que Vanhardt não sentia
medo? Lorehardt achava que não.
O som dos tambores só fez aumentar, e Lorehardt podia ouvir os passos dos
soldados e o farfalhar das armaduras, abafados por gritos e a gargalhadas
macabras. Um nó se fez na garganta do garoto quando este viu o que dali a poucos
minutos poderia estar passando por cima da muralha. O exército inimigo era
realmente muito grande, e se tornou impossível ver os soldados que estavam nos
extremos leste e oeste da linha de frente, devido à distância. A lém disso, uma força
sinistra, parecida com aquela que os oprimia quando o obelisco estava de pé,
porém vinte vezes mais poderosa, pesava sobre os ombros do garoto.
D e repente, começou a se sentir nauseado, e logo um jato de vômito jorrou da
sua garganta maculando a neve e formando uma poça. S eus membros tremiam, e
um vazio tomava conta de seu peito, esmagando o pequeno coração do garoto.
Ele continuava ouvindo os tambores e o marchar dos inimigos, principalmente
suas gargalhadas, que era o pior de tudo. D epois de vomitar novamente, um suco
ralo, esverdeado, fruto de um estômago vazio, sentou-se no chão com lágrimas nos
olhos, e segurando a cabeça com as mãos. S entia medo, muito medo, e achava que
nada conseguiria tirá-lo dali. Tinha medo de morrer, e sabia que esse seria seu
destino se ali permanecesse. Como Vanhardt e aquela mulher, a Guardiã, tinham
coragem de enfrentar sozinhos todos os inimigos? Lorehardt começou a chorar e
soluçar, agradecendo no fundo de seu coração o filho da deusa do gelo e seus
amigos. D epois bochechou um pouco de neve para tirar o gosto de vômito, e
levantou-se, ainda tremendo. Rapidamente pegou a espada e escudo estirados no
chão, e correu furtivamente entre as casas, para não ser visto, voltando para o
celeiro e a sensação de segurança.
Lá dentro, D ona Lavínia, uma mulher seca e rancorosa, se encontrava sentada
com os braços cruzados sobre o peito. Até hoje ela remoía mágoas a respeito de
Runcard, seu parceiro de maquinações. A quela raposa velha fugiu da vila quando
se viu ameaçado, e nunca mais deu as caras, deixando ela ali, sozinha. N em mesmo
o apoio de seus filhos, como Evans, a deixava confortável. S abia que todos na vila a
olhavam de lado, assim como faziam com o filho da deusa do gelo antigamente.
A quele rapazinho atrevido se achava o salvador do mundo, e havia condenado
Crivengart à completa destruição. Certamente todos no celeiro seriam meros
cadáveres dentro de algumas horas, quem sabe minutos. S e seus vizinhos não
fossem tão burros, e enxergassem o mal que aquele falso filho de uma deusa trazia,
já teriam expulsado-o, além do pai e do bebê.
A velha, extremamente perspicaz, não teve dificuldades para notar seu neto,
Lorehardt, um rapazinho curioso e ordinário, entrar no celeiro tentando se
disfarçar entre tábuas soltas. Logo o garoto estava sentado ao lado da mãe, Mirtes a
inútil esposa de seu filho. S ua nora era tão incapaz de criar filhos que por causa
disso produzia aberrações como Lorehardt, que às vezes pensa ser o dono do
universo. D ona Lavínia sentiu um frio percorrer sua espinha, deixando-a inquieta,
assim como os outros aldeões, que repentinamente começaram a murmurar, e
algumas crianças a chorar. O fim estava próximo. Mesmo seus ouvidos ruins eram
capazes de perceber as batidas cadenciadas de tambores, e gritos ecoando pelo ar.
A ntes de se deitar, e esperar pelo fim, ela viu Thomas, o pai daquele que era
culpado de tudo isso, pegar uma tábua retangular, prender numa das paredes, e
depois pedir algumas crianças, de seis a dez anos, que fizessem um círculo.
— Muito bem meninos e meninas, isso mesmo, sentem um do lado do outro.
N ão precisam chorar! Vocês já são grandinhos. Prestem bem atenção no que vou
fazer aqui... - Thomas pegou um pedaço de carvão que havia espirrado da lareira
improvisada, e passou a rabiscar na tábua de madeira. - Vou ensinar vocês a ler,
tudo bem? - depois murmurou consigo mesmo - J á passou da hora de criar uma
escola nessa vila.
O pai de Vanhardt passou a desenhar figuras estranhas no quadro, e pedia para
as crianças repetirem o som que elas significavam. A ssim, conseguiu fazer com que
todos, até mesmo os pais se distraíssem, e também dessem os primeiros passos no
caminho da leitura. O s comentários de que as tropas da deusa do gelo não viriam, e
de que o jovem Vanhardt sozinho não conseguiria deter Mondovar, pararam de
correr entre os aldeões, fazendo com que Thomas se sentisse plenamente satisfeito.
Uma distração como aquela serviu melhor que o imaginado para diminuir a
ansiedade dos aldeões, e impedir que o pânico e o desespero os fizessem agir por
impulso. A gora cabia a seu filho, e a deusa do gelo, cumprir a parte deles e salvar a
vila.
Longe dali, Vanhardt permanecia quieto, como uma estátua, observando o
magnífico exército de Mondovar marchar como uma nuvem de gafanhotos
famintos em direção à sua vila. Contavam certamente com mais de trinta mil
soldados, três vezes além do que esperavam. A carruagem de medidas
desproporcionais, e maior do que um prédio, também estava no meio deles. A
bizarra estrutura móvel emanava uma força maligna que somada àquela gerada
pelos espectros poderia reduzir um homem comum às cinzas ao tirar-lhe as
esperanças e a vontade de lutar. O filho da deusa do gelo não sabia como a Guardiã
estava se virando para não sucumbir a essa ameaça, porém ele sentia cada célula de
seu corpo vibrando numa polaridade oposta, emitindo uma força positiva, e
mergulhando sua alma num mar de esperança e força de vontade. Q uanto mais
eles tentavam arrancar sua energia, mais esta crescia e ardia furiosa, nascendo na
base de sua espinha, e aguardando pacientemente o momento de explodir.
D e repente, o exército invasor parou de marchar assim que o som dos tambores
morreu. O s únicos ruídos que se faziam ouvir eram o da brisa uivando baixo e o de
flocos de neve que caíam timidamente, tocando o chão com doçura e se
desmanchando imediatamente. Vanhardt girou sua cabeça para a esquerda, e a
Guardiã que estava a pouco menos de dez metros de distância o encarava
interrogativamente. Ele balançou a cabeça em sinal positivo, e Ravina se agachou
sobre a neve iniciando a transformação em Lázarus. A bela guerreira agora era
uma criatura semelhante a um lagarto, com pele de cobra e garras afiadas, além de
uma boca comprida, capaz de estraçalhar ossos com uma mordida.
O silêncio anunciava o destino fúnebre reservado para todos que se
encontravam sobre aquele campo. O filho da deusa do gelo esperava pelas tropas
de sua mãe, que até o momento nem deram sinal. Coincidentemente, uma pomba
branca pousou no ombro de Vanhardt, esticando a patinha curta, que carregava um
papel amarrado. O rapaz desfez o nó com cuidado, e retirou o papel. A pesar de não
saber ler, as palavras ali desenhadas saltaram para dentro da mente dele, e a voz de
Léia se fez ouvida:
"Não se desespere, logo estaremos aí. Boa sorte!"
— Atrasada... Mulheres! S erá que são todas iguais? - Vanhardt resmungou
baixinho, e amassou o papel numa bola, atirando-a pra frente. A pomba levantou
vôo, e retornou para o céu resplandecente. - Tomara que ela não se atrase demais!
D o outro lado, as tropas de Mondovar se remexiam como cães famintos,
prontos para ir atrás de sua saborosa refeição. Uma trombeta soou por cerca de
meio minuto, e os gritos das criaturas agora foram mais altos e mais fortes, devido
à expectativa da batalha iminente. O s tambores voltaram a soar, mas num ritmo
diferente, acelerado. O s espectros amaldiçoados se posicionaram com as espadas
em punhos, e pernas flexionadas. O último som a atingir a terra do gelo antes do
confronto foi o da trombeta, que ao ser tocada pela segunda vez serviu de estopim
para uma explosão de gritos e berros. Um mar negro de criaturas açoitado por
terrível tormenta passou a mergulhar na direção da pequena vila de Crivengart.
A hora chegara, e não havia mais como voltar atrás. Uma distância de menos de
quinhentos metros separava Vanhardt e Ravina dos inimigos, e foi encurtando
rapidamente. Vanhardt continuou firme como uma estátua, olhando Flama fincada
no chão, e aguardando o momento certo de agir. Ravina já na forma de Lázarus
lambia suas presas, e preparava-se para partir pra cima dos invasores. A distância
diminuiu para trezentos metros, e os dois amigos permaneciam imóveis. O s berros
iam aumentando de volume, e pareciam vir de uma única criatura grotesca, que
avançava como uma serpente de escamas negras e destruía a terra por onde
passava. O filho da deusa do gelo abaixou-se, pegando dois fios quase invisíveis no
chão, uma com cada mão. Não podia mais esperar.
Capítulo LXII - Dragão de Fogo
A sensação era familiar, assim como o peso de uma tonelada para cada
partícula do ar. Vanhardt nunca estivera assim tão perto de Mondovar, a dez
passos de distância, no máximo. O filho da deusa do gelo arfava, seu pulmão
travava um duelo a cada inspiração para captar miseráveis golfadas de ar. O
coração do rapaz era uma bomba que explodia a cada batida, como se tivesse de
empurrar o mesmo volume de sangue que um rio. Todo o seu corpo conspirava a
fim de trabalhar no limite extremo, para que ele não caísse ajoelhado aos pés
daquele ser. A mera presença era tão marcante e aterradora que mesmo sendo um
semideus, Vanhardt sofria seus efeitos. O s sentidos mais aguçados que o jovem
adquirira no meio da batalha permitiram que ele percebesse uma discreta tensão
no braço direito de Mondovar, e uma respiração perfeitamente ritmada, que
subitamente se interrompeu. Ele atacaria.
A ntes que Vanhardt erguesse Flama numa posição defensiva, o líder do exército
de espectros amaldiçoados apontou o indicador para o céu, e uma chuva de
relâmpagos caiu sobre uma centena de soldados esqueléticos que os circundavam.
Vanhardt arregalou os olhos, assustado por Mondovar atacar seus próprios
guerreiros, e também por aquele ataque tão rápido e aparentemente simples ter
sido capaz de derrotar a mesma quantidade de inimigos que Vanhardt, quando
este liberava o dragão de fogo.
— N osso duelo seria muito pobre se uma platéia horrenda como essa o
assistisse - disse Mondovar, em sua voz cavernosa e que manteve os outros
espectros afastados quase vinte passos. - Posso dizer que você tem me
impressionado muito ultimamente meu rapaz, mais do que eu admitiria. I nsultou-
me quando conversamos através dos espelhos, pôs abaixo meu obelisco depois de
derrotar o soldado que o guardava. D estruiu uma quantidade nada desprezível do
meu exército, além de ter me obrigado a descer do trono e vir enfrentá-lo
pessoalmente. S ão proezas que impressionariam até os deuses! - a última frase
soou mais metálica que as outras, e continha uma discreta ironia.
Q ue bom, Mondinho! Como você demorou a aparecer, eu jurei que estava se
borrando de medo! - Vanhardt passou a mão no seu traseiro, a fim de representar
visualmente a piada. - A dmita, esses soldados magrelos não são de nada! Eles
estavam servindo de ótimo treino, pois eu não tive muitos alvos móveis para testar
Flama. Tomara que você seja um pouco mais forte que eles, senão serei obrigado a
vendar meus olhos e amarrar um dos braços pra trás para termos uma luta justa!
