Além Da Terra Do Gelo

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Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
Para Tio Charles,
Você continuará vivo em nossas memórias e nosso coração.
Capítulo I - O Pequeno Vanhardt

Vanhardt nasceu num lugar chamado "Terra do Gelo", região ao extremo norte
de Kether onde há neve o ano todo. S eria mentira se não dissesse que o garoto teve
uma infância muito difícil e solitária; era o menino da vila de Crivengart que todos
cuidavam para manter à distância. N unca encontrou colegas para brincar, e via de
longe os garotos correrem uns atrás dos outros, subir em pinheiros, lutar com
galhos quebrados como se fossem espadas. O pior, de qualquer maneira, nem era
isso. O pior era que ele já se acostumava. S entia-se diferente, e o fato de ser muito
pequeno comparado aos meninos de sua idade não ajudava em nada. A distração
favorita do garoto era observar o pai, Thomas, o carpinteiro, trabalhar. S ua mãe,
Dóris, morrera logo após seu nascimento, e Thomas teve de criá-lo sozinho.
Certo dia, do alto de seus sete anos de idade (na verdade, ainda era baixinho),
Vanhardt viu os garotos vizinhos montarem fortes de neve. O s meninos simularam
uma guerra, jogando bolas de neve uns nos outros enquanto se escondiam nos
fortes, gritando e gargalhando. Era uma oportunidade! Q ueria viver como qualquer
outro moleque de Crivengart, queria ter amigos, brincar. O s olhinhos de Vanhardt
brilhavam de alegria, e depois de alguns minutos ele tomou coragem e pediu para
entrar na brincadeira:
Posso brincar também? - gritou bem alto, parado no meio do campo de batalha.
Um silêncio profundo pairou no ar por alguns segundos, enquanto todos,
imóveis e sérios, olhavam para Vanhardt.
N ão atrapalhe, D aicecriv! Vá embora daqui, esquisito! - gritou um dos
moleques, jogando uma bola de neve em Vanhardt, no que foi imitado pelos
coleguinhas.
Uma chuva de bolas alvas e úmidas voou e atingiu o menino, cobrindo- o de
branco. S eus olhos ficaram vermelhos e lágrimas tímidas apontaram. N ão
funcionou. S ó que dessa vez, ele não se resignou, como fazia sempre. N ão queria se
acostumar! Também não entendia porque os outros garotos o odiavam tanto assim.
O que fizera de errado? Por que todos o ofendiam o tempo todo? Por que ninguém
brincava com ele? Caminhou para dentro de casa com o corpo tenso, rígido, se
patrulhando para não chorar. O mundo era injusto! A vida era injusta! O pai, que
estava sentado lixando uma mesa, reparou que o garoto estampava uma expressão
estranha:
Que foi, meu filho?
Por que todos me odeiam, pai? Por que fazem isso comigo? - perguntou o
menino com uma voz que alternava tons agudos e graves. Não chorou, entretanto.
A i... Certo meu filho, sente-se aqui do meu lado - Thomas puxou o menino e
colocou-o sentado numa cadeira ao seu lado. - Eu nunca contei isso a você, para
poupá-lo, mas está na hora de saber a verdade. Você está mais crescido, e acho que
tem idade para compreender certas coisas. Por isso, preste bastante atenção, e não
se assuste com o que vou dizer - ele inclinou a cabeça para cima, inspirou
profundamente, e, depositando olhos sinceros no garoto, continuou: - Você não é
filho de D óris, Vanhardt. É verdade que ela pariu você naquela noite terrível, na
qual acabou falecendo. O problema, meu filho, é que minha esposa era infértil, e
não podia ter um bebê. Ela só engravidou depois que pedimos ajuda a uma deusa,
que nos abençoou com um lindo presente! Vanhardt, você é filho de Léia, a deusa
do gelo.
O s olhos do garoto pararam de piscar. Choque. Ele era novo, porém, como seu
pai dissera, podia compreender certas coisas. Permaneceu paralisado por um
instante, pois a notícia surtira um prolongado efeito. D óris não era sua mãe? Ele
era filho da deusa do gelo? E Thomas, o que seria? A inda inseguro, o garoto
perguntou:
Pai, e você? Não é meu pai também?
Ah, sim, sou mesmo seu pai.
Mas como pode você ser meu pai, a minha mãe uma deusa, e quem me deu à
luz uma humana? - Vanhardt complicara tudo.
A h... I sso é difícil de esclarecer... Vou explicar de maneira simples, pra você
entender. A deusa do gelo, a quem sou eternamente grato, nos deu parte de sua
energia divina. S ó que essa energia, sozinha, não podia gerar um filho humano, era
preciso também a essência humana. Então, a deusa pegou parte de minha essência
e juntou à dela, gerando a partir daí uma semente. Ela implantou essa semente em
D óris, que assim ficou grávida de você. D urante o parto, que foi muito complicado,
D óris não suportou a imensa carga de energia que teve de ser liberada, e veio a
falecer. Mas eu não fiquei triste o tempo todo, porque, apesar de ter perdido minha
esposa, ganhei um filho maravilhoso! - Thomas sorriu tentando animar o garoto ou
a si mesmo.
Vanhardt ainda achava aquilo confuso, e não parava de perguntar:
Pai... S e sou filho de uma deusa, posso fazer o que os deuses fazem, como
milagres, não é?
Claro que sim! E é por isso que todos na vila não gostam de manter contato com
você. Porque têm medo. E uma coisa eu pude aprender com minha experiência: as
pessoas temem aquilo que desconhecem. Olha, vou te contar uma história.
"Há muito tempo, quando você era ainda um bebê, nós da vila migramos para o
sul por conta de um inverno especialmente rigoroso. D urante a viagem, um
incidente aconteceu. A carroça em que nós dois viajávamos margeava um lago
quando a roda do meu lado se chocou contra a quina de uma rocha, e com o
solavanco, você foi arrancado de meus braços, e atirado para fora do veículo. Fiquei
assustado, pois se alguém pequeno como você tivesse caído no chão e batido a
cabeça, poderia ter até morrido! Q uando fui para a borda da carroça assustei-me
enormemente quando o vi afundando no lago, se debatendo. D esci rapidamente do
veículo, corri em sua direção e também mergulhei na água gelada. N adei à sua
procura, desesperado, e não consegui encontrá-lo. Comecei a congelar, e acabei
sendo resgatado para fora da água por nossos vizinhos. Q uase morri, e nada
pudemos fazer para salvá-lo, meu filho. Ficamos ainda um dia inteiro acampados,
para eu poder me aquecer e não morrer da 'doença do frio'".
"Não guardava mais esperanças de achá-lo vivo, pois haviam se passado mais de
vinte e quatro horas sem nenhum sinal seu. Por uma daquelas coincidências
providenciais, fui até a margem do lago para dar-lhe o último adeus, e acabei
notando um vulto dentro da água. S em pensar duas vezes quebrei a fina camada de
gelo que recobria o lago e... adivinha quem era? A credita que você saiu chorando
dali? Ficou mais de um dia debaixo d'água, e ainda saiu com vida! I magine,
nenhum humano teria sobrevivido. Foi a partir desse dia que os outros
crivengartenses passaram a se afastar de você."
Vanhardt sentia sua cabeça doer, pois recebera muita informação em um curto
período de tempo. Ele era filho de uma deusa, e podia fazer milagres... D e alguma
forma era especial. Só que ainda não sabia se isso era bom ou ruim.
Pai, e o que mais posso-fazer? - perguntou o garoto, pensando em proezas
divinas.
Isso eu não sei. Só sua mãe pode responder.
E quando irei vê-la?
Veja bem, meu filho, isso é difícil. D euses não costumam ficar circulando pelo
mundo dos humanos. S ó o tempo dirá quando irá vê-la. -Thomas colocou a mão
sobre o ombro do filho.
Mas ela não quer me ver? Ela não quer que eu a encontre?
Eu não sei... Paciência, Vanhardt, o tempo vai...
Ela me abandonou como todo mundo! - exclamou Vanhardt, interrompendo a
frase do pai.
Não meu queri...
Eu já entendi! - gritou novamente e saiu de casa batendo a porta.
Capítulo II - O Fantástico Mundo de Kether

A credito de forma sincera que a parte mais difícil de escrever um livro seja o
começo. É nele que você lutará dramaticamente a fim de prender a atenção do
leitor, e demonstrará o que se pode esperar pela frente. A partir daí, ele fará seu
julgamento (algumas vezes injusto, outras nem tanto) e decidirá se continuará
lendo ou não. S em querer me esticar demais, e cair no velho erro de começos
demasiadamente longos, vou logo me explicando. E tentando enfrentar de cabeça
erguida essa parte tão ingrata de uma obra.
A ntes de mais nada, gostaria de deixar claro que convidaram-me para redigir a
história desse herói, situação pela qual fiquei infinitamente feliz. O seu nome
completo, aliás é Vanhardt Mohr D aicecriv (pronuncia-se Vãrrart Mór D aicecriv), e
quer dizer "Vanhardt filho das terras geladas". N unca me achei digno de tamanha
proeza, e relutei o máximo que pude, porém forças maiores acabaram me
convencendo. Pois o velho bardo aqui promete que irá dedicar todos seus esforços
para contá-la da maneira mais verídica, e mais empolgante, que sua habilidade
comunicativa permitir. S e o leitor achar o texto enfadonho, perdoe-me pela
incompetência; caso contrário, se gostar, me deixará satisfeito apenas por tê-lo lido.
A crescento que não sou daqueles que veneram descrições completíssimas, nos
mínimos detalhes, redundantes, e por isso monótonas e aborrecidas. S e acontecer,
terá todo o direito de reclamar, e prometo que será atendido. O s próximos
parágrafos são uma introdução ao meu mundo, curtíssima para não chatear
ninguém. Pois bem, vamos lá.
Há um lugar diferente desse que vocês chamam de "Terra", governado por
deuses. Esse mundo é Kether. Contam as lendas que não foram tais deuses os
criadores de Kether, e sim uma força maior, chamada "A bsoluto". Q uando as
pessoas daqui ouvem isso, caem na gargalhada, pois para elas é absurdo pensar
que não foram os deuses os criadores de nosso mundo. Eu mesmo, seu fiel
narrador, custei a acreditar quando ouvi o relato da boca de um dragão ancião.
S egundo esse velho, porém sábio dragão (seu nome era Frumbus, só que ele não
gostava nem um pouquinho que o chamassem assim; preferia "O Poderoso S enhor
das Chamas"), o tal de A bsoluto criou o mundo de Kether, e só depois vieram os
deuses. A força do A bsoluto foi responsável pelo surgimento de todos os seres
fantásticos que habitam o planeta, como gnomos, duendes, lagartos, gigantes,
fadas, orcs, trolls, pássaros roca, tigres, além dos reinos mineral e vegetal. A partir
desse ponto, no qual cadeias imensas de montanhas cortavam o continente, mares
e oceanos inundavam vastos territórios, e centenas de milhares de criaturas
habitavam o planeta, os deuses assumiram o controle do mundo.
N esse momento, o A bsoluto deixara de existir. N ão adianta me perguntar, não
sei como isso aconteceu, ele simplesmente sumiu e deixou Kether nas mãos
divinas. Certo, e o que veio antes do Absoluto? Isso o velho Frumbus não soube me
responder. Talvez nem mesmo os deuses saibam! Para os leitores que pela
primeira vez se aventuram nessas páginas, informo que são sete as principais
divindades que governam nosso mundo: S alazar, o deus do sol; N úbia, a deusa da
noite; Laodicéia, a deusa da natureza; N autillus, o deus dos mares e oceanos; Bel, a
deusa da vida; Morgana, a deusa da morte e finalmente J ustus, o deus da J ustiça e
líder do Panteão dos deuses. Existem também dezenas de outras divindades
menores, mas elas exercem pequena influência sobre nosso fabuloso mundo.
Bem, aposto que você já deve estar imaginando quando voltarei a contar a
história de Vanhardt, não é? Então...

Passaram-se muitos meses desde aquele dia que Vanhardt brigou com o pai. Ele
continuava distante dos outros garotos, mas voltara a conversar normalmente com
Thomas. N o meio de uma noite bastante fria, acordou ao ouvir chamarem seu
nome:
Vanhardt... Vanhardt...!
A estranha voz soava baixinho, um sussurro, que vinha do outro lado da janela
do quarto. Continuou deitado na cama, pois podia ter apenas sonhado. Porém a
voz insistiu:
Vanhardt...! Não tenha medo... Venha comigo!
A gora tinha certeza, não era nenhum sonho. Pensou em correr para chamar o
pai, porque era bem capaz de ser um fantasma esperando por ele lá fora. D esistiu
ao se imaginar saindo da proteção da cama e do quarto. Enrolou-se debaixo do
cobertor, esperando os sussurros cessarem, o que infelizmente não aconteceu:
Há algo que eu gostaria de mostrá-lo...! Venha aqui fora!
D essa vez ele pulou da cama e disparou para o quarto de Thomas. A briu a porta
gritando:
Pai, uma coisa está me chamando lá fora!
Thomas gemeu e virou-se com dificuldade. O rosto amassado revelava sono.
O que foi? - perguntou, com a voz espremida e rouca - Quem está te chamando?
Ah, não fui lá ver... Só sei que é um fantasma, com certeza!
Volte a dormir, você estava apenas sonhando! - Thomas pegou o travesseiro de
penas de ganso e o pôs debaixo da cabeça, tornando a roncar logo em seguida.
O garoto ainda balançou o pai duas vezes, desistindo quando se deu conta de
que não o acordaria nem se a casa estivesse desabando. Voltou para o quarto
emburrado e apreensivo, mas em vez de se deitar abriu uma fresta na janela.
Meteu um dos olhos curiosos na abertura e observou. N ão notou nada de estranho,
e podia enxergar muito bem, pois a luz da fogueira no centro da vila, que sempre
ficava acesa para espantar lobos, somava-se à uma lua muito brilhante. É, sonhara
apenas! Virou-se para deitar na cama, e quando puxava as cobertas, pôde escutar a
voz mais uma vez:
Vanhardt, eu estou aqui porque tenho um segredo para te revelar! Não sou nenhuma
assombração, pode me seguir sem medo! Venha aqui fora...!
O garoto sentiu uma curiosidade crescente. S eria uma assombração? Como
poderia ter certeza? O ra, se fosse um fantasma, obviamente não revelaria sua
identidade, e diria que não era uma assombração. Mesmo assim resolveu arriscar.
Vestiu um casaco de lã, bastante fino, que não servia de nada para proteger do
frio. Mesmo sendo óbvio para o pai do garoto que este não sofria os efeitos do frio,
acabava por hábito obrigando o menino a usar proteção para sair de casa. Calçou
também uma bota e cuidou de sair silenciosamente. N ão que achasse que seu pai
acordaria com o barulho de seus passos, pois Thomas costumava dormir como um
urso, mas de qualquer modo era bom prevenir. O lhou para ambos os lados e só via
ruas desertas. A fogueira crepitava tranqüilamente no centro da vila, e uivos
distantes de lobos podiam ser ouvidos. Onde estaria o dono da voz?
Siga-me!
D essa vez ela veio do leste, próxima da casa de seu vizinho Eventorn Runcard.
N ão havia ninguém ali, entretanto. Correu para o local, começando a ficar irritado
com a pessoa (ou fantasma!) que não se revelava. S ussurrou para não acordar
outros habitantes da vila:
Onde você está? Por que não aparece?
Continue me seguindo e você vai me encontrar... Confie em mim!
A voz vinha do final da vila, e Vanhardt continuou a persegui-la. O s sussurros
se seguiram, e guiaram o garoto, que não teve dificuldades em enxergar o terreno
bem iluminado pela lua, para longe de Crivengart (N úbia, a deusa da noite, devia
estar querendo se mostrar para manter seu castelo lunar tão brilhante). S ubiram e
desceram um morro, e passaram próximos a um lago onde os crivengartenses
costumavam pescar. Continuaram por quase uma hora, e quando Vanhardt não
agüentava mais de cansaço, a voz sibilou:
Chegamos!
Vanhardt havia parado em frente a uma majestosa parede de gelo. S eu
comprimento era maior que toda a vila de Crivengart, e tinha a altura de dois
pinheiros empilhados um sobre o outro. O garoto aproximou-se lentamente, e
pôde ver seu corpo refletido na parede de gelo. Tocou-a com as duas mãos
pequeninas, e sentiu uma energia muito estranha, embora agradável, emanando
daquela estrutura.
Pronuncie as palavras mágicas "Abartre daopeolg"! - a voz agora ecoava de dentro da
parede de gelo.
O garoto abaixou as mãozinhas e fez como a voz mandou:
Abartre daopeolg!
O uviu-se um estrondo enorme, e toda a estrutura começou a tremer. Vanhardt
deu três passos para trás, e viu que metade da parede de gelo se abria para fora,
como se fosse uma porta. Q uando estava totalmente aberta, o garoto ficou cego por
alguns segundos com a forte luz branca que emanava de seu interior. A visão logo
se restabeleceu, e ele percebeu que o feixe de luz continuava saindo da abertura,
mas era mais fraco e tranqüilizador. Hesitou: deveria entrar?
Venha! - a voz não era mais um sussurro misterioso, e sim feminina, meiga e
graciosa.
O lhou para os lados, e constatou que ninguém o seguira. Então, com passinhos
curtos e pouco decididos, Vanhardt atravessou lentamente o magnífico portal de
gelo.
Capítulo III - A Casa de Gelo

O garoto, deslumbrado, entrou no que parecia ser um enorme salão, todo


construído e enfeitado por cristais e gelo. A s paredes eram brancas, um candelabro
com cristais no lugar das velas pendia sob o teto e iluminava o ambiente. Uma
mesa circular, transparente, repousava ao centro, com doze cadeiras ao seu redor.
A lém disso, à sua direita, havia uma lareira com pedras vermelhas que ardiam
como brasas quentes.
O que mais surpreendeu Vanhardt, entretanto, não foi o maravilhoso salão.
Atrás da mesa, em pé, com um singelo sorriso no rosto, havia uma linda mulher. A
moça aparentava vinte e poucos anos, longos cabelos pretos, lisos, um rosto muito
branco e delicado, um nariz pequeno e lábios bem vermelhos. Usava um vestido
comprido, branco, bordado com estrelas prateadas.
Percebeu na mesma hora que era sua mãe, a deusa do gelo. A mãe que pensou
ter perdido durante seu nascimento, mas descobriu ser uma deusa, estava ali,
parada em sua frente. Todos esses anos sem uma mãe para poder abraçar e receber
carinho, colo para chorar, incentivos e gargalhadas... Por que ela nunca o visitara?
Por quê? S eus olhos começaram a ficar molhados, e as pernas tremiam. O s
sentimentos se misturavam, uma enorme alegria e ao mesmo tempo uma imensa
raiva se fundiam. Vanhardt era ainda um garoto, e enfrentava uma situação com a
qual até um adulto teria dificuldades de lidar. Lágrimas passaram a escorrer por
seu rosto, e o estômago estava frio e dolorido.
Meu querido... Eu sei o que você está sentindo! Venha aqui, abrace sua mãe! - A
deusa do gelo estendeu os braços para frente.
O sentimento que predominava era raiva, muita raiva. Então era assim, ela o
abandonava esse tempo todo, e um dia, quando sentiu vontade, resolvera aparecer
para ele? N ão, ele não permitiria que ela o machucasse mais ainda. I ria lhe mostrar
toda a sua raiva, e devolver o sofrimento pelo qual passara durante esses anos.
Vanhardt apertou os dedos da mão direita com força, e disparou em direção à
sua mãe. Brandiu o braço no ar, e quando estava pronto para dar um soco na
mulher que o aguardava de braços abertos, desistiu, e desabou em seus braços
chorando copiosamente.
Mãe... Mãe, não me abandone! Não me deixe nunca mais!
O s olhos de Leia também ficaram molhados, e ela abraçou o filho ternamente,
sentando-se com ele no chão.
N ão se preocupe meu querido Vanhardt, nunca o abandonarei! E saiba que
estarei sempre ao seu lado, para auxiliá-lo e protegê-lo! Está me ouvindo? N unca o
abandonarei, nunca!
Vanhardt não soube quanto tempo ficou abraçado à mãe. Poderia permanecer
ali eternamente, e seria o garoto mais feliz do mundo. S entia o calor e o carinho
que há tanto tempo desejava.
A h, meu filho! Eu não apareci antes porque não achei que você tivesse idade
para compreender... Fiquei com medo de que ficasse confuso, chocado, e me
rejeitasse. Foi por isso que esperei até você crescer mais um pouco, para poder me
apresentar.
E o que foi aquela voz que ouvi lá em casa? - perguntou o garoto, que
continuava firmemente abraçado à mãe.
Fui eu mesma quem o chamou, por telepatia. Um dom que só pode ser
compatilhado por mãe e filho. - Léia deu um longo sorriso, e apontou em seguida
para o cômodo onde se encontravam, mudando de assunto - Está vendo essa casa?
Levei muito tempo para construí-la para você. Venha, vou mostrá-la!
Léia deu a mão para o garoto, que a apertou com força, como se temesse soltá-la
e nunca mais ver a mãe. A deusa do gelo guiou-o através de uma porta no canto
esquerdo do salão. O aposento em que chegaram era ainda maior que o primeiro, e
encantou o pequeno Vanhardt. Era cheio de brinquedos, como cavalinhos de
cristais que balançavam, túneis de gelo que se encaracolavam como labirintos,
vários balanços, uma piscina retangular com um trampolim e um escorregador,
dezenas ursinhos de pelúcia e muitos outros objetos lúdicos.
E a água da piscina é quente! - comentou Léia enquanto Vanhardt olhava o
quarto boquiaberto. - Eu via que os garotos de Crivengart não queriam brincar com
você, por isso fiz esse quarto para que pudesse se divertir quando sentisse vontade!
Mas, mãe, não tem graça brincar com tudo isso sozinho... E também a água não
precisava ser quente, não sabia que não sinto frio?
A h, esqueci de mostrar seus novos amiguinhos. A água quente é para eles.
Pepenjis, venham aqui! - exclamou bem alto enquanto batia palmas com as mãos.
D e um canto do aposento, onde Vanhardt reparou existirem vários iglus
pequenininhos, saíram criaturas muito engraçadas que marchavam gingando o
corpo de um lado para o outro, como pingüins. S eus pêlos eram brancos, tinham
bicos amarelos, e produziam sons estranhos:
Pen! Pen! Pen! Pen! - gritavam enquanto se aproximavam de Vanhardt, que não
ficou com medo.
Eles podem parecer desengonçados, mas são muitíssimo inteligentes e adoram
brincar. Vão estar aqui sempre que você vier! - comentou docemente a deusa do
gelo.
Vanhardt soltou a mão de sua mãe e gritou para os Pepenjis:
A í, pingüinzada, vamos ver quem dá o melhor mergulho! - correu e deu um
pulo na água de roupa e tudo.
O s Pepenjis seguiram-no, fazendo o mesmo, cada um dando um mergulho mais
elaborado que o outro. Vanhardt brincou horas com as criaturinhas, e mesmo
assim não conseguiu utilizar todos os brinquedos. Léia passou o tempo sentada,
observando o filho brincar. Estava muito feliz por ver que ele também estava. Em
um certo momento, ela chamou o garoto:
Vanhardt, acho melhor você ir pra casa agora! S eu pai não sabe que você veio
aqui, e deve estar preocupado!
Ô mãe! Só mais um pouquinho!
O utro dia, meu filho! A casa de gelo estará sempre pronta para recebê-lo. É só
pronunciar aquelas palavras que te ensinei, e aí poderá entrar.
E você estará aqui, não é?
N em sempre, pois também tenho outros deveres. Mas me esforçarei para visitá-
lo o máximo que puder... Combinado?
Relutando por uns momentos, Vanhardt enfim concordou com um aceno de
cabeça:
Hum-hum...
Léia acompanhou o garoto até a porta de gelo por onde ele havia entrado. Ela
deu um beijo no filho, e afagou o seu cabelo.
— Então até logo, meu filho!
Até logo... - fez uma pequena pausa antes de completar - Minha mãe!
O garoto saiu pelo portal com o queixo por cima dos ombros, deixando o
contorno da deusa bem no meio dos seus olhos. A chava que se a perdesse de vista,
faria com que ela desaparecesse para sempre. Q uando terminou de atravessar a
porta, viu-a se fechar sozinha. Parecia tudo um sonho. N o fundo ele fazia
promessas consigo mesmo para que aquilo não fosse um sonho. O lhando ao redor,
Vanhardt percebeu que já era dia, e o S ol apontava alto no céu. S eu pai deveria
estar preocupado, porque ficara fora de casa bastante tempo. Conseguiu voltar
facilmente para a vila, e certificou-se de guardar bem o caminho. Tinha certeza que
se armazenasse as informações daquele dia com muito cuidado, garantiria que
tudo pudesse acontecer novamente.
D entro de Crivengart, Vanhardt notou que os aldeões olhavam para ele, tanto
adultos quanto crianças. N ormalmente as pessoas o ignoravam, fingiam não vê-lo;
agora tinham o olhar fixo em sua direção. Seria porque ele passou uma noite inteira
fora de casa? Mas como eles descobriram? A cabou que o garoto nem se importou
com isso. Estava tão feliz por ter encontrado a mãe que o olhar das outras pessoas
não o perturbou. Virou-se para entrar em casa, e um garoto de cabelos vermelhos,
bastante alto, o interpelou:
E aí, esquisito, resolveu fugir e desistiu no meio do caminho? - Rufus, seu
vizinho, filho de Eventorn Runcard, mostrava um sorriso malicioso nos lábios. -
Pois seria ótimo se você fosse embora, porque ninguém o quer aqui mesmo!
Cala a boca, Rufus! - exclamou Vanhardt, enchendo o peito de ar. - Eu tenho
pessoas que me querem aqui, sim, e que me desejam o melhor!
Hahahaha! - Rufus riu maldosamente - Você é muito inocente, e estúpido
também! Mas não o culpo, seu pai lhe deu uma educação muito ruim. Tem sorte de
sua mãe ter morrido no parto, porque ela ficaria bem triste de ver que o filho é um
idiota!
O sangue de Vanhardt ferveu. N ão se incomodava de ser ofendido, já estava até
acostumado. Mas não aceitava ofensas à sua família. Fechou a mão com força,
estalando os dedos. Rufus tinha quase o dobro do seu tamanho, apesar de ser
apenas dois anos mais velho. S entia o próprio rosto ruborizar de tanta raiva, e calor
no resto do corpo. D essa vez tomaria uma atitude, pois era filho de uma deusa, e se
lutasse contra um humano normal venceria facilmente. A rredou a perna direita um
pouco para trás, e jogou violentamente o braço para o alto, mirando o rosto de
Rufus. Era a primeira vez que brigava.
Capítulo IV - Viajantes e Lobos

Entrou em casa com um olho roxo e vários hematomas pelo corpo. Uma das
costelas do lado direito doía terrivelmente, e chegou a acreditar que a havia
quebrado. Levara uma boa surra de Rufus, e só não estava totalmente aborrecido
porque também deixara um olho do adversário sangrando. S ua mãe nem quis
auxiliá-lo na luta! Era uma deusa, poderia ter feito Rufus tropeçar, ou lançado uma
tempestade de neve que o congelasse. Q ualquer coisa que o ajudasse a vencer, e
não passar vergonha na frente dos outros. O s poderes divinos do menino também
não se manifestaram, o que deixava Vanhardt mais descontente ainda. É, talvez ela
não o tivesse ajudado justamente para ensiná-lo a não sair no tapa com qualquer
um que o provocasse. Thomas abriu a porta e tomou um susto ao ver o filho
naquela situação:
Vanhardt, onde você se meteu? Passou a manhã inteira fora de casa, e aparece
assim! N ossa, procurei você pela vila toda, estava muito preocupado... Mas o que
aconteceu? Caiu de algum barranco, ou foi atacado por lobos? - o pai o fitava com
olhos arregalados, assustados.
N ão, pai, isso não foi nada. Eu fui... - relutou um pouco, pois não sabia se devia
contar que havia se encontrado com sua mãe nem que tinha brigado com Rufus. -
Pai, eu vi a minha mãe!
O garoto revelou toda a aventura ao pai. N ão existiam razões para esconder o
acontecimento dele, e acabou contando também sobre a briga que tivera com o
vizinho. Por conta de tudo, Thomas colocou-o de castigo. Uma semana sem poder
sair de casa. S e fosse alguns dias atrás, o castigo nem o incomodaria, porém agora
que descobrira um lugar maravilhoso para passar o tempo, uma semana preso faria
muita diferença. Saiu do castigo no terceiro dia, de tanto insistir com o pai.

A ssim passaram-se muitos anos, e Vanhardt freqüentava a casa de gelo quase


todos os dias. Cuidava para não ser seguido, pois se descobrissem o lugar aonde ia,
podiam invadi-lo, e proibir o menino de voltar lá. Por horas sem fim brincava com
os Pepenjis, mas via sua mãe poucas vezes. D e certa maneira, isso o preocupava.
S empre que sua mãe não se encontrava na casa do gelo, uma intuição perversa
brotava timidamente em seu peito, indicando-lhe que algo ruim lhe aconteceria.
Mesmo depois de muita luta contra esses sentimentos, só se via seguro quando em
outro dia encontrava a deusa do gelo. Q uanto a seu pai, não o abandonara
completamente, é claro, e uma vez até levou-o para conhecer a casa. Thomas ficou
encantado, porém achou os Pepenjis bastante esquisitos.
Um dia, com doze anos e ainda pequeno se comparado aos garotos da mesma
idade, Vanhardt viu sua mãe entrar na casa com uma expressão grave no rosto:
Vanhardt! Preciso de você agora! Q uero que cumpra uma missão
importantíssima para mim.
O garoto interrompeu a brincadeira, que era ver qual Pepenji ele conseguia
atirar mais longe, e voltou os olhos curiosos para a deusa do gelo:
Hã? Uma missão? Qual?
N esse exato momento, viajantes estão sendo atacados por lobos ao norte daqui.
S e ninguém fizer nada, certamente eles morrerão! Preciso que você vá lá e salve-os,
e depois os leve em segurança para Crivengart. Entendeu bem meu filho?
O quê? Viajantes? Lobos? E quem irá comigo?
Você irá sozinho, e tenho certeza que sairá vitorioso! - Léia segurou a mão de
Vanhardt firmemente, encorajando o rapazinho. - Está pronto?
Mãe, eu não sei se conseguirei ajudar! S ou fraco, não sei lutar, e lobos são muito
perigosos... Eu posso morrer! - Vanhardt mantinha os olhos bem abertos, e sua voz
saía fraca da garganta.
Eu sei, mas nunca o enviaria para uma missão se não achasse que seria capaz de
cumpri-la! Veja isso... - Léia estendeu a mão esquerda para o garoto e mostrou-lhe
um pequeno tubo preto, todo ornamentado e cheio de furos. - Essa flauta se chama
"Grito de Baal". Baal era um deus capaz de controlar os lobos. Há muito tempo
atrás tive uma grande luta com ele, e felizmente consegui derrotá-lo. Foi assim que
consegui essa flauta, que tem o poder de afugentar os lobos. Tome! E só soprá-la
bem forte que eles não suportarão o seu som.
Com as mãozinhas vacilantes e visivelmente admirado, Vanhardt pegou a
flauta. O item era belíssimo. Enchendo-se de coragem por ter uma arma fabulosa,
disse à mãe:
Pode deixar comigo, não vou decepcioná-la! Lobos, preparem-se para enfrentar
o terrível Vanhardt e sua arma mortífera, o Grito de Baal! - ergueu a flauta no ar,
entusiasmado, e os Pepenjis começaram a gargalhar do papel ridículo que o garoto
fazia.
Parem com isso, seus bundões! Está certo, me empolguei um pouco, mas é
minha primeira missão!
O s Pepenjis continuaram a gargalhar, enquanto sua mãe sorria bondosamente
para ele.
Vá logo meu filho, não se demore nem mais um segundo! O s viajantes podem
morrer se você não for agora!
Procurando se mostrar sério, Vanhardt colocou a flauta na cintura e saiu da casa
de gelo, se despedindo com um aceno de sua mãe e dos Pepenjis. O coração batia
forte. Ele enfrentaria lobos, um perigo real. Gostaria que todos na vila pudessem
vê-lo lutar contra essas criaturas perigosas, e aí saberiam como ele era corajoso e
talvez o respeitassem mais. Mas... e se ele morresse?
N evava muito naquele dia, e o garoto correu rumo ao norte com a mão
protegendo o rosto. D epois de subir uma colina, pôde avistar algumas centenas de
metros à frente duas pessoas montadas em um cavalo que empinava e dava coices.
Havia três lobos cercando os viajantes, latindo e tentando morder o cavalo. Eram
lobos brancos, quase uma vez e meia maiores que seus parentes, os lobos das
estepes, e infinitamente mais agressivos. Vanhardt desceu a colina com saltos
longos, e, depois de se aproximar mais alguns metros, viu um dos lobos pular e
morder a coxa direita do cavalo. Este empinou e derrubou seus cavaleiros, que
caíram sobre a neve. O s animais ignoraram o cavalo e partiram para cima das duas
pessoas que tentavam se levantar.
A inda um pouco hesitante, Vanhardt sacou a flauta da cintura e soprou-a com
força, fazendo o objeto emitir um guincho agudo. O s lobos caíram no chão, e
começaram a uivar de dor. A flauta funcionara exatamente como sua mãe alertara.
A proximou-se das duas pessoas ainda soprando a flauta, e só ai constatou que
eram um homem na faixa dos quarenta anos, calvo, uma barriga que
insistentemente despontava sobre as calças, e uma menina que poderia ter a sua
idade.
Era a menina mais linda que ele já vira em toda a sua vida. O s cabelos loiros,
encaracolados, se esticavam sobre seus ombros. Tinha os olhos da cor de mel, nariz
pequeno e delicado, e lábios bem finos que davam ao rosto ares de simplicidade e
energia. A garota e o homem, de pé, olhavam para os lobos que uivavam e rolavam
no chão. Vanhardt não se perguntou por que não conseguia desviar os olhos da
menina.
D epois de sentir uma forte dor no braço, o jovem filho da deusa do gelo foi
lançado ao chão. Ele havia se distraído por alguns segundos, e esquecera-se de
tocar a flauta. Um dos lobos, que pulara sobre ele, agora devorava o seu braço
direito, e a flauta se encontrava na neve a poucos centímetros de sua mão. Gritava
escandalosamente enquanto o lobo enterrava os caninos cada vez mais fundo. Era
uma dor insuportável. Vanhardt viu o céu girar e se tornar cada vez mais
embaçado. S entiu que suas forças lhe abandonavam. A ntes que desmaiasse,
porém, levantou a mão esquerda e deu um violento soco na cabeça do lobo,
tirando-o de seu braço. À sua direita a flauta negra continuava deitada sobre a
neve. Lançou a mão rapidamente em sua direção, mas foi impedido de pegá-la por
outro lobo que abocanhou-a primeiro. A pesar de imaginar que a situação não
podia piorar, Vanhardt viu o impossível acontecer: o lobo mordeu a flauta, que fez
um "creck" antes de cair partida ao meio no chão. Piscou os olhos sem acreditar no
que via. O lobo quebrara a flauta, um objeto divino! Mas como...?
Levantou-se rapidamente, e se viu cercado pelos três lobos que rosnavam
mostrando os dentes. O lhou para o lado e reparou que o senhor calvo pegara uma
faca e aplicava golpes no ar, ameaçando um dos lobos, enquanto a menina
agarrava- se à sua cintura. O que faria? Estava sem sua flauta, e não via outra
maneira de derrotar os lobos. O homem, num movimento desesperado, avançou
sobre outro dos lobos tentando feri-lo, e este instintivamente pulou sobre
Vanhardt com a boca aberta. O s dois restantes fizeram o mesmo. O menino apenas
fechou os olhos, e pensou em seu pai e depois em sua mãe. Ele sabia que morreria
naquele momento. Seu braço sangrava muito, e doía indescritivelmente.
Capítulo V - Calmaria e Tempestade

A lguns segundos se passaram, e nada aconteceu. Vanhardt ergueu uma das


pálpebras e viu que os três lobos corriam para longe. Ele então levantou a outra; os
viajantes se aproximavam com passos lentos e sorrisos nos rostos. Por algum
milagre desconhecido ele estava salvo. S ó quando os lobos desapareceram do seu
campo de visão, seu coração voltou a bater compassadamente.
— Ei, rapazinho! - falou o senhor calvo, surpreso - Foi muito corajoso em
enfrentar esses lobos sozinhos! Eu e minha filha estaríamos perdidos se você não
tivesse chegado a tempo! Mas você é uma espécie de feiticeiro, de mago, ou o quê?
Mago? Ah, eu acho que não... Por quê? - Vanhardt perguntou inocentemente.
Por causa dessas chamas que envolveram você logo antes dos lobos o atacarem!
Parecia um dragão de fogo... Como fez isso sendo tão jovem?
A h... nem sei! - olhou então para o seu braço banhado de sangue, e que ainda
doía.
A garota interrompeu a conversa dos dois:
Pai, não o incomode com perguntas agora! N ão vê como está ferido? Venha
aqui, deixe-me cuidar disso. A propósito, eu sou S elena Risalv, e este é meu pai,
Lionel Risalv. - ela puxou Vanhardt pelo braço e o levou até uma bolsa grande, de
couro, que estava jogada no chão. O cavalo fugira com as outras.
Prazer! Eu sou Vanhardt Morh D aicecriv, e... A i! - Vanhardt gritou quando
Selena pôs uma pomada branca e mal-cheirosa sobre o ferimento.
D eixa de ser bebê chorão! A posto que a mordida doeu muito mais que essa
pomadinha aqui. Pronto! - disse, depois de enrolar um pano sobre o braço do
menino.
O senhor Risalv colocou a mão sobre Vanhardt e falou com uma voz gentil:
Meu rapazinho, nós nem sabemos como lhe agradecer! Peça qualquer coisa que
lhe daremos!
Vanhardt olhou para os dois. Ele não queria nada. N a verdade não queria nada
de material, mas não se queixaria de um reconhecimento pelo heroísmo.
N ão quero nada, não, senhor. Muito obrigado! Ficaria feliz se vocês... A hm...
A h, apenas cumpri meu dever! - com um sorriso sem graça, ele estendeu a mão
para o S r. Risalv. A cabou se repreendendo por não ter perguntado à deusa do gelo
se deveria pedir alguma recompensa dos viajantes.
O s dois se cumprimentaram satisfeitos, e Vanhardt se inclinou para frente
numa reverência para Selena.
Milady...
Ei, o que foi? N ão aceito isso de um herói. S ou eu quem deveria...- ela estendeu
as pontas dos dedos para Vanhardt, que enrubescido, tentou um beijo galante, mas
acabou salpicando de saliva a mão de S elena. A garota, secretamente, limpou a
mão nas costas.
Bem, mas vocês dois estão num lugar onde não costumam passar muitos
viajantes. - tornou o garoto, mudando de assunto e se recompondo da manobra
completamente desajeitada. - De onde estão vindo?
Lionel Risalv tossiu e respondeu com a voz engasgada:
Er... nós estávamos vindo de casa... é, houve alguns problemas e... ãh... humm,
sabe como é, viemos parar aqui e... pois é, daí apareceram os lobos e o resto você
sabe.
Percebendo o nervosismo do homem, Vanhardt não insistiu com outras
perguntas. Com todos ali parados, se entreolhando, o garoto ficou indeciso por
alguns instantes. A cabou oferecendo para levá-los à sua casa para que pudessem
descansar, e o homem mais velho se mostrou novamente agradecido. D urante a
caminhada Vanhardt não tirava os olhos da menina. Ele sentia um frio em seu
peito, e ao mesmo tempo um calor... E seu coração estava pequenininho! O que
seria isso? Que sentimento estranho e novo era aquele?

O tempo continuou a correr implacável como as areias de uma ampulheta.


Lionel e sua filha S elena acabaram se estabelecendo na vila de Crivengart. Risalv
era um ótimo ferreiro, e entendia muito de cavalos, portanto foi fácil para os
crivengartenses o aceitarem. Para Vanhardt também não foi nada ruim, pois agora
tinha uma amiga (bonita e simpática!) para brincar. A lém disso, o pai de S elena fez
questão de espalhar para os aldeões o heróico salvamento que Vanhardt executara,
e estes começaram a conviver melhor com o garoto. Ele até, vez ou outra, era
cumprimentado por algum menino da vila.
N ão demorou para que Vanhardt fosse consumido por intensa ansiedade, e
acabasse levando S elena para o seu lugar secreto, a casa de gelo. A menina ficou
mais que encantada. Léia estava presente e revelou-se extremamente satisfeita de
conhecer a amiga do filho. Ela pediu S elena, aliás, para não contar a ninguém sobre
aquele lugar, a fim de que não surgissem problemas com desconhecidos de
intenções pouco nobres.
Q uando S elena se afastou para brincar com os Pepenjis, Vanhardt perguntou à
sua mãe como os lobos que ele enfrentou anteriormente fugiram. Ela lhe
respondeu que eram seus poderes latentes começando a surgir.
N ossa...! Mas por que a flauta se quebrou com a simples mordida de um lobo?
Eu pensava que por ser um objeto divino ele era indestrutível, ou no mínimo difícil
de ser quebrado.
A contece que o ponto fraco da flauta era justamente o seu alvo de ação: lobos.
Pode parecer estranho, mas é muito comum no mundo dos deuses. Q uando lutei
contra Baal, por exemplo, utilizei o canino de um lobo para derrotá-lo.
Como uma máquina, o garoto insistia nas indagações:
Mas por que não consigo usar meus poderes divinos quando eu desejo?
Q uando você nasceu já sabia andar? — Léia tinha uma das sobrancelhas
arqueadas.
Não...
E engatinhar, já sabia isso?
Er... É lógico que não, mãe!
Pois, então, podemos dizer que isso segue um princípio semelhante. Você teve
de primeiro aprender a sentar, e depois engatinhar. Com o tempo foi ganhando
mais segurança e desenvoltura, e aí foi capaz caminhar. D a mesma maneira, os
poderes divinos que carrega em seu interior se desenvolverão por etapas. Por
enquanto você está aprendendo a sentar. S ó depois começará a engatinhar, e,
passado algum tempo, caminhar, e quem sabe num futuro não poderá até correr? -
Léia terminou a explicação com. uma piscada. - Entendeu?
Eu acho que sim...
O jovem Vanhardt aproveitou um período de tranqüilidade que dificilmente se
repetiria em toda sua vida. Q uando não estava na casa de gelo, com os Pepenjis,
passava o dia com S elena brincando de correr, esconder, ou ensinando-a a pescar.
A s brincadeiras, aliás, espelhavam uma intimidade que parecia remontar de
muitos anos.
Em um dia de verão, menos frio que os demais, S elena corria atrás de Vanhardt
para espetar um graveto em suas costas. N essa brincadeira, em geral, ela
costumava sempre levar a vantagem, porém aquele era um dia bem particular.
Com as variáveis invertidas, Vanhardt depositava todas suas energias nas pernas,
pois queria ficar o maior tempo possível correndo de Selena.
Eles subiram uma pequena colina, já arfando, e quando a garota sentiu que se
aproximava do filho da deusa do gelo, deu um salto. D e fato ela conseguiu acertar a
ponta do graveto nas costas de Vanhardt. Entretanto, acabou trombando com ele, e
os dois rolaram ladeira abaixo, abraçados um ao outro. A ssim que chegaram ao pé
da colina, dispararam a gargalhar com os corpos cobertos de flocos de neve.
Vanhardt, delicadamente, limpou o rosto da amiga, e sentia uma emoção enorme
apertando o seu coração. O s olhos de S elena estavam tão meigos que fazia o
rapazinho querer roubá-los. Ternamente, os amigos se abraçaram e começaram a
gargalhar, e dessa vez foi S elena quem se levantou e saiu correndo, com Vanhardt
em seu encalço, de graveto em mãos, tentando acertar as suas costas.
J á em sua adolescência, Vanhardt viu seu corpo crescer rapidamente (não tanto
quanto o dos outros garotos crivengartenses), e a voz engrossar. Pêlos apareceram
em diversas partes do corpo, e até uma barba rala apontou. S ua amiga S elena
também cresceu e se desenvolveu, deixando de ser uma garota e se tornando uma
mulher completa.
N essa época, já aconteciam episódios onde Vanhardt espiava a amiga por trás
de cercas, apenas para vê-la conversar com o pai sobre fungos nas patas dos cavalos
de Crivengart. Uma tentativa de beijo, frustrada por uma S elena que lhe deu as
costas e saiu correndo. Uma segunda tentativa, que resultou em um beijo no canto
da boca, e um respectivo tapa da menina. E uma terceira, na qual em lábios
desajeitados se tocaram, mãos que não sabiam se ficavam na cintura ou no rosto, e
o mais sincero e puro amor sendo compartilhado.
A os vinte anos Vanhardt encontrou-se envolvido com os preparativos de seu
casamento. Ele havia se tornado um homem bem apresentável, os cabelos ficaram
mais negros e os fios mais grossos. O s olhos se mantinham da cor da noite. Ele
deixou a magreza da adolescência de lado para ganhar um pouco mais de massa
muscular.
S r. Risalv, por que está tão nervoso? N em a noiva se encontra ansiosa assim, por
que o pai dela estaria? - Vanhardt sorria para o homem que tremia e gaguejava.
Ah, é que... você sabe... Er, minha única filha se casando... e daí eu fico assim...
Vanhardt olhou desconfiado para o pai de S elena. Ele sabia que quando o
homenzinho calvo ficava nervoso era porque escondia alguma coisa.
O que está me escondendo dessa vez, Risalv? Você não me engana.
Desembucha!
N ão é nada, nadinha. Claro que não é nada! Por que achou que eu esconderia
alguma coisa de você? É óbvio que não...
Vanhardt continuou mirando o sogro, tentando perceber alguma expressão
diferente que ajudasse a decifrar o que se passava naquela cabecinha redonda e
com os fios de cabelo cada vez mais raros. Estava claro que ele não contara a
verdade, mas o jovem notou que de nada adiantaria pressioná-lo. Esperaria outra
ocasião em que ele estivesse mais tranqüilo, para arriscar nova abordagem.
Selena estava radiante naquele dia, com um belíssimo vestido azul claro. Foi um
casamento simples, e mesmo assim o mais festejado em décadas na vila de
Crivengart. Todos os habitantes compareceram; já tratavam Vanhardt com respeito
e consideração. O rapaz nunca soube, mas sua mãe apareceu disfarçada àquela
cerimônia que foi celebrada por um sacerdote de Daicevalor.
Com os poderes a mim concedidos, e com as bênçãos de I rlia, eu os declaro
marido e mulher! - disse o sacerdote, pondo fim à celebração.
S eguiu-se uma festa onde todos dançaram e comeram bastante. Vanhardt e
S elena estavam muito felizes. S ó puderam sentir uma felicidade maior quando,
meses depois, a jovem anunciou ao marido que estava grávida.
Não acredito... só pode ser mentira! - exclamou o rapaz com um rosto descrente.
A s águas estão atrasadas há mais de um mês. A cho que sua mãe nos
abençoou...
Eu vou perguntar a ela! - e Vanhardt saiu de casa, decidido.
O rapaz só confirmou o que sua esposa já tinha certeza: S elena esperava um
bebê. O s meses passavam, e a cada um, os pais e os avós, ficavam mais e mais
ansiosos. Vanhardt não parava de esfregar o barrigão da esposa, e de sentir os
chutes do bebê. Às vezes ele ouvia vozes vindo da barriga de S elena, e sabia que
eram o pensamento de seu filho. O bviamente não contou nada à esposa, que
poderia ficar mais nervosa ainda. D urante oito meses ele voltou à casa de gelo
apenas duas vezes, e mesmo assim só para visitar os Pepenjis, pois sua mãe não
apareceu. D izem que antes da tempestade, vem a calmaria. Mal Vanhardt
desconfiava do terrível destino que se abateria sobre o bebê e todos daquela
família.

N aquele princípio de primavera, pai e filho terminavam uma reforma no


estábulo da vila. Como queriam terminar tudo naquele dia, Thomas pediu para
Vanhardt buscar o almoço em casa, imaginando que comendo ali poderiam voltar
ao serviço mais prontamente. Q uando chegou em casa, o rapaz encontrou sua
esposa rolando no chão:
Ai... É agora! É agora! - Selena se contorcia e bufava, e puxou o marido pela gola.
- Vá chamar alguém AGORA!
Q uerida me larga, senão não poderei ir! - Vanhardt tentou aparentar doçura na
voz, e, depois de um certo esforço, conseguiu tirar a mão da esposa de sua camisa.
S aiu de casa (eles estavam morando com Thomas, pois a casa era maior. Lionel
não gostava nada disso, mas o casal o visitava sempre) e correu para o estábulo
onde seu pai acabava de levantar uma cerca.
Pai, S elena está dando à luz! O que eu faço? O Q UE EU FA ÇO ? - começou a
balançar os ombros do pai desesperado.
Filho, me larga, senão não poderemos fazer nada - respondeu Thomas, que após
considerável esforço, conseguiu tirar a mão de Vanhardt dos seus ombros.
Vá chamar nosso vizinho, Runcard. Enquanto isso, ficarei com S elena. Calma
meu filho, ouviu bem? Calma! Estou certo de que sua mãe estará nos assistindo.
O rapaz saiu novamente em disparada, agora em direção à casa do vizinho.
Bateu na porta três vezes com tanta força que quase a derrubou.
Oi? - Runcard tinha uma voz desanimada ao abrir a porta.
Minha esposa está tendo o bebê! Precisamos do senhor urgentemente!
Vanhardt seguia falando à medida que puxava o vizinho para sua casa.
Ei, quer me largar?! Espere um pouco, tenho que pegar uns instrumentos em
minha casa primeiro!
O parto foi muito doloroso para S elena. Q uando a cabeça do bebê apontou,
Vanhardt percebeu que a esposa começou a ficar pálida, e parecia perder as forças.
Ele olhou para o pai, e viu que Thomas engolia em seco, e também tinha o rosto
branco. Entendera tudo. S elena iria morrer, como acontecera muitos anos atrás
com sua mãe humana, Dóris.
S eu coração batia desesperadamente, e ele não sabia o que fazer. A cabeça do
bebê saiu por completo, e Runcard ajudou a desprender os ombros, e finalmente
retirar o neném, cujo choro revelou plena potência dos pulmões. O s olhos de
Vanhardt pulavam do bebê para a esposa. D epois que o menininho saiu e desatou
a chorar, S elena desabou na cama exausta. O rapaz mal se decidia entre pular de
felicidade ou gritar de desespero. I gnorando Runcard, que oferecera ao rapaz
cortar o cordão umbilical, pegou a mão de sua esposa. S eu filho poderia esperar, a
esposa não.
Selena, abra os olhos agora!
O bedecendo ao marido, ela abriu os olhos devagar. D epois pronunciou com
uma voz fraca:
N ão se preocupe querido... S ua mãe me disse que não irei morrer. A gora pegue
o nosso filho. Quero dar uma boa olhada nele...
Com os olhos molhados, Vanhardt foi buscar o filho que chorava no colo do
avô. Thomas havia cortado o cordão umbilical, e iria contar a proeza para a vila
durante o dia inteiro.
É um rapazinho! E parece tão forte quanto você... - Thomas falou ao entregar o
bebê para o pai.
A visão daquele ser tão pequenino entorpecia Vanhardt. Possuía uns cabelos
ralos, loiros, como os seus próprios quando bebê. E não parava de chorar. Ele então
pôs o bebê com bastante cuidado no colo da mãe, que tinha se sentado, mas ainda
demonstrava bastante cansaço. Depois de olhar o filho longamente, ela disse:
Seu nome é Erick! Erick Mohr Vanhardt!
Q uerida, o nome do pai só vai para os filhos quando se trata de um rei ou de
alguém muito importante!
É por isso mesmo que o nome dele será esse!
Mas eu já disse que...
Tudo bem, gente, só estamos nos esquecendo de uma coisa - Thomas
interrompeu a discussão do casal - Onde está Lionel? Será que ninguém o chamou?
N ossa! É mesmo, nessa confusão nem me lembrei! Vou lá correndo! - Vanhardt
deu um beijo em Erick e rumou para a casa do sogro que ficava do outro lado da
vila.
Estava com um sorriso de uma orelha à outra quando bateu na porta.
Certamente seu sogro ficaria muito feliz com a notícia, e faria uma daquelas caras
de espanto que só ele conseguia. N ão suportou esperar que a porta fosse aberta, e
depois de se certificar que não estava trancada, foi logo entrando. Parou de
repente, e a cena que viu foi uma das mais aterrorizantes de toda a sua vida: Lionel
deitado de bruços sobre uma grande poça de sangue no chão. Havia um punhal
ricamente adornado cravado em suas costas, que reluziu ao ser atingido pela luz
que penetrava através da porta. A pele dele estava tão branca quanto a neve, a
pupila dilatada mirava o infinito, e o tórax não fazia movimentos respiratórios. Um
corpo inerte que não mostrava mais sinal de vida.
Capítulo VI - O Rapto

O enterro foi triste, silencioso, frio. Ventos fortes do norte atiravam flocos de
neve com fúria nos rostos das pessoas. A vila em peso compareceu, e estavam
todos vestidos de branco (nas terras do N orte esta é a cor do luto). Thomas
carregava o neto no colo, e Vanhardt abraçava S elena que não chorava, pois havia
acabado com quase todas as lágrimas. Ela soltou-se do marido e se aproximou
lentamente do caixão aberto.
O rosto de Lionel continuou branco, mas com feições tranqüilas, de quem
dormia profundamente, diferente de quando Vanhardt o encontrara, quando
parecia tomado de pânico. S elena tocou com carinho o rosto do pai, e ainda
conseguiu derramar duas lágrimas rebeldes, que teimaram em sair. D epois colocou
uma rosa entre os dedos dele, e deu um beijo nas bochechas do homenzinho calvo.
Afastou-se sem dar as costas para o caixão, que foi fechado.
D ois homens com martelos gigantes cravaram pregos, lacrando a enorme caixa
de madeira, e amarraram cordas nas duas pontas dela. Eles mesmos ergueram-na e
a levaram para um barco a remo, ancorado na margem. A s águas revoltosas por
conta dos poderosos ventos dificultaram a remada até o centro do lago, local onde
os homens com algum esforço desceram o caixão, utilizando as cordas. Q uando
este bateu no fundo do lago eles retornaram para junto do povo.
É a nossa tradição. Fizeram a mesma coisa com D óris... - Thomas comentou ao
pé do ouvido de Vanhardt, que enxugava as lágrimas. - Colocaram dentro do caixão
muitas pedras, de modo que ele não irá flutuar. Todos os nossos ancestrais
repousam no fundo desse lago e em outros espalhados pela Terra do Gelo.
Eu só quero saber quem fez isso pai... Pois ele irá pagar por crime tão odioso e
sem sentido! Lionel nunca fez mal a ninguém nessa vila. Q uem teria ousado uma
coisa tão hedionda e vil? - Vanhardt falava alto de modo que se o criminoso
estivesse ali, escutasse.
N ão deveria ficar pensando nisso agora. - tornou Thomas num tom mais baixo. -
Você tem um filho que acabou de nascer, e sua esposa precisa de companhia. Eu
vou procurar a deusa do gelo, pois ela deve saber de alguma coisa. D epois
resolveremos o que fazer com o criminoso.
Mas, pai, você nem sabe como entrar na casa de gelo... N ão consegue decorar as
palavras mágicas.
E antes de você nascer, como acha que eu conversava com sua mãe? N ão se
preocupe com isso. Tome conta de sua esposa e de seu filho que do resto eu cuido.
Vanhardt e S elena voltaram pra casa com o pequeno Erick no colo da mãe, e
Thomas tomou um rumo desconhecido. O bebê, apesar da morte do avô, mantinha
um sorriso expansivo nos lábios. A mãe do garotinho se distraía ao vê-lo sorrir, e
brincava com ele. Vanhardt também brincava com Erick, fazendo caretas, e podia
jurar que o bebê compreendia tudo que estava acontecendo. A quele dia tinha sido
muito triste para os dois, e a única coisa que abrandava o clima pesado era o
pequeno Erick.
Entraram em casa e S elena foi trocar a roupa do menino, pois ele tinha sujado
as fraldas de pano. Enquanto isso Vanhardt foi fazer o almoço. S entia-se muito
cansado, e não parava de tentar imaginar quem teria matado Lionel. Ele se lembrou
de quando, no dia do seu casamento, o pai de S elena havia ficado nervoso. A lgo
parecia perturbá-lo bastante. Ele nunca mais abordou o sogro - na verdade, até se
esquecera daquele fato. Mas agora as lembranças voltavam como uma avalanche
em sua cabeça. Escutou sua esposa cantar ao trocar a roupinha do menino, e um
sentimento relaxante, apaziguador, envolveu a sua mente e acalmou-o.
D e repente, quando acendia fogo na lenha, viu a porta se abrir devagar com um
rangido. Um vento frio invadiu a casa, e o rapaz se assustou ao notar que um
desconhecido entrava pela porta. Vestia um capuz marrom que encobria o rosto, e
uma capa da mesma cor, fechada na frente, que ocultava o resto do corpo. Uma
corrente dourada pendia de um ombro ao outro.
Quem é você? - perguntou Vanhardt.
Eu...Eu sou Hilda! - o desconhecido baixou o capuz, e Vanhardt pôde ver que se
tratava de uma mulher. - E vim aqui pegar o meu neto!
A mulher abriu a capa para os lados bruscamente. Era da mesma altura que
S elena, magra, e tinha os cabelos ruivos e olhos azuis. S em aparentar mais do que
trinta anos, revelava uma beleza intimidadora. Usava uma blusa vermelha com
decote, e uma saia cor vinho, que ia até o chão. A s idéias fluíam velozes na cabeça
de Vanhardt.
Foi você, não foi? Foi você quem matou Lionel! - gritou Vanhardt apontando
para a mulher.
S im, fui eu quem matou aquele inútil. E irei matar você também se tentar
interferir - S ua voz era fria e o olhar malicioso. - Mande minha filha trazer o meu
neto.
Mas por quê? O que Lionel fez para merecer morrer?
Bem, ele roubou a minha filha, não sabia? Mereceu morrer por isso! A gora
chega de papo, não tenho tempo a perder. N ão ouse fazer um movimento, ou serei
obrigada a matá-lo também. E se não vai chamar sua esposa, deixe que eu mesma
pego meu neto.
Hilda deslizou sobre o chão como se flutuasse, e dirigiu-se ao quarto onde
S elena trocava o filho. Vanhardt correu em direção à feiticeira erguendo o braço
para desferir um soco em suas costas. Ela esticou o braço direito com a mão aberta,
e uma força invisível atingiu Vanhardt em cheio, arremessando-o na parede. O
jovem levantou atordoado e escutou o grito de sua esposa vindo do quarto:
NÃO! NÃAAAAAAO! LARGUE-O, SUA BRUXA!
Com Erick chorando escandalosamente no colo, Hilda deslizou de volta à sala, e
seguiu para a porta da rua. S elena agarrou-se ao braço da mãe tentando impedi-la
de sair:
S olte-o! N ão leve o meu filho também... N ão...! - a voz saía sem força, e lágrimas
rolaram pelo seu rosto.
Vanhardt não podia ficar parado sem fazer nada, mas imaginou que não
adiantaria investir contra a mulher como da primeira vez. Rapidamente pegou uma
cadeira e jogou-a contra Hilda. Esta estendeu novamente o braço direito, e a
cadeira desviou sua rota, atingindo S elena que foi derrubada no chão, produzindo
um baque surdo.
D essa vez, sem ser interrompida, Hilda saiu da casa, e Vanhardt correu para
ajudar a esposa a se levantar, pedindo desculpas.
N ão perca tempo comigo, salve nosso filho! - S elena empurrou o marido para
fora.
Um cavalo negro, com a crina e os olhos vermelhos, esperava pela feiticeira do
lado de fora. Ela puxou as rédeas do cavalo e subiu em suas costas, com o bebê
bem seguro no braço esquerdo. Erick continuava a chorar e espernear.
Muito bom Pesadelo. A gora vamos pra casa! - murmurou a mulher ao ouvido
do cavalo.
A ntes que ela fugisse, porém, Vanhardt parou com os braços esticados em sua
frente. Ela depositou os frios olhos azuis no genro, e por alguns segundos
permaneceu parada. J á que o rapaz insistia em bloquear o seu caminho, merecia
morrer como o velho Lionel. Com a decisão tomada, Hilda fechou a mão direita,
apertando-a com força. Vanhardt sentiu dedos invisíveis pressionarem o seu
pescoço, estrangulando-o.
Ughhhh... - inutilmente, a mão de Vanhardt tentava retirar uma força invisível
que constringia seu pescoço.
Mãe, pare com isso! Solte-o, por favor! - gritou Selena.
Sua impertinência será a causa de sua morte. Eu avisei para ele não interferir...
Vanhardt caiu de joelhos no chão, e seu rosto vermelho e banhado de suor
contraía-se em desespero. Ele nem via o que estava acontecendo à sua volta, e
continuava tentando impedir a mão invisível de tirar o seu fôlego.
Mãe, largue-o agora! Ele vai morrer...!
É essa a minha intenção filha... Há!Há!Há! - Hilda gargalhou num tom
agudíssimo - Mas tudo bem, vou lhe oferecer uma alternativa. Volte comigo para
Avendorh, e poderá ver o seu filho todos os dias. O u fique com esse paspalho e
nunca mais tornará a ver o lindo Erick.
S elena olhou para o filho, e depois para o marido que já estava deitado no chão
quase desmaiado. Correu para Vanhardt e abraçou-o com força.
Não irei abandonar nenhum dos dois. Solte meu marido e devolva meu filho!
Hilda abriu a mão, e pegou as rédeas de Pesadelo. I mediatamente Vanhardt
parou de sentir o aperto no pescoço.
Você é uma idiota, como seu pai e seu marido. É melhor deixá-los vivos, para
que sofram a dor da perda de um filho, como eu mesma sofri! - ela puxou as rédeas
com força, o cavalo empinou e relinchou, e começou a cavalgar sobre o ar como se
subisse uma ladeira invisível.
Vanhardt voltou a respirar, e viu Pesadelo flutuar vários metros acima do chão,
indo em direção às nuvens. Levantou-se e continuou a olhar o ponto que foi aos
poucos desaparecendo no céu. S ua esposa estava logo atrás de si, sentada no chão,
arrasada. Ele pegou as mãos dela com delicadeza, ajudando-a a se levantar.
Primeiro meu pai... Agora meu filho. Sinto-me tão só!
N ão se preocupe, eu juro que vou trazer Erick de volta! - Vanhardt falou
calmamente enquanto abraçava a mulher.
Várias pessoas da vila, fora de suas casas, escutaram a gritaria e viram toda a
cena. Eles olhavam com pena para o casal, e murmuravam entre si. D epois de
alguns segundos todos se assustaram com a voz de Thomas que vinha correndo:
Vanhardt! S elena! D escobri quem matou Lionel Risalv - falou afobado o pai de
Vanhardt, ao chegar ao lado dos dois.
Eu também pai. - tornou Vanhardt, que deixou Selena com Thomas.
No meio de uma tempestade de neve, com passos firmes e decididos,
Vanhardt seguiu para a casa de gelo. Era hora de perder a inocência.
Capítulo VII - A Deusa da Morte

Com olhar sério e testa franzida, Vanhardt entrou na casa de gelo e logo
reparou em sua mãe sentada atrás da mesa no centro do salão. Ela usava um
vestido longo, prateado, e seus olhos aparentavam preocupação.
S ente-se aqui meu filho - disse puxando uma cadeira. - Eu já soube de tudo o
que aconteceu, não precisa me dizer nada.
Eu vou atrás de Erick. Vim aqui pedir a sua ajuda. J uro que nada vai me impedir
de fazer isso - o rapaz sentou-se na cadeira que sua mãe lhe oferecera.
E certamente irei ajudá-lo. Mas antes que você saia numa jornada em busca de
seu filho, eu tenho de lhe contar uma história. É sobre o meu passado. Por ser filho
de uma deusa, é muito provável que você encontre pessoas que fizeram parte dele
e deve ter total conhecimento da minha história para que não seja surpreendido.
Entendeu?
Vanhardt confirmou meneando a cabeça.
Pois muito bem.
"A ntigamente, eu não era conhecida como deusa do gelo. Possuía um outro
nome, e outra identidade, que se perdeu ao longo de centenas de anos. Sei que você
conhece todas as seis divindades maiores, meu filho. O que você não sabe é que eu
era a sétima deusa do Panteão, Morgana, a deusa da morte."
Vanhardt revelou uma expressão um pouco assustada. Porém, antes que um
sentimento de desconfiança tomasse conta do rapaz, sua mãe continuou:
N ão tema, Vanhardt. Eu era a deusa da morte, mas nem por isso desejava a
morte dos seres, A minha conduta era ajudar aqueles que morriam a fazer uma
transição tranqüila, sem dor. O u então causar dor suficiente aos que mereciam.
Tenha isso bem claro em sua mente; a morte não é um fim, mas uma transição. S ó
não iremos nos ater a isso no momento. O utro dia lhe explicarei melhor os
mistérios da vida e da morte.
"N em todos os habitantes de Kether denotavam bons olhos para essa que vos
fala, e com alguma razão. I sso porque meu irmão J ustus, o líder do Panteão dos
deuses, muitas vezes recorria a mim quando precisava punir povos específicos.
N essas épocas, eu recebia a tarefa de espalhar pragas sobre tais populações, a
fim de punir os crimes que porventura eles houvessem cometido. A pesar da
desconfiança de uma parcela dos Ketherianos, eu possuía sim, muitos seguidores.
Eles não me pediam para viver mais, pois sabiam que isso não era possível, mas
que tivessem uma morte pacífica; e eu os atendia."
"Q uanto aos meus irmãos de status, sempre cultivei um bom relacionamento.
A pesar de ser a mais nova de todos, não deixava de cumprir com as minhas
obrigações, e nunca revelava fraqueza. A única deusa com a qual mantinha certo
atrito era Bel, a deusa da vida, rixa até natural pelas nossas convicções: ela cuidava
de tudo relativo à vida, e eu do seu oposto, a morte."
"Um determinado dia, quando estava em meu castelo, envolvida com alguns
importantes afazeres, fui interrompida por barulhos que vinham do lado fora. Mal
sabia eu que aquele seria o dia mais sórdido e terrível de toda minha existência.
Entrei em contato telepático com A nael, o general de minha guarda de elite, os
A njos da Morte, e perguntei-lhe o que acontecia. A nael parecia preocupado, e
informou em poucas palavras que estávamos sendo invadidos. O general já havia
mobilizado criaturas, armadilhas e todas as outras defesas do castelo, e acreditava
que os invasores logo seriam debelados."
"I ntuitivamente senti que aquele não era um ataque qualquer. A preocupação
de A nael não condizia com a intensa mobilização dos veículos de defesa do castelo.
I nsisti para ele não encarar o inimigo de frente, o que não adiantou nada. A pesar
de valente e líder nato, motivo pelo qual se tornou general dos A njos da Morte,
Anael nunca foi muito disciplinado,"
"D irigi-me então ansiosamente até a fonte no centro do salão, e pedi para que
ela me mostrasse a batalha. A visão se revelou mais aterradora do que o meu pior
pesadelo. D ezenas de milhares de criaturas adentravam o castelo, como se fossem
uma massa negra devorando o que via pela frente. Individualmente tinham a altura
de seres humanos, e vestiam uma capa preta que cobria o corpo inteiro. A s mãos
que saíam de dentro das capas eram constituídas unicamente de ossos putrefatos,
e empunhavam espadas enferrujadas. D emoraram apenas alguns segundos para
tomarem o perímetro externo da minha fortaleza, e logo estavam no pátio central,
superando as armadilhas e dizimando as tropas de defesa. N esse ritmo não
tardariam a me alcançar. Como um exército daquele tamanho pôde ser reunido?
Como eles chegaram até o meu castelo sem que eu fosse previamente alertada?"
"S em perder mais tempo, peguei minha foice, a poderosa Flama, e fui para a
porta do corredor. A ntes que eu saísse, A nael entrou pela porta, segurando com a
mão a barriga ensangüentada. Exaurido de todas as forças, o general dos A njos da
Morte caiu aos meus pés, de joelhos, e suas últimas palavras foram:"
'D esculpe-me vossa magnificência... Eles são muitos... Estão todos morrendo,
até mesmo nós da guarda de elite... Ele nos...'
"E desabou completamente no chão. Toquei o seu pescoço, mas não senti
nenhum fio de energia vital. S ons de passos vieram do corredor, e quando olhei, vi
que 'Ele' estava parado sob o arco da porta. Usava uma pesada armadura prateada,
dos pés ao pescoço. N o rosto, um elmo com o formato de caveira, e dois chifres
brancos. Podia muito bem notar seus olhos vermelhos, ardentes, por detrás da
máscara que escondia o rosto. Ele também segurava uma espada, muito diferente
de todas que eu já vira. A lâmina era grossa e serrilhada em toda sua extensão, e
exibia um punho longo, com duas projeções semelhantes a caninos cobrindo a mão
de um lado e de outro."
"Com Flama nas mãos, voei em sua direção, girando-a para atingir o pescoço
inimigo. S em demonstrar muito emprego de força, ele ergueu a espada, acertando
Flama em cheio. Um som estridente, e minha foice imediatamente voou pela
janela. N aquele momento eu soube que não venceria a luta. N ão poderia me
teleportar para fora do castelo, pois isso gastaria segundos de que eu não
dispunha. Usando uma velocidade ampliada, tentei sair pela porta dos fundos, mas
o invasor atirou a espada nas minhas costas."
"Vanhardt, nem sei descrever o que senti quando aquela arma atravessou meu
corpo. Foi como se toda a minha força tivesse sido sugada instantaneamente pela
lâmina fria, e quando me dei conta, já estava ajoelhada no chão com uma dor
inimaginável. Ele então se aproximou lentamente, e retirou a espada com um
puxão. Pude ver suas pernas parando na minha frente."
"O invasor ergueu a espada com o braço direito, e desceu-a na direção do meu
pescoço. S ó uma manobra magnífica evitou minha morte: antes do golpe,
transportei as energias que me restavam para uma mosca que passava próximo a
uma janela. E só por muita sorte não fui notada."
"D e posse daquele corpo de inseto, fugi o mais rápido que pude do castelo, com
medo de que ele descobrisse a minha manobra, e assim me encontrasse. Voei por
quilômetros, e por um tempo incontável, visto que para um inseto este se mostra
de modo diferente, e acabei me deparando com a terra do gelo. Q uando pousei,
assumi a forma humana, ainda abalada com o que havia acontecido. Foi tão rápido!
Em cerca de poucos minutos perdi o que havia construído durante toda uma
existência. Minha casa, meus amigos... Tudo irrecuperável! N o mundo dos deuses,
o que faz de cada um aquilo que ele realmente é, se chama quantun, e representa a
energia divina de cada entidade. E os meus praticamente se esgotaram depois
daquela virada de mesa. "
"Recolhi-me então numa caverna que encontrei ali perto de onde pousara.
A quele lugar parecia seguro, e resolvi hibernar por vários anos, pois precisava
meditar sobre tudo que acontecera. Palavras são insuficientes para descrever o
vazio que se apossou de mim. Q uando acordei, chorei uma única lágrima. N ão
sabia quem fizera aquilo comigo, mas tinha certeza que era um de meus irmãos de
status, porque nenhum mortal, nem mesmo um deus menor, teria poder para
tanto. Mas quem? Pensei em todos eles, e não me decidi por nenhum. N em mesmo
por Bel, a deusa com quem eu mais revelava atrito. D e qualquer modo, sentia que
J ustus estava em débito comigo. Ele era o líder do Panteão, e poderia ter impedido
que isso ocorresse. Resolvi precavidamente assumir uma nova identidade, a de
deusa do gelo, que combinava com o lugar onde estava e com meu estado interior.
Era melhor que o invasor acreditasse que eu havia morrido, para não iniciar uma
perseguição."
"A os poucos fui me reerguendo. D errotei várias criaturas, ganhei seguidores e
servos. Passados muitos anos, já havia me tornado bastante conhecida nas
redondezas. D escobrir quem havia feito aquilo comigo se tornou a minha
motivação. Mas para isso eu precisava crescer, pois se voltasse a enfrentar esse ser
maligno, deveria estar muito mais forte que antes."
"Centenas de anos depois, quase um milênio, com meu castelo de cristal recém-
construído, acabei me deparando com um pedido muito especial. Era de um lugar
onde eu não apresentava seguidores, uma vila chamada Crivengart. Fui ver qual era
o pedido: um senhor que não tinha filhos, e necessitava de ajuda para sua mulher
engravidar. O resto você sabe meu filho, meses depois você nasceu."
A o fim da história da mãe, Vanhardt sentia a cabeça doer um pouco. Ele
descobrira todo o passado da mãe, algo que o deixava triste e ao mesmo tempo
curioso. Quem poderia ter traído a deusa do gelo, ou melhor, a deusa da morte?
Até hoje não descobri quem foi o traidor, mas tenho certeza que esse dia irá
chegar. Mas não vá você achando que contei essa história inutilmente. Lembra-se
de quando eu lhe disse que ao chegar à terra do gelo, me refugiei em uma caverna,
e chorei uma única lágrima?
Sim...
Pois veja bem: essa lágrima caiu no chão como se fosse uma semente, e cresceu.
Centenas de anos depois, deu origem a uma planta extraordinária, e dentro dela,
um ser que só você será capaz de libertar. Um calor muito grande, o seu calor
divino, quando entrar em contato com a planta, acordará esse ser, que também é
parte de mim. Para que sua jornada seja bem sucedida, será indispensável que o
leve junto, pois ele provará ser de grande ajuda.
Certo. E onde fica essa caverna?
Preste bastante atenção nas direções. Espere o sol raiar, e saia de Crivengart, no
sentido sul. A o meio dia siga para o sudoeste, e continue nessa direção por sete
dias. Não se desvie nem um pouco, ou não encontrará a caverna. Entendeu bem?
Hummm... Espero que sim! E quanto ao castelo de Hilda, como saberei onde
fica?
Feche os olhos e relaxe.
Vanhardt obedeceu, e segundos depois uma imagem se formou - o castelo,
cercado por um lago, e um rio que vinha do sul. O nome desse rio saltou em sua
mente, Durande, e depois ele viu uma cadeia de montanhas ao leste que sabia
serem as Montanhas Traiçoeiras. Então era ali que ficava o castelo da feiticeira.
Ótimo, eu vi onde fica. Mas mãe, por que você não me mandou também essas
visões do lugar onde fica a caverna? Seria bem mais fácil para encontrar...
E seria bem mais fácil para alguém como Hilda vasculhar a sua mente e
descobrir onde fica a caverna, lugar que eu gostaria de manter intocado. S e você
ficar apenas com as direções, logo esquecerá, e assim Hilda não poderá descobrir a
localização - deu uma boa olhada em Vanhardt, e depois continuou. - A gora, boa
viagem meu filho!, e não se preocupe. Mesmo daqui, estarei acompanhando-o.
Eu sei, mãe. Obrigado!
N em precisa me agradecer. Eu que lhe devo desculpas, por não ter sido capaz
de impedir que seu filho fosse raptado. A pesar de deuses, não somos tão
onipotentes e onipresentes...
Tudo bem, mãe, tenho certeza que se você pudesse não teria deixado aquilo
acontecer. Vou voltar para casa agora, pois tenho alguns preparativos para a minha
jornada. Adeus!
Adeus não, até logo.
Então até logo!
J á era noite quando Vanhardt saiu da casa de gelo, depois de se despedir dos
Pepenjis. Ele estava bem mais animado. A lém de saber aonde ir para encontrar
Erick, encontraria um ser indicado por sua mãe para auxiliá-lo nessa jornada.
Chegou em casa e viu S elena no quarto, deitada na cama. Tinha os olhos inchados,
o rosto mais abatido do que quando o pai falecera. Vanhardt tocou levemente os
seus cabelos e contou apenas que sua mãe o ajudaria a pegar o filho de volta.
N ão irei falhar meu amor, pode acreditar. A gora prometa-me que não irá chorar
quando eu partir.
Eu prometo... - sussurrou a mulher com um rosto triste. - E você também
prometa o mesmo.
Eu prometo - disse, convictamente.
D epois de avisar ao pai de sua decisão de ir buscar o filho, voltou para o quarto
e notou que S elena dormia profundamente. Havia muitas perguntas que gostaria
de fazer à esposa; sobre a mãe dela, o pai, por que foram aparecer em Crivengart.
Pelo que parecia, eles fugiram de um lugar chamado Avendorh... Preferiu não
promover o interrogatório - a esposa já sofrera demasiado, e mais perguntas só
trariam mais dor. A lém disso, as respostas que ela pudesse dar não adiantariam de
muita coisa. Então resolveu fazer o mesmo que S elena, dormir, pois seu corpo e
mente também pediam descanso. O dia seguinte seria de muitas outras surpresas.
Capítulo VIII - A Caverna e o Ser Divino