É triste ver como uma pessoa medíocre como você se utiliza de ameaças infantis
para tentar me desestabilizar. N ão há crianças aqui, meu caro, e suas palhaçadas
não me fazem rir. S inceramente, esperava mais de um homem que me dera tanto
trabalho.
Tudo bem, Lorde Mondovar, se quer ameaças sérias, irei despejá-las! - o tom
zombeteiro de Vanhardt sumira completamente, só restando em sua voz seriedade
e frieza. - O nde está a minha esposa? Q uero que você a entregue agora, e reze para
ela não ter sofrido quaisquer maus-tratos!
O inimigo de Vanhardt, vestindo a sua imponente armadura negra, ficou quieto
por alguns segundos. O filho da deusa do gelo daria tudo para naquele momento
observar as feições de Mondovar, encobertas pelo elmo.
A pesar de não lhe dever satisfações, senti... hum... vamos dizer, "pena" de você,
e por isso lhe darei respostas. S ua esposa continua no mesmo lugar de antes, pois
nada mudou. Às noites ela ainda chama por você, e eu a flagro chorando inúmeras
vezes. Mas posso garantir que nos últimos tempos ela anda meio esquecida...
Basta, covarde! A rrancarei minhas respostas quando colocar o seu pescoço
contra a lâmina de minha espada. Prepare-se! - Vanhardt segurou Flama firme
entre as duas mãos, fechou os olhos, e se concentrou.
Q ue assim seja, filho de Léia! - Mondovar cruzou os braços, abriu um pouco as
pernas e flexionou discretamente o joelho. - Vamos ver o que é capaz de fazer.
Darei a oportunidade de um ataque, porém um apenas.
A s moléculas do corpo de Vanhardt passaram a vibrar como um ser
independente, dotadas das mesmas capacidades que possuíam unidas. Ele podia
contar cada respiração sua e do seu adversário, além dos movimentos de cada um
dos milhares de espectros ao seu redor. A leve brisa que soprava na sua nuca,
assim como um floco de neve que beijava a testa do elmo de Mondovar, também
era notada. N ada que acontecia num raio de um quilômetro passava despercebido
aos sentidos do filho da deusa do gelo. A quele estado de êxtase, de plenitude e
união com o universo, estava muito mais próximo do divino que do humano, e por
isso
Vanhardt julgou que assim era como os deuses se sentiam. Ele então se
concentrou para que todo o seu corpo e sua alma o ajudassem a criar o maior e
mais poderoso dragão de fogo. S eu inimigo, por arrogância, permitiria que ele
desferisse um golpe. A penas um. E ele não queria receber o contra-ataque de
Mondovar, pois seus sentidos o alertaram de que o S upremo Lorde mantinha
guardada na bainha, a arma mais poderosa de Kether: a Ceifadora de Vidas. A
mesma arma que por pouco não colocou fim à existência de sua mãe.
O dragão de fogo repetiu a mesma dança de antes, e passou a circundar os pés
de Vanhardt e foi subindo em espiral pelo seu corpo. D esta vez a serpente
flamejante se comunicava telepaticamente com o rapaz, que não poderia dizer até
que ponto ela era um ser independente, ou parte dele próprio. N o fundo, seu
íntimo lhe dizia que o dragão era uma manifestação do divino dentro dele, e por
isso era, e ao mesmo tempo não era, ele próprio. Vanhardt continuou se
concentrando, captando e compartilhando toda a energia que era capaz, e o dragão
crescia em força e tamanho. Q uando chegou à cabeça de Vanhardt, já era cerca de
três vezes e meia maior que o filho da deusa do gelo. A brindo os olhos, e
completamente ciente de onde se situava no universo, e o que fazia, Vanhardt
abaixou lenta e deliberadamente a ponta da lâmina de Flama, pondo-a na direção
de Mondovar. O dragão de fogo obedeceu a uma ordem velada e instintiva,
saltando da cabeça de Vanhardt para o seu braço, e depois se atirando para a frente
na plenitude de seu fulgor e imponência.
O ar entre os dois adversários queimou e tingiu-se de laranja, e à medida que o
dragão de fogo o cruzava contorceu-se, revelando uma profusão de milhares de
tons que variavam do amarelo puro como ouro até o vermelho sangue. Centelhas e
fagulhas cintilavam como numa chuva de vaga-lumes e banhavam o solo branco,
como se fizessem questão de decorá-lo e torná-lo um palco digno do duelo entre as
duas potências. Q uando o dragão atingiu Mondovar, o fez numa força e velocidade
magníficas, produzindo um estrondo mais forte que o de um trovão, e que poderia
ser ouvido a dez mil passos de distância. Uma nuvem de fumaça de onde
pipocavam bolhas amarelas envolveu Mondovar, impedindo a visualização do que
aconteceu. Quieto por alguns segundos, e com uma expectativa crescente dentro do
peito, Vanhardt aguardou a fumaça baixar. Esta foi teimosa, e tapou qualquer
possibilidade de vislumbre num primeiro momento - segundos mais tarde,
entretanto, tornou-se mais condescendente, e permitiu que a luz do sol revelasse o
que acontecera.
Era incrível e ao mesmo tempo fabuloso. Vanhardt não se segurou, e sorriu
abertamente ao ver que o S upremo Lorde Mondovar continuava de pé na mesma
posição de antes, com a Ceifadora de Vidas erguida em posição defensiva, sem um
mínimo arranhão na armadura. A situação era tão absurda e inverossímil que o
filho da deusa do gelo pôs-se a gargalhar francamente, dando tapas no joelho com
a mão livre. Como podia ser? O golpe mais poderoso do arsenal de Vanhardt
simplesmente não surtira mínimo efeito, e o inimigo preparava-se para contra-
atacar com a arma mais mortífera de Kether.
Foi uma bela tentativa, Vanhardt. Contudo, pra minha sorte, e graças a essa
espada mágica, infrutífera - a voz de Mondovar continuava metálica e fria,
provando que realmente não se abalara com aquele ataque. - Eu dei uma
oportunidade e você desperdiçou-a, portanto farei como o combinado. Proteja-se se
puder.
O guerreiro de armadura negra cortou o ar horizontalmente com sua espada, e
diferentemente do ataque de Vanhardt, fora muito mais silencioso, e menos
espalhafatoso. E também ao contrário da investida daquele, conseguiu lançar seu
oponente a cem metros de distância, atirando um monte de neve para o alto, e
deixando-o imóvel no chão. D esde a sua criação, e até aquele dia, a Ceifadora de
Vidas matou todos os seus inimigos com apenas um golpe. Mondovar apresentava
completa consciência desse fato, e não se assustou quando viu que seu inimigo não
esboçava qualquer reação. Estava morto, sem sombra de dúvidas. O líder dos
espectros guardou a arma e virou as costas, pretendendo retornar para sua
carruagem, mas uma pontada de curiosidade assaltou-lhe ao detectar uma energia
familiar, e acabou permanecendo parado. N ão podia ser. S implesmente não
poderia ser!
Com movimentos cuidadosos, Mondovar virou-se para o local onde Vanhardt
caíra desfalecido. O rapaz estava ali, com uma ferida superficial nas bochechas de
onde escorria um filete de sangue, os cabelos desgrenhados, o peito arfando, a mão
direita apoiada em Flama que fincada no chão, serviu de bengala para que ele se
erguesse. O dragão dourado nascia aos pés do jovem guerreiro que novamente se
colocou em posição defensiva. Punho pra baixo e lâmina pra cima, Vanhardt teve
de gritar para que fosse ouvido daquela longa distância:
Você vai descobrir que sou teimoso...! - ele limpou a ferida na bochecha com o
dorso da mão esquerda, e tornou a segurar a espada. - Muito!
Vejo que sua espada também é formidável! Pelo magnetismo que detecto num
ponto específico de sua lâmina, a dois terços de distância da guarda, pressuponho
que você conseguiu bloquear a minha investida. Veremos agora se você e sua arma
são capazes de fazer o mesmo com múltiplos golpes.
O s braços de Mondovar se moveram numa velocidade tão impressionante, que
Vanhardt mal pôde ver quando ele retirou a Ceifadora de Vidas da bainha e
começou a atacar. Três golpes foram desferidos um trás do outro, e o barulho de
metal se chocando contra metal tilintou pelos campos de neve de Crivengart,
arremessando o filho da deusa do gelo algumas dezenas de metros para trás,
fazendo-o se chocar contra a paliçada improvisada de lanças de gelo. Com extrema
dificuldade, e para pura perplexidade de Mondovar, Vanhardt empurrou as lanças
quebradas pela força do impacto para o lado, e levantou-se mais uma vez,
apoiando-se em Flama. S ua aparência piorara visivelmente: apresentava
hematomas e equimoses no rosto, a roupa fora rasgada e queimada em vários
pontos, e grandes inchaços acometiam seus punhos e joelhos. Cortes de vários
centímetros de largura abundavam em seu tórax e membros inferiores, porém
mesmo ferido, Vanhardt procurava se manter na postura mais digna possível.
A rfando muito, e como se Flama pesasse uma tonelada, ele ergueu-a uma última
vez.
Mondovar teve de caminhar para frente, por alguns metros, para que ficasse
numa distância na qual fosse ouvido e ao mesmo tempo pudesse atingir o filho da
deusa do gelo. A sua arma possuía um belo raio de alcance, mas lançara Vanhardt
tão longe que acabou sendo superado. A ssim que Mondovar atingiu uma distância
que julgou adequada, sentenciou:
— O utra vez fui prepotente, e subestimei-o. Você ultrapassou minhas
expectativas. D evo admitir: é um grande guerreiro, Vanhardt Mohr D aicecriv.
Porém, como não posso permitir que essa batalha tome um rumo indesejado,
acabarei com sua vida imediatamente. N ão se preocupe. O golpe que utilizarei,
chama-se "O último suspiro", e foi-me ensinado diretamente pela divindade
superior da qual sou mensageiro. É um golpe que só pode ser utilizado uma vez em
toda a vida, mas possui um efeito extraordinário. A ssociado também ao poder da
Ceifadora, posso garantir com absoluta certeza que não mais o verei respirar daqui
a alguns segundos.
Foi tudo muito rápido, impedindo qualquer reação de Vanhardt, e se não fosse
o seu estado de percepção aumentado, ele não faria a mínima idéia do que
acontecera. Mondovar ergueu a Ceifadora de Vidas para cima, e um relâmpago
vindo dos céus atingiu em cheio a ponta da arma. Em seguida, ele apontou-a para
frente, e uma esfera negra, do tamanho de um crânio, e com rajadas elétricas na
sua superfície, foi arremessada contra o filho da deusa do gelo. A ssim que a esfera
atingiu seu alvo, uma profunda escuridão bloqueou qualquer feixe de luz por mil
metros de raio, e durante alguns segundos nada podia ser visto. Q uando a luz
voltou ao normal, Mondovar soube que seu dever fora cumprido. N ão havia sinal
de vida do corpo inerte do filho da deusa do gelo.
Capítulo LXV - Crepúsculo de uma Batalha
S eus ouvidos zumbiam, como se uma abelha estivesse presa ao lado de cada
tímpano. E o corpo leve como uma pena - praticamente podia voar. A quela
sensação, uma velha conhecida sua, de magnetismo e importância, rodeava sua
pele, e era suave e doce, ao contrário de algumas ocasiões anteriores. Q uando
Vanhardt abriu os olhos, não se assustou ao perceber que voava de verdade, alguns
metros acima do solo. Um fio de prata ligava seu umbigo até um corpo deitado no
chão, de um homem, que ao reparar bem, era o seu próprio corpo.
Estava naquela dimensão que Lila chamara de "astral", e não se assustava por
isso. O mundo ali parecia ao mesmo tempo real e um sonho, e seus sentidos às
vezes se misturavam, como quando sentia o "cheiro das cores". A s lembranças dos
últimos momentos derrubaram alguma porta em sua mente, e jorravam como uma
cachoeira. Revivia pela segunda vez o que acontecera, porém de maneira tão
realista e intensa quanto da primeira.
Mondovar atirara uma bola negra coberta com relâmpagos em sua direção, e
por um milésimo de segundo soube que sua vida teria fim naquele instante. D e
repente, entretanto, enxergou uma luz branca, fortíssima, como se um pedaço do
próprio sol cruzasse os céus, vindo do leste. Era do tamanho de uma laranja, e
deixava um rastro branco por onde passava. Em virtude de uma velocidade
semelhante à da bolha negra, a pequena fonte de luz se chocou contra esta antes
que Vanhardt fosse atingido.
Uma micro-explosão, tão furiosa como se dois universos estivessem se
chocando reverberou dentro de um raio de pouquíssimos metros, iluminando
aquela área por uma infinidade diferente de cores, e produzindo um som como o
de um choro agudo. Mondovar em seu estado de concentração não foi capaz de ver
o que acontecera, e acreditou que seu ataque houvesse atingido Vanhardt. Este
último, por sua vez, sentira uma fração do impacto, que foi capaz de atirá-lo para
fora de seu corpo físico. N em queria imaginar o que teria acontecido se o golpe o
tivesse atingido em cheio.
A ssim que as lembranças o libertaram, ele olhou para o chão. S eus instintos o
guiavam na procura de algo que ignorava, porém quando viu, seu peito se encheu
de alegria e pavor.
Lila!!! - gritou o rapaz enquanto voava de volta para seu corpo físico, e levantava
com dificuldade.
Ele se via frente a duas opções agora: aproveitar que Mondovar virara as costas
e tentar derrotá-lo, invocando o dragão de fogo, ou ajudar sua amiga, estirada
sobre a neve, que talvez até já estivesse morta. S em hesitar entre as alternativas,
Vanhardt deixou profundas marcas na neve enquanto se aproximava da fada, e
colocava Flama dentro do braço. Ele caiu de joelhos assim que chegou ao seu lado,
e levantou-a nas duas mãos. A fadinha se encontrava exatamente igual a vira pela
última vez, com os longos cabelos verdes esticados ao lado do corpinho que usava
um vestido de folhas vermelhas, e as asas, intactas, em suas costas. Mantinha a
boca semi-aberta, e parecia dormir tranquilamente. Estacas de gelo fictícias
atravessavam o peito de Vanhardt que não sabia como reagir.
Lila, por favor... Lila, não morra! - pequenas lágrimas se formavam no canto dos
olhos do rapaz que previa o pior. - N ão ouse Lila, não ouse! S e você me deixar com
quem irei reclamar? - as lágrimas agora molhavam o vestido da fada, uma a uma.
Gemente, e revelando extremo esforço, a fada virou a cabeça para o lado, e abriu
os olhos piscando muito:
Oi... - a voz de Lila saía fraca, como se suas últimas forças se esvaíssem.
Q ue bom que cheguei a tempo... eles são lentos! - o indicador daquele ser
pequenino apontava para o céu, na direção do norte, e Vanhardt viu que figuras
brilhantes salpicavam o horizonte.
Eu vi Lila; as tropas de minha mãe estão vindo. O uça-me com atenção: irei te
curar, e tudo ficará bem... Poupe suas forças, ok? - a mão do filho da deusa do gelo
emanava uma luz amarela, quente e aconchegante, que analgesiaram os membros
doloridos da fada. A água nos olhos de Vanhardt continuou a derramar, pois ele
viu que suas energias curadoras pareciam fugir pelos poros da amiga assim que
entravam no seu corpo pequenino.
Tudo bem, Van. N ão adianta, eu sinto... N ão tenho medo de morrer. É porque
não está doendo... - Lila esforçava-se para sorrir - N ão me arrependo de nada
também. N a verdade, só de uma coisa. Vanhardt Mohr D aicecriv, eu nunca te disse
isso de maneira clara, mas... - os olhos da fada de repente fecharam, ela tremeu
num espasmo, e nada mais saiu de sua boca.
N ão!!! - O filho da deusa do gelo socou o chão com a mão diferente daquela que
tentava curar a fadinha. - Lila, volte! LILA! AH!!!
A o ouvir os gritos, Mondovar parou. N ão podia ser. Ele avaliara o adversário
anteriormente, e nenhuma energia era detectável no seu corpo. Era impossível que
Vanhardt estivesse vivo! Lentamente ele foi se virando, e se deparou com o rapaz
de pé, encarando-o com o rosto sério e banhado em fúria, segurando algo sobre a
mão direita que a distância o impedia de determinar o que era.
Mas como...? - a voz de Mondovar escapava sussurrante de trás do elmo.
Pelos deuses, isso é impossível! Ele sobreviveu!
S eu canalha miserável! O que eu fiz para você tentar tirar da minha vida tudo o
que é importante para mim? - Vanhardt apontava para Mondovar, enquanto um
dragão de fogo, agora com escamas vermelhas, brilhantes, e duas vezes maior do
que os anteriores, serpenteava em espirais nas pernas do rapaz. - O nosso duelo
ainda não terminou. Eu juro que no próximo encontro o matarei... N em que seja a
última coisa boa que eu faça na minha vida!
O dragão saltou de Vanhardt, e parou ao lado do jovem, abaixando a cabeça. Ele
era cilíndrico, com cerca de cinco metros de comprimento. D uas patas dianteiras,
próximas à cabeça, apresentavam garras incandescentes, de cor amarela. O rabo
por sua vez ia se afunilando aos poucos, e terminava com escamas liláses no seu
dorso, que resplandeciam ao contato com a luz do sol. A cabeça era retangular,
esticada para frente, mostrando três fileiras de dentes brancos como marfim.
Telepaticamente falou com o dono, explicando que seu nome era Kundalini, e que
estava ali para servi-lo. S ubindo nas costas do dragão, com a fada na mão esquerda
que continuava emitindo uma luz amarela, Vanhardt pressionou a face de dentro
das coxas contra o corpo do animal que lhe serviria de montaria. S em retirar os
olhos do inimigo, o filho da deusa do gelo cutucou as costas do dragão vermelho
com a mão livre, e alçou vôo depois de girar 180°, rumando para o norte. Falou
mentalmente com Kundalini, pedindo-o para subir o mais alto possível, e se
afastasse dali. Q ueria chegar o quanto antes no castelo de cristal, e tentar salvar
Lila.
Mondovar não esboçou nenhuma reação quando viu uma nuvem branca se
erguer assim que o dragão saiu do chão. Ele assistiu pacientemente Vanhardt
ganhar altura, e sua figura diminuir de tamanho. N ão queria reagir. N a verdade,
estava tão assustado, que não sabia como reagir. S obreviver àquele ataque da
Ceifadora de vidas só podia significar que o rapaz adquirira um poder equivalente,
se não superior, ao dos deuses. E isso era no mínimo assustador.
N o trajeto, o filho da deusa do gelo olhou para baixo, e viu a vila de Crivengart
ardendo em chamas, e o celeiro cercado por centenas de espectros. S eus vizinhos,
amigos, seu pai, e até o pequeno Erick estariam todos ali, correndo perigo. E ao
mesmo tempo Lila só resistia abraçada a um fio de vida, graças à magia Aruc vanidi.
S e salvasse sua família e os vizinhos, Lila morreria, e se tentasse fazer o inverso, as
vítimas seriam a família e os vizinhos. O jovem herói fechou os olhos, gritando em
sua alma, tentando fazer com que sua voz interna alcançasse a deusa do gelo. Por
favor, mãe, lembre-se do seu filho! Ajude-me! Eu não conseguirei sem a sua ajuda!
A ssim que abriu os olhos, viu criaturas iguais a seres humanos, com espadas
prateadas nas mãos, e longas asas de penas brancas como as de cisnes voando em
sua direção. Eram figuras magníficas, com vestes douradas, brilhando e
resplandecendo. Vanhardt contou sete deles, e notou que se tratava daqueles
"lentos", os quais Lila indicara anteriormente ao apontar para o céu. O s anjos, seres
dos quais o jovem ouvira histórias a respeito quando era criança, passaram ao lado
dele, cumprimentando-o com a cabeça, e depois seguiram na direção de onde
Mondovar e grande parte dos espectros se encontravam. Atrás deles, centenas de
Grilliardus desciam em rasantes, mirando o celeiro e já arrancando a cabeça de
inimigos nos primeiros golpes. S obre a terra, cruzando a muralha improvisada ao
norte da vila, dezenas de animais grandes e peludos, os Crivmarions, além de
milhares lobos brancos e seus parentes menores, os lobos das estepes, seguiam
furiosamente contra as tropas que se encontravam próximas ao celeiro e não foram
atingidas pelos primeiros ataques dos Grilliardus.
Léia realmente se atrasara, e muito, pelas contas de Vanhardt, porém esse era
um problema secundário a ser discutido. A fada não estava nada bem, e poderia
falecer a qualquer segundo. A ssim que Vanhardt percebeu que seus poderes não
seriam capazes de curar a amiga, ele entendeu que a única entidade que poderia
fazê-lo seria sua mãe. Ele agora voava sobre o dragão de fogo, cujas escamas
flamejantes não o queimavam, tentando chegar o mais rápido possível ao castelo
de cristal. D epois que deixasse Lila aos cuidados de Léia, voltaria para terminar a
batalha, e dar fim à vida de Mondovar.
D entro do celeiro, onde se refugiavam os últimos moradores vivos da vila,
Thomas e os outros soldados, que permaneciam de pé e lutando heroicamente, se
assustaram quando os espectros pararam de entrar no abrigo. N a verdade, estes
até mesmo deixavam o local, para enfrentarem uma ameaça externa.
É a ajuda da deusa do gelo! Até que enfim ela nos agraciou! - exclamou
Ganimex, um dos filhos de Greylock.
S e tivesse chegado antes teria sido uma verdadeira ajuda. A gora, está tentando
apenas salvar o chapéu do afogado. - D ona Lavínia se ergueu de trás de uma
mobília onde se escondia, e cuspiu no chão.
Pelo menos ela veio, e estamos salvos. D evemos agradecer por isso, pois nada
fizemos até hoje a favor da deusa do gelo! - Thomas dissipou um burburinho com
sua voz grave. - E tratem de continuar em suas posições, pois a batalha ainda não
terminou. - O pai de Vanhardt apertou o martelo entre os dedos, e manteve os
olhos fixos através da porta quebrada, onde via Grilliardus, ursos das neves e lobos
lutando contra espectros.
D o lado de fora, a batalha seguia fervendo. A s tropas de Léia chegaram com
fôlego novo, e num primeiro momento fizeram centenas de vítimas que caíam sem
oferecer resistência. A gora, contudo, a vantagem desaparecera completamente.
Q uando um espectro caía, um lobo, um urso ou Grilliardus caía junto. A s baixas
eram iguais para os dois lados, o que era muito pior para a deusa do gelo, que
apresentava um contingente cerca de trinta vezes menor. Havia algo errado. Em
tese, tanto os lobos, quanto os Grilliardus e os Crivmarions seriam mais fortes que
os espectros. Mas quando se enfrentavam em um contra um, a probabilidade era a
mesma de sair uma vítima para qualquer lado. Exceto os Crivmarions, que
destruíam dez inimigos antes de tombarem, as tropas de Léia iam diminuindo de
número a olhos vistos.