D espertou naquela manhã antes do S ol nascer. S elena permanecia deitada na


cama, e não acordou mesmo quando ele trocou de roupa. Parecia dormir profunda
e tranqüilamente, e Vanhardt teve pena quando, de leve, acariciou o seu rosto
fazendo-a acordar. Ela abriu os olhos devagar, e abraçou longamente o marido.
Ficaram assim durante alguns minutos, e depois se entreolharam. O s dois não
derramaram uma lágrima sequer naquela despedida, como haviam prometido na
véspera, e as únicas palavras trocadas foram:
Eu te amo!
Eu te amo, e sempre estarei com você! - respondeu Vanhardt, apertando a mão
da esposa contra o peito.
Vanhardt saiu do quarto e encostou a porta de leve, deixando S elena lá dentro.
Ele nunca saberia, mas sua mulher quebrou a promessa e chorou copiosamente
depois de sua partida. S eu pai, que estava de pé atrás da mesa da cozinha, havia lhe
preparado um chá e também um bolo. O s dois comeram calados, sem pressa, e
depois da refeição Vanhardt encheu a mochila com comida para pelo menos uma
semana de viagem. S upriu-se também de outros itens como pederneira, faca, tocha,
óleo, corda, saco de dormir, dentre outros. Pegou ainda uma lança, que amarrou às
costas, arma que lhe poderia ser útil caso encontrasse algum perigo. Pôs também
uma adaga nas botas por precaução. A despedida de seu pai foi igualmente
silenciosa. Eles abraçaram-se fortemente, e Thomas deu tapinhas de
encorajamento em suas costas. Q uando Vanhardt já estava se esgueirando
tristemente para fora de casa, seu pai gritou:
Vai mesmo trazer o pequeno Erick de volta pra nós, não é?
Prometo que vou, pai! - o jovem respondeu se esforçando para acreditar em
suas palavras. D epois virou-se e não olhou mais pra trás, e por isso não viu sua
esposa correr até a porta para vê-lo partir.
A pequena vila de Crivengart estava deserta àquela hora, na qual o sol se
encontrava escondido atrás das montanhas ao leste, e Vanhardt mal via onde
pisava devido à escuridão. Quando deixou os limites da vila, sentou-se no chão, e se
lembrou da conversa que tivera na véspera com sua mãe, refazendo mentalmente
os passos para chegar até a misteriosa caverna. Ele precisaria estar bastante atento,
pois um mero desvio na direção faria com que ele não atingisse seu destino.
O jovem Vanhardt obedeceu às indicações da deusa do gelo, esperou o sol raiar
e seguiu para o sul. Essa curta caminhada foi tranqüila, e ao meio dia virou para o
sudoeste, seguindo até anoitecer. O s cinco primeiros dias e noites passaram sem
nenhum contratempo. A paisagem não mudava muito, era sempre o mesmo
branco no horizonte, vez ou outra uma floresta de pinheiros que resistiam bem ao
frio, e pegadas de animais no chão, quase todas de lobos. À medida que
caminhava, seus passos iam deixando marcas no chão, que logo desapareciam
devido aos flocos de neve que caíam vez ou outra. A terra do gelo era sem dúvida
um dos lugares mais bonitos de Kether, e ao mesmo tempo um dos mais
melancólicos.
Vanhardt comia duas vezes: ao meio dia e de tardinha, antes do anoitecer, e
dormia precavidamente com uma fogueira acesa ao lado. Passou muito tempo
refletindo sobre os últimos acontecimentos que o haviam levado até ali. Acontecera
tão rápido que só agora tivera calma para endireitar as idéias. Uma mulher
chamada Hilda, sua sogra, apareceu e matou o marido. D epois ela roubou o neto, e
disse algo sobre S elena e Lionel fugirem de Avendorh, e que deixando ele,
Vanhardt, e S elena vivos estaria infligindo a mesma dor pela qual passara. O que
dava para entender de tudo aquilo era: Lionel fugira com S elena, Hilda sofrera
muito, e depois que os encontrara matou o marido e roubou o neto. Mas por que
não roubou a própria filha ao invés do neto? E por que Lionel fugiu de Avendorh?
Essas e outras perguntas continuariam sem resposta, pelo menos por enquanto.
N a manhã do sexto dia, o jovem filho da deusa do gelo passou a enfrentar uma
tempestade de neve terrível. Enxergava mal, pois a neve caía forte, e a luz do sol
quase não penetrava a densa muralha branca que se formava. Com isso sua visão
turvou-se, e teve dúvidas se estava na direção correta. À noite, a tempestade havia
terminado, e Vanhardt pôs-se a pensar se não seria sua mãe que lhe mandara
aquela tormenta. S e ela era a deusa do gelo, teria controle sobre tais fenômenos.
Era estranho, contudo, o fato dela querer dificultar a sua jornada.
D urante o sono do rapaz, mais um evento ocorrera, mas que ele só foi notar ao
acordar pela manhã: sua mochila não estava mais ali, e surgiram várias pegadas
espalhadas pela neve. A nalisando-as cuidadosamente, percebeu que lobos das
estepes passaram no local onde ele dormira, e roubaram a sua mochila,
provavelmente atraídos pelo cheiro de comida que ainda restava dentro dela. Por
sorte eles não o atacaram. A gora estava sem suprimentos, munido apenas de sua
lança, que encontrou jogada um pouco mais à frente e amarrou outra vez às costas.
Também não perdera a adaga que estava presa na bota. S em comida e sem bebida,
pois os cantis tiveram o mesmo fim que a mochila, começou a sentir que talvez a
jornada não terminasse como ele esperava.
Em seu último dia de caminhada, não tirou um minuto sequer da cabeça o
pensamento de que estava andando na direção errada. A quela tempestade de neve
fora muito forte, e se ele tivesse desviado alguns graus no rumo que tomava,
certamente não chegaria à caverna. Poderia ficar semanas perdido, e sem alimento
acabaria morrendo. Seria um final patético, pois sua jornada mal havia começado!
A marcha se tornara problemática porque, com a tempestade, uma grossa
camada de neve cobriu o chão. Resolveu seguir orando para a deusa do gelo, sua
mãe, a fim de que ela o ajudasse e o protegesse. E, parecendo que esta ouvira suas
preces, na metade do sétimo dia, faminto e cansado, Vanhardt viu a entrada de
uma caverna incrustada numa montanha coberta de neve.
Mas e se alguém já tivesse entrado? D epois de tantos anos, não seria de se
estranhar que uma pessoa tivesse passado por ali. Ladrões, saqueadores, ou
mesmo viajantes, todo tipo de gente poderia ter visitado o local. E se fosse assim,
provavelmente ele não encontraria a ajuda que sua mãe lhe prometera. Percorreu
os últimos metros imaginando tudo isso, e também como faria para enxergar lá
dentro, pois estava sem sua tocha e a pederneira para acendê-la. Teve, pois, uma
surpresa ao chegar à entrada.
O túnel era bem largo, cerca de cinco metros de diâmetro por três de altura.
D ez metros avançando dentro dele podia-se ver a parede dos fundos, que era toda
recoberta por cristais brilhantes como sóis. Eles apresentavam luz própria, e
iluminavam uma planta, similar a uma roseira, mas bem maior, incrustada na
terra. O caule tinha muitos espinhos, e na ponta, que ficava a um metro e meio do
solo, uma rosa do tamanho de um útero gravídico. Vanhardt aproximou-se devagar,
admirando a beleza da planta e dos cristais. Parou a um passo da roseira,
fascinado, e só aí pôde constatar que a flor estava fechada. Lembrou-se de novo do
que sua mãe lhe dissera há vários dias.
Q uando a deusa do gelo hibernou naquela caverna, estava muito triste por ter
sido traída, e chorou uma única lágrima. Esta lágrima teria dado origem a um ser
que o ajudaria prontamente. Para acordá-lo, Vanhardt deveria transmitir a esse ser
um calor muito grande, um calor divino! S ó ele poderia fazer isso, pois possuía tal
calor em seu corpo devido à sorte de ser filho de um humano e uma deusa.
Vanhardt esticou lentamente a mão para a flor vermelha, mantendo os olhos
bem abertos. Tocou-a com o dedo indicador, e retirou-o de imediato, pois viu que
as pétalas se moviam. O calor divino do jovem fez com as pétalas exalassem um
doce perfume na medida em que se abriam. Uma criaturinha parecida com um ser
humano foi se revelando dentro da rosa, cabelos verdes como musgo, vestida com
uma roupinha vermelha, feita de pétalas, e não mais do que vinte centímetros de
altura. Ela estava deitada, com os olhos fechados, dormindo profundamente.
Q uando a luz branca dos cristais atingiu seu rosto, ela acordou, batendo os cílios
repetidas vezes, e protegendo os olhinhos verdes inutilmente com as mãos.
Vanhardt não conseguia falar nada, boquiaberto, e apenas observava a pequenina
se espreguiçar e se levantar. Ele reparou que ela apresentava asas nas costas; era
uma fada, um ser sobre o qual ouvira histórias quando ainda era criança, mas que
nunca havia visto. A fadinha então resmungou:
Ai...ai...cansei de tanto dormir, credo! Olá!
Er... Olá!
Q ual seu nome, ô menino? - perguntou a fada enquanto batia as mãos
distraidamente em sua roupinha, como se tirasse a poeira.
Meu nome é Vanhardt Mohr D aicecriv, ou apenas Vanhardt. S ou filho de Léia, a
deusa do gelo, sua criadora! Mas não sou menino, tenho vinte anos! E você, qual o
seu nome? Você tem um nome não é?
Claro que tenho um nome! - respondeu exaltada a criatura que mais parecia
uma bonequinha com asas - S e você tem um nome, então eu também tenho um
nome!
E qual seria?
E qual seria o quê? O meu nome ou o seu nome?
Lógico que o seu nome! - Vanhardt exclamou, já bastante irritado com a
fadinha. - O meu nome eu já sei, quero saber o seu, tonta!
N ão deveria dizê-lo para alguém tão grosso! - falou indignada com o tratamento
do visitante. - Uma fada tão linda e simpática como eu merece mais consideração!
Grosso, é? Então tudo bem, sua anãzinha metida, fique aí na sua flor que eu
tenho mais o que fazer!
Virando as costas, Vanhardt começou a caminhar emburrado para a saída. N ão
queria ficar ali batendo boca com uma fada metida e perdendo tempo, enquanto
seu filho estava preso nas garras daquela feiticeira.
Tudo bem, espere! - tornou a pequenina humildemente - Meu nome é
Alilandra...
Vanhardt parou e voltou os olhos para a fadinha. Esfregou a mão no queixo
pensativo, enquanto mirava-a de cima a baixo.
Alilandra? Não, esse nome não é bom...
Como assim "não é bom"? - a fada pôs as mãos na cintura.
Um nome muito grande para um ser tão pequeno. S eu nome... S eu nome daqui
para frente será "Lila". E aí, o que achou?
Hmmm...Não sei...
Só diga se gostou ou não!
-— Talvez.
Ótimo! Então vamos!
O jovem se apressou a caminhar para a saída da caverna, porque queria ir de
uma vez ao castelo de Hilda. S e sua mãe dissera que a fada seria indispensável para
sua jornada, ali estava ele com a dita cuja, e agora poderia continuar. Mas Lila
ainda permanecia em sua flor:
Ei, ei, calminha aí!
O que foi agora? - resmungou o rapaz.
Espere um pouco, não notou que falta alguma coisa?
— Como assim?
Você me acorda depois de um sono de mais de trezentos anos, e assim que nos
apresentamos, você sentencia: "vamos". N ão é bem assim que as coisas funcionam.
Em primeiro lugar, pra onde vamos?
Para o castelo de uma feiticeira, seu nome é Hilda. N o caminho explico a
história toda, mas em resumo; ela pegou o meu filho e vou lá para buscá-lo de
volta.
Mas por que ela pegou o...
Eu já disse que depois te explico!
Está bem, está bem! E onde fica esse castelo?
Menos ansioso, Vanhardt respondeu:
S egundo minhas visões, ele fica ao oeste, do outro lado das Montanhas
Traiçoeiras. É próximo a um rio que banha aquela região.
S ei... E você estava pensando em fazer o quê? Atravessar as montanhas e
marchar direto ao castelo?
Humm... sim!
N ossa, como é burro! E por que acha que as Montanhas Traiçoeiras têm esse
nome? É porque são traiçoeiras! N enhum homem conseguiu atravessá-las vivo! O u
morreu congelado, ou foi devorado por alguma criatura. N a melhor das hipóteses
voltou antes da metade do caminho! É por isso que todos que desejam cruzá-las
fazem o desvio pelo sul, que é bem mais demorado...
E como você tem posse de todas essas informações se ficou dormindo aí
durante mais de mil anos? - perguntou intrigado com a inteligência da fadinha.
Trezentos anos! A ntes disso eu era apenas um embrião, então não conta. Está
me chamando de velha?
Não, claro que não. Responde logo de uma vez!
Humpf! Como você mesmo disse, sou parte da deusa do gelo, antiga deusa da
morte. Eu tenho parte de suas memórias. Não todas, mas muitas delas.
A h... bem, você pode me ajudar, certo? Vai me fazer ultrapassá-las em
segurança, não é? Q uem sabe você não cria um jeito de voarmos num cavalo até o
outro lado das montanhas. Assim seria fácil chegar até o castelo.
N ão, nem pensar! - balançou a cabeça negativamente - Primeiro: não sou forte o
bastante criar cavalos! S egundo: fazê-los voar demanda uma quantidade muito
grande de energia divina, e eu não tenho tanta...
E, então, como vamos fazer?
Olhe só...
A fada voou e ficou em frente ao rosto de Vanhardt, e começou a girar os
bracinhos em círculos, pronunciando palavras mágicas:
Uzla... Coterpoa!
D e repente, uma luz azul, como um lençol de seda, foi descendo sobre o jovem.
Ela saía das mãos de Lila e ia se estendendo da cabeça aos pés dele, tomando o
aspecto de uma bolha azul. Quando a luz tocou o chão, a fada falou:
Pronto! Criei um escudo de energia muito especial! Com ele, não vai sentir
nenhuma fome, sede, cansaço, frio ou calor ao extremo, e só precisará dormir
apenas uma hora por dia!
Hummm... I nteressante...- Vanhardt cutucava o escudo com o dedo indicador,
que se acolchoava à medida que ele aprofundava-o. - Muito interessante!
N ão adianta, não vai rompê-lo desse jeito! S ó com uma pancada muito forte, ou
por minha vontade, o escudo pode se desfazer.
Está bem, entendi! Então, se está tudo pronto, podemos ir?
Sim, acho que podemos ir!
E foi assim que o jovem Vanhardt tirou a fada Lila de seu sono de mais de
trezentos anos. A ntes de saírem da caverna, Lila pegou uma das pétalas da flor
sobre a qual repousara todo aquele tempo, e pediu para Vanhardt guardá-la:
É só uma lembrança! Pra nunca me esquecer da minha casinha.
Tudo bem - Vanhardt guardou-a num bolso da calça.
E saíram os dois da caverna no meio da neve. Vanhardt dentro de sua bolha
gelatinosa azul, e Lila voando ao seu lado.
Capítulo IX - Perigo Branco

Estavam no terceiro dia de caminhada, e rumavam firme em direção oeste. O s


dois iniciavam a travessia das temerosas Montanhas Traiçoeiras, arriscando-se
numa aventura que nenhum homem conseguira realizar anteriormente. O lhando
para cima Vanhardt via um colchão branco recobrindo suavemente as montanhas
que deviam ter quase dois mil metros de altura. Por sorte, havia uma fenda bem
larga entre elas, e era por ali que os dois seguiam. O sol apontava alto no céu, mas
parecia ter pouco efeito naquela região dominada pelo gelo e pela neve, e Vanhardt
pensou que S alazar, o deus do sol, não tinha muito poder nas terras geladas. A
paisagem era deslumbrante, e quase conseguia esconder o perigo que oferecia.
Graças à bolha de energia que Lila havia criado, Vanhardt percorreu mais de
cento e cinqüenta quilômetros dormindo apenas três horas, uma por dia. N uma
dessas horas sonhou com a deusa do gelo, sua mãe. Era uma noite muito escura,
com poucas estrelas no céu, e ele estava sentado em um pequeno barco a remo. A o
seu lado, de pé, havia uma mulher de longos cabelos negros, faces bem delicadas,
aparentando ter não mais do que vinte anos. Vestia um manto de seda dourado,
com pedras brilhantes (pequenos cristais) presas ao longo do vestido. Reconheceu
de imediato a sua mãe, que naquele sonho não pronunciou uma só palavra.
Primeiro ela olhou para Vanhardt e apontou gentilmente para o lago,
mostrando a ele que havia muitos crocodilos espreitando em suas águas. Este ficou
assustado ao ver os répteis, mas continuou sentado e olhando para a deusa. Ela
então deitou as duas mãos sobre o próprio peito na altura do coração, e fechou os
olhos. Levantou os braços em seguida, apontando-os para o céu, e uma luz branca
muito intensa começou a fluir de seu peito. Vanhardt ficou cego por alguns
segundos, e quando voltou a enxergar, viu que uma ponte de gelo surgira, ligando
o barco à margem do lago. Ela tomou a mão do rapaz puxando-o gentilmente, e o
fez levantar. Atravessou a ponte junto dele, enquanto os crocodilos davam
mordidas ameaçadoras no ar, por pouco não os alcançando. Q uando chegaram do
outro lado, recostou a mão de Vanhardt sobre o peito dele, e depois apontou para a
ponte de gelo. A deusa tinha um sorriso lindo estampado no rosto, e acariciou
ternamente o rosto de seu filho,e de repente ele acordou.
O rapaz pensava no sonho enquanto seguia caminho. Ele aprendera de seu pai
que tudo nos sonhos é apresentado de forma simbólica. O que seriam aqueles
crocodilos, e a ponte? A mão sobre o peito também não lhe suscitou muitas idéias.
S abia que aquilo tudo representava algo, era uma mensagem que sua mãe lhe
enviava. O problema era que não conseguia decifrá-la! D ecidiu, então, não mais
perder tempo com o tal sonho.
Também em virtude da bolha que Lila conjurara, Vanhardt não precisou se
preocupar com alimentação ou água durante toda a caminhada. O jovem imaginava
se a pequena fada sentia frio, ou se sofria de fome ou sede, pois não a viu se
alimentar ou reclamar da temperatura. Preferiu não interrogá-la, pois cada vez que
fazia alguma pergunta a Lila sentia-se um pouco mais burro. E já fizera muitas até
ali...
D urante esses dias de caminhada contou à fada o que acontecera a ele nas
últimas semanas, desde o nascimento do seu filho, até quando o bebê foi raptado
pela mãe de sua esposa. A pesar do primeiro contato não ter sido plenamente
amistoso, estava agora bastante íntimo da companheira de viagem. Era como se
estivesse bem perto de sua mãe.
Espere aí um minuto - disse Vanhardt, parando.
O que foi?
Olhe pro outro lado, vou esquentar a neve um pouquinho aqui!
Lila continuou olhando pra ele interrogativamente:
Mas posso saber pra quê vai esquentar a neve?
Vou fazer xixi, ora! - explicou Vanhardt impacientemente - Por isso não quero
você me observando enquanto faço isso!
Também não há nada aí que eu queira ver - voou alguns metros para longe do
rapaz, olhando para frente e cruzando os braços – Humpf!
Hehehe! É engraçado como a neve vai derretendo sob os nossos pés... Ah...!
Eu acho tão esquisita essa sua necessidade de tirar líquido do seu corpo a todo
momento! Comer e beber também me parece estranho. Fadas não têm esse
problema, nos alimentamos da energia do S ol. O s deuses há muito tempo fizeram
um trato com S alazar, que se comprometeu a alimentar todas as fadas com a sua
energia. E além do mais não precisamos dormir... - falava isso morrendo de
curiosidade em saber o que Vanhardt tanto escondia enquanto fazia o bendito xixi.
E você ainda nem viu como eu elimino os alimentos sólidos, hehehe! Estranho,
até que eu urinei bem esses dias, mas não eliminei...
Vanhardt ia abotoando a fivela do cinto quando sentiu um golpe em suas costas
que o atirou três metros para frente. A bolha de energia havia se desfeito (não
fosse por ela estaria morto!), e ele agora estava no chão procurando se levantar
rápido e localizar o que fizera aquilo. Logo viu a criatura correndo sobre as quatro
patas em sua direção para dar um novo golpe. Era similar a um urso das neves, mas
muito maior, e com dois chifres iguais aos de um carneiro. O s olhos eram
vermelhos, bem vivos, e a boca estava aberta mostrando os dentes enormes,
enquanto uma baba verde, gosmenta, escorria entre eles. Vanhardt já tinha ouvido
falar dessa criatura, chamava-se Crivmarion ou "gigante do gelo", na língua dos
antigos. Era extremamente veloz e também muito agressiva. Q uando estava a
poucos centímetros do jovem pôs-se sobre suas duas patas traseiras e com as duas
dianteiras tentou acertar a cabeça da vítima. Q uase não deu tempo para Vanhardt,
que já estava de pé, tirar sua lança das costas e defender-se do golpe ao mesmo
tempo em que gritava:
Lila!!!
A haste de madeira da lança se partiu ao meio com o poderoso golpe,
lembrando a Vanhardt que aquela feroz criatura era memorável por comer todas as
suas vítimas. Veio-lhe à mente uma história em que dez homens foram devorados
por apenas uma dessas, e todos eles estavam bem armados, com lanças, espadas e
armaduras. E ele, com uma lança quebrada, via a criatura desferir um novo golpe,
agora em direção ao seu pescoço. A morte estava a milésimos de segundos,
inevitável, pois não teria como se defender nem desviar-se desse ataque! Q ual não
foi sua surpresa ao ver o Crivmarion parado, com as garras a poucos centímetros
de seu pescoço, sem esboçar um movimento! Com os olhos arregalados viu Lila
voando bem próxima do monstro, com os bracinhos estendidos na direção dele. D e
alguma forma ela havia paralisado o gigante do gelo.
Vamos, Vanhardt! Não conseguirei segurá-lo por muito tempo!
Largando a lança quebrada no chão, Vanhardt agilmente sacou a sua adaga que
estava presa na bota esquerda, e tentou furar a barriga do monstro. Espantado, viu
que ela não penetrava um centímetro, pois o couro da criatura era extremamente
espesso. Tentou um outro golpe com mais força, e mais um, não promovendo nem
um arranhão.
— Vanhardt! Não vou agüentar mais... vou soltá-lo!
Com a adaga ainda em mãos, Vanhardt deu um salto e cravou-a num dos olhos
do Crivmarion. Caiu e rolou para longe da criatura, e no mesmo movimento pegou
a ponta de ferro de sua lança partida. Lila despencou no chão, esgotada, e a
criatura, não mais sob o efeito da magia da fada, urrava ferozmente, enquanto
cortava o ar com suas garras afiadas. Vanhardt corria com o coração aos saltos e a
respiração ofegante. S eguia sem olhar para trás - queria apenas se afastar o máximo
possível do monstro que provavelmente iria matá-lo. S abia que o golpe no olho o
atrasaria, mas não o deteria. Estava sem a adaga, a parceira fora de combate, e a
lança era apenas uma ponta de ferro, sem a haste. Por cima dos ombros viu que a
criatura já estava no seu encalço, correndo e urrando. N ão queria morrer de modo
algum ali na metade do caminho, não queria morrer sem antes ver de novo o
sorriso do pequeno Erick, e o de sua esposa, a doce S elena. A h, como gostaria de
rever aqueles sorrisos!
Foi então que num flash, lembrou-se do sonho que tivera com sua mãe. O sonho
mostraria como vencer o desafio. Mas como faria isso? Lembrava-se dos crocodilos,
da ponte... e de sua mãe colocando a mão sobre o coração, e fazendo o mesmo com
ele logo depois, como se estivesse ensinando-o. Era isso! Ele deveria se concentrar
no coração! O Crivmarion estava perto, dez metros de distância. Concentrar-se no
coração, concentrar-se no coração! S erá que daria certo? O ito metros. S eu coração,
como uma bomba, acelerado, batia nervosamente. S eis metros. Vanhardt fechou os
olhos enquanto se concentrava. A pertava o resto da lança na mão com toda a força.
Cinco metros apenas. S entiu uma força brotando de seu peito, uma força mágica,
que fluía como sangue para a lança. Q uatro metros! A briu os olhos e virou-se para
a mão direita, notando que segurava não uma ponta de ferro, mas uma lança
imensa toda feita de gelo. Teria ele realmente executado aquela magia?
S em perder nenhum segundo, gingou o corpo, e atirou com toda a força a lança
de gelo, mirando no peito do monstro. Ela voou e cravou em cheio, derrubando o
gigante de gelo, que caiu no chão já abatido. A lança era forte o suficiente para
penetrar até o seu espesso couro. O monstro, deitado, não mexia um músculo.
Temendo uma possível reação do Crivmarion, Vanhardt aproximou-se devagar, e
quando atingiu dois passos de distância constatou satisfeito que ele realmente
estava morto; nem respirava. Ficou parado por alguns segundos, em um completo
estado de êxtase. N ão sentia mais nenhuma dor e cansaço, era como se todos os
seus músculos estivessem anestesiados, e sua mente repousava tranqüila. Mal
podia acreditar na incrível proeza que acabara de executar. Q uando voltou a si,
minutos depois, correu para sua amiga que estava sentada na neve, com as
mãozinhas na cabeça.
Lila, Lila, está tudo bem com você?
Ai... ai... O mundo é uma bola de neve: rodando, rodando... E que dor de cabeça!
Calma, você vai melhorar.
Ui... Usei minhas forças até o limite, bem que eu sabia... Espere! Vanhardt, é
você, e está vivo! Vanhardt, você conseguiu!
Hahaha, é mesmo! Você devia ter visto, eu fiz uma lança de gelo poderosíssima
atirei no peito dele, foi incrível! - estava tão empolgado que pegou a fada pelas
mãos e ficou rodopiando com ela no ar, dando altas gargalhadas.
Espere, estou zonza! E minha cabeça ainda dói!
Eu jurava que ia morrer! Ah, nem acredito!
Está bem, mas calma! - já havia parado de rodopiar a fadinha - Vamos continuar
a nossa viagem, porque o cheiro dessa criatura pode atrair muitas outras, e nós não
vamos querer isso certo?
E, você tem razão! - a euforia passou, e ele se recompôs. - Muito bem, vamos lá?
Só que ainda não posso fazer o escudo de energia, estou fraca...
S em problemas! Posso resistir ao frio facilmente, e não vou morrer de fome
nesse meio tempo, não é? Esqueceu que sou filho da deusa do gelo?
S ei... S orte sua, porque só recuperarei meus poderes amanhã, e um humano
normal não suportaria o frio da noite daqui. Q uanto à comida, terá mesmo de
agüentar.
Ok, então vamos!
Antes de prosseguir, porém, Vanhardt retornou ao Crivmarion e retirou a adaga
que estava cravada em seus olhos.
Argh, que nojo! - reclamou enquanto limpava a arma na bainha de sua camisa.
E os dois continuaram a caminhada rumo ao oeste.
Capítulo X - Enfim, Avendorh

Passaram-se exatamente sete dias e sete noites, e não enfrentaram nenhum


contratempo durante esse período. Vanhardt ficou extremamente feliz quando
avistou de longe o rio D urande, e de tanta alegria acabou saindo em disparada,
mergulhando com uma cambalhota. N ão fazia frio naquela região, pois a cadeia de
montanhas barrava a sua passagem. Vanhardt passou longos minutos se
deliciando com as águas do Durande.
Vamos, Vanhardt, não está com pressa de encontrar seu filho?
S im, já estou indo - saiu da água esfregando a mão sobre a cabeça de modo a
enxugar o cabelo. - Será que não dava pra secar minhas roupas com uma magia?
Eu posso fazer magias sim, mas também não sou sua escrava! - Lila cruzou os
braços.
Vai me deixar molhado?
Você não conseguiu criar uma estaca de gelo poderoooooosa, com a qual matou
aquele monstro? Pois então, seque-se você mesmo!
Ah é, quer apostar? Então fique olhando!
S entado em uma posição de meditação, com as pernas cruzadas, Vanhardt
colocou as duas mãos sobre o peito. Fechou os olhos, e começou a se concentrar,
desejando ter suas roupas secas. Ficou assim durante alguns minutos, mas sua
mente não parava quieta. Pensava o tempo todo em sua casa, sua família, seus
amigos e nos fatos recentes da viagem.
A hhhh! D esisto! - disse o rapaz, levantando-se, desanimado. - É impossível!
N ão consigo nada me concentrando. D as duas vezes que executei alguma proeza
divina, foi quando estava em perigo. Aqui parado não dá...
Vanhardt, meu querido, preste atenção. Você nunca conseguiria fazer essa
magia, pois não estava conseguindo manter a mente tranqüila. N aquela
oportunidade em que enfrentou o monstro, foi a situação de perigo que o ajudou a
engatilhar a magia! N a verdade, a visão da morte te obrigou a se concentrar
profundamente, tão profundamente que conseguiu criar a lança de gelo. Entendeu?
Hummm... E como você consegue fazer isso? Como se concentra facilmente
para fazer essas magias?
Bem, eu já nasci com esse dom, foi um poder herdado da deusa. Talvez seja
interessante você entender o que verdadeiramente é a magia. Veja bem, tudo no
universo está em constante mudança. Q uando quebramos um ovo, ou plantamos
uma árvore, estamos fazendo uma ação nesse universo, que repercutirá com outras
ações, como o crescimento de uma árvore ou a morte de um pintinho. Magia é
simplesmente moldarmos o universo de uma maneira mais brusca, e utilizando a
vontade. J ogar o ovo pra cima é uma ação comum, porém fazê-lo flutuar já é uma
atitude mais brusca. Para que você possa realizar esses movimentos mais bruscos
— essas feridas no universo, também conhecidas como magia -, precisa de uma
energia extra. O s humanos têm a energia vital, uma energia mais sólida e menos
poderosa, porém nós temos a divina. É a energia divina que lhe fornece a
capacidade de realizar magias, operando o universo conforme a sua vontade.
Q uanto mais brusca a mudança, mais energia você consumirá. E quanto maior o
seu treinamento, maior montante de energia poderá usar, realizando magias mais
poderosas. S e se dedicar bastante, poderá fazer coisas fantásticas! - a fadinha bateu
palmas, animada. - E não se preocupe pensando se a energia irá acabar, pois ela
vem da sua mãe, e garanto que a deusa do gelo possui bastante guardada.
E como seria esse treino?
Tente todos os dias se concentrar para fazer qualquer coisa, por exemplo uma
bola de neve. D epois que conseguir, tente fazer uma bola maior, e depois uma
maior ainda! Então tente fazer outra coisa, como secar a roupa. E por aí vai!
Entendi. Mas deve ser muito chato isso de treinar todos os dias. N ão sei se terei
disciplina...
Você quem sabe. Se quiser fazer magias, terá de ser assim.
Está certo, eu vou tentar! Mas chega de perder tempo, vamos continuar nossa
viagem.
N esse mesmo dia percorreram quase cinquenta quilômetros. O s dois
começavam a revelar sinais de cansaço; não físico, pois Lila dava um jeito de
conjurar a bolha sempre que precisavam, mas mental. Vanharat até se esquecera de
quantos dias estava fora de casa, e achava que nunca ia chegar ao bendito castelo.
J á era noite quando viu surgirem suas primeiras torres no horizonte. Ficou pasmo.
Era uma construção gigantesca, às margens do rio D urande, que naquela parte
formava um lago em volta do castelo. S ua estrutura apresentava uma única cor,
preto, e dezenas de torres com criaturas medonhas esculpidas nas paredes,
chamadas de gárgulas, somavam-se à arquitetura gótica. N a frente havia um portão
de metal, com cerca de vinte metros de altura, que parecia poder descer como uma
ponte sobre o rio, e muros um pouco mais baixos com suas ameias cercando toda a
construção. A inda podia-se ver fumaça cinzenta saindo de uma das torres, e ouvir
barulhos de estacas de ferro batendo juntamente com gargalhadas sinistras. Era
apavorante. Vanhadt não conseguia acreditar que sua doce esposa S elena podia ser
filha daquela mulher. Uma tão maligna criatura dera origem a outra tão pura! O
que deveria estar se passando com o seu pequeno Erick, em um lugar tão
horroroso? Q ueria sair correndo e atravessar o lago a nado, e ainda escalar os altos
muros para tirar seu filho de lá, mas foi dissuadido dessa idéia maluca por Lila.
Enlouqueceu? Primeiro: está de noite, e você não tem nenhuma tocha, e não
serei eu boba de iluminar o caminho por onde você for. S egundo: estamos
sozinhos, só você e eu, e deve haver um exército de monstros ali dentro, fora a
própria Hilda! A cho muito difícil, para não dizer impossível, que nós dois
possamos com todos eles! E terceiro: estamos cansados, fizemos uma longa viagem
e seria estupidez tentar um ataque agora.
Então, o que vamos fazer? Sentar e esperar? Até quando?
Vamos dormir hoje, amanhã pensaremos num plano. N o caso você dorme,
porque eu não preciso...
Não vou conseguir dormir sabendo que meu filho está tão perto!
Vai dormir, sim! Precisa economizar forças para amanhã, porque iremos
enfrentar um grande desafio, não é mesmo? Siga-me!
Lila levou Vanhardt até uma pequena floresta, com árvores compridas, a
dezenas de metros dali.
É melhor ficarmos aqui, pois assim estaremos fora da vista de algum passante.
Posso até ficar aqui, mas se você acha que vou conseguir dormir, pode ter
certeza que... - Vanhardt desabou no chão como uma fruta madura caindo do pé,
depois que Lila tocou com o indicador em sua testa. E dormiu profundamente.
Capítulo XI - Negócios Divinos

Em um castelo de cristal, no alto das nuvens, um ser metade homem metade


coelho ajoelhou-se perante um altar onde estava sentada a deusa do gelo. Ele vestia
um terno azul, com gravata borboleta vermelha e botas amarelas, aparentando
muita simpatia:
Magnífica Léia, ó grande deusa do gelo, seu fiel assistente O swaldo traz consigo
notícias recentes do seu filho, o destemido Vanhardt! - balançou timidamente as
orelhas.
Léia, antes conhecida como Morgana, a deusa da morte, segurava com a mão
esquerda um cetro de prata, com uma estrela dourada na ponta.
Diga, fiel assistente, como anda meu querido Vanhardt?
D epois de haver superado as tempestades de neve que vossa magnificência
enviou-lhe, ele encontrou a fada de nome A lilandra, e com sua ajuda conseguiu
chegar aos pés do castelo de Hilda. - O swaldo descrevia os acontecimentos com um
tom grandioso em sua voz, como se narrasse feitos épicos - A lém disso, parece que
conseguiu um grande prodígio, ao conjurar uma lança de gelo e derrotar um
Crivmarion!
Q ue bom, parece que ele conseguiu entender a mensagem que eu lhe mandei!
São ótimas notícias; o que mais tem para me dizer, Oswaldo?
Bem, ele e sua companheira agora repousam próximos ao castelo da feiticeira. A
fada fez contato, perguntando como entrariam no castelo. O que devo dizer, ó
grande deusa?
D iga que esperem, a ajuda estará a caminho. - A deusa levantou-se e começou a
caminhar em direção a uma fonte redonda no centro do salão. - Bem, agora devo
tomar as providências necessárias para ajudar o meu filho. Estou muito satisfeita
por ele ter encarado de forma tão valente essa jornada! Talvez Vanhardt realmente
se transforme num grande herói. Pode ir Oswaldo, obrigada.
S im, Vossa Magnificência - o coelho fez uma mesura para a deusa e saiu aos
pulinhos.
A fonte no centro da sala media dois metros de diâmetro, esculpida em
mármore branco, com várias inscrições indecifráveis ao seu redor. A borda mal
chegava à altura dos joelhos da deusa, e havia gelo dentro da estrutura, ao invés de
água. N ormalmente os deuses utilizavam tais artefatos para se comunicarem. Léia
gesticulou lentamente, com seu cetro fazendo círculos sobre o gelo, que por sua
vez derreteu, tornando-se água. Uma imagem então começou a se formar no fundo,
a de um homem robusto, com cabelos pretos, longos e soltos, o rosto marcado com
algumas cicatrizes. Vestia um colete de couro, em volta do pescoço pendia uma
corrente com pequenos crânios humanóides.
Venho a ti, poderoso Ghar, deus dos gigantes, pedir humildemente o seu
auxilio, como havíamos firmado acordo - disse Léia com voz suave, mas firme.
Ghar respondeu através de sua imagem que resplandecia ameaçadoramente nas
águas:
A quele acordo não mais se sustenta, deusa do gelo. N ão posso te oferecer meus
valorosos gigantes por uma quantia tão pequena de energia! - sua voz era rouca e
imponente. Poderia fazer tremer de medo um humano comum.
Mas grande Ghar, achei que o nosso acordo era justo! Eu lhe enviaria cem mil
quantuns de energia divina em troca dos seus poderosos gigantes!
Este acordo foi tempos atrás, agora estou com muitos afazeres, e os gigantes
estão sendo muito importantes para mim! S e ainda os deseja, deverá enviar-me
quinhentos mil quantuns de energia divina!
Cinco vezes o combinado é muito, não posso pagar tudo isso! Peço que
reconsidere, meu amigo. N ecessito desses gigantes imediatamente. D eixe como
havíamos combinado antes!
I mpossível! - exclamou o deus de forma grosseira. - O s gigantes têm um novo
preço, pague ou pare de me perturbar! - seu rosto se contorcia de raiva.
Léia revelou-se muito aborrecida com o deus dos gigantes. A ntes de Vanhardt
partir para sua jornada, ela fizera um acordo com esse deus para que ele fornecesse
tais criaturas, que ajudariam seu filho a invadir o castelo de Hilda. A deusa do gelo
só pedira ajuda a Ghar porque sua base era num castelo, dentro de um vulcão,
próximo de onde Hilda morava. D esse modo, os gigantes sairiam dali e chegariam
rápido até Vanhardt. A lém disso, ela já vira as batalhas dessas criaturas,
estupidamente fortes, que encaixariam perfeitamente na missão que tinha em
mente. A gora, porém, tudo havia mudado, os gigantes tornaram-se muito caros, e
Ghar não parecia muito cooperativo.
O que fazer? Poderia até tentar encontrar outros deuses dispostos a fornecer
criaturas para ela, em troca de uma quantidade menor de energia, mas não
conseguiria manter Vanhardt esperando muito tempo. O maldito Ghar tornou-se
um aproveitador! Tarde demais, arrependeu-se de confiar no deus dos gigantes,
que já fizera truques sujos contra outros deuses menores antes. Ela, entretanto,
deveria agora ceder às exigências do tratante.
Tudo bem, deus dos gigantes. Enviarei o seu pedido, mas sob protesto. Q uero
que deixe suas criaturas sob o meu comando assim que tiver recebido a energia!
Acordo feito, deusa do gelo! Adeus!
A imagem de Ghar sumiu lentamente nas águas. Léia, ainda contrariada,
atravessou uma porta à direita do salão do trono, desembocando em outra sala.
Esta continha imensos cristais que brotavam do chão e iam até ao teto, e
guardavam a energia divina da deusa do gelo. Erguiam-se sobre cerca de trinta
metros de altura por três de largura, e podiam-se contar sete cristais ao todo.
Em Kether, cada deus recebe energia dos seus seguidores, e esta é armazenada
em um local apropriado. Léia usava cristais para armazenamento, mas muitos
outros deuses usavam diferentes materiais, como minérios de ferro, troncos de
árvore, sais, piscinas de lava, dentre outros. Essa energia é que proporciona aos
deuses o poder de alterar a realidade, fazer os milagres, as magias. O deus também
pode usar a energia para fazer surgir criaturas divinas (como é o caso de A lilandra
e os gigantes), mas elas devem ficar incubadas durante certo tempo antes de
estarem prontas.
A deusa do gelo encostou seu cetro em um dos cristais, e, de olhos fechados,
tirou a quantidade de energia que Ghar requisitava. S ua reserva caía agora para
níveis muito baixos, um fato no mínimo preocupante. A lém disso, enviaria
algumas de suas criaturas aladas para ajudar Vanhardt, o que deixaria sua defesa
comprometida. S e sofresse algum ataque durante esse tempo poderia ser o seu
fim! Era prudente colocar alguns vigias de prontidão, pois até os deuses menores
são espertos, e usam de artimanhas. Caso percebessem sua fraqueza, mesmo que
momentânea, inevitavelmente atacariam.
Girando o cetro no ar, um cone brilhante de luz, multicolorido, escapou de
dentro da deusa, rumo aos céus. Léia sentiu-se fraca por alguns segundos,
vacilando, mas assim que se recompôs voltou à sala do trono, onde se sentou
apreensiva. Restava apenas aguardar.
Capítulo XII - Vanhardt Reúne seu Exército

O jovem filho da deusa do gelo acordou com os primeiros raios da manhã, e viu
Lila sentada em uma pedra à sua direita. Ela mantinha os olhinhos fechados, e
parecia estar dormindo.
A há, sua danada! - Vanhardt se levantou de supetão e soltou um berro, fazendo
a fada tremer dos pés à cabeça com o susto. - Você não tinha dito um dia desses
que não precisava dormir, porque S alazar fez não sei que pacto para dar energia às
fadas? Por que então estava aí tirando um ronco? - perguntou o rapaz com um
olhar desconfiado.
Lila se recompôs do susto, e ficou de pé com uma cara amarrada:
Para sua informação, filho da deusa do gelo, eu estava concentrada a fim de
escutar todos os barulhos à nossa volta. Q uando estamos assim, numa floresta,
com muitos lugares para feras selvagens se esconderem, nossos olhos costumam
nos trair, e o melhor é confiar nos ouvidos! E fique o senhor sabendo que se me der
um susto desses de novo, eu transformo sua cabeça num abacaxi!
A h... Transforma nada... Estressada, foi só um sustinho! Você tem que aprender
a relaxar um pouco e não ficar nervosa com qualquer coisa!
Lila encarava o rapaz ainda zangada com o susto que tomara. Reparou,
entretanto, que ele demonstrava um humor não revelado anteriormente. A lém
disso, havia um brilho penetrante no seu olhar, de extrema confiança, e a fada ficou
satisfeita com isso. A noite bem dormida fora revigorante para o jovem guerreiro.
Lila, estive pensando: já sei como invadiremos o castelo! Veja bem, você poderia
me tornar invisível, de modo que eu subiria furtivamente no muro, e depois
entraria no castelo. Lá dentro encontraria o quarto de Erick, e, quando eles dessem
conta do ocorrido, eu estaria aqui fora, com meu filho nos braços! Q ue tal, ótimo
plano, hã?
Não.
Como assim?
S eu plano nunca daria certo - sentenciou friamente a fada coçando as orelhas
pontudas.
Mas...
D eixa eu te explicar... - interrompeu a fada. - Eu já vi que você sabe bolar planos.
I sso é bom, mas apesar de ser parte da mesma deusa que você é filho, eu tenho
minhas limitações. A lém disso, conjurar magias, executar milagres, é muito mais
do que realizar o que nos vem à cabeça. Existe uma rede intricada que temos de nos
submeter, ou então quando formos realizar qualquer coisa, seremos obrigados a
dispor de muita energia. Resumindo: deuses, semi-deuses, ou criaturas que dispõe
de energia divina, todos têm a capacidade de operar o universo conforme a
vontade. Podemos fazer tudo. A contece que se não obedecemos uma lógica pré-
estabelecida, não teremos energia suficiente. Eu, por exemplo, tenho minha gama
limitada de magias, e dentre elas não consta ficar invisível. A lém disso, mesmo que
pudesse executar essa ação, com certeza Hilda perceberia assim que você entrasse
no castelo. Pelo que você me contou, ela é uma feiticeira poderosa, e não seria nada
difícil constatar a presença de um intruso em sua própria fortaleza por outros tipos
de percepção, diferentes da visão. E com todas as tropas daquele lugar no seu
encalço, duvido que saísse com vida.
A h... Era um plano tão bom... Mas o que faremos? S entamos e esperamos o
tempo passar?
Paciência, paciência! S ua mãe logo mandará reforços, e aí sim teremos
condições de invadir a fortaleza. Enquanto isso, porque não descansa um pouco?
Aproveite para meditar um pouco, vá treinando uma magia qualquer.
N ão vou treinar nada, estou muito ansioso! Eu queria mesmo era... - a frase foi
interrompida por um grande estrondo semelhante a um grunhido, que se espalhou
pela floresta.
Van, fique atento, parece que há algum animal aqui perto! - exclamou Lila
enquanto voava preocupada para o lado do jovem.
Não é animal nenhum, é só o meu estômago!
A fada parou de voar, arregalou as sobrancelhas, e caiu na grama de tanto
gargalhar.
Há!Há!Há!Há! E eu... Há!Há!Há! E eu ainda pensei que fosse um animal!
Há!Há!Há! Minha deusa, que barulho foi esse! Há!Há!Há!
J á chega, já chega! Vamos levantando do chão! - Vanhardt disse, cutucando com
o bico da bota a fada que rolava e socava o chão de tanto rir.
Há!Há!Há! "E o meu estômago", "o meu estômago", Há!Há!Há! - caçoou a
fadinha, enquanto o rapaz ficava com o rosto cada vez mais ruborizado.
Ô Lila, alguém pode te escutar! Vamos logo, estou com fome também. Cansei
dessa sua bolha substituir minha alimentação, preciso de comida de verdade!
Lila enxugou as lágrimas que lhe banhavam a face com o dorso das mãos,
respirou profundamente e alçou vôo.
A i, ai... Pois bem, "animal faminto", vá comer sua refeição matinal, estarei aqui
vigiando.
Vanhardt sacou sua adaga e se embrenhou no meio da floresta. Procurou
durante vários minutos por frutas, ou algum animal que pudesse assar. Encontrou
uma lebre, que o driblou duas vezes e se escondeu numa toca debaixo da terra.
Voltou ao lugar onde Lila esperava meia hora depois, com as mãos abanando.
N ão encontrei nada. Vou pescar, que é o melhor que eu sabia fazer lá na minha
terra.
Encontrou um galho comprido e fino, mas duro, e limpou-o com a adaga,
afinando uma das extremidades. S erviria de lança para a pescaria. Restava saber se
D urande tinha peixes. Caminhou até a margem do rio, seguido por Lila, e
aproveitou para dar uma conferida no castelo: continuava apavorante. A proximou-
se da margem e notou vultos pequenos nadando no fundo do rio. J ogou a lança
mais de vinte vezes e não conseguiu pegar um peixe sequer.
Ah! Desisto, hoje vou passar fome! - nervoso, quebrou a lança no joelho.
Você é muito apressado, quer as coisas sempre na hora, sabia? Muitas vezes
isso é uma virtude, mas também pode ser uma tremenda desvantagem! A posto
que as pessoas vivem dizendo para você ter paciência, não é?
O tempo todo! E você é uma delas, a propósito.
Humpf, sei disso. O que estou tentando lhe dizer é que você deve aprender a ter
mais disciplina! N essa situação, por exemplo, está tendo dificuldades para pescar.
N atural, pois o rio é diferente de onde você costuma pescar, a lança não é muito
boa, os peixes são diferentes daqueles com que você tinha contato. O que pode
fazer então? S e eu fosse filho de uma deusa, tentaria usar meus poderes para me
auxiliarem.
Mas eu não sei usar meus poderes direito, ô fadinha!
Está na hora de aprender, então.
Pois se é assim, me dê licença, você está me desconcentrando. Vá lá pra dentro
da floresta e fique vigiando!
Tudo bem, mal educado! - a fadinha voou emburrada pra a floresta.
Humpf, mal educado nada. "D isciplina", "disciplina"! Ela não vê que tenho
dificuldade pra fazer magias, e me cobra o tempo todo. N inguém agüenta esse tipo
de pressão! - pensou alto.
S entando-se na margem com os pés dentro do rio, Vanhardt observou os peixes,
que por sua vez ignoravam o que se passava fora d'água. Por que eles não se
deixavam ser pescados? Estava com fome, e precisava ir salvar o filho. Mas como
poderia invadir uma fortaleza bem guardada, se nem conseguia pescar? Ele
continuou observando os peixes, concentrado, e passou a escutar um zumbido
grave em sua cabeça. D e uma hora pra outra, o mundo à sua volta começou a girar,
e a sua visão se tornou embaçada. A pesar disso ele não se sentia mal - uma energia
misteriosa e agradável brotava de seu peito. A inda podia ver os peixes, quando de
repente tudo ficou negro, e depois azul. Ele então viu um peixe dourado enorme
em sua frente e tomou um susto. Era gigantesco, deveria ter o seu tamanho! O lhou
para os lados e notou muitos outros peixes, que nadavam ao seu lado e embaixo
dele. Espere um pouco, ele estava dentro da água! Tornou os olhos para si mesmo e
no lugar das mãos viu nadadeiras... Tinha virado um peixe! Era estranho e
engraçado ao mesmo tempo.
Um pouco à sua frente havia pés demasiadamente grandes mergulhados no
lago - os seus pés humanos. Eles continuavam balançando, ou seja, o seu corpo
permanecia lá, e se mexendo. Teve uma idéia. Tomou distância e começou a nadar
freneticamente em direção aos pés. D epois virou para cima e saltou para fora do
lago, indo cair bem no colo do seu corpo humano. Um clarão o cegou por alguns
segundos, e foi aí que sua visão voltou ao normal.
Vanhardt tinha no colo um lindo peixe de escamas douradas, se debatendo.
Lila, olha aqui! Lila, eu consegui! - correu em direção à amiga, que estava
sentada na mesma pedra de antes.
Nem me importo. Depois do jeito que você me tratou...
A h, Lila, me desculpe, sinceramente! Eu realmente fui grosso com você, mas é
porque estou sob muita pressão e ansioso com a proximidade de reaver meu filho.
Por favor, peço desculpas novamente.
Só o desculpo porque se arrependeu!
Ótimo. Agora, vamos comer!
Vanhardt catou alguns gravetos na floresta e depositou-os juntos. D epois,
pegou metade da lança que fizera para pescar e enfiou-a pela boca do peixe, saindo
na traseira.
Falta fazer o fogo...
Tentou se concentrar pra acender os gravetos magicamente por vários minutos,
e nada. Q uando Vanhardt pensou em reclamar do fogo que não aparecia, os
gravetos estalaram, e uma chama laranja surgiu.
Hum... Foi você que acendeu, não foi, Lila?
A fadinha não segurou o sorriso e admitiu:
S im. Você estava demorando demais, e daqui a pouco os reforços enviados por
sua mãe chegarão.
Mal esperou o peixe terminar de assar, e Vanhardt devorou-o em pouquíssimo
tempo, sem nenhum cuidado para separar os espinhos. Com a boca cheia de restos
de carne semi-crua, segurou a fadinha com uma das mãos e perguntou:
O nde estão? Chegaram? - cuspia pedaços de peixe misturados à saliva no rosto
de Lila, enquanto esta tentava se defender da saraivada de comida com os braços.
Vamos sair da floresta pra recebê-los - disse a fada, limpando o rosto
impregnado com a nojenta refeição.
Minutos depois, com Vanhardt bem alimentado, saíram de lá e se dirigiram
para uma planície, de onde não se podia ver o castelo devido às árvores muito altas
e cerradas que o encobriam. Colinas cobertas com uma grama rasteira próximas
aos dois se revelavam extremamente convidativas a um piquenique.
É melhor encontrar nossa tropa aqui, fora de vista da fortaleza de Avendorh -
Lila colocou as mãozinhas na cintura.
Vanhardt olhava para os lados, mas não via nada por perto. Esperaram por
vários minutos, e subitamente a fadinha apontou para o céu.
Lá em cima!
O jovem guerreiro observou vários pontos pequenos e móveis entre as nuvens.
A pertou bem as pálpebras, e segundos depois conseguiu distinguir as figuras. N o
centro havia um pássaro enorme, branco, semelhante a um cisne, e alguém
montado em suas costas. Atrás dele voavam outros tipos de pássaros - esses
maiores que o cisne, e com um bico dourado, curvo, e garras da mesma cor.
A presentavam também penas vermelhas arrebitadas na cabeça, que seguiam uma
linha reta do ponto entre os olhos até a nuca, e contrastavam muito com o resto do
corpo, coberto por penas azuis. Eram vinte e duas aves ao todo, e elas pousaram a
poucos metros de Lila e Vanhardt, levantando uma nuvem de folhas secas.
D o pássaro branco, desceu uma criatura que Vanhardt achou curiosa. N ão sabia
se era um coelho ou um ser humano; na verdade parecia uma mistura dos dois.
Vestia um terno azul bem alinhado e uma gravata borboleta vermelha, e ainda
calçava botas de couro, amarelas. Ele se aproximou com o braço esticado para
cumprimentar Vanhardt, que notou dois dentes saltando de trás dos lábios
sorridentes do coelho.
Muito bem, muito bem, muito bem! - o coelho balançou freneticamente a mão
do rapaz. - E uma grande honra cumprimentar o destemido Vanhardt, filho da
majestosa deusa do gelo! Pode me chamar de O swaldo, seu humilde criado. Como
vai, tudo bem?
Er... Sim! - o rosto de Vanhardt alternava expressões de dúvida e surpresa.
Eu tenho certeza disso! - deu tapinhas de leve no ombro do jovem. - A h, e esta
seria Lila, a fada mais formosa de todo o continente!
Hihihi! - a fadinha sentiu o rosto corar. - S ou eu mesma! Pois então, O swaldo,
essa é a tropa que Léia havia me confirmado?
N ão, ainda faltam os gigantes que logo... Ei rapaz não faça isso! - o coelho gritou
assustado para Vanhardt, que passava ao lado de um dos pássaros azuis e tentava
acariciar a cabeça dele.
N um movimento rápido, O swaldo saltou e derrubou o rapaz no chão,
impedindo que fosse mordido pela criatura alada. Vanhardt sentiu o bico raspar
em seu braço, e percebeu que se a mordida tivesse pegado em cheio, teria um
braço a menos.
S eu louco, não se aproxime tanto de um Grilliardus! - O swaldo falou com o
rosto sério, depois de se distanciar alguns metros dos pássaros. - D esculpe os
modos milorde, mas estas são criaturas muito ferozes, que atacam qualquer um
que se aproxime demais. N ão são poucas as pessoas que tiveram membros
perdidos por elas.
N ossa! I sso é bom! Elas serão uma ótima ajuda na invasão do castelo. -
comentou Vanhardt entusiasmado, enquanto olhava atento para o Grilliardurs que
o atacara. Este bicava o chão numa atitude aparentemente tranqüila - Minha mãe
sabe o que faz. Mas O swaldo, você disse que faltam alguns gigantes, não é mesmo?
E onde eles estão?
O coelho consultou uma ampulheta amarrada ao pulso, por onde escorria areia.
Vanhardt nunca vira aquele instrumento, que achou tão curioso quanto o dono.
Depois de alguns resmungos, Oswaldo continuou:
É verdade, é verdade, é verdade! Eles estão atrasados, o que será que
aconteceu...? A h, sim, veja! - ele apontou para o horizonte, e Vanhardt percebeu
uma nuvem de poeira que se erguia, como se uma manada de touros viesse em sua
direção. - He!He!He! Certamente são eles! Certamente!
S ó a poucas centenas de metros Vanhardt conseguiu ver os gigantes, pois a
poeira não mais os encobria. Eram criaturas realmente grandes, cerca de cinco
metros de altura, e musculatura absurdamente desenvolvida. Vestiam apenas uma
tanga, que cobria a pelve, mas deixava o resto do corpo de fora. A lguns ainda
seguravam porretes do tamanho de um homem nas mãos. O solo trepidava à
medida que seus pés tocavam-no, naquela correria desenfreada. Em segundos eles
pararam ao lado dos Grilliardus, que emitiram guinchos e abriram os bicos
demonstrando uma atitude hostil.
S em briga, sem briga, sem briga! Gigantes, fiquem atrás de mim - O swaldo
apontou para as costas, e os gigantes obedeceram imediatamente. O s Grilliardus
continuavam a olhá-los fixamente, contudo, sem hostilizá-los. - Muito bem,
Vanhardt, agora que o seu exército está reunido, devo retornar para o castelo de
cristal.
Espere aí, como assim? Vai me deixar sozinho com todas essas bestas?
— Não se preocupe! - Oswaldo usou um tom paternal. - Tanto os Grilliardus
quanto os gigantes obedecerão às suas ordens; a deusa do gelo já cuidou disso.
S ó não fique a menos de um metro dos pássaros, pois o resultado você já conhece!
O s gigantes, por outro lado, são mais tranqüilos, e não existe o mesmo perigo com
eles. Minha deusa, já ia me esquecendo... Que cabeça a minha!
O coelho deu um tapa na própria testa e passou a enfiar as mãos nos bolsos do
terno. Q uando chegou ao quinto, tirou de dentro um reluzente cordão prateado.
N ele havia pendurada uma pequena placa preta, fosca, com dois furos em cima e
dois embaixo. O swaldo fungou antes de colocar o cordão no pescoço do rapaz, e
disse:
Esse é um item mágico muito especial! I rá barrar qualquer tentativa de controle
mental de Hilda. S ua mãe me contou que depois da sua luta com lobos brancos há
cerca de oito anos atrás, ela recolheu a flauta quebrada. A inda restava boa
quantidade da energia de Baal naquele item, e ela decidiu guardá-lo, caso um dia
precisasse. E o dia chegou! D epois do rap... Q uero dizer, depois daquele "incidente"
com seu filho, ela transformou a flauta nesse objeto extraordinário, que
provavelmente lhe será muito útil. A lém disso, ninguém saberá que ele é de sua
mãe, pois a energia de Baal irá encobrir a da deusa do gelo.
Interessante! Mas uma pergunta...
D iga - O swaldo batia nervosamente os pezinhos no chão, parecendo estar com
pressa para ir embora.
Minha mãe não mandou nenhuma arma, tipo um machado, ou uma espada, sei
lá... Qualquer coisa assim?
Hum... - o ser metade coelho consultou um pergaminho que estava num bolso
interno. D epois de lê-lo com atenção, continuou: - Gigantes, Grilliardus... O item de
proteção... É, era só isso! Não mandou mais nada.
Aff... Deixa pra lá!
S e for só isso, devo agora voltar para o castelo de cristal. Tome cuidado,
Vanhardt! E Lila, você também! - falou mais alto para ela escutar.
A fadinha sobrevoava a cabeça de um gigante, o qual tentava espantá-la com as
mãos como se ela fosse um inseto. Q uando se afastou o suficiente, vendo-se fora de
perigo, Lila falou de volta:
Pode deixar, Oswaldo! E diga a Léia que eu cuidarei do rapaz!
He!He!He! Boa sorte para vocês dois! - O swaldo subiu nas costas do pássaro
branco e puxou as rédeas presas em seu bico. A cenou para a Vanhardt e a amiga, e
o pássaro começou a bater as asas, voando para o leste.
É... A gora somos nós e Hilda... - disse Vanhardt vendo O swaldo sumir entre as
nuvens. - Pronta Lila?
Prontíssima, comandante! - respondeu batendo uma perninha na outra,
aprumando o peito, e colocando as mãos na cintura.
— Então vamos salvar Erick!
Capítulo XIII - A Invasão

O plano que Vanhardt e Lila bolaram era simples: distração e invasão. Enquanto
as tropas enviadas por Léia estivessem causando um grande tumuto e baderna, os
dois se infiltrariam na fortaleza. Com as equipes defensoras distraídas lutando
contra gigantes e Grilliardus, e as atenções de Hilda voltadas para essas mesmas
criaturas, a dupla teria mais chances de permanecer oculta, e resgatar Erick. O s
gigantes ficariam encarregados de um ataque direto à frente do castelo, depois que
Vanhardt pulasse o muro e abrisse o portão principal. A o mesmo tempo os
Grilliardus dariam cobertura atacando as torres e os possíveis atiradores que
estivessem nos muros. A única dificuldade era que uma parte do rio D urande
envolvia o castelo, e ninguém sabia se os gigantes, mesmo sendo bastante altos,
afundariam totalmente na água e afogariam-se.
A ntes do ataque se iniciar, Lila fechou os olhos e apontou os bracinhos para
Vanhardt:
Crafo adimapla!
D essa vez não houve show de luzes, e Vanhardt apenas sentiu seu corpo
formigar.
O que você fez? Essa magia serve pra dar coceira?
Não! Simplesmente fiz você ficar mais forte, umas vinte vezes, eu acho...
Ótimo! Vamos experimentar!
S em perder tempo, Vanhardt aproximou-se de um pinheiro com quase vinte
metros de altura. Ele fechou os dois punhos, mirou bem o tronco, e aplicou um
soco no local. Para sua surpresa, o braço inteiro penetrou na árvore, abrindo um
grande buraco. O pinheiro que devia ter centena de anos começou a ranger e a
tombar, e acabou caindo sobre outro, quebrando muitos galhos no processo.
Muito bom, Lila! Por que não fez essa magia antes em mim?
Por que não estava na hora! Eu só não sei quanto tempo ela vai durar, portanto
fique atento.

Vanhardt exibia um grande sorriso no rosto enquanto se equilibrava sobre um


gigante que corria velozmente em direção à fortaleza. S egurava-se nas duas pontas
de uma corda que o gigante mordia na metade, como se fosse uma rédea, e
inclinando o próprio corpo um pouco para trás. O s pés ficavam sobre os ombros da
criatura, deixando-o a cinco metros de altura. A visão do alto era magnífica, e a
sensação de velocidade dava um friozinho na barriga. A quilo era bem melhor do
que montar um cavalo! A o seu lado corriam os outros gigantes, quinze no total, e
no céu os Grilliardus voavam emitindo guinchos agudos. Lila estava no bolso da
frente do seu casaco, e gritou para ser ouvida:
— N ÃO D Á PRA PED I R PRA ELES I REM MA I S D EVA GA R? - a fada mantin
os olhos semicerrados, e seus cabelos verdes voavam indisciplinadamente por
culpa do vento.
— N ÃO ! PRO VAVELMEN TE A S TRO PA S D E HI LD A J Á N O S AVI S TA RA
MA S S E EU FO R RÁPI D O TEN HO UMA CHA N CE MA I O R D E PEGÁ-LO S
A DEFESA DESPREPARADA! - respondeu o rapaz na mesma altura.
Eles se aproximavam rapidamente do castelo - faltava cerca de um quilômetro
até a margem do lago que envolvia a fortaleza. Uma fumaça cinza se elevava acima
de uma das torres, e as gárgulas incrustadas nas paredes pareciam mais
ameaçadoras. Vanhardt percebia o corpo tremer, não de frio, o que ele obviamente
não sentia, mas de nervosismo. A expectativa de rever seu filho e de enfrentar a
poderosa feiticeira aumentara muito nos últimos dias, e mais ainda nesses
momentos finais.
Cerca de quinhentos metros da margem ele divisou criaturas sobre os muros;
algumas apontavam para o exército que ele liderava. D evido à distância só
conseguia ver que eram um pouco baixas e certamente não humanas. S egundos
depois eles estavam na margem do lago, a menos de cem metros do muro, e
puderam ouvir uma sineta sendo tocada no castelo.
Muito bem, agora o castelo todo sabe que chegamos. Vocês dois! - Vanhardt
apontou para uma dupla de gigantes - S igam-me! O s outros fiquem esperando
aqui, e quando eu abrir a porta, entrem e derrubem tudo que aparecer pelo
caminho. Entendido?
O s gigantes balançaram afirmativamente as enormes cabeças, soltando um
grunhido rouco, e Vanhardt olhou para os Grilliardus que voavam em círculos
sobre eles.
E vocês aí do alto! Q uando eu chegar aos pés do muro, ataquem os atiradores, e
qualquer outra criatura que avistarem, ouviram?
O s Grilliardus responderam com guinchos. Vanhardt olhou novamente para o
castelo, e viu que os inimigos corriam de um lado para outro, carregando arcos e
bestas e se posicionando atrás das ameias para atirar. Ele cutucou gentilmente a
cabeça do gigante que montava, e falou ao pé do seu ouvido:
Você, grandalhão, agüenta algumas flechadas, não é?
O gigante confirmou com a cabeça.
Então levante seu braço e ponha-o na minha frente, para me proteger.
A criatura obedeceu prontamente, erguendo os braços e colocando-os na frente
de Vanhardt. A visão do rapaz ficava um pouco prejudicada, mas era melhor isso a
levar uma flechada na cabeça.
Tudo bem aí, Lila?
Tudo - respondeu a fadinha num fio de voz. A expectativa da batalha iminente
parecia tomar conta dela também - Ai... Tomara que o lago não seja muito fundo!
Vamos lá! - Vanhardt puxou as rédeas com força, e os três gigantes marcharam
para dentro do lago.
O s gigantes seguiram com passos lentos devido à dificuldade de andar dentro
da água, e quando ela começou a bater na cintura deles, puderam escutar silvos
vindo em sua direção.
Flechas! - gritou Vanhardt ao ver uma seta passar a um metro de distância.
N ão se preocupe com os gigantes, você mesmo sabe que eles precisariam
receber uma centena de flechas para serem derrubados. - comentou a fadinha, que
mantinha apenas a cabeça pra fora do bolso de Vanhardt.
Eu não estou preocupado com eles! Eles sobreviveriam, mas eu não!
O s silvos continuaram, e duas das flechas acertaram os braços do gigante,
seguidas de outras três que o atingiram no tórax e abdômen.
Anda rápido! Se demorar muito estará mais espetado que um ouriço!
O lhando para os lados, Vanhardt notou que os outros gigantes enfrentavam a
mesma dificuldade. Um deles foi atingido no olho direito e sangrava muito. O
rapaz tombou a cabeça um pouco para o lado, fugindo dos braços que lhe
bloqueavam a visão, e buscou observar os muros do castelo. D ois Grilliardus
atacavam uma guarita, enquanto outros três davam rasantes sobre guardas.
Q uando chegou a menos de duzentos metros do muro, conseguiu reparar bem
nas criaturas que guardavam o castelo. Eram de uma cor verde acinzentada, e
possuíam uma cabeça achatada, larga. A lguns tinham narizes finos e com a ponta
caída, e outros nem narizes apresentavam, mas apenas dois buracos no meio do
rosto. O s cabelos eram ralos, cinzentos, os olhos bem redondos e opacos. N ão
faltavam cicatrizes, que enchiam toda a cabeça e o corpo. Vestiam corseletes de
couro, e alguns tinham espadas nas mãos enquanto outras carregavam bestas, que
miravam ora para os Grilliardus, e ora para os gigantes.
Credo! Nunca vi nada tão feio assim na vida!
S ão orcs. Podem não ser bonitos, mas lutam razoavelmente bem, e são muitos!
Não se distraia! - advertiu Lila, firmando os olhos em uma das torres.
O gigante continuou andando devagar, agora com o corpo cravejado por
dezenas de flechas. Ele ofegava bastante, e começou a urrar de dor.
D roga, Lila, acho que ele não vai agüentar chegar até ao muro! O lhe, o gigante
da direita caiu! Eu não sei se eles são tão fortes assim!
A queda do gigante criou uma onda no rio que quase derrubou Vanhardt. Ele
sacudiu a cabeça molhada e olhou para o bolso, certificando-se que Lila estava
bem, apesar de encharcada. N o muro, os Grilliardus continuavam lutando e
guinchando. Dois deles foram alvejados e caíram no lago.
N ão vamos conseguir desse jeito! - resmungou Vanhardt. - O lha quantos
guardas estão no muro... D eve haver uns trezentos! O s Grilliardus estão sendo
massacrados, e os gigantes não vão agüentar mais nem um minuto!
Eu sei, mas o que você quer que eu faça? Voe lá e acabe com os guardas um a
um? Precisamos colocar os gigantes que ficaram na margem lá dentro!
É o que eu providenciarei agora mesmo!
Vanhardt soltou as cordas que usava como rédeas, e mandou o gigante abaixar
os braços. Ele esperava chegar com a criatura até ao muro, e daí poderia subir; a
situação atual, entretanto, não permitiria. O muro, apesar de estar próximo, ainda
constituía uma barreira pois era muito alto, do tamanho das árvores da floresta ali
perto. Ele viu dois guardas se posicionarem com bestas em janelas distintas de
uma guarita, e apontarem para ele. Rezando para que a magia de Lila afetasse as
suas pernas, ele dobrou os joelhos e saltou.
S eus olhos brilharam quando ele notou que estava a quase trinta metros de
altura. D era certo, ele conseguira pular sobre o muro. O rapaz cruzou-o
tranqüilamente, e a sensação de estar a dezenas de metros de altura não era nada
ruim, mas quando começou a cair se lembrou que não tinha pensado em como
faria para aterrizar. Vanhardt viu o chão se aproximar numa altíssima velocidade, o
vento batia forte em seu rosto. Fechou os olhos e se preparou para o baque.
Ai, minha mãe! - rosnou entre os dentes, e protegeu o rosto com os braços.
Capítulo XIV - Um Sapo Boçal, Uma Armadilha Mortal

Um segundo se passou, depois dois, três... O que acontecera? A briu os olhos e


viu o chão parado a poucos centímetros do seu nariz. Escutou então uma vozinha
escapando do seu peito:
Fui eu quem parou a queda! - tornou a fada com a voz abafada pela camisa do
rapaz. - Levante-se rápido, pois estou presa aqui. A lguém pode te dar um golpe por
trás - o bolso de Vanhardt estava encostado no solo, e a fadinha quase esmagada.
O rapaz pôs os dois pés no chão e olhou ao redor. O res corriam para cima de
escadas que davam acesso a uma passarela atrás dos muros. N enhum deles parecia
ter notado a sua presença. A poucos passos atrás de si estava o portão principal,
preso por duas cordas enroladas em dois respectivos rolos de madeira.
Certamente, quando alguém queria entrar ou sair do castelo, os rolos eram girados
e o portão baixado. S ó havia um problema: a distância do muro até a margem era
de cerca de cem metros, e o portão não tinha mais do que vinte de altura. O u seja, o
seu tamanho não era suficiente para atingir a margem do rio - não chegaria nem na
metade!
Três ores que saíram de uma porta lateral do castelo viram o rapaz, e avançaram
em sua direção brandindo espadas no ar. Ele sacou a adaga da bota direita e cortou
uma das cordas, depois correu para outra e repetiu o ato. O imenso portão de metal
começou a descer, e, surpreso, Vanhardt viu um bloco de metal sair de dentro dele
à medida que baixava. Este segundo bloco aumentava de tamanho sem parar, até
que um terceiro saiu deste. Então era assim que funcionava - os blocos sucessivos
saindo um de dentro do outro aumentavam o tamanho do portão, tornando-o
comprido o suficiente para atingir a margem oposta.
Gravando em sua mente a imagem do engenhoso mecanismo, virou para o lado
dos ores, que avançavam furiosos. N o calor da batalha ele não se sentia nervoso,
mas sim impelido para agir. Guardou a adaga na cintura e disparou na direção dos
soldados de Hilda, e já bem próximo a eles, saltou. A diferença desse salto para
aquele que o fizera atravessar o muro era que dessa vez ele não seguiu para cima, e
sim para frente.
O seu pé acertou o tórax da criatura do meio fazendo-a voar por quase uma
centena de metros para trás, só parando ao bater em uma carroça de feno. O s
outros dois inimigos viraram, e desceram as suas espadas sobre a cabeça de
Vanhardt. Instintivamente o rapaz segurou os pulsos dos ores, aparando os golpes.
A s horríveis criaturas rosnavam e cuspiam baba no rosto de Vanhardt. Faziam
muita força para baixo, os braços tremiam, mas o rapaz não sentia dificuldade
alguma em segurá-los. Com extrema destreza, ele soltou o braço esquerdo e se
desviou do golpe do ore, que acabou atingindo o chão. A proveitando a posição
abaixada do inimigo, ele girou o braço no ar e deu um soco no abdômen dele,
fazendo-o voar sobre o muro e mergulhar de cabeça no lago.
O ore que ele segurava com a mão direita agora tremia dos pés à cabeça, e tinha
no rosto uma expressão de pavor. Utilizando ambas as mãos, ele agarrou os
punhos do adversário, fazendo-o largar a espada no chão. D epois começou a girar
em torno do próprio eixo, como um pião, deixando a criatura na horizontal,
atirando-a após alguns giros sobre o primeiro ore que já se levantava.
Toma, distraído! E aí, quem é o próximo? - perguntou esbanjando confiança.
Você vai ficar aí brincando com esses ores, ou ir buscar o seu filho? - a fadinha,
que não estava mais em seu bolso, voava na frente de uma porta de pedra que dava
acesso ao castelo.
Um grande estardalhaço foi ouvido, e vinha do portão principal. O rapaz virou-
se, e percebeu satisfeito que os gigantes entravam na fortaleza e atacavam os ores
com extrema violência, destruindo carroças, guaritas e jogando pedras e destroços
pelos ares.
Ótimo, eles chegaram! Vamos lá, Lila!
Vanhardt pegou a espada que o ore deixara cair no chão e correu para a porta.
Chegando lá, encontrou uma escada de pedra que subia em caracol.
É por aqui? - Vanhardt perguntou para a fadinha.
E eu sei lá? S ó vamos descobrir depois que subirmos, né? D e qualquer forma,
seu filho está dentro do castelo, e por aqui nós entraremos no castelo.
Estava muito escuro lá dentro, mesmo com archotes acesos nas paredes de
pedra de poucos em poucos metros. Lila sibilou algumas palavras que Vanhardt
não conseguiu entender, e uma luz amarela brotou de um de seus dedos,
iluminando melhor a escada. O rapaz subiu na frente, seguido pela fada que voava
atrás de sua cabeça.
Quer sair daí? Desse jeito você está fazendo a minha cabeça criar sombras!
Nem pensar, aqui estou mais bem protegida! - a fada deu um sorriso sapeca.
A escada seguia em caracol por vários andares, e cada um dava acesso a um
corredor. Estes mais pareciam túneis, com o teto em forma de arco e o chão e
paredes retos, de pedras justapostas, além de musgos e teias de aranha presas nas
ranhuras. Os dois seguiram até atingir o último andar, quando decidiram continuar
pelo túnel logo à frente. A fada comentou que normalmente em castelos o quarto
dos senhores e o das visitas importantes ficavam no último andar, portanto seria
mais fácil encontrar Erick ali.
Lila, são várias portas! - Vanhardt apontava para aquelas que encontrava. -
Como iremos saber qual é?
Ai, ai, pelo visto você não sabe nada de castelos, não é?
Claro que não, eu nunca estive em um.
Bem, acontece que...
S ubitamente, os dois ouviram um estalo, seguido de um zumbido. Tanto no
lado da frente do corredor, quanto no de trás, surgira uma espécie de parede
vermelha semitransparente. Elas irradiavam luz e calor, e emitiam um zumbido
que parecia com o de pernilongos quando perturbam o sono de algum inocente.
Mas que diabos é isso? - Vanhardt ia cutucar a parede vermelha, quando foi
impedido por um grito de Lila.
N ÃO ! - ela parou na frente do dedo do rapaz, com os braços abertos. - Essa
parede parece enfeitiçada, e provavelmente matará quem tocar nela!
Hum... Err, bem... Claro que eu não ia tocar nela, Lila! Por acaso sou do tipo de
pessoa que sai encostando-se em tudo diferente que vê?
Quer mesmo que eu responda? - desafiou a fada.
D e trás de uma das paredes de luz, do lado contrário ao da escada em caracol,
aproximou-se sorrateiramente uma criatura. Ela vinha com passos lentos, dando
risadinhas enquanto se esgueirava pelo corredor, oculto pelas sombras.
Hihihi! Peguei os dois! Hihihi! A baronesa Hilda ficará satisfeitíssima com o
grande Kuengui!
A criatura se aproximou mais alguns passos, saindo da escuridão. Era
semelhante a um sapo; olhos negros e redondos no alto da cabeça, uma boca
enorme e sem lábios, e dois furos no meio da cara, revelando narinas incipientes.
O corpo era verde com pintas amarelas, e praticamente não tinha pescoço, com
a cabeça ligada diretamente no tronco. Vestia uma túnica roxa bem elegante, com
franjas e frufrus, e uma calça coladinha no mesmo estilo. N ão usava botas, e os pés
apresentavam membranas entre os dedos. Ele segurava uma caixinha quadrada nas
mãos, nas quais os dedos também possuíam membranas translúcidas entre si.
Ei, sapão! Foi você quem nos prendeu aqui?
A h... Claro que foi, jovem Vanhardt! E usei esse controle aqui... - apontou para o
objeto que segurava e que continha uma pequena alavanca metálica além de um
botão vermelho. - A gora suas vidas estão nas mãos do poderoso Kuengui,
hahahaha! - o sapo ria com a boca sem dentes escancarada, colocando para fora
uma língua roxa comprida, enquanto balançava o controle nas mãos.
Como sabe o nome de Vanhardt? Por acaso Hilda estava esperando por nós? -
dessa vez foi a fada que perguntou, e olhava desafiadoramente para a criatura de
aspecto nada agradável.
N ão sei apenas o nome de Vanhardt, mas também o seu, Lila! E sei de outras
coisas... Como o modo que você acariciava os cabelos dele enquanto o rapaz dormia
na floresta. Você gosta dele, não é?
O QUÊ? - a fada sentiu o rosto arder. - Fique sabendo que...
Calada! - gritou o sapo numa vozinha fina, apontando o controle
ameaçadoramente para Vanhardt e Lila. - N ão ouse se dirigir a mim nesse tom
imperativo! Quem dá as ordens aqui sou eu!
S eu sapo idiota, quem acha que é pra nos dar ordens? N ão passa de um bicho
feio, que pensa ser forte, mas estaria cagando de medo se não fosse esse
brinquedinho aí! - Vanhardt cruzou os braços assim que terminou de falar.
Então é assim? Pois vai se arrepender de ter ofendido o grande Kuengui...
S intam minha fúria! MO RRA M! - depois de dar um berro, Kuengui arregalou os
olhos e puxou a alavanca do controle, de modo que as paredes de luz piscaram uma
vez, e começaram a se mover, aproximando-se de Vanhardt e Lila.
Lila, faça alguma coisa! Se essas coisas nos tocarem estamos fritos!
Eu sei, estou tentando - a fada dizia enquanto mantinha os braços esticados,
invocando várias magias. Faíscas luminosas saíram de suas mãos, mas nenhuma
pareceu deter as paredes.
Você viu, ele conhecia nossos nomes, e sabia que estávamos naquela floresta -
comentou Vanhardt. - S erá que ele também sabia do plano de invadirmos o
castelo?
N ão tenho certeza, mas não temos tempo para pensar nisso agora! Tente me
ajudar aqui!
A s paredes continuavam a se aproximar perigosamente dos dois, que
procuravam manter-se o mais distante possível delas. A s magias que Lila conjurara
não tiveram efeito algum, e Kuengui gargalhava alegremente vendo os dois se
espremerem cada vez mais.
Hihihi, Há!Há!Há! Eu avisei para não me ofenderem! Levarei o que sobrar de
vocês para a minha mestra, que ficará satisfeitíssima com meu sucesso!
Capítulo XV - O Pequeno Vanrato

S e as paredes num primeiro momento se distanciavam por volta de quatro


metros uma da outra, agora estavam a menos de dois. Vanhardt respirava ofegante,
sem enxergar nenhuma saída possível. Pensa idiota, pensa! Ele olhou para Kuengui,
que mantinha uma mão segurando o controle, e outra a barriga, enquanto erguia o
tronco ligeiramente para a frente e continuava a rir de maneira escandalosa.
S ubitamente, um rato saiu de um buraco na parede de pedra próxima ao sapo, e
correu para o outro lado, pondo-se a roer uma fresta no chão. N a mesma hora
Vanhardt teve uma idéia.
Ele observou fixamente o ratinho, concentrando-se. Tentaria fazer o mesmo de
quando pescara aquele peixe. Os animais eram mais ou menos do mesmo tamanho,
se ele tivesse sorte... S em se preocupar com as paredes que teimavam em se
aproximar, sentiu a visão embaçar, e de repente ele estava olhando para o pé verde
de Kuengui, e suas pernas vestidas com uma calça roxa ridícula. Dera certo!
S em pensar muito, correu para o sapo gigante e cravou os dentes pontudos
naquela carne macilenta. Um grito de dor - o ratinho voou vários metros, mas
Kuengui não derrubou o controle, como Vanhardt queria. Ele apenas se abaixou e
começou a roçar a mão na ferida, enquanto resmungava. O jovem voltou
imediatamente para o seu corpo humano.
N esse instante a luz vermelha estava a poucos centímetros do seu nariz,
enquanto Lila terminava uma frase:
... VAI FAZER NADA É? - a fadinha puxava com força a orelha de Vanhardt.
Lila, rápido, me escute. Está vendo aquele rato ali atrás de Kuengui? Use nele a
mesma magia de aumentar a força que usou em mim antes de invadirmos o
castelo!
Mas pra quê você...
AGORA!
Lila obedeceu prontamente (crafo adimapla!), e Vanhardt voltou a se concentrar
no rato. N ão tinha muito tempo. Em menos de cinco segundos a parede de luz
tocaria-os, e os mataria instantaneamente. Mais uma vez a sua visão embaçou, e ele
olhava para uma fita de musgo grudada no chão de pedra. Virou-se para Kuengui,
abaixou as quatro perninhas, e pulou em sua direção.
A partir desse momento, tudo pareceu acontecer numa velocidade muito, mas
muito menor, e num silêncio completo. Vanhardt deslizava no ar suavemente, e a
brisa tocava seus pêlos de rato como o doce carinho de sua esposa. A s paredes de
luz andavam centímetro por centímetro; o bater de asas de Lila outrora frenético,
agora era lento e pausado. Kuengui balançava a cabeça para cima e para baixo, e
mantinha a boca aberta sem esquecer de deixar a língua comprida para fora, mas
seus movimentos também eram lentos e cadenciados, e nenhum som saía da
garganta. Vanhardt pousou tranqüilamente sobre a mão do sapo, e deu uma
mordida em seu dedo com tanta força que quase o arrancou. Foi aí que sentiu o
ouvido zumbir, anunciando que novamente podia ouvir sons e a velocidade voltara
ao normal.
Kuengui jogou o ratinho no chão berrando de dor, e quando foi segurar a mão
ferida com a outra, derrubou o controle. Vanhardt, ainda com o corpo de rato e
sentindo a dor da queda, além de um pouco de tontura, ergueu-se o mais rápido
que pôde e subiu no botão vermelho. Torcendo para seu corpo humano não ter
sido atingido pela parede enfeitiçada, fechou os olhos, e quando os abriu ficou
contentíssimo ao notar que estava vivo. E melhor, sem nenhuma parte do corpo
tostada.
A ntes que Kuengui pudesse se abaixar para pegar o controle, Vanhardt ergueu-
o pela gola e apertou-o com força contra a parede, enquanto colocava a espada no
seu pescoço.
E agora, sapinho? Vai continuar rindo que nem pateta, ou sair correndo para a
barra da saia de sua mestra? - pressionando-o com mais força contra a parede,
ameaçou-o com a espada. - Pois não lhe darei nenhuma dessas opções!
S-s-senhor... milorde! Me d-d-desculpe - o sapo gritava com uma voz esganiçada,
e cheia de pavor. - P-por f-f-favor, não me mate! Buáaaaaa!
Escandaloso! Se não parar com isso, aí sim irei te matar!
Eu faço o que quiser, qualquer coisa, QUALQUER COISA!
Humm - fungou a fadinha com a mão no queixo, enquanto voava em círculos
sobre a cabeça de Vanhardt. - Q ue tal nos responder como sabia nossos nomes e
coisas que andamos fazendo? - se alguém reparasse bem notaria que as maçãs de
seu rosto tomaram uma cor ligeiramente rosada.
S enhorita... - resmungou entre soluços. - 0 misericordiosa e bondosa fada! É a
única resposta que não posso oferecer, a única! Minha mestra utilizou um feitiço
em minha mente, para que eu não fosse capaz de revelar certos segredos! Mas juro
que se fosse capaz eu falaria!
S eu safado, você acha que somos trouxas, é? N inguém aqui é burro, não!
Primeiro nos humilha, e tenta nos matar, e depois tenta nos fazer de idiotas? S e vai
continuar com esse joguinho de "minha mestra me enfeitiçou, e nhé-nhé-nhé", sabe
o que acontecerá? S abe o quê, seu miserável que quase nos matou...? O lha aqui o
que vai acontecer!
Yanhardt girou a espada no ar e depois segurou-a pelo cabo, apontando entre
os olhos de Kuengui. A ntes que pudesse fazer qualquer coisa, Lila cutucou-o pelas
costas.
Hum-hum... - a fada arranhou a garganta e apontou para o chão, onde corria
uma pequena porção de líquido amarelo.
Vanhardt procurou a fonte do líquido e viu que ela vinha das calças de Kuengui,
que também estavam molhadas.
N ossa, se está se mijando todo de medo deve ser porque conta a verdade, né? -
abaixou um pouco a espada, sem, contudo, tirá-lo da parede. - S e não pode nos
responder isso, que tal nos dizer onde está meu filho Erick?
Q -q-quem? - perguntou o sapo num fio de voz, com medo de aborrecer
Vanhardt.
Meu filho, Erick, um bebê de menos de um mês de vida! - tornou o jovem,
aumentando o tom de voz.
Eu não faço a mínima idéia do que está falando! - disse Kuengui, agora se
encolhendo.
A H, S EU S A FA D O , TÁ Q UEREN D O ME EN GA N A R O UTRA VEZ, É? - miro
com os olhos furiosos, e levantou a espada novamente, mas quando ouviu barulho
de gotas pingando abaixou-a, mais calmo. - Hum, certo, você não estava me
enganando. Mas que saco, se não sabe onde está Erick nos diga pelo menos onde
são os aposentos da sua mestra Hilda Risalv.
A i, bem, não sei se devo... - e depois de olhar a lâmina da espada refletindo sua
pele esverdeada. - Mas é claro que irei mostrá-lo!
E nem ouse nos enganar, senão... - Vanhardt soltou Kuengui, sem terminar a
frase.
O sapo, depois de balançar um pouco a calça tentando inutilmente limpar o xixi,
fez uma longa reverência para Vanhardt e Lila. A conteceu que o gesto foi tão
mecânico e forçado, além do fato de Kuengui ter urinado nas calças anteriormente,
que Vanhardt e Lila seguraram risadas ao invés retribuírem o cumprimento. O
sapão, visivelmente ofendido, ergueu o corpo, mas limitou-se a dizer:
Sigam-me.
Kuengui foi andando na frente, e Vanhardt ao ver seus passos um tanto
desengonçados, o corpo pendendo de um lado ao outro, e o rebolado, jurava que o
que estava em sua frente era na realidade um Pepenji. Passadas algumas portas, o
filho da deusa do gelo começou a imaginar se sapos também urinavam, ou se
aquele era um caso especial. A ndaram por dezenas de metros, e o túnel se tornava
cada vez mais escuro apesar da distância entre os archotes continuar a mesma.
D epois de um pequeno lance de escadas, Kuengui parou em frente a uma porta
dupla de carvalho.
É aqui, senhores, o quarto da baronesa. - e apontando o dedo indicador para
cima. - No entanto, devo alertá-los que...
A h, cala a boca! - Vanhardt deu um chute na barriga de Kuengui, que foi
voando para o fundo do corredor.
A A A A A aaaaaaah... - o som de seu grito diminuía à medida que ele se afastava
de Vanhardt e Lila.
Você também acha que é uma armadilha, não é?
Creio que sim... - respondeu a fadinha, com um sorriso amarelo.
Bem, se for mesmo, pelo menos cairemos nela com coragem! - um barulho de
explosão seguiu ao chute de Vanhardt que despedaçou a porta dos aposentos de
Hilda.
O quarto era grande, e muito bem iluminado por um lustre dourado pendurado
no teto que não continha menos do que cinqüenta velas acesas. N o canto direito,
havia uma cama com cortinado vermelho, logo depois de uma janela ampla. À
esquerda duas estantes repletas de livros empoeirados e com uma ou outra teia de
aranha, denunciando certa falta de interesse. N o centro do quarto uma mesa
redonda, branca, sobre a qual havia uma garrafa de vinho e uma taça cheia até a
metade. S entada numa cadeira atrás dessa mesa, estava a mulher responsável pelo
esfacelamento da família de Vanhardt. Hilda usava um comprido vestido vermelho,
de alcinhas. O cabelo ruivo estava preso em um coque, e o rosto aparentava a
mesma falsa jovialidade de dias atrás. Ela pareceu nem reparar na porta que
acabara de ser destruída, e com um gesto distraído das mãos disse:
Até que enfim chegaram - falava com a maior naturalidade do mundo, como se
esperasse a dupla pensei que nem viriam mais. Tsc, tsc, visitas bem comportadas
batem antes de entrar, sabiam? - havia um sorriso maligno em seu rosto, e a voz
era cheia de veneno.
D eixe de cinismo e falsidade, sua bruxa, sabe muito bem que não somos visitas
coisa nenhuma! - o coração de Vanhardt agora estava acelerado, e seu estômago
parecia ter sido mergulhado num balde de água fria. - N ão viemos aqui para tomar
chá e comer bolinhos com um ser desprezível como você!
A h, criança, não diga isso! Pois se continuar com tamanha falta de respeito,
serei obrigada a ensinar-lhe boas maneiras. - Hilda falava com uma voz infantil,
como se estivesse diante de uma criança numa creche.
Pois olhe as boas maneiras que eu tenho pra você - Vanhardt atirou sua espada
com força, cortando o ar numa velocidade magnífica em direção ao pescoço de
Hilda.
Capítulo XVI - Lágrimas por Vanhardt

Léia observava atentamente a fonte no centro do salão de cristal. Era como se


ela tivesse o ponto de vista de um Grilliardus, e via o exército ore de Hilda ser
assolado por suas criaturas aladas e pelos gigantes. A pesar de estar causando
grandes danos na fortaleza de Avendorh, não poderia considerar a batalha vencida,
pois Hilda permanecia muito quieta até o presente momento. N ão duvidava que a
feiticeira guardasse algum truque nas mangas. Um lampejo irrompeu da fonte, a
imagem sumiu, e o som agudo do trinado de um Grilliardus ecoou pela sala - era o
sinal de alarme. Q ue surpresas mais a aguardavam? Léia girou com habilidade o
cetro sobre a fonte e ordenou:
— Mostre-me o que ocorre em meus domínios!
A s águas começaram a vibrar, e inusitadamente, a imagem dos muros do
castelo da deusa do gelo foi tomando forma. Léia não acreditou no que via, só
podia ser um engano. D ecorreram preciosos segundos antes de admitir: Ghar, sob
uma capa verde, liderava um exército de vinte gigantes que atacavam a sua
fortaleza de cristal. A inda assustada com o que acabara ver, a deusa do gelo se
levantou, jogando o manto prateado sobre os ombros. A quele maldito deus dos
gigantes! A pesar de não possuir boa reputação, Léia nunca imaginou que ele fosse
capaz de tamanha covardia. E justamente agora que ela não contava com defesas,
além de uma reserva extremamente baixa de energia. Lembrou-se da primeira
traição da qual fora vítima; a história repetia-se mais uma vez. S ó que ela não
ficaria passiva, sem nada fazer - iria ao encontro de Ghar e lutaria bravamente.
Tomando o cetro com a mão direita, Léia se dirigiu para a porta.
Cruzou um corredor cujas paredes irradiavam um vermelho ardente, indicando
estado de alerta, desceu um lance de escadas, depois passou por mais uma porta.
S uas defesas, compostas por não mais do que meia dúzia de Grilliardus e uma
dezena de lobos das estepes estariam nesse momento combatendo Ghar e seu
exército. Ela, entretanto, sabia que eles não seriam páreo para os invasores. D epois
de passar por mais um corredor, atingiu o jardim central do palácio. S e não fosse
uma situação desesperadora, Léia não se importaria de permanecer longos
minutos admirando aquele que era o local do qual mais gostava, como fazia todos
os dias.
D uas ruas de pedras cortavam o jardim de uma ponta a outra, cruzando-se na
metade. Portas altas de carvalho existiam nas extremidades das ruas, e eram a
única maneira de entrar e sair do aposento. N os quatro canteiros centrais podia- se
ver uma quantidade e variedade fabulosa de flores, de todas as espécies e cores,
muitas delas nem mais existentes em Kether. O jardim não apresentava janelas, e a
luz vinha de três fontes. Uma delas era o pisca-pisca alucinante da traseira de
insetos, que cintilavam com uma luz azul enquanto voavam em torno do salão.
O utra era o nariz de criaturinhas pequenas e peludas, parecidas com esquilos,
do qual jorrava uma luz vermelha. A última fonte era um lustre preso ao teto, com
cristais amarelos que brilhavam profusamente. A s luzes variadas, os pequenos
animais, as flores, tudo junto resultava numa beleza inimaginável, provavelmente
não encontrada em nenhum outro lugar de Kether.
Léia cruzava o jardim guardando silêncio, um pouco ansiosa, e quando se
aproximou da porta, esta se abriu sozinha, com um rangido. O primeiro a entrar foi
o próprio Ghar; dois metros e meio de altura, corpo musculoso e coberto por
cicatrizes, um colar de crânios pequenos pendendo do pescoço. Carregava na mão
direita um machado de lâmina dupla, duas vezes maior do que um similar
humano. A s feições eram sérias, as grossas sobrancelhas se juntavam no meio da
testa em uma expressão de absoluta insatisfação. A ele seguiram-se dez gigantes,
os quais tinham o dobro da altura de seu líder e não estariam de pé se o teto do
jardim não fosse tão alto. O s gigantes vinham com as mãos nuas, ou armados com
porretes de dois metros de comprimento e uma espícula na ponta, e pararam em
semicírculo atrás do seu mestre.
Maldito seja, Ghar, deus dos gigantes! - disse Léia de onde estava, num tom
calmo, mas firme - Pois tenha ciência de que não passa de um verme que rasteja
sobre a terra, um traidor vil e sem honra que hoje irá pagar por sua traição!
O s lábios de Ghar se contraíram, esboçando um curto sorriso. Ele olhou Léia
dos pés à cabeça e disse com a voz cavernosa:
Q uem irá perecer hoje não será outro a não ser a própria deusa. Com satisfação
vejo que continua tão linda quanto antes! A h... sua cabeça dará um belo troféu,
pendurada no meu peito!
Eu continuo bonita e Vossa D ivindade o mesmo mau-caráter, arrogante e
estúpido de outrora. Tomara que se afogue no lodo em que vive!
D e repente, um fio de memória perpassou a mente de Léia. E os gigantes que
ela havia adquirido de Ghar? S erá que ainda estava de posse deles? O que seria da
batalha no castelo de Hilda?
Há!Há! Estão sob o meu comando. Todos eles! - Ghar pareceu adivinhar os
pensamentos da deusa do gelo. - Pra ser mais exato, acabaram de exterminar nesse
instante seus Grilliardus no castelo de Avendorh, e agora rumam para a minha
fortaleza. N ão precisa se espantar tanto, querida! O seu fim está próximo, não irá
precisar se preocupar com isso!
Enquanto Ghar falava, um dos gigantes notou uma criaturinha de nariz
vermelho, parecida com um esquilo, e pegou-a com uma das mãos. O lhou-a
curioso, girou-a para um lado e para o outro, e depois de cheirá-la, abriu a boca e
engoliu-a de uma vez.
J á basta! N ão tolerarei mais a sua presença ou a desses gigantes. Retire-se do
meu castelo, ou serei obrigada a tomar a vida de todos! - a deusa do gelo falou num
tom imperativo e poderoso.
— S abe que está em absoluta desvantagem, e mesmo assim com tanta pressa
para morrer? Tudo bem, não irei atrapalhá-la... Gigantes! TRA GA M-ME A S UA
CABEÇA!
Léia girou o cetro no ar e assumiu uma postura defensiva. A pesar da deusa
procurar manter um ar de segurança, no fundo ela não sentia nada além de muito
medo. S abia que não suportaria o ataque de tantos gigantes, além do próprio Ghar,
que não seria um inimigo mais fraco. Também não queria fugir, como fizera da
primeira vez que foi traída, pois estava cansada demais para recomeçar uma vida
inteira. A h... Chega! Era hora de parar de se lamentar, e começar a agir. Lutaria até
o último fio de energia divina.
O primeiro gigante avançou furiosamente com um soco, mas Léia atingiu-o com
um raio de luz, derrubando-o no chão. O segundo e o terceiro também emendaram
socos, e exibindo uma destreza maior que a dos melhores ginastas, Léia girou o
tronco e esquivou-se deles, ao mesmo tempo em que conjurava duas lanças de gelo
que perfuraram o abdômen de um e o tórax do outro. Um porrete cortou o ar e por
centímetros não atingiu a deusa, que graças a uma cambalhota para trás desviou-se
do golpe. Ela aproveitou para subir no porrete e correr para cima do gigante,
acertando-lhe o rosto com a base do cetro.
A deusa do gelo continuava a se esquivar febrilmente dos golpes dos gigantes
enquanto conjurava magias ou acertava-os com o cetro. A luta chegara aos
canteiros, e enquanto socos e porretes brandiam no ar, uma torrente de pétalas de
todas as cores dançava pelos jardins. Ghar não se mexia, contentando-se apenas em
observar a luta. O s segundos iam se passando, cada novo golpe dos gigantes
chegava mais perto de Léia, e suas magias iam perdendo a precisão e a força. Ela
utilizou a tenloadi, que deixou dois gigantes mais lentos, enquanto passou a rasteira
em outro e saltou vários metros para trás, para recuperar o fôlego.
S eus olhos correram o jardim; havia cinco gigantes no chão, estando três deles
certamente mortos, um bastante ferido mas vivo, e outro desacordado. D os que
estavam de pé, dois eram vítimas da tenloadi, e seus movimentos se tornaram
muitíssimo mais lentos; os outros três estavam bem, apenas com escoriações leves.
A situação até que não era de todo ruim - o único problema era que ela tinha
pouquíssima reserva de energia divina, só poderia usar uma ou outra magia. D e
relance viu Ghar, que aparentava um certo nervosismo, mas permanecia imóvel.
Seria ele mesmo poderoso, e poderia estar tramando alguma coisa? Ou apenas seus
gigantes tinham força, e por isso o deus dos gigantes não se atrevia a fazer nada?
Percebendo que os gigantes partiam para uma nova investida, Léia deixou seu
manto prateado cair displicentemente no chão. Q uando eles se aproximaram com
seus urros grotescos, e o rosto retorcido de fúria, ela chutou o manto cobrindo o
rosto de um deles. Enquanto este tentava se desvencilhar do manto que o cegava,
Léia saltou e prendeu os pés no teto, como uma aranha. O s gigantes se assustaram
com o movimento, e ela aproveitou para soprar um cone de vapor branco, que
congelou os braços dos inimigos. S oltou-se do teto e caiu no chão, assumindo mais
uma vez uma postura defensiva.
S EUS I D I O TA S , TO D O S , CO MPLETO S I N ÚTEI S ! - Ghar explodiu, e gritou
alto que poderia ser ouvido a quilômetros de distância. - Uma deusa apenas, e sem
nenhuma criatura... - agora ele bufava. - Vossa D ivindade... Vossa D ivindade vai
pagar por isso! FORÇA BRUTAL! AHHHHHHHH!
O s músculos do deus dos gigantes dobraram de tamanho, e suas veias
incharam e se tornaram visíveis por cada dobra do seu corpo. O s olhos vermelhos
saltavam das órbitas, a testa suava frio, e ele apertou o machado com as duas mãos.
A gora vou terminar o serviço que esses estúpidos não tiveram a mínima
competência para realizar. E sentirei imenso prazer ao arrancar essa sua cabeça
linda, e pendurá-la como um troféu no meu pescoço. D ali Vossa D ivindade poderá
assistir a minha conquista de todo o reino de Kether, saboreando cada vitória!
MORRA, DEUSA DO GELO!
Ghar avançou para cima de Léia, e em milésimos de segundos ele já atingia seu
machado contra o cetro da deusa, erguido defensivamente. Esta se assustou com a
velocidade e a força do ataque; se demorasse mais um pouco no movimento, estaria
morta. Ghar continuou a girar o machado e a desferir golpes um atrás do outro.
Léia revelava extrema dificuldade para se defender, parecia que o cetro iria se
partir ou seu braço ser arrancado com a potência dos ataques do deus dos gigantes.
A ndando para trás, e se limitando a aparar paliativamente as investidas de Ghar,
ela percebia que não teria chances contra esse deus. N ão tardou muito até ele
acertar o machado contra o tórax desprotegido de Léia. Ela voou vários metros para
trás, só parando ao colidir com uma das paredes de pedra, onde abriu um buraco.
A dor era tão excruciante que teve de se ajoelhar após tentar ficar de pé.
Uma poderosa luz dourada brotou da mão direita de Léia. Ela passou-a sobre o
peito, fechando a ferida. Foi assim que gastou os últimos quantuns de energia
divina. D epois dessa manobra, a deusa do gelo, descrente, viu mais sete gigantes
entrarem no salão, reforçando as tropas de Ghar.
A h! Estava tão corajosa antes, e agora olha pra mim com tanto... medo? - Ghar
perguntou com cinismo na voz - Até que enfim se deu conta do seu fim, não é
minha cara? Hahaha! É tão bom sentir esse doce cheiro de pavor brotando de cada
poro do seu corpo!
Talvez esteja certo, deus dos gigantes. - tornou ela, com o fio de voz que lhe
restava. - Mas saiba que antes de morrer irei levar mais alguns dos seus comigo!
Léia viu Ghar e os outros gigantes avançarem para cima dela, e apertou o cetro
com força. Ela estava triste. E não pelo seu próprio destino, do qual já não podia
escapar, mas sim por seu filho Vanhardt. A deusa não poderia mais compensá-lo
por todos os anos de ausência, nem ajudá-lo na busca por Erick. Ele estaria
sozinho. Uma lágrima de gelo triste e silenciosa escorreu pelo rosto de Léia.
Capítulo XVII - Rio de Poder

A espada atirada por Vanhardt parou a menos de um centímetro do pescoço de


Hilda, e permaneceu flutuando no ar. Em seguida ela girou em seu próprio eixo,
horizontalmente, apontando para o rapaz.
Garoto estúpido, se tivesse me matado nunca saberia onde encontrar o seu
querido filho! - repreendeu Hilda.
Como assim "onde encontrar meu filho"? - perguntou Vanhardt ainda de olho
na espada que agora parecia querer voar para o seu pescoço. - Ele não está em
algum lugar do castelo? O nde o escondeu? - seu cérebro trabalhava agilmente
procurando uma maneira de trazer a situação para o seu controle.
A i...ai...ai... Está vendo como é inocente? Você tem muito o que crescer, o que
amadurecer. N em reparou na própria atitude. Chega ao meu quarto, com um ar
arrogante, e tenta me assassinar sem ao menos perguntar pelo filho! D eu muita
sorte por eu ser tão poderosa e não me deixar matar facilmente, pois se isso tivesse
acontecido você nunca saberia onde encontrar Erick.
Vanhardt sentiu-se levemente envergonhado. Realmente, ele havia se deixado
levar pelas emoções, e agiu sem pensar. Poderia ter comprometido todo o futuro
do bebê após uma a atitude tola como essa. Com a culpa pesando nos ombros,
perguntou de forma educada:
Onde ele está? Onde está meu filho?
Eu vou lhe dizer, prometo. S ó que antes gostaria que você me respondesse uma
coisa... Por acaso meu marido lhe disse por que ele levou S elena daqui? - ela
novamente deu um dos seus sorrisos malignos.
Vanhardt permaneceu alguns segundos calado, fitando a feiticeira. Lionel não
contara nada. Essa era uma das perguntas que o rapaz gostaria que fosse
respondida.
Não, o Sr. Risalv nunca me contou.
Humm, previsível. Bem, então farei o favor de lhe contar. Você deve estar
curioso em saber por que uma mulher como eu foi capaz de matar o marido e
roubar o neto, correto? S aiba que foi meu próprio marido que teve a idéia inicial de
fazer esses "rituais" com S elena quando ela ainda era um bebê, a fim de torná-la
uma grande feiticeira. Ele não era essa figura nobre e honrada como provavelmente
se mostrou para você; tinha tanta sede de poder quanto eu própria.
A s palavras de Hilda assustaram Vanhardt. Lionel fizerarituais com S elena?
I sso não era coisa boa. Ele não era nobre e honrado... N ão, aquilo tudo era mentira,
Hilda com certeza estava usando um dos seus feitiços para manipulá-lo. Era isso,
ela tentava colocá-lo contra Lionel. Mas não iria satisfazer as suas intenções.
Vanhardt, não acredite nessa bruxa, ela está tentando confundi-lo - dessa vez foi
Lila quem falou, quando sobrevoava um dos ombros de Vanhardt. Parecia ter a
mesma opinião que ele.
O ra, ora, então a fiel escudeira do nosso herói resolver dar-nos a graça de entrar
numa conversa na qual não foi chamada? - Hilda serviu mais vinho na taça, sem
tirar os olhos da fadinha. -Tudo bem, já estou começando a me acostumar com a
falta de educação de vocês dois...
Má educada? MÁ EDUCADA? Sua vaca, quem é má educada aqui...
Está bem, Lila, chega de ofensas - Vanhardt interrompeu a frase da fada,
assumindo de modo forçado certo ar importante. - Vamos ver o que minha sogra
tem mais a nos dizer.
Muito obrigada! Bem - Hilda recomeçou a falar depois de tomar um gole de
vinho. - N ão desejam sentar-se primeiro? Creio que deve ser desagradável
permanecer de pé enquanto eu falo, e obviamente não é uma regra de etiqueta...
N ão, estamos bem de pé - respondeu Vanhardt, e olhou para a fadinha - ou
voando.
S e assim desejam... A ntes de contar essa história, gostaria que tivesse cérebro e
me ouvisse sem pré-julgamento. S e possuir algum grau de inteligência, conseguirá
se manter num estado de percepção mais acurada, e assim poderá obter maior
consciência da verdade contida em minhas palavras.
"D esde que nos casamos, Lionel e eu pertencíamos a esta ordem, chamada de
'D ivina S erpente'. Éramos ambiciosos, e sempre cumprimos com os deveres que
nos eram impostos, com a intenção de subir cada vez mais na hierarquia dentro da
ordem. Eu fiquei conhecida como uma poderosa feiticeira, mas Lionel nunca foi
bom com a magia, agindo melhor nos trabalhos de espionagem e furto - talentos
ladinos. Trabalhávamos arduamente, e nossos esforços nunca deixaram de ser
recompensados. A conteceu que muitos anos se passaram e eu fiquei grávida, e
nossa linda filha Selena veio ao mundo."
"N em esperamos ela completar um ano de idade e a iniciamos na ordem por
idéia de meu marido, o que queria dizer que ela não mais nos pertencia, e sim à
D ivina S erpente. Ficamos encarregados de criá-la, e também de torná-la feiticeira
assim como eu. O tempo foi passando, e juntamente com outros membros da
ordem, cumpríamos rituais com S elena. A partir de um determinado momento,
comecei a ficar incomodada com isso, sentia um apego muito grande por minha
menina e tinha dúvidas se fora mesmo certo tê-la entregado à ordem. A cada dia
que passava ela ficava mais afastada de nós, e eu sentia mais desejo de possuí-la só
para mim. Lionel demonstrava o mesmo sentimento, e chegamos a pensar em
voltar atrás, desistindo quando percebemos que era impossível - tal fato seria
considerado uma traição. S elena acabara de completar seis anos quando uma
surpresa nos arrebatou: eu estava grávida novamente."
"D essa vez Lionel e eu resolvemos não contar à ordem, e escondemos a
gravidez. Meses depois o bebê nasceu, um menino. Era óbvio que um dia a ordem
descobriria o acontecido, e certamente nos puniria. Então enviamos nosso filho
para um pequeno reino ao sul de Kether, a um casal muito amigo, o qual cuidaria
bem dele. Foi uma idéia inteligente na época; a D ivina S erpente não descobriu
nada, e quando desejássemos, poderíamos visitá-lo utilizando uma desculpa
qualquer."
"O tempo continuou a correr e nossa filha crescia a olhos vistos, começando a
dominar os feitiços básicos. Ela não vivia mais conosco em Avendorh, e só ia nos
visitar uma vez por mês. Paramos de receber notícias do casal que cuidava de nosso
outro filho, e Lionel começou a ficar muito abatido. Ele só repetia que a ordem
abusava de nós dois, e que nunca nos recompensava, o que era mentira. Fazíamos
parte do círculo interno, ou seja, éramos dois dos doze membros mais importantes
da ordem. Foi nessa época que passei a suportar melhor a falta dos filhos, e sentia-
me quase plenamente realizada pelo poder que havia alcançado. Tinha certeza que
valera a pena sacrificar meus filhos em prol do meu desenvolvimento pessoal.
Lionel, porém, não pensava da mesma forma que eu. Ele precisava de mais poder."
"A D ivina S erpente encomendou a Lionel uma missão de vital importância, e
ele aceitou-a prontamente. Poucos dias depois que meu marido deixara o castelo,
recebi a notícia: ele traíra a ordem. N o mesmo dia soube que S elena também
desaparecera, e foi aí que o céu desabou sobre a minha cabeça. Eles não me
contaram o que Lionel fizera, pois a missão era secreta, mas fui humilhada de
maneira que nem ouso lhe contar. Retiraram-me do posto dentro do círculo
interno, e disseram que minha honra só seria restaurada se eu matasse o traidor e a
menina, pois ela provavelmente fora contaminada com a semente da traição. Meu
ódio contra Lionel alcançou limites inimagináveis - o infeliz não me contou a sua
intenção de trair a ordem, e jogou meu nome na desgraça. Bem, o resto da história
você já sabe, ele foi para a terra do gelo e se estabeleceu por lá."
"É óbvio que não obedeci à ordem e matei a minha filha, mas usei de minhas
técnicas e fiz a D ivina S erpente acreditar que sim. O único a morrer foi o infeliz do
Lionel. Trouxe também meu neto, para terminar de preencher o que me faltava, a
família, e assim me realizei completamente. Erick, no entanto, não está comigo. S e
estivesse, a ordem infalivelmente o descobriria, e me puniria. E por isso que o
mantenho em um lugar longe dos olhos e ouvidos de humanos comuns, e que
poucos têm acesso: o Templo Dourado."
Hilda terminou o relato e também o vinho da garrafa. Ela respirou
profundamente para recuperar o fôlego, e permaneceu a observar os visitantes.
Vanhardt estava ruminando os pensamentos, tentando descobrir o que seria
verdade e mentira. A pesar de a princípio discordar absolutamente do que a
feiticeira dissera, uma vozinha dentro da sua cabeça insistia em afirmar que o
relato que ela acabara de fazer continha um fundo de verdade. Lila continuou
voando ao seu lado, sem dizer nada. Provavelmente ela também estaria pensando
no que acreditar ou desacreditar.
Então S elena tem um irmão... acho que nem ela sabia, não é mesmo? - Vanhardt
iniciou uma conversa depois de alguns minutos de silêncio.
Sim, é verdade - limitou-se a responder Hilda.
E por que ela não me contou essas outras coisas? Por que não me disse que
tanto você quanto Lionel queriam que ela fosse uma feiticeira, e sobre o resto? Eu
nem sabia que ela conhecia feitiços básicos!
Bem, só ela pode responder-lhe.
O rapaz encarava a bruxa ainda desconfiado.
Gostaria de fazer outra pergunta. Como aquele sapão, o tal de...
hummm...Como é mesmo o nome dele?
Kuengui? - perguntou Hilda erguendo uma das sobrancelhas.
Esse mesmo! Como ele sabia que nós estávamos vindo? Ele até conhecia
detalhes do que fizemos, coisas que nem eu mesmo sabia, do tipo que Lila
acariciou os meus...
Também não precisa ficar espalhando isso pra todo mundo, né! - interrompeu a
fada, aborrecida com a falta de decoro do amigo.
A h, ficou curioso... - a feiticeira esboçou um largo sorriso de satisfação. - N ão
vejo nenhum mal em lhe contar. Vanhardt, meu querido genro; eu, como poderosa
feiticeira e regente do principado de Avendorh, tenho a obrigação de saber tudo
que se passa em meus domínios! É óbvio que eu já conhecia os seus planos de
invasão, pois soube quando os gigantes grotescos e as aves horrorosas se reuniram
a você e sua amiguinha. D e fato, foi depois de você mergulhar no rio D urande que
eu me dei conta da sua presença. Um antigo feitiço contido na água funcionou
como um sensor, e me alertou. D aí foi apenas uma questão de mandar espiões
acompanhá-lo - tudo muito simples. D eliberadamente permiti que entrasse em
meus domínios, para que pudéssemos ter essa conversinha.
Você só se esqueceu de avisar isso ao sapo que quase me matou ali fora! S e ele
conseguisse, eu não estaria aqui.
-— O Kuengui? Hahaha! - soltou mais uma de suas risadas agudas. - Q uase te
matou? Q ue piada... Esperava que você fosse muito superior ao meu empregado!
Estou vendo que não passa de um inútil!
A h, sua megera! - ele sacou a adaga e continuou - D iga agora como posso entrar
no Templo D ourado ou enfiarei essa adaga no seu coração! - falou com a voz grave,
tentando intimidá-la.
Pois tente! - desafiou a feiticeira.
Capítulo XVIII - Contra o Mal

Vanhardt avançou na direção de Hilda, mas, no mesmo instante, uma força


invisível segurou-o, impedindo seus movimentos. A feiticeira tinha estendido o
braço direito para frente, e se levantou, só parando ao lado da mesa a poucos
metros do rapaz. Lila, numa manobra ligeira, voou rente à parede, e quando estava
quase em frente à Hilda caiu no chão depois de ser envolvida por uma bola
transparente do tamanho de uma melancia.
Q uerendo me pegar de surpresa, amiguinha? Q ue pena, não conseguiu - Hilda
falava com a irritante voz infantil. - Por causa disso vai ficar de castigo na minha
bola! Aí dentro você não poderá conjurar aquelas magias bobas que conhece.
O s músculos de Vanhardt teimavam em não se mover. Hilda traçou um círculo
no ar com o indicador, estalando os dedos, o que fez seu genro sentir que as forças
o abandonavam.
A gora, Vanhardt, você não irá se beneficiar da Crafo Adimapla que essa fada lhe
conjurou. - Hilda aproximou-se do rapaz, no seu habitual movimento em que os
pés não pareciam tocar o solo. - Hum, que olhinhos agressivos. Vejo que está com
muita raiva de mim. Essa é a atitude dos tolos e dos fracos. S entir raiva. S empre
que a situação sai do controle você fica com raiva, e tenta acabar com tudo
utilizando a força. Enquanto mantiver essa atitude idiota e mecânica não
conseguirá nada além de fracassos.
A s palavras de Hilda atingiam Vanhardt como agulhas afiadas, e feriam a sua
dignidade. O que ela dissera era a pura verdade, ele não passava de um tolo que
ficava com raiva quando a situação fugia ao controle, e tentava resolver as coisas
com força bruta. A o constatar isso, ele sentia mais raiva ainda, e só pensava em
acabar com a mulher à sua frente. Ela matara o seu sogro e seqüestrara o seu filho,
arruinando a sua família. A lém disso, escondera-o em um lugar do qual ele nunca
ouvira falar, mas provavelmente bem longe dali. Também ofendera Lila e ele
próprio, derramando arrogância e desprezo. Ele odiava aquela mulher, e queria
feri-la tanto quanto ela o ferira.
N ossa, cuidado, se continuar se enfurecendo assim sua roupa vai pegar fogo!
Hihihihi! Vou aproveitar para lhe dar uma pequena lição sobre como funcionam as
coisas no mundo real. A vida se baseia essencialmente em poder, ou seja, na
vontade e capacidade de uns, e na subserviência de outros. É como um rio que
desce da alta montanha rumo ao mar. O s fortes, como eu, procuram ficar no alto
desse rio - adquirir poder. A ssim podemos utilizar esse poder sobre os fracos,
fazendo com que cumpram as nossas vontades. Enquanto permanecermos no topo
da montanha, continuaremos a governar o mundo, pois o rio não pode inverter o
seu fluxo, da mesma maneira que os fracos nunca conseguirão ter poder para
derrubar os fortes. Essa é uma lei natural, e continuará existindo quer você queira
ou não.
Vanhardt fez um esforço sobre-humano para mexer a boca, e conseguir falar
entre os dentes:
Talvez por ser meio burro não pude compreender tudo o que você disse.
Acontece que aqui no fundo algo me diz que não passa de besteira!
A char o que eu disse "besteira" só prova a sua falta de capacidade intelectual,
porque se tivesse um mínimo de inteligência concordaria comigo. É por isso
mesmo que eu o deixei vivo até agora! Vanhardt, você não sabe como me deixou
curiosa. D esde que soube que estava vindo para o castelo passei horas refletindo,
tentando descobrir como um jovem inútil como você conseguiu atravessar as
Montanhas Traiçoeiras. É lógico que eu sabia da presença dessa fada estúpida, mas
a ajuda dela não seria suficiente. A quele lugar é muito perigoso, até eu mesma
pensaria duas vezes antes de passar por lá. Foi assim que desconfiei de que você
apresentava algo mais. Eu não sei, mas desde que te vi naquela vila senti que você
possuía uma força interior muito grande, não encontrada em um humano
qualquer. Bem, vou libertar a sua boquinha apenas para que possa me responder:
como virou amigo dessa fadinha? O que permitiu que você passasse pelas
Montanhas Traiçoeiras?
Vanhardt hesitou em responder. Ele só conseguira fazer essas coisas porque era
filho de uma deusa. O bviamente não queria revelá-lo à Hilda, pois não sabia
exatamente o que a bruxa poderia fazer de posse da informação. Mas
provavelmente não seria nada bom para ele. Resolveu inventar alguma coisa.
Foi sorte... Pura sorte! - respondeu com um sorriso maroto.
Mentira! A cha que sou imbecil a ponto de acreditar nesse absurdo? Conte-me
logo ou serei obrigada a arrancar a resposta de sua mente!
Pode tentar, mas não irá conseguir.
Hilda tomou uma expressão de desagrado, e coçou o queixo com uma das mãos.
S e não me diz por bem... I rei abrir a sua mente e lê-la como se fosse um livro.
Todos os seus segredos serão revelados, cada detalhe infame do seu passado será
de meu conhecimento! Tenem ladevaer! - a feiticeira juntou ambas as mãos, e em
seguida abriu-as, erguendo os braços para o alto.
I mediatamente uma dor muito forte, aguda, atingiu o espaço entre os olhos de
Vanhardt. Era tamanha dor que ele ficou tonto, sentindo que desmaiaria a qualquer
momento. I magens desconexas começaram a se formar em sua cabeça. Lobos
correndo, o braço sangrando, a parede de gelo, Erick, Rufus Runcard - as imagens
seguiam-se uma após a outra, e eram fatos que ocorreram com ele em algum
momento de sua vida. É claro, Hilda estava realmente lendo a sua mente! S e
continuasse desse jeito, em pouquíssimo tempo ela adquiriria a informação que
desejava.
A dor continuava a castigá-lo, mas ele pensou que se desmaiasse seria mais fácil
para Hilda obter o que queria. S eu corpo ainda estava paralisado, e ele não podia
nem piscar os olhos. A s imagens seguiram passando umas atrás das outras. Ele viu
os gigantes, e logo depois um coelho metade humano. Q ual era mesmo o nome
dele? O swaldo... Espera aí, O swaldo dera para ele um item de sua mãe, e que
impediria o controle mental de Hilda. S ó que parecia que ele não funcionava muito
bem. O u precisava de algum mecanismo de disparo. E se o soprasse, como fizera
com a flauta anos atrás? S em chance, ele não podia se mover. Hum, quem sabe se
ele se concentrasse no item? Q uando fizera a magia da lança de gelo ele havia se
concentrado, e também aquela magia de poder controlar animais pequenos.
Resolveu fazer o mesmo.
Vanhardt transferiu a atenção depositada em Hilda para o amuleto em seu
peito. A s lembranças varriam a sua mente, e ele se esforçou para não prestar
atenção nelas. Concentre-se rapaz, vamos, você consegue. Um formigamento, seguido
de um calor, brotou no local onde o item tocava sua pele. Ele ficava mais forte, à
medida que Vanhardt se concentrava. A s lembranças foram pouco a pouco
parando de vir à sua cabeça, e a última que viu era a de uma mulher de cabelos
negros e muito bonita. Será que Hilda chegou a descobrir que ela era sua mãe?
O que aconteceu? - Hilda encarava-o ligeiramente perturbada. - N ão consigo
mais penetrar na sua mente; como fez isso?
O filho da deusa do gelo permanecia imóvel, no entanto Hilda podia jurar ter
notado uma nesga de sorriso em seu rosto.
Mais uma vez seus prodígios me surpreendem. Eu poderia lhe dar os parabéns,
se tivesse feito isso por si próprio. S ó que senti uma força divina vindo de você.
Muito interessante! I sso quer dizer que... Ei, um momento, eu sei de quem é essa
força divina!
O coração de Vanhardt congelou. A final, ela havia descoberto tudo, apesar dele
ter se esforçado tanto para impedi-la. O que seria de sua mãe? E se Hilda também
descobrisse que ela fora a antiga deusa da morte?
Essa energia é de um deus que já não existe mais... Ela é de Baal!
Um alívio apaziguador tomou conta do rapaz. Ele se esquecera de que seria a
energia desse deus aquela detectada, e não a de sua mãe. O segredo permanecia a
salvo, pelo menos por enquanto.
Hilda deu dois passos, se posicionando lado a lado com o jovem, e mirou-o
bem. D epois fixou os olhos em seu tórax, no local onde o item estava pendurado.
Com um estalar de dedos o corselete de couro que vestia Vanhadt voou para o teto,
expondo o seu peito nu. O rapaz ficou atento para perceber um mínimo de
alteração em suas feições, o que denunciaria que ela notara o objeto, mas tal fato
não ocorreu. Ele girou os olhos nas órbitas (a única parte de seu corpo que
conseguia mover) direcionando-os para baixo, e também não viu o item lá. O que
acontecera com ele?
Um novo estalar de dedos e as roupas vestiram o seu dono. Hilda deu uma volta
no quarto, batendo as solas dos pés com força. Vanhardt nunca tinha visto os pés
dela tocarem o chão. Parecia furiosa.
D e novo... D E N O VO ! Você conseguiu me vencer mais uma vez! Estou
começando a ficar com muita raiva, meu genro, e isso não é nada bom! Como lhe
havia dito, raiva é para os fracos, e eu não admito que me faça ter esse sentimento.
Não irei me igualar a um ser ridículo como você.
Chega! Cansara-se de tantas ofensas! Era hora de mostrar para aquela mulher
quem era ridículo. Concentrando todas as suas energias, lutou para se libertar da
magia que o mantinha paralisado. A os poucos seu corpo começou a tremer, e o
rosto foi se contraindo numa expressão de fúria. Ele sentia um fogo brotando na
base de sua espinha, e instintivamente sabia que se o fizesse subir até a cabeça
seria capaz de qualquer coisa. S ua mão direita, balançando nervosamente, foi se
movendo para frente, e o pé direito com algum custo também fez o mesmo. Ele
dera um passo! D epois foi a vez da mão e pé esquerdo executarem o movimento, e
deu outro passo. Hilda olhava desconcertada para aquela situação, pois não
acreditava no que seus olhos insistiam em mostrar.
O fogo atingira a metade da espinha dorsal de Vanhardt, e continuava a subir.
A cada passo ele se sentia mais forte, e o feitiço de Hilda prendia-o menos. A
feiticeira passou a se preocupar com a situação, pois o genro só estava a quatro
passos de distância, e sua magia praticamente não o afetava mais. Era melhor não
arriscar. A pontou o dedo indicador para o teto, e depois soprou sobre a ponta dele.
Uma fumaça verde saiu dali e atingiu as narinas de Vanhardt. Um cheiro estranho,
de maçã, desceu pela sua garganta e invadiu os pulmões, roubando-lhe os sentidos.
Sua vista se fechou, e ele não ouviu mais nada. Acabou desabando no chão.
A pós se certificar que o rapaz realmente estava fora de ação, Hilda chamou
Kuengui por uma bola de cristal, que havia depositado sobre a mesa no centro do
quarto. Ele chegou em menos de um minuto, e se curvou num movimento ensaiado
perante a feiticeira.
S eu humilde servo Kuengui se apresenta, poderosa baronesa de Avendorh! O
que deseja, mestra?
Quero que leve esse rapaz para as masmorras, e diga para Crular torturá- lo sem
piedade. Veja se descobre a fonte de sua força! Entendeu bem?
Claro que sim, minha mestra. Há mais alguma coisa que vossa alteza deseja?
S im! Leve também esta fada e... - ela olhou para o chão, onde havia deixado Lila
presa dentro da bola, mas não a viu ali. Seus olhos correram o quarto à sua procura,
sem encontrá-la, no entanto. - Ela conseguiu escapar! Maldita! N ão importa.
Kuengui, coloque a segurança reforçada nas masmorras. Ninguém entra e ninguém
sai!
Suas palavras são lei, minha senhora, ninguém entra e ninguém sai!
Muito bem. Então vá logo, pois seu cheiro está me dando náuseas.
Imediatamente!
Kuengui pegou Vanhardt pelos braços, e saiu arrastando-o para fora,
aproveitando para devolver alguns chutes em sua barriga. Hilda foi até uma das
janelas, notando que estava mais aberta do que ela a havia deixado. D epois de
perder alguns segundos olhando para o lado de fora, sentou-se na beirada de sua
cama, e se recostou na cabeceira, pensativa.
Capítulo XIX - Chuva no Deserto

N em tente fazer isso! - uma potente voz percorreu o jardim, atingindo todos ali
presentes, fazendo com que tanto Ghar quanto os gigantes parassem para ver
quem chegara. Léia permaneceu onde estava, e apenas deslocou as pupilas para o
canto dos olhos a fim de ver o intruso.
A criatura que entrara na sala era um minotauro. A cabeça, que juntamente
com os pés compunha a parte do corpo similar ao touro, apresentava chifres negros
que apontavam elegantemente para frente. O s olhos eram da mesma cor,
profundos, e as orelhas - grandes e caídas - apresentavam dois brincos em argola,
um deles com um pingente em forma de cruz. S eu braço direito empunhava um
machado de lâmina dupla, parecido com o de Ghar, mas menor. O esquerdo
segurava um escudo retangular, ligeiramente abaulado para frente, que ia do meio
do seu tronco até quase tocar o solo. Uma semi-esfera no centro garantia maior
resistência ao escudo. Vestia uma armadura completa de batalha, dourada, que
brilhava como o sol, com detalhes finamente esculpidos em prata. Uma longa capa
vermelha cobria suas costas, e se esticava dos ombros até ao chão, reservando-lhe
uma aparência ao mesmo tempo importante e misteriosa.
Q uem é Vossa D ivindade? Veio aqui assistir ao massacre? - perguntou Ghar
debochadamente, tentando se decidir se matava Léia ou partia para cima do
intruso.
O minotauro deu um passo para frente e olhou ameaçadoramente para Ghar e
seu exército. D epois inclinou o corpo de forma educada, numa reverência, e disse
com a mesma voz poderosa:
Meu nome é Taurok, o senhor dos minotauros. E não; não vim assistir a
massacre nenhum. Em verdade, quero oferecer minha ajuda e suporte à deusa do
gelo, de modo a impedir que qualquer injúria possa ocorrer a tão formosa dama.
A s palavras de Taurok surpreenderam Léia, que há pouco havia perdido as
esperanças de sair dali com vida. Ela conhecia esse deus apenas de nome, "Taurok",
mas nunca estivera com ele. S e o que disse era verdade - e a maneira com que
falava não deixava dúvidas - ela apresentava renovadas chances de vencer a
batalha.
Taurok? Senhor dos minotauros? Que patético! - Ghar também não contava com
a inesperada entrada de Taurok, e recorria à atitude zombeteira com o intuito de
ganhar tempo e melhor se situar. - Vejo que está do lado da deusa do gelo... O que
o leva a uma atitude tão leviana, meu caro? Loucura? Burrice? N ão importa, pois
terá o mesmo fim que sua dama. Léia não desfruta de um mísero quantun de
energia, e Vossa D ivindade pode até ser forte, mas não passa de um único
oponente. E então? O que fará contra um deus e um exército de gigantes? Correr de
pavor?
Por que afirma com tanta ciência que estou sozinho? - imediatamente após as
palavras de Taurok, uma dúzia de minotauros penetrou nos jardins, e se
posicionou atrás de seu mestre. Eram todos quase iguais ao seu deus, exceto pelo
fato das armaduras serem corseletes de couro batido. - D esista de matar a deusa do
gelo, e garanto que pouparei a sua vida e de seus irmãos gigantes. O u então, sofra a
fúria da minha lâmina!
A proveitando a distração geral, Léia correu para perto de Taurok e os
minotauros. Ghar assistia vacilante àquela nova conjuntura, e sua mente custava a
elaborar algum plano eficiente.
N ão pense que frases de efeito me inspirarão medo. Vim aqui para acabar com
Léia, e é assim que procederei. S e Vossa D ivindade quer ficar no caminho, que seja.
Irá unir-se a ela na escuridão da inexistência. Gigantes... Atacar!
Ghar disparou na direção de Taurok, seguido por seus gigantes. O deus dos
minotauros fez sinal a seus comandados, e também avançou. O som dos dois
extraordinários exércitos se chocando foi ouvido como um trovão sobre a superfície
de Kether, por centenas de quilômetros. S e um humano estivesse no castelo de
cristal, teria os tímpanos estourados.
Léia continuava fraca, e não se arriscou a participar da batalha. Resignou- se a
assistir, e o resultado não parecia muito bom. A pesar de contarem com maior
número, os minotauros não eram tão fortes quanto os gigantes, e nem tão ágeis.
N o primeiro impacto, vários deles sofreram sérios danos, e a deusa do gelo quase
podia prever um péssimo fim.
N esse embate, Taurok e Ghar empataram - o deus dos gigantes acertou um
golpe em cheio contra o escudo de Taurok, que por sua vez cortou de raspão o
ombro de Ghar com sua arma. A batalha seguia num ritmo alucinado, e aos poucos
Léia entendeu porque Taurok estava tão confiante. D e fato, os minotauros não
mostravam tanto poder ofensivo quanto os gigantes, mas apresentavam certa
capacidade muito especial: sabiam trabalhar em equipe. Enquanto um minotauro
defendia o ataque de um gigante, outro passava uma rasteira nesse e um terceiro
cravava o machado sobre a sua cabeça. Os gigantes foram caindo um a um.
Ghar e Taurok promoviam um duelo emocionante e perigoso. O primeiro
golpeava cerca de dez vezes a cada segundo, mas Taurok conseguia se defender.
A proveitava para conjurar feixes de luz, que saíam das mãos, e ainda tentar acertar
o deus dos gigantes com seu machado. Passaram-se menos de dez minutos e todos
os gigantes tombaram, momento no qual os minotauros aproveitaram para montar
um círculo largo em volta de Taurok e Ghar. Em meio aos ataques e defesas, Ghar
rangeu entre os dentes:
Por que não os manda atacar? Seria mais fácil para me derrotar.
Talvez sim, mas não seria honrado. A cabarei com Vossa D ivindade usando
minhas próprias mãos.
Tolo, se crê que essas luzinhas infantis promovem algum efeito, desista! Meus
olhos não são afetados por magia tão fraca.
Quem disse que eu queria afetar seus olhos?
D e repente, Taurok parou de se defender, baixando a guarda. Ghar percebeu o
movimento de seu rival, e viu a oportunidade de acabar com aquela luta. Ele
perdera os gigantes, mas mesmo assim venceria a luta. D aí seria questão de
minutos até derrotar os minotauros e, por fim, a deusa do gelo. Ghar ergueu seu
machado em direção ao teto, e desceu-o com toda a força sobre a cabeça de Taurok.
Seu golpe, entretanto, parou a menos de um centímetro da cabeça do oponente.
O que... O que aconteceu? - balbuciou Ghar. - S into meu corpo paralisado. Mas
não é uma magia... Isso é... Isso é uma linha!
A proximando-se de Ghar, Léia notou que uma linha extremamente fina
envolvia seu corpo dos pés à cabeça. O deus dos gigantes estava numa posição que
beirava o ridículo, com os braços esticados, segurando o machado sobre a cabeça
de Taurok, mas sem poder atingi-lo.
Mas como? Como fez isso? - grunhiu o deus dos gigantes.
Taurok saiu de debaixo do machado de Ghar, colocou as mãos para trás, e deu
dois passos tranqüilos, se posicionando ao lado deste.
A s luzinhas infantis que viu eram o reflexo da luz ambiente nas linhas que eu
produzi. Chamam-se "linhas de Gaia", e aprendi a técnica com a deusa homônima.
Enquanto defendia seus golpes, aproveitava para passá-las em torno do seu corpo,
e de tão imerso na luta Vossa D ivindade mal conseguiu reparar. Essas linhas são
inextensíveis e também não podem ser partidas. S into dizer, mas a luta terminou, e
Vossa Divindade perdeu.
Não pode ser... NÃÃÃAÃÃÂÃOOOOOO!
A chou-se tão poderoso, e ousou me trair - disse a deusa do gelo, quebrando o
silêncio que guardava desde o aparecimento de Taurok. - Toda ação tem a sua
reação, Ghar. Cada atitude tem o seu oposto. E agora está pagando pelo que fez!
Ficará preso nessa linha eternamente, redimindo dos seus pecados. Estou certa,
Taurok?
É claro, minha dama! - respondeu Taurok confirmando com a cabeça.
Nunca... Não aceitarei destino tão cruel! Prefiro a morte! AAAAAAAH!
A pós gritar como louco, Ghar tomou uma cor vermelha, e depois roxa. S eu
corpo tremia incontrolavelmente, e o rosto se deformava em expressões de terror.
S eguiu-se então uma estrondosa explosão, e uma nuvem de fumaça juntamente
com faíscas de luz surgiu onde estava anteriormente o corpo do deus dos gigantes.
O s presentes olharam admirados para aquele show de som e de luz, que terminou
com cinzas caindo ao chão, e o machado de Ghar tilintando intacto aos pés de Léia.
O que foi isso? - perguntou Taurok olhando para os lados. - Onde está Ghar?
N ão se preocupe. Ghar, o deus dos gigantes, deixou de existir - sentenciou Léia,
abaixando-se para pegar o machado. - E pensando que antes de Vossa D ivindade
chegar seria eu a ter semelhante fim. D evo-lhe a minha vida, ó deus dos
minotauros, e serei eternamente grata a seu gesto de caridade! Tome, isto lhe
pertence por direito.
Contemplativo, Taurok pegou o machado das mãos de Léia. D emorou-se alguns
segundos revistando toda a sua estrutura, e ficou satisfeito com o que viu.
Realmente, é um item fabuloso. Posso dizer que sua faculdade é aumentar a
força do usuário, não é mesmo?
Sim, é verdade, Taurok.
Léia caminhou até o corpo de um dos gigantes e rolou-o no chão, deixando o
abdômen apontando para o teto. Ergueu o cetro bem alto, e desceu-o com força,
atingindo em cheio o estômago da criatura. D epois o rasgou cirurgicamente em um
movimento horizontal. A baixou-se e tirou de dentro do estômago uma criaturinha
molhada com suco gástrico, e com a ponta vermelha do nariz reluzente.
A h, que bom que está viva - a deusa do gelo sorriu para a criatura, que devolveu
o gesto timidamente. - Muito bem, Taurok, venha comigo até o salão do trono. É
um lugar mais apropriado para receber tão nobre companhia.
É claro, minha dama. Runo, leve cinco irmãos e proteja a periferia do castelo.
Um dos minotauros, que usava uma armadura um pouco mais elegante que a
dos outros, respondeu afirmativamente. Ele chamou outros cinco minotauros e a
pequena tropa deixou os jardins.
Lamento muitíssimo pelos que faleceram em batalha tão terrível - disse Léia
olhando para os três corpos caídos. - N ão se preocupe, garanto que lhes
proporcionarei o enterro adequado.
É uma honra ouvir isso, deusa do gelo, mas, se me permite, gostaria que eles
fossem enterrados no meu castelo. Urok, encarregue-se disso.
Léia foi seguida por Taurok e mais dois minotauros, deixando o salão logo após
Urok ter levado os cadáveres dali. O jardim que ficava para trás era apenas uma
sombra triste do que fora no passado. N ão havia mais luz, cor, nem beleza. Era
uma arena destruída, manchada de sangue e dor. Palco de uma luta sem sentido e
propósito, reflexo de uma mente pervertida.
Eles percorreram dois corredores, e subiram um lance de escadas, passando à
frente de várias alas destruídas. Pinguins uniformizados recolhiam papiros
espalhados, e em outra ala Gnomos com braços quebrados recebiam tratamento de
Centauros médicos. O s deuses, enfim, chegaram em frente à porta do salão do
trono.
— I rmãos, guardem essa porta com suas vidas! N ão deixem uma mosca sequer
entrar aqui. Ouviram bem? - Taurok falava tranqüilamente, mas com firmeza.
Sim, irmão, ouvimos. Pode contar conosco. - respondeu um dos minotauros.
Léia entrou na frente e foi até o final do salão, sentando-se no trono. Taurok
permaneceu parado até a deusa se sentar, e depois se curvou longamente,
segurando à frente do corpo a barra da capa que usava. O deus dos minotauros,
apesar de ser grande e possuir uma aparência não muito bela para os padrões
humanos, mantinha um porte altivo e sempre com gestos elegantes e educados.
S eu tom de voz era firme e poderoso, muito diferente daquele urro gutural do deus
dos gigantes. Tamanha educação, aliada a uma inteligência sagaz e demonstrações
de solidariedade, tornaram Taurok bem-visto aos olhos da deusa do gelo. Ela só
não conhecia as reais intenções desse deus, que poderia certamente estar
manipulando a situação. D essa vez, no entanto, Léia não se deixaria enganar tão
facilmente. Manter-se-ia cautelosa até que o deus demonstrasse de maneira
incontestável seu valor.
Eu notei - iniciou Léia, depois de se acomodar confortavelmente no trono de
gelo - que Vossa D ivindade trata suas criaturas como irmãos. É um gesto de
humildade que admiro demasiadamente. Percebi também que eles lutam como
uma equipe, e foi esse fator decisivo na sua vitória de hoje.
D e todo o coração, agradeço as palavras de elogio. Eu os trato como irmãos
porque os considero assim. S omos uma família. Todos se respeitam mutuamente, e
cada um sabe o seu lugar. Existe, é claro, uma hierarquia, onde os mais velhos se
situam numa posição superior aos mais novos. Mas todos entendem e adotam as
regras conscientemente.
Realmente, é muito interessante - continuou a deusa do gelo, lançando um
olhar sombrio para o deus dos minotauros. - S ó não sei ainda o verdadeiro motivo
de Vossa D ivindade ter ajudado uma deusa que estava prestes a morrer. N ão
mantínhamos laço algum; eu só o conhecia de nome. E gestos de caridade como
esse entre deuses são tão raros quanto chuva em um deserto. D esculpe a minha
grosseria, Taurok, mas me diga sinceramente: por que não me matou até agora?
Por que não roubou meus itens mágicos, e minhas reservas de energia? O que está
esperando?
A frase de Léia, fria como o gelo, perpetuou um silêncio incômodo pelo salão.
Taurok enrugou a testa, e tomou uma expressão séria. Ele pigarreou, e começou a
falar com voz gentil:
Eu não vim aqui para matá-la, deusa do gelo. É verdade que não nos
conhecíamos, mas eu a admiro desde que ouvi seu nome. S ua beleza e suas
atitudes eram como uma graciosa paisagem à qual eu contemplava; e sua fantástica
voz, que agora posso ouvir, é como música para meus ouvidos. N ão conseguirei
obrigá-la a acreditar em minhas palavras. Palavras são apenas palavras. D e
qualquer modo, digo que vim aqui porque sabia que corria perigo, e que
necessitava de minha ajuda. E eu a prestei. Fiz isso em parte pelo sentimento que
anda tanto esquecido, mas que acredito ser um dos mais importantes: a amizade.
S ó não digo a outra parte do motivo da minha visita, esse motivo secreto que
guardo no mais fundo de meu ser, e que no momento minha timidez não permite
revelar. Um dia, porém, quando for mais corajoso, garanto que o farei.
A quele discurso, apesar de curto, conseguiu emocionar Léia de modo tão
evidente que a deusa precisou fingir um acesso de tosse para disfarçar. Estaria
Taurok realmente apaixonado pela deusa ou era aquilo apenas um teatro bem
executado?
S ão frases bonitas, Taurok, mas como Vossa D ivindade mesmo disse, palavras
são apenas palavras. E o tempo é que provará a sinceridade delas.
N aquele exato momento, a conversa foi interrompida por gritos que vieram do
corredor. Léia reconheceu a voz de seu criado, Oswaldo.
É meu assistente que está lá fora. Por favor, deixe-o entrar.
Perdoe-me, deusa do gelo, meus irmãos não sabiam disso. - Taurok se mostrou
surpreso e visivelmente constrangido. Foi correndo para a porta, e trouxe O swaldo
para dentro depois de falar com os minotauros. - Peço perdão novamente!
N ão precisa se desculpar. Eles não conheciam O swaldo, e fizeram bem em não
deixá-lo entrar. Podia ser alguém indesejado - ela então desviou o olhar de Taurok
para o assistente. - D iga-me, O swaldo, como está o meu rapaz? Estou preocupada
com ele, não sei o que aconteceu na fortaleza de Hilda - a deusa do gelo disse "meu
rapaz" em vez de "meu filho", pois não queria revelar esse grau de parentesco a
Taurok.
O coelho mirava Taurok com os ombros encolhidos, e as mãos junto ao peito.
Ainda receoso pela presença daquele deus, ele falou em seu tom épico habitual:
Parece que o que aconteceu lá não foi muito diferente daqui, ó magnífica deusa
do gelo. Completa destruição, completa, completa. O s valorosos gigantes de vossa
excelência enlouqueceram e se rebelaram contra os Grilliardus. Cercados pelas
tropas de Hilda e pelos gigantes, nossas feras aladas pereceram. Lamento informar
a derrota de nossos exércitos - as orelhas de Oswaldo murcharam.
Isso eu já esperava; quero saber notícias de Vanhardt! Como ele está?
Léia se esforçava em não demonstrar o quanto estava ansiosa.
A h, sim! D esculpe-me minha deusa, mas não tenho conhecimento do paradeiro
de seu filho, o destemido Vanhardt.
D epois que O swaldo pronunciou a palavra "filho", Léia notou um brilho nos
olhos de Taurok. Oswaldo, por que falou essa palavra? - pensou a deusa, chateada.
N ão podia culpar o coelho, no entanto. S empre fora um fiel assistente, e só falara
aquilo por descuido.
Muito obrigada pelas informações, O swaldo, pode se retirar. A proveite para
organizar o castelo, principalmente os jardins. Q uero aqueles cadáveres imundos
fora daqui o quanto antes.
S im, vossa magnificência - O swando fez uma reverência e saiu, não sem antes
dar uma última olhada receosa no deus dos minotauros.
Perdoe-me novamente, deusa do gelo, contudo creio que posso ajudá-la
Taurok disse, aproximando-se alguns passos. O uso supor que, no momento, a
dama não dispõe de muitas reservas de energia divina, nem criaturas, correto?
Sim, está certo.
A credito, então, estar de posse de um plano ideal, com o qual nós dois
lucraremos.
Então me conte - Léia ficou curiosa para ouvir a idéia de Taurok.
A inda que existam criaturas a guardá-la, a fortaleza de Ghar está sem o seu
líder. O meu plano é o seguinte: iremos nós dois, com alguns minotauros meus, e
acabaremos com as defesas do local. D epois partilharemos os tesouros e a energia
divina que porventura estejam lá. D evemos, contudo, partir logo, pois, quando a
notícia do falecimento de Ghar alcançar os ouvidos de outros deuses, estes cairão
como gafanhotos sobre a fortaleza dele.
A idéia é boa, Taurok, mas por que não vai sozinho? O s tesouros seriam apenas
seus. Não precisa de uma deusa moribunda para invadir esse castelo.
Certamente eu o conseguiria sozinho, mas precisaria mobilizar mais tropas
para fazê-lo. E, com isso, o risco de minha própria fortaleza sofrer um ataque
aumenta. S e formos juntos, praticamente não precisarei mobilizar outras tropas, e
meu castelo continuará protegido.
Caso eu vá, deixarei meu próprio castelo sem proteção - Léia insistia em pensar
negativamente.
É duro dizer minha dama, mas mesmo que Vossa D ivindade fique, creio que
não poderá fazer frente a um novo ataque.
Taurok tinha razão. Ela estava fraquíssima, e não contava com exércitos para
defender o castelo. S e ficasse e sofresse outra invasão, não teria condições de
debelá-la. A solução era partir. Léia foi à sala de energia, que ficava ao lado do
salão do trono. Retirou dos imensos cristais o que restava de quantuns divinos, se
restabelecendo. Ela torcia para que os outros deuses pensassem que havia sido
derrotada, e que Ghar já se apossara de seus tesouros. Só assim eles não invadiriam
o castelo de cristal. D epois de se aprontar demoradamente, ela se uniu a Taurok, e
partiu para o vulcão, ex-lar do deus dos gigantes.