A resposta para essa pergunta era simples, e também ajudava a explicar porque
tamanho atraso de Léia para enviar seus soldados à guerra. Cada criatura da deusa
do gelo estava encubada e só ficaria pronta daí a muitos meses, ou até anos. Frente
a uma ameaça iminente, a antiga deusa da morte descarregou uma enorme
quantidade de energia divina, procurando acelerar o processo, atitude esta
denominada "carga". A carga certamente comprometeria o desenvolvimento de
suas tropas, porém era uma decisão necessária, e foi tomada sem hesitação.
A contece que Mondovar chegou um dia antes do previsto, passando uma rasteira
nos planos da mãe de Vanhardt. S e ela tirasse os soldados da encubação naquele
instante, a grande maioria faleceria. S em outra opção, ela deu uma "segunda carga"
de energia divina em suas criaturas. D esde o surgimento de Kether, e das
primeiras batalhas divinas, isso só havia sido realizado uma ou duas vezes, e com
resultados catastróficos. A s tropas nasciam malformadas, com membros em
lugares errados, imprestáveis, além de um grande número de fatalidades. Mesmo
sabendo das terríveis conseqüências, Léia assim o fez, e esperou até o último
minuto possível para tirar suas criaturas das cubas, tentando diminuir os
resultados negativos.
A s criaturas enfim nasceram, e com membros nos lugares certos, e aparência
pelo menos próxima do normal. Houve é claro uma grande taxa de mortos - no
caso, um quinto do total. A situação foi pior para sua tropa de elite, os "anjos da
morte". D os doze que haviam sido preparados, apenas nove nasceram vivos, e dois
deles morreram alguns minutos depois do nascimento. A gora que todos se
encontravam em batalha, Léia percebia que apesar de uma boa aparência externa, a
habilidade de combate das criaturas foi comprometida, e por isso elas não se
mostravam tão fortes. O número inferior do contingente poderia ser
comprometedor, visto que os espectros conseguiam manter a balança de perdas
equilibrada.
O s anjos da morte eram uma exceção aos resultados negativos gerados pela
"segunda carga". A primeira missão da tropa de elite foi salvar Ravina, que cercada
por espectros, estava prestes a ser massacrada. Eles deram rasantes circundando os
espectros, e depois desceram as espadas sobre suas cabeças e corpos deixando
meia dúzia de vítimas fatais. D epois pousaram no chão e fizeram um círculo ao
redor do lagarto, e como se fossem uma criatura única, desfiavam golpes atrás de
golpes, de maneira rítmica e simétrica, como uma equipe, e destruindo dezenas de
inimigos em poucos segundos. S eguindo a ordem de um deles que usava fitas
vermelhas amarradas no braço, e aparentemente era o líder, três anjos alçaram vôo
e passaram a atacar os flancos, vindo por trás, numa estratégia que desorientou os
espectros.
Mondovar viu os reforços de Léia chegar, e mesmo assim não parecia
preocupado. A s tropas que estavam com ele agora corriam desorganizadamente,
ou para dentro de Crivengart, ou de encontro aos anjos da morte. Ele virou as
costas e caminhou lentamente para a sua carruagem de ferro. Q uando chegou aos
seus pés, olhou para o transporte que mais parecia um prédio. Mesmo usando uma
armadura aparentemente pesada e limitadora de movimentos, depois de três
pulos, conseguiu escalar sem demonstrar dificuldade os nove metros que
separavam o chão do trono de ossos ali instalado. D ando tapas para retirar a neve
que depositara no acento e nos encostos para braços, ele sentou-se, e passou a
admirar a batalha. D ali a poucos instantes, todos os inimigos estariam mortos, e a
vila finalmente tomada. A missão fora mais difícil do que ele previa, mas enfim
poderia reerguer o obelisco naquele ponto estratégico ao norte do continente.
D entro do castelo de cristal, Vanhardt cruzava os corredores montado em seu
dragão incandescente. S ubira alguns vãos de escadas, passara sob portais, e se
aproximava do salão do trono. O bedecendo a um estalo dos dedos do rapaz,
Kundalini desapareceu em faíscas amarelas e vermelhas, e Vanhardt aterrissou
com largas passadas, para que não caísse. Ele abriu as enormes portas com força e
disparou para dentro, gastando todo o seu fôlego para dizer à mãe:
Mondovar atacou Lila e agora ela está morrendo, mãe! Eu a trouxe aqui para...
Mãe?
A deusa do gelo terminava de afivelar um cinto, e ajeitar um elmo cilíndrico na
cabeça. Ela deu pancadinhas na malha de prata que cobria seu dorso e metade de
suas pernas, testando-a inocentemente. Pegou o cetro que estava enfiado num dos
braços de seu trono e depositou um olhar misterioso no filho.
N ão se assuste, meu querido. O mundo seria um lugar muito melhor se todos
soubéssemos qual é o nosso momento. Eu pelo menos sei que agora é o meu. O
que ia mesmo dizendo?
É... E... - a saliva rareava dentro da boca do rapaz, que não esperava ver sua mãe
se juntar à batalha. - Lila está muito ferida, e não consigo curá-la! Eu a trouxe, pois
imaginei que você seria a única capaz de fazer algo.
Traga-a aqui, rápido! - a deusa do gelo bateu no chão três vezes com a base do
cetro, fazendo surgir dali uma mesa, com pernas espiraladas e um tampo quadrado
e finíssimo de cristal.
Com cuidado Vanhardt colocou a fada sobre a mesinha, sem deixar de manter
uma mão sobre ela, de modo que os feixes amarelos da Aruc vanidi a banhassem
continuamente. A deusa do gelo fechou os olhos, colocou a ponta do indicador na
testa da fada, e inspirou profundamente. D epois de alguns minutos meditando, ela
expirou, e abriu os olhos, com um semblante nada feliz.
A lilandra está ferida em sua alma, e não consegue mais reter energia vital
dentro de si. É como um balde furado, que por mais que o enchamos, logo volta a
se esvaziar.
Então é só fechar o buraco, mãe! N ão temos muito tempo, me diga como
faremos isso?
Escute com atenção, meu filho. A lilandra foi um ser que desde o seu
nascimento devotou-se a uma missão, que era ajudá-lo. Em todas as vezes que
conversamos, ela me dizia que estava extremamente feliz. Até nos últimos dias que
estivemos juntas, período em que curei suas asas, ela me falava que não queria
abandonar a missão. Ela o amava tanto, que até me pediu que eu a transformasse,
para que assim pudesse ficar mais próxima de você. Q ueria virar humana. Eu
respondi que não era possível, e Lila ficou muito angustiada, isolando-se no quarto
em que estava instalada. Hoje, entretanto, acordou com o mesmo semblante de
antes, risonho, dizendo-me que não importava em não poder virar humana. Ela
simplesmente queria ficar ao seu lado, e devotar sua vida para ajudá-lo. A gora
venha aqui. - Léia soprou sobre a fada, e uma redoma de luz amarela ficou ali,
permitindo que Vanhardt desfizesse sua magia e seguisse mãe.
O s dois se aproximaram da fonte redonda, onde havia gelo, que logo se
transformou em água quando Léia deslizou o cetro sobre sua superfície. A s
imagens, ligeiramente distorcidas, se apresentavam sobre um fundo azulado, e
mostravam a batalha em Crivengart. Crivmarions, lobos e Grilliardus se
engalfinhavam numa luta sangrenta contra os espectros. A mbos os exércitos não
moviam um centímetro, e na linha de frente centenas de vítimas tombavam de
ambos os lados. D entro do celeiro, crianças choravam, e homens recebiam
curativos improvisados, que provavelmente eram a única chance de sobreviverem.
N o colo de J úbia, Erick estava roxo de tanto se espernear, e a mulher tentava
acalmá-lo. Em outro ponto, os A njos da morte lutavam valentemente contra os
espectros, porém o cansaço já era visível, e eles começavam a receber os primeiros
ferimentos. Um deles caiu, e se não fosse um puxão de A nael, o líder, estaria
morto.
Eu não posso salvar Lila. Existe um meio, uma espécie de cirurgia, mas nunca a
realizei antes. Precisaríamos de um deus muito experiente, além de um ajudante, o
que é inviável no momento. A lém do mais, levaria horas. Eu não posso dedicar
todo esse tempo para salvar Lila, enquanto tantos estão em perigo. Lembre-se que
seus amigos estão lá. Até mesmo seu filho! S into muito meu querido, mas Lila
morrerá para salvarmos muitos. Eu disse para você que deveríamos saber qual é o
nosso momento. Lila sempre soube qual era o dela.
Vanhardt foi até a mesinha, e observou atentamente o rosto de sua amiga. Ela
parecia tão tranqüila. O rapaz lembrou-se de suas últimas frases: Não tenho medo de
morrer. É porque não está doendo... Realmente não parecia doer, pois ela se mostrava
em paz. Uma lágrima escorreu dos olhos do jovem, enquanto ele rememorava seus
momentos felizes com a fada. Vanhardt ia deixando o salão do trono, cabisbaixo e
tentando deter um choro iminente, quando sua mãe chamou-o, assustada.
Vanhardt! Venha aqui! Olhe! - Léia apontou o cetro para dentro da fonte.
A s imagens refletidas na superfície líquida fizeram o coração do filho da deusa
do gelo crescer de tamanho, e bombear sangue com muito mais força. S eus olhos
se arregalaram, e um fio de esperança cresceu em seu peito. N as periferias leste e
oeste de Crivengart, uma nuvem branca se erguia devido à passagem de um
numeroso exército. Contavam-se milhares de criaturas de ambos os lados, que se
aproximavam numa velocidade estonteante em direção à pequena vila no meio da
terra do gelo. Quando o espelho aquoso refletiu as criaturas de perto, pôde-se notar
que eram gafanhotos, grilos, besouros, abelhas, mariposas, e toda uma vasta gama
de insetos gigantes. A lém disso, vindo do sul, e fazendo a terra tremer, um exército
não muito menos numeroso de minotauros descia uma colina e já atacava as
fileiras de espectros posicionados atrás da carruagem de ferro que carregava o
obelisco.
A balança que se mantinha equilibrada, agora se virara completamente para o
lado dos Crivengartenses. As tropas de Mondovar não estavam preparadas para tão
imediato revés, e logo centenas e centenas de espectros tombavam sem esboçar
reação. O s reforços iam costurando as linhas inimigas, sem deixar ninguém de pé.
O s A njos da morte, que se encontravam numa posição puramente defensiva, logo
contaram com a ajuda de uma pequena equipe de minotauros, que se destacou da
força principal, e era liderada por Taurok, dentro de sua elegante armadura
dourada. O deus dos minotauros girava o machado que antes fora de Ghar com
maestria, e dizimava dezenas de inimigos. Ele foi o responsável pela equipe
conseguir penetrar as fileiras de espectros que os separavam da tropa de elite de
Léia. A njos e minotauros passaram a lutar lado a lado, frente ao inimigo que ficara
completamente descoordenado.
N ão demorou muito tempo até que metade das forças de Mondovar fosse
derrotada. O guerreiro de armadura negra bem que tentou reorganizar suas tropas,
porém conseguiu oferecer apenas uma média resistência aos reforços. Ele até
cogitou em se unir pessoalmente à batalha, desistindo logo da idéia ao pressentir
um final completamente desfavorável de seus esforços. Trombetas ressoaram
sobre o campo, anunciando uma retirada. N aquele ponto, a vila de Crivengart já
estava livre de espectros, e ao notar que os inimigos, e até a carruagem gigante de
ferro, fugiam desesperadamente, o povo expulsou um grito entalado no fundo da
garganta. Haviam nascido de novo; haviam vencido uma luta impossível. O s
milhares de espectros que antes avançavam sobre a pequena vila, agora seguiam
por caminho oposto, e aquela visão não era nada desagradável.