A batalha dentro do vulcão contra os gigantes não foi difícil. Taurok e seus
minotauros compunham uma ótima equipe, e, unidos à Léia, que também era
extremamente habilidosa (o deus dos minotauros por vezes parava de lutar para
admirar os movimentos da deusa do gelo), venceram sem nenhuma baixa os
gigantes que restavam. Decidiram, a partir daí, repartir os tesouros.
Havia uma infinidade de jóias, além de variados itens mágicos, e uma boa
quantidade de energia divina armazenada na lava do vulcão. Enquanto Taurok
descobria o valor total de quantuns que Ghar possuía, Léia se deteve em um item
esquecido sobre uma mesa larga, coberta com um forro dourado. Era um cubo,
apresentando arestas de meio metro de comprimento. Não havia figuras ou mesmo
cor nos lados - na verdade, ao olhar o cubo Léia acreditava estar vendo o infinito.
Ela sentia-se dragada pelo objeto, e uma escuridão envolvia-a completamente. D e
repente, surgiu uma pequena luz que vinha de longe, no recondido mais profundo
do cubo. S entia seus pés flutuando em direção à luz, que aumentava quanto mais
perto ela ficava. A os poucos a luz mudou de forma, tornando-se igual a uma chama
ardente, vermelha, que se dividiu em duas. Léia se lembrava dessas chamas. O que
eram mesmo? S egundos depois, ela viu a imagem que a deixaria perturbada por
dias. Um terror indescritível apossou-se de seu coração como uma sombra a
drenar-lhe as energias. N ão podia ser, ela não estava vendo mesmo aquilo. A deusa
do gelo fechou os olhos e se concentrou em sair daquele cubo, mas a imagem se
multiplicava diante de seus olhos. Mas como? Não fazia nenhum sentido... Só se...
Com o rosto suado, e as mãos trêmulas, Léia se deu conta de que estava parada
e de pé, em frente ao objeto. Taurok mantinha uma mão em seu ombro.
Léia? Está tudo bem, minha dama?
Não, Taurok, nada está bem... Eu vi... eu vi...
— Viu o quê?
Léia sentia que, caso respondesse, todos os seus temores virariam realidade.
Mesmo assim, com os olhos mirando o infinito, ela pronunciou as palavras que
tornaram seu pesadelo muito mais verdadeiro.
Capítulo XX - O Suplício

O lugar era uma masmorra. Paredes de pedra, mesas de madeira no centro, um


forno aceso com espetos de ferro no fundo da sala. A iluminação era difusa, fraca, e
vinha das chamas tremeluzentes desse forno. Uma estante cortava a parede leste
de uma ponta à outra, e continha frascos de vidro de diversos tamanhos, com
líquidos verdes e substâncias sólidas, semelhantes a dedos. S obre a mesa
pousavam uma infinidade de instrumentos cortantes, como bisturis, tesouras de
pontas retas e curvas, espetos, lâminas, pinças, agulhas - um verdadeiro arsenal. O
calor era insuportável, e um cheiro fétido ajudava a tornar o ambiente mais
opressor.
Um balde de água lamacenta foi jogado no rosto de Vanhardt, fazendo-o
acordar do sono torporoso em que estava metido. S ua cabeça, latejando, pendeu de
um ombro ao outro, e com muito esforço o rapaz conseguiu abrir os olhos.
S entindo-se um pouco zonzo, e com os músculos reclamando dores, viu parado em
sua frente um ser de aspecto repugnante.
Era do tamanho de um humano, calçava botas pretas furadas e usava um
macacão azul marinho, sujo e desbotado. N ão havia camisa por dentro do macacão,
de modo que seu peito infestado de pêlos negros e curtos era visível. Uma máscara
metálica cinza, lisa, escondia o rosto, e havia fendas ovais nas órbitas oculares de
onde surgiam olhos azuis inexpressivos. N o lugar onde seria a boca, abria-se uma
grade retangular; alguns fios grossos de cabelo, também pretos, escapavam pela
parte craniana da máscara. S eus braços eram certamente humanos, finos e com
cicatrizes, e não havia dedos inteiros nas mãos - apenas cotos proximais das
falanges. N ão bastasse a aparência, que por si só causava repulsa, ele andava com
as costas arqueadas, e cuspia saliva quando expirava. Vanhardt não sabia, mas seu
nome era Crular.
A criatura depositou o balde no chão, ao lado de uma mesa, e caminhou
arrastando a perna esquerda até ficar próxima de Vanhardt. Ela esticou o pescoço e
começou a cheirar o rapaz, que sentia a saliva jorrar em seu rosto. D epois, passou o
coto dos dedos no rosto do jovem, e, com uma risada rouca, saiu de perto dele e foi
até uma das paredes da sala onde havia correntes de ferro.
A s correntes se arrastavam em uma roldana no alto da parede, e seguiam até
algemas enferrujadas que apertavam os pulsos de Vanhardt. Foi nesse momento
que o jovem se deu conta de que estava preso. O s grilhões de ferro rangiam
enquanto a criatura puxava as correntes para baixo num ritmo monótono e
cadenciado, elevando o corpo de Yanhardt. Crular parecia se esforçar bastante, pois
a quantidade de saliva a sair de sua boca aumentou, e gemidos roucos de vez em
quando emergiam de sua garganta.
O corpo de Vanhardt ficou suspenso no ar, preso pelas algemas. Continuava
vestido com as mesmas roupas, mas não usava botas, e por isso a ponta dos dedos
de seus pés tocavam o chão frio. O s braços estavam esticados e apontavam para as
quinas do teto, e as articulações dos ombros doíam terrivelmente em virtude da
tensão existente nas correntes. Vanhardt viu a criatura arrastar a perna até uma
mesa, e pegar um chicote com cabo de madeira e fios de couro entrelaçados na
ponta. Percebeu, então, o que ia ocorrer, e porque estava ali. Crular parou a um
metro dele, e ergueu o chicote no ar. A partir daquele momento, o jovem filho da
deusa do gelo passou pelo maior sofrimento de sua vida.
Peço desculpas de antemão, eu, seu humilde narrador, porque interromperei a
cena nesse ponto. Você deve ter reparado que quase nunca faço isso, de modo que
só algo importante me obrigaria a essa atitude. E esse algo realmente tomou forma.
N ão conseguirei expressar com palavras as mazelas que nosso herói sofreu. Talvez
três delas me ajudassem nessa tarefa: dor, dor e mais dor. A penas isso. N ão
relatarei em detalhes o sucedido, pois a crueldade foi tamanha que minha coragem
não é suficiente para expô-la. Gostaria somente que o leitor pensasse em algo que o
atormentou demais, qualquer situação que tenha ocorrido em sua vida. A gora
multiplique a sensação por mil. Foi esse o sofrimento de nosso herói.
Q uanto tempo durou? Q ualquer estimativa que Vanhardt fizesse estaria longe
da verdade. O único pensamento que passava por sua mente era: Mãe, onde está
você? Por que ela o abandonara? Por que ela permitia que ele passasse por aquilo?
Ele queria desistir de tudo, e contar o que Hilda desejasse. Q ueria ver seu filho, o
pequeno Erick. O sorriso de Erick. Mas seu sonho parecia tão distante que nem se
esticasse bastante os braços ele o alcançaria. D or era o que sentia. E solidão.
D esistir era a única alternativa que via como possível - ele era apenas um rapaz, e
não agüentava tamanho sofrimento. Crular fez uma pausa, e alisava
carinhosamente o chicote. Provavelmente esperando que Vanhardt contasse o que
Hilda queria saber.
N ovamente um calor brotou na base da espinha de Vanhardt, dando-lhe forças.
Estava muito confuso e cansado para tentar qualquer magia, contudo sentia-se
suficientemente capaz de enfrentar aquela dor novamente. Ele não contaria nada.
Nada! Crular aproximou-se arrastando a perna, ainda alisando a arma. Ele leu nos
olhos de Vanhardt a sua decisão.
Mãe, onde está você? Por favor, venha me ajudar... Venha logo! Por favor...
Capítulo XXI - O Mistério de Seis Faces

— Eu vi o traidor! Eu vi sua máscara cavernosa, os olhos em chamas, a


armadura negra e aquela espada maldita nas mãos. Eu o vi! - Léia suava, e suas
mãos tremiam descontroladamente.
Q ue traidor? Q uem foi que viu minha dama? - Taurok aproximou-se da deusa
do gelo, e envolveu os ombros dela com um braço enquanto segurava suas mãos
com o outro.
É lamentável não ter visto seu verdadeiro rosto! Talvez, se eu insistisse outra
vez... Espere um pouco; isso é muito estranho. O que um cubo com a imagem do
traidor faria no castelo de Ghar? S eria ele o traidor? N ão, ridículo imaginar uma
coisa dessas, o deus dos gigantes não possuía a força daquele que me derrotou.
Então posso crer que os dois estavam juntos...?
Perdão, minha dama, não entendo nada do que está dizendo! - interrompeu o
deus dos minotauros, procurando agir da maneira mais educada possível. - D iga-
me, quem é esse traidor?
Léia olhou para Taurok, e suas pupilas se contraíram. Ela balançou a cabeça, e
pareceu voltar a si.
D esculpe-me, deus dos minotauros, estava divagando. N ão dê a menor
importância ao que saiu de meus lábios! Bem, precisamos agora dividir os espólios
e... A aaaai! - A deusa do gelo colocou as mãos na cabeça, e ajoelhou-se no chão. -
Aaaai.J Sinto uma dor terrível! Meu filho está sofrendo, e precisa de mim!
Vendo a deusa do gelo naquela situação, Taurok imediatamente se abaixou, e
estendeu-lhe o braço.
Percebo que o Elohim realmente necessita de Vossa D ivindade - o tom daquela
voz era grave, mas confortador. - Venha, pegue minha mão. I rei levá-la até o seu
castelo, e lá poderá tomar as atitudes adequadas.
Elohim. Há quanto tempo Léia não ouvia essa palavra. Elohim. Taurok, todavia,
não a pronunciara com o preconceito que sempre esteve agregado ao vocábulo. Um
preconceito que existia desde milhares de anos atrás, surgido a partir do episódio
conhecido como "A rebelião dos Elohim". Léia soprou essa nuvem de pensamentos
para longe de sua mente, pois não era hora de relembrar fatos que melhor estariam
esquecidos. Ela levantou-se e segurou com doçura a mão de Taurok.
A gradeço por tudo que fez por mim! Confesso que apresentava dúvidas sobre
seu caráter, pois já fui enganada mais de uma vez. Também admito que não estou
totalmente convencida de sua lealdade, porém falta pouco para isso - ela sorriu. -
Gostaria de levar esse item comigo - apontou para o cubo sobre a mesa -, tudo
bem?
É claro, minha dama! N ão se esqueça de levar também energia divina, sem
dúvidas irá precisar. Ghar guardava uma boa quantidade nesses rios de lava.
Garantirei que metade dos itens mágicos aqui presentes seja entregue em seu
castelo prontamente.
D esse modo irá fazer com que eu me canse de tanto agradecê-lo! - ela emendou
outro sorriso sem graça. - Creio, porém, que Vossa D ivindade merece mais
porque...
N ão discuta. Lutamos juntos, e não ficarei satisfeito se não recebermos partes
iguais. I sto está decidido - caso fosse qualquer outro deus, Léia sem dúvida estaria
ofendida após ouvir aquelas frases. Tratando-se de Taurok, a reação foi outra -
A gora, voltando ao assunto do cubo. N otei que ficou interessada nele, e
honestamente não vejo nenhuma utilidade para mim. Leve-o sem medo e faça bom
proveito. Talvez ele a ajude a ver novamente esse "traidor".
É, espero que sim - a deusa do gelo ergueu o objeto no ar preparando- se para ir
embora, e percebeu que havia algo em sua face inferior. - Taurok, olhe aqui
embaixo!
Um relevo diferente podia ser visto naquela face, e Léia girou o cubo, deixando-
a apontada para cima. Em seguida colocou-o sobre a mesa. Q uatro obeliscos
pequenos, de pedra, com dez centímetros de altura, estavam cravados nas quatro
quinas da superfície. N o centro, uma semi-esfera com a concavidade voltada para
cima. Um corte horizontal de cerca de dois centímetros de profundidade, fulgurava
exatamente no meio da semi-esfera. Léia espantou-se ao ver que aquilo estava no
cubo e ela nem percebera. Restava explicar um fato: como o objeto não ficara
erguido sobre a mesa? S eria lógico imaginar isso, pois as mini-esculturas eram em
alto relevo. S em hesitar, ela pressionou a mão sobre os obeliscos e a semi-esfera e,
surpreendentemente, eles afundaram conforme Léia aplicava força.
Taurok coçava o queixo e mantinha uma das sobrancelhas erguidas, sem
arredar os olhos da face do cubo. A deusa do gelo se adiantou e propôs uma
explicação:
Parece que esse lado foi feito para que algo se encaixasse nele. Veja como as
formas são simétricas, perfeitas. Q uem sabe há uma chave por aqui? S e acharmos
essa chave, e ela encaixar nessa superfície, poderemos abrir o cubo e descobrir o
que ele guarda.
É uma idéia interessante, mas penso de maneira diferente.
E como seria? - perguntou Léia sem disfarçar sua curiosidade.
N ão é preciso uma chave para abrir esse cubo. Posso afirmar sem medo de me
equivocar que ele é uma chave!
Capítulo XXII - Asas para a Liberdade

O ar que cheirava a ovo podre e carne queimada penetrava sem pedir licença
nas narinas de Vanhardt. S eria essa carne a sua própria? Talvez nem quisesse saber
a resposta. Q uanto tempo havia se passado? Horas... dias... semanas? N ão fazia a
menor idéia. Um enxame infinito de abelhas zumbia dentro de sua cabeça,
impedindo-o de raciocinar corretamente. Por sorte não sentia dores. A panhara
tanto que seus membros estavam anestesiados, como se o chicote de Crular
destilasse um poderoso analgésico.
A briu os olhos devagar, para ver o estrago que a criatura fizera em seu corpo.
Tentativa essa inútil, pois só conseguiu enxergar pontos luminosos, vermelhos, que
bloqueavam a visão. Fechou e abriu os olhos repetidas vezes, e o melhor que
conseguiu foi fazer com que os pontos dançassem em círculos.
A mente do rapaz não se prendia a nada específico. I magens iam e vinham: de
sua mãe, seu pai, S elena, Hilda, Crular, um cavalo voador, gigantes. A s abelhas
continuavam a se multiplicar em seu cérebro. Haveria uma colméia lá dentro?
Calma Vanhardt, não há insetos em sua cabeça, isso é apenas sua imaginação! Respirou
profundamente, e mais uma vez abriu os olhos; dessa vez os pontos luminosos
desapareceram. A estranha criatura chamada Crular se encontrava sentada em
uma cadeira, com a cabeça deitada de lado sobre as mãos e as pálpebras cerradas.
Estaria dormindo? A os poucos, o ambiente foi ficando saturado com uma
misteriosa fumaça verde. Não há fumaça verde alguma, é novamente sua imaginação
pregando-lhe peças! A fumaça invadia a sala pelas frestas da porta, e sorrateiramente
foi tomando conta de boa parte do cômodo. Era um cheiro bem familiar: de maçã-
das-neves!
Timidamente, um pequeno ponto amarelo, brilhante, passou por debaixo da
porta. Ele ficou parado na altura da fechadura por alguns segundos, depois
ziguezagueou pelo cômodo, fazendo escalas em locais específicos, como o forno, a
estante com frascos de vidro, a mesa de tortura, e finalmente a parede onde
Vanhardt era prisioneiro. Q uando se aproximou o suficiente, o jovem, com
indescritível felicidade, abriu a boca em um largo sorriso ao ver quem havia
chegado.
Lila!
S im, sou eu! Credo, você está horrível! E fale baixo, não quero acordar ninguém
- a fadinha exibia uma expressão de desagrado, com as sobrancelhas arqueadas. Ela
se mostrava exatamente como Vanhardt a vira pela última vez, exceto pelo fato de
que segurava numa das mãos um saquinho marrom, de couro, amarrado por um
barbante.
Tire-me daqui, por favor! Eu... ai! - a dor voltava a castigá-lo à medida que a
felicidade e esperança fluíam para o seu peito. - Eu vou morrer, não é?
Claro que não, vira essa boca pra lá! - a fada colocou o saco no chão e voou até
as algemas que seguravam o pulso de Vanhardt. Ela coçou o nariz, depois ergueu
os bracinhos para frente. - Vheca venarsuli!
A s algemas se abriram, deixando o rapaz cair estatelado no chão. A dor voltara
completamente, e se estendia desde a unha do pé até a ponta de seus cabelos. Ele
olhou para o próprio peito, e ficou nauseado com o que viu. O corselete de couro
estava rasgado quase por inteiro, e dentro das aberturas, as feridas se banhavam
num sangue grosso, enegrecido, misturado com uma gordura amarelada.
I sso não é nada! - disse a fadinha, consolando-o. - Ei, não vai vomitar, hein?
Fique quietinho que logo não sentirá mais dor. Muito bem... Aruc vanidi!
Uma luz amarela brotou da palma das mãos de Lila, que por sua vez passou
sobre todos os ferimentos de Vanhardt. I mediatamente as lesões se fecharam e o
sangue desapareceu - a pele ficou em estado tão perfeito que nem parecia que ele
havia sofrido uma tortura. Só suas roupas rasgadas denunciavam alguma coisa.
Melhor? - a fadinha pegou o saquinho deixado no chão.
Com certeza... Muito obrigado! Pensei que minha mãe havia me abandonado
aqui...
E óbvio que não! Como ousou pensar uma coisa dessas? A inda não conhece a
sua mãe?
Eu sei, é que... Ah, deixa pra lá. E essa fumaça verde, foi obra sua?
S im, só que agora não é o melhor momento para bater papo. Vamos sair antes
que esse horroroso aí acorde!
Ela serve então pra fazer dormir?
O quê?
A fumaça, ora! - respondeu o rapaz impacientemente.
Claro, né!
E por que eu não dormi?
Simplesmente porque eu não desejei isso!
A fada voou até a porta, parando em frente à fechadura. Vanhardt caminhou
lentamente, temendo que movimentos bruscos fizessem com que a dor voltasse, o
que não aconteceu. Q uando passou ao lado de Crular, a tentação de retirar-lhe a
máscara possuiu-o. Ele parou, e mirou a criatura. Poderia matá-lo naquele exato
momento. Pegar o chicote, e infringir a mesma dor que sentira - ia ser uma atitude
justa. D entro do seu coração, todavia, algo dizia que não era o certo a fazer. A pesar
de nada o impedir de tomar essa atitude, ele pressentia que mesmo assim não
ficaria realizado. O profundo vazio que inundava sua alma, ódio talvez, não se
aplacaria se fosse alimentado com mais ódio. Ele precisava de um alimento
superior, melhor que o ódio - o oposto dele. Foi por isso que seguiu adiante.
D epois que a fada abriu a porta, utilizando mais uma vez a Vheca vernasuli para
destrancá-la, os dois atingiram um corredor inundado com a fumaça verde, da
mesma forma que o quarto. Q uatro ores deitados no chão, próximo à porta,
roncavam ruidosamente.
Essa minha fadinha realmente é muito esperta! Com esses vigias dormindo
ninguém poderá alertar Hilda.
Bem, é verdade... - Lila se segurou para não sorrir, contente com o elogio. - O
fato é que Hilda pode esconder outros truques para se informar do que acontece
em sua fortaleza. Não podemos nos dar ao luxo de perder tempo. Siga-me!
A fada voou em disparada cruzando os corredores, com Vanhardt em seu
encalço. Como não tinha botas, seus pés se machucavam no chão de pedra. A quilo,
incrivelmente, não o incomodava tanto. Chegou a acreditar que a partir daquele dia
não conseguiria mais sentir dor.
Eles viraram à direita, e seguiram em velocidade por mais duzentos metros.
D epois tornaram à esquerda e, no fundo do corredor, a dupla avistou uma janela
alta, de vidros duplos, que ia do teto até quase tocar o chão.
E ali! Vamos sair por aquela janela! - disse a fada.
Eles correram até o local. O mesmo corredor seguia pela direita, e desembocava
numa escada. Lila não seguiu por esse caminho, mais preocupada com a janela.
Vai ficar parado aí ou me ajudar a abri-la? - perguntou a fada.
Vou ajudar, só que estou pensando... Essa é uma fuga impossível. Primeiro,
estamos a uns quinhentos metros de altura. S egundo, pelo que vejo, lá embaixo
está repleto de ores, e teríamos que passar por todos eles. Fora o portão que
também temos de pular. Tudo bem, pra você é fácil, é só sair voando e pronto! Mas
e eu? Se não se recorda, eu não tenho asas!
Você não tem, mas esse bichinho aqui tem! - Lila chacoalhou o saco que
carregava para cima e para baixo.
Bichinho?
É... Veja só.
A fada puxou um dos barbantes, desamarrando o saco. Uma libélula, com
pouco mais de dez centímetros de tamanho, saiu voando. Ela foi até os pés de
Vanhardt, e subiu para sua cabeça.
O lha só, Lila... É uma libélula, eu vi. S ó não sei como essebichinho vai nos tirar
daqui - Vanhardt comentou num tom irônico.
Você e sua impaciência. Eu não terminei, senhor "sabe-quando-as- coisas-não-
vão-funcionar"! Continue observando.
D e dentro da sua roupa feita de pétalas, a fada tirou uma esfera vermelha,
opaca. Ela esmagou-a em sua mão, transformando-a em pó. Passaram-se alguns
segundos até que ela jogasse o pó sobre a libélula, que tentava escapar de todas as
maneiras. N esse momento, o inseto parou de bater as asas, e caiu no chão, onde
passou a tremer.
A bre logo essa janela! - apontou a fada para o vidro, enquanto puxava a libélula
pelo rabo.
I mediatamente o rapaz levantou a trava metálica, e empurrou um dos lados da
janela pra fora. Lila arremessou o inseto através da janela, e o que aconteceu foi
surpreendente. A libélula cresceu a olhos vistos, e de pouco mais de dez
centímetros, instantaneamente passou a ter quase dois metros de comprimento. O
movimento de seus dois pares de asas batendo freneticamente produzia um
barulho muito intenso, como se houvesse milhares de libélulas ali perto.
S enhor, o transporte está ao seu dispor. Realmente, não deve ser muito
confortável, mas, se se segurar com força creio que não vai cair. - Vanhardt notou
um sorriso furtivo no rosto da fada enquanto ela falava.
Está bem. Tomara que pelo menos ela agüente meu peso... O lha Lila, ela está
fugindo!
S e Vanhardt pensou que a libélula ficaria parada esperando gentilmente que ele
subisse nela, enganou-se completamente. O inseto partiu em vôos alucinados,
primeiramente margeando a parede do castelo, e depois disparando em direção ao
chão, assustando os ores ali presentes.
Minha deusa, por essa eu não esperava. Fique aqui Vanhardt, vou atrás do
bichinho. - Lila terminou de dizer e mergulhou atrás do inseto que já estava
próximo ao muro do lado de fora.
N o corredor, Vanhardt assistia impacientemente Lila perseguir o inseto
gigante. Ele não fazia a mínima idéia de como ela traria o "bichinho" de volta,
principalmente depois de notar que ele voava numa velocidade muito maior que
Lila, e chegou a driblá-la duas vezes sem grandes dificuldades. Embaixo, os ores se
encontravam em alvoroço, e se movimentavam. A lguns se armaram com bestas e
tentavam atingir a criatura gigante por meio de setas, enquanto outros atiravam
lanças. S e a fada demorasse muito para pegar a libélula sua fuga seria
comprometida.
O pior de tudo, porém, ainda não havia acontecido. A pós escutar um ruído de
passos, e se virar, Vanhardt viu no final do corredor ninguém menos do que Crular,
portando um chicote, e quatro ores atrás dele. O efeito da magia de Lila certamente
esgotara. O s dois olhavam fixamente um para o outro, desafiando-se. A ntes que o
rapaz agisse, a terrível criatura girou o chicote em movimentos circulares acima da
cabeça, e atiçou-o para frente. A corda de couro da arma, que apresentava menos
de um metro de comprimento, foi capaz de se esticar por todo o corredor e ainda
laçar a perna do rapaz. Crular deu um arranco no chicote, derrubando Vanhardt no
chão, e começou a puxar a corda, arrastando sua vítima no chão e trazendo-a para
perto de si. O rapaz constatou tardiamente que a arma se imbuía de propriedades
mágicas.
Lutando para se desvencilhar do objeto que enrolara no seu tornozelo,
Vanhardt não obteve êxito. S uas costas arranhavam o chão de pedra, e ele se
aproximava do inimigo. A gindo num impulso, o jovem agarrou o laço que o
envolvia, e se concentrou. Por favor minha mãe, ajude-me nesse momento. Que os
ventos gelados de Crivengart envolvam a minha alma. A corda, a partir de então, foi
gradualmente se tornando mais endurecida e gelada, estado que se estendeu até
tocar o cabo de madeira que Crular segurava firmemente. Vanhardt aproveitou
para acertar um soco na corda, que por estar congelada quebrou-se facilmente.
Crular foi arremessado para trás devido à tensão da corda rompida
abruptamente, e os ores dispararam rumo ao rapaz, que se levantou, e foi até a
janela. Ele pensou em seguir pelo corredor, que continuava pela direita, mas notou
que por ali surgia mais um grupo de quatro ores. S em opção melhor, tomou
impulso e saltou pela janela que ainda estava aberta. O vento batia sem piedadade
em seu rosto enquanto ele mergulhava num vôo suicida.
Capítulo XXIII - Arauto de uma Péssima Notícia

Léia mirava com profunda concentração o cubo colocado sobre uma mesa na
sala dos cristais de reserva. Por mais que ela se dedicasse, entretanto, só enxergava
o infinito através daquelas faces. O rosto mascarado do traidor não voltara a se
revelar, minando as esperanças da deusa de descobrir mais sobre ele. E os relevos
indicavam que seria uma "chave", segundo o deus dos minotauros. Mas chave para
quê? E por que Ghar estava de posse dessa chave? Q ual era a relação entre Ghar e o
traidor? Perguntas, perguntas, e nenhuma resposta satisfatória. Talvez o cubo nem
mesmo fosse uma chave, e Taurok tivesse se enganado. Resolveu então se ocupar
com outras meditações na sala do trono.
Um assunto que lhe assaltava os pensamentos era o próprio Taurok. Podia
confiar totalmente nesse deus que aparecera tão de repente? Ele demonstrara
grande valor ao defendê-la e impedir sua derrota para Ghar, e ao ajudá-la a
recuperar sua força com o ataque bem sucedido à fortaleza do mesmo deus. A lém
disso, ela não detectara nenhum traço suspeito no deus dos minotauros. Mesmo
assim, e provavelmente pelo fato de ter sido traída tantas vezes, Léia não se
permitia confiar totalmente em Taurok. Quem sabe o tempo lavasse suas mágoas?
O segundo assunto a refletir foi Vanhardt. A deusa cogitou ir até sua fonte, a
fim de descobrir o que se passava com seu filho, mas conteve o ímpeto. N aquele
ponto, não havia mais nada que ela pudesse fazer para ajudá-lo. A ssistir ao
desenrolar dos acontecimentos apenas poderia atormentá-la ainda mais. S oma-se a
isso o fato de possivelmente ele estar longe da capacidade visual da fonte.
Léia informara Lila que o local onde a fada teria mais chances de encontrar
Vanhardt era a masmorra, e por isso ela deveria entrar sorrateiramente no castelo e
seguir diretamente para lá. A deusa também deu para ela a "pedra de crescimento
rápido" que, se utilizada em forma de pó, era capaz de aumentar o tamanho de
uma criatura pequena em mais de cem vezes. Recomendou que ela a jogasse sobre
um animal que tivesse asas, pois seria uma ótima maneira de fugir do castelo. O
melhor a fazer era acreditar que Lila teria sucesso em sua perigosa missão.
Com relação às defesas do castelo de cristal, a situação não era das melhores.
Taurok deixara alguns minotauros em seu poder, que eram praticamente a única
frente que Léia tinha à disposição. Era óbvio que os pingüins da central de
informações, e os polvos enfermeiros, não serviriam para conter um ataque. Ela
investira toda a energia que conquistara na invasão da fortaleza de Ghar para
refazer sua guarda, deixando na incubação Grilliardus, lobos, ursos das neves, e
seres que há muito tempo não pisavam a superfície de Kether: os A njos da Morte.
Estavam incubados doze deles, que se encaixariam muito bem no papel de generais
dos seus exércitos.
D e repente, O swaldo entrou correndo no salão, e se ajoelhou perante a deusa
do gelo.
Ó magnífica Léia, seu fiel assistente traz terríveis notícias! Temo que elas
deixarão a dama do gelo mais preocupada do que já esteja!
Léia levantou-se prontamente, surpresa.
O que aconteceu, Oswaldo? Diga logo!
N ão, majestade, não é nada com Vanhardt, como provavelmente imagina. É
com outra pessoa de sua afeição. Contudo, insisto em afirmar que é algo terrível - o
assistente da deusa revelava um tom pesaroso, e olhar de mistério.
Então diga logo quem é e me poupe desse suplício! - Léia falava com voz
trêmula e aguda, ansiosa pela resposta de Oswaldo.
O coelho fez um curto silêncio, e tomou fôlego antes de dizer:
- Essa pessoa é Selena, a esposa de seu filho Vanhardt.
Capítulo XXIV - Sonho ou Realidade

A lguém que não conhecesse Vanhardt diria que ele fizera uma loucura.
Mergulhar de uma altura de centenas de metros rumo ao solo, não parecia ser uma
idéia das mais sensatas. Ele se equilibrava sobre aquele fio que traça o limite entre
a coragem e a burrice. A rriscou-se a uma proeza pela qual sem dúvidas seu pai o
recriminaria - se soubesse. Só que Thomas não estava ali.
O chão ia crescendo à medida que ele caía, e seus olhos procuravam como
loucos o alvo que, por cálculo ou destino, surgiu como um raio por baixo dele. Era o
momento. Esticando seu braço o máximo possível, sentiu a mão direita tocar uma
superfície dura, e lutou para segurá-la com força. E conseguiu! Com mais um puxão
ele subiu na cauda da libélula, que entortou para a direita e rumou em direção ao
portão de saída. Era uma sensação indescritível montar em um inseto gigante
voador. Sem dúvidas, melhor que montar um gigante.
Flechas zumbiam a alguns metros de sua cabeça antes que saísse dos limites da
fortaleza de Avendorh. O rapaz sentia-se livre, desfrutando da doce alegria de ter
realizado um feito sem precedentes. Fora realmente muito esperto. Q uando
percebeu que ficaria cercado por ores, ainda no corredor, de relance notou o inseto
seguindo em direção à parede do castelo. Calculou corretamente que cruzaria com
ele na metade da queda.
A fada, que assistira toda a cena com o coração nas mãos, logo alcançou
Vanhardt. N aquela altura ele já aprendera que pressionando com as pernas,
poderia fazer com que a libélula seguisse para onde desejava.
Eu não acredito no que você acabou de fazer - disse a fadinha severamente
pouco antes de se sentar no ombro do rapaz, e cruzar os braços.
N em eu, Lila... N em eu! S ó sei que deu certo, e agora estamos nos afastando
daquele lugar... - ele curvou a cabeça, com feições sombrias, recordando-se do que
acontecera lá.
É verdade. Já sabe para onde vamos?
Sei: atrás de Erick, que está no Templo Dourado.
Ok, e onde fica isso?
Bem, fica no... Hum... Você estava me testando, não é? Vamos lá, sabichona, não
sei onde fica, então nos mostre a direção.
S iga para o sudeste - com um sorriso de satisfação a fada apontou para o lugar. -
N ão vamos direto para o Templo D ourado, pois não teríamos condições de entrar
lá. S ua mãe me disse para te levar até as Florestas S agradas do norte, para que
pegássemos um item primeiro.
Qual item?
Ela não me informou especificamente; apenas disse que de posse dele você teria
condições de rasgar o S elo Proibido, que tranca os portões do templo. É impossível
entrar no templo sem antes destruir o selo.
N ão acredito, a viagem vai demorar ainda mais. Tem certeza que precisamos
desse item? Não dá pra usar uma faca, ou ainda alguma magia?
Claro que não dá - respondeu a fada enfaticamente. - Você sabia que há
milhares de anos pessoas vêm tentado penetrar no templo, e nunca conseguiram?
Esse selo é o que permite que apenas indivíduos selecionados possam entrar. Foi
colocado ali por dois deuses; Justus, o deus da justiça, e Bel, a deusa da vida.
E o que tem lá dentro? - perguntou o jovem, com curiosidade crescente. - E por
que Hilda levou meu filho pra lá?
N em eu nem sua mãe sabemos. I remos descobrir depois que tomarmos posse
do item e rasgarmos o selo.
"I tem", "item"... S ó falta ser tão inútil quanto o último que ela me deu. Ele
desapareceu de uma hora pra outra!
Como assim "inútil"? N ão está falando da flauta de Baal reformulada? Ela
certamente impediu que Hilda lesse seus pensamentos! E não desapareceu; se
reparar bem vai ver que continua pendurado no seu peito.
Vanhardt abaixou a cabeça, e, com os olhos cintilando de surpresa, notou que a
ex-"flauta de Baal", transformada em objeto de proteção mental, estava em seu
pescoço.
Mas o que é isso? Ele tornou a aparecer! Não estou entendendo nada...
D eixa eu te explicar. E o seguinte: todo item mágico tem a propriedade de se
manter oculto dos olhos de qualquer outro ser. Até os deuses mantêm itens ocultos
uns dos outros, e isso já impediu inúmeras vezes que eles brigassem, por
imaginarem que o inimigo mantinha algum objeto escondido. Essa propriedade é
inata a tais objetos. O seu item de proteção ficou escondido de Hilda naquele
momento, porque era o que no fundo você desejava. E se manteve nesse estado até
agora, quando não há nenhum perigo imediato. Entendeu, meu querido?
Mais ou menos... Onde ele fica escondido?
D entro de você, ora. Em algum lugar entre seu corpo físico e o astral - a fada
falou como se fosse óbvio. - Onde mais seria?
Ah... Sei lá! Mas "dentro de mim" é esquisito.
A dupla seguiu voando por centenas de quilômetros. Lila informou a seu amigo
que a viagem provavelmente duraria um dia inteiro, e este resolveu dormir. Eles
cruzariam o D urande, passariam ao sul das Montanhas Traiçoeiras, e continuariam
até atingir as Florestas sagradas do norte.
N em o próprio Vanhardt calculou bem o quanto estava cansado. A s asas da
libélula produziam um som muito intenso, e em nenhuma outra ocasião o deixaria
dormir. Porém, foi só ele se acomodar de uma maneira mais confortável sobre o
inseto, e pedir para Lila fazer uma magia que o prendesse ali (não queria cair de
uma altura daquelas, claro), e o jovem caiu num sono profundo. Pois foi com
pesado susto que ele se viu em frente ã sua mãe, no salão do trono do castelo de
cristal.
Mãe... É você mesma! Espere, por acaso isso não é um sonho?
O ar se mantinha nebuloso, e o cenário desfocado. A deusa do gelo que, ao
contrário, era bem visível, se mostrava tão bonita quanto sempre. Ela não
respondeu imediatamente ao rapaz, e levou um tempo a observá-lo. Caminhou até
ele com passos lentos, e acariciou o seu rosto. Vanhardt sentiu um grande calor e
uma ternura naquelas mãos, provando-lhe que aquilo era muito mais real que
talvez a própria realidade.
-— Meu filho, estava com saudades... N ão sabe o quanto me alegra vê-lo aqui.
I sso demonstra que seus poderes têm despertado. A cada dia você se torna capaz
de realizar mais proezas - a deusa tinha um sorriso maternal, preenchendo com
amor a alma de Vanhardt que se tornara vazia e escura depois da dor em
Avendorh. Um amor quente e renovador.
Mãe... Eu não encontrei Erick. Ele está em outro lugar. Estou ficando
desesperado, acho que não irei encontrá-lo nunca. Sinto-me tão sozinho...
S ozinho? É claro que não! Pois se eu deixei contigo um pedaço de mim, que está
sempre a auxiliá-lo. I sso que você sente é na verdade medo. Medo de não rever seu
filho. Medo de não conseguir superar os desafios para encontrá-lo. Enfim, medo do
desconhecido. Por isso pedi a Lila que o levasse até as Florestas S agradas do norte,
onde irá resgatar o fabuloso item que perdi há tanto tempo.
Qual?
A minha foice, a poderosa Flama. D e posse da minha arma você será capaz de
superar qualquer desafio, e acredito que até mesmo rasgar o S elo Proibido. D evo
alertá-lo, entretanto, que Flama caiu no território da deusa da natureza, Laodicéia.
Não sei que perigos podem advir daquele lugar.
Flama... Nossa...!
D e posse dela você terá uma força poderosíssima em mãos, e é por isso mesmo
que deve ter cuidado. Poder tão grande assim o tornará capaz de muitos prodígios,
para o bem ou para o mal.
— Eu entendo, mãe. Terei cuidado, prometo.
Filho, preste atenção, é realmente importante! Você me conta isso agora porque
não está em posse de tal poder, mas sinto-me segura e triste em afirmar que
quando o obtiver, irá repensar o que disse. N ão deixe o poder seduzi-lo. Entendeu
bem? Muito cuidado! D eixo para discutir esse assunto mais tarde com você, pois
preciso lhe dar uma última notícia.
A deusa pegou na mão do filho, e o trouxe para perto do trono, deixando que se
sentasse ali. Ela mudou completamente de expressão, tornando-se séria, abatida, e
sombria. Vanhardt pressentia que a notícia seria terrível, e no final ela se revelou
muito pior do que ele supunha.
— A última coisa que tenho a dizer é a pior delas. N ão há uma maneira melhor
de contar isso, portanto serei direta: sua esposa, Selena, desapareceu.
Capítulo XXV - O Vazio, e o Amanhecer de um Novo Dia

A s palavras de Léia entraram pelos ouvidos de Vanhardt como um raio. Ele mal
conseguia movimentar um músculo da face. O raio, contudo, produziu uma espécie
de efeito retardado, e um minuto depois o jovem sentiu o barulho do trovão
ressoar em sua mente: Selena desaparecera!
Q uando se deu conta do que havia acontecido, o jovem guerreiro viu o mundo à
sua volta perder o pouco de foco que tinha e ficar escuro, além de começar a girar.
Ele notou também que Léia mexia a boca, mas não podia ouvir o que ela dizia. Uma
fisgada no abdômen fez com que voltasse os olhos para baixo, e percebesse que
havia um cordão de prata ligado ao seu umbigo. Esse cordão se estendia para além
dos limites de sua visão. Estaria ali o tempo todo e ele não notara? Mais uma vez a
fisgada, e de repente, Vanhardt estava sendo seqüestrado pelo cordão em altíssima
velocidade.
Ele saíra do castelo de cristal e cruzava os céus tão rápido que as montanhas e
os rios passavam como flashes sob ele. Era um vôo alucinante, e quando procurou
adivinhar para onde estava indo, viu a libélula gigante cerca de cem metros à
frente, com seu corpo humano deitado em cima dela. O cordão se ligava também
ao umbigo desse corpo. D e uma hora para outra ele foi puxado para dentro do
corpo, e o impacto levantou-o com um solavanco.
Lila!
O que foi? - a fada falava de dentro do seu bolso, rasgado, que a abrigava com
algum conforto.
N ão sei... Eu estava com minha mãe, daí tudo foi ficando escuro e girando.
Havia um cordão preso no meu umbigo, e ele me puxou até que alcancei eu
mesmo, que estava parado aqui! A h, não entendi nada... A cho que foi só um
sonho...
N ão, meu querido, você não sonhou. O que aconteceu foi o que chamamos de
"desdobramento astral", ou "viagem astral". Você simplesmente saiu do seu corpo,
e foi para onde quis. Seu corpo continuou onde estava, esperando que retornasse.
Que estranho, parecia um sonho, mas era muito real!
Foi real - acrescentou a fadinha.
Eu conversei com minha mãe. Ela contou que o artefato que buscamos é Flama,
a arma que usava quando era a deusa da morte. A conselhou-me a ter cuidado com
o poder dela. Depois, disse que Selena havia desaparecido... Será que é verdade?
Se Léia disse, então é verdade.
N ão acredito! N ão pode ser... Primeiro meu filho, raptado por aquela megera, e
agora minha esposa resolveu desaparecer... A posto que Hilda está envolvida nisso
também!
É, não sei dizer.
Vanhardt calou-se por um tempo. Era tudo muito pesado para ele. S entia um
vazio no peito, além de frio, muito frio. Podia não ser afetado pelo gelo ou pela
neve, mas este frio, que pulsava de dentro, castigava-o sem piedade. Estava só. O
peito foi ficando pequenino, apertado, como se uma mão gigante o esmagasse.
Lágrimas brotaram em seus olhos, e ele se esforçou para que elas não corressem.
N ão queria que Lila o visse chorar. N ão queria se sentir menor ainda do que se
encontrava no momento. Pensava que chorar demonstraria fraqueza, e precisava
ser forte. Porém a força que empurrava as lágrimas era maior do que a que as
continha, e elas logo encharcaram seu rosto.
A fada obviamente notou, entretanto não comentou nada. Provavelmente ele
ficaria zangado se ela o incomodasse com perguntas sobre o choro. E também, o
que ela perguntaria? J á sabia o motivo de sua tristeza. Lentamente, o sol foi
surgindo no horizonte, e o dia amanheceu preguiçoso. Horas depois, os dois
conversavam alegremente, como se nada tivesse acontecido.
A quele O swaldo é muito engraçado - disse Vanhardt. - Fica repetindo as
palavras, e parece um pouco estabanado.
Pode até ser estabanado, mas sua mãe confia muito nele. Ele nunca deixou de
cumprir à risca as ordens da deusa do gelo.
Sei... Eu achei que ele estava dando bola pra você, só não quis comentar nada.
Eu não tenho nenhum interesse naquele coelho! - a fada ficou séria de repente,
com as bochechas coradas.
Então por que você está vermelha assim? A h, já sei... J á tem outro
namoradinho, não é?
Lila ficou com o rosto mais corado ainda, parecida com um tomate. S e Vanhardt
a tocasse com os dedos notaria que estava até quente.
-— A minha vida pessoal em nada lhe deveria interessar, filho da deusa do gelo!
- a fada bufava, e parecia querer estrangular o rapaz. - E vamos mudar de assunto!
Está bem, se você insiste... - o rapaz deu um sorriso malicioso.
A fadinha respirou fundo antes de continuar:
S e olhar para baixo, poderá perceber que estamos sobrevoando a Floresta
Sagrada do norte. Mais um pouco e acionarei o instrumento de busca.
Qual instrumento de busca?
A ntes que Lila pudesse responder, a libélula estremeceu, e inesperadamente
sumiu. S em apoio para se sustentar, Vanhardt se viu caindo de uma altura de mais
de mil metros. N aquele ponto, ele já se acostumara a quedas abruptas de grandes
altitudes, e não se preocupou muito. Lila provavelmente faria alguma coisa. Mas
quando mirou o bolso, reparou assustado que a fada não se encontrava ali. O lhou
para baixo - as copas das árvores estavam a menos de cem metros, e se
aproximavam rapidamente. O que fazer, o que fazer? N ão havia tempo para
praticamente nada. D aí a poucos segundos ele atingiria com força as árvores. E
nem mesmo o filho de uma deusa suportaria o baque.
Capítulo XXVI - Duelo de Cavalheiros

O swaldo havia anunciado solenemente à deusa do gelo que um velho amigo


retornara de viagem, e necessitava vê-la. Léia não imaginava quem seria, e insistiu
com seu assistente.
D iga-me quem é, O swaldo! N ão suporto seu suspense com as notícias. A
continuar desse jeito, serei obrigada a despedi-lo.
N ão precisa, Vossa Magnificência. Perdoe meus tratos. D irei então. Q uem
deseja entrar no castelo de gelo é Zing, o deus dos insetos.
A deusa espantou-se bastante, como era de se supor, com a chegada desse deus.
Ela conhecia Zing há bastante tempo, desde que se tornara a deusa do gelo. S eu
castelo, uma colméia gigante, beirava a fronteira sul das terras do gelo. Ela e Zing
já realizaram incontáveis acordos, além de auxílios mútuos, e não seria errado dizer
que ele era o deus com qual ela apresentava maior intimidade. Tempos atrás, Léia
chegara bem perto de contar-lhe sobre seu passado, quando participavam de uma
festa no castelo do deus dos insetos - porém desistiu no último instante.
Há quanto tempo não se viam? A nos! Um certo dia, sem aviso prévio, Zing
sumiu de seu castelo com uma comitiva. Pelo menos foi isso que a assistente dele
informara. D esde então, ele nunca mais dera notícias. E justamente naquele dia
resolvera aparecer, também sem aviso prévio.
O h, maravilhosa dama, meus olhos se enchem de lágrimas ao rever tamanha
beleza e elegância após tantos anos. Como vai a minha velha amiga? - Zing entrou
no salão do trono com uma voz alegre e jovial. Ele muito pouco lembrava um ser
humano, parecendo-se mais com uma abelha. O s olhos eram grandes, redondos,
como um vitral dividido em milhares de pequenos losangos, e um par de antenas
pretas pendia do alto da cabeça. O tronco era listrado de preto e amarelo, com
alguns pêlos. A ndava sobre duas patas; enquanto dois braços carregavam um
buquê de rosas, outros dois estavam estendidos, como se procurassem um abraço.
D esapareceu e não deu notícias. A chei que havia morrido! Q ue tipo de amizade
é essa, em que mantemos segredos uns dos outros? - Léia permaneceu em seu
trono, de braços cruzados. O tom de voz era seco.
D esculpe-me, minha dama. É verdade, agi mal. - Zing depositou o buquê aos
pés de Léia, deu dois passos para trás e ajoelhou-se com uma das patas. O s outros
quatro braços procuravam inutilmente ações a executar. - Mas segredos todos nós
temos, não é mesmo? E é claro que não os revelamos totalmente. Um dia, no
entanto, terei coragem e contarei os meus. Por agora gostaria de saber as
novidades! Pelo que vi desde que entrei em sua sagrada morada, uma grande
batalha ocorreu, estou certo?
Sim. E onde estava o amigo quando precisei dele?
Minha dama, não imagina quanto me dói saber que passou por tamanhas
dificuldades e eu não estava aqui do seu lado, para oferecer meu incondicional
apoio, como sempre fiz. E me dói ainda mais pensar que poderia não encontrá-la,
fato pelo qual nunca me perdoaria. Porém, cheguei, e agora permanecerei! Vamos,
Léia, não fique acabrunhada comigo. Nos dávamos tão bem no passado...
D isse certo, no passado. As coisas mudaram. Precisei de Vossa D ivindade, Zing,
como nunca antes. Ghar invadiu meu castelo e...
Ghar? O deus dos gigantes? Como?
Eu havia firmado acordo com ele, pelo qual trocaria certa quantidade de energia
divina por gigantes. I nfelizmente o tratante me traiu, e voltou-se contra mim.
Encontrava-me naquele momento totalmente desprotegida.
O deus dos insetos passou um dos braços na cabeça, lamentando-se.
Léia, peça qualquer coisa e lhe darei. Q ualquer coisa. Estou nesse mesmo
instante contatando um contingente de gafanhotos-reis, e besouros gigantes, a fim
de proteger seu castelo contra qualquer ameaça. A gora entendo porque o castelo
de cristal não conta com o patrulhamento dos Grilliardus e lobos! E mais: juro, em
nome da verdade, que enquanto permanecer vivo não deixarei que nenhum outro
mal lhe aflija. Confia em minha palavra?
A deusa do gelo refletiu por uns momentos. Zing era honesto, e nunca traíra
sua confiança. E da mesma forma que ele guardava segredos, ela também o fazia.
A lém do mais, o fato dos dois se conhecerem há bastante tempo, sempre se
relacionando muitíssimo bem, somava forças para que ela não rompesse com tal
amizade.- Era verdade que Zing sempre fora extrovertido, adorava festas, jogos -
era o rei das palhaçadas -, mas isso não provava que ele não tinha o seu valor. E ela
se sentia tranqüila e distraída em sua presença, situação rara desde que se tornara
a deusa do gelo. Muitas vezes o próprio deus dos insetos dizia-lhe que o gelo era
apenas a aparência exterior - no fundo ardia uma chama que ninguém era capaz de
apagar. O pinião esta que não encontrava respaldo entre os outros deuses, que a
achavam fria por fora e por dentro. N ão havia motivos, afinal, para guardar mágoas
de Zing.
D esculpe-me, meu amigo, não tenho por que o condenar - ela sorriu
timidamente. - A credito em sua promessa, ouviu? E preciso de algo
imediatamente.
Diga logo, e sem temor.
Existe um outro deus, Taurok, que me ajudou muito nos últimos dias. Ele
parece digno de minha confiança. É muito fino, educado, de porte galante, além de
ser extremamente poderoso em combate. Preciso ter certeza de sua lealdade,
apesar de tudo. N ão posso deixar a minha vida e a daqueles que amo à mercê de
um charlatão. Vossa Divindade poderia investigá-lo para mim?
Taurok? O deus dos minotauros? Bem que eu percebi que não eram bois lá
fora... - resmungou baixo. - J á o conheço, e prometo um relatório completo o mais
rápido que puder. Enquanto isso, que tal se nós dois aproveitássemos para tomar
um vinho, ou quem sabe um néctar, e...
Zing se aproximara da deusa do gelo, e pegara uma das mãos dela, quando foi
surpreendido por uma outra visita.
Lamento, minha dama por entrar sem ser avisado, mas é que gostaria de fazer
uma surpresa e... Zing? - Taurok havia caminhado até o meio do salão, quando
parou assustado. Também carregava um buquê de rosas nos braços. - O que faz
aqui?
Eu é que pergunto; o que Vossa Divindade faz aqui? D e repente resolveu virar
amigo de Léia? Uma vez até havia me dito que temia a deusa do gelo, devido à
força dela - tornou Zing com olhar distraído.
Q uanta indiscrição, meu caro! D esculpe-me pelas palavras de Zing, minha
dama, ele não sabe as coisas que diz!
O intruso aqui é Vossa Divindade! E como ousa trazer um buquê para Léia?
N ão faço diferente do que o deus dos insetos já tenha feito! - sua voz saía mais
grave do que nunca, e ele apontou com os olhos o buquê que Zing deixara aos pés
de Léia.
Um momento, os dois! S em discussão em meu lar! - Léia se levantou, e colocou
as mãos na cintura. - Bem, agradeço a sua visita, Taurok, mas gostaria de ficar
sozinha por agora, pois preciso refletir sobre muitos assuntos.
Vê, Taurok, não disse que Vossa D ivindade era um intruso? - Zing falava com
um ar importante.
E também seria sensato que partisse, Zing. A gradeço da mesma forma a visita,
e se precisar de mais alguma coisa, não hesitarei em entrar em contato.
Os dois deuses se curvaram diante de Léia. Taurok deixou o buquê com a deusa,
tomou a sua mão, e beijou-lhe o dorso carinhosamente:
Estarei em meu castelo, de prontidão. Q ualquer problema Vossa D ivindade
sabe o que fazer! Mantenho a minha palavra de protegê-la a qualquer custo. S e
precisar, envio todos meus irmãos para cá, que chegarão num estalar de dedos.
Está certa de que não quer mais minotauros ajudando na defesa do castelo?
N ão, Taurok, já fizera muito por mim, e vai contra minha natureza abusar de
qualquer um. Por favor, não insista. Sou eu quem deve uma retribuição.
O seu sorriso já é retribuição suficiente...
Zing, utilizando a parte de seu corpo mais avantajada, deu uma bundada de
lado em Taurok, tirando-o da frente da deusa do gelo. D essa vez foi ele quem
tomou as mãos da deusa e aplicou-lhe um beijo.
D eleito-me com um imenso prazer por revê-la, minha velha amiga. N osso trato
fica de pé. E aproveito para convidá-la a tomar um néctar comigo na grande
colméia, para relembrarmos os velhos tempos. O que acha?
Acho uma boa idéia. Combinaremos isso numa hora mais oportuna.
O deus dos insetos voltou a acariciar a mão da deusa, e a se aproximar dela,
quando foi puxado por Taurok.
Vamos embora, Zing, não ouviu Léia dizer que quer ficar a sós para refletir
sobre importantes assuntos?
O deus dos minotauros continuou puxando Zing até a saída, só soltando-o lá.
Ele despediu-se de Léia com um aceno de cabeça, e deixou o salão do trono. O deus
dos insetos aprumou o corpo, deu uma piscadela para Léia, e também saiu do
salão.
Q uem pensa que é, se intrometendo em meus assuntos com Léia? - Zing
apontava furioso para Taurok, quando os dois deixaram o castelo de cristal.
E o caro amigo, quem pensa que é me insultando na frente da deusa do gelo?
Eu não disse nada além da verdade! Esqueceu-se de quando me revelou aquilo
durante a festa das coníferas?
S im, mas não precisava ter dito a ela! Talvez Léia pense mal de mim agora...
Conhece-me perfeitamente, Zing, sou tímido, muito diferente de Vossa D ivindade
que é mais comunicativo, sociável. Só agora consegui me aproximar de Léia!
N ão tenho culpa de que Vossa D ivindade seja assim. N o entanto, concordo, eu
não precisava ter dito aquilo, me desculpe. A penas saiba que não deixarei que
corteje a deusa do gelo tão livremente. Estou há anos investindo nela, e seria
burrice permitir que alguém aparecesse e atrapalhasse tudo!
- Pois também digo que não abrirei mão sem antes lutar - Taurok mostrava um
olhar confiante.
- Q ue assim seja, amigo. Proponho uma disputa limpa, pelo afeto exclusivo da
deusa do gelo. Que vença o melhor?
- Q ue vença o melhor! - Taurok apertou firmemente uma das quatro mãos que
Zing mantinha estendidas.
Capítulo XXVII - A Seta Aponta o Caminho

S em tempo para elaborar idéias, Vanhardt apenas fechou os olhos e se


concentrou. O que aconteceu dali em diante foi automático, como se alguém
comandasse seus movimentos. N as mãos, surgira uma lança de gelo, semelhante
aquela utilizada para matar o Crivmarion. D epois de algumas cambalhotas, suas
costas bateram em alguma coisa dura - o galho de uma árvore - machucando-o, e
fazendo-o rodopiar ainda mais. Ele apertou a lança com a mão direita e cravou-a no
tronco da árvore ao seu lado. Continuou caindo, mas pelo menos deixou de
rodopiar e a velocidade diminuía à medida que a arma improvisada rasgava o
corpo do vegetal. S egundos depois, ele parou completamente, a menos de um
metro do chão. S oltou a lança, e permitiu que seus pés tocassem o solo, onde
permaneceu um tempo com a respiração ofegante, aliviado.
Q uase morrera! Q uase! Como é que a fada deixara a libélula desaparecer dessa
maneira? E, além disso, ela própria não estava lá quando ele já ia se espatifar.
A pesar de completamente furioso com o que acontecera, uma pontinha de alívio
surgia em seu coração. Ele havia escapado da morte certa. Passou a mão sobre cada
pedaço do corpo, para se certificar de que não havia nenhum machucado. Exceto
uma dor nas costas do lado direito, logo abaixo do ombro, onde o galho da árvore o
atingira, não apresentava outras escoriações.
A floresta ao redor era cerrada, e poucos fachos de luz ousavam penetrar pelas
copas das árvores. Estas eram gigantescas, com mais de trinta metros, como se
crescessem para disputar quem ficaria mais perto do sol, e seus troncos também
eram grossos, com galhos saindo perpendicularmente em intervalos regulares. N o
chão uma gramínea bem curta; musgos cresciam em troncos caídos, e samambaias
aos pés das árvores. O cheiro da folhagem misturado ao das flores invadia as
narinas de Vanhardt, que nunca sentira semelhante perfume. A s plantas se
encontravam bem juntinhas umas das outras, e o relevo era acidentado,
diferentemente das terras do gelo, onde predominava uma superfície mais ou
menos plana. Mesmo estranhando o lugar, o jovem sentiu-se bem. Era
infinitamente mais agradável do que o ambiente opressor do castelo de Hilda.
—Vanhardt, você viu, o efeito do pó da pedra de crescimento rápido acabou de
uma hora pra outra! - Lila surgira detrás de um amontoado de arbustos, com os
olhos saltados de susto.
A D I VI N HA ? EU VI ! E Q UA S E MO RRI PO R CA US A D I S S O ! - o jovem gri
escandalosamente, enquanto balançava os braços para todos os lados. - S UA
I N CO MPETEN TE, N ÃO S A BI A Q UA N D O O EFEI TO A CA BA RI A ? EU J Á
PREPARAVA ESPATIFAR TODO SE NÃO...
CA LA A BO CA A A A A A A A A A aaaaaaaaaaaaaaa!!! - dessa vez a fada abriu o
berreiro, e seu rosto tomou uma cor roxo-azulada depois de perder o fôlego. A pós
várias inspirações roucas, a cor voltou ao normal, e ela pôde tornar a falar. - Ufa...
Credo, cansei mesmo. Pra quê tanto alvoroço? Quer acordar a floresta inteira?
Eu não estou preocupado em acordar a floresta, e sim em brigar com você pra
impedi-la de cometer uma burrice dessas novamente!
Se continuar me ofendendo vou abandoná-lo agora mesmo, mocinho!
Vanhardt nunca ouvira tom mais sério de Lila. - N ão me ouviu quando eu disse
que o efeito acabou "de uma hora pra outra"? Burro é você! I gnorante! Estúpido!
Boca suja!
Agora é você que está me ofendendo!
É óbvio, pois não me escuta! Humpf! - Lila cruzou os braços, com a testa
franzida e os lábios contraídos em uma expressão de desagrado. - O lha, como dizia
anteriormente, eu não imaginava que isso pudesse acontecer. N a verdade, pelo que
sua mãe dissera, o efeito só acabaria em mais dois dias. D ois dias! O u seja, não
havia como prever que a libélula diminuiria de tamanho logo agora. I magino que o
fato de entrarmos no território de Laodicéia, a deusa da natureza, possa estar
relacionado.
Hum... - o rapaz, um pouco mais calmo, coçou o pescoço, pensativo.
É mesmo, pode ser, só que não é lá uma explicação tão boa. Por exemplo, se o
simples fato de entrarmos no território dessa Laodicéia aí interferisse em nossas
magias, eu não teria conseguido conjurar a lança de gelo tão bem. E ela funcionou
perfeitamente, veja só - ele apontou para a lança que permanecia atravessada no
tronco da árvore. - Continua lá! Intacta!
Está certo. S ó que você se esqueceu de mencionar que era o pó que continha o
feitiço, o que é muito diferente de uma pessoa executar uma magia. Talvez você
não sofra interferência ao utilizar uma magia, mas feitiços que possam estar
gravados em itens sofram. Eu não creio, porém, que essa seja a melhor explicação...
E qual seria? - Vanhardt perguntou distraidamente, enquanto, com um pé
apoiado no tronco, tentava retirar a lança da árvore aos solavancos.
Q uer largar isso aí? - apontou a fada para a arma de gelo, e o jovem obedeceu. -
Bem, continuando, acho que o que mais pesou foi o fato da magia estar conjurada
sobre um animal. S e me lembro bem, as terras de Laodicéia são protegidas para
que nenhum feitiço possa ser lançado sobre animais ou plantas. I sso quer dizer
que aquele seu truque de controlar animais pequenos provavelmente não
funcionará aqui!
Entendi. Q uando acharmos um bichinho vou experimentar. Mas voltando ao
nosso propósito inicial; como saberemos onde encontrar a foice de minha mãe? S e
me recordo bem, você havia dito algo sobre um instrumento de busca...
S im, é verdade! Lembra-se daquela pétala da flor em que eu nasci, e que lhe
entreguei?
Lembro.
Pegue-a.
O rapaz revistou os bolsos do corselete de couro, e não encontrou nada. Era
óbvio, estavam furados - a pétala sem dúvidas caíra em algum momento. Era mais
difícil achar partes inteiras do que buracos na roupa. D epois se lembrou de
procurar na calça, e, contra todas as expectativas, achou-a em um bolso traseiro,
que sobreviveu incólume.
Ei, Lila, está aqui. Q ue sorte, achei que havíamos perdido - disse, entregando a
pétala para a fada. - A liás, estou precisando de umas roupas novas. Essas daqui
estão num estado deplorável! E botas também...
Mais tarde olharemos essas roupas. Por enquanto, preste atenção.
Com a pétala presa em ambas as mãos, Lila colheu uma gota de orvalho que
escorria das folhas de uma bela orquídea. Ela voou para cima de um tronco caído,
partido ao meio, onde incidia um facho grosso de luz solar. Extremamente
cuidadosa, repousou a pétala sobre o tronco, permitindo que o facho de luz a
cobrisse completamente. D epois retirou um fio dos seus cabelos verdes, e deixou
cair dentro do líquido.
Vanhardt aproximou-se para ver melhor o que estava acontecendo. A pétala
chacoalhava, e o líquido borbulhava, como se fervesse. Ele foi mudando de cor,
passando de transparente para vermelho-arroxeado, em seguida para um azul
claro, e, enfim, cristalino. A pétala tomou uma forma arredondada e endurecida, e
o fio de cabelo engrossou e se afunilou, surgindo uma ponta numa extremidade e
uma base mais grossa noutra. Passados alguns segundos, a pétala parou de
balançar, e Lila ergueu o instrumento com expressão de triunfo:
Pronto! Nosso instrumento de busca está pronto! Chama-se "bússola".
Bússola. Legal. Explica como funciona.
Está vendo essa seta aqui, ó? Ela desliza sobre esse líquido, e aponta para onde
a foice está. É só seguirmos para o local que a seta aponta e encontraremos a arma
de sua mãe. Desculpa a falta de modéstia, mas eu sou esperta, não sou?
É, muito esperta - disse o jovem com voz aborrecida. - E não corre o risco desse
líquido evaporar, ou escorrer, e daí perdermos a bússola?
Claro que não! N a superfície há uma camada de cristal! - Lila deu três
pancadinhas sobre a parte de cima da bússola, emitindo o tilintar característico. -
N ão há risco nenhum. Bem, a seta aponta pra sudeste. Então é nessa direção que
nós vamos.
Para sudeste!
A caminhada foi milhares de vezes mais difícil do que o jovem supunha. A
mata fechada e o relevo acidentado atrapalhavam muito a movimentação, e horas
depois eles haviam percorrido não mais do que três quilômetros. O estômago de
Vanhardt passou a resmungar em alto e bom som, sinal que a fome lhe assaltava.
Ele pediu para Lila conjurar a magia da bolha azul, mas ela disse que se a fizesse, aí
sim eles não sairiam do lugar - a bolha dificultaria ainda mais a caminhada pois
esbarraria em todos os galhos, troncos e pedras. D esanimado, e sem pensar em
outra coisa a não ser comida, o jovem seguiu adiante. O lhava cada buraco das
árvores, embaixo de troncos, sobre os galhos, e o que achou mais parecido com
comida foi uma planta pequena, com cheiro doce que lembrava o de frutas. D eu
duas mordidas, e desistiu de tentar comê-la, depois de contorcer o rosto com
caretas horríveis.
Eu não acredito, uma floresta desse tamanho e nem uma fruta, quanto mais um
mísero animalzinho! Só pode ser brincadeira! Meu estômago vai se auto-digerir.
Minha deusa, você só pensa em comida? Relaxa, daqui a pouco encontramos
alguma coisa.
Você fala isso porque não precisa se alimentar, e nem passou uma temporada
no castelo de Hilda esgotando as reservas de energia.
O lha, já está anoitecendo, é melhor acamparmos debaixo dessa árvore. Parece
ser um bom lugar. Amanhã cedo procuraremos algo para você comer.
Eu acho uma ótima idéia. Se a fome me deixar dormir, é claro.
D epois de amassar algumas folhas, Vanhardt jogou-as no chão e deitou em
cima. Lila voou até um galho a três metros de altura, e se acomodou. Como à noite
sua visão não lhe era muito útil, fechou os olhos, para se concentrar em algum
barulho suspeito. Pouco tempo depois, notava apenas o sonoro ronco do filho da
deusa do gelo.
O s primeiros raios de sol da manhã seguinte acariciaram o rosto de Vanhardt, e
ele se levantou. Espreguiçou-se longamente, olhou para os lados, coçou a barriga, e
esfregou os olhos. A pós cumprir o ritual de acordar, procurou a fadinha,
encontrando-a no mesmo lugar onde ela se acomodara.
Vamos lá, Lila. Estou pronto para a minha primeira refeição matinal...! - a voz
saía preguiçosa, e o rapaz demorou quase um minuto para terminar a frase.
Certo, esfomeado. S ó me passe a bússola antes. Q uero verificar em que direção
ela aponta, para não seguirmos em rumo errado.
Ela está com você, filhinha.
Não está!
Ela estava com você o tempo todo!
Mas eu te entreguei antes de você deitar, se esqueceu?
Xi, é mesmo. Então ela deve estar jogada aqui.
D epois de procurar por vários minutos, uma pontada de angústia se abateu
sobre a dupla. A bússola parecia não estar em lugar algum.
Seu irresponsável, por que não a guardou?
Eu guardei, coloquei-a do meu lado. N ão tinha como sumir, só se... Ei, Lila, veja
só isso!
A fada olhou atentamente para o chão, onde Vanhardt apontava. Pares de
pegadas pequenas e misteriosas se espalhavam no solo ali perto, e seguiam até o
interior da floresta.
Capítulo XXVIII - Green

S ão pegadas! A lguém esteve aqui! N ão é possível... Q uem? - Vanhardt


balançava a cabeça, transtornado.
É uma ótima pergunta. N ão ouvi barulho nenhum, muito menos vi coisa
alguma. S eja lá o que for é menor do que um ser humano. J ulgando pelo tamanho
do pé, ele deve atingir no máximo a sua cintura, Vanhardt. A lém do mais, o
posicionamento dessas marcas indica que a criatura veio do interior da floresta,
mas não mostram para onde ela foi depois.
Você não ouviu nada? Então, só pode ter usado alguma magia! E por que a
criatura não nos matou?
É uma segunda ótima pergunta. S em idéias! E teria sido muito fácil, porque ela
roubou a bússola que estava bem debaixo do seu nariz. Pelo menos deveria estar,
né?
N ão começa! Q uem mandou me entregar a bússola? A gora não reclama. A i... - a
barriga do rapaz mugia como uma vaca. - Estou com muita fome. Eu comeria um
Acabonte inteiro!
— N ós já acharemos algo para comer, não se preocupe. Por enquanto vamos
seguir nessa direção, que é de onde a criatura veio - ela apontou para o meio da
mata. - Podemos dar sorte e encontrá-la.
E quem disse que é você a responsável por decidir o caminho que nós devemos
tomar?
N inguém. S ó achei que, como o cérebro mais inteligente da dupla, caberia a
mim tal decisão.
Pois não foi esse cérebro que nos livrou da armadilha do Kuengui - o jovem
sorriu triunfante.
Então tá, sabidão, para onde devemos ir?
Vamos seguir por aqui, de onde o ladrão veio. Podemos dar sorte e encontrá-lo.
Humpf, foi o que eu disse! - tornou a fada, indignada.
Não reclama.
Uma floresta como aquela não era tão diferente de um labirinto. A paisagem
praticamente não mudava, e a sensação de que já estivera em determinado lugar
anteriormente não abandonava Vanhardt. Essa impressão de que andavam em
círculos atormentou o jovem por quase uma hora. A fome se tornara insuportável,
e como as gotas de orvalho que ele conseguia tomar eram minguadas, a sede
também passou a assediá-lo. Foi assim que viu, depois de mais uma hora de
tortura, uma pequena trilha de cogumelos vermelhos com pintas amarelas do
tamanho de polegares.
Lila, são cogumelos! Pessoas comem cogumelos em outras culturas, sabia? E
esses parecem deliciosos - comentou o jovem, passando a mão sobre a barriga e
lambendo os beiços.
N ão sei se é uma boa idéia. Minhas memórias não gravaram muita coisa sobre
cogumelos, mas algo me diz para tomar cuidado. S ó acho engraçado você dizer que
eles parecem deliciosos só de vê-los.
Você se preocupa demais. A lém disso, eu tomaria cuidado se não estivesse com
tanta fome. - Vanhardt terminou a frase e avançou sobre os cogumelos, devorando
dez deles em menos de um minuto. Com a boca ainda cheia, ele continuou - N ão
são ruins. E também não parecem fazer mal. Pena que eram tão poucos... Espere, lá
na frente tem mais. Venha!
A fome de Vanhardt fez mais vítimas fúngicas, e, seguindo adiante, ele avistou
mais meia dúzia dos cogumelos. Q uanto mais comia mais se sentia faminto, e só aí
se deu conta de há quanto tempo não se alimentava. A o atingir o quarto
agrupamento de cogumelos, o jovem repentinamente parou de mastigar. S eus
olhos estavam estáticos, paralisados com a fantástica visão que os atingia.
Minha mãe... o que é isso?
Era um cogumelo imenso, do tamanho de um prédio de três andares. Uma
versão ampliada dos pequeninos fungos que Vanhardt comera; exibia chapéu em
forma de cone, e era vermelho, com grandes pintas amarelas. O que mais chamava
a atenção, entretanto, era o fato de apresentar uma porta na altura do chão e duas
janelas logo acima delas, além de uma chaminé no teto.
Parece uma casa - comentou a fadinha também maravilhada com o que via. -
Está saindo fumaça daquela chaminé. Deve haver alguém morando aí.
Ótimo, podemos pedir comida e ajuda para pegar o ladrãozinho - Vanhardt
bateu as mãos umas nas outras, depois esfregou-as satisfeito.
É claro que não! N ão reparou no tamanho daquela porta? É pequenina,
possivelmente da altura de uma criatura com metade da sua. O u seja, essa é a casa
do ladrãozinho.
N ossa, não havia pensado nisso. N ão faz mal, então entraremos lá e
acabaremos com a raça desse infeliz que ousou nos roubar.
S em que a fada conseguisse impedi-lo, Vanhardt entrou no cogumelo gigante
arrebentando a porta com um chute. A sala era circular, com uma mesa de madeira
no centro, e tamboretes em miniatura embaixo dela. Havia um forno de pedra ao
fundo, mais à esquerda, aceso. Uma travessa cheia, com um alimento não
identificado, estava enfiada dentro do forno. Mais à direita um armário apresentava
inúmeros utensílios de cozinha, pratos, xícaras, talheres, pires, jarros e canecas,
também de tamanho menor. Uma escada subia rente à parede para um segundo
pavimento.
Você adora entrar com esses chutes que arrebentam a porta, não é, exibido?
É, sim. N ão vê como são práticos? S e o bandido estivesse atrás da porta estaria
nocauteado! - respondeu o rapaz enquanto caminhava para o forno, de onde puxou
uma travessa de metal. - Ei, cogumelos assados! E estão com um cheiro ótimo. N ão
disse que era pra comer, Lila?
A inda não estou totalmente segura - a fadinha retrucou numa voz baixa, quase
um sussurro. - N ós não viemos aqui para pegar o ladrão? Vai ficar lanchando
enquanto ele pode estar ali em cima tramando alguma coisa?
S e eu dependesse de você morreria de fome - ele jogou dois dos cogumelos
assados para dentro da boca, e engoliu-os sem mastigar, nem se preocupando em
falar baixo. - Vá olhando no andar de cima e me avise se encontrar alguém lá. D aí
eu subo e acabo com ele.
Humpf! - a fada voou para o andar de cima com a cara amarrada. - Q uem ele
pensa que é me tratando desse jeito? Pareço uma empregada. S ó por ele ser filho
de Léia... Eu não aceitarei esse tipo de desaforo.
A pós ter comido todos os cogumelos assados, Vanhardt passou para a mesa,
onde havia uma jarra com um líquido de cor marrom. Ele abaixou e cheirou o
conteúdo. Certificando-se de que não parecia ser nada podre, bebeu na própria
jarra em grandes goles. Em seguida foi para o armário que guardava os utensílios
de cozinha, e passou a revirar tudo em busca de algo para aplacar a insaciável
fome. Enquanto jogava uma bacia de metal para trás, escutou uma risada no andar
de cima, que obviamente não era de Lila. Preparou-se para correr atrás da amiga,
mas parou ao pé das escadas quando viu descer uma criatura engraçada, trazendo
nas costas uma rede de cipó com a fada dentro.
Revelava pouco mais de um metro de altura, a pele verde, e vestia roupas
amarelas e puídas. A cabeça era chata e larga; as orelhas grandes, pontudas e
caídas. Bem redondos e expressivos, os olhos não se decidiam entre o azul e o
cinza. N o meio do rosto um nariz chato, largo, e embaixo uma boca pequena, com
lábios num tom de verde mais escuro. Um fato curioso era o anel de metal que
prendia o pescoço, ligado a uma correntinha que terminava em outro anel do
mesmo tamanho, que ficava balançando frente ao peito. Eram como algemas, mas
se encontravam num lugar incomum do corpo. A voz que saía da sua boca era
aguda, uma mistura de gemido e grito, suficientemente irritante.
Peguei essa fadinha estúpida! Hem, hem, hem! - a risada era mais insuportável
que a de Hilda ou Kuengui. - E você, jovenzinho, pronto para me entregar outros
itens fabulosos parecidos com aquele que continha uma seta dentro?
Estou pronto é pra quebrar essa sua cara feia! Quer ver só?
Espere! Hem, hem, hem! A ntes que faça alguma coisa, deixe-me olhar uma
coisinha - ignorando Vanhardt, que mantinha as mãos levantadas, prontas para dar
um soco, a criatura olhou para o lado na direção do forno. D epois esboçou um
sorriso satisfeito. - Muito bem, idiota! Comeu todos meus cogumelos, e nem notou
que aos poucos foi ficando com mais fome ainda?
Erguendo uma das pálpebras Vanhardt lembrou-se de que o fato de comer os
cogumelos só fizera a fome aumentar.
-— É muito idiota... Veio comendo cogumelos pelo caminho, e ainda os que eu
preparei aqui especialmente para você. Não sabe o que eles têm de tão especial?
Eu avisei pra tomar cuidado com os cogumelos! - gritou a fadinha de dentro da
rede, ao mesmo tempo em que balançava os nós numa tentativa inútil de rompê-
los. Vanhardt se perguntou por que ela não fazia uma magia para se soltar.
A gora não adianta chorar o leite derramado. O s cogumelos que você devorou
sem piedade... Estavam envenenados! Envenenados! E a quantidade que ingeriu é
capaz de matar até mesmo um elefante. S e houvesse uma cura eu até lhe
ofereceria, mas infelizmente ela não existe. Q ue pena, vai morrer em menos de um
minuto! A ntes que isso aconteça, saiba o nome daquele que te levou para o outro
mundo. S ou o incrível, o fantástico, o estupendo, o maravilhoso, o
insuperável...Green! - a criatura colocou a mão direita respeitosamente sobre o
peito, e ergueu a cabeça.
O jovem segurou o estômago, como se ele fosse saltar, e caiu no chão. Como
fora estúpido de cair em armadilha tão tola?
Capítulo XXIX - O Terrível Efeito dos Cogumelos Venenosos

A pós deixar a rede que guardava a fada presa aos pés de uma cadeira, Green
caminhou com passos curtinhos até Vanhardt, e revistou os seus bolsos.
N ão fique triste, amigo humano. Você não foi a minha primeira vítima, e não
será a última. O poderoso e esperto Green aqui é...hum... "genial" talvez seja o
melhor adjetivo! O s homens não entendem que o fato desses cogumelos serem tão
vistosos, coloridos, bonitos, é na verdade um sinal da natureza que significa algo
do tipo: cuidado comigo! Não me coma! E vocês fazem exatamente o contrário, há!
O jovem rolava no chão, dificultando o trabalho de revista que Green executava
pacientemente. S ua barriga doía muito, e a cabeça estava zonza. Veneno para
matar um elefante!
Essa fada é sua, não é? S orte que ninguém consegue utilizar magia sobre as
plantas no reino de Laodicéia, de modo que sua amiga não conseguirá se libertar.
Caso contrário seria muito perigosa! Pois é, eu sei, fadas fazem magias. S ó que eu
sou mais esperto! O grande Green nunca será derrotado por tolos que invadem sua
casa e se acham o máximo - a criatura não parava de falar, com a voz que ficava
mais irritante a cada segundo.
Vanhardt, seu molenga, o que você está fazendo rolando nesse chão como
maluco? - inquiriu a fada, zangada.
Eu fui envenenado... - ele fazia um grande esforço para responder. - Vou
morrer... Lila... Minha esposa, meu filho... Eles...
S ua besta, se esqueceu de quem é filho? Como seria envenenado? É impossível
te envenenar.
Como assim? - Green e Vanhardt perguntaram ao mesmo tempo, enquanto esse
último se levantava de sobressalto como se nada tivesse acontecido.
É exatamente o que eu disse! Você não pode ser envenenado! S ó não sei o que
estava fazendo rolando no chão como um idiota.
Green olhou assustado para Vanhardt, que se restabelecera de um
envenenamento que certamente o levaria à morte em menos de um segundo. Ele
pegou a criatura verde com ambas as mãos e ergueu-a no alto, deu dois giros e
atirou-a contra a parede. Em seguida correu até ele e segurou-o pela argola da
algema que balançava na altura do peito.
Então você queria me envenenar! Q ue azar, pegou justamente o filho de uma
deusa pra fazer isso - o rapaz exibia a mão fechada, pronta para esmurrar o duende.
É, e parecia que você iria morrer mesmo! - Green não estava tão seguro de si
como há minutos atrás.
Bem, é que... hum... fui influenciado pelo que você disse. Melhor, fui
sugestionado.
Um filho de uma deusa facilmente sugestionado?
Cala a boca! Eu estou morto? N ão! Então mais respeito. Vou perguntar apenas
uma vez: onde está a bússola?
Hum, aquilo se chama bússola. Legal! - repentinamente Green não se mostrava
mais assustado. - Se eu disser a você, irá me matar. Para quê eu faria isso?
O lá, ainda estou presaaaaa! A lguém poderia me ajudar? - Lila se sentara no
chão, de pernas cruzadas, e batia aborrecida a mão na bochecha.
Você irá me dizer porque do contrário irei te matar! - tornou Vanhardt
ignorando os apelos da fada.
E o que estou te falando? Não te digo, pois se o fizer morrerei.
Mas se não disser irá morrer também.
Então, pra quê falar? Melhor ficar calado, que pelo menos você fica sem o
instrumento. Aliás, pra que serve?
O rosto de Vanhardt ardia em fúria. Ele não era bom em negociações.
Principalmente negociações confusas. S abia intimidar, isso sim, o que obviamente
não adiantava com Green.
Ok, criatura verde, o que posso dar em troca da bússola?
Eu não sou criatura verde. S ou um duende, ouviu bem? D -U-E-N -D -E! E tem
sorte por eu não transformá-lo em uma ameba. A lguns duendes sabem fazer
magias.
Eu ainda estou aquiiiiiiii! Oiiiiii! - Lila insistia de dentro da rede.
Duende, que seja, o que faço pra obter a bússola? - continuou Vanhardt.
Prometa não me matar.
Ok, prometo. E agora, onde ela está?
Prometa que não irá me matar nunca!
Está certo! Prometo!
E nem irá causar qualquer dano físico à minha pessoa. N em mental. O u
qualquer tipo de dano que...
TÁ BO M, S EU CHATO ! EU PRO METO ! EU PRO METO , O UVI U? A GO
ONDE ESTÁ A BÚSSOLA?
A palavra do filho de uma deusa deve valer alguma coisa, não é? Está aqui no
meu bolso. Tome.
Vanhardt puxou o objeto da mão do duende com força, e soltou o pequenino.
D epois tirou a amiga fada de dentro da rede, que se limpou resmungando. A ntes
de sair pela porta, o jovem apontou para Green.
Tente alguma gracinha e quebrarei minha promessa, e a sua cabeça no
processo.
J á entendi... - Green ajeitou a roupa, e acrescentou: - Também nem me importo
com vocês, porque inevitavelmente irão morrer nessa floresta.
Como assim? - Vanhardt parou de supetão antes de sair pela porta, fazendo Lila
trombar com suas costas.
Vocês irão morrer inevitavelmente. N ão conhece essa palavra? I -n-e-v-i-t-a-v-e-l-
m-e-n-t-e. Quer dizer que não importa o que façam, irão...
EU S EI O Q UE Q UER D I ZER INEVITAVELMENTE. N ossa, que cara chato.
Quero que me diga por que iremos morrer.
Por causa deles - o tom de Green era misterioso.
O filho da deusa do gelo, curioso, desistiu de deixar o cogumelo gigante
precipitadamente, desejando ouvir o que mais o duende tinha a dizer. A fada
pousou no seu ombro e se espreguiçou, bocejando logo em seguida.
Eles? Eles são perigosos?
Como chegou até aqui e nunca ouviu falar deles? É mais burro do que eu
imaginava.
Repita isso e eu vou te mostrar a burra da minha mão indo direto nesse seu
nariz.
Calma, eu digo. Também estou louco para vocês irem embora de uma vez. Eles
são habitantes dessa floresta. D iscípulos de Laodicéia, que vivem aqui há milhares
de anos. Muito perigosos, já mataram até alguns deuses menores que apareceram
por aqui. S ão extremamente cruéis, e não poupam nenhum dos seus inimigos.
N em o filho de uma deusa seria capaz de enfrentar todos eles, principalmente
porque eles têm ao seu lado a Guardiã da floresta.
É verdade, Van. Parece que existe um povo nessa floresta que poderia nos
causar problemas. O verdinho aí me lembrou disso agora.
Verdinho é sua bisavó! É claro que eu, o incrível Green, não morri porque
conheço esse território como a palma da minha mão. N o entanto vocês dois serão
presa fácil. Estarei morrendo de rir quando escutar seus gritos de pavor, hem, hem,
hem!
Lila, tive uma ótima idéia! Green nos guiará pela floresta, daí poderemos evitar
um encontro com eles. Certo Green?
O quê? - o duende pulou para trás com o susto.
E isso mesmo. Como conhece as redondezas seria o melhor guia para nós. Faça
isso ou te obrigo engolir um desses cogumelos.
Mas você prometeu não fazer nada!
É verdade. D roga! Então... a Lila é quem fará isso. Ela não prometeu nada -
Vanhardt emendou um sorriso.
Horas mais tarde, o trio abria caminho pela floresta. Green pegou vários
suprimentos e colocou numa mochila que agora carregava nas costas. Caminhava
emburrado, reclamando enquanto afastava arbustos da frente. Vanhardt seguia no
seu encalço, certificando-se de que o duende não se afastasse muito e tentasse
fugir. I a comendo um biscoito que Green cozinhara, limpando os farelos que
grudavam no canto da boca com os dedos.
Até que cozinha bem, verdinho! Esses biscoitos estão... Divinos!
Traidores! Vocês me enganaram! Eu devia é deixar os dois sozinhos à mercê
deles, e voltar pra minha casinha!
—- Tente isso e Lila enfia um dos cogumelos bem grandes nessa sua boca que
não pára de falar. Fecha a matraca e anda!
Green não era um guia muito bom. I a para um lado, depois desistia e seguia
por outro, para minutos mais tarde voltar pelo primeiro caminho. Vanhardt
conferia a bússola para não se desviarem muito do rumo. Q uando estavam longe
da rota ele cutucava Green, obrigando-o a ir por um caminho melhor. Lila se
ocupava em voar sobre a dupla, e observar um pouco mais à frente, para enxergar
possíveis inimigos. Em determinado momento ela desceu, e ficou na altura da
orelha de Vanhardt.
Você confia nesse duende aí? Ele tentou nos matar há pouco tempo, e agora é
nosso guia, Não acha isso perigoso?
Pode até ser, Lila, - sussurrou o jovem de volta - mas não creio que ele nos
levará ao encontro deles. Se fizesse isso, seria uma vítima como nós dois. Concorda?
N ão acredito que nos levará até eles, e sim até uma armadilha escondida em
algum lugar.
A o contrário de Lila, Vanhardt não achava que Green guardasse alguma
armadilha escondida na floresta, porque ele nem parecia saber direito onde estava
indo. Ele aproveitou para dizer ao duende:
E não se esqueça de que se comentar com alguém que sou filho de uma deusa,
Lila coloca um dos cogumelos na sua boca.
Eu já entendi! Eu já entendi! Q ue saco vocês, me ameaçando de morte a cada
minuto. S ó se eu fosse muito burro, característica que vocês estão cansados de
perceber que não possuo. Além do mais...
A frase de Green foi interrompida por um silvo breve, e em seguida Vanhardt
viu o duende cair estatelado ao chão. Logo foi a sua vez de sentir algo lhe passando
uma rasteira, e ele beijar o solo. Rolou e olhou para cima: Lila foi embrulhada por
uma rede que voou ao seu encontro. Tentou se levantar, mas acabou impedido por
um pé que manteve seu tronco junto ao chão. Vanhardt, finalmente, sentiu uma
dor muito forte no topo do crânio, e tudo ficou escuro.
Capítulo XXX - Investigações Secretas

Zing ria com vontade, enquanto erguia bem alto a taça cheia do néctar mais
puro que sua colméia era capaz de produzir. Léia sentava-se à sua frente, numa
cadeira de cera. Ela também degustava o néctar servido pelo anfitrião, com
delicado sorriso. A sala de visitas da colméia gigante não era tão majestosa quanto
o seu salão de festas, mesmo assim estava muito bem decorada. J anelas ovais
circundavam a sala, por onde a luz do sol penetrava através de vitrais
multicoloridos. Um tapete amarelo, bordado por aranhas, ficava ao centro, e uma
harpa prateada adormecia num canto. Léia e Zing se sentavam próximos a essa
harpa e conversavam alegremente. A deusa do gelo ficou séria e muda
repentinamente, e Zing se adiantou, adivinhando o que ela pensava.
Minha dama, imagino o que deseja saber - ele se levantou e puxou a cadeira
para o lado de Léia, voltando a se sentar. - S ei que o motivo pelo qual veio aqui não
foi simplesmente ouvir minhas velhas piadas, nem minhas poesias ridículas e
inúteis!
Não acho suas poesias ridículas ou inúteis! - retrucou a deusa, contrariada.
É uma verdadeira dama por dizer essa graciosidade. Bem, não irei insistir no
quanto sou ruim, seria grosseria de minha parte. Q uanto a Taurok, que é o assunto
de principal interesse, confesso que já o conhecia anteriormente. Posso dizer que
até mantínhamos algum contato, devido aos torneios e outros eventos nos quais
participamos juntos, e ele sempre me pareceu respeitável. S ó que essa minha
impressão não bastaria para ter certeza de suas intenções, seu caráter, então
utilizei todos os recursos disponíveis e investiguei a vida do deus dos minotauros.
Retirando o eufemismo, espionei-o. Posso entregar um relatório de todas as suas
atividades, ou apenas dizer o que descobri. O que prefere?
Vossa D ivindade sabe que não preciso dessas formalidades de relatório, não é
Zing? Conte-me logo, estou curiosa.
Bem, então eu digo - Zing aproximou seu rosto da deusa do gelo, e a voz que
saía era quase um sussurro. - Léia, eu poderia muito bem inventar alguns detalhes
sórdidos sobre esse indivíduo, na verdade pensei em fazê-lo, porém achei que não
seria justo de minha parte. N ão há nada no passado de Taurok que o comprometa.
Todos os deuses que mantiveram negócios, ou qualquer tipo de relacionamento
com ele, têm o mesmo discurso. O deus dos minotauros é honesto, respeitador,
educado e gentil, enfim, é uma perfeição! A pesar de muitas vezes ser duro, e ter
entrado em vários conflitos, não foi além do que estava em seu direito. Resumindo:
não existe prova alguma de que Taurok não mereça confiança, o que, pra ser
sincero, me deixa chateado, pois assim ele demonstra ser um adversário à altura.
Adversário em quê, meu amigo?
A h, bobagens querida; intriga masculina. N ão se perturbe com isso. E então, o
que me diz de tudo isso?
A deusa do gelo passou os olhos pela sala em silêncio, pensativa. Ela conhecia
de outras eras os talentos de espionagem de Zing, e se ele descobrira tais coisas, é
porque não passavam da mais pura verdade. A rrependeu-se naquele momento por
ter sido até dura e seca com Taurok, desconfiando de suas intenções - no entanto,
em virtude de todas as traições anteriormente ocorridas, ela não poderia ter agido
de outro modo. O deus dos minotauros acabara de ganhar sua confiança.
— S ó há uma coisa na qual ele nunca me venceria - disse Zing, interrompendo
os pensamentos de Léia, por ver que ela não respondera a sua pergunta.
E o que seria?
Ele não é tão bonito quanto eu! - os olhos de Zing pareciam muito maiores do
que eram, e refletiam o rosto da deusa milhares de vezes. Lentamente ele foi
encurtando o espaço entre seu rosto e o dela, ao mesmo tempo em que lhe tirava,
com cuidado, a taça das mãos. S eus outros três braços se ocupavam em envolver o
ombro dela, e segurar carinhosamente seus dedos. - A gora vamos deixar esse
assunto de lado, e falar de algo mais interessante, como nós dois?
A investida de Zing só não continuou porque uma abelha, do tamanho de um
ser humano, entrou na sala e pigarreou. I mediatamente o deus dos insetos, que
estava quase completamente curvado sobre Léia, voltou à sua posição original,
sentado na cadeira, deixando a deusa se recompor. Ele respirou profundamente, e,
com desagrado, disse à abelha:
O que foi agora? Como me interrompe dessa maneira?
D esculpe-me, grandioso Zing, excelentíssimo deus dos insetos, só faço isso
porque é assunto deveras importante! Está sendo chamado ao salão do trono, com
urgência.
J ustamente nesse instante, não posso acreditar! A h, se é assim, diga que estou
indo - e voltando-se para Léia, continuou: - Minha dama, perdoe-me pela falta de
decoro, entretanto terei de abandoná-la nem que seja por míseros minutos. S abe
que nada me deixa tão lisonjeado quanto estar em sua presença, e poder trocar
minhas palavras fúteis com ser de tamanha graciosidade e elegância. Garanto-lhe
que minha falta será recompensada com outras poesias ridículas e inúteis, além, é
claro, das velhas piadas. Nada a deixará mais aborrecida e entediada!
Não se preocupe com isso, Zing, estarei esperando ansiosa.
Com o tronco curvado, Zing deu um beijo na mão de Léia, e deixou o salão com
andar cheio de pompa. A abelha que havia entrado no salão olhou com desdenho
para Léia, empinou o nariz e deu-lhe as costas, saindo com um rebolado.
A deusa não perdeu tempo em pensamentos desagradáveis sobre a abelha, e,
displicentemente, caminhou para uma das janelas com vitrais. Após olhar ao redor,
e se certificar que não havia ninguém por perto, puxou uma rosa branca da cintura.
Ela aproveitara o momento em que Zing debruçara-se sobre seu corpo para colocar
uma rosa como essa, mas de menor tamanho, grudada no corpo do deus dos
insetos. A flor que pareceria inofensiva a qualquer observador era uma espécie de
transmissor, que enviaria os sons ao seu redor para a outra flor, que agora Léia
tinha em mãos. A pesar de não ser uma atitude muito honrada, da mesma forma
que a deusa tinha de se certificar das intenções de Taurok, precisava também
conhecer as de Zing. O fato do deus dos insetos ter desaparecido por vários anos,
sem dar notícias, e depois voltar e omitir o que andara fazendo, era no mínimo
digno de suspeita. Ela colocou a rosa cuidadosamente sobre a orelha, e passou a
escutar.
S ons de passos, seguidos pelo barulho de uma porta sendo aberta. Foi aí que
ouviu vozes.
Saudações, Zing, poderoso deus dos insetos. Espero não estar incomodando-o.
D e maneira nenhuma, N úbia, preciosa deusa da noite. É um prazer rever
tamanha beleza. Mas por que não veio pessoalmente ao meu castelo, preferindo
esse tipo de comunicação? Não gosto de falar utilizando esses meios mágicos.
Léia assustou-se ao ouvir o nome - Núbia. Desde que se tornara a deusa do gelo,
renunciando ao status de deusa da morte, ela não conversara, nem mesmo
presenciara diálogos de um dos deuses maiores. E o que estaria Zing tramando
com a deusa da noite?
Vossa D ivindade sabe muito bem porque, Zing, não se faça de tolo. Esses são
tempos perigosos, não podemos nos arriscar assim. E então? Fez o que lhe pedi?
É claro que sim! Como já lhe relatei anteriormente, aqueles anos de
investigações foram infrutíferos, não resultando em praticamente nada. Q uando
voltei, porém, aproveitei o que já tinha feito e consegui ir mais a fundo, e
investiguei- as completamente. A credito sinceramente que elas não estão com o
Manto.
Tem certeza, Zing?
Entenderia como ofensa a falta de confiança em meus serviços. S ou muito bom
no que faço, e, pelo que vi, não há nenhum sinal do Manto. Elas não o têm.
Bem, se não está com elas, com quem estaria?
É o que continuo pesquisando. S egundo minhas fontes, um dos seus últimos
paradeiros foi nas mãos de uma ordem chamada D ivina S erpente. Preciso,
obviamente, investigar mais, para verificar se é mesmo verdade. A partir daí,
teremos mais chances de descobrir a localização precisa do Manto, para que
possamos reavê-lo.
Faça isso, Zing, e terá o que deseja. S eja mais rápido em suas investigações; elas
demoraram um tempo além do esperado! Não temos nem um minuto a perder!
Eu sei, minha dama, e garanto que serei bem sucedido.
Ótimo. Falaremo-nos em breve. Adeus.
Léia parou de escutar as vozes, e tornou a ouvir passos, aproveitando para
guardar a flor na cintura. Q uem seriam "elas", que Zing investigava? E que Manto
era esse? Por que tamanho interesse de N úbia nele? Divina Serpente... O nome não
lhe era estranho, ouvira rumores dessa ordem num dos seus milhares de anos de
existência. A deusa do gelo precisava urgentemente de todas as respostas, que pelo
visto não obteria facilmente. Q uando Zing voltou à sala, e fez os cumprimentos e
lisonjas de praxe, Léia surpreendeu-o com um abraço, através do qual aproveitou
para retirar a rosa, e guardá-la junto da outra. D epois se ocupou em entreter o
anfitrião, enquanto pensava no futuro.
Capítulo XXXI - A Profecia dos Três

O s pulsos de Vanhardt ardiam quanto mais ele os repuxava ao tentar se


desvencilhar do cipó que os atava. S ua situação era constrangedora: ambas as mãos
e pés estavam presos a um tronco de madeira, que era carregado na horizontal por
uma pessoa que seguia na frente e outra atrás. N ão dava pra ver os rostos dessas
pessoas, pois eram cobertos por capuzes verdes. O herói podia apenas olhar para
cima, e para os lados se tombasse a cabeça; a maior proeza que conseguia era
balançar o corpo levemente - o que acontecia quando ele esbarrava em arbustos,
troncos grossos caídos no chão, ou até cogumelos de meio metro de altura
(parecidos com os que ele ingerira mais cedo). Green tivera a mesma sorte de
Vanhardt, e também era carregado preso a um tronco de madeira, enquanto Lila
aplicava mordidas em um dos nós da rede que a mantinha cativa.
Green, seu traidor! - resmungou Vanhardt pelo canto da boca, ao desistir de
soltar as mãos. - Nos levou diretamente ao encontro deles. Você me paga!
É mesmo, e veja como sou esperto, levei vocês para eles e me esqueci de pedir
para me soltarem. EU TA MBÉM S O U UMA VÍTI MA A Q UI ! - guinchou em sua voz
esganiçada.
S e não fez isso, é um incompetente como guia. A idéia era nos desviarmos deles,
e não nos encontrarmos com eles - disse Lila sarcasticamente, entrando na
conversa.
Eu conheço essas terras como a palma da minha mão!
Eu vi - continuou Lila. - É claro que o episódio ocorrido uma hora atrás, no qual
disse que o caminho era "para a direita, absolutamente", e dez minutos depois
mudar o discurso e afirmar "para a esquerda com plena certeza", e passados outros
dez minutos admitir que andamos em círculos não conta, não é verdinho?
O k, admito que posso ter ficado confuso em algum momento, mas conheço a
região ao menos superficialmente. E esse povo nunca se aventurou por aqui! Tem
algo estranho acontecendo, que fez com que eles saíssem de suas fronteiras, e
estou quase certo que está relacionado ao desaparecimento dos animais. Eles estão
procurando por comida mais longe.
É verdade; estou procurando animaizinhos pra tentar usar o meu poder desde
que nos embrenhamos na floresta, e não encontrei nenhum - Vanhardt falou
desconfiado. - A liás, Lila, vai continuar enrolando ou dará um jeito de nos tirar
daqui?
Eu já tentei, não adianta! Essas redes impedem que eu use magia. Green deve
saber muito mais sobre isso, porque usou o mesmo truque comigo.
Usei, sim, o que prova mais uma vez minha superioridade intelectual. A s redes
feitas com cipó das Florestas S agradas do norte, terras de Laodicéia, impedem
qualquer não-discípulo dessa deusa de usar magia. Vou aproveitar para perguntar
só uma coisinha, Vanhardt: como um filho de uma deusa pôde ser apanhado tão
facilmente? Pensei que filhos de...
Cala essa boca, Green! Q uer revelar o segredo pra floresta inteira? Fui
apanhado de surpresa, não tive tempo pra reagir. Q uando me dei conta eles
haviam me atado, e me colocado aqui. S e ao menos Lila usasse a crafo adimapla em
mim, arrebentaria esse cipó em um segundo. Certo, Lila?
Você é surdo? A cabei de dizer que N ÃO D Á PRA CO N J URA R MA GI A S
Ai...ai... minha deusa, me poupe!
É pra usar em mim, e não no cipó, sua tonta!
Não dá pra usar de jeito nenhum!
Ei, vocês dois, parem de discutir! - interveio Green. - Até parece briga de
namorados, ou de marido e mulher, sei lá. Ô Lila, minha filha, está com alergia?
Não, Green!
É porque ficou vermelha de repente. I sso não é gripe? Eu estou dizendo
porque...
Já chega, Green!
Xi, agora está brigando comigo. I sso é coisa de mulher, deve ser a tal da TPM.
Ouvi falar que ela atinge...
CALA A BOCA, GREEN! - Vanhardt e Lila gritaram juntos.
Sempre sobra pra mim.
O s três seguiram carregados por horas. Vanhardt prestou atenção nos passos,
para contar os inimigos - distinguiu seis ou sete passadas diferentes. S eriam dois
carregando-o, mais dois com Green, um com a rede onde Lila estava, e
provavelmente um ou dois próximos a eles. Por mais que tentasse não conseguiu
apurar nenhuma outra informação sobre os inimigos. N em pôde se certificar se
eles eram humanos. Uma dúvida martelava em sua cabeça, e decidiu perguntar ao
duende, ainda que temesse a resposta:
Green.
Fala!
O que eles farão com a gente?
Não quero falar sobre isso.
É muito ruim?
É.
O quanto ruim?
Muito.
Muito, muito?
É. Muito, muito ruim. I nsuportavelmente ruim. Péssimo. D esastroso.
Terrivelmente ruim. Tá bom assim?
Falta saber o que eles farão com a gente.
S eu chato! S e quer tanto saber eu digo: eles vão nos devorar. A cenderão uma
fogueira, colocarão uma panela, água, alguns legumes, quem sabe batatas, e daí
nós três. Com sorte morreremos rapidamente.
É mentira, não pode ser.
S im, não pode ser, mas infelizmente é. Por falar nisso, por que estou tão
despreocupado? PO R FAVO R, ME S O LTEM, EU N ÃO Q UERO MO RRE
BUÁA A A !!! - o duende passou a se revirar na corda e aprontar um terrível
escândalo.
I sso não vai adiantar de nada. É melhor pensarmos em um plano pra fugir do
que espernearmos como loucos.
Hmmm, é verdade. Eu tive uma boa idéia. A cha que é a primeira vez que fiquei
prisioneiro? Não contarei mais nada, é claro, pois não estamos sozinhos.
A h, então é por isso que anda com essa algema presa no pescoço e a outra
pendurada! Onde ficou preso? Nunca tentou tirar as algemas?
A face de Green passou de ligeiramente esperançosa para séria e carrancuda. O
olhar mirava o infinito, e com algum esforço podia-se ver uma lágrima brotar no
canto do olho esquerdo do duende. Ele inclinou a cabeça para baixo, procurando
enxergar as algemas, e assim ficou por alguns minutos. D e onde Vanhardt estava
não via Green muito bem, por isso ele não notou aquela atitude. Porém percebeu
que o duende, que gostava muito de falar, ficou quieto de repente, incutindo-lhe
suspeitas de que aquelas algemas significavam algo importante para Green.
I mportante e triste. Ele não perguntou nada sobre um plano de fuga, porque se o
duende tivesse mesmo alguma idéia, era melhor não revelá-lo aos inimigos. Eles
talvez até não falassem a mesma língua que Vanhardt e os companheiros, mas isso
não indicava que os três deveriam ser menos reservados.
Uma hora mais tarde, o grupo passou por uma cortina de cipós, penetrando em
uma grande clareira, com árvores compridas ao redor. Vanhardt escutou o grito de
várias outras pessoas, como se estivessem comemorando a chegada deles.
S egundos depois via o rosto de crianças humanas sobre ele, com olhares
curiosos, cutucando a sua barriga e esticando suas pálpebras, caindo às
gargalhadas em seguida. A s crianças se interessaram muito por Green, ficando
temerosas de tocá-lo com os dedos, usando para isso um pedaço de pau - o duende,
muito irritado, pôs-.se a xingar os meninos e meninas. O que atraiu maior atenção
daquele grupinho de crianças, no entanto, foi a fada Lila.
O s misteriosos seres que capturaram Vanhardt e Green fincaram o tronco que
os prendia no chão, verticalmente, permitindo que eles tomassem a postura de pé,
e pudessem olhar ao redor. Em seguida, um círculo de pessoas, principalmente
crianças, mas também adultos, se posicionaram em volta da fada, cuja rede ficara
numa parte mais plana de uma gigantesca pedra no centro da vila. Eles
observavam admirados aquela criaturinha que parecia uma boneca com asas, e
murmuravam nos ouvidos uns dos outros. A lguns soltavam exclamações e batiam
palmas, enquanto outros passaram a correr e chamar mais pessoas para olhá-la.
Era estranho imaginar que um lugar tão grande como aquele, uma vila de fato,
ficava incrustada no meio da floresta. S uas casas, todas de madeira, envolviam
como num abraço o tronco das árvores, principalmente aquelas mais grossas, e
certamente tinham sido erguidas há pouco tempo. A improvisação era evidente -
faltavam algumas partes, como paredes ou tetos, e pedaços de madeiras eram
puxados para cima com cipós por alguns habitantes, naquele instante exato.
A pesar de algumas habitações se encontrarem sobre o chão, a maioria dessas
estava destruída. Contava-se não mais que cinqüenta casas. A lém disso, algumas
pessoas armadas de pás jogavam terra sobre buracos. Estariam elas fazendo
armadilhas, ou algo do tipo?
A s pessoas da vila tinham a pele num tom mais escuro do que Vanhardt se
acostumara a ver. Ele ouvira relatos, entretanto, de pessoas com a pele negra, o que
não era o caso destas. Vestiam roupas simples, que constavam de uma camisa
puída, de pano, e calça de couro de animais, atada no meio por uma faixa de cipó.
A s mulheres usavam vestidos do mesmo material. Muitos portavam lanças de
madeira, e outros arcos e flechas; Vanhardt reparou em um deles - que
provavelmente participara da sua captura, pois usava também uma capa verde -,
segurando uma arma especial: assemelhava-se a uma besta, com espaço para duas
setas, e um compartimento na parte de trás onde uma pequena rede se prendia ao
rabo das setas. Então foi aquela arma a responsável pela captura de Lila!
Avistado o grupo que os seqüestrara, Vanhardt passou a segui-los com o olhar,
esquecendo-se do círculo de pessoas em torno da fada. Eram realmente sete, e
caminharam até uma elevação de terreno, próxima à pedra gigante, onde estava um
homem que parecia ser o líder, conversando com outros três aldeões. O líder usava
um chapéu de penas na cabeça, um colar com dentes de animais no pescoço, e uma
capa verde limão berrante retalhada nas costas. Ele era gordo (quase não dava para
ver o pescoço), e nos braços roliços havia pulseiras coloridas. O s olhos eram
pequenos, o nariz bem avantajado, e a boca redonda com beiços para fora fornecia
a sensação de que ele fazia biquinho o tempo todo. D epois de um minuto de
conversa, e os braços apontarem para Green e Vanhardt mais de dez vezes, o grupo
trouxe o líder até os prisioneiros.
A s mãos do líder eram também gordas, mas nem por isso menos fracas:
Vanhardt sentiu a sua força quando teve as bochecas apertadas por um par de
dedos. O líder deu uma volta em torno do rapaz, observando-o dos pés à cabeça, e
passou a olhar Green, também beliscando as suas bochechas. O duende, que até
aquele momento não dera nenhum sinal de que estava prestes a fugir, falou na voz
esganiçada de sempre:
Pelo amor de Laodicéia, me solte! Eu também gosto muito da deusa, ela
abençoa os duendes, sabia? Fiquem com a fadinha, e esse humano fedorento, mas
deixem o pobre duende em paz!
Green, seu safado, esse era o seu plano de fuga?! Livrar a sua pele e nos deixar
aqui com esses canibais?!!! - Vanhardt estava furioso, e cuspia jatos de saliva em
cima de Green.
Q uem mandou você e sua amiga fada me seqüestrarem, em primeiro lugar? Eu
nunca quis vir nessa jornada idiota! EU SOU UMA VÍTIMA!
O líder levantou os braços para o alto, e virou-se para o grupo em torno de Lila.
Um silêncio profundo percorreu a vila, e todos dirigiram seus olhares para o
homem gordo. D eixando o silêncio criar uma tensão no ar, o líder abaixou os
braços, inspirou profundamente e disse com voz grave:
Atenção, meus amigos. Eu também estou impressionado com os prisioneiros:
eles se parecem com as figuras da profecia. Porém, como a própria parede nos
revela, eles podem vir para o bem ou para o mal. Hão de concordar que devemos
esperar até a Guardiã da Floresta voltar, para que ela decida o destino dos três.
Estas questões que envolvem prisioneiros estão ao seu encargo. Estamos
entendidos?
O s murmúrios e cochichos se avivaram, e as pessoas colocaram as mãos na boca
enquanto tornavam a apontar para os prisioneiros. O líder rumou para o centro da
vila, voltando ao seu trabalho, que consistia em ajudar três habitantes a erguerem
uma tora grossa de madeira. Vanhardt e Green se entreolharam, sem entender
bulhufas do que se passava.
Capítulo XXXII - A Guardiã

Q uem é essa tal de Guardiã da Floresta? O que ela decidirá? Eles irão nos
cozinhar, Green? Fale alguma coisa! - Vanhardt se mostrava ansioso,
principalmente por não poder conjurar suas magias.
N ão sei... Espere um pouco, agora estou me lembrando! S im, hem, hem! Recebi
ensinamentos sobre ela e seu povo. E uma mulher muito perigosa. Essa vila de
discípulos de Laodicéia não tem o poder político apenas nas mãos de um homem,
como acontece com a maioria das outras. O poder é dividido: um homem, chamado
de "S enhor", cuida das questões administrativas e de saúde, enquanto uma mulher,
chamada de "Guardiã da Floresta", cuida da parte de caça, das questões militares,
incluindo aí prisioneiros. Por isso ela decidirá nosso destino. Como me esqueci
disso?
Bom, pelo menos estamos a salvo por enquanto. E seu plano de fuga, não vai me
dizer que era realmente aquele de ficar implorando ao Senhor por sua liberdade?
O duende franziu as sobrancelhas, desanimado, e não respondeu. Ele virou os
olhos para a fada, que procurava inutilmente fugir dos gravetos que as crianças
usavam para cutucá-la. A atitude do duende de ignorá-lo não deixou dúvidas a
Vanhardt de que o plano era mesmo aquele.
S eu duende safado! S em vergonha! Q ue cara de pau! - o herói parou de encarar
Green.
Vanhardt mostrava-se indignado com a criaturinha verde. Era verdade que o
duende tentara matá-lo e também à fada, porém entendia que Green fazia aquilo
por instinto de preservação. Até tomara alguma simpatia pela criatura, mesmo que
ele fosse metido (mais do que a fada), falador, e intrometido. A gora o duende
mostrava que seu instinto de preservação poderia ser muito maior do que qualquer
sentimento próximo de amizade. N ão adiantaria, entretanto, ficar reclamando. Ele
precisava pensar em algo para tirá-los dali. O lhou para os lados, e depois para
cima, e viu aquilo que há muito tempo procurava: um pássaro! A nimal no qual ele
poderia usar seu poder!
Fixou os olhos na criatura solitária, e se concentrou. O s minutos correram, o
pássaro voou de uma árvore para outra, e depois foi embora. Vanhardt não
obtivera sucesso. I sso devia ser culpa de Laodicéia, que por ser a deusa da natureza
deveria proteger também os animais. Procurou Lila, queria conversar com a fada,
mas ela estava longe demais e ele não queria ficar gritando. A partir daí, desistiu
de pensar em qualquer plano de fuga, e deixou o destino seguir seu rumo.
O dia logo terminou, e o sol, avermelhado e sonolento, se escondeu
sorrateiramente no horizonte. Em certo momento, um rebuliço tomou conta dos
habitantes da vila. A lguém havia chegado. Era ela! D o meio da multidão, surgia
uma pessoa pouco mais baixa que Vanhardt, magra, e do mesmo modo que outros
habitantes, usava um capuz e uma capa verde-amarronzada, que encobria o rosto e
parte do corpo. A Guardiã da Floresta se encontrou primeiramente com o líder, ou
S enhor, como Green o identificara. D epois de trocarem algumas frases, o S enhor
apontou para Vanhardt, Green, e também para a fada. A Guardiã da Floresta então
caminhou na direção de Lila, e examinou-a por alguns minutos. Com um aceno
afirmativo, deixou a fada e foi para os troncos que mantinham Vanhardt e Green
presos, parando a menos de um passo dos dois. Vanhardt sentia a sua respiração,
mas não via um centímetro do seu rosto, encoberto pelo capuz. S eria humana? O u
teria cor verde ou azul? Deformada, quem sabe? Ou mesmo bonitona?
A Guardiã permaneceu imóvel, demorando-se com os olhos nos pés descalços
de Vanhardt, e depois foi a vez de fitar Green, reparando nas algemas que pendiam
do seu pescoço. Ela virou-se em seguida para o S enhor, e os dois passaram a
cochichar.
S erá que são eles? - perguntou o S enhor, com a voz baixa, porém a uma altura
que permitia Vanhardt escutar. Talvez ignorasse a curiosidade do rapaz, ou fosse
inocente o bastante acreditando que ele não quisesse ouvir a conversa.
N ão posso garantir. A pesar de se parecerem muito com as figuras da parede,
não percebi nada de extraordinário neles. N ão sei como esse daí - ela apontou
Vanhardt com a cabeça - conseguiu caminhar em nossas florestas descalço. D eve
ter machucado bastante os pés. A manhã poderíamos tentar fazê-los passar pelo
teste - a voz da Guardiã era mesmo de uma mulher, não muito diferente da de
qualquer outra, exceto por ser firme e confiante.
Ótimo. Esperaremos até amanhã, e aí faremos os testes. E então, encontrou
alguma coisa?
N ada. Peguei alguns pássaros, o que evitará que morramos de fome nos
próximos dois dias. Mas não há um animal no raio de dez quilômetros.
D roga! - o S enhor deu um soco no ar. E tudo por causa daquela criatura! A h...
Tomara que esses três sejam a nossa salvação.
O S enhor e a Guardiã se afastaram, e Vanhardt percebeu pelo canto do olho que
Green mirava-o atentamente. N ão retribuiu o olhar. Estava com raiva do duende. O
único fato que lhe atraía a atenção era seus pés descalços. Ele chegara a se esquecer
de que não havia arranjado botas, e só se recordara porque a Guardiã reparou em
seus pés. S entira uma certa vergonha, mas que se fora junto com a Guardiã. Green
ainda o chamou uma ou duas vezes, e como o jovem não lhe desse atenção, o
duende desistiu.
A noite caíra gentilmente sobre a floresta, e as estrelas apontaram no céu.
Green dormia a sono solto, Lila mantinha-se de cabeça baixa, olhos fechados, como
se meditasse, e Vanhardt não conseguira mais do que um leve cochilo. N aquele
momento mantinha os olhos fechados, ouvindo os mínimos ruídos da vila,
imitando sua amiga fada. A s pessoas subiram para as casas no alto das árvores
para dormir, permanecendo dois ou três habitantes no solo, rondando a vila,
obviamente vigiando os prisioneiros.
Um barulho no meio da mata atraiu a curiosidade de Vanhardt. S ubitamente,
dois olhos vermelhos, de gato, surgiram entre as folhas de um arbusto. O jovem,
que estava sonolento, despertou de vez. O s olhos se mexiam no meio da mata, a
cerca de quinze metros de distância, e a altura que estavam do solo indicava que o
dono era grande. Q uem sabe a criatura criasse uma confusão, e no meio dela
surgisse uma oportunidade para que fugissem? S egundos depois os olhos
desapareceram, e um fino tremor abalou o solo. Tochas foram acesas nas casas, e
os habitantes entraram em alvoroço. A lguns pularam entre as casas, e outros,
portando arcos, bestas e lanças, desciam por cipós e escadas. Gritos e berros
acordaram Green e alertaram Lila, e um terror repentino passou a tomar conta da
vila.
O chão, que havia parado de tremer, voltou a chacoalhar, dessa vez muito mais
forte, somado a um barulho ensurdecedor. O s gritos foram abafados, não se
conseguia nem ouvir a própria voz e, de repente, no centro da vila a terra começou
a se abrir. O s habitantes armados formaram um círculo em torno do buraco, e
deste, para espanto de Vanhardt, Lila, e Green, brotou a cabeça de uma animalesca
criatura. Era semelhante a uma minhoca, cilíndrica, da largura de cinco ou seis
tonéis de cerveja juntos. A boca era triangular, com centenas de dentes
pontiagudos dispostos em fileiras sobre uma mucosa vermelha, cada um deles com
quase um metro de comprimento. N ão aparentava ter olhos, a pele era cinza,
enrugada, com alguns pêlos grossos. A ssim que surgiu do chão, emitindo um urro
grotesco, caiu esmagando um habitante, matando-o imediatamente. D everia pesar
dez toneladas ou mais.
O s outros guerreiros da vila atiraram flechas e lanças na criatura, que sequer
arranharam sua pele, certamente muito espessada. O verme se arrastou sobre a
terra ameaçando engolir os habitantes, que decidiam fugir ou continuar lutando
corajosamente. A primeira opção era a mais inteligente.
A aldeia naquele ponto se tornara um caldeirão de pânico e terror. A s pessoas
não encontravam lugar para se esconder, e corriam para o meio da mata ou
continuavam em suas habitações sobre as árvores. O verme, depois de engolir um
bravo guerreiro que jogara uma lança dentro de sua garganta, mergulhou debaixo
da terra.
Vanhardt até aquele momento se mantivera parado. S uas pupilas estavam
dilatadas, as mãos tremiam, a testa suava frio. A visão de um ser tão grotesco, tão
grande, tão cruel, roubava-lhe o raciocínio e perturbava seus sentidos. Foi um
apito, como o som de uma chaleira, que o tirou daquele estado de choque. Vinha do
seu bolso. Virando de lado, e deixando que o objeto caísse, descobriu o que era: a
bússola! A seta não estava parada e apontando para uma direção como sempre
fazia - dessa vez girava incontrolavelmente, emitindo aquele ruído irritante. I sto só
podia significar uma coisa: a foice estava muito perto. Perto até demais.
Capítulo XXXIII - Reunião de Sangue

O s ânimos se encontravam exaltados dentro do salão, e discussões fervilhavam


em torno da mesa oval. D oze cadeiras rodeavam a mesa, das quais dez eram
ocupadas por homens que se apontavam mutuamente e gritavam para serem
ouvidos. A lguns vestiam pesadas armaduras, enquanto outros usavam trajes mais
refinados. A cor predominante no salão era o preto, representado por longas
cortinas com detalhes em dourado que farfalhavam frente às compridas janelas
retangulares, um tapete que seguia da mesa à porta de ferro num extremo do salão,
e um teto intensamente iluminado por dezenas de lustres, devidamente
abastecidos de velas. Pergaminhos contendo mapas e relatórios disputavam espaço
sobre a mesa, e algumas pequenas peças de madeira, que faziam o papel de
exércitos, eram constantemente trocadas de posição. N o extremo oposto ao da
porta, na parte da mesa onde a curvatura era mais pronunciada, indicando a
posição onde o mais graduado deveria se sentar, dois homens estavam de pé.
Um deles era de altura assustadora, e certamente deveria se abaixar para passar
na maioria das portas. Tinha a pele negra, a cabeça raspada, e uma cicatriz em
diagonal que começava na testa, cruzava o nariz e atingia as bochechas do lado
oposto. N ão passava dos trinta anos, embora a cicatriz o deixasse mais velho e feio.
S ua armadura era negra e adornada com um cinto vermelho, e carregava também
um machado pendurado nas costas. Uma das mãos esfregava a boca e o olhar era
vago, pensativo.
O outro homem era bem mais velho, não tão alto, a pele branca e macilenta.
Trajava uma malha de prata sobre a qual reluzia um belíssimo manto negro,
bordado com fios púrpura. Uma barba branca se esticava até a metade do peito, e
as sobrancelhas arqueadas lutavam contra as pálpebras que insistentemente se
deitavam sobre os olhos azuis, indicando cansaço. O velho bateu a mão sobre a
mesa fazendo todos ali presentes se calarem, e falou sem pressa:
— Meus senhores! D evem concordar comigo que toda essa discussão não
resultará em absolutamente nada. Precisamos de uma saída imediata, que nos tire
da terrível situação em que nos encontramos. Estou certo de que cada um tem a sua
opinião, e que elas são conflituosas, mas se continuarmos brigando não
chegaremos a lugar nenhum - o velho contraiu o rosto numa expressão de
desagrado, e seus olhos azuis se tornaram malévolos. - S e alguém me interromper
a partir de agora, utilizarei a minha posição de S upremo Lorde e mandarei enforcar
o imbecil. Serei piedoso apenas para enviar o corpo à família. Alguma pergunta?
O silêncio era tão intenso que se podia perceber o som da chuva, antes
inaudível, que ignorava a discussão e mantinha o seu trabalho de molhar o vidro
das janelas, além do rumorejo de algum dos presentes que se ajeitava melhor na
cadeira. Nenhum deles ousou dizer qualquer coisa. O velho, então, tornou a falar:
Ótimo. Para prosseguir, gostaria que O tho nos expusesse mais uma vez, e
objetivamente, qual é a situação em Fontain.
O negro alto ao seu lado tirou a mão da boca e abriu um dos grandes
pergaminhos sobre a mesa, que continha um mapa de Kether. Ele apontou para a
cidade de Fontain, e disse num tom absurdamente grave:
Como todos sabem, essa cidade é a nossa porta de entrada para a invasão do
eixo sul de Kether. N o entanto, nos encontramos num impasse.
I nacreditavelmente, nossas hordas de Espectros A maldiçoados não conseguiram
penetrar suas defesas, que contam com guerreiros altamente treinados, além da
ajuda de um deus menor, chamado Fulaf, que controla os ventos do oeste. Ele nos
atingiu com várias tempestades, e não esperávamos tanta bravura e força dos
guerreiros que defendem a cidade. Por isso lançamos mão de nossos aliados,
alguns vassalos do senhor de A ntharchet, força composta por pouco mais de mil
cavaleiros, somados a um contingente de mercenários, que não passam de
quinhentos. Mesmo assim, fizemos três ataques consecutivos à cidade nos últimos
dois dias, e só perdemos guerreiros, sem avançarmos um centímetro em nossa
posição. A lém disso, gostaria de ressaltar o fato dos Montanensis estarem
preparando um contra- ataque em Kilev, que fica na fronteira do reino que já
conquistamos, Heltara. A s nossas defesas lá não são muitas, e eles não demorarão
a subjugá-las. Gastarão de Kilev até aqui, a capital Ember, uma semana e meia no
máximo.
O velho resmungou alguma coisa em voz baixa, deu mais um soco na mesa com
a mão fechada e disse:
Estão vendo? O s senhores têm noção da gravidade desse impasse? N ão
conseguimos avançar, e corremos o risco de perder aquilo que já conquistamos!
A inda por cima, não temos de onde tirar mais exércitos! S e continuarmos atacando
Fontain, seremos rechaçados. S e fugirmos, nossos aliados voltarão para
Antharchet, os mercenários se dissiparão, e os Espectros serão vítimas fáceis para o
contra-ataque dos Montanensis. A lguém poderia nos fornecer uma solução, em vez
de gastar as energias esbravejando como jumento? Hã? - sua voz se tornara rouca
de fúria no fim do discurso, e o rosto avermelhado e inchado.
Um relâmpago caiu, e o som do trovão somou-se ao da porta de ferro sendo
aberta. Todos viraram os rostos assustados em direção à porta, e viram uma figura
que chamava muita atenção ao entrar no salão. S uas botas negras afundavam no
tapete, enquanto a capa vermelha deslizava como uma cobra sobre o chão. N ão era
muito alto, talvez o menor de todos ali presentes, mas tinha uma grande
compleição física, capaz de suportar sem aparentar muito esforço a enorme
armadura negra que protegia cada milímetro do seu corpo. O rosto era encoberto
por um elmo da mesma cor da armadura, e a único pedaço visível era o par de
olhos misteriosos que brilhavam nas órbitas. Uma espada com serrilhas na lâmina
repousava em sua cintura.
O barulho de seus passos ecoou pelo salão, só parando quando ele estacou a um
passo da mesa oval. N inguém falou, esperando que o intruso se apresentasse. Este
se demorou com o olhar no rosto de cada um deles, e depois de uma longa
inspiração, pronunciou com uma voz metálica e seca:
Eu sou Mondovar. A partir de agora obedecerão às minhas ordens.
Um murmúrio de indignação percorreu o salão, e olhares surpresos se
dirigiram ao intruso. O velho que estava de pé foi o único a falar abertamente, sem
disfarçar o desprezo:
Q uem você pensa que é para chegar aqui e dizer um absurdo desses? Vá
embora antes que algum de nós se aborreça e acabe com sua miserável existência -
com um gesto displicente das mãos ele apontou a saída.
N ão repetirei o que já disse - tornou Mondovar. - S e alguém for contra,
manifeste sua insatisfação e deixe o aposento. N enhum de vocês é capaz de levar
os planos adiante.
O s homens dessa vez mostraram-se mais indignados ainda, e alguns chegaram
a colocar a mão sobre o punho da espada que carregavam, apesar de nenhum se
atrever a mais do que isso. O velho pareceu adivinhar o pensamento de todos, e
retomou a palavra.
S abe a quem está se dirigindo? Tem a mínima idéia de quem nos incumbiu
desses planos? N ão me interessa como tem ciência deles, mas saiba que está
perante o Círculo I nterno, seus onze Generais e o S upremo Lorde. S omos
abençoados por uma força divina, na verdade, a maior dentre todos os deuses.
Ponha-se em seu lugar, e retire-se antes que perca mais do que a vida.
S ei de tudo, imprestável, e é por isso que estou aqui. Vocês são uma vergonha, e
o melhor a fazer seria correr com o rabo entre as pernas, e poupar mais humilhação
para a Ordem.
Chega! - guinchou o velho, e saiu de seu lugar atrás da mesa. - N ão tolerarei
mais insultos. Mostraremos a você nossos poderes, e se arrependerá de ter ousado
pôr os pés neste salão.
O s outros homens também se levantaram, e pegaram suas armas. A penas O tho
continuou em seu lugar, quieto. Mondovar deu alguns passos para trás, sem
parecer preocupado; os generais e o S upremo Lorde se posicionaram em um
círculo ao redor dele. S egundos de tensão antecederam o primeiro movimento, que
partiu do S upremo Lorde. Uma esfera engolfada de fogo, do diâmetro de uma
porta, deixou a sua mão voando em direção a Mondovar. Em uma reação quase
imperceptível aos olhos, ele sacou sua espada e rebateu a bola de fogo em direção a
um dos presentes, que se incendiou e passou a urrar de dor. I nstintivamente os
outros generais ergueram suas espadas e avançaram contra o intruso.
D e repente, uma completa escuridão se deitou como um manto sobre o salão;
gritos e o tilintar de lâminas se fizeram ouvir. Às vezes a escuridão era rompida
por lampejos verdes ou amarelos, seguidos por mais gritos. N ão demorou meio
minuto para que um silêncio completo novamente tomasse conta do ambiente, e o
manto escuro que o cobria desaparecesse, deixando a luz das velas revelar o que
acontecera.
O único a se manter de pé era Mondovar, sem aparentar um mínimo sinal de
cansaço. Ele deslizou gentilmente a espada que mantinha erguida para dentro da
bainha, e passeou os olhos pelo salão, certificando-se do que fizera. O chão estava
coberto de corpos que não respiravam, e o tapete outrora negro estava banhado de
vermelho. Mondovar caminhou ruidosamente em direção à cadeira do S upremo
Lorde, ao lado da qual O tho assistia à cena sem acreditar no que acabara de
ocorrer. Enquanto Mondovar cruzava o salão, o velho de longas barbas brancas,
deitado com um ferimento mortal, gemeu num canto:
Você... está com ela... fui tolo em não notar... me desculpe... - seus olhos se
fecharam, e seus músculos perderam a força; por fim, exalou o último suspiro.
Mondovar parou ao lado de Otho, e percebeu que o ponto mais alto do seu elmo
era da mesma altura que o cotovelo do outro. S em se intimidar pelo tamanho de
Otho, Mondovar disse erguendo a cabeça:
D esde o momento em que entrei você foi o único a notar que eu carregava a
Ceifadora de Vidas, e por isso não ousou se opor a mim. A giu corretamente, com
prudência e astúcia. A partir de agora sou o S upremo Lorde, e você meu primeiro
general. Estamos entendidos?
S im, senhor - O tho abaixou a cabeça, numa reverência. - E quem comandava a
Ordem lá do Panteão dos deuses...
—... continuará a fazê-lo - completou Mondovar. - S ou apenas um mensageiro e
executor. Fui enviado devido à incompetência de vocês. Muito bem. Pelo que sei,
estamos com problemas em Fontain?
Exatamente, senhor. Nossos aliados...
Cale-se! - Mondovar levantou a mão, interrompendo Otho. Ele se sentou, ajeitou
os mapas à sua frente, e com um gesto ordenou que O tho também se sentasse; este
obedeceu imediatamente. - J á falou demais. A s novas ordens são inquestionáveis,
se for contra, ou tiver alguma dúvida, deverá se retirar da O rdem para nunca mais
retornar. Agora escute com atenção.
"Você deverá mandar uma mensagem aos aliados e mercenários, ordenando
que todos se reúnam mais ao norte, próximo às Florestas S agradas do sul. Q uando
chegarem, nossos Espectros A maldiçoados matarão todos eles. D epois disso, faça
com que os feiticeiros criem mais Espectros A maldiçoados com seus cadáveres
frescos. Entenda que os Espectros são mais fortes do que esses humanos inúteis,
além de serem mais obedientes. A partir daí, rume para o norte até Kilev; não nos
importa mais Fontain, em outra oportunidade a conquistaremos."
"Com as novas tropas mate todos aqueles que tentam penetrar nossas
fronteiras, além de aproveitar para destruir Kilev. A ssim você terá mais cadáveres,
tanto dos inimigos quanto dos habitantes da nossa cidade, para aumentar o
exército de Espectros A maldiçoados. N ão poupe mulheres e crianças. I sso servirá
de aviso para aqueles que não se mostram capazes de defender o que
conquistamos, a fim de que assim se empenhem mais quando chegar a sua hora.
D e posse desse exército reforçado, continue seguindo para o norte, até a terra de
gelo. É lá que deverá plantar o obelisco. Mais uma coisa. D urante todo o trajeto de
morte e destruição, é de meu desejo que o nome 'S upremo Lorde Mondovar' ecoe
em cada boca. Q uero que logo Kether inteira saiba que sou eu o responsável, e
sinta pavor ao ouvir meu nome. Entendeu bem?"
O tho achou as instruções dignas de alguém perverso e maligno, sem a mínima
consideração com os aliados e os habitantes de seu próprio reino. Realmente,
matar os habitantes de uma de suas maiores cidades, só para aumentar o exército
com mais mortos-vivos, é prova de uma maldade sem limites. O tho também ficou
se perguntando de onde tirariam tanta energia divina para fazer os Espectros
A maldiçoados, mas não ousou questionar Mondovar. A penas balançou a cabeça
afirmativamente, sem dizer nada.
Mondovar então se ergueu lentamente, e ordenou:
Limpe isso aqui imediatamente! O cheiro está ficando desagradável. A minha
última ordem do dia é a seguinte: mande Hilda, a mulher que está ali fora, e que
provavelmente você já conhece, entrar.
O tho saiu calado, e fechou a porta devagar. Em seguida, Hilda Pdsalv entrou no
salão. S eu rosto estava um pouco mais abatido do que o de costume. Ela deu a volta
na mesa, desviando-se com graciosidade dos corpos jogados ao chão, como se nem
se desse conta da presença deles. Quando chegou perto de Mondovar, disse:
Fico feliz que tenha conseguido, meu senhor.
A gora pode me chamar de S upremo Lorde, querida. Prefiro este título. Como
lhe havia afirmado que faria, tomei a liderança da O rdem, e você volta a ter o seu
posto dentro do Círculo Interno.
O brigada, S upremo Lorde, não tem idéia de quanto fico satisfeita - seus olhos
exibiam um brilho perverso.
I magino que sim. Q uanto ao segredo que tentou guardar de mim, posso dizer
que não conseguiu. S ei que não matou sua filha, e que ela continua viva - Hilda se
mostrou terrivelmente assustada, mas procurou disfarçar, sem muito êxito. - N ão
se preocupe com ela, já a temos conosco. A gora, nunca mais tente nos enganar
desse modo, ou terá o mesmo fim que seu marido, o velho Risalv - o tom de
Mondovar era tão ameaçador que fez o coração de Hilda disparar. - Bem, vá embora
e cumpra sua tarefa. A energia para criar os Espectros A maldiçoados será enviada
a você quando chegar em Fontain.
Hilda despediu-se um pouco abalada com a notícia, deixando Mondovar
sozinho. Este, depois de uma volta pelo salão, foi até a parede oposta à da porta, e
puxou uma das pedras que estava solta. A metade inferior da parede se moveu
para o lado, como uma porta, revelando uma abertura onde um baú de madeira se
encontrava adormecido. D emonstrando completa desinibição, como se aquilo fosse
uma atitude rotineira, Mondovar puxou o baú, abriu-o, retirando de dentro um
cubo com faces negras. Ele então retornou o baú para o buraco, e colocou o cubo
em cima da mesa oval. Uma das faces do cubo mostrou um rosto coberto por uma
máscara de caveira, com os olhos ardentes em chamas. Mondovar sorriu satisfeito.
Fiz exatamente como me ordenou, e tudo saiu conforme o planejado. S igo
adiante?
S im... - uma voz rouca e cheia de ódio saiu do cubo. - Mais tarde enviarei novas
ordens. Por enquanto é só, tenho muito a fazer. Boa sorte - a máscara de caveira foi
se tornando cada vez menos visível, até desaparecer. O cubo ficou completamente
negro.
Mondovar sentou-se na cadeira, e entrecruzou os dedos. Tudo corria bem. Com
um pouco de sorte, dali a poucas semanas estaria marchando sobre a terra do gelo,
e erguendo o obelisco. Realmente tudo corria bem.
Capítulo XXXIV - O Salvador

O verme gigante continuava o seu rastro de pânico e destruição, e Vanhardt


tentava desesperadamente se libertar do tronco. Ele balançava como se fosse um
pêndulo de um relógio, cada vez com mais força, para frente e para trás. A base foi
se fragilizando, rangendo, e alguns estalos indicaram que ela se partiria a qualquer
momento. Vanhardt se inclinava tanto que quase se deitava na horizontal, até que
um estalo mais alto se seguiu, e o tronco se partiu, derrubando-o no chão. Ele
arrastou-se como um lagarto em direção à pedra onde Lila também lutava para se
libertar. Atrás dele, Green mordia violentamente as cordas que o atavam.
Lila! Esse monstro está destruindo tudo! - gritou Vanhardt.
Que bom que você reparou! E me tira logo daqui! - ordenou a fadinha, aflita.
Vanhardt demorou um pouco, mas, desajeitadamente, se agachou, deixando o
tronco onde ele ainda estava preso de ponta para cima. Com o devido cuidado,
pescou a rede de Lila, pondo-a no chão, e abrindo-a. A fadinha saiu voando
rapidamente, e conjurou uma pequena faca de gelo, que utilizou para serrar os nós
que prendiam Vanhardt. Logo que se libertou o rapaz e pensou em ajudar Green,
porém só viu cordas no chão a alguns centímetros do tronco onde o duende estava
amarrado.
O safado conseguiu se soltar e fugiu! - disse o rapaz olhando em volta.
S im, e se não fizermos o mesmo o verme vai acabar nos devorando! É muita
sorte ele estar entretido tentando derrubar aquela árvore, pois se tivesse vindo pro
nosso lado não sei o que seria de nós dois...
D urante o tempo em que eles lutavam para se libertar, o verme cravava suas
intermináveis fileiras de dentes numa árvore que devia ter milhares de anos,
tamanha era a sua largura (passava facilmente de dez metros de diâmetro). Havia
meia dúzia de pessoas na varanda da casa construída sobre aquela árvore, e todas
gritavam desesperadas, pois percebiam lucidamente que se caíssem o monstro as
comeria.
Lila, temos de ajudar essas pessoas! - disse Vanhardt, com os olhos iluminados.
- A pesar de estar furioso por eles terem nos prendido, não vejo honra em
simplesmente abandoná-los contra esse monstro! E garanto que minha mãe
aprovaria.
Mas como faremos para derrotar um bicho desse tamanho? Você está pensando
que é só chegar lá e dar duas ou três bofetadas, que ele desmontará no chão? É
insanidade enfrentá-lo!
Eu sou o filho de uma deusa, não sou? A lém do mais, essa bússola está
apitando e girando como louca desde que o verme apareceu, o que me fez imaginar
se Flama não estaria dentro dele. Vamos parar de jogar conversa fora e agir! Proteja
aquelas pessoas enquanto eu atraio a atenção do verme! A ntes, Crafo adimapla em
mim!
A fada obedeceu ao rapaz, e conjurou a magia. O verme já havia destroçado
mais da metade do tronco da árvore anciã, e as pessoas - três mulheres, duas
crianças e um senhor de idade -, se abraçavam com os rostos estampados de terror,
pois previam uma morte iminente. Vanhardt se admirou muito ao perceber que a
Guardiã da floresta, numa atitude heróica, subira no dorso da criatura carregando
uma espada. Ela tentava alcançar a sua cabeça, porém foi atirada no chão quando o
verme rodopiou o corpo, aproveitando para dar mais uma mordida na árvore.
O tronco não agüentou o último golpe e passou a emitir ruídos e estalos que
mais pareciam gritos de agonia, tombando lentamente. A s pessoas no alto
escorregaram, e sua queda era exatamente na direção da boca aberta do verme.
Utilizando a mesma magia na luta com o Crivmarion, Lila conseguiu fazer com
que as pessoas parassem no ar, e imediatamente gritou para Vanhardt:
Elas são muitas e eu não vou agüentar segurá-las nem mais alguns segundos!
Saia do meio desse mato e venha me ajudar!
O filho da deusa do gelo havia se embrenhado na mata para tentar uma de suas
idéias. Ele arrancou uma das árvores do chão, com raiz e tudo, utilizando a grande
força que agora tinha. Mesmo de posse desse poder sentiu um grande peso nas
costas, quando apoiou o vegetal no ombro direito. Ele girou, apontando a arma
improvisada para a criatura, e gritando de dor e com os músculos no máximo de
tensão, atirou a árvore contra o verme, atingindo o meio do corpo da criatura.
A quela idéia, na verdade, não era nada original: ele atirara há algum tempo atrás
uma lança contra o Crivmarion. E agora repetia a atitude, só que dessa vez a escala
era um pouco maior.
Vanhardt não chegou a resolver o problema, mas pelo menos não o piorou.
A ssim que foi atingido pelo tronco, o verme caiu no chão, e se virou para o herói.
Ele desistiu das vítimas que continuavam flutuando no ar e disparou em direção ao
filho da deusa do gelo, que aparentemente era uma refeição mais fácil. Q uando viu
o verme gigantesco se arrastando em sua direção, em alta velocidade, o rapaz
ergueu bem as pálpebras e disse consigo mesmo:
Oh-oh!
A fada, exausta, e não agüentando mais, permitiu que as pessoas desabassem
ao solo. N aquela altura o verme estava atrás de Vanhardt e, portanto, elas não
sofriam o risco de serem devoradas. Uma das mulheres que havia caído levantou-se
rápido, e apontou com o indicador para um ponto ao lado de Vanhardt, gritando
agoniada:
Alguém o ajude!
Todos notaram então que o verme não avançava para o filho da deusa do gelo,
como parecia, e sim na direção de uma criança que estava a poucos metros dele,
chorando de medo. O verme abriu a gigantesca boca, e preparou-se para engoli-la.
Faço uma pequena pausa aqui para explicar melhor esses fatos a certos leitores
que preferem descrições esmiuçadas em detalhes, e não admitem qualquer falha
em eventos. Em minha opinião está tudo bem explicado, mas o trabalho desse
velho bardo vive sendo criticado por qualquer motivo, e eu não quero oferecer mais
material para reclamações.
Em um primeiro momento, assim que o verme caiu ao ser atingido pelo tronco
em forma de lança, pareceu que ele avançava contra o filho da deusa do gelo. S ó
que ninguém percebera que existia uma criança há alguns metros de Vanhardt, a
nordeste, que se interpunha entre o rapaz e o verme. O u seja, o verme foi contra o
garotinho chorão (não o culpo por chorar, aquela criatura colocaria medo até no
mais heróico dos heróis), e provavelmente depois seguiria para Vanhardt.
Por alguns segundos, um silêncio varreu a vila, sendo que os únicos sons
audíveis eram o do verme se arrastando na terra e o do pranto da criança. O s
olhares assustados se fixavam na cena, que foi a seguinte: Vanhardt pulou para o
lado do menino, e o atirou verticalmente para cima, rolando para a direita em
seguida. O verme mergulhou no chão, acreditando que abocanharia os dois; na
verdade, conseguiu engolir quilos de terra e abrir um buraco no chão por onde
penetrou seu corpo cilíndrico. Vanhardt por sua vez, ainda assustado com o que ele
próprio fizera, esperava que o garoto caísse para apanhá-lo, mas como nem tudo
costuma sair como planejamos, o verme surpreendeu o jovem.
A criatura saiu do buraco por onde entrou, com a boca aberta, erguendo-se a
cinco ou seis metros do chão, esperando a criança cair. Vanhardt nunca imaginou
que o monstro possuísse esse grau de inteligência (ou seria instinto?). A vila
inteira, que por alguns segundos achou que o garotinho estaria salvo, voltou a ficar
petrificada, observando perplexa a queda do garoto em direção à boca do verme.
Vanhardt notou que não daria tempo para improvisar qualquer coisa, pois o
menino caía vertiginosamente e estava a apenas alguns metros da criatura. A lguns
taparam os olhos para não ver, outros soltaram gritos de pânico. A Guardiã da
Floresta, que até àquele momento estava deitada no chão, aparentemente
inconsciente, levantou-se com dificuldade, mas também se frustrava ao ver que não
poderia fazer nada por mais aquela vítima.
Foi assim que, surpreendendo os poucos que tiveram coragem para continuar
observando o garoto, um vulto irrompeu do meio das árvores, pendurado em um
cipó, gritando:
ÔOOOooooOOOoooOOO!
O vulto conseguiu agarrar o garoto pelos braços, quando as pernas dele
estavam a um ou dois palmos da fileira superior de dentes da criatura. A inda
balançando no cipó, o vulto levou o garoto de volta para a floresta, a salvo. A lguns
deram vivas, enquanto Vanhardt correu e deu socos no corpo do verme, com toda a
força. A criatura gemeu, e pareceu se desinteressar da vila, mergulhando na terra e
afastando-se para bem longe. D epois de alguns segundos sentado no chão,
ofegante, aproveitando para descansar um pouco, Vanhardt pôde repassar
mentalmente suas últimas proezas. Lila logo estava ao seu lado repreendendo-o:
S eu louco, por que foi dar aqueles murros no verme? N ão passou pela sua
cabeça que você era o mais próximo a ele, e que seria devorado? N ovamente demos
sorte, aliás uma sorte incrível, por ele ter fugido.
A h, Lila, nem pensei nisso! S enti uma força muito grande vindo dele, que me
atraía. Posso jurar que ela vinha de Flama. E eu também queria distraí- lo, para que
não fosse atrás do garoto. A liás, o que eu gostaria de saber era quem salvou o
menino. Teria ele relação com os olhos vermelhos que vi...? - a expressão de
Vanhardt era pensativa.
Quais olhos vermelhos?
Uns olhos que vi no meio da mata, logo antes do verme aparecer.
N esse exato momento os habitantes sobreviventes da vila começaram a bater
palmas e dar mais vivas, além de assobiar com os dedos entre os dentes, e
Vanhardt e Lila olharam para a direção onde todos apontavam. D o meio da
floresta, carregando no colo o garoto que então sorria de felicidade, vinha
caminhando tranqüilamente e com peito estufado o salvador. N inguém poderia se
assustar mais do que o filho da deusa do gelo e sua amiga fada, quando notaram
que quem carregava o garoto era Green.
Capítulo XXXV - A Maldição e o Quarto Integrante