O s A njos da morte e alguns minotauros quiseram seguir a carruagem de ferro
que escapava com um montante de pouco mais de dez mil soldados, porém Taurok
foi enfático: ninguém mais pereceria naquele dia. Especialmente aqueles do seu
lado. O s minotauros então desistiram da idéia, e os A njos, mesmo não tendo
Taurok como seu mestre, e depois de receberem um sinal afirmativo de A nael,
acabaram acatando as instruções do deus dos minotauros.
Q uando as frentes se encontraram, insetos, minotauros, tropas de Léia, e
Crivengartenses, saudaram-se com alegria e entusiasmo desmedido. O s humanos
ficaram ligeiramente temerosos frente aos monstros que sempre os assombraram,
porém, ao perceber que eles nada fariam de mal, acabaram relaxando. Taurok
encontrou um grupo de insetos, e precisou empurrá-los para prosseguir
caminhando. Procurava pelo mestre deles, e não demorou para encontrar Zing, que
sentado em um trono nas costas de um besouro, saboreava um cálice de seu
famoso néctar.
N ão poderia encontrar Vossa D ivindade em situação diferente, nobre Zing -
Taurok, com um sorriso no rosto, apontava o machado para o copo na mão do deus
dos insetos.
Logo notei que aquela parede que vinha derrubando meus súditos não seria
outro exceto o poderoso Taurok! - Zing ergueu seu cálice para o céu, e continuou -
Venha, tome um gole! D epois de uma vitória como essa, nada melhor do que uma
comemoração digna!
Próximo ao celeiro, ajudando a estancar sangramentos, cobrir feridas, e tentar
impedir as crianças de brincar com os insetos gigantes, Thomas notava a falta de
um amigo.
Greylock, você estava do meu lado quando os inimigos nos cercaram, e fomos
obrigados a voltar para o celeiro, certo?
Com certeza, Thomas! - Greylock tomava um estilingue das mãos de um garoto
que atirava pedrinhas num grilo. - Por que a pergunta?
É porque Green também estava do meu lado, mas ele não entrou no celeiro
conosco. Cheguei a pensar que ele estava morto, só que também não vi seu corpo
aqui fora. O que será que aconteceu com aquele duende?
Capítulo LXVI - O que Aconteceu com Green
A sala era pequena, cerca de oito metros quadrados. D ois sofás verdes em
cantos opostos, de penas de ganso, um candelabro com três cristais no teto, e um
tapete redondo, roxo nas bordas, e amarelo no centro, eram os únicos pertences no
cubículo. Ravina se afundava no sofá, com a mão direita sob o queixo, e olhava
fixamente para Green que andava de um lado para o outro no aposento.
Green, você está me deixando nervosa! N ão me diga que tudo isso é por causa
da operação de Lila? Léia falou que é um pouco demorada, mas com Taurok e Zing
como assistentes ela descartou a possibilidade de erros. S ó não dará certo se o
corpo de Lila rejeitar parte da energia vital de Vanhardt.
Pra ser sincero, não é isso que me preocupa. Bem, talvez um pouco. Eu gostaria
logo de saber o que será feito daquela megera! - Green coçava a cabeça, e suava
pelas têmporas.
Está falando de Hilda Risalv? A sogra de Vanhardt?
A própria! O s soldados não me deixaram matá-la, dizendo que era prisioneira
de guerra. Os deuses só decidirão o seu destino depois da cirurgia.
Você me deixou curiosa, Green. Parece que conhecia essa mulher de tempos
atrás. Por que deseja tanto assim que ela morra?
O duende olhou para as algemas penduradas em seu pescoço, que sempre o
acompanhavam e acariciou-as gentilmente, com os olhos molhados. D epois fitou
Ravina, e inspirou profundamente. D eixando o ar escapar pela boca, de maneira
contida, sentou-se no sofá do outro lado da sala, ainda de olhos grudados na
Guardiã.
Tudo começou há mais de trinta anos. N ão sei precisar bem a data, mas era
uma primavera. Uma vila de duendes incrustada nos pés das Montanhas
Traiçoeiras, no reino de Heltara, comemorava o nascimento de gêmeos, um feito
muito raro na minha raça. A s profecias entre os duendes sempre abordavam
gêmeos que eram capazes de fazer magias poderosas, e esse caso não foi diferente.
A mãe deles acabou batizando-os de Gray e Green.
"Meu irmão e eu logo manifestamos nossos poderes, quando fazíamos o berço
flutuar, e transformávamos pratos de sopa em xixi. Crescemos como se fôssemos
um ser único. Q ualquer coisa que entristecia Gray, ou o deixasse feliz, me
sensibilizava da mesma forma. Eu entendia todos os seus pensamentos e emoções,
sentia o que ele sentia, e até conversávamos pelo pensamento. A nossa infância e
começo da juventude foram recheados de diversão. A dorávamos as festas, e
bolávamos truques cada vez mais elaborados, como transformar bodes em coelhos,
fazer com que a água da cisterna da vila se transformasse em cerveja, e atirar bolas
de fogo no céu, que explodiam como fogos de artifício. N ossos pais eram muito
respeitados dentro da vila por terem filhos tão importantes, e nos amaram de
forma incomensurável. S ei que não fui um filho tão bonzinho, e recebia castigos
mas... Nada a reclamar, sabe?"
"Um dia, porém, numa competição entre os duendes, na qual Gray eu e éramos
proibidos de participar por motivos óbvios, aconteceu um evento que mudaria a
vida de todos ali. A disputa baseava-se em qual duende seria capaz de devorar
mais pãezinhos amanteigados em menor quantidade de tempo. Gray e eu
estávamos escondidos atrás do moinho, preparando uma chuva de pães miniaturas
assim que acabasse o torneio, mas nossa vila foi invadida por um bando de ores
que não esperaram para atacar quem viam pela frente. É lógico que meu irmão e eu
não deixamos baratos, e contra-atacamos os ores com nossas bolas de fogo, e
espinhos que fazíamos brotar da terra. N ão me lembro do que aconteceu depois,
mas julgo que fomos atacados por trás justamente por Hilda Risalv e seu marido.
Q uando acordamos, estávamos presos no castelo dela, ligados por essa algema que
até hoje pende no meu pescoço. A s algemas eram imantadas, ou seja, não
poderiam ser destruídas com magia. Eles sabiam que se fôssemos separados,
perderíamos nossos poderes, por isso nos prenderam daquela forma. Passamos por
todo tipo de tortura, culpa de um monstro chamado Krular, por quase uma
semana. S ó aceitamos trabalhar para eles quando ameaçaram matar nossos pais,
que ainda estariam vivos, na vila dos duendes. Foi a decisão mais errada que tomei
até hoje."
"A parti dali, posso dizer que não enfrentei um único momento de felicidade
durante dez anos. Hilda e seu marido, Lionel Risalv, nos levavam para outros
vilarejos, onde éramos obrigados a matar as pessoas, e capturar objetos de valor.
Às vezes as missões eram de espionagem, e então recolhíamos informações, mas
inevitavelmente éramos obrigados a eliminar todos depois que descobríamos o
necessário. N ão ousávamos fugir, pois Hilda sempre ameaçava matar nossos pais.
N esse período eu aprendi muitas coisas, como o fato do casal pertencer a essa
ordem, D ivina S erpente, e sua língua secreta, informações geográficas, lendas,
plantas de castelos e fortalezas, e muitas outras coisas que demoraria semanas para
lhe contar. Hilda ficou grávida duas vezes nesse período, mas eu não vi nenhum
dos seus filhos. Só uma vez, na verdade."
"N um dia de chuva, meu irmão murmurava no meu ouvido saudades de casa,
de nossas brincadeiras, de nossos pais. Eu também queria vê-los, mas se
fugíssemos dali, acabaríamos desencadeando suas mortes. Foi nesse instante que
uma garotinha, de quase quatro anos de idade entrou no calabouço onde ficávamos
presos. Era loira, com cabelos cacheados cobrindo-lhe os ombros, e tinha um
sorriso misterioso no rosto. Eu não fazia a mínima idéia do motivo dela estar ali, e
me assustei mais ainda quando estas palavras saíram da sua boca:"
"- Seus pais estão mortos! Foi mamãe quem disse, quando discutia com papai."
"A menina deixou o quarto, e eu pensei em ignorar as palavras da maluquinha,
mas meu irmão ficou assombrado. Ele me balançou, gritando que já desconfiava
daquilo. Eles haviam destruído toda a vila, ninguém sobrevivera, só nós dois.
Construíram uma mentira para nos manter fiéis e obedientes como macacos
adestrados. Mesmo assim, relutei. A nos enfurnados em um tipo de vida acabaram
me deixando acostumado... S im, acostumado com a tortura e brutalidade, mas
quem garantia que aquilo não era melhor que o mundo lá fora? S e não fosse meu
irmão, talvez teríamos ficados ali pra sempre, tanto pela sua ousadia e coragem,
quanto pela habilidade. Gray soltou algema que o prendia a mim utilizando um fio
de bronze, e me puxou para fora."
"Pensando agora, é engraçado! Gray poderia ter nos soltado a qualquer
momento, porém queria poupar nossos pais, e por isso não quis correr o risco de
nos libertar. Pais que já se encontravam mortos. N aquele momento meu irmão só
pensava em fugir, e verificar com os próprios olhos o estado de nossa vila.
Passamos por corredores, enfrentamos soldados que guardavam a saída, e
acabamos subindo a muralha e atingindo as margens do lago que cercava
Avendorh. Com nossos poderes não seria difícil cruzar a distância que nos
separava da margem do outro lado, porém Hilda apareceu, atirando carroças em
nossa direção. Recordo-me como se fosse hoje. Meu irmão beijando a minha mão, e
dizendo para não se preocupar. Ficaria tudo bem. Eu deveria pular, e salvar a
minha vida."
"Ele sempre foi o mais corajoso, o mais heróico, o mais inteligente. E eu o
admirava por isso. S em pestanejar, pulei no lago, e nadei com todas as minhas
forças. Como não estava perto de Gray, não tinha os poderes, e quase morri
afogado. Com tremendo esforço consegui chegar até o outro lado, onde vi nuvens
de fumaça se erguendo sobre Avendorh, e o portão de entrada descendo.
I nstintivamente eu sabia que Gray morrera tentando salvar a minha vida. Corri o
máximo que pude, me embrenhando em florestas, galgando pequenos riachos,
evitando as estradas, e comendo as frutas e pequenos animais que encontrava pelo
caminho. Q uando cheguei ao local onde nasci, e passei os momentos mais felizes
da minha vida, tive certeza. Todos os prédios estavam no chão, as cisternas e
moinhos destruídos, e o descampado onde ficavam as plantações tomado por ervas
daninhas. N enhum sinal de vida. Um bardo viajante que me confidenciou
tristemente que nem crianças e idosos foram poupados naquele episódio ocorrido
há oito anos. Uma verdadeira chacina, sem nenhum sobrevivente."
"Meu coração estava destruído. Meu peito abrigava um órgão morto, que boiava
num mar de tristeza. Fugi para as florestas sagradas do norte, e tive de reiniciar um
novo tipo de vida. Como não estava de posse dos meus poderes, aprendi a
sobreviver de pequenos furtos. E desde então só pensava em sobreviver, até ouvir o
nome daquela que destruiu tudo que era importante para mim. Você entende agora
porque eu anseio tanto a morte de Hilda?"
Q uando o duende acabou a sua história, parecia esgotado. Ravina nunca
imaginara um passado tão triste. N um primeiro momento, chegou a pensar que se
tratava mais uma de suas mentiras, porém o jeito como narrava, e o seu olhar,
provavam que era verdade. S erá que as coisas que Green dissera antes não teriam
um fundo de verdade? A quele orgulho exagerado ao contar feitos heróicos que ele
realizara era autêntico? A o mesmo tempo suas atitudes seriam uma maneira de se
defender do mundo que fora tão cruel para ele? Quem sabe, pensou a Guardiã antes
de indagar:
E o seu irmão? Nunca mais teve sinal dele?