Vanhardt, agora perplexo, observava os habitantes da vila cumprimentarem o


duende. A mãe do garoto tirou-o do colo de Green, curvando-se perante ele e
beijando o dorso das suas mãos. Meio sem jeito, coçando os escassos cabelos da
nuca, Green parecia apreciar a gratidão desmedida demonstrada pelo povo, que
agia de modo semelhante à mãe do menino e também lhe beijava as mãos.
Vanhardt, que pensara tão mal do duende, chamando-o de egoísta, e dizendo que
ele só preocupava-se consigo mesmo, sentia uma pontada de arrependimento.
D epois de uma atitude tão nobre e corajosa, todo o conceito que o rapaz formulara
ia por água abaixo.
Green... O que você fez foi... er... bem, desculpe por ter pensado mal de você
antes... - Vanhardt estava visivelmente constrangido por ter de pedir desculpas.
Eu estou acostumado a todos me verem como um covarde! A gora talvez você
possa parar de me humilhar, e me tratar como alguém digno! - Green tentava se
passar por sério.
Tudo bem...
N aquele momento, os dois se apertaram as mãos, e Lila também pediu
desculpas ao duende, que as recebeu satisfeito. A vila inteira estava reunida em
torno dos três heróis, até que do meio da multidão surgiu a Guardiã da floresta e o
S enhor ao seu lado, que dava sonoras gargalhadas, segurando a barriga com uma
das mãos. A Guardiã, ao parar em frente aos três, fez algo que deixou todos
boquiabertos - abaixou o capuz, revelando a face.
Era realmente uma mulher bonita, com os cabelos negros amarrados num rabo
de cavalo. S uas feições eram graves, de uma verdadeira guerreira, amansada (ou
aumentada!) pelos profundos olhos verdes, que fulguravam à luz do luar. A pele
era um pouco mais clara do que a dos outros habitantes, provavelmente pelo fato
de ficar encoberta a maior parte do tempo. N ão apresentava mais nada que
chamasse a atenção, e por isso mesmo surpreendeu Vanhardt que talvez esperasse
alguma mutilação, ou defeito grave, quem sabe umas tatuagens. A Guardiã disse
então com ar misterioso:
Vejo que não precisamos de testes, não concorda Ebeion?
É claro que não, Ravina! A profecia estava mesmo correta... quem diria!
D esculpem-nos pelos transtornos, rapaz, fada e duende. D eixem nos
apresentarmos adequadamente: meu nome é Ebeion, e esta é Ravina - o S enhor
apontou para si mesmo e depois para a Guardiã. S ejam bem vindos à humilde vila
de Fhirjn. Poderiam nos dizer os seus nomes?
Após se apresentarem, Vanhardt tomou a frente do grupo e falou, zangado:
S ó agora que salvamos a vila da ameaça daquele monstro é que nos tratam bem!
E que profecia é essa, da qual tanto falam? Querem nos dar algumas respostas?
S im, respostas e alguns tesouros como agradecimento não seriam ruins! - Green
comentou, esfregando as mãos.
Green, pare com isso! N ão somos mercenários - dessa vez foi a fadinha que se
adiantou.
Talvez você e Vanhardt não sejam, mas eu não ligo se me recompensarem.
Principalmente se for com algumas moedas de ouro, ou quem sabe gemas
preciosas. Aliás, algo que desse pra encher a pança viria em boa hora...
-— Q uerem ficar quietos, os dois? Primeiro vamos ouvir as respostas sobre essa
profecia! - Vanhardt repreendeu Green e Lila, que se encaravam mutuamente,
fazendo biquinhos com a boca e os braços cruzados.
Ebeion tomou uma tocha acesa de um dos habitantes, e acenou com a mão
pedindo que o seguissem. Eles se aproximaram da pedra gigantesca incrustada no
centro da vila, a mesma sobre a qual ficou a rede com Lila dentro, fazendo um
semicírculo em torno dela. Com o seu próprio rosto e o de Ravina iluminados pela
tocha, o Senhor disse:
Laodicéia, faciepor, tesrom a!
A pedra passou a tremer, e ergueu-se sobre uma das bordas, caindo para trás
com um estrondo que se espalhou pela floresta ali próxima. A dmirados, Vanhardt
e os outros perceberam que a face inferior da pedra, que ficava anteriormente
deitada sobre o chão e era plana, agora estava toda revelada. Havia desenhos que
só puderam ver direito quando o S enhor se aproximou com a tocha, e pediu que
eles chegassem mais para perto.
Minha deusa, não é possível... somos nós! - Lila falou com a voz fininha, quase
um sussurro, apontando para um dos desenhos.
O que a fada viu foi o desenho de um rapaz, com uma fada voando ao seu lado,
e um duende do outro. O rapaz estava descalço, e era idêntico a Vanhardt. N ão
preciso dizer que a fada e o duende eram iguais a Green e Lila. Até mesmo as
algemas penduradas no pescoço de Green estavam representadas na figura. Em
outro desenho eles viram o verme gigante devorando árvores e pessoas. Todos
entenderam que essa profecia, representada pelos desenhos, indicava o que
acontecera na vila. Havia também inscrições, que eles não podiam ler, mas que o
Senhor fez o favor de explicar a todos:
A s inscrições aqui foram lidas para mim quando eu era ainda criança, pelo
antigo S enhor, meu pai. N ão posso lê-las, por isso tentarei lembrar exatamente o
que me foi dito. Papai falou que um dia, quando o mal se aproximasse, uma de suas
faces seria a de um animal grande, que causaria terror, pânico e destruição pela
vila. N ós não estaríamos condenados, entretanto, pois chegariam os heróis (vocês
três) que derrotariam o monstro, restabelecendo a paz e a tranqüilidade.
Essa parte eu entendi. Mas e os testes que vocês pretendiam fazer conosco?
Quais seriam? - Vanhardt perguntou com a mão no queixo.
Colocaríamos vocês numa panela com água fervente, para vermos se seriam
capazes de escapar! S e conseguissem, ficaria provado que eram os heróis da
profecia.
Estão vendo? Eu não falei que eles eram uns canibais? Eu avisei, mas ninguém
ouve o Green, por que ele sempre...
Cala a boca, Green! Há outro desenho aqui e vocês não falaram dele - disse a
fada, dando um tapa na nuca do duende e interrompendo o falatório. - Parece um
lagarto, só que está sobre duas pernas, e os dois braços possuem garras que
parecem poder fatiar carne sem dificuldade. I sso sem contar a enorme boca aberta,
com uns dentes maiores ainda, e esses olhos vermelhos...
O s olhos vermelhos! - gritou Vanhardt, saltando e colando os olhos na figura. -
S ão eles, os mesmos que vi na mata! Q uerem explicar o que esse lagarto faz do
nosso lado aqui no desenho?
O S enhor e a Guardiã se entreolharam, sem nada dizer. Ravina cruzou os braços
e tomou a iniciativa mal abrindo a boca:
Vai ter que contar pra eles também a história da maldição de Lázarus, se quiser
que eles persigam e derrotem o verme.
Q uem é Lázarus? E o que os faz pensar que nós três vamos atrás daquele
verme? N ão somos imbecis! Preservamos a nossa vida como um bem
preciosíssimo! O verme quase destruiu a vila inteira, e além do mais...
Q uer fechar essa matraca, Green? - Vanhardt interrompeu o duende, que por
sua vez amarrou a cara. - Credo, não pára de falar! Permita que eles contem a
história!
O S enhor colocou a mão fechada na frente da boca, e pigarreou, para depois
narrar em voz baixa:
"Há centenas de anos, a nossa vila Fhirjn, que era no mínimo três vezes maior
do que é hoje, passou a sofrer constantes ataques de animais famintos, tais como
gatos selvagens, trolls e ores. Graças à nossa inabalável devoção, e aos pedidos
inflamados do nosso povo, a venerável deusa Laodicéia nos deu sua benção. Ela
invocou um poderoso monstro, Lázarus, um lagarto que só de longe lembra um ser
humano. N o começo Lázarus atacava impiedosamente qualquer outra criatura que
se aproximasse da vila, e assim ficamos protegidos. Comemoramos com festas e
muita alegria, mas a felicidade não durou muito. Lázarus se embebedou do próprio
poder, e não satisfeito por se alimentar dessas criaturas, passou a atacar os
habitantes de nossa vila. Foi assim que, mais uma vez, Laodicéia cedeu aos nossos
apelos, e foi generosa conosco. Ela dividiu o poder, que antes era concentrado em
apenas uma figura, em duas: uma seria o S enhor, homem que cuidaria da
promoção do bem estar, saúde e educação dos habitantes, bem como do
desenvolvimento físico da vila. A outra figura seria a Guardiã da floresta, mulher
responsável pela caça, pelo patrulhamento e vigilância das matas, e por aquela que
acreditamos ser a função primordial: proteger a nossa vila de Lázarus. Esse cargo
deveria passar de geração a geração, e de pai para filho, bem como de mãe para
filha. E mais; um S enhor e uma Guardiã da floresta nunca deveriam se casar, com o
risco das bênçãos se perderem, e o caos invadir nosso povo".
"Foi assim que, abençoadas pelo poder da deusa da natureza, as Guardiãs
lutaram contra Lázarus durante séculos e séculos. N enhuma delas matou o lagarto,
pois ele era uma criatura de nossa deusa, e revelava sua função dentro do
equilíbrio da natureza, mas Lázarus nunca mais fez vítimas entre os nossos. A liás,
durante muito tempo não o víamos, e ele só foi reaparecer hoje, se é que realmente
Vanhardt estava certo quanto aos olhos que disse ter visto na mata. Essa profecia
da pedra, no entanto, é mais recente que o surgimento de Lázarus ou do cargo de
S enhor e Guardiã; creio que de cerca de duzentos anos atrás. Foi nossa própria
deusa que a concebeu, depois de um dia e uma noite inteira na qual foi vítima de
uma doença que só ataca os deuses. Todo o suor da febre endureceu, e virou uma
pedra, que voou de seu castelo e caiu no centro de nossa vila. I mediatamente a
pedra se fortaleceu com a energia do nosso povo, e cresceu, se tornando o que
vocês estão vendo agora. A profecia já estava desenhada nela."
O s irjnianos ficaram quietos, tensos, esperando a reação dos heróis. O único a
falar foi Vanhardt:
N ós vamos ajudá-los. I remos atrás desse verme, e acabaremos com ele,
evitando que mais lágrimas sejam derramadas por seu povo.
Como assim, Vanhardt? Esqueceu-se de que nosso objetivo aqui é buscar aquele
item? - murmurou a fada.
Eu sei, Lila, e é por isso mesmo que vamos atrás do verme. A bússola disparou
quando ele apareceu, girando como louca e apitando. A credito que o que
procuramos possa estar dentro dele.
Hum... Boa sorte pra vocês dois! Eu é que não vou nessa jornada maluca.
Posso até estar desenhado aí nessa pedra, apesar de achar que o desenho parece
mais com o meu irmão... Enfim, não vou me arriscar e pronto.
Green, o salvador, irá conosco também, S enhor - disse Vanhardt, contrariando o
duende. - O u então ficaremos sem um guia nessas matas. A lém do mais, acredito
em profecias, e se Green está nelas, não deixarei que ele se afaste da gente.
Q uem é você pra dizer o que irei ou não fazer, seu chato? Mesmo sendo o filho
de uma - Green gritou um "A i!" quando o rapaz deu-lhe uma cotovelada nas
costelas - Err... filho de mãe e pai valentes e fortes! Você nem o arranhou, trouxa, e
acha que pode vencê-lo?
É por isso mesmo que você não ficará nessa vila, ou na floresta, e correr o risco
de enfrentar o verme sozinho. Eu sei que tem incríveis capacidades, principalmente
as relacionadas com essa boca enorme que não se cala nunca, mas lutar sozinho
deve ser um pouco complicado, não é?
O duende abaixou as pálpebras, e ficou com os olhos miudinhos, encarando
Vanhardt. Ele coçou os cabelos, e antes que dissesse alguma coisa, a mãe do garoto
que Green salvara se adiantou e disse, ajoelhando-se aos seus pés:
Por favor, pequeno herói verde! Ajude-nos!
Green parecia ter formigas pelo corpo, tanto era que se coçava. Relutando
muito, disse numa voz fingidamente corajosa:
Vocês precisarão de minha fabulosa inteligência, inigualável perspicácia e
astúcia ilimitada, ou serão vítimas fáceis. S ó não entendi uma coisa; como vamos
atrás dele? Essa floresta tem centenas de quilômetros de extensão, e encontrá-lo
seria tão difícil quanto achar um duende no meio de um exército de gigantes!
I sso não é problema. Lembra-se dabússola, que você "pegou emprestada" sem
me pedir? Ela aponta para um artefato que procuro, e que está dentro do verme. S e
formos para onde ela indica, encontraremos o monstro sem dificuldade.
Q ue bom! - exclamou o S enhor, satisfeito. - A gora que os três heróis estão
reunidos, e tudo se definiu, prepararemos as provisões, pois amanhã cedo devem
estar prontos para partir. Espero que gostem de biscoitos, porque estamos com
pouca carne...
N ão serão apenas os três que irão, Ebeion - a Guardiã falou antes de novamente
cobrir o rosto com o capuz.- S e a profecia está correta, Lázarus estará com eles
quando forem enfrentar o verme. E certamente não serão capazes de encarar dois
inimigos ao mesmo tempo. I rei com eles para evitar que Lázarus os ataque, e
aproveitarei para servir de auxílio e guia dentro da floresta.
Com grande surpresa, e depois de meia hora de impasse, Ebeion aceitou que
Ravina seguisse com os três heróis atrás do verme. Em um cômodo destinado às
figuras mais importantes de Fhirjn, Vanhardt, Lila e Green, além de Ebeion e
Ravina, comeram sem muito entusiamo a refeição que consistia em um pequeno
pássaro assado, magro. Enquanto eles descansavam, os habitantes comuns se
empenharam em enterrar seus mortos e tratar dos feridos, ao mesmo tempo em
que retiravam pedaços de madeira espalhados pelo chão, e martelavam as casas.
A pós a parca refeição, os três heróis da profecia se ajeitaram em uma das poucas
habitações que sobrevivera intacta às investidas do monstro, ficando junto com
uma família formada por pai, mãe, e nove filhos, sendo que os dois mais novos
eram gêmeos. Green roncava tanto que eles dormiriam mal se não estivessem tão
cansados. Horas depois, os primeiros fachos de luz do sol penetravam pelas folhas
que dançavam suavemente ao vento.
Capítulo XXXVI - O Segredo de Lázarus

A ssim que desceram as escadas de corda naquela manhã, Vanhardt, Green e


Lila puderam presenciar o final de uma discussão entre um dos guerreiros da vila -
o mesmo que prendera Lila na rede, quando eles foram capturados - e Ravina.
E como sabe que Lázarus não ficará na vila, e nos atacará? - o rapaz, que devia
ter pouco mais de vinte anos, falava exaltado.
Porque acredito na profecia. E você deveria fazer o mesmo, Elói - respondeu
Ravina, por baixo de seu capuz.
O jovem guerreiro, visivelmente aborrecido, virou as costas e deixou aquela
espécie de reunião, onde estavam Ebeion, Ravina, e mais seis outros. A o constatar
que Vanhardt, Lila e Green haviam acordado, o Senhor ergueu as mãos para o alto:
N em acredito que vocês vão mesmo! Estou certo de que a missão correrá bem, e
todos voltarão sãos e salvos...
D uvido muito que nós quatro sobrevivamos - resmungou Green tão baixo, que
só ele próprio pôde ouvir.
Vejo que pegaram as provisões. Realmente não é muito, mas foi o melhor que
pudemos arranjar - Ebeion, durante a manhã, havia providenciado mochilas com
equipamentos e alimentos para a viagem.
Não se preocupe, Senhor. Se nos faltar alimento, improvisaremos
comentou Vanhardt, jogando displicentemente a mochila com as provisões nas
costas.
Poupe-me desse título ridículo - o S enhor balançou a cabeça negativamente. -
Agora somos amigos, pode dizer meu nome.
Se prefere, Ebeion.
Ótimo, assim estamos combinados. A h, já ia me esquecendo de uma coisa.
Tome; este par de botas é seu. - Ebeion estendeu um par de botas de couro bem
grosso, marrom. - Nem sei como agüentou andar nessa floresta descalço!
Mesmo um acostumado irjniano passaria por dificuldades, e depois de uma
semana teria calos e bolhas enormes para lhe importunar os pés.
É que a sola do meu pé é grossa - justificou-se o rapaz de modo pouco
convincente.
S ei. Mas não se preocupe a partir de agora. Essas botas foram feitas por nossa
melhor costureira, em apenas uma noite! Elas estão abençoadas por Laodicéia, e o
protegerão se tiver de percorrer maus caminhos. Q ue assim seja, meus amigos - ele
fez questão de cumprimentar calorosamente com a mão cada um, até mesmo a
Guardiã. - E que Laodicéia proteja todos vocês!
S ob aplausos e gritos de incentivo dos guerreiros que ali estavam e dos
habitantes que acordaram, Vanhardt, Ravina e Green saíram de Fhirjn com
mochilas nas costas, e Lila voando sobre eles. Levavam tochas, uma corda de vinte
metros, biscoitos secos de aspecto horrível que não tiveram a coragem de
perguntar do que foram feitos, sementes de uma fruta chamada fasjames (muito
energéticas, segundo uma velhinha), ovos de pássaros, um quilo de carne
defumada, além de facas, duas espadas e outras bugigangas. Vanhardt não notou
muita diferença ao caminhar com as botas. N um primeiro momento ele chegou a
achar que elas lhe proporcionariam maior conforto, porém isso não aconteceu.
Provavelmente o fato ser filho de uma deusa explicava sua maior resistência às
agruras causadas pelo chão acidentado da floresta. A cem metros da vila, já sob
mata fechada, Green começou a reclamar:
A minha mochila está muito pesada! Estão achando que eu tenho cara de ogro?
N ão agüento tanto peso! - ele fez uma careta. - Puxa Vanhardt, bem que você podia
carregá-la pra mim. S endo filho de uma deusa seria muito mais fácil... - Green
parou de falar quando viu os olhares furiosos de Lila e Vanhardt. - Xi... falei
demais, né?
I nacreditavelmente, Ravina continuou caminhando sem nem um comentário,
como se nada tivesse acontecido. Era óbvio que ela escutara, porque Green havia
pronunciado as palavras "filho de uma deusa" naquela voz esganiçada de sempre,
entretanto a Guardiã não esboçou um "ah" sequer. Vanhardt pensou que ela estava
se fazendo de boba. Ele, no entanto, apenas deu um tapa na nuca de Green, e
procurou não tocar no assunto. Quanto menos alarde sobre aquilo melhor.
A s horas foram passando, e com elas os dias. Lila tentou algum contato com a
deusa do gelo, que resultou em nada. Fosse a distância, ou estarem no território de
outra deusa, o fato é que não tinham o auxílio de Léia. A pós caminharem por três
dias, e dormirem as respectivas três noites, o grupo já estava exaurido de
alimentos, e discussões surgiam de cinco em cinco minutos:
Você come demais, Vanhardt! Parece um boi! - disse Green, chupando os dedos,
sujos com o farelo do biscoito que aprenderam a adorar.
-— E você, desse tamanho, come igual a um humano! Eu e Ravina precisamos
de mais energia - Vanhardt revistava a mochila numa busca infrutífera por
qualquer resquício de alimentos.
Eu posso fazer a minha bolha...
N em vem, Lila! Eu já fui vítima dessa bolha sua ontem, tá esquecida? N ão
conseguia caminhar meio metro sem bater em algum tronco - Green passara a
chupar os dedos da outra mão.
Vou caçar - a voz de Ravina fez Green dar um berro de susto, e Vanhardt e Lila
se entreolharem surpresos.
D urante aqueles dias, a Guardiã falara muito pouco, praticamente se limitando
a responder sim e não quando perguntada. S e tinha que descrever algo, o fazia em
menos de cinco palavras. Ela também não mais abaixou o capuz para revelar sua
face, e suas mãos nunca chegaram a ser vistas por Green ou Vanhardt, os mais
curiosos. Vanhardt até disse que viu as mãos dela na vila, mas Green desmentiu,
argumentando que era imaginação dele. O duende imaginava tatuagens recobrindo
seus braços, e Vanhardt acrescentava detalhes, como dedos mutilados. O s dois só
trocavam essas idéias quando se certificavam de que a Guardiã não era capaz de
ouvi-los. Lila era a única que dizia ser uma ridícula perda de tempo discutir sobre
aquilo. N ão se deixar ser vista era simplesmente uma questão cultural, sem
nenhum significado mais profundo, e aquelas confabulações eram puro
preconceito dos dois.
A gora está de noite, Ravina... Você encontrará alguma coisa? A lém do mais
Lázaras pode aparecer - disse Vanhardt.
S e ele não se pronunciou até agora, acho difícil que resolva fazê-lo justamente
nos poucos minutos em que estarei longe. E o fato de estar de noite só ajudará na
caça. Estou acostumada com isso, não se preocupem. D emorarei menos de uma
hora.
Mas você não quer companhia? - perguntou Vanhardt, solícito, buscando a
espada que guardara na cintura.
Claro que não! Vocês são lentos e barulhentos. Trabalho melhor sozinha.
E assim Ravina partiu, com uma faca na cintura e um bastão nas mãos.
Vanhardt não entendia porque ela se recusava a usar uma espada, preferindo
um bastão de madeira da espessura de um dedo grosso e com dois metros de
comprimento. Ele até se lembrou de que quando a Guardiã enfrentou o verme,
subindo em seu dorso, carregava uma espada. Ravina respondeu que preferia o
bastão pelo seu tamanho, podendo atingir inimigos a uma distância maior, e com
um equilíbrio melhor da arma. N a luta contra o verme usara uma espada porque
achara que conseguiria perfurar a pele de dentro da sua boca, mais fina. O bastão
seria inútil na ocasião.
S omente Green ficou apreensivo sem a presença da Guardiã. Vanhardt por sua
vez acreditava que era precaução demasiada levarem Ravina com eles, e que ele
poderia dar conta tranqüilamente de um lagarto um pouco mais desenvolvido. D e
fato, ele até pensara que a profecia estava errada naquele ponto, e que Lázarus não
os perseguia. Green então o cutucou com as mãos trêmulas, e voz relutante.
Você está ouvindo esse barulho?
Qual, Green? - perguntou Vanhardt desanimado
Esse! Preste atenção, vem da mata! N a direção contrária à que Ravina foi. Parece
alguma coisa rastejando entre as árvores! - o duende estava nervoso e agitado.
S ó estou escutando minha barriga roncar. Você está imaginando coisas,
verdinho, não quer dormir?
É sempre essa frase que a gente escuta quando há alguma coisa de prestes a
acontecer. Ó Lila, você não está escutando nada daí?
N adinha, Green. E olha que meus ouvidos não são ruins, cortesia da deusa do
gelo.
Vocês dois estão enganados, e hão de se arrepender por não acreditarem em
mim.
Meia hora mais tarde, Ravina voltava carregando dois esquilos, que foram
motivo de festa por parte de Green e Vanhardt. O duende disse que ouviu barulhos
estranhos vindos da mata, como o de algo se arrastando, e Ravina ficou mais
apreensiva do que Green esperaria.
S e ouvir algo novamente me avise. N ão podemos ser negligentes, e ignorar algo
como isso. Lázarus pode ter visto que eu não estava próxima de vocês três, e ficado
mais imprudente.
O duende gostou da fala da Guardiã, e depois veio a comentar que ela sim
parecia uma poderosa guerreira, e talvez até ajudasse na luta contra o verme.
Vanhardt ficou mal humorado, e preocupou-se em não ouvir o falatório do duende.
D ormiram o resto daquela noite (Lila era sempre a vigia, pois não precisava
dormir, e ficava sobre o galho de uma árvore), e no outro dia seguiram caminho.
Comeram no almoço o resto dos esquilos que capturaram na véspera, e antes de
anoitecer estavam famintos novamente.
Mais uma vez Ravina saiu para caçar, e minutos depois Green tornou a ficar
agitado, dizendo ouvir barulhos muito mais fortes que os da noite anterior. Ele
insistiu em ter avistado um vulto, o que não foi confirmado por Lila ou Vanhardt.
O s três ficaram atentos até que a Guardiã retornou com mais uma bela refeição:
algumas frutas fasjames (vermelhas, suculentas e docinhas) e uma coruja bem
gorda. Green alertou-a sobre o que viu e ouviu, e a Guardiã pediu que redobrassem
a atenção.
O dia seguinte foi extremamente incômodo para Vanhardt. Green a todo
momento parava, pois parecia escutar alguma coisa. O jovem sabia que o duende
estava se tornando paranóico, opinião da qual Lila compartilhava. Ravina mantinha
o seu jeito discreto, sem falar muito, e ninguém sabia o que ela pensava. Q uando
foi perguntada se não achava que Green estava exagerando, ela disse apenas um
"não" sem emoção. A lmoçaram o que restara do jantar e Green nem reclamou da
parte que sobrara para ele, fato inédito desde quando partiram. A o fim do dia ele
se mantinha mais cabisbaixo e desconfiado, se assustando com qualquer
movimento ou barulho. À noite, quando Ravina saiu novamente para caçar, Green
suava frio e parecia febril. S eu queixo tremia, e a respiração era ofegante. Em
determinado momento, ele fixou os olhos no meio da mata, e parou de piscar.
Vanhardt começou a preocupar-se com o duende, que podia estar passando mal.
Green? Green! Olha pra mim rapaz, o que foi?
Green, olha pra mim também! Conte-me o que está sentindo, talvez eu possa
fazer alguma magia pra te ajudar - disse a fada pousando no ombro do duende.
A li! - ele apontou para um ponto entre as árvores, com os olhos arregalados! -
Está ali! Eu pego o desgraçado! AH!
D esesperadamente, Green tirou uma adaga da cintura e partiu para o meio da
floresta, gritando como louco, derrubando a fadinha. Vanhardt e Lila
desembestaram atrás dele, e o encontraram minutos depois, caído no chão.
Eu o acertei no rosto... Eu vi! Era ele mesmo! E me fez um corte aqui na barriga,
ah! Eu vou morrer não é? - seus olhos imploravam por ajuda.
A camisa do duende apresentava três cortes paralelos, deixando evidente o fato
de que uma garra a golpeara. A ferida não era muito profunda, mas um sangue
vermelho começara a escorrer. Lila conjurou uma magia (Aruc vanidi), fazendo com
que de suas mãos brotassem uma luz amarela, posicionando-as sobre a barriga do
duende. Ao olhar depois para aquela parte do seu corpo, ele mesmo não acreditaria
que fora ferido. A mparando Green, que se dizia sem forças, Vanhardt levou-o de
volta ao lugar onde haviam acampado. Minutos depois a Guardiã chegou, trazendo
dessa vez apenas três fasjames.
Sinto muito, consegui pouco. Deve ser porque o verme está próximo, e...
Chega desse falatório estúpido! Chega de mentiras - Vanhardt largara o duende
no chão, e olhava furioso para Ravina, caminhando em sua direção com passos
firmes. - J á entendi tudo, sua vil mentirosa! - para desespero da Guardiã, que ficou
sem reação, ele abaixou à força o capuz do seu rosto, revelando um corte
horizontal, um pouco abaixo do olho direito. - Esse corte foi feito pela adaga de
Green, não foi? Que tal mostrar a sua verdadeira face... Lázarus?
Vanhardt terminou de arrancar a capa que cobria Ravina, e todos puderam ver
que seu antebraço direito parecia ser coberto por uma escama de cobra, verde e
amarela, brilhante, que ia do pulso ao cotovelo. Green e Lila ficaram aturdidos, mas
Ravina permanecera séria, impassível. Ela pegou a capa, e enrolou apenas o
braço, olhando para os presentes. Depois disse calmamente:
— Então você não é o único a esconder segredos, Vanhardt. Está correto, pode-
se dizer que sou a criatura de nome Lázarus. E o que pretende fazer quanto a isso?
Capítulo XXXVII - A Escolha de Léia

N a manhã do dia anterior àquele, em uma planície da terra do gelo ao leste da


cidade de D aicevalor, Léia se enrolava em um casaco de peles branco enquanto
caminhava sob uma forte tempestade de neve. N ão que ela sofresse pela baixa
temperatura, e por isso usasse o casaco, mas era útil no sentido de não despertar
suspeitas em humanos desavisados que a vissem. Em um determinado ponto ela
parou, e passou a mirar ao redor, com os olhos apertados. Um a um, lobos
surgiram de todos os pontos cardeais, e se reuniram em torno dela. Eles vinham
com a cabeça baixa, e faziam sinal negativo quando a deusa do gelo perguntava:
Encontrou? E você? - apontava para outro, que também balançava a cabeça
negativamente. - N ão é possível, não há sinal de S elena em nenhum lugar. Como
ela desapareceu dentro de meus domínios, e não deixou nenhuma pista? I sso só
pode ser trabalho de algum deus. Humanos comuns, ou qualquer outra criatura
que a seqüestrasse, provavelmente deixariam alguma pista ou sinal.
A deusa do gelo fez sinal para que os lobos continuassem a busca, dessa vez
num perímetro mais largo. Ela não desistiria tão facilmente de encontrar a esposa
de seu filho. Q uando os animais saíram com as novas ordens, Léia retirou seu cetro
de dentro do casaco, e apontou para o céu. D ele jorraram faíscas vermelhas que se
ergueram metros acima da cabeça da deusa. Ela esperou por quase uma hora,
quando um vulto apareceu, descendo uma colina ao norte.
Era um minotauro, um pouco mais esguio do que aqueles com os quais tivera
contato até então. A alguns passos da deusa ele limpou a neve que se acumulava
sobre os pêlos do rosto, fez uma mesura, e falou alto para poder ser ouvido, pois a
tempestade de neve continuava forte e abafava os sons.
Preciosíssima Léia, deusa do gelo, vim aqui corno requisitado. D isse que
precisava mandar uma mensagem para meu irmão, Taurok. N ão entendo porque
não utilizou os meios convencionais...
N ão fiz uso de nenhum objeto comunicador, pois temo estar sendo vigiada -
respondeu a deusa do gelo em voz mais alta. - Há alguém do qual desconfio, e por
isso não posso dispor de certos luxos. E é por causa desse mesmo alguém que
preciso da ajuda de seu irmão.
S uas palavras são ordens, dama do gelo. Taurok me disse que posso considerar
o que vier de sua boca como saídas da dele próprio.
N ão seja exagerado! É apenas um pedido, um grande pedido, mas não uma
ordem. Preciso que Taurok me ajude com um contingente razoável de minotauros,
além dele próprio, se possível. A nseio pegar um possível traidor amanhã em meu
castelo, porém minhas forças sozinhas não seriam suficientes para isso. A lém do
que, meu próprio lar abriga exércitos desse possível traidor - a deusa tinha no rosto
um tom pesaroso.
Então devo supor que ele seja Zing, o deus dos insetos? - o minotauro
continuava limpando a neve que insistia em se acumular, principalmente sobre seu
focinho.
Exatamente. Ele não pode suspeitar de nada, e é por isso que Taurok deve
enviar os exércitos aos poucos, e por uma passagem secreta cuja localização será
devidamente fornecida. Eu chamarei Zing, fingindo desejar a presença dele para
algum tipo de festa. O deus dos insetos é previsível, e certamente não recusará. A
partir daí, eu o colocarei contra a parede, e veremos como ele se sairá com as
perguntas que lhe farei.
Entendi, honorável dama, e enviarei o seu pedido para meu irmão, o venerável
Taurok. Como faremos para enviar a resposta?
Oswaldo irá até o labirinto amanhã, e pegará a resposta.
Sim, é claro. Há alguma outra maneira em que posso servi-la?
N ão, você já foi muito prestativo - a deusa recolheu o cetro dentro do casaco, e
olhou ao redor mais uma vez. Ela então tirou um rolo de pergaminhos amarrados
com uma fita de seda, escarlate, que entregou ao minotauro, acrescentando. - A qui
estão mapas do meu castelo, onde consta a localização da passagem secreta. E
muito obrigada! Estou devendo demasiados favores a Taurok.
N ão há de quê - o minotauro fez uma reverência, se despedindo da deusa. - Ele
sempre está disposto a ajudá-la - o mensageiro ainda deu três passos de costas,
antes de se virar e rumar para o sul.
A deusa observou o minotauro desaparecer sob a cortina de neve, fornecida
pela tempestade. Ela realmente preparava uma armadilha para Zing, e contava com
a ajuda de Taurok para isso. Léia fechou os olhos, girou o corpo, fazendo subir uma
fumaça branca ao seu redor, e instantaneamente se transportou para o salão do
trono do castelo de cristal. Retirou o casaco, colocou-o no braço do trono, e sentou-
se. N inguém imaginaria, entretanto, que a armadilha não era para desmascarar
apenas Zing. Até hoje, não entendera muito bem como Taurok soubera que ela
estava em perigo, e se dispusera a ajudá-la.
D elicadamente, Léia acionou um botão que até antes da batalha contra Ghar
não existia, abaixo de um dos braços do trono. Centenas de lanças de gelo de dois
metros de comprimento surgiram instantaneamente de orifícios no teto e no chão
de todo o salão. Elas formaram uma espécie de gaiola, que também era preenchida
com lanças que não se tocavam por apenas alguns milímetros. S e alguém estivesse
em qualquer lugar do salão, exceto o trono, teria uma das lanças atravessada no
corpo. A armadilha funcionava bem, e serviria de ameaça não apenas contra Zing,
mas também contra Taurok.
Léia repousou o pescoço no encosto do trono, e chamou o seu assistente,
O swaldo, imaginando se aquilo não seria covardia da parte dela. O coelho entrou
saltitante no salão, e disse balançando as orelhinhas timidamente:
Magnífica Léia, ó grande deusa do gelo, seu fiel assistente O swaldo se
apresenta. O que deseja?
Tenho uma importante missão para você, O swaldo. N a verdade, são duas
missões. Primeiramente deverá ir até a colméia gigante de Zing, e dizer que estou
convidando-o a comparecer ao castelo de cristal amanhã, como convidado de uma
festa. O horário é o mesmo de sempre. D epois que ele se manifestar, imagino que
positivamente, vá até o labirinto dos minotauros, e ouça a resposta que aguardo de
Taurok. Muito cuidado, entretanto! Certifique-se de que não seja seguido, de
nenhuma maneira.
Entendi perfeitamente, ó grandiosa, e garanto que corresponderei à altura. Bem
conheces os meus talentos!
Conheço mesmo, e por isso confio em você. Então vá, não há tempo a perder.
S im, Vossa Magnificência, irei imediatamente - fez uma reverência e saiu aos
pulinhos.
A o se ver sozinha, Léia desceu do trono e atravessou uma porta a leste do salão.
O misterioso cubo que encontrara quando invadiu a fortaleza de Ghar repousava
sobre uma mesa num canto, quieto. S eria mesmo covardia uma atitude como
aquela? Bem, apenas se ela agisse precipitadamente, sem ouvir o outro lado da
história. Pois se Zing e Taurok dispusessem das devidas explicações, nada de ruim
aconteceria. A lém disso, valia lembrar que ela também tinha de se precaver contra
tudo e contra todos.
Léia pegou o cubo nas mãos, e observou uma de suas faces. Por milésimos de
segundos, jurou ver um rosto diferente, coberto por um elmo negro. Permaneceu
ali por um longo tempo, mas a visão não voltou a se repetir.
Capítulo XXXVIII - Quatro Contra Um Não é Covardia

A gora que Vanhardt tinha certeza que Ravina e Lázarus eram o mesmo ser,
passou a olhar a Guardiã com verdadeiro interesse. Ele pediu à fada:
Ei, Lila, onde estão aquelas cordas que trouxemos? Temos de prender essa daí!
Posso providenciar algo melhor do que as cordas.
A fada sobrevoou a Guardiã, dando voltas em torno dela. Green e Vanhardt
viram os braços de Ravina se colarem junto ao corpo, como se uma corda invisível
os prendesse. A Guardiã acabou caindo no chão, produzindo um baque surdo e
permanecendo imobilizada.
O que foi isso? - indagou o duende.
Essa linha que utilizei para prendê-la é inextensível e também não pode ser
partida. É extremamente fina, e por isso parece invisível. Chama-se "linha de Gaia",
e é uma magia que Léia aprendeu há pouco tempo. Como sou parte da deusa, e
mantemos uma ligação, também acabei aprendendo-a.
Legal! Muito bom, Lila! - Vanhardt se aproximou de Ravina, e agachou-se ao seu
lado. - A gora a senhorita aqui vai nos fornecer algumas respostas. Primeiro me
diga: por que não nos atacou até hoje? O que estava esperando? - a pergunta ecoou
pela floresta.
Eu não atacaria vocês, nem hoje nem nunca. S e quisesse ter feito isso, não
faltaram melhores oportunidades. Estou aqui unicamente para obedecer à profecia
- Ravina notou que todos ao seu redor se iluminavam com uma terrível curiosidade.
A pesar de deitada no chão, ela se mantinha numa postura firme, de guerreira. -
Lembram-se de que vimos desenhado na pedra vocês três e eu; ou melhor, a minha
forma de Lázarus, ao lado? D ispus-me a vir com vocês por esse motivo. Está escrito
que nós quatro derrotaremos aquele verme. A desculpa que dei para acompanhar
vocês, de que seria para protegê-los de Lázarus, serviu direitinho, e Ebeion não
desconfiou de nada.
Espere um pouco, quer dizer que ninguém na vila sabe que você e Lázarus são a
mesma criatura? - a fada enrugou a testa.
D esde que Laodicéia atou o destino de Lázarus ao da Guardiã, vocês são as
primeiras pessoas, exceto as próprias Guardiãs da floresta, que sabem disso.
Sintam-se congratulados.
E por que ninguém em Fhirjn sabe desse segredo? Por que você apareceu no
meio da mata, naquele dia que o verme atacou a vila?
— Uma pergunta de cada vez, duende. D eixe-me contar uma coisa, para que
possam entender perfeitamente a situação. N o início, Lázarus era um ser
completamente independente. Mas como Ebeion contou a vocês, a sua sede de
poder aumentou tanto que ele passou a devorar pessoas. Laodicéia, nossa graciosa
e benevolente deusa, teve compaixão de nós, e para acabar com a matança criou as
figuras do S enhor e da Guardiã, atando o destino dessa última ao de Lázarus. É
lógico que nenhuma de nós Guardiãs reclamou do fardo, pois assim poderíamos
proteger a vila. O s habitantes, por sua vez, acreditavam que lutávamos contra o
lagarto quando na verdade éramos a mesma criatura. N aquele dia em que o verme
atacou, eu me transformei em Lázarus para tentar enfrentá-lo antes que ele
chegasse à vila. A contece que não fui bem sucedida, ele invadiu-a e causou toda
aquela destruição. É lógico que não enfrentei o verme a partir daí, naquela forma
em que eu estava, pois havia muitos guerreiros que provavelmente me atacariam.
Assim voltei a ser a Guardiã, e o resto vocês já sabem.
Eu ainda não entendi por que você não contou a todos que era Lázarus.
Pouparia muitos problemas - Green falava como se fosse óbvio.
Ravina não fez observação alguma ao comentário do duende, limitando-se a lhe
dirigir um olhar incisivo. S em conseguir encarar a Guardiã de frente, Green olhou
numa outra direção, fingindo se interessar pelos galhos de uma árvore.
Então posso imaginar que durante essas caçadas, enquanto estava conosco, você
se transformava em Lázarus para se tornar mais eficiente?
Bem observado, Vanhardt. Como Lázarus, minha força, destreza e vigor
aumentam consideravelmente, tornando-me uma arma mortífera. Porém J ustus,
aquele miserável que se julga líder do Panteão, estabeleceu uma penalidade para a
transformação, justificando que causaria um desequilíbrio se ela fosse feita
livremente. Laodicéia foi obrigada a acatar a ordem com medo de uma punição. A
cada minuto que me mantenho na forma de lagarto, minha alma vai sendo perdida,
e a de Lázarus se sobrepondo a ela. O u seja, quanto mais tempo eu me mantiver
como lagarto, mais próxima fico de me tornar Lázarus para sempre. I sso é
cumulativo, e como vocês podem ver, meus braços já não são totalmente humanos,
o que indica que fiquei bastante tempo como Lázarus - imagino que em torno de
cinco ou seis horas no total. S e continuar nesse ritmo não durarei muito tempo. É
claro que antes que eu me transforme completamente, passarei o meu cargo a uma
substituta, e assim darei fim à minha existência de uma maneira digna, cumprindo
a minha missão - os olhos da guerreira brilharam.
N ossa, que triste - Lila abaixou a cabeça, ao perceber o quão terrível era o
destino de Ravina. - E não dá pra reverter?
Como eu disse, a benção-maldição é cumulativa. N ão dá pra revertê-la, nem
pará-la. A não ser que eu nunca mais me transforme em Lázarus, o que seria difícil.
Muito bem, acho que isso explica tudo. - Vanhardt, com um pouco de
dificuldade, retirou as linhas que atavam Ravina. - D esculpe-me por tê-la amarrado,
mas foi uma medida preventiva.
A Guardiã se levantou ainda séria, e bateu a poeira da roupa. Ela cobriu-se
novamente com a capa, enquanto Yanhardt olhava para Green - naquele momento
os dois perceberam o motivo para ela se manter coberta, que era esconder a pele de
lagarto. D essa vez, entretanto, ela deixou o capuz abaixado, e o rosto descoberto.
S eus olhos verdes cintilavam intensamente sob a escassa luz da lua que penetrava
na floresta.
—A gora sou eu quem gostaria de algumas explicações, Vanhardt. O uvi quando
o duende disse que sua mãe era uma deusa, e agora, quando Lila falou que é parte
de uma deusa; Léia, não é? Imagino que Léia e sua mãe sejam a mesma entidade.
S im. S ou filho de Léia, a deusa do gelo, e vim aqui em busca de um item que
rasgará o selo do Templo Dourado, local que abriga o meu filho desaparecido.
Filho? Entendo - ouvindo aquele comentário da Guardiã, Lila jurou para si
mesma que havia uma pontada de decepção. - Pra mim está tudo explicado. S e
estiverem de acordo, acho que poderemos jantar e depois dormir, pois amanhã
teremos mais uma boa caminhada pela frente.
A ntes que alguém se dispusesse a responder à Guardiã, a bússola que Vanhardt
guardava num dos bolsos da calça passou a apitar desesperadamente, como uma
chaleira. Todos entenderam instantaneamente que o verme estava próximo, e não
se passou mais do que alguns segundos para que o chão começasse a vibrar. Green
foi o primeiro a gritar, com as mãos erguidas:
Ele está aqui!
Lila conjurou a Crafo adimapla em Vanhardt, que por sua vez olhava ao redor
em busca da criatura. Ravina encolheu-se no chão, agachada, e sua pele foi
tomando uma cor esverdeada, brilhante, idêntica às escamas de cobra. S uas roupas
também foram se transformando, como se aderissem à pele, e ela passava aos
poucos a se parecer mais com um lagarto do que um ser humano. O s braços se
alongaram e as unhas cresceram, se tornando garras. A s pernas tornaram-se
compridas e bem torneadas, os pés se esticaram em patas achatadas, e o rosto
afunilou para frente, surgindo uma boca animalesca com dentes afiados. O s olhos
cintilaram vermelhos como fogo e ela soltou um urro grotesco ao se levantar. A
transformação terminara.
A inda aturdido com aquele estranho processo pelo qual Ravina passara, Green
correu até a mochila e se armou da espada, jogando a outra para Vanhardt.
N aquele instante, as árvores em volta do duende se curvaram, e o chão sob seus
pés ergueu-se, abrindo numa fenda. D emonstrando magnífica agilidade, Ravina
passou o braço de lagarto pela cintura de Green e pulou para o lado, salvando-o da
boca do verme que, aberta, surgia pela fenda.
A o ver o verme equilibrando-se em posição vertical, metros acima do solo, e
depois pender para o lado, Vanhardt apressou-se em puxar a fadinha pela perna,
tirando-a da frente da criatura, que caiu revirando quilos de terra.
—Você está louca, por que não voou quando o viu caindo? - gritou Vanhardt,
sem olhar para a fada, e correndo entre as árvores para escapar do monstro que já
estava no seu encalço.
A chei que poderia segurá-lo, como fiz com aquelas pessoas na vila! - berrou Lila
de volta.
S e Vanhardt, no meio daquele desespero, teve tempo para reprovar a idéia da
fada, nunca se soube. O s acontecimentos a partir de então transcorreram numa
velocidade impressionante, e não sei se minha capacidade narrativa conseguirá
apresentá-los adequadamente. Porém vamos em frente; como sempre, deixarei a
cargo do leitor o julgamento.
O verme perseguia Vanhardt, que por sua vez corria entre as árvores com a
bússola ainda apitando. Ele notou que a distância que o separava da criatura
diminuía, pois levava muito tempo para se desviar das árvores. I nteligentemente,
ele largou a espada no chão, e, utilizando sua extraordinária força, passou a socar
os troncos, que caíam imediatamente após receber a pancada. Q uem olhasse de
cima, e conseguisse enxergar além da escuridão que escondia a floresta, se
admiraria com a trincheira que ia sendo aberta no meio da mata. A quela atitude
acabou deixando o deslocamento de Vanhardt mais rápido, equivalente ao do
verme.
Ravina havia saído em disparada atrás da criatura, após deixar Green num lugar
seguro. D entre os quatro ela era a mais veloz: o corpo de lagarto era ágil, e
deslizava com absoluta facilidade pela floresta. S egundos depois de partir em
disparada, a Guardiã já pulava no dorso do verme, e caminhava sobre a couraça
cinza da criatura, que não cedeu às pancadas recebidas. S uas garras podiam
perfurar a madeira, mas não aquela poderosa armadura natural.
Green arfava e olhava pelo imenso caminho aberto na floresta, acompanhando
os acontecimentos assustado. Continuava com a espada em punhos, sem se atrever
a tentar enfrentar o verme. Resmungava consigo mesmo:
Eu sei que eles estão em perigo, mas o que eu poderia fazer contra aquilo?
Vanhardt é filho de uma deusa, Lila tem poderes mágicos, Ravina conta com o
corpo de lagarto, enquanto eu sou apenas um duende com uma espada. Um
duende com uma espada, que piada! Se fosse anos atrás, quando eu derrotava trolls
e ogros num piscar de olhos, tudo bem; mas hoje? N em pensar! E eles que acharam
que eu era "o salvador". A h, se soubessem que foi por medo que subi em uma das
árvores, e me agarrei ao cipó que por azar se soltou... Peguei o moleque no susto!
Vanhardt berrava para a fada, implorando por alguma magia que fizesse o
verme deixar de persegui-lo. A fada conjurou esferas amarelas, que explodiram em
centelhas luminosas ao atingir o couro da criatura, e resultaram em nada. Ravina
por sua vez aproximava-se da boca do verme, e se esforçava para não cair, pois
sofria poderosos solavancos. Q uando chegou ao extremo daquilo que se poderia
chamar de "cabeça" da criatura, ela puxou uma das bordas da sua boca, fazendo
com que ela se abrisse e mostrasse as inúmeras fileiras de dentes. A Guardiã
imaginava que a mucosa da boca era mais fina que a sua couraça, e lá poderia feri-
la. Através de uma belíssima e surpreendente acrobacia, ela segurou a borda da
boca do verme com um dos braços e ambas as patas, e utilizou o outro braço para
acertar as garras entre os dentes, onde a pele seria mais frágil.
O verme freiou ao sentir o ferimento, e se ergueu sobre o próprio corpo,
chicoteando a cabeça e arremessando Ravina metros à frente. A Guardiã arrancou
vários galhos durante o vôo, só parando ao bater com as costas numa árvore de
tronco mais grosso, caindo ao chão com um estrondo. O couro da pele de lagarto
amorteceu a pancada - ela teria morrido se fosse uma humana comum.
D urante aqueles instantes nos quais o verme se ocupou em lutar contra Ravina,
Lila conversava com Vanhardt:
A inda não consigo entrar em contato com a deusa do gelo! O que faremos
contra essa criatura? Ela é forte demais, não conseguimos nem arranhá-la! - a
fadinha voava de um lado para o outro, nervosa.
O couro dela é muito espesso, e apenas se tivéssemos uma arma bem afiada,
aliada a uma força imensa para... Ei, espere um momento... Há! Há! Tive uma
excelente idéia! D epressa, Lila, vá até Green e diga pra ele atrair a atenção do
verme!
Mas o que...?
D epressa! - o jovem berrou para a fada, pois o verme voltara à ativa, agora na
direção de Ravina, que ainda estava desnorteada no chão.
A fada obedeceu prontamente ao filho da deusa do gelo, e cortando o ar na
maior velocidade possível chegou até Green em menos de quinze segundos. O
duende sentara-se entre algumas rochas cobertas de musgos e uma árvore,
perfeitamente protegido. A penas sua cabeça era vista do lado de fora, com os
olhinhos apertados para ver o que estaria acontecendo - tarefa bem difícil, pois a
única fonte de luz era a da lua. Q uando a fada se aproximou, ele perguntou,
curioso:
E então, como estão indo? Os dois já morreram?
Cala a boca, seu pessimista, ninguém morreu! E também não irá morrer, se o
plano de Vanhardt der certo. Ele pediu pra você atrair a atenção do verme.
O quê??? - o rosto de Green se contorceu numa careta, não acreditando no que a
fada pedia. - Está louca? N em pensar; esse bicho vai me fazer em pedacinhos!
Mande aquele rapaz inventar um plano que não ameace a minha integridade física,
e talvez eu ajude - o duende fez um biquinho.
A fadinha flutuava na frente dos olhos do duende, e puxou uma das pálpebras
dele com força. Q uando ela a soltou pôde-se ouvir um estalo, e Green atirou as
mãos sobre o olho, gemendo de dor:
Aaaaaaaai! O que está fazendo, baixinha? Quer me deixar cego?
Farei muito pior se não colaborar! Escute bem: Vanhardt pode não ser um amor
de pessoa, e nem ser lá muito inteligente, mas com certeza suas idéias são criativas
e, o que é melhor, funcionam! S e ele diz que tem um plano, quer dizer que há uma
grande chance de dar certo. Então faça o favor de ajudar imediatamente, porque se
aqueles dois morrerem as próximas vítimas seremos você e eu!
Enquanto isso, Ravina e Vanhardt se ocupavam em desviar dos golpes do
verme. O filho da deusa do gelo havia ajudado a Guardiã, ainda aturdida, a se
levantar, e os dois pulavam de um lado para outro a fim de tentar confundir a
criatura. Eles sabiam, no entanto, que aquela situação não poderia durar muito
tempo. Estavam ficando cansados, e a cada nova investida o verme chegava mais
perto de abocanhar um deles. A mbos não duvidavam que nem seus poderes
evitariam a morte caso apenas um daqueles ataques os atingissem. N um momento
em que Ravina tropeçou, e achou que chegara o fim, uma pedra verde, coberta de
musgos, do tamanho de um cavalo, atingiu o verme. D epois veio uma segunda, e
até uma terceira pedra. Espantados, Vanhardt e Ravina viram que as pedras eram
arremessadas do local onde Green e Lila se encontravam. A quilo foi o suficiente
para irritar a criatura, fazendo com que ela abandonasse os seus alvos mais
próximos e fosse atrás do que a importunava.
Green naquela altura já havia recebido a Crafo adimapla de Lila, e ficou satisfeito
ao ver que atingira o objetivo - o verme avançava furioso para o seu lado.
Boa fadinha, essa magia realmente veio na hora certa. Viu como sou bom de
mira, mesmo nessa escuridão eu acertei três vezes! Vou atirar mais umas duas
pedras e depois fugir como Vanhardt, derrubando as árvores. E nem precisarei
arriscar o meu courinho, que bom! Hem! Hem!
Q uando Green tentou levantar uma nova pedra, notou que ela estava pesada e
não saía do lugar. Tentou novamente, mas a pedra insistia em não se mover. Com
certo nervosismo pediu a fada, enquanto enxugava uma gota de suor que escorria
pelo meio da testa:
Parece que a magia acabou... Faça ela de novo, porque o verme está chegando.
A fadinha esticou seus braços e pronunciou as palavras mágicas, porém nada
aconteceu. Ela tentou mais uma vez, com o mesmo resultado.
Oh-oh! - ela balançou a cabeça, piscando várias vezes.
Como assim "O h-oh"? Você está brincando comigo, querendo me assustar, não
é? Eu já sabia... O que quer dizer esse "O h-oh", fala logo, minha filha! - o coração de
Green disparou, e suas mãos passaram a suar frio.
"O h-oh" quer dizer que eu me lembrei que não posso conjurar a Crafo adimapla
mais do que uma vez... N a segunda ela dura apenas um centésimo do tempo, e na
terceira nem funciona. - olhou em direção ao verme e constatou que ele estava
muito próximo, e avançava sem parar. - Ou seja... CORRA!
Capítulo XXXIX - Flama

N a pressa de fugir da criatura gigantesca, Green até deixou a espada para trás.
N ão que ele fosse usá-la, mas era indiscutível a sensação de segurança que ela
proporcionava. O pânico pelo qual agora era arrebatado roubava-lhe quase todo
pensamento racional, e o único que ameaçava cruzar a sua mente era o de como
fazer suas pernas se moverem mais velozes.
Vanhardt e Ravina corriam lado a lado, e o jovem gritou:
A cho que posso segurá-lo, porém se ele continuar nesse ritmo vai chegar até
Green antes que eu o alcance!
O lagarto ao seu lado, que momentos antes era uma bela mulher com o título de
"Guardiã", apenas balançou afirmativamente a cabeça, como se entendesse o
recado. Ravina, depois de se agachar, saltou sobre uma árvore, e passou a pular de
uma para outra, sobre os galhos, balançando-se nos cipós, utilizando ambos os
braços e também as pernas. D eslizava com tamanha beleza e graciosidade, que
parecia voar. Além disso, passou a se deslocar muito mais rapidamente.
Enquanto isso, Green, que não ousava olhar para trás, e sentia um bafo quente
em sua nuca, deduzia que o verme estava a apenas poucos metros atrás de si. Ele se
desviou de um cogumelo gigante, seguido de dois troncos caídos, e, pelo ronco que
escutou, soube que o verme abria a boca. S eu coração por pouco não lhe saltava do
peito, e ele jogava todas as suas energias nas pernas. Foi aí que algo agarrou a gola
de sua camisa, e ele sentiu um puxão no pescoço - desmaiou, acreditando que a sua
vida seria retirada naquele momento. O que ele não sabia era que Ravina o puxava,
e o salvava mais uma vez de uma mordida que seria fatal.
A Guardiã carregou-o para a árvore onde estava, e, com ele sobre os ombros,
pulou para outros galhos, se afastando do verme. Este não desistiu do alvo, e
passou a perseguir Ravina. S ubitamente a criatura passou a se deslocar mais
lentamente, e a Guardiã pôde se afastar do perigo.
O motivo daquela velocidade diminuída era que Vanhardt, em mais uma de
suas proezas heróicas, segurava o rabo da criatura ao mesmo tempo em que
enfiava os pés no chão, tentando fazer com que ela parasse. Esta não se deu por
vencida, e apesar da grande força do filho da deusa do gelo, conseguia continuar
avançando, só que com maior dificuldade. A terra sob os pés do jovem era
revolvida e atirada para os lados, seus braços doíam, e mesmo assim a criatura não
parava. Expulsando com força o que restava de ar nos pulmões, Vanhardt gritou:
LILA, CADÊ VOCÊ?!
A fada, que voava apenas a alguns metros dali, respondeu de imediato:
Aqui! O que você está tentando fazer, seu doido?
A chei que poderia pará-lo com a minha força, só que não deu certo... - Vanhardt
tinha a voz espremida, os olhos fechados, e uma expressão de muita dor. - Lembra-
se daquelas linhas que você criou e prenderam Ravina? S e elas são mesmo
inextensíveis vamos ver agora. Faça o seguinte: dê-me uma das pontas, e siga com a
outra passando por trás de pelo menos uma centena de árvores. D epois me devolva
a outra ponta. Esse bichão aqui pode ser mais forte do que eu, mas não mais do que
a soma de todas essas árvores!
A fada, mesmo não entendendo o plano, obedeceu Vanhardt, colocando uma
das pontas na boca do rapaz (as mãos dele estavam ocupadas, inseridas entre dois
anéis do verme). Ela voou percorrendo um semicírculo, passando por trás de
exatamente cento e oito das árvores, e depois retornou para devolver a outra ponta
ao rapaz. A situação chegara ao seu ponto crítico. O verme seguia sem parar; uma
trincheira de vários metros de comprimento com terra de ambos os lados se abria
sob os pés de Vanhardt, e a fada voava ao lado do rapaz, pensando numa maneira
de entregar-lhe a segunda ponta:
— Como vou te entregar essa ponta, se você está com os braços ocupados? N ão
posso colocar na sua boca, pois corre o risco dela ser arrancada fora! - berrou ela,
que continuava produzindo a linha.
N uma manobra impressionante, Vanhardt tirou ambos os pés do chão e enfiou-
os na fresta entre dois anéis do verme, ao mesmo tempo em que com a mão
esquerda tirava a ponta da linha que tinha na boca e jogava os braços para trás.
D esse modo, estendido na horizontal, ele recebeu com a mão direita a segunda
ponta da linha, e apertou firmemente. A linha provou ser inextensível ao ficar
completamente reta, os ossos de Vanhardt estalaram e as árvores rangeram, uma
dor incrível percorreu todas as fibras do seu corpo, principalmente as da mão, que
até sangrou, mas o inacreditável aconteceu - o verme parou!
A criatura pareceu assustada, e levantou a cabeça, "olhando" para trás. Ela abriu
a boca e baixou a cabeça, mirando a mordida em Vanhardt. O rapaz, que contava
com aquele contra ataque do verme, imediatamente levantou o rabo da criatura,
fazendo com que ela abocanhasse o próprio corpo. Foi o suficiente para que o
couro dela cedesse, mas ao invés de sangue, uma fortíssima luz prateada jorrou do
buraco aberto. O verme rolou no chão, aturdido, e a luz, aos poucos, foi
diminuindo de intensidade. Vanhardt aproveitou um momento oportuno e
instintivamente jogou o braço dentro do buraco, passando a procurar Flama. S e o
couro da criatura era extremamente espesso, o seu interior era macio como um
colchão, e banhado por um líquido rosado, viscoso. A bússola em seu bolso parou
de apitar logo que ele sentiu ter tocado em algo mais sólido.
Com os olhos brilhando, os braços sujos, o corpo cansado, e uma expressão
triunfante estampada no rosto, Vanhardt retirou de dentro do verme uma
belíssima foice, com a lâmina dourada recurvada, e o corpo reto, de madeira,
decorado com pedras preciosas. A o segurar a foice sobre a cabeça, Vanhardt sentia
uma energia quente, intensa, emanando do objeto e fluindo para dentro de si. Ele
mesmo não acreditava que estava com Flama em mãos, a arma da antiga deusa da
morte, sua mãe.
O verme parou de se mexer, e murchou preguiçosamente, como um balão
furado que aos poucos se esvazia. Um minuto depois apresentava alguns
centímetros de tamanho, e não mais voltou a se mover. Vanhardt não ouviu mais a
bússola apitar. J ogou-a no chão, destruindo-a, pois ficou com medo de que ela
pudesse cair em mãos de outras pessoas.
A inda impressionado por ter derrotado a criatura, Vanhardt viu os amigos se
aproximarem: primeiro Lila, seguida de Ravina na forma de lagarto com Green
desmaiado no colo. Ela deitou delicadamente o duende sobre um monte de folhas
e se agachou, transformando-se novamente numa mulher, exatamente do jeito que
era antes.
Uau... então essa é a arma da deusa da morte! Q ue linda! - exclamou a fada,
batendo as mãozinhas.
D eusa da morte? Pensei que esse objeto seria da deusa do gelo... - comentou
Ravina, ajeitando melhor a sua capa.
I sso não importa! S ó sei que me sinto cada vez mais próximo do meu filho.
A gora poderemos romper o selo que protege o Templo D ourado. O que acha disso,
Lila?
A fada respondeu que achava muito bom, abraçando Vanhardt, e dando beijos
animados em sua bochecha. Ravina observava Green se levantar zonzo, e dar três
passos como se estivesse bêbado. Ele colocou as mãos na cabeça, e olhou para a
foice que Vanhardt carregava.
Hum, acho que perdi alguma coisa... O u eu morri e você veio me buscar? - O s
olhos do duende estavam ligeiramente arregalados. - Q uerem fazer o favor de tirar
esse sorriso besta do rosto e me explicar o que está acontecendo?
Graças a Ravina você não morreu, Green! E o verme não será mais problema
nem para nós, nem para a vila de Fhirjn - falou Vanhardt, admirando a foice.
E isso graças a você, Vanhardt - disse Ravina ao mesmo tempo séria e feliz,
abraçando Vanhardt demoradamente, agradecida. - Você foi o principal
responsável pela morte dessa criatura que há tanto tempo flagelava meu povo.
Nem sei como posso lhe pagar por isso.
Está bem, já chega de tanto agarramento, quer deixar Vanhardt em paz?
Lila empurrou o braço da Guardiã, tentando afastá-la de Vanhardt.
S e você não sabe como pagar, eu sei. O uro, comida, e mais ouro! - o duende
parecia plenamente recomposto.
Q uer calar a boca, seu mercenário? N ão fez nada para derrotar o verme - disse a
fada, indignada, apontando para o rosto do duende.
E quem atraiu a atenção dele? A atitude mais corajosa, sem querer me gabar...
Isso não foi nada comparado ao que Vanhardt fez!
Você é que não sabe de nada, sua velha!
O quê? - assustou-se a fadinha.
É, sim, sei que tem mais de mil anos. J á está gagá e não consegue mais observar
algo evidente, como a minha coragem - o duende levantou o peito e empinou o
nariz.
São só trezentos anos, seu miserável! E como descobriu isso?
Foi seu amiguinho Vanhardt aí que me disse...
O quê???
A fadinha virou-se para o filho da deusa do gelo, que logo se adiantou:
Q uerem parar os dois com isso? Essa discussão não vai levar a lugar algum.
Vamos voltar para a vila de Ravina, pois estamos cansados, e aproveitar para contar
as novidades ao povo.
Capítulo XL - Um Gosto Amargo

N aquela mesma noite, o salão do trono do castelo de cristal adormecia no


silêncio e no vazio, rompidos ao entrar Léia, seguida por Zing. O deus dos insetos
não parava de tagarelar, elogiando a beleza da deusa do gelo e como ele estava feliz
por ter sido convidado para a festa. Léia permanecia séria, mas não emburrada.
Graciosamente ela sentou-se no trono, e disse:
Zing, não sei bem como explicar o que programei para hoje. Em verdade não foi
uma festa...
A deusa do gelo esperou que Zing ficasse surpreso, mas este, contrariando suas
expectativas, permaneceu como antes. Ela então continuou, procurando selecionar
as melhores palavras:
Pouparei rodeios, e serei direta então. S ei que temos sido "amigos" todos esses
anos, porém certos fatos ocorridos recentemente me fizeram duvidar de Vossa
Divindade. Em resumo, acho que está me traindo. Tem algo em sua defesa?
N ossa, traindo... É claro que não, minha dama! - Zing esboçava um sorriso, e
mantinha uma voz amável. - Como pôde pensar isso, justamente de mim?
Passei a desconfiar quando descobri que o "amigo" se relacionava secretamente
com N úbia, a deusa da noite, e pesquisava o paradeiro de um certo Manto... Por
que me escondeu uma coisa dessas?
Zing ficou quieto por alguns segundos, colocando dois braços para trás, outro
coçando o queixo e o quarto pendendo no ar, buscando o que fazer. Com a voz um
pouco mais baixa, continuou:
N ão vou perguntar como descobriu isso, porque não vem ao caso. Fico
sinceramente feliz em ver que também possui talentos investigativos. O ra,
deixando de lado os elogios, a resposta que tenho é simples: não sou o único a
esconder segredos. S e eu possuo os meus, a nobre dama também guarda os dela, e
nem por isso acho que está me traindo. D e modo geral todas as divindades
escondem alguma coisa umas das outras, mas nem por isso estão se acusando
mutuamente. Assim, acredito encerrar a questão.
N ão, meu caro Zing, a questão não está encerrada. Lamento muito ter de fazer
isso, e mostrar a Vossa D ivindade que está enganado em acreditar que possuo um
coração quente, como me disse há algumas dezenas de anos. D epois de ter sofrido
as piores dores que um deus é capaz de suportar, meu coração esfriou, e é apenas
uma pedra gelada, sem a mesma vida que esbanjava anteriormente. S e existe algo
que ainda me traz felicidade é um certo alguém, que também está sofrendo muito,
e a quem irei ajudar mesmo que me custe a existência. S e não quer me contar por
bem exatamente o que pretende, terei de arrancar a informação pela força. Taurok,
por favor!
N aquele instante Taurok entrou por uma porta lateral, e foi até Zing,
cumprimentando-o com um aperto de mão. Léia ficou ligeiramente perturbada,
pois ambos pareciam tranqüilos, sem a tensão que ela própria demonstrava. A lém
disso, sentia falta dos minotauros.
Taurok, Vossa D ivindade não entraria com os minotauros? O nde eles estão? - a
deusa do gelo se mexeu inquieta no trono.
Eles não serão necessários, e por isso mandei-os embora. Veja bem, dama do
gelo, gostaria que não se assustasse, pois...
N ão me assustar com o quê? - interrompeu a deusa do gelo se levantando de
súbito, e olhando friamente para os dois que estavam lado a lado. - O que
exatamente está acontecendo aqui?
Era o que eu estava dizendo - adiantou-se Taurok. - Zing sabe de tudo. Eu contei
para ele o que Vossa Divindade pretendia fazer aqui, nesta noite.
Então quer dizer que os dois estão unidos em um complô! - Léia agia
absolutamente transtornada. - Mais uma traição; eu realmente não devia confiar
em nenhum outro deus! S ão todos traidores miseráveis! - ela aproximou o dedo do
botão que acionaria a armadilha de lanças de gelo, pronta para pressioná-lo a
qualquer momento.
Não se precipite, Léia, por favor. Vossa Divindade não está entendendo o que se
passa. Zing não é um traidor, bem como eu também não sou. Confio plenamente
nele, e sabia que a dama do gelo acabaria cometendo um erro e perdendo um
amigo ao ameaçá-lo. Por isso adiantei-me e contei tudo ao deus dos insetos.
S e o que diz é verdade então acaba de cometer a maior estupidez de toda a sua
vida! Zíng irá acabar com nós dois aqui mesmo. N ão fosse pela armadilha que
preparei, estaria perdida. E já que estamos sendo diretos uns com os outros, revelo
a finalidade plena dessa armadilha: além de ameaçar Zing, utilizaria para descobrir
como Vossa D ivindade, Taurok, "coincidentemente" tomou conhecimento do
perigo que eu corria naquele dia em que Ghar invadiu meu castelo.
Está falando da armadilha com lanças de gelo? - perguntou Taurok sem
demonstrar receio.
Léia ficou sem reação. Então eles já estavam a par de tudo! Como ela pudera ser
tão ingênua... O s dois estavam juntos desde o começo, talvez Taurok até mesmo
compartilhasse com Zing os negócios concernentes à deusa da noite. Ela tinha de
pensar rápido no que fazer para escapar daquela situação que fugia completamente
ao seu controle. Provavelmente não adiantaria de nada apertar o botão, pois os dois
não seriam estúpidos o suficiente para deixar a armadilha ativa. O que fazer então?
N ão se assuste, minha querida - Zing adiantou-se um passo. - E abandone esse
pensamento absurdo de que estamos traindo-a. Está começando a ficar paranóica
com isso, não acha? O poderoso Taurok provou ser um perfeito cavalheiro me
avisando de tudo isso, além de muito inteligente.
N ão abra mais essa boca imunda para destilar suas mentiras, desalmado.
Enganou-me todo o tempo e continua a fazê-lo. N ão vê que passou dos limites?
D iga-me, Taurok... - ela olhou para o deus dos minotauros. - Como obteve ciência
da armadilha?
O seu assistente, Oswaldo, revelou-me a sua existência e o funcionamento dela.
A pós ouvir aquele nome, Léia sentiu-se voltando séculos atrás, até ao dia em
que deixou de ser a deusa da morte. Uma punhalada atravessava-lhe o coração,
dilacerando-o em mil pedaços. O swaldo, em quem ela depositava tanta confiança.
Era difícil demais acreditar. A quela figura metade coelho, metade homem, com as
orelhinhas baixas logo veio entrando pela porta. Uma lágrima escorreu pelo rosto
da deusa, refletindo o rosto tímido do coelho.
Por favor, por favor, magnífica! Taurok é um bom deus, e Zing também! Estou
unicamente protegendo a minha mestra. N ão adiantaria nada argumentar contra
essa idéia maluca de ameaçar os dois amigos, e por isso tentei evitar uma bagunça
maior ainda!
Até você, O swaldo, participando desse teatro ridículo! A inda pensam que sou
idiota?- Léia sentou-se novamente no trono, passando a falar com ódio. - N ão faz
sentido continuar tentando me enganar. Por que não tentam obter logo o que
querem?
Taurok tirou a capa vermelha que usava sobre as costas, e deixou-a cair aos seus
pés. Com movimentos precisos e bem escolhidos ele desmontou a armadura
dourada, e também a deixou cair. O s últimos objetos de que se desfez foram o
escudo e o machado, a antiga arma de Ghar. D aquele modo, usando apenas uma
calça de couro, ele abriu os braços para os lados, e pôs-se a falar na voz grave de
sempre:
S e duvida tanto das nossas intenções, proponho um desafio. A armadilha de
lanças de gelo permanece ativa; Zing e eu nem tocamos nela. Se acredita que somos
traidores, por que não a aciona e nos mata? - o rosto do minotauro permanecia
impassível.
Por alguns segundos a deusa do gelo ficou sem reação. Ela fitava os três, e
tentava extrair deles qualquer gesto ou movimento que pudesse revelar a sua
honestidade ou mentira. S ó via sinceridade. S urpreendentemente, ela se levantou,
e aproximou-se de O swaldo, Zing e Taurok. Q uando ficou em frente aos três, olhou
no rosto de cada um, e se ajoelhou, com a maior gravidade estampada nos
movimentos, dizendo:
D esculpem-me, senhores. A gora percebo que a tola fui eu mesma. N ão sei o
que fazer para obter o perdão dos únicos que provaram ser meus sinceros amigos
até hoje.
N ós não estávamos em busca de perdão, mas sim do reconhecimento da nossa
honestidade - falou Taurok, recolhendo suas armas e armadura. - E isso já ficou
provado. S endo assim, devo retornar ao meu lar. Q ualquer novidade, entre em
contato.
O deus dos minotauros beijou uma das bochechas de Léia, que continuava
abaixada, e já ia deixando o salão do trono, quando se voltou para a deusa e
continuou:
A h, esqueci de lhe explicar como soube que a dama estava sendo atacada por
Ghar. É de conhecimento geral que sempre tive uma estima muito grande por
Vossa D ivindade. Por isso, um de meus minotauros vez ou outra mantinha
vigilância sobre o castelo de cristal, informando-me do que ocorria. Poderia ser que
uma oportunidade para aproximação surgisse a qualquer instante, se por ventura a
dama decidisse caminhar nos arredores do castelo. E ela acabou ocorrendo, de
maneira inesperada, quando esse meu minotauro viu Ghar e os gigantes invadindo
o local, e me alertou.
A deusa do gelo não tinha o que dizer, e por isso continuou quieta. Taurok
deixou o salão, e foi a vez de Zing falar.
Eu também retornarei para minha colméia. N ão fique perturbada com o que
ocorreu hoje. E venha me visitar quando puder, adoro sua companhia.
Zing saiu com passos curtos, deixando O swaldo sozinho com Léia. O coelho
sentia a dor e o arrependimento que atormentavam a deusa. Por isso,
silenciosamente, ele também deixou o salão do trono. A li, sem mais ninguém, Léia
pôs-se a chorar. N ão sabia dizer o que era pior, se o arrependimento de ter
desconfiado tanto daqueles que a ajudaram e a protegeram, ou se a noção de que
estava mesmo paranóica. Enquanto suas lágrimas caíam, uma imensa tempestade
de neve castigava as terras do gelo.
Capítulo XLI - À Margem do Recomeço

Todos dormiram mal, pois Vanhardt passara metade da noite fazendo barulho.
Ele insistia em girar sua foice e atacar inimigos imaginários, e num desses golpes
acertou uma árvore, cortando-a ao meio sem o mínimo esforço. A ssustado com
tamanho poder da arma, ele também acertou um golpe numa pedra, explodindo-a
em milhares de pedaços. Flama era fabulosa, e o jovem parecia uma criança depois
de ganhar um brinquedo novo. Foi Ravina quem salvou o resto da noite do grupo:
N ão me entenda mal, Vanhardt, mas não acha que já causamos destruição
suficiente na floresta?
É isso aí, queremos dormir, seu chato! - resmungou Green, revirando-se num
monte de folhas que preparou cuidadosamente, mal-humorado.
Concordo com o duende. Vanhardt, seu fofoqueiro! - Lila falou para o jovem, e
depois emendou baixinho, para si própria. - Q uem deu permissão para ele falar de
minhas intimidades a Green? Revelar minha idade, onde já se viu isso! Fofoqueiro
descarado...
A noite terminou sem mais interrupções, e Vanhardt num canto
experimentando a arma comedidamente. A ntes de dormir, o filho da deusa do gelo
notou que podia guardar a arma dentro do seu braço, entre o corpo físico e o astral.
Um ótimo local, aliás, pois assim ninguém poderia furtá-la quando ele não
estivesse atento, e seria fácil retirá-la dali sempre que desejasse. Com o resto da
noite passada em tranquilidade, o grupo pôs-se na trilha para Fhirjn logo que o sol
nasceu.
A jornada de volta foi muito mais curta que a de ida. Lila resmungou
"fofoqueiro" durante um dia inteiro, mas logo parou, passando a se preocupar com
um detalhe mais importante ao seu ver. Ela achava que Ravina observava Vanhardt
por tempo desnecessariamente longo, e quando esta vez ou outra puxava alguma
conversa com ele, a fada aproveitava para interromper e olhar feio para a Guardiã.
A cho que entendi porque o verme ficou daquele tamanho - comentou Lila
tentando atrair a atenção de Vanhardt. - I magino que antigamente ele não passava
de uma minhoca, ou algum vermezinho ordinário. Certo dia, deve ter se
encontrado com Flama enterrada na terra. Como os itens divinos têm a
propriedade de se juntar aos corpos, Flama ficou dentro da minhoca, e passou a
nutri-la de energia. Com o passar do tempo ele foi crescendo, mas só se tornou
verdadeiramente uma ameaça quando atingiu o tamanho que o encontramos. A
foice não era suficiente para alimentá-lo, pois a superfície de contato com a arma
aumentava ao quadrado, enquanto o volume da criatura seguia o ritmo ao cubo.
I sso é pura matemática, o que talvez você tenha dificuldade de entender, porém
garanto que está correto. A partir daí, ele precisou devorar animais para adquirir
energia; primeiramente os animaizinhos que deveriam abundar pela floresta, e
quando eles se tornaram escassos foi a vez de atacar a vila de Ravina. É por isso que
tivemos tantas dificuldades em encontrar animais o tempo todo!
É, faz sentido... - disse o jovem sem tirar os olhos da foice.
N aquele mesmo dia chegaram à Fhirjn, e quando contaram as novidades foram
saudados com muita festa. Ebeion esbanjava um sorriso de orelha a orelha, e fez
questão de gastar todo o estoque de alimentos que mantinha na comemoração.
Vanhardt parecia levemente envergonhado ao lado de Lila, ao contrário de Green,
que contava com exagerado drama a sua participação na luta. O duende adicionava
nos seus relatos alguns detalhes que os outros três não se lembravam de ter
acontecido - principalmente alguns associados a Green enfrentando o verme cara a
cara, e o feito desmaiar com seus socos. Ravina era quem mais se mantinha calada,
sentada ao pé de uma árvore, e comendo um pássaro assado. Ela se cobriu
completamente com o capuz desde que retornara ao lar.
A pós uma noite regada com festa e alegria, Green, Vanhardt e Lila (esta última
não precisou dormir, é claro) acordaram satisfeitos. O duende procurou Ebeion,
iniciando conversas sobre possíveis tesouros que por ventura existissem na vila, e
que poderiam servir de presentes aos aventureiros. Vanhardt por sua vez, se
dirigiu a um canto sossegado, sem ninguém por perto, e tirou a foice que manteve
até aquele momento dentro do seu braço. A arma exercia uma fantástica força de
atração sobre ele, e o rapaz não perdia oportunidades de utilizá-la a esmo sobre
objetos. Q uanto maior o alvo melhor ainda: nenhum sobrevivia a um simples
ataque da foice. E ele nem precisava empregar muita força - era só deslizar a arma
sobre o alvo e vê-lo se despedaçar. É claro que se a força era maior não sobrava nem
pó para contar a história. Lila viu Vanhardt alisando cuidadosamente a lâmina, e
sentou-se num galho pouco acima de sua cabeça.
Vai, passar o resto do dia apreciando Flama ou rumar para o Templo D ourado
comigo?
Ah, Lila, você está aí? Nem tinha percebido...
Estou vendo que você se preocupa mais com essa arma do que com seu filho.
Vanhardt tomou um susto. Lembrou-se do que sua mãe disse, sobre tomar
cuidado com o poder da arma. S erá que ele estava seduzido pelo poder? N ão, ele
não deixaria que isso acontecesse! Guardou a foice dentro do braço, e voltou-se
para a fada.
—Você está certa, baixinha, vamos imediatamente para o Templo D ourado!
Estou louco para rever meu filho, que aquela megera Hilda Risalv escondeu.
Risalv? Esposa de Lionel Risalv? - Green havia chegado ali perto, e perguntava
com sobrancelhas arqueadas.
Sim, Green, como você sabe? Conhecia-os?
N ossa... - o duende encostou o queixo no peito, e olhou para o vazio. Parecendo
refletir bastante, tocou a algema que se prendia no seu pescoço, e ainda em estado
hipnótico se dirigiu a Vanhardt. - Você vai enfrentá-la?
Eu não sei, Green... Bem, só se ela se interpuser entre meu filho e eu. Mas por
que essas perguntas?
Posso seguir com você? Posso ir pra onde você for?
Como assim Green? Pensei que você gostaria de voltar para seu cogumelo e ter
uma vida em paz.
Eu nunca terei uma vida em paz! - gritou o duende de uma hora pra outra,
assustando Lila e Vanhardt. - N unca. A penas diga que posso ir com vocês! Prometo
não atrapalhar - o olhar do duende era fixo e chamejante.
O jovem olhou interrogativamente para a fada, que deu de ombros. Eles não
entendiam por que depois de ouvir aqueles nomes Green se interessou tanto em ir
com os dois. Pensando um pouco, o filho da deusa do gelo disse ao duende:
O k, pode vir conosco, Green. S erá bom ter mais alguém pra conversar. S ó não
nos atrapalhe, por favor, e deixe a chatice de lado. E outra coisa: se eu mandar, você
obedece sem questionar. Promete cumprir tudo isso?
Tudo bem, eu prometo - o duende se portava incrivelmente sério. - E então,
quando iremos?
A cho que agora mesmo. É melhor sair de fininho, pois do contrário os
habitantes daqui irão querer que fiquemos mais uma semana, e não quero perder
tempo. A creditam que há uma chata que quer dançar comigo o tempo todo? O que
acha Lila?
Boa idéia. Vamos lá!
Ei, estão pensando em ir sem se despedir? - disse Ravina, aparecendo
repentinamente de trás de uns arbustos. Uma mochila pendia em suas costas, e o
velho bastão na mão direita, apoiado no chão.
D esculpe, Ravina, é que não queríamos causar tumultos com nossa ida -
respondeu um Vanhardt desconcertado. - Você me entende, não é?
Entendo sim, se me deixar ir também.
Mas o que é isso, virou festa? A gora todos querem me seguir? Por que isso
Ravina?
Preste bem atenção Vanhardt: o que você fez por meu povo é mais do que eu
mesma consegui todos esses anos. Estou profundamente agradecida, e com uma
dívida. E segundo os ensinamentos provindos de Laodicéia, nossa magnífica deusa,
uma dívida sempre deve ser paga, antes que o tempo a envelheça e cobre os juros
com mãos de ferro. É isso que nos torna honrados, e dignos de entrar em seus
reinos após a nossa morte. Por isso desejo seguir com você, até que consiga saldar
essa divida, ajudando-o ou aos seus semelhantes.
Não há divida nenhuma, esqueça isso. E você tem o seu povo pra tomar conta.
N ão existem perigos imediatos, eles estarão seguros. A lém do mais seria bom
deixar Lázarus longe deles por uns tempos... - a Guardiã deu três passos e ficou
cara a cara com Vanhardt, abaixando o capuz, fitando-o profundamente. - A penas
diga que sim. Minha honra como Guardiã depende da sua permissão.
Err, bem, hum... - Vanhardt olhava para ambos os lados, tentando se decidir. -
Tudo bem, você vai conosco. Mas ainda acho que deveria ficar com sua gente.
Muito obrigada.
S em se despedir de ninguém na vila, o grupo partiu. Como o próprio Vanhardt
comentara anteriormente, acharam que se revelassem suas intenções de seguir
caminho receberiam intermináveis propostas para ficar mais tempo. A lém disso,
haveria um empecilho muito grande em permitir que Ravina deixasse a vila e
acompanhasse o grupo. S endo assim, simplesmente se embrenharam na floresta e
foram embora.
O s primeiros dias seguintes à partida de Fhirjn foram relativamente tranqüilos.
Vanhardt até achou uma boa idéia que a Guardiã fosse com eles. Ela se mostrou
muito forte e guerreira, e podia ser de grande utilidade. Q uem não gostou nada
daquilo foi Lila. A fada passou horas emburrada, com os braços cruzados e a cara
amarrada. N um primeiro momento não quis dizer por que estava assim, mas
depois falava para todos ouvirem que Vanhardt aceitava membros no grupo sem
consultá-la. Vanhardt respondia que ela não era a líder do grupo e por isso não
tinha direito de reclamar.
Quem fez você o líder do grupo?
Lila, não adianta; não irei discutir com você. Fui eu quem iniciou essa jornada,
arrebatou os integrantes, e, além disso, sou o mais forte. Com essa foice serei capaz
de chutar a bunda de Hilda sem dificuldade, e a de qualquer outro que apareça. S e
tivesse Flama antes, aquele verme não faria nem cócegas! - disse Vanhardt com o
peito estufado.
Estou vendo que realmente você está se achando o máximo. Culpa dessa arma
idiota! A função dela é de destruir o selo que protege o Templo D ourado, mas para
você é um objeto digno de se gabar. Reparei que desde que fugimos do castelo de
Hilda você não meditou nem por um minuto.
É que eu estava ocupado...
S ei, ocupado o tempo todo. Principalmente depois que matou o verme, ficou
ocupado polindo Flama.
Cala a boca, Lila, você não sabe o que está dizendo. Preocupe-se com a direção
que estamos seguindo. Tem certeza que é por aqui o caminho até o Templo
D ourado? Ravina disse para seguirmos um pouco mais para leste, e ela conhece
bem essas matas. J á estamos caminhando há três dias para o sudeste, e a comida
que Ravina trouxe na mochila está no fim.
Humpf! Ravina, Ravina! Essa daí chegou ao grupo e agora também está se
achando. Até o anoitecer estaremos lá, seu metido! E trate de começar a meditar,
ou não evoluirá nada.
O ntem eu aprendi a conjurar a Crafo adimapla em mim mesmo, está ouvindo?
Sozinho! E nem precisei ficar nessa idiotice de meditação.
S egundo informações da deusa do gelo, a essa altura você seria capaz de
conjurar paredes de gelo, e não uma magia inicial como Crafo adimapla!
Lila e Vanhardt continuaram, discutindo pelo resto do dia, e anoiteceu sem que
eles saíssem da floresta. A fada ficou mais mal humorada ainda, pois a Guardiã se
mostrou certa: eles deveriam ter seguido mais para leste. Green se divertia com a
confusão, e às vezes dava boas gargalhadas, tomando mordidas na orelha por parte
de Lila logo em seguida.
Terminada a discussão, empatada, o filho da deusa do gelo tornou a olhar
admirado para a arma que adquirira do verme. Por que Lila ficara tão brava? S eria
óbvio que ele se interessasse pelo artefato, mas como tinha consciência de que
poderia ser seduzido por seu poder, não existiria mais perigo. A fada, contudo, era
cega pra tudo aquilo.
D eixando Flama um pouco de lado, ele olhou para a Guardiã que adormecia ao
lado da fogueira crepitante. Ravina se abrira um pouco desde quando eles
derrotaram o verme, porém mantinha algumas antigas atitudes, como permanecer
calada por longos períodos, comentar muito pouco de si própria, e geralmente se
manter séria. N ão que aquilo a tornasse feia; pelo contrário, trazia-lhe um ar
exótico, revelando-a muito mais bonita aos olhos de Vanhardt. D e repente sua
mente ficou confusa, e ele percebeu que não deveria ficar pensando nesses tipos de
coisas. E sua esposa S elena, quase se esquecera dela! Pelo visto continuava
desaparecida. S e bem que eles não fizeram contato com Léia, e talvez sua mãe
tivesse boas notícias para ele. Restava esperar.
N a manhã seguinte, comeram pelo desjejum uma lebre cozida, que Ravina
caçou durante a madrugada. Parecia que os pequenos animais voltavam a correr
pela Floresta S agrada do norte. A lgumas horas depois eles atingiram o final da
floresta, e foram saudados com um belíssimo sol a iluminar suas frontes.
Graças aos deuses saímos! Eu achei que continuaríamos andando por outro dia
inteiro - comentou Green olhando para o céu. S eus olhos então se deitaram para o
horizonte, e o duende se assustou com o que viu. - Ei, pessoal... o... que... é... aquilo?
Um mar negro, de quilômetros de extensão, seguia sobre a terra. Uma visão tão
fantástica, que hipnotizou os quatro por vários minutos. D a distância em que se
encontravam, pelo menos dez quilômetros, podiam notar poucos detalhes. D entre
estes, o mais evidente eram sons, como o de tambores, que ribombavam num
ritmo cadenciado, monótono e incessante. O mar, ou um exército, segundo Ravina
(a Guardiã era a que enxergava melhor), carregava uma espécie de monumento: um
obelisco negro, que se estivesse de pé se ergueria por mais de quinhentos metros.
O peso daquela monstruosa estrutura passaria facilmente de milhares de
toneladas, e eles não faziam idéia de como ela se movia. Mil homens não poderiam
erguer o monumento, e ele de fato parecia deslizar sobre uma plataforma. O utro
fato que logo notaram, era que o exército deixava um rastro na terra por onde
passavam - árvores padeciam mortas e o solo apresentava uma cor escurecida e
fúnebre. O rastro vinha do longínquo oeste, desde onde a vista não mais alcançava,
e seguia em direção nordeste até os pés do exército.
O s quatro sentiram uma energia maligna pairando no ar, que lhes roubava as
forças. Até Vanhardt, que não se incomodava com o frio, passou a tremer. Era
como se um vazio se infiltrasse em seu corpo, e adormecesse no seu coração,
gelando o sangue e todos os outros órgãos. Com o tempo se acostumaram com a
terrível sensação, e como o exército se afastava, logo não sentiam mais nada. Mas
suas almas nunca mais se esqueceram da sinistra impressão.
Capítulo XLII - Terra Morta, Mente Sã

— Q ue isso... - gemeu o duende meia hora depois, durante a qual todos


permaneceram calados, observando o exército desaparecer lentamente no
horizonte. - Alguém pode me dizer o que acabamos de ver?
Green, essa é a pergunta que todos nos fazemos. "O que é aquilo?" - respondeu
Lila, sentada no ombro de Vanhardt e com as mãos sobre as coxas.
Eu sei o que é - murmurou baixo o filho da deusa do gelo, coçando o queixo. -
Tenho certeza que esse exército é o mesmo que invadiu o castelo de minha mãe, há
milhares de anos atrás. Uma "massa negra", foi o que ela disse. E é o mesmo que
vimos.
Como pode ter certeza que é o mesmo exército? Euzinha aqui, que compartilho
parte das lembranças da deusa, não consigo afirmar.
A penas sei que é Lila. Tive uma sensação muito ruim, como se algo terrível
estivesse para acontecer. E que a terra do gelo está em perigo.
Terra do gelo? Você vem de lá, Vanhardt? - perguntou Green.
Sim, Green. Conhece?
Não, mas nasci por perto... Bem deixa pra lá. E então fadinha, qual é a direção?
Por que não pergunta essa daí? - a fada apontou para Ravina com a cabeça. - Ela
é a "senhorita senso de direção". D eve saber muito melhor do que eu o caminho
para se chegar até o Templo Dourado.
O s três olharam interrogativamente para Ravina, que em vez de responder
passou a caminhar rumo ao sudeste. O s outros a seguiram até atingirem o local
onde cruzava o rastro deixado pelo exército. Este era perfeitamente identificável,
pois o solo era feio, de aspecto enegrecido, arenoso, e fedorento. Também era bem
largo, quase trezentos metros, e a sua travessia viria a se revelar mais difícil do que
os quatro poderiam supor. A ssim que começaram a caminhar notaram crânios
jogados aqui e ali, somados a fémures, úmeros e ulnas e mais alguns ossos. Q ue o
leitor não me entenda mal; o chão não estava entupido de ossos, mas podia-se ver
uma quantidade bem variada e espalhada.
O ssos? Minha nossa! Pelo visto muita gente deve ter achado ruim quando o
exército passou por aqui. Eles só não podem reclamar agora! - disse o duende
erguendo um fêmur e observando-o curiosamente.
É óbvio que não são vítimas do exército, Green, não teria dado tempo para se
decomporem. A cho mais fácil supor que esses ossos são do próprio exército - disse
Vanhardt friamente.
O quê? Que absurdo, conta outra piada, Vanhardt!
N ão é piada. Estou apenas me recordando das palavras de minha mãe ao
descrever o exército que invadiu o seu castelo. Eles usavam capa preta, o que
condiz com a cor que vimos, e "as mãos que saiam de dentro das capas eram feitas
de ossos". S e suas mãos eram esqueléticas, porque não concluir que o resto do
corpo também era? Eles devem ter perdido membros pelo caminho.
Terminada a frase, o grupo escutou um barulho de trovão, e subitamente o céu
se fechou sobre suas cabeças, com nuvens negras, carregadas. Era de estranhar que
uma chuva se armasse tão repentinamente, ainda mais pelo fato do céu estar
límpido há minutos atrás. Green passou a reclamar visivelmente irritado:
Só faltava chover! Essa viagem tinha que ser assim... Eu e esse bando de inúteis!
O lha quem fala, duende sem vergonha. S ó sabe reclamar; dessa sua boca
imunda só saem asneiras! - Ravina respondeu para Green, deixando Vanhardt
perplexo. Ele nunca esperaria uma frase daquelas vindo da Guardiã.
E você também cale a boca lagartona feia! Bunda mole!
Vou te mostrar quem é feia, seu baixinho, narigudo, horroroso!
Green e Ravina se embrenharam numa luta selvagem, fazendo com que Lila
voasse aturdida em direção aos dois e tentasse separá-los. O filho da deusa do gelo
sentiu que algo muito errado estava acontecendo. O cheiro fétido, nuvens negras
no céu, uma briga sem sentido. E por fim Lila acabou entrando na briga contra os
dois.
A Guardiã depois de dar um soco que deixou Green estatelado no chão, decidiu
se transformar em lagarto. O duende, mesmo deitado, segurava as pernas da
fadinha, que por sua vez mordia-lhe o dedo. A briga atingia uma proporção
absurda. Vanhardt passou a ter certeza que a situação não era nada normal, e
concluiu que se entrasse na confusão acabaria sendo afetado. Era como se uma
praga tivesse contaminado seus amigos, poupando apenas ele. E algo lhe dizia que
ficara imune não por ser filho de uma deusa.
Q uando a Guardiã partiu pra cima de Green, com as garras erguidas, Vanhardt
se deu conta de que esperara demais para tomar uma atitude. Mas o que fazer?
Crafo adimapla não adiantaria, pois não queria tocá-los e correr o risco de ser
contaminado, e Flama só seria efetiva caso quisesse matá-los... Ele sentiu-se
impotente. Tanto poder, e diante de uma situação aparentemente simples nada
podia fazer. A quilo era muito pior do que estar numa briga, na qual pelo menos
faria alguma coisa. Ele resolveu fechar os olhos, e procurou se concentrar.
A partir daquele momento, o filho da deusa do gelo não saberia explicar porque
tomou as seguintes atitudes. S uas feições se tornaram sérias, porém tenras, e
passou a se mover com tamanha segurança e leveza que se podia dizer que
flutuava. Caminhou tranqüilamente em direção aos amigos, e primeiramente
colocou a mão nas costas de Ravina, chamando-a pelo nome três vezes:
Ravina! Ravina! Ravina!
A Guardiã se preparava para cravar as garras no pescoço de Green, e
imediatamente interrompeu o golpe, balançando a cabeça para os lados, aturdida.
D epois foi a vez de Vanhardt tocar o peito de Green, e chamá-lo pelo nome
também por três vezes:
Green! Green! Green!
O duende soltou Lila, e arregalou os olhos assustado. A ntes que ele entendesse
o que acontecia, Vanhardt pegou a fada, e repetiu o mesmo gesto:
Alilandra! Alilandra! Alilandra!
A fada por sua vez caiu no chão, erguendo uma pequena nuvem de poeira
enegrecida. Era isso! A quela terra fazia mal aos três, mas não a Vanhardt, pois ele
estava calçado com as botas que recebera de Ebeion em Fhirjn. A s botas iriam
protegê-lo se ele percorresse maus caminhos, o que era exatamente o que ocorria. E
por que Lila fora contaminada, se ela voava? S erá que ao tentar separar Green e
Ravina acabou tocando a terra sem querer? S orte a fadinha ser pequena, e a nuvem
de poeira que subiu com a sua queda foi mínima, e não atingiu Vanhardt.
Utilizando em si mesmo a Crafo adimapla, ele pegou Green e Ravina colocando
cada um em um ombro, puxou a fadinha pelas asinhas, e começou a correr para
longe do rastro deixado pelo exército. O duende e a Guardiã tornaram a trocar
insultos um ao outro, mas não chegaram a se atacar pois não tardou e Vanhardt já
estava fora daquela terra maldita. Q uando se encontraram a uma distância segura,
pôs os dois no chão, e soltou a fadinha que perguntou:
Minha cabecinha está um pouco zonza... O que aconteceu?
É mesmo, Lila, também me sinto esquisito - disse Green. - É como se tivesse
sido atropelado por uma manada de elefantes.
Eu também não me sinto bem - Ravina falou com uma das mãos na cabeça, e
sentando-se no chão.
A cho que vocês foram contaminados pelo solo daquele lugar onde passamos,
pois começaram a agredir uns aos outros. Era uma terra maldita; vejam como o céu
voltou a ficar azul e sem nenhuma nuvem! A gora começo a entender o tamanho do
poder daquele exército. S e o chão por onde eles passaram ficou desse jeito, imagine
quem o enfrentou, e o lugar onde a batalha sucedeu? Realmente minha mãe não
tinha chance alguma contra eles! E só uma força divina para reunir tanto poder de
destruição... Mas quem seria?
Pois é, Vanhardt, azar de quem vai ser a próxima vítima deles. Porque pra mim
eles estão marchando para tomar algum lugar - disse o duende revirando a bolsa
que Ravina usava nas costas, em busca de comida.
E tomara que esse lugar não seja o que estou pensando... Mas, voltando, ao
assunto anterior. Ravina, você usa as mesmas botas que eu e foi contaminada.
Eu prefiro pensar de um modo diferente, Vanhardt. A minha opinião é que
essas terras não nos contaminaram; não colocaram em nós algo que não existia.
Esse instinto agressivo, essa fúria que se apoderou de nós (agora estou me
recordando o que sucedera), era algo que já dormia em nosso interior. Aquele lugar
apenas ajudou a dar vazão a esses instintos. É como se vivessem vários outros "eus"
dentro do que achamos ser um único "eu", e eles aproveitaram uma situação
favorável para atuar. E as minhas botas não são iguais às suas; eu já carrego uma
benção de Laodicéia, e por isso não devo utilizar outros de seus favores. S eria
abusivo, conforme nossa cultura ensina. Minhas botas são comuns, diferentemente
das suas que são realmente abençoadas.
Várias idéias atormentaram Vanhardt quando tornaram a caminhar, dessa vez
em direção ao leste. Primeiramente não conseguia tirar o exército maldito de sua
cabeça. A s imagens iam e vinham, e ele quase podia enxergar cada um dos
soldados individualmente. Encobertos com uma capa negra, e a mão ossuda
segurando uma espada. Lembrou-se da horrível sensação ao observar a sua
marcha, e o barulho dos tambores. O s sons martelavam insistentemente dentro da
sua cabeça, proporcionando-lhe uma dor terrível. Q uando conseguiu se livrar das
imagens e dos sons, foi a vez das palavras de Ravina aderirem ao seu cérebro.
Era muito estranho imaginar vários "Eus" dentro de si mesmo. Para ele cada ser
humano era único e pronto. N o caso, Vanhardt acreditava que dentro dele viva
apenas o "Vanhardt", e apenas ele. A idéia da Guardiã era totalmente absurda, e o
rapaz acabou encerrando a discussão interna afirmando que Ravina não sabia das
coisas, e que era bobagem se preocupar com aquilo.
Bem de tardezinha, quando o sol beijava o horizonte, e o céu se pintava de
laranja, Lila berrou alto, assustando os outros três que caminhavam silenciosos.
Green chegou a cair no chão, mas disse que foi de propósito, pois achou ter visto
uma batata suculenta e apenas "se abaixou demais para pegá-la".
O que foi, Lila? Pra que tanto escândalo? - Vanhardt perguntou piscando os
olhos com força, como se tivesse acordado naquele instante.
Chegamos! A li, a entrada para o templo! - Lila apontava para frente, com o
rosto retorcido de alegria.
Vanhardt, Green e Ravina, olharam para onde a fada apontava, mas não viram
entrada para templo algum. Vanhardt chegou a firmar bem a vista, deixando as
pálpebras baixinhas, porém o que lhe chamou a atenção foram duas pedras com o
topo bem mais estreito que a base, erguidas na vertical, pouco maiores que um ser
humano, um pé-de-fasjames atrás deles, e uma colina à direita.
Lila, você tomou muito sol na cabeça. N ão há templo algum aqui, vamos
continuar.
Como assim, Vanhardt, a entrada está logo ali! - a fada insistia em apontar para
o mesmo lado, e começou a ficar zangada.
S ua tonta, não tem nada aqui - adiantou-se Green, tentando procurar algum
alçapão no chão. - S ó umas pedras grandes, mato, e esse pé-de-fasjames carregado.
Acho que vou pegar algumas frutinhas pra mim...
Você está quase esbarrando na entrada do Templo, verdinho!
Lila, quer parar de suspense e falar logo onde está essa entrada? - Vanhardt
olhou ansioso para a fada.
Vocês são devagar também, né? Essas duas colunas de pedra marcam a entrada
do Templo D ourado. N a verdade essas duas colunas eram estátuas de J ustus, o
deus da justiça, e Bel, a deusa da vida. Mas alguns vândalos destruíram as estátuas,
e por isso elas parecem pedras agora.
Vanhardt deu duas voltas em torno de uma das antigas estátuas dos deuses, e
não encontrou nada de diferente. Balançou a mão no ar, chutou os pés das colunas
de pedra, e nada. Ele não via uma porta, e muito menos um templo. Ravina estava
sentada no chão, com as pernas cruzadas e Green havia subido no pé-de-fasjames e
jogava cascas das frutas no chão.
Q uer parar de brincadeira Lila, eu não estou vendo templo nenhum! - disse
Vanhardt.
I sso porque apesar de seus olhos estarem abertos, você não consegue ver. A cha
que os deuses iriam deixar a porta aí, pronta pra ser descoberta por qualquer um?
É óbvio que nao! A porta está selada, e vai de uma coluna de pedra até a outra.
Mas você só irá revelá-la quando conseguir romper o selo, e aí sim poderá entrar.
Entendeu?
Ah, se é só isso, então é pra já.
Vanhardt deu dois passos para trás, olhou para o espaço entre as duas colunas
de pedra e retirou Flama, a foice de sua mãe, de dentro do braço. Rodopiou-a acima
de sua cabeça, depois segurou-a firmemente com as duas mãos, e brandindo-a com
força, aplicou um golpe vertical no ar, de cima para baixo. Uma luz amarela
fortíssima brotou em uma espécie de parede invisível que a arma atingiu, e um
longo silvo irritou os ouvidos dos presentes. Para o espanto de Vanhardt, Lila,
Ravina e Green, que assistiam a cena com profunda atenção, Flama escapou das
mãos do filho da deusa do gelo, e depois de girar várias vezes caiu no solo. O s
olhos dos presentes teimaram em não aceitar o que verificariam logo a seguir: a
lâmina da foice se partira no meio! Vanhardt acabara de quebrar a arma mais
poderosa de sua mãe. A o ver aquilo, Green caiu estatelado do alto do pé-de-
fasjames.
Capítulo XLIII - Um Tolo Arrependido, mas Nunca Covarde

Eu... Eu... Eu não sei o que dizer... - balbuciava Vanhardt com os olhos
brilhantes, em estado de choque.
Minha deusa...! Flama se partiu! - gemeu Lila com as mãos nas bochechas.
Ravina permanecia sentada, mas deixara a sua atitude tranqüila de lado,
exibindo seriedade e preocupação. Green veio correndo, e ao ficar ao lado da foice
se agachou e comentou:
É verdade, ela está quebrada. Vanhardt, como pôde ser tão estúpido?
N ão foi... não foi minha intenção, Green. Como poderia supor? Lila, me
responda, por que a foice se partiu?
S implesmente porque você não estava concentrado o suficiente! - gritou a
fadinha, furiosa. - A gora eu vou abrir o berreiro. N ão gastou um mísero segundo
para meditar, limpar a mente, se achando o poderoso, o maioral. N ão me deu
ouvidos, todo cheio de si, reclamando o tempo todo que "Lila insiste pra eu fazer
isso, pra eu fazer aquilo, não agüento pressão" e nhé nhé nhem! Está vendo agora
seu teimoso, cabeça dura, turrão, resmungão, chato?
Mas eu não meditei nem nada porque não tive tempo... Você mesma viu que
estava ocupado, com aquele verme e tudo o mais.
E depois que matou o verme, hã? É claro que estava ocupado, apreciando o
lindo e poderoso presentinho que ganhou da mãe! Perdia metade do dia polindo a
lâmina e admirando-a, portando-se como um perfeito idiota!
I sso não é verdade, e você sabe muito bem Lila. - ele olhou para Green e Ravina,
procurando conforto e consolação dos amigos. A cabou obtendo uma reprovação de
ambos, que balançaram a cabeça negativamente, e só aí se deu conta da gravidade
da situação.
Era tudo verdade. Ele se portara como um tolo, mais preocupado em fazer a
lâmina de Flama brilhar do que desenvolver e aperfeiçoar seus poderes. Lila
aconselhara-o, porém ele não dera atenção. E sua mãe também havia lhe alertado,
quando encontrou com ela em sonhos, que poderia ficar seduzido pela arma. Como
fora imbecil! Um vazio infinito consumia o peito do filho da deusa do gelo. O único
item capaz de rasgar o selo do Templo D ourado, e ele estragara tudo! O que seria
do pequeno Erick? Vanhardt sentia-se inútil, incapaz de proteger aquele pequenino
ser, e também sua esposa. Era um fracasso como pai e esposo.
O filho da deusa do gelo ajoelhou-se no chão, e passou a socá-lo com força.
Ravina enfim levantara-se, e deitou carinhosamente a mão no ombro do rapaz. O s
olhos dele se encheram de lágrimas, e a Guardiã se agachou ao seu lado, deixando-
o deitar a cabeça em seu peito. Green pegara as duas metades da lâmina e tentava
juntá-las, sem obter sucesso. Lila depois de vários minutos resolveu se aproximar
de Vanhardt e dizer:
Minha raiva passou, pelo menos por enquanto. Eu sei como deve estar se
sentindo, com a possibilidade de nunca mais se encontrar com Erick. O que não
adianta é ficar chorando o leite derramado, os ovos quebrados, e o gelo derretido.
Vamos procurar um lugar para acampar, e pensar no que fazer. Enquanto isso,
tentarei estabelecer contato com a deusa do gelo; provavelmente ela nos dirá o que
fazer. É óbvio que deve haver outra maneira de entrar naquele templo, ou pelo
menos recuperar Flama.
Vanhardt não acreditava nem na primeira, e nem na segunda hipótese, mas por
falta de opções decidira seguir o conselho da fada. J á era quase noite quando eles
acenderam a fogueira, e puseram para cozinhar numa panela com água fervente
um esquilo e também ovos que encontraram em um ninho, além de cenouras e
batatas que sobravam na mochila de Ravina. Todos precisavam comer bem após
aquela caminhada, principalmente Vanhardt que se encontrava especialmente
abatido. Um sentimento de culpa martelava no peito do jovem, e seu estômago
parecia cheio de pedras de gelo pontiagudas. Lila se afastara por um tempo, e
retornou dizendo.
N ão consegui contatar Léia porque estamos um bocado longe da terra do gelo.
Mas ainda há esperança, não desanimemos! Estive pensando...
Você pensando? Q ue milagre, hem, hem, hem! - disse Green mastigando os
ovos cozidos com a boca aberta.
N ão é hora pra gracinhas Green - acrescentou a fada com olhos fuzilantes. - E
trate comer de boca fechada, seu porco! Vejam bem, Vanhardt, você já fez isso uma
vez e pode novamente. Encontrará com Léia numa viagem astral! Lembra como foi,
quando você pensou estar sonhando?
O filho da deusa do gelo se recordava vagamente de quando saíra de seu corpo
e se encontrara com Léia. Foi naquela ocasião que ela revelou o desaparecimento
de Selena.
N ão sei se consigo Lila... Eu lembro que estava dormindo, mas ao mesmo
tempo acordado, e daí apareci ao lado da minha mãe no seu castelo...
É exatamente isso! Você tem que aproveitar esse momento, pouco antes de
dormir, naquele estado entre a vigília e o sono. A li você consegue separar seu
corpo astral do físico e encontrar com a deusa do gelo.
Eu sou um fracasso Lila, aquela vez foi sorte, não posso fazer por livre vontade.
A fada voou até a orelha de Vanhardt e deu uma mordida, fazendo com que
este levantasse de um salto e gritasse:
A A A A A A A A A A Auuu!!! D oeu sua maluca! - reclamou o jovem passando a
mão gentilmente sobre a orelha.
Faça o favor de ouvir o que está dizendo! Q ue ridículo - a fadinha colocou as
mãozinhas na cintura. - D esde quando decidiu abandonar o seu filho em um lugar
desconhecido, e não lutar para reencontrá-lo? D esde quando é um c-o-v-a-r-d-e...
Prefere sentar aí, desistir da luta, pois é mais cômodo? N ão tem um pingo de
coragem para levantar e lutar? Então resolveu trocar a força de vontade pela
desesperança?
A s frases de Lila, ditas naquela ocasião e daquela forma, operaram algo
diferente dentro da alma de Vanhardt. Ele lembrou-se de quando passou pela
tortura de Crular, o maior sofrimento de toda a sua vida. Q uando a nojenta criatura
destilava um golpe que ele jurava ser o mais doloroso, sempre vinha um na
seqüência que se mostrava pior. Comparando a situação em que se encontrava
agora, e aquela outra, via que sua dor momentânea não passava de um grão de
areia numa praia extensa. E assim, acabou entendendo que todo sofrimento traz
um ensinamento, e que em vez de abaixar a cabeça e reclamarmos o quanto
sofremos, devemos erguê-la e sentirmos lisonjeados, pois aprendemos uma coisa
nova. D aquela tortura de Crular, ele acabou aprendendo que por mais que sua dor
seja grande, ela passa. Ela passa! Então por que teria de ficar arrasado, sentindo-se
um fracassado? Seria mesmo um covarde, como Lila o chamou?
A quele foi o dia em que Vanhardt mais se decepcionou consigo mesmo, porém
foi o ponto de início de um crescimento que atingiria proporções ilimitadas. N ão
importaria quantas vezes ele caísse, levantaria em todas, com coragem para olhar
para frente e lutar pelos seus objetivos. Uma vontade de ferro foi se lapidando no
espírito desse guerreiro, e esta seria o único escudo que seus inimigos não
trespassariam.
O filho da deusa do gelo encarou os amigos um por um: Ravina, Green, e Lila.
Disse então, com voz pausada e confiante:
Está certa, Lila. Eu não desistirei, e garanto que nessa noite terei um encontro
com minha mãe. Tratemos de nos preparar: Green ajunte as coisas, e apague a
fogueira. Ravina, você poderia fazer uma rápida busca num raio de um quilômetro,
e verificar se não há algum movimento suspeito. Lila ficará de vigia, pois não
precisa dormir. Eu me acomodarei em minha cama improvisada.
Q uem imaginasse que simplesmente se levantar dizendo que dali pra frente
tudo seria mais fácil, como se as coisas ficassem realmente menos complicadas
com uma frase, se enganaria completamente. Ravina fez sua busca, Green roncava
como um porco, porém Vanhardt apenas rolava no seu colchão de folhas, lutando
entre a vontade de desistir de tudo, e a de insistir em sua jornada, mesmo que
doesse. Essa luta interna dificultava mais ainda sua concentração. Passaram-se
uma, duas, três horas, e o filho da deusa do gelo chegou a pensar que o dia
amanheceria e ele passaria o tempo todo acordado. Por algumas vezes quase
dormiu profundamente, acordando assustado em todas. Finalmente, com o sol, o
imponente castelo de S alazar, surgindo, ele conseguiu fazer com que seu corpo
astral abandonasse o físico.
Por alguns segundos Vanhardt se perguntou se era aquilo mesmo, e ao ver os
amigos deitados, Lila sentada no galho de uma árvore com os braços cruzados, e
seu próprio corpo estendido, teve certeza. O próximo passo era ir até o castelo de
sua mãe, o que demorou apenas uma fração de segundos assim que ele mentalizou
o local.
O salão do trono continuava o mesmo, só que a deusa do gelo não se encontrava
presente. Ele resolveu percorrer corredores e outras salas em busca de Léia, e
acabou encontrando-a num maravilhoso jardim, o qual nunca havia visto
anteriormente. A baixada, revirando a terra enquanto plantava flores de uma beleza
tão radiante que até doíam os olhos do rapaz, a mãe de Vanhardt se mostrava
serena. Ele aproximou-se lentamente, flutuando no ar, aterrisando ao lado da mãe.
Esta, de costas para ele, e sem se virar, disse tranqüilamente:
Q ue bom que veio querido, sentia saudades! Fico feliz de ver que encontrou
Flama. Pena que ela não foi tão útil...
Mãe, como sabe...
D epois de afofar a terra sobre as raízes de uma planta que tinha uma flor de
sete pétalas amarelas, e um cálice branco, Léia levantou-se e fitou o filho.
N ão faça perguntas desnecessárias Vanhardt, pois não sabemos quanto tempo
conseguirá permanecer aqui comigo. S ó de olhar pra você percebo seus
sentimentos transbordando, esqueceu-se que é meu filho? Até mesmo uma mãe
humana tem essa capacidade. Mas enfim, o que sucedeu para estar tão
preocupado?
Flama se partiu, mãe, quando tentei romper o selo do Templo D ourado. O que
faço agora...? Tenho medo de nunca mais encontrar meu filho!
A chei que você estaria pronto, mas fui muito adiantada. A culpa é minha, não
se preocupe. Bem, só uma arma muito poderosa é capaz de romper o selo do
Templo, e a que eu vejo ser de mais fácil acesso é Flama. Ela se partiu porque em
verdade não é a arma que romperá o selo, e sim seu portador. A foice é um veículo
para canalizar suas forças, e uma força muito grande precisa de um veículo de igual
poder. A lém disso, meu filho, você necessita ao menos enxergar aquilo que deve
atingir, e pelo visto ainda não tem capacidade para isso.
Mãe, não fale assim, sinto-me ofendido.
Por que se sente assim, se ofendê-lo é a última das coisas que fiz? Pare de
pensar tais bobagens, pois são elas que impedem seu crescimento. I dentificar- se
com o mundo é um passo para o fracasso. N ão irei, porém, ficar aqui a dar-lhe
aulas, pois sei que de nada adiantariam. A vida é a melhor professora, e deixo pra
ela este papel. Escute com bastante atenção o seguinte: Flama apesar de partida
não está morta. Você precisa reavivar a sua chama, e eu conheço o local e quem
poderá ajudá-lo. S iga pra o leste, e busque a caverna do Ciclope, responda o
enigma, e poderá entrar. É na forja do Ciclope que o fogo de Flama irá reacender, e
a arma será consertada. E antes de tentar romper o selo novamente, tenha certeza
de estar preparado.
O filho da deusa do gelo se encheu de dúvidas, e com medo de não conseguir.
Ele queria perguntar à sua mãe como era o enigma, como identificar o momento
em que estaria pronto para romper o selo, se tinha notícias de S elena, mas sua
ansiedade fez com que ele perdesse o foco. N ão conseguindo permanecer naquele
estado, logo se viu afastando de sua mãe, e do castelo de cristal. Finalmente
levantou sobressaltado:
Ei, pessoal! - gritou Vanhardt, acordando Ravina e Green, este último coçando o
olho e resmungando mal humorado. - J á descobri o que temos de fazer. Flama
pode ser consertada na forja do Ciclope, que mora numa caverna ao leste daqui!
O h-oh! - comentou o duende com os olhos arregalados, completamente
acordado. - S ua mãe por acaso citou que para podermos entrar nessa caverna temos
de decifrar um enigma?
Bem, ela falou algo do tipo. Por quê?
N ão é nada não, ah, fique despreocupado. S implesmente quem não consegue
decifrar o enigma morre. E até hoje, todas as pessoas que tentaram entrar lá não
tiveram outro destino!
Droga, minha mãe podia ter me dado a reposta do enigma...
-— Mesmo que ela soubesse, não adiantaria. O enigma muda a cada nova
tentativa de decifrá-lo. Tomara que não tenhamos o mesmo destino das milhares
de pessoas que já tentaram lá entrar...
Capítulo XLIV - Charada Mortal

D everiam seguir para o leste, mas até quando? Vanhardt esquecera-se de


perguntar à mãe quanto tempo levaria, se um dia ou uma semana. Green
caminhava resmungando como sempre, acrescentando que aquele plano era uma
idiotice completa e que deveriam pensar em outro. Lila por sua vez comentava com
Vanhardt que idiotice era levar o duende com eles. A lém de não ajudar em muita
coisa, Green só reclamava. Ravina ia calada, pensativa, e olhando para os lados de
vez em quando. Vanhardt só conseguia pensar no famigerado enigma. Milhares de
pessoas tentaram decifrá-lo, e nenhuma conseguira? D everia ser um enigma
dificílimo. N a verdade muitos enigmas, pois eles mudavam a cada nova pessoa que
tentava desvendá-lo.
Green, você parece ser bastante informado. S empre tem comentários a tecer
sobre algo do qual nunca ouvi falar. Conhecia o povo de Fhirjn, a caverna do
Ciclope e seu enigma... O nde obteve tanto conhecimento? - perguntou o filho da
deusa do gelo.
O duende limitou-se a olhar em direção às algemas que carregava penduradas
no pescoço, e respondeu:
N ão quero falar sobre isso. Pelo menos aqueles Risalv me deram algo de bom...
- emendou em voz baixa.
Risalv é o sobrenome de meu sogro e da esposa dele! D iga-me, como os
conheceu, estou curioso!
Eu não quero falar sobre isso, não ouviu? Não insista!
O duende irritou-se profundamente, fazendo com que Vanhardt também se
irritasse. Logo o jovem recordou que era desperdício identificar-se com essas
bobagens, e direcionou seu foco para a questão do enigma.
D epois de metade de um dia caminhando, chegaram ao alto de uma colina, de
onde podiam, ver um gongo dourado na baixada, pendurado por cordas em hastes
de madeira na altura de um humano pequeno, e com alguns símbolos inscritos nas
bordas. O gongo encontrava-se no centro de um círculo de flores perfeitamente
desenhado, que limitava uma área do tamanho de uma casa, e sobre um chão de
pedras retangulares, pequenas. Atrás do círculo de flores via-se a entrada de um
túnel, bloqueado por uma pedra em forma de disco, que parecia ter sido construída
para encaixar-se ali perfeitamente, e provavelmente pesaria toneladas. O local era
agradável, e tinha um aspecto antigo.
Enquanto desciam a colina, Green, que ia mais depressa, acabou tropeçando e
rolando alguns metros no chão. Levantou-se furioso, e quando foi chutar o que
achou ser uma pedra acabou estacando.
Ei, pessoal, estão vendo isso aqui? - disse o duende apontando pra um objeto
cintilando no chão.
O grupo se aproximou, prestando bastante atenção no objeto que revelava um
brilho intenso, metálico. O filho da deusa do gelo não perdeu tempo em cavar ao
redor, e após poucos minutos eles retiravam o que parecia ser uma cota de malha
prateada. À medida que a terra se desprendia da malha, deixando a superfície
metálica refletir cada vez mais a luz do sol, algumas estruturas pesadas também
despencaram de dentro da armadura. Com surpresa, o grupo percebeu que eram
ossos.
Minha deusa! O lhem, ossos! A lguém foi enterrado logo aqui! - sussurrou a
fadinha.
Enterrado ou apenas morreu depois de tentar decifrar o enigma, e continuou
aqui! - disse o duende. - E agora Vanhardt? S ua mãe não falou o que teríamos de
fazer quando encontrássemos a entrada para a caverna? O u melhor ainda, depois
de vermos o que acontece com aqueles que tentam desvendar o enigma não
deveríamos simplesmente dar meia volta?
D eixe de ser covarde, Green. N a verdade, a primeira pergunta deveria ser: como
podemos ter certeza de que estamos no lugar certo? Esse corpo aí não prova nada -
argumentou o jovem, atirando a armadura de volta na sepultura improvisada. N ão
profanaria o cadáver usando a armadura que foi enterrada ainda vestindo-o.
Está óbvio não? Ravina, Lila, o que vocês duas acham?
A cho que é aqui mesmo. N ão há dúvidas. - respondeu a Guardiã. - Este
esqueleto, o gongo, o disco de pedra. Com certeza estamos na entrada da caverna
do Ciclope.
Concordo com ela - disse a fadinha cruzando os braços, e olhando feio para
Ravina.
Se é assim, sinceramente, não sei o que fazer! - disse Vanhardt.
O filho da deusa do gelo aproximou-se do gongo, e ia se ajeitando para sentar
no chão, porém assustou-se quando sentiu algo raspando em sua panturrilha.
Q uase caiu pra trás quando percebeu que o que acabara de tocá-lo era uma das
flores, um lírio, que vinha caminhando desajeitadamente sobre duas raízes que
migravam da base de seu tronco. Ela acabou parando ao lado do gongo e virou-se
para os quatro que observavam transtornados aquele estranho desfile. A baixando a
pétala superior, e ao mesmo tempo erguendo a inferior, o lírio assustou mais ainda
os presentes quando uma voz suave saiu daquela "boca":
O lá companheiros, assumo que estão aqui para entrar no humilde lar do meu
senhor, não é?
O lhando uns para os outros, sem saber o que dizer, esperaram que o lírio
continuasse:
É falta de cortesia não responder quando perguntado. Por favor, desejam ou
não entrar na residência de meu senhor? - disse a flor pausadamente, mas gentil.
Errr... S -s-sim... sim! - respondeu um Vanhardt vacilante. - S e o seu senhor foi o
Ciclope, lógico.
Mas é claro que é. Pois muito bem! Lançarei-lhes então um enigma, só que se
não forem capaz de resolvê-lo, temo que as vidas de todos serão perdidas. A ssim
diz a lei. Estão dispostos a aceitar os riscos?
Mas espere um pouco, é assim? - perguntou automaticamente Green,
apontando zangado para o lírio. - Você chega e pergunta se estamos dispostos a
morrer, sem tempo pra pensar direito? E por que nós devemos morrer se não
acertarmos? E por que não morre apenas um de nós? N ão, não, não, pode parar!
Que diabo de "lei" sem sentido é esta?
D esculpe, senhor, não fui eu quem escreveu a lei. A ceitam ou não, é minha
última pergunta? - disse a flor, cruzando duas raízes que saíam da metade seu
tronco, parecendo bracinhos.
A lguns segundos transcorreram, nos quais um pesado ar se abateu sobre os
presentes. S abendo que aquilo colocava a vida de todos em risco, Vanhardt olhou
para cada um, querendo confirmar suas decisões. S ó Green não balançou
afirmativamente a cabeça, e disse:
Você viu o que acontece com aqueles que falham, logo ali atrás! Tenho certeza
que se o cadáver pudesse falar, ele teria a mesma decisão que eu!
Tudo bem Green, eu não esperava mesmo que você arriscasse a sua vida desse
modo. S endo assim, temo que terá de abandonar o grupo - Vanhardt olhava pra
baixo, sério.
A pós aquela frase, Green mais uma vez olhou para sua algema pendurada no
pescoço. Relutou por alguns segundos, balançou a perna, ansioso, respirou fundo
algumas vezes, e finalmente:
Se é o único jeito, não é...? Ok, eu topo! Mesmo sabendo que é suicídio...
A o notar que todos finalmente concordavam, Vanhardt deu um passo para
frente, colando na flor, e disse:
Aceitamos. Diga logo qual é o enigma.
N aquele momento, o lírio girou sobre os "pezinhos", e retirou uma das pétalas
laterais da "cabeça", erguendo na sua frente como se estivesse preparado para ler
uma folha de papel. Então começou a cantar uma suave melodia enquanto dançava
alegremente:
Desejam logo na caverna entrar
Então o enigma devem desvendar
Se a resposta certa, a boca conter
O gongo precisam forte bater

Alto e claro, diga bem bonito


O que existe no fim do infinito?
Mas se errada a resposta se mostrar
A morte certeira não irá tardar

Novo silêncio, e muitas rugas nas testas. Ravina sentou com a mão sob o queixo.
A fadinha também pesquisou uma posição mais confortável, e decidiu se
posicionar sobre a haste de madeira que segurava o gongo. Green tinha outras
preocupações, e perguntou para o lírio:
Ei, baixinha, quanto tempo temos para resolver o enigma?
O tempo que precisarem. Porém devo alertá-los de que não devem em hipótese
alguma sair do círculo delimitado por minhas irmãs, pois não sobreviveriam.
Q ue azar, estou com fome. N ão pode dar uma dica da resposta? - perguntou o
duende despudoradamente.
Claro que não! E pensem bem antes de responder, pois se errarem... - a frase da
flor morreu no ar misteriosamente. - Então boa sorte, retornarei agora para minha
hibernação.
O lírio tomou o rumo de volta para o seu lugar entre as outras flores, enfiando
as raízes no chão, e ficando imóvel, igual a uma flor comum. N aquele mtervalo,
Vanhardt dava cascudos na cabeça, pensando que facilitaria o processo de
raciocínio:
Esse enigma está errado, só pode ser. O infinito não tem fim, por isso mesmo é
"infinito". Então por que perguntam o que há no fim? S ó se for o próprio infinito...
S erá essa a resposta? N ão parece ser muito boa, óbvia demais. O vazio quem sabe?
Ai, que dor de cabeça.
Green desistira de achar a resposta, pois pensava que tudo aquilo não passava
de um truque, e eles deviam tentar encontrar uma maneira melhor de entrar na
caverna.
Não concorda comigo, Lila?
Claro que não! Até a deusa do gelo disse que teríamos de decifrar o enigma. E
você também viu o cadáver! A cha que ele morreu por causa de um truque? Faça o
favor de usar essa sua cabecinha oca para nos ajudar.
Meia hora se passou. Vanhardt e Lila discutiram se a resposta seria "o próprio
infinito" ou "nada", mas nenhum deles tinha certeza, e não queriam arriscar a vida,
pois pelo visto contavam com apenas uma chance. Ravina continuava calada e
quieta. Green passou a reclamar:
Estou com fome-e-e-e! Não tem nada sobrando aí com vocês, não?
Cale a boca, Green! N ão está vendo que estamos concentrados? - respondeu a
fadinha.
Estou com sede também, o sol está quente! A ff, que ridículo, não há nada no
fim do infinito... Pelos deuses! N ão acredito que irei morrer por culpa de um
enigma idiota como esse! Bem que eu avisei pra darmos meia-volta. Eu sabia, sabia
que era idiotice, mas ninguém me escuta! Agora por insistência de vocês...
Green, pelo amor da deusa, quando é que vai calar a boca? - tornou a fadinha
começando a ficar irritada.
Ei, esperem um pouco... Há!Há!Há! Só pode ser!
Só pode ser o quê, Green? Sabe a resposta? - perguntou Vanhardt esperançoso.
É claro que encontrei! Vocês são mesmo uns palermas, e só a minha inteligência
superdesenvolvida é capaz de nos tirar dessa situação! Salve Green, o imperador do
reino da inteligência! Ufa, que sorte, eim? O Van também pode compartilhar os
elogios, pois ele foi muito sábio ao permitir que um intelecto superior como o meu
se unisse ao grupo, e assim viesse até aqui salvar o traseiro de todos!
Poupe-me desse discurso pedante e nos dê logo a resposta, seu chato! - disse a
fada.
Ram-ram... - o duende coçou a garganta. - A resposta é "o céu"!
Vanhardt, Lila e Ravina entreolharam-se surpresos. D e onde Green havia tirado
aquela resposta? Antes que alguém lhe perguntasse, ele se adiantou:
Prestem bem atenção, meus companheiros de limitada sapiência. O terceiro
verso da primeira estrofe diz: "S e a resposta certa a boca conter". Então pensei que
a resposta estaria na boca. N o caso, a boca era a do lírio, ou seja, a resposta estaria
dentro do próprio enigma. E pensei neste trecho "alto e claro" como uma dica! A
pergunta em si seria assim um desvio da real resposta? E claro que não! É só
pensarmos: o que existe depois do infinito, se não o imaginário... o céu?
O duende ria solto, satisfeitíssimo com a excelente dedução que fizera. Seus três
companheiros, entretanto, continuavam calados, sem esboçar um sorriso ou uma
reprovação. Vanhardt foi o primeiro a não se agüentar, colocando a mão na boca:
Pf...Pf... HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ! HÁ!
N ão só o filho da deusa do gelo gargalhara, mas aliaram-se a ele a fada e a
Guardiã sem se intimidarem. Vanhardt era porém o mais exaltado, e segurava sua
barriga enquanto rolava no chão e derramava um rio de lágrimas de seus olhos. O
duende se mostrou furioso e ofendido, e gritou, abafado pelas risadas:
Não acreditam, não é? Pois vou mostrar a vocês que a resposta é certa!
O duende, ignorando a zombaria dos companheiros, pegou um espeto de ferro
com a ponta envolvida em um tufo de algodão, que repousava encostado numa das
hastes de madeira que sustentava o gongo. Com os pés firmes no solo e os braços
descrevendo um círculo, ele já ia acertando o gongo em cheio quando a Guardiã
pregou-lhe um tapa na nuca, obrigando-o a soltar o objeto. Ela apropriou- se do
instrumento, e terminou o serviço de Green, fazendo o gongo vibrar. O som
penetrou nos ouvidos dos presentes como se fosse mágico, pois transmitia uma
sensação de leveza e pureza, e não era agudo ou grave, mas num tom neutro,
indescritível em palavras. Foi aí que a Guardiã estufou o peito, e disse:
"O"!
O chão começou a tremer como se houvesse um terremoto, e Vanhardt viu o
medo invadir-lhe o pensamento. Como Ravina pôde fazer aquilo, responder sem
consultá-los, e além do mais "o"? Até a tentativa de Green fazia mais sentido. A
fada e o duende não pensaram diferente do filho da deusa do gelo, e o segundo até
fechou os olhos, clamando por misericórdia ao "majestoso Ciclope". N o meio do
desespero, o disco de pedra que bloqueava a entrada da caverna rolou para o lado,
permitindo que uma corrente de ar barulhenta entrasse com força no túnel. O
tremor parou, e as flores que aparentemente acordaram de sua hibernação,
bateram palmas e assoviaram alegremente. Green foi o que demonstrou maior
felicidade, ao ver suas preces atendidas.
Gente, não posso acreditar. Estou vivo! Vivo! E sem nenhum arranhão, a não ser
esse aqui no joelho... Eu sabia, sabia que conseguiríamos!
S im, porém não graças a você, seu bundão! - a fadinha então mostrou-se sem
jeito. - Obrigada Ravina, você decifrou o enigma. Mas diga-nos, por que "o"?
Eu apenas pensei: o que há no fim da palavra "infinito"? A letra "o".
A pós Vanhardt aplicar alguns tapas na própria testa, ao perceber que a resposta
era tão simples, chamou os companheiros:
Está tudo muito bom, está tudo muito bem, mas completamos apenas a
primeira parte. A gora resta-nos encontrar com o Ciclope, e pedi-lo que conserte
Flama. Tomara que ele não fique bravo por termos feito esse barulho todo...
Capítulo XLV - O Oráculo

A casa possuía três andares, e ocupava o centro do terreno. A s paredes eram


pintadas de cinza, um telhado ondulado que obedecia a arquitetura do resto da
cidade cobria-lhe o teto e a única porta existente ficava na face sul, onde Léia se
encontrava. O s habitantes mesmo tendo nascido ali, tinham a sensação de serem
pequenos sempre que viam a mansão, e que alguma energia indefinida emanava
daquele local.
Q uando Léia parou junto ao portão de entrada, e depois de alguns segundos
ameaçou ir entrando, dois guardas cruzaram lanças à sua frente, e um deles falou
com voz séria.
A lto lá! Esta é a humilde residência do oráculo. D iga seu nome e o que deseja,
antes de tudo!
A deusa encolheu-se dentro do casaco, mas manteve a postura ereta, e disse:
Pra quê, leal soldado? S e o oráculo possui mesmo o dom da previsão, devia
saber que eu viria aqui, não é? Então vocês saberiam de antemão o que desejo...
O s guardas entreolharam-se assustados, pois não esperavam aquela resposta.
Um deles adiantou um passo, abriu a boca, mas antes que sua voz saísse ouviu-se
um estalar de dedos, e ambos os soldados caíram adormecidos no chão. Como se
nada de mais estivesse acontecendo, e murmurando uma singela melodia, Léia
passou por cima dos corpos e abriu o portão, que não se apresentava trancado.
O utros soldados, que ao olharem pro lado viram seus companheiros caídos,
correram para checar o que acontecera, e Léia estalou os dedos mais uma vez,
fazendo com que eles também adormecessem.
A deusa do gelo então cruzou o pátio, e subiu três degraus de madeira,
chegando a uma pequena varanda que dava acesso à porta da casa. Ela esticou o
braço para girar a maçaneta, porém não precisou continuar, porque esta se abriu
sozinha.
Uma névoa densa circulava dentro da casa, sem conseguir esconder
completamente um corredor que parecia seguir reto. Léia se desvencilhou do velho
casaco que usava como disfarce, e penetrou sorrateiramente no cômodo. A
temperatura era mais baixa do que a do lado de fora, e um cheiro misterioso de
incenso circulava pelo ambiente, deixando-o mais intrigante. Léia constatou que as
paredes do corredor eram na verdade espelhos, que não refletiam a deusa como ela
se apresentava, e sim a aparência da deusa da morte. S eu vestido era negro e tocava
o chão, um pequeno decote mostrava-lhe um busto avantajado, e uma fita
vermelha prendia-lhe os cabelos, que caíam até as costas. O contorno dos olhos era
escuro, deixando-os mais evidentes, e os lábios eram arroxeados - o restante,
porém, continuava igual.
A deusa permaneceu parada alguns segundos, admirada por se ver como era há
milhares de anos, e ela só deixou aquele estado semi-hipnótico quando uma voz
desconhecida, de criança, ecoou do fundo do corredor:
Há muito tempo esperava pela sua visita... - o tom era de uma menina por volta
dos dez anos de idade. - Venha até aqui! Temos muito que conversar...
A pós utilizar a magia Hoslo dentele, buscando enxergar sem interferências o
fundo do corredor, e não vendo nada além de um espelho, a deusa passou a
caminhar lentamente. A cabou notando que até mesmo o chão e o teto eram
espelhos, e refletiam-na com a antiga aparência. O corredor virava para a direita e
continuava reto, mas revelou inúmeras outras saídas de ambos os lados. A deusa
do gelo acabou percebendo que a mansão não passava de um labirinto de espelhos.
Enquanto caminhava pelo labirinto ouvia risadas infantis, que vinham de lugar
nenhum. A tensão no ar era evidente, e Léia sentia que a qualquer momento algo a
surpreenderia. A o fim de poucos minutos, chegou ao final do labirinto,
encontrando uma porta branca, sem maçaneta.
A porta caiu para trás sem fazer barulho, assim que Léia acertou-lhe uma
pancada com o cetro de prata tirado do vestido. A sala revelou-se muito mais
intrigante do que a deusa poderia supor. N ão era lá muito grande, mas o fato de
conter apenas duas cadeiras brancas, uma de frente para a outra, tornava-a
aparentemente maior. O teto, o chão, e as quatro paredes eram cinzas, e traços
borrados de branco e preto dançavam, como se a tinta estivesse viva. Em uma das
duas cadeiras, sentava-se uma menina com cabelos dourados e encaracolados,
rosto alegre, inocente, que apontou a cadeira em frente.
Entendendo que aquela era o oráculo, e que ela pedia para a deusa se sentar,
Léia caminhou sem abaixar o cetro até o móvel. O bservou longamente a menina,
que tinha os olhos azuis como o céu, e sentou-se com algum desconforto na
cadeira. A garota foi a primeira a dizer:
O lá, Léia! A chei que havia errado minhas previsões, e você não viria... D emorou
mais do que o esperado! D iga-me logo, o que achou daquele meu brinquedinho lá
fora? S empre tive curiosidade de saber o que um deus veria se passasse por ali...
Com humanos é tão chato... S ó os vemos velhos, ou um vazio, o que indica que eles
morrerão em pouco tempo. Só que com uma deusa deve ser bem mais divertido!
A deusa do gelo surpreendeu-se com o que o oráculo falou, e perguntou com
uma sobrancelha arqueada:
Um momento. Q uer dizer que aqueles espelhos mostram... o futuro de quem
passa ali? Ou melhor dizendo, a aparência futura?
Exatamente! - a garotinha bateu palmas escandalosamente. - E então, o que você
viu? Algo interessante?
A o tomar consciência do que aquela visão representava, Léia não pôde mais
fingir qualquer falta de interesse, ou de curiosidade. Ela não queria se expor, mas o
oráculo atingira-a tão profundamente que não fazia sentido simular que não
precisava das previsões. A ntes, contudo, que a deusa fizesse mais perguntas, o
oráculo continuou com um sorriso desprovido de malícia:
— Bem, não precisa me dizer, deve ter sido interessantíssimo pela sua reação.
S ó que não fará diferença, pois meu futuro também já foi definido. S im querida,
esta é uma das verdades: eu decidi ficar aqui, para lhe contar seu futuro, e por isso
minha morte é certa e virá rápida. Daqui a pouco eles estarão tocando a campainha,
e nem me importa! Eu fiz a minha decisão, a de te ajudar, e assim talvez Kether
tenha um futuro menos sombrio... Lembre-se amiga que o futuro não é sempre
pré-definido; temos nossas decisões, e estas sim levam a futuros mais definidos. O
futuro, aliás, é a somatória de várias forças, e cada uma representa uma vontade.
A h, já me alonguei demais, esqueça essas divagações. S ei que você está aqui por
três perguntas, e iremos então diretamente a elas, pois talvez não tenhamos tempo.
A primeira; quem é o traidor? A segunda; o que é o cubo, "a chave"? E a terceira;
onde está S elena? É melhor então se ajeitar nessa cadeira, pois o que irei te contar
irá causar um rebuliço fantástico, e mudará de uma maneira nunca vista o destino
de Kether.
Capítulo XLVI - Fome de um Exército

Vanhardt liderava a fila; atrás dele vinha Lila com a ponta do indicador
emitindo luz, em seguida Green, ressabiado, olhando para as paredes e chão, e na
retaguarda Ravina, com seu bastão de madeira erguido defensivamente. O túnel
seguia por uma escada que descia em linha reta, e era impossível ver o seu fim; na
verdade, era até difícil avistar o que havia dois passos à frente do próprio nariz.
Graças à providencial luz de Lila, eles passaram a enxergar até cinco metros, mas
nada além disso.
N ão bastasse a escuridão que por si só era desconfortável, havia um silêncio tão
sinistro e maçante q e se alguém se esforçasse podia ouvir até as batidas do
próprio coração. A cada lance de escadas vencido, Vanhardt sentia que se
encontrava mais próximo de ser devorado pela escuridão. Green foi o primeiro a
quebrar o clirna:
Cuidado, Van! - gritou o duende, apontando para frente.
- O nde? - o filho da deusa do gelo arregalou os olhos, com os braços prontos
para se defender de algum ataque inesperado.
Há!Há!Há! É brincadeirinha, só pra descontrair... Estão todos muito tensos...
S eu miserável, quase tive um infarto! S e pensar em fazer outra piada como essa,
pode ter certeza que será a última!
Minutos mais tarde eles continuavam em seu curso, só que com calor. Teias de
aranha surgiram nas paredes de terra, e uma delas grudou nos fios de cabelo da
fada. O grupo também percebera que o som de metal se chocando, vindo do fundo
do túnel, fazia o chão vibrar. Vinte degraus mais pra baixo e o calor que era
levemente incômodo se tornara insuportável, a ponto de fazer o duende tirar a
camisa e amarrar na testa, como uma bandana.
Ô fadinha, quer parar de olhar pro meu peito musculoso! - disse o duende,
dando tapinhas no tórax.
Eu não estou olhando pra você, seu convencido! N ão ousaria maltratar meus
olhos com uma visão tão horrorosa - respondeu Lila indignada.
A ntes que a dupla iniciasse mais uma de suas intermináveis discussões,
Vanhardt colocou o dedo nos lábios e chiou, pedindo silêncio. O s dois pararam e
ele apontou para frente, onde uma luz fraca podia ser vista.
O lhem, uma luz! Parece ser um salão... O s barulhos e o calor certamente estão
vindo de lá. A gora façam silêncio para não sermos surpreendidos. N ão sei se o
Ciclope está lá, e se estiver também não posso afirmar com certeza se ele nos
receberá bem. Portanto, estejam alertas!
Com redobrado cuidado o grupo desceu os últimos lances da escada. Um arco
prateado que passava de uma parede para a oposta, e beijava o teto entre elas,
determinava o fim do túnel. A sua frente cuidava o local de onde nitidamente
vinham os sons metálicos. Vanhardt foi o primeiro a se abaixar para poder enxergar
melhor.
O salão tinha o formato circular, iluminado por archotes presos nas paredes,
grande o bastante para abrigar uma festa com mais de cem convidados. A s paredes
e chão eram de pedras da cor verde. Uma fornalha de pedra ocupava todo o lado
oeste, e abaixo dela centenas de quilos de brasa ardiam revoltosas. Mais ao norte,
uma pequena cachoeira de dois metros de largura desaguava em um riacho, que
corria rente ao lado leste e passava debaixo da parede em algum ponto. O que mais
interessou ao grupo, entretanto, foram as pequenas e robustas criaturas que
corriam de um lado para o outro.
Eram bem mais baixos que um humano comum, porém alguns centímetros
mais altos que um duende como Green; seus ombros eram largos, barrigas
proeminentes, e a maioria usava longas barbas que quase tocavam o chão, podendo
ser das cores pretas, marrons ou ruivas. O s cabelos se mostravam das mesmas
cores que as barbas, e alguns usavam tranças, enquanto outros os deixavam
desgrenhados. O s pequeninos, sem nenhuma exceção, trabalhavam arduamente:
uns carregando carvão em carrinhos até o forno, outros balançando abanadores
para avivar as brasas, e alguns martelando chapas de ferro sobre bigornas. Podiam-
se contar pelo menos cinqüenta deles no salão.
Q ue legal, anões! Eu tinha um ótimo amigo anão, que conheci em Karnak. Ele
só era meio rabugento... A h, pra ser sincero era bem chato. Bem, acho que até não
era muito meu amigo. - Green conversava consigo mesmo enquanto os outros se
interrogavam se deveriam falar com os anões ou fingir que não estavam ali.
D e repente, uma corneta soou tão forte que obrigou a todos taparem os
ouvidos. O s anões gritaram e lançaram as mãos pro alto, largando imediatamente
suas obrigações e correndo para uma porta ao leste. S egundos depois os primeiros
saíram carregando uma gigantesca travessa, com três suculentos javalis assados, de
maçãs nas bocas. Eram necessários cinco deles para erguerem a travessa, e se
encaminharam para a cachoeira. Esta, como se obedecesse a um comando
automático, partiu-se ao meio, revelando uma abertura pelos quais os anões
passaram. N ão demorou para que esses voltassem, e quase esbarrassem com outro
grupo que dessa vez levava uma panela para a passagem sob a cachoeira. A panela
era do mesmo tamanho que a travessa, porém continha torta de queijo, recheada
com beterraba e brócolis. O s oito anões que a carregavam passaram debaixo da
cachoeira exatamente como o primeiro grupo, e logo foram avistados mais anões
trazendo dessa vez quase uma tonelada de arroz colorido, juntamente com outro
que sozinho levava pratos e talheres bem maiores que o normal.
Eles estão pensando em alimentar um exército? - perguntou Vanhardt com a
mão sobre a barriga, e língua roçando os beiços.
Puxa, bem que eles podiam oferecer um pouquinho pra gente! - acrescentou
Green imitando Vanhardt com as mãos e a língua.
A cho melhor perguntarmos logo onde está o Ciclope. A inda não entendi por
que estamos parados aqui, sem fazer nada - disse a fada sentada sobre os ombros
de Vanhardt.
A Guardiã não esperou a confirmação de Vanhardt e ficou na frente de cinco
anões que levavam dessa vez uma jarra com três metros de altura, e continha leite.
Os anõezinhos pararam, e um deles com a barba ruiva, disse asperamente:
S aia logo da frente! Q uer que o Ciclope fique furioso por atrasarmos seu
lanche?
Essa comida toda é só para o Ciclope?
É claro, mulher! Agora nos deixe passar ou enfrente a fúria de nosso mestre!
Com dois passos para a direita, Ravina cedeu passagem para os anões que
aceleraram as perninhas rumo à cachoeira. Vanhardt e os outros se aproximaram, e
o filho da deusa do gelo comentou reflexivo:
Pelo que entendi, o Ciclope está em algum lugar debaixo daquela cachoeira.
Vamos esperar outro grupo de anões para seguirmos por ali.
E se eles não nos deixarem entrar? - perguntou sensatamente Lila.
A zar deles! - respondeu Vanhardt, preparando-se para ir atrás de mais anões
que quase morriam de tanto esforço para erguer uma tigela com geléia de maçã.
O s quatro seguiram os anões por debaixo da cachoeira, os quais não ofereceram
resistência alguma. N ão foi grande a surpresa quando viram uma sala, decorada
com lustres e cortinados, e uma mesa de dez metros de comprimento entupida
com todas as iguarias culinárias que viram passar. N a única cadeira que havia, no
final da mesa, um ser parecido com um homem, mas com o dobro da altura e o
triplo da largura, avançava furioso sobre uma das cochas do único javali restante.
O s ossos dos outros repousavam sobre um prato à esquerda da mesa, provas
fúnebres de que a fome daquele enorme ser era assustadora. Q uando Vanhardt e
os outros aproximaram alguns passos, ele parou de comer por um momento, e
virando-se para os intrusos, mostrou-lhes um único olho no meio da testa de uma
cabeça redonda e careca.
Q uem são vocês? - perguntou o Ciclope com os dentes escondidos atrás de uma
montanha de arroz com queijo, e uma fatia gordurosa de javali.
Meu nome é Vanhardt Mohr D aicecriv, e estou aqui para consertar uma arma.
Esses são meus companheiros Lila, Green e Ravina.
Mais um grupo de aventureiros que decifrou o enigma? N ão acredito, já é o
quinto só neste século! Muito bem, esperem-me terminar este lanchinho e aí
veremos o que posso fazer.
Green não escapou de um tapa no pescoço e uma reprimenda por fazê-los se
assustar ao ter dito que ninguém havia decifrado o enigma até hoje. A comida não
sobreviveu a dez minutos de ataques constantes do Ciclope, que terminou com um
sonoro arroto.
Buuuuuuuuuuurrrp! D esculpem-me, é que costumo comer sempre sozinho!
A h, que falta de educação a minha, nem ofereci para que se servissem. S ei que não
é uma boa justificativa, mas é que era tão pouquinho, e talvez não me sustentasse
até a hora do lanche da tarde. Esses anões estão ficando moles e preguiçosos, e não
fazem comida como antigamente. Estão servidos? - o Ciclope, apesar da aparência
bruta, tinha uma voz paternal.
Eles iriam dizer que não, porém Green foi mais rápido e atrevido:
Estamos, sim, senhor! Faz séculos que não comemos direito! - observou o
duende de maneira sincera.
Muito bem, vou providenciar alguns aperitivos enquanto conversamos. Kiki,
diga ao cozinheiro que temos convidados e gostaríamos de mais alguns quitutes!
Um anão que até aquele momento se manteve escondido atrás do Ciclope saiu
rapidamente em direção à cachoeira, resmungando baixinho. O Ciclope se limpou
com um lenço, e levantou-se desajeitadamente da cadeira. Revirou seu único olho,
de tonalidade castanha escura, encarando bem os visitantes, e então tornou a falar:
Estão aqui para consertar uma arma, certo? Pois preciso ser pago para fazer o
serviço, e não é com qualquer moeda mundana. S ó aceito quantuns, ou seja,
energia divina.
Léia não havia dito nada sobre pagar o Ciclope, e por um momento Vanhardt
achou que ela se esquecera de um detalhe importante. Coçando a orelha por trás,
ele disse ligeiramente constrangido:
D esculpe, senhor Ciclope, mas minha mãe não falou nada sobre energia. Ela
apenas disse que era pra decifrarmos o enigma, e que na sua forja, Flama seria
consertada...
A h, Flama, então você é o filho da deusa do gelo! Está tudo certo meu rapaz, eu
e a deusa do gelo já nos acertamos devidamente! N ão precisa se preocupar com
nada. A gora me siga - o Ciclope fez sinal com as mãos, e foi para uma porta no
canto oeste da sala.
Q uando todos passaram pelo arco da porta tiveram a sensação de que o Ciclope
era maior ainda, pois este teve de se abaixar enquanto eles não alcançavam o topo
nem com os braços esticados. Lá dentro uma fornalha se erguia num canto,
enquanto no outro, pilhas com livros de um metro de comprimento e uma cadeira
gigante disputavam espaço. Com um movimento rápido o Ciclope encostou o
indicador no peito desnudo de Green e comentou:
Eu estava aguardando para que você se compusesse de maneira mais distinta
sem que fosse preciso chamar-lhe a atenção, porém vejo que de nada adiantou...
Q uer fazer o favor de vestir essa camisa ou precisarei ser rude? - o Ciclope agora
parecia bravo, e imediatamente o duende atendeu a ordem.
É que estava fazendo calor, e eu acabei esquecendo... Mas já não está tão quente,
até que o clima está bem agradável...! - disse Green com um sorriso amarelo e gotas
de suor brotando na testa.
Hmpf, que seja! Vamos ao que interessa; Vanhardt, onde está a poderosa foice?
O filho da deusa do gelo retirou a arma de dentro do braço, como já estava
acostumado. Por um instante mais rápido que o próprio pensamento, ele imaginou
que fazia a coisa errada, mas acabou se tranqüilizando. Confiava em sua mãe, e
concluiu que ela julgaria bem o Ciclope. Este, depois de tocar nas duas metades de
Flama, balançou a cabeça pra cima e pra baixo, e afirmou:
-— Queridinha, o dano foi realmente sério... Deve ter doído, não?
E "queridinho"; Vanhardt é homem senhor Ciclope! - comentou Green
respeitosamente.
É óbvio que sim, estou conversando com a foice! - o Ciclope contraiu a
sobrancelha e aproximou-se perigosamente do duende. - Está achando que sou
burro?
Excelentíssimo Ciclope, vai realmente se importar com o que uma criatura tão
débil como esse duende aqui diz? - a fadinha se enfiou entre os dois, procurando
apartar um possível conflito, que teria um resultado no mínimo letal para Green.
Então virou o rostinho para ele e sussurrou asperamente. - Q uer calar a boca seu
imbecil? Não vê que o está deixando cada vez mais irritado?
Com o duende devidamente preso entre os braços da Guardiã, e com uma
mordaça em sua boca, o Ciclope pediu a todos que se acomodassem, ou se
preferissem, retornassem à sala de trás para comer, pois a mesa já tinha sido posta
com mais quitutes. Green não ousou se mover, e todos afirmaram que estavam
bem.
— A arma sofreu um trauma severo, e não sei se poderei salvá-la! Terei até
mesmo que fazer algumas modificações. Entretanto estou certo de que se
conseguir, ela ficará mais forte do que jamais esteve. Tomara que funcione, pois
seria uma perda realmente infeliz.
S e o Ciclope não reparasse a arma, Vanhardt não teria como abrir o Templo
D ourado. O jovem andou até a cadeira que se escondia no meio das pilhas de livro,
e sentou-se com pouco conforto, pois ela era muito grande. Então fechou os olhos,
e torceu para que tudo desse certo.
Capítulo XLVII - A Visão do Oráculo