N ão... - Green balançou a cabeça, sem encarar Ravina nos olhos. - Hilda me
confirmou a morte dele quando lutamos. Ela não pode viver Ravina, você entende?
- agora ele olhava diretamente para a Guardiã, como se implorasse por ajuda.
A ntes que Ravina falasse novamente, uma porta dupla branca, de correr, foi
deslizada no sentido de abertura, e do portal surgiram Léia, Taurok e Zing. Todos
usavam gorro e máscara brancos, além de um capote azul que trataram de
desamarrar. D epois de jogar o capote para dentro do corredor de onde vieram, e
enquanto tirava o gorro e a máscara, Léia falou suavemente:
N ão se preocupem, o procedimento foi um sucesso. - ela jogou a máscara e o
gorro dentro de uma lixeira improvisada, e continuou olhando fixamente Ravina e
Green. - Como eu disse a Vanhardt antes da cirurgia, Lila apresentava um severo
dano em seu corpo vital. Mesmo com toda a energia divina eu não seria capaz de
curá-la, pois seria como encher uma jarra furada. Como vocês sabem, existem dois
tipos de energia: a vital, que seres como você Ravina, e Green, possuem, e outra que
é a energia espiritual, cujos deuses e seres místicos como Lila apresentam. Para
curá-la, eu precisaria de uma grande quantidade de energia vital, como uma forma
de "estancar" o vazamento. S ó que nenhum humano sobreviveria se eu retirasse
tanta energia assim dele. Foi aí que meu filho, por ser metade homem e metade
deus, se prontificou a ajudar a amiga. Mesmo sem sua energia vital, ele teria a
espiritual, e continuaria vivo. D urante o procedimento de troca de energias,
contudo, eu tive de ser cuidadosa e metódica, e retirar aos poucos sua força vital,
ou causaria o mesmo problema de Lila em meu filho, tornando-o uma jarra furada.
Felizmente, correu tudo bem.
Pois não disse que não precisava se preocupar, minha dama? - Zing adiantou-se
e beijou a mão da deusa do gelo, depois de acariciá-la. - J á tive experiências em
procedimentos semelhantes, e Vossa D ivindade já foi um dos integrantes do
Panteão! Uma dupla perfeita!
Trio, meu caro! E mesmo sendo capaz, Vossa D ivindade não tinha motivos para
contar piadas e flertar com Léia durante a cirurgia - Taurok trombou discretamente
o ombro contra Zing, enquanto fingia jogar seu gorro e máscara na mesma lixeira
de Léia, obrigando o deus dos insetos a soltar a mão dela.
Por favor, amigos, não é hora de discutirmos. Correu tudo bem, e é isso que
importa. S ó me sinto atormentada pelo fato de meu filho não poder mais usar os
poderes divinos como antes... Eu alertei sobre as conseqüências, mas ele só
pensava em salvar a amiga.
Como assim, divina Léia? - perguntou Ravina, erguendo-se e fazendo uma
discreta mesura, em sinal de respeito.
—- Vanhardt abriu mão de cerca de 99% de sua energia vital, o que significa que
ele não pode usar a energia divina como antigamente, ao custo de perder a vida.
Era a força vital que equilibrava a divina, e permitia ele viver a dualidade de um
semideus. S e ele agora abusar do uso da energia divina, seu corpo vital não
suportará, e ele morrerá. - A deusa do gelo inalou ar pelas narinas, e continuou: - A
mudança é permanente, e não há como voltar atrás. É lógico que com o tempo ele
poderá treinar, e aos poucos seu corpo será capaz de suportar cargas cada vez
maiores de energias divinas, mas nunca como já foi um dia. E mesmo sabendo de
tudo isso ele arriscou-se para salvar Lila. A dmito que fiquei orgulhosa - os olhos de
Léia atravessaram a sala, e depois tornaram para o corredor de onde viera.
Ravina tornou a se sentar, e cobrir metade do rosto com o capuz, além de cruzar
os braços. O duende também decidira-se por sentar, porém continuava agitado,
balançando as perninhas. S em saber qual seria o melhor momento para definir o
destino de Hilda Risalv, ele se adiantou, a fim de diminuir sua ansiedade.
Errr... - o duende levantou-se de supetão, e ajoelhou-se no chão. Léia obrigou-o
a se levantar antes que ele falasse: - E quanto a Hilda Risalv, minha senhora? O que
será feito dela?
A inda não decidimos, pequenino - as orelhas do duende ficaram com as pontas
vermelhas em vista do adjetivo usado pela deusa do gelo. - O que há? Venho
notando que você está inquieto.
S em omitir qualquer detalhe, Green repetiu a história que havia contado para
Ravina. Taurok e Zing trocavam olhares ameaçadores de forma velada,
principalmente quando o deus dos insetos cheirava disfarçadamente os cabelos de
Léia. Ela, contudo, mantinha a atenção no relato do amigo de seu filho. Q uando ele
terminou, a deusa deu uma volta pela sala, com as mãos cruzadas atrás das costas.
Todos esperavam uma definição da deusa do gelo, que depois de um momento de
hesitação, sentenciou:
Pode não acreditar, porém sei exatamente como se sente. A sua dor me lembra
cicatrizes que ainda me atormentam... Entretanto, irei garantir-lhe uma coisa: matá-
la não irá aplacar a dor no seu coração. Hilda errou, merece pagar pelo que fez, e eu
tenho uma idéia. Quer ouvir, pequenino?
Mas é claro! - as sobrancelhas do duende arregalaram-se.
Colocarei Hilda congelada num esquife de gelo. A li ela terá tempo suficiente
para pensar em todos os erros que cometeu. Enquanto está privada de sua
liberdade, sentirá na pele o que tirou de outros. A quela mulher ainda tem uma
dívida com meu filho, e imagino que esse castigo permitirá que pague tudo que
deve.
Q uanto tempo ela ficará lá? E não há como Hilda escapar? - dessa vez Green
apertou os dentes contra os lábios, temeroso.
N ão se preocupe, Green; a magia que utilizarei só poderá ser desfeita por mim.
Hilda só poderá sair se eu ordenar, ou se eu morrer, e não pretendo deixar esse
mundo tão cedo - ela sorriu docemente, transmitindo tranqüilidade. - E quanto ao
tempo, eu ainda não defini. Mas em princípio, eternamente.
Eternamente! A quela palavra ecoava no cérebro de Green, e despejava uma onda
de satisfação. Talvez esse castigo realmente fosse pior que a morte. Ficar preso
num lugar pra sempre, sem poder fazer nada. N em mexer os braços e as pernas.
Ele sentia-se justiçado. Zing e Taurok continuavam trocando ameaças, e agora o
deus dos insetos atirava pequenos ferrões nas pernas do outro, que respondia
pisando no seu pé. Léia aparentemente não via os insultos mútuos, e voltou a falar:
Por sorte as tropas do traidor não fizeram uso de uma tática antiga, na época
em que perdi meu posto de deusa da morte. D aquela vez, eu não pude rastreá-los
de modo algum, ainda que estivesse em meu castelo. S ó me dei conta quando a
ameaça era inevitável. Hoje, apesar de Mondovar ter conseguido escapar alguns
momentos de meus espiões, e ter adiantado sua marcha, ele não desapareceu. N ós
o vimos chegar. Por que teria ele abandonado a antiga estratégia? S e tivesse se
mantido encoberto, Rufus não o teria avistado quando ele estava a um dia de
distância de Crivengart, e acabaríamos sucumbindo.
Hum... - Zing tirou o pé debaixo do de Taurok, fitando-o de cara amarrada.
Depois se virou para a Léia, exibindo o sorriso mais amistoso que conhecia. - Minha
deusa, dama mais preciosa de toda Kether, suas palavras agora me fizeram buscar
um ponto em minhas atividades. Estou trabalhando na procura de um artefato
místico, chamado "Manto das I lusões". N ão revelarei o nome de meu contratante,
para não comprometê-lo. O importante é que o poder desse objeto é de transportar
para o seu usuário a capacidade de se manter indetectável. I nvisível a qualquer
meio de identificação. A lém disso, com um pequeno somatório de energia divina, o
item pode estender esse poder para outras criaturas, a desejo do possuidor. O
tempo é limitado, obviamente, porém imagino que aquela divindade que a traiu
possa ter usado o Manto das I lusões quando a atacou da primeira vez. - O deus dos
insetos tamborilava os dedos de suas quatro mãos no próprio peito, e quando
notou que todos o observavam fixamente, escondeu os braços nas costas, e
prosseguiu. - Bem, é possível que o traidor tenha o perdido. D e fato, o rastro
deixado por este manto, indica que ele passou nas mãos de incontáveis deuses,
humanos, e ordens diferentes. S eu último paredeiro preciso, segundo minhas
fontes, seria na ordem D ivina S erpente, de volta aos braços do traidor. O curioso é
que de lá ele também desapareceu. Encurtando a história, se conseguirmos
encontrar o artefato, podemos descobrir quem o criou. E assim, quem é o traidor.
O s olhos de Léia faiscaram, e ela se pôs a pensar. Tudo fazia sentido. O Manto
das I lusões tornou o exército do traidor invisível, permitindo-o invadir seu antigo
castelo. Mesmo havendo recuperado o objeto, o traidor o perdeu mais uma vez, e
portanto não foi capaz de usá-lo em Crivengart. Uma dúvida intrigava ainda a
deusa do gelo. A contratante de Zing era N úbia, segundo sua última investigação
no lar deste. S eria ela "o traidor", e por isso estava tão ávida atrás do artefato? Tal
resposta só seria adquirida quando eles colocassem as mãos no Manto, e Léia assim
desejava o mais rápido possível.
E como faremos para descobrir a atual localização do Manto, Zing? - perguntou
Taurok, que acompanhava atentamente o desenrolar dos fatos.
— A í é que vem a parte difícil. - o deus dos insetos tirou rolos e mais rolos de
pergaminhos de dentro da barriga, espalhando alguns pelo chão, e equilibrando
outros em suas quatro mãos. - A qui estão os nomes de todos os ladrões de Kether,
dos feiticeiros e das ordens de bruxos, e também os locais que vendem itens
mágicos. Eu havia incluído obviamente a Feira dos deuses, porém já andei por lá
durante anos e nada encontrei. Tenho certeza que ninguém o está vendendo. J á
vasculhei mais da metade dessas listas, descartando possibilidades, investigando
os ladrões e os lugares, e nenhum sinal do Manto. A inda existe muita gente para
ser acompanhada e entrevistada, e lugares a serem visitados, portanto há uma boa
chance de que alguém ou algum lugar daí tenha esbarrado com o Manto. S e
descobrirmos quem ou onde, teremos dado o primeiro passo no rastro de sua pista.
É inútil - Taurok jogou folhas para o lado, e sentou-se no sofá verde e fofo,
desanimado. - São muitas pessoas e lugares Zing, nem adianta...
Esperem um minuto - Léia, que lia atentamente a terceira coluna de um dos
pergaminhos, apontou para um nome específico. - Lionel Risalv. O pai de S elena, e
sogro de Vanhardt. Ele está na lista, Zing?
E claro que sim! Um dos maiores ladrões de todo o reino, e acabei de descobrir
agora que parte de seus feitos foram devidos a esse duende e seu irmão. Incrível!
Zing, não sei se estou tentando forçar um pouco as coisas, mas... A cho que foi
justamente Lionel Risalv! - a deusa do gelo revelava espanto. - Por que não pensei
nisso antes?!
Lionel Risalv? É uma coincidência ele ser o sogro de seu filho, mas por que ele?
Creio que há outras pessoas mais capazes e relevantes que...
N ão, Zing, ouça-me. Lionel fazia parte da D ivina S erpente, a ordem cujo traidor
está por trás. Há outra pessoa aqui na lista que seja também membro da ordem?
Creio que não.
A há! - Léia apontou para o deus dos insetos. - N ão é fácil deduzirmos que para
ele, como ladrão renomado, e por fazer parte da ordem, seria muito mais fácil obter
o manto? N inguém iria desconfiar de alguém da própria ordem, e seu acesso seria
facilitado! D epois disso ele fugiria com a filha para a terra do gelo, o que também
se encaixa perfeitamente. Utilizou obviamente as propriedades do artefato para
não ser seguido, e só tempos mais tarde Hilda o localizou aqui, e o matou.
É uma boa suposição, dama do gelo, entretanto, alguns pontos se mostram
incoerentes. - Taurok se levantou, mostrando-se um pouco mais animado. - S e
Lionel furtasse o item, e deixasse Avendorh, certamente os outros membros
tomariam conhecimento e suspeitariam. S endo assim, quando o S r. Risalv fosse
localizado aqui na terra do gelo, seus antigos companheiros fariam de tudo para vir
atrás dele e recuperar o manto. Pelo que me consta isso não aconteceu, pois se
Hilda tivesse obtido o artefato, ele teria sido utilizado na batalha de Crivengart.
S ão argumentos sólidos Taurok, e não sei como rebatê-los - uma pontada de
desânimo se revelou através do semblante da deusa do gelo.
Eu sei como...
Todos se viraram para Ravina, que continuava em seu lugar, semicoberta pelo
capuz, com apenas os lábios à vista. A Guardiã, sem se intimidar, continuou:
Se eu fosse Lionel Risalv, e quisesse fugir de Avendorh com o manto, roubaria-o
alguns meses, ou até anos antes, e o manteria escondido. Buscas seriam realizadas,
possivelmente até eu participaria dela, porém cuidaria para nada ser encontrado.
A ssim, quando fosse fugir, alguns meses ou até anos depois, ninguém desconfiaria
que tivesse sido eu quem roubou o item.
— Hmmm, maravilha! Você tem talento investigativo nato, garota. - Zing
colocou um de seus quatro braços no ombro de Ravina. - D esenvolva esse talento e
talvez vire uma grande detetive no futuro.
Ei, pessoal! - a atenção agora fora desviada para Green, que sorria como se
tivesse descoberto uma mina de ouro. - Um ano antes de meu irmão e eu fugirmos,
Lionel nos pediu para furtar uma capa azul, com estrelas na sua parte interna, em
uma choupana. N ós reparamos que naquele lugar havia várias estátuas e inscrições
típicas da D ivina S erpente, e até imaginamos que ele queria dar o troco em algum
amigo da ordem. D epois nos ordenou que não revelássemos esse trabalho pra
ninguém, principalmente Hilda, ou nossos pais seriam mortos. Também demos de
ombro, pois nem tínhamos a intenção de contar coisa alguma a quem quer que
fosse.
A í está! Uma testemunha! S e o item que você roubou for mesmo o "Manto das
Ilusões", nossas suposições validam-se!
Bem, Léia, pela descrição que Green nos forneceu, posso confirmar com quase
certeza absoluta que aquele era o Manto das I lusões. Muito bem Green. A gora
temos uma forte pista a seguir. Enviarei imediatamente meus servos no rastro de
amigos de Lionel, pessoas que ele possa ter tido contato em sua jornada até
Crivengart.
Boa idéia, Zing. Revistarei a antiga casa de Lionel, pois tenho fortes suspeitas de
que o Manto está escondido lá.
O utros assuntos foram discutidos em seguida, referentes à limpeza e conserto
da vila de Crivengart, enterro dos mortos, e regeneração das tropas, principalmente
das de Léia. Green resmungava com Ravina sobre o fato de eles terem se esquecido
do castigo de Hilda, e a Guardiã pediu que ele tivesse paciência, pois Léia logo se
encarregaria disso.
E quanto a Mondovar, minha rainha? Meus melhores batedores, disseram que
ele parece seguir através das Montanhas Traiçoeiras, em direção ao reino de
Heltara. Não seria uma boa oportunidade de encurralarmos o maldito?
S eria, Taurok, se não precisássemos de descanso. N ão quero partir para outra
batalha com minhas criaturas nesse estado. A credito que você e Zing também não.
A lém disso, devemos continuar atentos, pois podemos sofrer novos ataques. Vocês
conhecem esses deuses menores, sempre farejando inimigos indefesos. D eixe
Mondovar. Eu sei para onde ele está indo, e ele terá o seu momento.
E onde seria? - Taurok enrugou a testa, em sinal de dúvida.
Avendorh. Ele vai para Avendorh. Tenho certeza que lá também encontraremos
S elena. S ó temo por meu filho. Tomara que as previsões do oráculo tenham sido
metafóricas, e que Vanhardt saiba como interpretá-las.
Mal podia supor Léia, que sentado atrás da porta, e com ouvidos atentos,
Vanhardt ficou sabendo onde encontraria seu algoz e sua mulher. Ele levantou-se,
com a mão sobre o peito, e cuidando para não gritar de dor, ou cair desmaiado.
Estava fraco, porém prometeu a si mesmo que não descansaria até cumprir a
promessa que fizera a Mondovar. E agora que sabia o destino de seu inimigo,
trataria de enfrentá-lo assim que suas forças permitissem. Caminhou cambaleante
até um quarto pequeno com uma cama e uma mesinha de cabeceira, além de um
aquário no fundo com peixinhos coloridos. Um último pensamento o perturbou
antes que caísse no sono: como faria para salvar Selena?
Capítulo LXVIII - Todo o Sentimento do Mundo, Morre em um Átimo
de Segundo
Era uma noite fria e escura, e uma chuva torrencial açoitava sem piedade a
carruagem elegante, puxada por oito cavalos, que subia uma estrada irregular em
direção a Avendorh. A água tamborilava no teto do meio de transporte, e o
cocheiro chicoteava e gritava com os cavalos para que acelerassem. D eslizando
pelas curvas da estrada lamacenta, a carruagem quase perdeu o rumo por duas
vezes, porém logo o castelo despontou no horizonte. O s relâmpagos iluminavam
por instantes o caminho, e assim o cocheiro conseguiu conduzir o veículo até a
margem do lago oposta ao portão de ferro, que ao mesmo tempo servia de ponte.
S enhor, não consigo ver os guardas de vigia! - o cocheiro olhava por cima dos
ombros, e gritava para que a chuva não abafasse sua voz. - Como faremos para
pedir que abaixem o portão?
S ubitamente, o som de metal rangendo se fez ouvir, e a ponte passou a descer
lentamente. Blocos de metal deslizavam de dentro da estrutura, permitindo que
essa tomasse um tamanho muito maior que o original. A ssim que a ponte tocou a
margem, criando uma passagem de ferro sobre o lago, o cocheiro balançou as
rédeas ordenando que a carruagem prosseguisse. Ele ainda não descobrira como a
ponte desceu, pois depois que a atravessou e chegou num pátio calçado, ainda não
via nenhum guarda. N ão ousaria perguntar ao seu senhor, obviamente. Mondovar
já era sinistro o suficiente, e aquela noite fria e chuvosa em nada encorajavam o
humilde cocheiro.
D epois que parou a carruagem, perto de uma baia, ele tratou de abrir as portas
do veículo. Uma luva metálica foi a primeira coisa que o cocheiro pôde ver, e com o
indicador, Mondovar ordenou que seu servo se aproximasse. Uma voz sussurrante
e rouca no fundo acrescentou:
Chegue mais perto.
Com as roupas encharcadas, pernas e braços tremendo, de frio ou de pavor, o
cocheiro que se chamava Gordon deu dois passos vacilantes, e subiu o primeiro
degrau. A luva metálica cujos nós dos dedos projetavam lâminas cortantes,
subitamente agarrou o pescoço do cocheiro, e passou a pressioná-lo. Gordon foi
erguido alguns centímetros acima do degrau, e segurava com as duas mãos o braço
de Mondovar, que insistia em enforcá-lo.
O nde estão meus servos? N ão há ninguém no castelo! Q ue espécie de
brincadeira é essa?
A boca de Gordon cuspiu saliva misturada com água, mas a voz teimava em não
sair da garganta, culpa da força utilizada por Mondovar. O rosto do cocheiro foi
perdendo a cor, ficando pálido, e seus olhos agonizavam. Com um movimento
bruto, ele foi atirado metros de distância para trás, batendo contra uma coluna
cilíndrica, de pedra. Um trovão ecoou enquanto Mondovar desceu da carruagem,
usando sua armadura negra, e olhando para os lados. Ele caminhou lentamente até
o cocheiro, e olhou fixamente o homem que não se levantava, e apenas protegia o
rosto com um braço e demonstrava estar apavorado.
É realmente um inútil. N em conseguiu chegar no prazo de tempo que forneci.
Demorou duas horas a mais.
Mas senhor, a chuva...
Silêncio! Agora me certificarei do que está acontecendo por aqui.
I gnorando o homem que continuou no chão, Mondovar prosseguiu até duas
portas gigantescas de ferro, e abriu-as sem dificuldade. Atravessou um átrio largo,
onde se apresentavam inúmeras estátuas de serpentes enroladas numa espada,
apontando para baixo. S obre um tapete vermelho, Mondovar cruzou um corredor
comprido, que o levou até uma porta que o separava do salão do trono. Ele
pressentiu uma energia diferente vindo do cômodo à sua frente, e fez a porta em
pedaços ao chutá-la.
O salão do trono era gigantesco, com um teto abobadado situado a dez metros
acima do solo, colunas de estilo jónico, com suas respectivas volutas na base e
ápice, espalhadas pelo domo e promovendo a sustentação do mesmo, e um chão de
granito acinzentado. Trinta passos à frente de Mondovar, sentado
confortavelmente no trono erguido sobre uma plataforma também de granito,
estava Vanhardt, com feições severas. O rapaz não se moveu quando Mondovar
caminhou até o centro do salão, e colocou a mão sobre o punho da espada. N ão era
a Ceifadora de Vidas, e o filho da deusa do gelo por um segundo se perguntou por
que Mondovar não estava com um dos artefatos mais mortais de Kether.
O nde estão meus servos? - as palavras eram disparadas como flechas contra o
filho da deusa do gelo.
Eu faço as perguntas aqui, Mondovar. A queles ores não são importantes agora.
Q uero saber onde está minha esposa. Procurei por toda parte e não a encontrei,
mas podia jurar que ela estava aqui.
E la está aqui... - Mondovar pressionou com mais força a mão sobre o punho da
espada, e logo teve de retirá-la da bainha, pois Vanhardt atacava contra sua cabeça
e pescoço.
Chega, Mondovar! Eu cansei! - o semblante de Vanhardt era completa fúria, e o
tilintar de metal se chocando contra metal preencheu o ambiente. - Você irá morrer
antes ou depois de me dizer onde está Selena!
O filho da deusa do gelo, sem a mínima preocupação em se defender, investiu
ofensivamente contra Mondovar que se limitou a se defender. Buscava acertar a
cabeça, as pernas, ou qualquer pedaço do corpo do inimigo, que habilmente se
defendia de todos os golpes. S e o S upremo Lorde portasse a Ceifadora de vidas já
teria matado Vanhardt, mas como o peso da espada que agora usava era maior, e
não apresentava a mesma força, não conseguia fugir daquela situação. Em
determinado momento pôde segurar o punho de Flama, e os dois adversários
ficaram cara a cara, pois o punho da arma de Mondovar também estava preso na
mão esquerda de Vanhardt.
Vanhardt... S elena está aqui! Eu te disse! - naquele momento, Mondovar
abandonou a espada no chão, e levou a mão direita até o elmo.
Mil vezes eu poderia tentar descrever aquele momento, e como Vanhardt se
sentiu, porém fracassaria em todas. O tempo custou a passar para o filho da deusa
do gelo, que não acreditava no que seus olhos insistiam em mostrar. Por um
instante, até desistiu de lutar, e também deixou Flama cair no chão. Como era
possível? Mondovar. S elena. S elena? O s cabelos louros encaracolados, o rosto bem
definido, linda como sempre, lá estava Selena enfiada naquela armadura negra. Sua
esposa era o Supremo Lorde Mondovar.
Capítulo LXIX - O Duelo Final
O filho da deusa do gelo deu três passos para trás, e por pouco não caiu no
chão. S eus olhos vacilavam, e tudo parecia embaçado. Uma torrente de emoções
conflitantes invadia o peito de Vanhardt, que não se decidia entre a alegria de rever
a esposa, e o terror de saber que ela era o seu maior inimigo. S elena continuava
parada a alguns metros dele, com os olhos castanhos que o observavam
atentamente.
Selena... Como? Você é Mondovar? Mas por quê? Eu não entendo...
N ão há muito o que entender - sem a mesma voz metálica de quando portava o
elmo, a esposa de Vanhardt pegou a espada no chão, e se aproximou
perigosamente dele. - S ou filha de Lionel e Hilda Risalv, membros da ordem D ivina
S erpente. Fui treinada desde minha infância nas artes da magia e da guerra,
preparada para planos superiores.
S elena, eu... Eu encontrei Erick! Está com meu pai, em Crivengart! Você atacou
Crivengart! Teria coragem de matar nosso filho? Teria coragem de me matar?
Eu fui chamada, Vanhardt, e obedeci ao chamado. - ela parou a um palmo de
distância de Vanhardt, que se recusava a se defender, e ergueu a espada. - E, sim,
eu teria coragem.
A ponta da lâmina de S elena cortou o nariz de Vanhardt de raspão, que
felizmente chutou o abdome da esposa assim que esta o atacou. A plicando
cambalhotas, e não se deixando cair, S elena nem parecia sentir o peso daquela
armadura, enquanto se preparava para atacar novamente o marido. Vanhardt lia
em seus olhos que ela realmente não hesitaria em matá-lo. Esticando o braço com
as mãos espalmadas, Vanhardt conseguiu trazer Flama até a sua mão a tempo de
defender as investidas de S elena. S eu peito doeu mesmo com a pequena
quantidade de energia divina utilizada. I sso havia acontecido anteriormente,
enquanto ele prendia os ores no calabouço. A gora, contra Mondovar, ou S elena, ele
confirmava que seria inevitável lançar mão de mais força divina. Até quando seu
corpo agüentaria?
Marido e mulher trocavam golpes e se esquivavam, mas Vanhardt se encontrava
em situação desfavorável. S elena conseguira feri-lo duas vezes no braço que
carregava Flama, e ele não conseguia atacar com tanto vigor quanto antes. N a
verdade, ele não queria machucá-la, e ao mesmo tempo queria punir aquele que
roubou a sua esposa. A previsão do oráculo assaltava-lhe a mente como um
vendedor que bate insistentemente à porta. Para libertá-la ele teria de matá-la.
O duelo prosseguiu implacavelmente. Mondovar acertou o punho de sua arma
contra o rosto de Vanhardt duas vezes, fazendo jorrar sangue pelo seu nariz. N ão
demorou para que outro golpe atirasse o filho da deusa do gelo contra uma coluna,
quebrando duas ou três costelas no processo. Vanhardt custou a se levantar,
sentindo-se zonzo, com a visão embaçada, como se agulhas afiadas penetrassem
em cada centímetro de sua pele. N ão ousou, entretanto, se curar, pois a energia
divina que poderia utilizar era limitada.
Está com medo de me ferir, meu amor? - o sorriso malévolo de S elena não
deixava dúvidas que aquela não era a sua esposa. - N ão está sendo o mesmo
adversário de antes. Você me prometeu uma boa luta, e agora se mostra tão
displicente! O que mudou para desistir de lutar?
Tudo mudou! Não pode ser... - a voz de Vanhardt não era a mesma, devido a um
edema no lábio superior. - Eu me lembro do dia em que fui atrás de Erick... A nossa
despedida... Você chorava tanto, era tão frágil...
Aquela Selena que você conheceu se perdeu no tempo. Eu sou Mondovar!
S elena, por favor, me escute! Vamos deixar esse lugar! Vamos voltar para
Crivengart, pegar nosso filho, e reconstruir nossa família! N ão precisa ser assim!
Diga-me o que posso fazer para te libertar desse feitiço!
Você não entende! - S elena aplicou um poderoso golpe na vertical, atirando
Vanhardt ao chão. Ela continuou atacando o jovem que teve enormes dificuldades
para se defender caído. - A S elena que você conheceu não existe. N ão há feitiço
algum!
Mondovar cravou a ponta da espada no ombro direito de Vanhardt, que gritou
imediatamente. Este, por sua vez, utilizou Flama contra o braço do inimigo que só
não foi decepado devido à poderosa armadura que o protegeu. O golpe, contudo,
foi forte o suficiente para obrigar Mondovar a recuar alguns passos, fornecendo
segundos preciosos que permitiram Vanhardt se levantar. Ele estava seriamente
ferido no ombro direito, e não poderia defender qualquer ataque mais forte de
S elena. D essa vez utilizou a Aruc vanidi para se curar, mas acabou ajoelhando-se no
chão e sentindo mais dor do que se tivesse recebido um golpe da esposa.
Você me parece realmente mais fraco do que da última vez em que lutamos.
Fico feliz em saber que o meu golpe com a Ceifadora de Vidas, naquele dia em
Crivengart, mostrou-se de alguma forma eficaz, apesar de não ter tirado a sua vida.
D esse jeito nunca irá me vencer. É um lutador bravo e aguerrido, mas enquanto
não despertar de verdade não será de capaz de terminar a luta vivo.
Despertar de verdade?
S im - Mondovar dava voltas em círculos ao redor do jovem, que o acompanhava
com o olhar. - A persar de pensar estar acordado, você está dormindo. I números
sentimentos, pensamentos, idéias, coisas que não são suas, se encontram
agregadas em sua essência. Está sujo de egoísmo, inveja, ira, e milhares de outras
características que não suas. S ua essência está obscurecida por todos esses
elementos, de modo que não consegue se revelar. D urante a nossa batalha em
Crivengart, por alguns instantes, você soube o que era estar desperto. A cabou
esquecendo, entretanto, e agora está perdido no meio desses agregados que
impedem o verdadeiro Vanhardt de se revelar. É lógico que não acredito que você
eliminaria todos os elementos de uma vez só, e é por isso que sei que irá perder.
Pode até ser verdade, mas nunca desistirei. Selena, eu vou te libertar!
É inútil tentar convencê-lo do contrário. Quem sabe no outro mundo.
S ó então Vanhardt teve plena ciência de que tudo estaria terminado dali a
alguns momentos. Ele nunca libertaria S elena com palavras. Como ela mesma
disse, aquela armadura negra continha em seu interior alguém chamado
Mondovar. S elena não mais existia. A os poucos relembrou comentários de Ravina
sobre "eus" que viviam dentro do que achamos ser um único "eu". O episódio
quando foi romper os selos do Templo D ourado, e se viu mergulhando num lago,
onde dezenas de "Vanhardts" o seguravam. O modo diferente como se sentiu na
batalha de Crivengart, onde percebia tudo ao seu redor de maneira mais viva e
clara; ali não existiam outros "eus". N aquele instante ele era apenas Vanhardt, e
estava verdadeiramente desperto. Mas como despertar novamente sem usar os
poderes divinos? D aquela vez, foram esses poderes que o ajudaram a despertar,
porém agora ele não teria como usá-los, ou do contrário morreria.
Vanhardt jogou Flama para a mão esquerda, e posicionou-se com a respectiva
perna para trás, e a direita na frente. Ele precisava de apenas um segundo. A penas
um segundo desperto, e derrotaria Mondovar. A mulher na frente dele, que uma
vez se chamou S elena, segurou a espada com ambas as mãos, e sorriu
delicadamente. Vanhardt estava cansado, sangrando, inchado, sem energia divina,
e com dores excruciantes em cada célula do corpo. A chance de vencer era remota.
Tudo a partir daí transcorreu muito rápido, em questão de segundos. O maior
embate na vida dos dois não teve centelhas resplandecendo no ar, sons de trovões,
ou gritos ensurdecedores. Mondovar partiu pra cima de Vanhardt, que continuou
imóvel, e atravessou sua lâmina no lado direito do peito do filho da deusa do gelo.
Este ignorou o ferimento, segurou firmemente o punho de Mondovar com a mão
direita, e cravou-lhe Flama numa fresta da armadura na altura do abdome.
Q uem sou eu, um humilde bardo, para poder descrever o que se passou no
coração do filho da deusa do gelo? N ão, infelizmente minha capacidade narrativa
não chega a este ponto. D eixo pra vocês leitores imaginarem a dor, misturada com
pavor, e alívio. Ele conseguiu ficar o seu "um segundo" desperto, e neste tempo
encontrou o lugar onde atacar, e teve plena consciência que essa era a atitude a ser
tomada. O s olhos de S elena se arregalaram, e seu semblante passou de dor, para o
de alegria.
Você me deixou vencer...! Por quê? - gemeu Vanhardt, como se fosse ele que
estivesse morrendo.
N ão, foi você quem conseguiu! - a mulher arfava, e apresentava sérias
dificuldades para falar. - Parabéns meu amor... Eu agora me sinto livre! Há tanta
maldade no mundo... I nfelizmente ela me dominou completamente, e só agora
estou salva. Você... - S elena tossiu, e despejou todo o amor do mundo em um único
olhar. - Você fez bem... Há mesmo tanta maldade no mundo... Por favor, acabe com
ela! Eu sempre te amarei...
A s pálpebras de S elena hesitaram, e por fim acabaram cobrindo os olhos.
Lágrimas começaram a salpicar o rosto da mulher, e o seu corpo começou a
balançar. Vanhardt chorava igual a uma criança e abraçava a mulher ternamente.
Lembranças saltaram em sua mente; o primeiro encontro dos dois, as brincadeiras
de criança, as tentativas de acertar o graveto nas costas uns dos outros. O seu
casamento e como ela estava linda. S elena era linda! O rosto de sua esposa esfriou
rapidamente, e ele beijou suas bochechas com carinho. Ele havia matado a própria
mulher. Olhou para cima, com lágrimas escorrendo pelas bochechas, e gritou:
N ÃO O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O !!! - o jovem continuava abraçado ao
corpo que agora não revelava nenhum sinal de vida.
N ão? Eu é que devia dizer não! Você matou um dos meus melhores guerreiros -
uma voz misteriosa emergiu de um canto escuro da sala.
Como? Q uem está aí? A pareça! - Vanhardt depositou com cuidado o corpo da
esposa no chão, e levantou-se, com o sangue de S elena ainda banhando a lâmina de
Flama. Ele não conseguia enxergar o dono da voz, que utilizava as sombras para se
manter oculto.
Você e sua mãe devem morrer de curiosidade para saber quem sou eu! Ah... - de
repente, deixando as sombras para trás, uma figura alta, de armadura prateada,
elmo semelhante a uma caveira, e dois chifres brancos. Em órbitas vazias ardiam
dois olhos vermelhos, profundos. Era o traidor.
Capítulo LXX - O Último Vôo