A garotinha, do alto de seus dez anos de idade, também conhecida como


oráculo, levantou-se de sua cadeira cuidadosamente, colocou os braços nas costas e
deu uma volta por trás da cadeira onde Léia se acomodava. A deusa do gelo não
moveu a cabeça, esperando que o oráculo retornasse, o que não tardou a acontecer.
A menininha parou a menos de um metro da deusa, e ambas passaram a se
encarar, como se disputassem quem desviaria o olhar primeiro. Léia chegou a
pensar em adotar uma postura defensiva quando viu o oráculo fechar os olhos,
porém algo notável ocorreu.
Um desenho circular, de contornos dourados, do tamanho de uma moeda,
surgiu bem no meio da testa da garotinha. S eu corpo começou a chacoalhar, as
mãos suavam sem parar, e os cabelos cacheados se projetavam para trás
desordenadamente, como se ela estivesse no meio de um furacão. D e repente, para
a surpresa da deusa, o contorno inferior do círculo se ergueu, como uma pálpebra,
e uma íris vermelha apareceu no meio de uma esclera branca. Um verdadeiro olho,
um terceiro olho, acabara de surgir no meio da testa do oráculo, e emitia uma luz
cegante.
A garota esticou os braços na horizontal, um para a direta e o outro para a
esquerda, e de sua boca saiu uma voz que parecia vir de muito longe:
— O primeiro que tanto procura não será revelado hoje, e sim amanhã, pois a
roda do destino tem seu próprio ritmo. Pois o segundo em comando, aquele cujo
nome se mostrou conhecido há pouco, e é maldito pelos quatro cantos de Kether,
Mondovar, o supremo Lorde, este sim será revelado hoje. E lágrimas vermelhas
rolarão, gritos de dor cortarão os céus, a terra se abrirá sobre o solo do herói,
quando a máscara de ferro cair. É importante, entretanto, que quando a terra do
gelo for ameaçada pelos braços negros, sua deusa se mantenha quieta, porque não
vencerá, mesmo que devote todos seus esforços. S ó o retorno do Elohim para sua
casa poderá trazer a vitória, porém devo alertá-la que a roda do destino é frouxa
nesse ponto, e o futuro não está selado.
A segunda resposta é aquela que não a perturba tanto, mas será de
fundamental importância para o ciclo. A chave é mesmo cúbica, e não apenas de
portas. J anelas são abertas para quem as possui, e pode-se enxergar o outro lado.
Cubra sua chave, para que os olhos sombrios não vejam mais sua casa. E envie-o
para o Elohim, quando este precisar abrir as portas para a fonte do poder daquele
primeiro, o traidor. Lembre-se que quatro darão poder a um, mas quatro menos um
é pouco, e não suficiente. Lute pelo quatro menos um.
A terceira pergunta está relacionada à primeira resposta, e aflige mais o Elohim
do que a deusa. O lugar onde ela se encontra é de muita dor e sofrimento, pois fica
justamente nos domínios do segundo em comando. E para libertá-la, o Elohim
infelizmente terá de matá-la. É isso que os olhos me mostram, e que a verdade em
minhas palavras sejam corroboradas pelo futuro que se fará presente.
O oráculo caiu no chão, aparentemente sem forças, e Léia apressou-se para
ajudá-la a se levantar. Q uando ela conseguiu, um sorriso singelo brotou em seu
rosto, e repentinamente as luzes que iluminavam a sala se apagaram. Um barulho
de passos ecoou, e Léia notou que sua mão não tocava mais o braço da menina. Ela
instantaneamente esfregou a ponta de um indicador no outro, e elas se acenderam
como se fossem lanternas, deixando todo o salão claro novamente. Léia não viu o
oráculo, que havia desaparecido, mas o que se evidenciou trouxe-lhe à memória
lembranças terríveis.
A s criaturas que infestavam o salão eram não menos do que trinta. Vestiam
capas pretas rasgadas, mãos esqueléticas empunhavam espadas, e os rostos eram
completamente tomados pela escuridão. Eram as mesmas que um dia invadiram
seu castelo quando ainda era a deusa da morte. Um som semelhante a uma
gargalhada misturada com um grito de terror ressoou na boca de cada criatura, e
uma aura maligna tomou conta do ambiente. A quilo não exercia efeito sobre a
deusa do gelo, mas se um ser humano comum estivesse ali sentiria tanto medo,
que ficaria paralisado antes mesmo de respirar.
Flutuando a alguns centímetros do chão, as criaturas passaram a girar em
círculos em volta da deusa, mas esta permaneceu parada. Como se estivessem
obedecendo a uma ordem, todas se lançaram na direção de Léia ao mesmo tempo,
fechando o círculo, com o intuito de pôr fim à sua existência. Foi então a vez da
deusa entrar debaixo da capa prateada que carregava nas costas, se transformando
num bloco pontiagudo de gelo. A s criaturas rebateram no bloco e caíram no chão,
sem conseguir causar qualquer dano. Um barulho estridente de vidro se quebrando
tomou conta da sala, sucedendo a um heróico contra-ataque da deusa: ela saíra de
dentro do bloco de gelo quebrando-o, e lançando centenas de farpas de gelo
afiadas em todas as direções. A s farpas grudaram nos ossos e nos farrapos das
criaturas, que aparentemente não sofreram nada, pois gargalharam como da outra
vez.
A ntes, contudo, que fizessem uma nova investida, a deusa do gelo sorriu. Ela
ajoelhou-se em uma das pernas, bateu palmas duas vezes, e milhares de pequenas
explosões se seguiram, refletindo os tons vermelho, verde, azul e amarelo. S ons
graves e retumbantes completaram a belíssima, porém dramática cena. Foram as
lascas de gelo, grudadas nos invasores, que explodiram, derrotando de uma só vez
todos os inimigos.
Léia sentiu que mais criaturas vinham pelo corredor, e que logo estariam
espalhadas por toda a mansão. O que teria acontecido ao oráculo? Ela havia revelado
que se ficasse para ajudar a deusa do gelo, acabaria sendo morta. Mas... será
mesmo? Léia não queria perder tempo lutando, pois apesar de serem
aparentemente fáceis, podiam esconder algum perigo. O traidor não teria enviado
esses soldados à toa. Por quê? Com tais perguntas em mente, Léia passou pelos
corredores de espelho numa velocidade maior que a do som, como se dançasse,
desviando acrobaticamente de centenas de criaturas que tentavam acertá-la. Ela
pulava sobre algumas, acertava outras com o cetro, e ainda empurrava as próximas,
e finalmente atingiu o último corredor e enxergou a luz do sol.
Q ual não foi a sua surpresa quando viu, espalhadas por todo o jardim, centenas
e mais centenas de criaturas sombrias. Q uem estivesse bem do alto veria apenas
um colchão negro contornando a mansão. A s ruas estavam desertas; as pessoas e
até mesmo os guardas não suportaram ficar próximos. Um vento frio passou sobre
o ombro de Léia, que aproveitou para fechar a porta da mansão assim que saiu,
selando as frestas com gelo inquebrável. S ua intenção era evitar que mais inimigos
viessem lá de dentro. S em se perturbar, a deusa desviou os olhos para a multidão
que se formava em sua frente. Por um segundo achou aquilo tudo até bonito, só
que não era hora de ficar apreciando um exército de seres esqueléticos que
gostariam de vê-la morta.
S em pressa, ela esticou o braço direito para cima, e como um raio disparou para
o céu, quebrando o teto de madeira da varanda. Léia subia, dezenas de vezes mais
veloz que uma águia, sentindo o vento agradável brincar com sua roupa e cabelo.
Ela voava muito pouco, mas em todas as oportunidades buscava aproveitar ao
máximo. Uma de suas principais criaturas era justamente os Grilliardus, que
voavam. Chegando aos milhares metros de altura, ela furou uma nuvem, e pousou
sobre sua superfície macia. Em Kether o topo das nuvens é mais denso, e serve de
chão para muitos castelos de deuses. Ela ia caminhando tranqüilamente,
procurando refletir sobre o que o oráculo dissera, mas foi impedida por um puxão
no tornozelo.
Havia uma algema metálica envolvendo o tornozelo da deusa, ligada a uma
corrente que se esticava até as mãos de um homem. Este por sua vez olhava
fixamente a deusa do gelo. A ltura mediana, cabelos loiros, curtos e desarrumados,
barba por fazer, aparentemente pouco mais de trinta anos, usava uma armadura
vermelha, com duas espadas cruzadas nas costas. Com a corrente firmemente
presa entre ambas as mãos, ele pigarreou, e disse elegantemente:
N ão acredito que realmente consegui pegar uma deusa... A h, nem posso
traduzir em palavras o prazer que estou sentindo! Eu me considerava bom, na
verdade, o melhor, mas chegar a ponto de fazer frente a um deus... O u uma deusa,
melhor dizendo. Estou até pasmo! A liás, seria correto afirmar que me dirijo neste
instante à deusa do gelo?
Léia custava para decidir se ria ou se mantinha cautela. Ela notou que a corrente
era um item mágico, mas não fazia idéia de qual era seu poder. A lguns deuses
menores já enfrentaram humanos, e por subestimar suas habilidades, acabaram
derrotados por eles. E ela não gostaria de se unir a estes deuses, portanto precisava
fazer o humano falar.
É claro que sim! Fico honrada por encontrar um humano tão valoroso!- Léia
esboçou seu mais gracioso sorriso. - Entretanto diga-me valente guerreiro, qual é
seu nome, e como conseguiu tamanha proeza de me prender sem que fosse
notado?
O homem demonstrava claramente que era um falador, e que queria saborear o
seu momento de sucesso o máximo possível. Por isso respondeu:
— Pode me chamar de Ramis Grosnik, seu futuro carrasco! O uso afirmar que
não foi nada difícil prendê-la. Veja bem, minha maior virtude é justamente a
velocidade. S e posso me gabar de alguma coisa é essa: eu sou rápido! Prendi a
dama logo antes de sair voando, pois tive sorte de vê-la assim que eu saía de uma
passagem secreta da mansão. A liás, aquela passagem secreta não tinha um cheiro
muito agradável. A deusa deve ter sido muito displicente ao não ter percebido que
me carregava pelos céus.
Q ue interessante! Realmente, estava tão entretida aproveitando o vôo que nem
o notei. E eu que me achava rápida, mas depois de ver uma atuação dessas... - havia
um discreto tom de ironia em sua voz. - Porém conte-me mais, Grosnik, o que fazia
naquele local com tamanho exército?
Ah! Poupe-me de fingimento, sabe exatamente por que estava ali! Está claro que
O nturius sempre apresentou um atrativo, o famigerado O ráculo. E não foi ele que
também a levou ali? - quanto mais Grosnik falava, mais se sentia à vontade para
continuar. - Foi uma pena termos encontrado-a morta, naquela passagem secreta, e
ainda mais sem o olho. A gora será difícil encontrá-lo... ou nem tanto? A cho que
depois de matá-la, deusa do gelo, vou acabar descobrindo que você fizera nosso
trabalho!
O oráculo morrera, como suas próprias previsões indicaram. Então o traidor
não estava atrás de Léia, e sim do olho do oráculo.
Para descobrir isso, terá antes de evitar que seja morto por minhas mãos. E
como bloqueará o poder de uma deusa?
Por que acha que não largo essa corrente sob nenhuma circunstância?
Grosnik balançou a arma, fazendo barulho. - Ela é capaz de sugar toda a energia
que a vítima dirigir contra a minha pessoa, e jogá-la de volta contra ela mesma!
Hahaha, agora vê por que não tem nenhuma chance contra o grande Ramir?
A deusa do gelo tirou seu cetro de dentro do vestido, e esfregou-lhe a mão
gentilmente. D epois, deu uma pancada sem muita força na algema, explodindo-a
em mil pedaços. Grosnik abriu a boca, estupefato com o que acabara de presenciar,
e então contraiu o rosto, desesperado:
Como você a destruiu? COMO? A corrente deveria ter sugado sua energia!
D everia mesmo, se eu tivesse gastado alguma. Mas a força para quebrar esse
seu item ridículo veio completamente do cetro. Bem, uma arma que custou quase
quinhentos anos para ser produzida tinha que apresentar vantagens, não é mesmo?
Pois agora perceberá que a corrente não era tudo que eu dispunha - Grosnik
aproveitou para tirar cuidadosamente as espadas das costas. - Provará minhas
lâminas, ao se curvar à agilidade de meus golpes!
O guerreiro avançou em direção à deusa do gelo, com ambas as espadas
erguidas, e tão rápido quanto um tigre. Q uando estava a dois passos de distância
de Léia, notou que esta esticou o cetro, tocando-o em sua testa, e bloqueando seu
avanço. Grosnik desperdiçou golpes no ar, sem atingir a deusa do gelo, e
percebendo sua falta de inteligência, mirou no cetro. A deusa retirou-o por um
centésimo de segundo, suficiente para desviar do ataque, retornando-o para a testa
de Grosnik. Ela repetiu a atitude dezenas de vezes, quantas eram as investidas do
guerreiro, e até deu batidinhas com a mão esquerda na boca, fingindo estar com
sono. A pós um minuto, com o adversário mais cansado, ela acertou o cabo do cetro
na barriga dele, que congelou instantaneamente. A placa de gelo se foi se
espalhando sobre o corpo do guerreiro como um fungo, que olhou assustado para a
deusa. Ela limitou-se a recolher o cetro, e dizer secamente:
Eu poderia poupá-lo, porém nunca apreciei arrogância. Adeus.
A s nuvens eram capazes de sustentar o peso de uma pessoa, mas não o de um
bloco de gelo como o que o guerreiro se tornara. Lentamente, Grosnik foi
afundando na superfície fofa da nuvem, e depois que o bloco atravessou mais da
metade de seu tamanho, acabou despencando como uma pedra. Léia balançou a
cabeça negativamente, e observou a queda do bloco de gelo até onde sua vista
alcançava. D epois encheu o peito com o ar rarefeito do céu, e ajeitou o vestido.
Tinha muitos assuntos nos quais refletir, e trabalho a fazer. Ela então fechou os
olhos e começou a rodopiar, levantando uma fumaça branca ao seu redor. Q uando
a fumaça abaixou a deusa havia desaparecido.
Capítulo XLVIII - Espada e Fogo

A s duas colunas de pedra, separadas alguns metros uma da outra, marcando a


entrada do Templo D ourado, se erguiam novamente em frente ao filho da deusa do
gelo. Ele dispunha de mais uma chance para romper o selo, e entrar no Templo
provavelmente a última. Flama não poderia ser consertada outra vez, como
alertou o Ciclope após entregá-la. Vanhardt recordou-se exatamente do momento
em que tocou a arma, que deixou de ser uma foice, e se transformou em uma
fabulosa espada.
O punho era delicado, vermelho, e permitia que uma mão se ajustasse
perfeitamente, de modo bem confortável. O botão de contrapeso, incrustado na
base do punho, cintilava em amarelo e laranja, e ajudava a balancear a espada. A
guarda era belíssima, se esticava na horizontal ligeiramente curvada para cima.
Espelhava as mesmas cores que o botão de contrapeso, e apresentava um rubi
incrustado no centro. A lâmina, por sua vez, não podia ser mais bem descrita,
exceto fazendo-se uso da palavra "perfeita". Revelava pouco mais de um metro de
comprimento, uma cava (sulco com a finalidade de diminuir o peso da arma) que
se aprofundava com doçura, e uma ponta terminada em V. Prateada, exibia um
afilamento em forma de diamante, finíssimo, que nunca se desfaria. A espada era
uma das visões mais extraordinárias que o jovem já presenciara, e também foi
objeto de delírio para a fada, o duende e a Guardiã. Vanhardt possuía um dos
objetos - talvez "o" objeto mais fantástico de todo o mundo.
S eus companheiros aguardavam ao seu lado, e Green repousou a mão
gentilmente sobre o ombro do filho da deusa do gelo:
Tomara que dessa vez você consiga - os olhos do duende brilhavam com
sinceridade. - D á pra perceber que você ama muito seu filho... S eria realmente uma
pena se não o visse novamente!
S eu duende linguarudo, isso não é jeito de falar! - a fadinha empurrou Green
para o lado, e passou a voar em frente ao rosto de Vanhardt. - O lha só... S ei que no
começo não tivemos o melhor entendimento possível, e que também aconteceram
algumas discussões, e tudo o mais. Eu só gostaria de dizer que te amo... - o rosto da
fada corou-se. - Como um irmão é lógico!
O brigado Lila, também a considero uma ótima irmãzinha! - sorriu
inocentemente o rapaz.
A fadinha tentou abraçar o rosto de Vanhardt, mas seus bracinhos curtos a
incapacitavam, e por isso manteve uma das mãos no nariz e a outra na orelha dele.
D epois lhe beijou o rosto carinhosamente, despertando cócegas no jovem, e então
se afastou com os olhos cheios de lágrimas. A última a se despedir foi a Guardiã.
Ravina deu dois passos, se posicionando face a face com Vanhardt. Ela fitou-o
atentamente, quieta, sem um murmúrio sequer. O jovem percebeu um sorriso
tentando se delinear no rosto da Guardiã, e só aí se deu conta que ela era mais
bonita do que qualquer mulher que ele já vira antes. A beleza, entretanto, não era
ordinária, e sim oculta por aquele jeito independente e ao mesmo tempo
introspectivo. Ela tocou gentilmente os cabelos do rapaz, e foi se aproximando do
seu rosto. Com as bochechas coladas, Ravina sussurrou ao ouvido do jovem:
Eu ainda não paguei o que devia. E lembre-se que uma dívida deve ser paga
sempre, antes que o tempo a envelheça e cobre os juros com mãos de ferro - ela
recitou a mesma frase que havia dito quando pleiteou seguir com Vanhardt, após
terem encontrado Flama. - Por favor, volte...! - Ravina então deu as costas, fazendo
com que o perfume de seus cabelos invadisse as narinas do filho da deusa do gelo.
Ótimo! Parece que estão todos se despedindo, como se eu fosse fazer uma longa
jornada. Verão que voltarei num instante... A gora se afastem, porque precisarei me
concentrar! Todos ouviram muito bem o que o Ciclope disse.
Ravina, Green e Lila obedeceram Vanhardt, e foram até o pé-de-fasjames que o
duende subira da outra vez que estiveram ali. A fada olhava mal-humorada para a
Guardiã, que parecia não notar. Todos se sentaram no chão, de olho em Vanhardt,
exceto Lila que preferiu se acomodar num dos galhos da árvore.
Vanhardt, por sua vez, colocou a espada no chão, e sentou-se com as pernas
cruzadas. Fechou os olhos, e tentou recordar as palavras que o Ciclope disse pouco
antes de entregar Flama:
Filho da deusa do gelo, considere-se um sortudo: se a ferida aberta nessa arma
fosse um milímetro mais profunda, ela estaria perdida para sempre. Fui obrigado a
retirar seu cabo de madeira, que já estava morto, deixando apenas as duas metades
da lâmina, cuja chama ainda ardia corajosamente. Flama não é mais uma foice; tive
de realizar uma brusca mudança, para que ela pudesse ser usada como uma arma.
Flama hoje é uma extraordinária espada. Porém,Vanhardt, antes que eu a entregue,
gostaria que você ouvisse atentamente.
"A nalisando o estado de Flama enquanto trabalhava, notei algo interessante. A
superfície onde ocorreu a fratura, em ambas as metades, revelava um formato
inusitado. Ela não se quebrou por uso extensivo, como acontece com a maioria das
armas comuns, e nem por meios mágicos, causa da fragmentação de itens
encantados. Era como se ela tivesse se chocado contra uma superfície muito bruta e
de natureza não mágica, como uma pedra. A surpresa é que a força de Flama
sempre foi muito grande, fato naturalmente percebido ao se analisar a quantidade
de quantuns que adormeciam na alma da arma. O u seja, uma pedra bruta não seria
adversária para um golpe da foice, que a cortaria facilmente."
"Bem, então pensei: como Vanhardt quebrou a foice, em uma superfície bruta,
sendo que a arma continha forças para cortar algo do tipo? A resposta era óbvia pra
mim, mas talvez não seja para você. Veja bem, meu rapaz, o poder desse item não
está simplesmente incrustado em sua lâmina, ou cabo, ou em qualquer outra parte.
É aquele que o empunha o possuidor da verdadeira força. A contece do mesmo
modo quando damos um soco: a força do golpe não está na mão, ou nos dedos, mas
sim no braço que o movimenta. O jeito como os músculos se contraem, o arco que
ele descreve no ar, tudo isso irá determinar a potência do golpe. N o seu caso não é
muito diferente, se encararmos 'braço' não como o membro que sai do seu ombro,
mas sim como sua força espiritual.
"I magino que agora deve estar se perguntando: que bobagem é essa de força
espiritual? Espere, pois ainda preciso contar-lhe o segundo motivo pelo qual Flama
se partiu."
"Q uando você atingiu o alvo, responsável pela fratura da arma, encontrava- se
de olhos fechados. I sso também pôde ser percebido claramente ao se analisar a
superfície da lâmina. É óbvio que não remonto aos seus olhos físicos, mas sim
àquele olho que é capaz de enxergar a verdadeira face de todas as coisas. E esse seu
olho, obviamente, está fechado. Um deus, seja ele grande ou pequeno, possui esse
olho, e o mantém sempre aberto. Eu, por exemplo, noto uma aura ao seu redor, de
dúvida. S ei também que Kiki está se fartando com um dos aperitivos na mesa que
eu pedi que postasse. I sso não porque vejo através dessa parede, mas porque sinto
o verdadeiro cheiro que vem dos alimentos, e é este cheiro que me conta o que está
acontecendo. Você consegue perceber então que o olho do qual falo não tem nada a
ver com o físico, apresentando relação mais íntima com qualquer um dos sentidos,
de uma forma verdadeira e profunda?"
"Voltemos agora à força espiritual... O que é ela? Resumidamente, é a
capacidade de não se identificar com os fatos e objetos cotidianos, e operar a
natureza segundo a verdadeira vontade. A credito que deve ter notado que o "olho"
e o "braço" estão interligados. S e você enxergar a verdade, conseguirá operar a
natureza à sua volta, e conseqüentemente será mais forte espiritualmente. Lembre-
se que o importante não é ser como as folhas de uma árvore, e sim como o seu
tronco. A bandone a folha na qual se encontra atualmente, e mergulhe
profundamente no tronco. A li é o princípio de tudo, o princípio da magia. E como
conseguir isso? Unicamente através da concentração, ou da meditação, ou qualquer
um dos métodos que tranqüilize seu corpo e deixe os sentidos livres, permitindo
que você capte a verdade contida no universo. E o mais importante de tudo: deixe
que aquele fogo que tenta escapar da base de sua espinha dorsal arda e queime, e
suba até o ápice, dentro de seu cérebro. D eixe que ele queime todas as folhas. É
importante que ele transforme em cinzas todos esses falsos 'Vanhardts' que estão
dentro de você, egos que formam sua personalidade e o afastam do verdadeiro 'Eu'
que é único. A ssim, quando encontrar o verdadeiro Vanhardt, mesmo que seja por
um segundo, terá força para remover montanhas. Você tem a espada e o fogo. Lute,
e atingirá seus objetivos, mesmo que demore um século. Mas vá sozinho!"
O filho da deusa do gelo permaneceu imóvel, com as palavras do Ciclope
pipocando em sua mente. Eram informações muito complexas, e sua inteligência
não era nada fantástica. Mesmo assim compreendeu alguma coisa. Lila já havia lhe
contado sobre o poder da meditação, e Ravina sobre esses outros "eus" dentro de
cada pessoa. O que o Ciclope disse não era tão novidade assim. S ó ficou curioso
pelo fato dele conhecer o fogo que queimava em sua espinha dorsal. Deixar que ele
suba até o ápice... Vanhardt fechou os olhos, e tentou seguir as recomendações do
Ciclope. N ão se identificar com os fatos e as coisas. S er o tronco. Ficou ali sentado
por minutos, que viraram horas. S ua testa suava, sentia fome, porém nada mudara.
S ua mente trabalhava impiedosamente; ora pensava em seu filho, ora em sua mãe,
S elena, o dia em que derrotou o verme, e mais um milhão de coisas. O utra hora se
passou, e nada. Q uanto tempo ele ficaria ali? S eria o momento de utilizar a espada?
Não queria arriscar a quebrá-la novamente.
Green rolava de um lado para o outro no chão, tamborilando os dedos no
gramado, emburrado:
Q uando ele vai abrir as portas do Templo? Estou ficando aborrecido! E por que
não podemos ir com ele?
Paciência. Ele abrirá no momento certo - respondeu a Guardiã ainda
observando Vanhardt fixamente. - E devemos deixá-lo ir sozinho, pois esse desafio
cabe unicamente a ele. O próprio Ciclope disse que ele devia estar
desacompanhado.
E desde quando você é a sabe-tudo? - intrometeu a fadinha do alto de seu galho.
- D epois que entrou no grupo fica se achando a bonitona, a esperta, a poderosa! - o
tom de voz de Lila revelava ressentimento.
Eu não me acho nenhuma das coisas que você citou. S e conseguir colocar esse
ciúme ridículo de lado, verá que estou aqui apenas pra ajudar Vanhardt, assim
como ele ajudou o meu povo.
Ciúmes? CI ÚMES ??? - as bochechas da fadinha ficaram arroxeadas. - A h,
poupe-me! Não perderei tempo aqui ouvindo essas asneiras!
Lila se afastou centenas de metros, só parando num amontoado de rochas. Ela
pousou em uma das menores, e desatou a chorar. Tentava parar as lágrimas com a
ponta de sua roupinha vermelha de pétalas, mas esta se mostrava inútil contra a
impiedosa correnteza derramada dos seus olhos. Era difícil admitir, mas Ravina
não disse nenhuma inverdade - ela tinha ciúmes! Custava muito para aceitar,
porém gostava de Vanhardt. Ela era uma fada, e ele um humano, ou seja, não
haveria futuro para os dois... Até condenou-se por sentir uma ponta de felicidade
quando soube que a esposa dele desaparecera. N o entanto, desde que a Guardiã se
unira ao grupo, Lila enfrentava uma inimiga insuperável. Ravina lutava bem, era
belíssima e bastante inteligente, como provou ao decifrar o enigma. A lém disso,
revelava modos independentes, fortes, que certamente fascinavam Vanhardt.
O principal, contudo, era que Ravina era humana! Humana! E Lila, além de uma
fada, era sem graça, vivia discutindo com o rapaz, não lutava bem, e só conjurava
magias ridículas. A o pensar nisso a fada voltou a derramar seu rio de lágrimas, e
até soluçar.
Longe dali, Vanhardt continuava tentando abrir o seu "olho", para poder utilizar
o "braço". Estava cansado, faminto, com sono, cheirava mal, e com sede. Era tão
difícil, já deviam ter passado quase dez horas, mas nada acontecia. S erá que ele
falharia? Não era hora de desistir, abandonar tudo e voltar para Crivengart?
S ilêncio. Escuridão. Luz. N o céu sem nuvens, gaivotas voavam preguiçosas e na
altura do horizonte um lago comprido se esticava à sua frente. A o redor uma
pequena praia, de areia cristalina, extremamente convidativa. S em saber por que
Vanhardt foi se aproximando do lago, até a beira. O lhando para dentro do lago
conseguia ver o seu reflexo na superfície ondulante da água. Ficou ali para alguns
segundos, e de repente notou que o "Vanhardt" refletido estendeu os braços, e
puxou-o para dentro. A medida que afundava, não conseguia se libertar da enorme
força desse outro Vanhardt, e assustou-se mais ainda quando notou que ele se
dividiu em dezenas de outros. Todos eles o seguravam pelos braços, pernas,
tronco, e o rapaz passou a se debater contra eles. O ar faltava. O s pulmões ardiam,
achou que iriam explodir a qualquer minuto. N a boca um gosto metálico se
espalhava. Só via a morte.
D esistindo de se debater, fechou os olhos, e deixou que o levassem lá pro
fundo. D e nada adiantaria lutar consigo mesmo, nunca venceria. S ó fazia perder as
energias, e ficar cada vez mais fraco. Foi então, que uma idéia louca surgiu em um
canto de sua mente - e se ele fosse até o fundo? S em dar atenção a toda dor e
sofrimento, Vanhardt decidiu nadar cada vez mais para baixo, para o fundo do
lago. Bateu suas pernas e braços com toda força que ainda restava, e a cada metro
que se aprofundava os outros Vanhardt's iam libertando-o. S eus músculos
gritavam, os tendões ameaçavam se romper, o coração batia descompassadamente.
Mesmo assim ele estava decidido, e continou nadando.
De repente, viu uma pequena luz surgir bem no fundo do lago, e se orientou em
sua direção. S eus pulmões ardiam com muito mais fúria, e a dor se tornara
completamente insuportável. O jovem não desistiu, e notou que o que antes era um
pequeno ponto de luz se tornou um facho largo e poderoso. A cada instante a
poderosa luz se fazia maior, e de repente, o lago ao seu redor começou a mudar. O s
outros Vanhardt's já haviam ficado pra trás, e água não mais molhava seu corpo.
A s bolhas desapareceram. S ó havia a luz branca, nem quente e nem fria, mas
tranqüilizadora. Uma luz que curava todas as suas dores, todas as suas ansiedades,
todas as suas preocupações. S entia-se diferente. S entia leve e completamente livre.
Por uma fração de segundo, conseguiu entender que aqueles outros "eus" eram
apenas reflexos disformes de si mesmo. Todos eles estavam dentro dele, mas
entendia por que cada um era daquele jeito. Por que um era rancoroso, por que o
outro era invejoso, por que o terceiro era tão orgulhoso. E o conhecimento o
libertou. Foi então que a luz ocupou tudo ao seu redor, tão rápida quanto uma
explosão.
Q uando abriu os olhos no mundo real, deixando aquele sonho pra trás,
Vanhardt via erguido em sua frente um gigantesco portão duplo, de metal,
dourado, com o ápice se curvando em meia-lua. O portão se encontrava entre as
duas rochas, da altura delas, e estava fechado. Ele pegou Flama, levantou-se, e foi
caminhando lentamente na direção da estrutura. Mais perto, o jovem viu três fitas
de papel, vermelhas, distanciadas verticalmente um metro, e deslizando de uma
metade do portão para a outra. A s fitas pareciam bastante frágeis. Vanhardt então
segurou Flama, e mirou cuidadosamente nas três: acertaria todas de uma vez só,
mesmo que a mais alta estivesse além do alcance de seus braços. S em pensar em
mais nada, esperou que o fogo que já acendia na base de sua espinha rasgasse de
dor suas costas, e golpeou para cima ao mesmo tempo em que gritava:
— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!!!
S ilêncio novamente. Vanhardt caiu no chão de joelhos, esgotado. D epois olhou
para frente, e não conseguiu conter um sorriso: os selos do Templo D ourado se
rasgaram, e as portas douradas estavam abertas. Uma onda de emoção e alívio se
espalhou pelo corpo do filho da deusa do gelo, confortando-o. O espaço entre as
duas colunas de pedra agora ficara diferente da área ao seu redor, como se uma
superfície líquida, de cor lilás, tivesse sido espalhada ali. Ele se levantou, pegou a
espada, e caminhou para dentro do Templo sem pressa, porém com o coração
batendo ansiosamente. Q uando atravessou a superfície lilás, sentiu uma
eletricidade arrepiando seus pêlos, e depois o vazio tomou conta de seus sentidos.
Capítulo XLIX - Mirando o Espelho

A o redor, uma completa escuridão trazia a sensação de que estava no meio do


nada, onde apenas um ponto luminoso ao fundo servia de referência. Sem qualquer
outro lugar para ir, Vanhardt caminhou em direção à luz. Ele achou engraçado,
pois não sentia o chão abaixo de seus pés: era como se caminhasse sobre o vazio. A
luz foi se mostrando mais forte, e minutos depois ele notara duas estátuas
gigantescas, de pelo menos vinte metros de altura, distanciando uma da outra o
mesmo que as pedras que marcavam a entrada do Templo. Era impossível ver os
rostos das estátuas, e muito menos se eram de homens e mulheres, e não porque
elas estavam destruídas ou encobertas, mas sim devido aos próprios olhos do
jovem que se apresentavam embaçados. Vanhardt chegou a esfregá-los, sem
sucesso, porém surpreendentemente viu um desenho ao pé da estátua direita no
formato da letra J , e outro ao pé da estátua esquerda com a da letra B. Porque via
certas coisas e outras não? I nstintivamente, ele cruzou os braços, o direito sobre o
esquerdo, e as palmas das mãos tocando o peito, e curvou-se para a estátua da
direita, em seguida para a da esquerda, seguindo em frente.
A cada passo que dava, um desenho negro do contorno de seus pés manchava o
chão. S eus olhos ainda não viam muito bem, porém notou quando dele se
aproximou uma pessoa. Era um homem muito alto, pelo menos o dobro do seu
tamanho. Tinha os cabelos raspados, olhos verdes, rosto bondoso, e vestia uma
túnica azul que cobria os braços e pernas, até o chão. Ele sorriu, e disse apontando
para os rastros que o rapaz deixava no chão:
Eu já avisei que não está completamente puro, e por isso continuará deixando
marcas. Onde estão as suas sandálias? E que roupas esquisitas são essas?
S em saber direito o que responder, Vanhardt olhou para suas vestimentas, e
depois para o homem. Ele falava como se conhecesse Vanhardt, mas o filho da
deusa do gelo estava certo de que nunca o encontrara em toda sua vida. O jovem
abriu a boca para falar, porém o homem continuou, empurrando-o pelas costas.
—Volte logo para seu quarto, e troque essas roupas ridículas. Está parecendo
um daqueles aventureiros do lado de fora! A liás, quem lhe deu estas roupas? Bem,
não importa agora. Vamos rápido ou chegará atrasado para o jantar.
O homem que insistia em empurrar Vanhardt passou por uma porta, e seguiu
por um corredor onde foram cumprimentados por outros homens também carecas,
parecidos com o primeiro. A medida que aprofundavam cada vez mais no templo,
a névoa ia se dissipando, e Vanhardt podia enxergar melhor. O filho da deusa do
gelo, aliás, não fazia a mínima idéia do que estava acontecendo. Certamente era
confundido com outra pessoa, mas quem?
A dupla seguiu por entre colunas e abóbadas douradas, e pelo caminho
puderam ver muitos outros desses senhores carecas e altos, sentados e de olhos
fechados - todos pareciam concentrados. Finalmente pararam em frente a uma
porta de carvalho, que foi aberta pelo homem que conduzia Vanhardt.
Muito bem Céu de Prata, troque logo essas vestimentas e compareça ao salão de
alimentação. E nada mais de brincadeiras ridículas de esconde-esconde: estou farto
delas. N unca imaginei que ser Protetor de um rapaz como você fosse dar tanto
trabalho...
Errr.. humm... - Vanhardt coçou o queixo, e acabou decidindo entrar no jogo do
homem. Quando fosse deixado sozinho aproveitaria para dar umas voltas em busca
de seu filho, disfarçado pela identidade de Céu de Prata. - Muito bem, meu
Protetor, estarei lá.
S im... - o homem permaneceu encarando fixamente o rosto de Vanhardt.
Esperou por vários segundos, e percebendo que o jovem não fazia qualquer
movimento, ele arregalou as sobrancelhas. - Céu de Prata, o que está acontecendo
com você hoje? Não vai se despedir?
A h, me desculpe... - respondeu o filho da deusa do gelo, começando a
demonstrar nervosismo. - Até logo!
"Até logo"? "Até logo"? O nde aprendeu esse palavreado? Céu de Prata, estou
ficando preocupado com você! A nde logo, pois estou com pressa; tenho inúmeros
afazeres e você insiste nessas brincadeiras infantis! Despeça-se adequadamente!
Hum... Que tal "tchau"? Até daqui a pouco?
Céu de Prata, se você não vai se... oh...O h! - o rosto do homem repentinamente
ficou mais lívido do que já era, e seu olhar fixou-se em um ponto atrás do filho da
deusa do gelo. - Por J ustus, o que é isso? O que é isso??? - a voz do homem quase
desapareceu.
Virando-se devagar, Vanhardt acabou descobrindo o motivo pelo qual o homem
se assustara, e foi assaltado por uma vertigem, seguida de um embrulho no
estômago. N ão podia ser! Mas... Como? Ele não acreditava no que seus olhos
mostravam, e por isso piscou várias vezes, como se obrigasse a visão desaparecer, e
surgir outra no seu lugar, menos surreal. Caminhou devagar na direção daquele
ser, e parou a um passo de distância. Ergueu com dificuldade os braços, e tocou o
seu rosto, e ao sentir uma superfície macia, teve certeza que era real. A pessoa à
frente de Vanhardt na frente era alguém exatamente idêntico a ele próprio!
O s mesmos olhos da cor da noite, os cabelos negros com fios grossos, os
contornos do nariz, da bochecha, do queixo, até a compleição física. Era como se
Vanhardt estivesse em frente a um espelho, que apontava a roupa como único
detalhe diferente, visto que o verdadeiro Céu de Prata vestia uma túnica azul. Este,
aliás, também parecia assustado, e dirigiu-se para o homem careca:
Gunian, quem é este que finge ser igual a mim? Q ue tipo de teste está me
propondo? N ão vejo graça alguma! Vamos embora, estou faminto - o rapaz passou
trombando ombro a ombro com Vanhardt, e saiu do quarto.
Gunian desviava os olhos de Vanhardt para Céu de Prata, com uma gota de suor
escorrendo pela testa. D entre os três, ele parecia ser o mais assustado. O filho da
deusa do gelo, um pouco menos atordoado, pôs o cérebro para funcionar. A quele
jovem igualzinho a ele só podia ser uma pessoa.
Meu filho... Erick.J Por Léia, encontrei meu filho! Erick, como você cresceu!
N ossa! - Vanhardt nem sabia como reagir, se com assombro ou alegria. O ptou por
algo intermediário, e estendeu os braços, em direção ao filho.
I mpedindo a aproximação de Vanhardt, Céu de Prata colocou a mão espalmada
na frente do seu rosto, e afirmou:
N ão faço a mínima idéia de quem seja, e muito menos por que se parece tanto
comigo. Porém não será este mero detalhe que nos permitirá tais intimidades. S e
for mesmo um teste, fale logo à que veio. Caso contrário, vá embora, pois estou
ocupado - o rosto de Céu de Prata revelava aborrecimento.
Como ousa tratar seu pai dessa maneira, garoto! - Vanhardt empurrou a mão do
filho para o lado, tirando-a da frente. - N ão sei como cresceu tão depressa, porém
isso não permite que trate seu pai de modo tão grosseiro. A nde, arranje suas
coisas, pois iremos sair agora mesmo deste templo. Talvez lá fora tudo volte ao
normal...
Céu de Prata mostrou-se furioso num primeiro momento, e deu um tapa na
mão de Vanhardt. Depois esboçou um sorriso, e deu as costas:
Haha! Está certo então rapaz... O u melhor, "pai". Bem, nos veremos mais tarde,
pois estou faminto. Vamos Gunian? - Céu de Prata começou a caminhar para longe
dali, mas foi interrompido por Vanhardt que segurou seu ombro.
Erick, escute-me, você é realmente meu filho! Estou procurando você a... -
Vanhardt sentiu um solavanco no braço, e de repente estava colado com as costas
no chão. Recebeu um golpe tão eficiente do próprio filho, que não teve nenhuma
reação.
Pai... Hmpf, não seja ridículo. Você surge repentinamente aqui no Templo, e só
porque é semelhante a mim quer obter uma paternidade. N em deve saber que sou
filho de J ustus, o inquestionável deus da J ustiça. - Erick novamente deu as costas, e
seguiu caminhando em frente.
Percebendo que aquela abordagem não trabalharia a seu favor, Vanhardt se
levantou, e esperou que Gunian fosse atrás de Erick. Então, retirando Flama de
dentro do braço, ele pulou e agarrou o pescoço do homem calvo, que tinha o dobro
de sua altura, e colou a ponta da arma no seu pescoço, falando-lhe ao pé do ouvido.
É uma pena meu filho não me escutar, pois acabaria poupando esse tipo de
contratempo. I nfelizmente, teve de ser assim! Leve-me imediatamente ao seu deus,
para que possamos resolver logo este nosso "probleminha".
Um pouco mais à frente, Céu de Prata continuava caminhando tranquilamente,
sem ter notado o que acontecia atrás de si. Gunian suava frio:
Está bem, senhor... - o suor chegou até a sua boca, e embaralhou-lhe as palavras.
- "esprue colhebdor à bireipta, na porgdta do funbdo".
A h, pertinho. Entendi, grandão, mas você vai me levar até lá. E não ache que
sairei daqui de cima... Vamos lá!
Gunian chegou a esticar o braço, como se quisesse alertar Céu de Prata do que
acontecia, mas Vanhardt acrescentou um "não ouse", e ele se conformou, seguindo
as coordenadas que fornecera anteriormente. O corredor que Gunian havia
indicado era imenso, e bem no fundo, uma porta dourada e com inscrições
indecifráveis nas bordas deixava claro que ali atrás estava um quarto importante.
A o se encontrar a poucos passos, Vanhardt soltou-se do pescoço de Gunian, e
seguiu para a porta. O lhou para trás, a fim de confirmar se o homem faria alguma
coisa, mas este permaneceu em seu lugar. O filho da deusa do gelo guardou Flama
dentro do braço, encheu os pulmões de ar, e tocou a maçaneta. Ela estava quente, e
ele girou-a delicadamente. Estaria J ustus, o famigerado deus da justiça e líder do
panteão, atrás daquela porta?
Capítulo L - Encontro com o Deus da Justiça

S entado atrás de uma escrivaninha no fundo do gabinete, rabiscando


pergaminhos amarelos com uma caneta tinteiro, encontrava-se um homem de
aparência jovem, com não mais do que trinta anos. Barba feita, cabelos curtos e
bem alinhados, rosto de contornos severos, abrandados por um nariz redondo e
pequeno, vestia uma túnica branca sob o que parecia ser uma malha de prata. Ele
desviou sua atenção por um segundo, a fim de observar quem havia entrado em
seus aposentos, e quando seus olhos cruzaram com os de Vanhardt, parou o seu
trabalho.
Uma energia muito intensa emanava daquele indivíduo, semelhante àquela que
Vanhardt sentia quando na presença de sua mãe. S em sombra de dúvidas, o rapaz
se via diante de J ustus, o deus da justiça. O homem se levantou sem fazer muito
barulho, e apontou para a porta atrás de Vanhardt:
Por favor, feche-a - a voz de J ustus provocava ao mesmo tempo medo e
admiração no jovem. O bedecendo ao pedido, Vanhardt fechou a porta, e J ustus
continuou. - D esculpe-me não poder recebê-lo de maneira mais adequada, porém
não fui avisado de sua chegada. Estou enganado ou não foi anunciado?
Er... Não, senhor, mas é que...
Entendo. J á que me interrompeu, diga logo o seu nome, e o que deseja. D evo
alertá-lo, entretanto, que se for algo de interesse puramente pessoal, e de pouca
relevância, não terei outra alternativa a não ser aplicar a pena por interromper um
deus em seus afazeres.
Vanhardt hesitou por alguns segundos, pois se começasse com aquela história
de Céu de Prata ser Erick, seu filho, e que ele o queria de volta com a mesma idade
com a qual foi deixado no templo, J ustus aplicaria um castigo severo. O s olhos do
deus da justiça eram tão ameaçadores, que pareciam açoitá-lo. Ele então vasculhou
a mente, em busca de um assunto que chamasse a atenção de J ustus, e que ao
mesmo tempo proporcionasse moeda de barganha, para poder mais tarde negociar
com esse deus o futuro de seu filho.
Meu nome é Vanhardt Mohr D aicecriv, e vim aqui a serviço de Morgana, a
antiga deusa da morte. Represento o direito que a deusa possui de cobrar a dívida
que você há de pagar, visto que não a ajudou no episódio da traição sofrida, e
depois não buscou justiça descobrindo a identidade do traidor e julgando-o!
Como ousa insultar a memória de Morgana de maneira tão barata! - J ustus saiu
de seu posto atrás da escrivaninha, e avançou perigosamente na direção de
Vanhardt. A ntes de alcançá-lo, deu uma ligeira olhada para trás, em direção a uma
pequena balança sobre a escrivaninha que equilibrava dois pratos, e depois tornou
o olhar para Vanhardt. - Prove imediatamente que o que diz é verdade, ou sinta
toda a minha fúria! E juro que não serei piedoso!
Percebendo que sua vida estava em risco, e talvez não tivesse tempo para se
justificar antes que o deus da justiça desferisse um golpe qualquer e o matasse,
Vanhardt tirou Flama de dentro do braço e apontou-a para o rosto de J ustus. Este
se deteve ao ver a arma, e analisou-a cuidadosamente, em detalhes. A os poucos
acabou saindo de sua postura ameaçadora, e depois de fitar profundamente o
jovem parado à sua frente, o deus da justiça tornou a falar mais calmo:
A energia que essa arma emite é exatamente igual à da deusa da morte. N o
entanto, Flama, a arma de Morgana, era uma foice, e não uma espada.
Vejo que não se enganou, deus da justiça: essa é realmente Flama. A arma deve
ser suficiente para provar que Morgana não está morta, como fingiu todos esses
anos, e que estou aqui sob sua benção.
Pode até estar dizendo a verdade, e é por isso que lhe darei tempo para se
explicar. Pois vamos, meu jovem, conte-me por que a própria Morgana não
apareceu, ou, melhor ainda, por que ela não compareceu ao Panteão e fez esse
pedido? Eu não teria motivo algum para negá-la qualquer coisa, e seria bom para
que todos entendessemos melhor o que aconteceu.
Meu senhor, não sei das intenções da deusa da morte, mas creio que ela tem
receio de se mostrar e ser traída novamente. Pelo que posso dizer, entretanto, um
dos seis deuses maiores a traiu, o que significa que eu posso estar justamente
perante esse traidor.
J ustus adiantou um passo, ficando face a face com Vanhardt. Ele se apresentava
mais assustador e imponente a essa distância, e por pouco Vanhardt não caiu no
chão, sufocado. A presença daquele deus era realmente muito poderosa, e o jovem
lutava contra um impulso de sair do aposento sem ao menos olhar pra trás. Ele
tinha consciência de que se fizesse isso, porém, estaria morto antes mesmo de
cruzar o arco da porta. Procurando não transparecer medo, o filho da deusa do
gelo, manteve a cabeça erguida, encarando o deus da justiça.
Rapaz, devo lhe dizer que é muita coragem sua vir até aqui, e afirmar uma coisa
dessas. E é por respeito a essa coragem que vou esquecer o insulto que acabou de
me fazer, e prosseguir o nosso diálogo. Você afirma então que Morgana não está
morta, como todos pensamos, e que não deseja se revelar por medo de ser traída
novamente?
É isso mesmo, Divindade. Ao que parece.
E você representa o direito de cobrança de uma dívida que supostamente eu
mantenho com ela?
Exatamente.
S ó não entendi por que afirma que eu possuo dívidas com Morgana. Ela
desapareceu, é verdade, mas até hoje não temos certeza do que aconteceu. S alazar
propôs a hipótese de uma traição, que foi a mais aceita entre todos. Uma
investigação foi conduzida, porém nenhuma pista ou suspeito encontrado. S e ela
foi vítima de traição, como diz, temos cinco inocentes, e um culpado. E é este
culpado quem está em dívida com Morgana, não concorda? A não ser que ela tenha
alguma prova de que eu seja este culpado, como você mesmo mencionou, e assim
entendo por que sou o devedor. Ela, ou você, dispõe dessa prova?
O filho da deusa do gelo percebeu que seus argumentos se esgotavam, e que se
continuasse com aquela discussão o deus da justiça acabaria encurralando-o.
J ustus agia como se fosse a mistura de juiz, advogado e promotor ao mesmo
tempo, e exibia perfeita habilidade com as palavras, seja pelo tom de voz,
eloqüência, ou ainda argumentação. Vanhardt deveria acabar logo com aquela
conversa, e de maneira convincente, pois contava com uma meia verdade,
lembrando-se de uma revelação antiga da mãe: "Justus estava em débito...".
Meu senhor, entenda a situação na qual a deusa da morte se encontra. Foi
traída, e com isso perdeu tudo o que tinha. N ão falo apenas de seu castelo, exército,
seguidores, mas principalmente da confiança que guardava em cada uma das
divindades maiores. Teve de reconstruir toda a vida partindo do zero, e após um
longo período em que hibernou numa caverna, tamanha foi sua tristeza. A dívida
que me refiro, em nome da deusa da morte, é aquela adquirida pelo líder do
Panteão, quando este foi incapaz de encontrar o traidor, e fornecer uma punição
adequada. E se escutar o que lhe peço, entenderá que minha senhora é humilde, e
não requisitaria nada muito difícil ou dispendioso.
J ustus girou a cabeça novamente para trás, encarando a balança sobre a
escrivaninha. A gora Vanhardt pôde observar melhor o objeto, e reparou que um
dos pratos da balança estava quase que imperceptivelmente deslocado para cima,
aproximadamente metade da largura de um dedo. Em sua última frase, Vanhardt
quase disse que o pedido seria de sua mãe, e não dele, uma mentira deslavada. Léia
não havia revelado nenhum pedido para Vanhardt. A situação era delicada. A o
mesmo tempo em que o rapaz não afirmava se aquele pedido era dele ou da mãe,
uma saída inteligente, contava com a intuição de que realmente ao cobrar a dívida,
a deusa do gelo não seria exagerada. A lém do mais, ele deduziu o motivo de
existência da dívida, ao dizer que "ela seria adquirida pelo líder do Panteão ao não
encontrar o traidor e fornecer uma punição adequada". Havia brechas em suas
afirmações. O s olhos ameaçadores do deus da justiça tornaram a recair sobre os de
Vanhardt, e finalmente, Justus disse:
Você seria um perfeito tolo se viesse aqui com o intuito de me ludibriar. A quela
balança sobre a mesa me indica, através dos desníveis entre os pratos, o grau de
verdade ou mentira no qual meu interlocutor se encontra. É um magnífico objeto,
capaz de impedir que até deuses menores me enganem. I nfelizmente, isso não vale
para os deuses maiores, do Panteão, pois se assim fosse, o traidor de Morgana já
teria sido encontrado e devidamente punido. N o seu caso, percebo que o que me
conta não é inteiramente verdade, pois os dois pratos não se encontram
perfeitamente nivelados. N o entanto, estão tão próximos deste nivelamento, que
ignorarei os detalhes que me omitiu, e por isso pedirei que prossiga com seu
pedido. A lém disso, sinto que realmente devo algo à querida Morgana, e portanto
considero o que me disse, verdade.
Meu senhor, nem imagina a felicidade que me assola. O meu pedido está
relacionado à pessoa que se encontra nesse templo e tem o nome de Céu de Prata,
que na verdade é meu filho, e se chama Erick. Gostaria que ele voltasse a ter a
idade quando foi deixado aqui por uma feiticeira, e que retornasse comigo para
nosso lar.
Escutando com atenção o pedido de Vanhardt, J ustus esfregou o pescoço
pensativo. O lhou para a sua balança, verificando que os dois pratos estavam em
perfeito nivelamento. Ele então caminhou até uma estante, onde havia um livro
enorme, provavelmente com mais de dez mil páginas. Utilizando ambas as mãos,
pegou o imenso manuscrito sem fazer muito esforço, e o colocou sobre uma mesa.
D epois o abriu pela metade, e percorreu algumas páginas, detendo-se numa
específica. Passou o indicador de cima para baixo, parando nas últimas linhas. Leu
com atenção, em silêncio, e finalmente, levantou o olhar para Vanhardt.
D essa vez o filho da deusa do gelo não se sentiu intimidado, e sim
reconfortado, e naquele momento teve certeza de que seu pedido seria concedido.
J ustus fechou o livro, levantando uma nuvem de poeira, e o recolocou na mesma
prateleira da estante.
Vanhardt Mohr D aicecriv, acabo de consultar meu livro do Karma, que mostra a
quantidade de ações com força positiva e com força negativa que os habitantes de
Kether realizam durante toda a sua vida. N ão me refiro ao "bem" e "mau" em si,
quando digo isso: "bem" e "mau" são apenas conceitos, formulações da mente
humana, que tem dificuldade em perceber que tais idéias são completamente
relativas, e não fixas e imutáveis. O que talvez seja bom pra você, pode ser ruim
para seu próximo, e vice-versa. Cada ação sua, seja ela positiva ou negativa, deve
repercutir no universo com uma reação de força e polaridade iguais. A ções
positivas resultam em reações positivas, e o mesmo acontece com as negativas. Eu,
como deus da justiça, procuro manter esse equilíbrio sempre ativo e funcionando
perfeitamente. A traição de Morgana fugiu ao equilíbrio; o responsável por todo o
evento possui poder muito grande, porém ainda estou tentando remediar isso.
Parece que Céu de Prata é realmente seu filho, e devido às suas ações positivas
acumuladas, permitirei que você o leve de volta. Espero que isso alegre Morgana - o
deus da justiça aproximou-se de Vanhardt, e gentilmente colocou a mão sobre seu
ombro.
O brigado, D ivindade, agradeço muitíssimo. Mas e quanto ao fator idade? Meu
filho continuará velho? N ão digo velho, de idoso, mas velho no sentido de ter mais
idade que antes...
Hummm, entendo suas preocupações. N ão tema meu rapaz; quando retornar
para Kether, ele terá a mesma idade que quando chegou até aqui.
Ah, que alívio! E quando me encontrarei com ele?
Pedirei que Gunian, seu protetor, o leve até você. Gostaria apenas que me
respondesse algo antes de partir. Como entrou no Templo, já que suponho que não
foi pego por um dos monges?
Monges são esses carequinhas de roupa azul?
S im. - J ustus tentou disfarçar um ar de incredulidade abaixando uma das
pálpebras.
É, não fui pego por nenhum deles. Rompi os selos que mantinham a porta do
templo fechada com a ajuda de Flama.
D essa vez o deus da justiça não consultou a sua balança, e limitou-se a balançar
afirmativamente a cabeça, enquanto analisava Vanhardt dos pés à cabeça. N aquele
momento, certamente J ustus avaliava a força do seu interlocutor, que seria muito
maior do que ele desconfiou quando o rapaz penetrou em seu gabinete há alguns
minutos.
Vossa D ivindade, permita-me que também eu faça uma pergunta antes de ir
embora.
É claro.
Qual é o seu relacionamento com Hilda Risalv? É o mestre dela?
N ão me recordo deste nome, porém posso afirmar com toda a certeza que não
sou seu mestre.
Então, como me explica o fato dela ter deixado meu filho aqui, se não tem
nenhum tipo de relacionamento com Vossa D ivindade? - Vanhardt procurou captar
qualquer alteração na fisionomia ou trejeitos de J ustus, que pudessem revelar uma
mentira.
Honestamente, não saberia lhe dizer. É possível que ela tivesse conhecimento
de que nossos monges, de tempos em tempos, vão ao mundo exterior para meditar,
explorar ou realizar algumas de minhas ordens, e que se eles encontrassem um
bebê ali sozinho, não lhe negariam abrigo. A lém do mais, o Templo D ourado é um
local de difícil acesso, e esta Hilda Risalv provavelmente não queria que ninguém o
encontrasse facilmente.
N enhuma das expressões, ou a alteração do tom de voz de J ustus, indicou uma
possível mentira. Mesmo que desconfiasse lá em seu íntimo que o deus da justiça
não falava a verdade, Vanhardt tinha discernimento suficiente para perceber que
não adiantaria iniciar um interrogatório naquela situação. Ele já estava ganhando, e
não valia a pena pôr tudo a perder. A ntes de deixar o gabinete, contudo, uma idéia
grudou como mel em sua mente: J ustus podia muito bem ser o traidor, e se fosse,
estava sendo mais convincente de sua inocência, do que um próprio inocente
falando a verdade.
Capítulo LI - Sonho Eterno

Fora do Templo D ourado, uma semana se passou. N o primeiro dia Green


andava muito falante, contando histórias em que ele era um grande herói, e
derrotava aranhas gigantes, monstros do lago, bestas que misturavam cabra, leão e
macaco, e realizava outras façanhas inimagináveis. Ravina ouvia tudo com absoluta
indiferença, preocupando-se em caçar quando sentia fome, e se abrigar do sol. Lila,
no entanto, se irritava com o que acreditava serem as maiores mentiras contadas
pelo duende até então, e se num primeiro momento procurou imitar Ravina e não
dar atenção, não conseguiu se segurar depois de dois dias de falatório, e partiu
para discussão. A Guardiã custou muito até acalmar os dois, só alcançando o
objetivo após ameaçar se transformar em Lázarus.
A discussão acalorada pareceu diminuir o ânimo dos companheiros de jornada
do nosso herói, e os três dias seguintes foram de silêncio e reflexão. Por orgulho,
Green não pediu um pouco da comida que Ravina adquirira, e como os fasjames
haviam acabado, procurou ele mesmo por frutas na floresta mais próxima, ou ainda
animais que pudesse cozinhar. Teve de se contentar com uma sopa de raízes verdes
que abundavam próximo à entrada do Templo Dourado.
N o sétimo dia, Lila e Ravina conversavam mais, e a primeira prestava especial
atenção à segunda. Ela queria descobrir o que a Guardiã apresentava de tão
especial, e que deixava Vanhardt vidrado em certos momentos. A fada bolara um
plano: com muita dedicação ela procuraria decorar a sua maneira de se comportar,
o jeito de falar, e até suas manias, para fazer com que Vanhardt gostasse dela
também. A lém disso, a fada faria um pedido especial à deusa do gelo assim que a
encontrasse. Léia não iria negar, é claro, após todo esse serviço que Lila lhe
prestou. Ela queria ser transformada em humana. D esse modo, não existiria mais
nada que a impedisse de conquistar o seu amado, mesmo que para isso fosse
preciso anular a concorrência.
D urante aquela tarde, quando o sol já passava da metade do céu, indicando que
a noite não tardaria a chegar, Green notara que uma galinha veio se aproximando
inocentemente do grupo. Há algum tempo ele havia bolado um plano
revolucionário: o melhor jeito de tentar se manter vivo, sem ter de implorar por
comida à Ravina, era procurar se exercitar o mínimo possível. Com menos energia
sendo desperdiçada, ele precisaria adquirir menos para manter o saldo. Por isso é
que nas últimas horas o duende não saía da sombra do pé-de-fasjames, e não falava
uma frase sequer, o que deixava a fada e a Guardiã aliviadas. Q uando a galinha
estava a menos de dez metros, ele pensou em abortar o plano, e correr atrás do
animal que enxeria seu estômago no lugar de água e raízes. S ó teve certeza de que
o seu plano era o mais idiota do mundo quando a ave se encontrava a três passos, e
ele procurava se levantar sem espantar o animal.
Com pouquíssima coordenação motora ou habilidade, o duende desembestou
em direção à galinha, que o driblou sucessivas vezes sem dificuldade. A ave parecia
zombá-lo, pois a cada drible emitia um sonoro "co-co-cooó", e erguia a cabeça numa
pose galante. Passados dez minutos o duende sentou-se enfurecido debaixo do pé-
de-fasjames, decidido a nunca mais mover um músculo para caçar qualquer
animal. A decisão resistiu por pouco mais de cinco minutos, momento em que a
galinha se encontrava a dois passos de Green, e ele novamente partiu para cima da
deliciosa futura refeição. Como da primeira vez, a galinha se esquivava fazendo
pose e cacarejando, mais parecendo uma gargalhada zombeteira. D uplamente
enfurecido, Green se atirou sob a sombra do pé-de-fasjames disposto a não se
levantar mesmo que a ave estivesse a um centímetro de distância.
Tenta de novo, verdinho! O lha ela do seu lado outra vez! - afirmou a fada com
um sorriso nos lábios.
Era verdade, e dessa vez a galinha beliscava o chão procurando minhocas e
pequenos insetos a dois palmos dos pés de Green. Ele disse desanimado:
Ô minha filha, pode ir chispando daqui! J á vi que não quer ser minha refeição,
por isso trate de sair do meu espaço. Roubou o meu orgulho, agora quer roubar
também o meu cantinho? Nem pensar! - Green balançava a mão direita procurando
espantar a ave, sem nenhum resultado satisfatório. A galinha ignorava
solenemente as ordens do duende.
S aia daqui, estou avisando! Vou começar a atirar pedras! N ão cairei nos seus
truques, e gastar minha gordurinha correndo atrás de você. N em adianta me olhar
com essa cara de "não estou te ouvindo". Vai embora!
Ei, espertalhão, porque não espera que ela bote um ovo? Vai se alimentar mais
rápido do que se passasse o dia inteiro correndo atrás dela... - comentou Lila num
tom irônico.
S ei, sei, vai gozando da minha cara! Você tem sorte, pois se alimenta do sol,
porque senão teria de batalhar tanto quanto eu. A lém do mais, esperar que ela bote
o... ei... hum... Você parece bem gordinha, né? Puxa queridinha, desculpe os maus
tratos, mas é porque você era uma estranha. Mas agora já é conhecida, não é? Muito
bem queridinha, vou ajeitar uma casinha aqui pra você - o duende logo tratou de
juntar restos das raízes que não comeu, e fez um ninho improvisado para a galinha.
- Muito bem querida, pode ficar aqui no seu palácio! A h, chega de "querida", vou te
chamar de "Clotilde", é muito melhor, não acha?
A galinha aparentemente gostou da idéia, pois logo se ajeitou no ninho de
Green, e fechou os olhinhos. O duende esfregou uma mão na outra, lambeu os
beiços, e foi se aproximando lentamente de Clotilde. A ntes disso, ele olhou para
Ravina, que descascava uma laranja, e balançava a cabeça negativamente. Green
ficou com pena da ave, e desistiu do plano maquiavélico, preferindo esperar que
ela botasse um ovo.
N aquele momento, com todos distraídos, uma brisa suave passou a soprar
preguiçosamente. A fadinha que não estava acostumada com o calor da região
sentiu-se mais confortável, e até fechou os olhos para aproveitar melhor o frescor.
Q uando abriu, acreditou estar em um sonho: Vanhardt de pé, parado em sua
frente, com um rosto ofegante, e um bebê embrulhado em toneladas de pano nos
braços. Ela fechou novamente os olhos, sem saber como reagir àquela visão. Foi
quando ouviu:
Não acredito que nem boas vindas eu recebo... Que falta de consideração!
A fada tinha o coração acelerado, e sentia medo, mas não podia explicar para si
mesma do quê. N o fundo estava feliz, só que assustada e perdida. Ela abriu um
olho de cada vez, certificando-se que não seria enganada por suas próprias ilusões,
e Vanhardt continuava na mesma posição. Foi aí que Lila voou em sua direção, e
despejou centenas de beijos em suas bochechas, nariz, testa, queixo, e até um que
por pouco fugiu-lhe a boca. Ravina e Green, que já haviam notado a presença do
herói antes da fada, caminharam até ele. O duende cumprimentou-o formalmente
com a mão, e depois lhe acertou um tapa nos glúteos e fez festa. A Guardiã foi a
última a cumprimentá-lo. O bservou-o cuidadosamente, e depois tornou a atenção
para o bebê, que dormia tranquilamente no seu colo. Então colocou a mão sobre o
ombro de Vanhardt, e disse:
Parabéns, você conseguiu... Estou muito feliz, juro! S erá que posso pegá- lo no
colo um pouco? - a Guardiã apontou para Erick, que coçava o narizinho.
Mas é claro...
Todos quiseram segurar Erick no colo, até Lila, que como não tinha braços tão
compridos o fez levitar. Green gostou de fazer caretas para o garoto, que acabou
acordando e chorando copiosamente.
Também, com uma coisa horrorosa dessas na frente, é óbvio que ele iria chorar!
- emendou a fada.
D epois da festa com o retorno de Vanhardt e seu filho, o lado feminino do
grupo passou a recriminar o filho da deusa do gelo. Primeiro, ele havia enrolado os
cobertores como se Erick fosse um presente, e não um ser humano; segundo, era
pano demais, não adequado para um clima como aquele; e terceiro, Vanhardt não
fazia a mínima noção de como segurar o bebê.
Sua esposa não ensinou a segurá-lo?
Ravina, eu tenho certeza de que ela tentou, behe!
Cerca de meia hora depois os cinco partiam para o norte, rumo à terra do gelo.
Vanhardt insistiu com a Guardiã que ela já podia voltar para sua vila, visto que seu
filho fora encontrado. Ela negou veemente, justificando que só ficaria realizada
quando o visse em sua casa, junto de sua esposa. S ó aí Vanhardt lembrou que
S elena continuava desaparecida. N ão entrava em contato com sua mãe há bastante
tempo, e por isso não fazia idéia de como andavam as buscas. Logo, porém, estaria
na terra do gelo, e poderia encontrar Léia pessoalmente.
D urante a caminhada, Vanhardt narrou suas aventuras apaixonadamente.
Contou como abriu o selo do templo, como viu Erick da sua idade, e ainda como
teve de lidar com o deus da justiça.
Puxa, até Justus! Não acredito que você enganou Justus!
Eu não o enganei Green... Eu só... Bem, eu só omiti detalhes.
S ei, sei. Mesmo assim foi atrevido de sua parte. S ó não entendi por que Erick
estava tão velho.
É, também não entendi. Enquanto o que pareceram horas lá dentro pra mim,
foram dias aqui fora pra vocês. Pra Erick ter envelhecido mais rápido deveria ter
sido o contrário. Estranho. Enfim, de qualquer forma sabemos que os tempos
passam de forma diferente aqui fora e lá dentro, e é isso que importa.
O filho da deusa do gelo também não deixou de perceber que Lila parecia
mudada. Ela havia tomado a liderança do grupo, apontando a direção a ser tomada
com segurança, obrigando todos a apertarem o passo, dando o bebê para Ravina
carregar ao invés de Vanhardt. A fada parecia mais compenetrada no que fazia, e
simplesmente ignorou Green quando este implicou com ela chamando-a de
"General". O filho da deusa do gelo não desconfiava do motivo pelo qual fada
modificou tanto suas atitudes, e passou algum tempo refletindo sobre isso. O
último detalhe a intrigá-lo era o fato de Green ser seguido por uma galinha.
O nome dela é Clotilde, e não "galinha"! Mais respeito com minha amiga... -
aproximando do ouvido de Vanhardt, sussurrou como se quisesse que Clotilde não
o ouvisse - É que ela é a minha nova fonte de alimentos. Pode botar ovos a qualquer
momento...
Entendo... - retrucou Vanhardt tentando se convencer de que o duende não era
louco.
A o final do primeiro dia de viagem, Green não havia comido ovo algum, mas
Vanhardt dividiu algumas frutas e um esquilo que assaram juntos. Erick adaptou-
se muito bem a Ravina, que o carregava nas costas, em uma espécie de mochila que
improvisara com os panos. Ele até balbuciava algumas palavras, como "dá-dá-dá",
enquanto jogava os bracinhos para frente. Comia frutas amassadas, que Ravina
oferecia com os dedos.
Acho isso muito pouco higiênico - comentou Green.
É assim que fazemos em nossa vila. N ão há nada de mais - respondeu Ravina
enquanto tirava o dedo da boca de Erick, que sugava com força. - Pelo menos ele
tem mais de seis meses e não depende de leite exclusivamente. S enão teríamos de
arranjar uma ama-de-leite imediatamente para ele - Ravina então fitou o duende
misteriosamente.
Ei, tire esses olhos de mim - Green lançou os braços sobre os peitos,
visivelmente preocupado.
D urante a noite, o bebê estava mais agitado, e Lila cantou uma música para ele
se acalmar. Vanhardt também se sentia inquieto em seu colchão de folhas.
Encontrava-se ansioso com a proximidade de voltar para Crivengart. S eu sono se
mostrou mais perturbador ainda.
Ele estava em um corredor comprido, com grades enferrujadas de ambos os
lados. Uma prisão. D entro das celas não havia ninguém, apenas correntes e
algemas de metal espalhadas pelo chão. D a escuridão do fundo do corredor, a voz
de sua esposa chamava-o desesperada:
Vanhardt! Vanhardt!!! Por favor, tire-me daqui!
O filho da deusa do gelo correu em direção à voz, e encontrou S elena
acorrentada em uma parede, no fundo de uma cela onde grades o impediam de
entrar. N ão era a mesma S elena bela e radiante, mas cansada, olhos encovados e
opacos, cabelos desgrenhados, enfim, completamente desfigurada. D o canto das
órbitas escorriam gotas de lágrimas que se misturavam ao suor.
Vanhardt... Graças a Léia você está aqui - os olhos de S elena reavivaram ao ver
seu amado. - Por favor, ande rápido, tire os cadeados, ele pode chegar a qualquer
momento...
É claro, querida, mas quem está vindo? - perguntou Vanhardt que
imediatamente agarrou os cadeados e conjurou Vheca venarsuli, para abri-los.
Mondovar! Rápido, ele pode...
Um silêncio e uma brisa gélida e sinistra se apossaram do ambiente, seguidos
de uma escuridão que impediu Vanhardt de enxergar S elena. O frio era tão intenso
que doía até mesmo os ossos do rapaz, e fazia suas forças o abandonarem. Ele não
escutava a voz de sua esposa, mesmo tendo chamado seu nome várias vezes.
Desesperado, tentava arrebentar as trancas, mas não possuía energia suficiente. Foi
então, que do meio da escuridão, o jovem viu surgir o famigerado Mondovar.
Vestia uma armadura negra, e um elmo da mesma cor encobria-lhe o rosto de
onde olhos amarelos saltavam das órbitas. A visão de Mondovar assustou-o como
nenhuma outra, e teve vontade de gritar mesmo faltando-lhe fôlego, tamanho era o
terror que o atormentava. Mondovar veio se aproximando das grades de ferro, e
Vanhardt deu dois passos pra trás.
Desista, rapaz - a voz metálica de Mondovar era igualmente amedrontadora.
Fuja antes que seja tarde demais. A situação em que acaba de se meter é muito
mais perigosa do que imagina. S ua esposa agora é minha, e não há como tê-la de
volta. Siga as minhas instruções, e terá sorte de sobreviver por um tempo...
Eu...eu nunca irei desistir de Selena! Quem não irá sobreviver é você, maldito!
o filho da deusa do gelo retirou Flama de dentro do braço, e tentou acertar
Mondovar através das grades. A ntes que o atingisse, porém, sentiu uma fincada no
abdome.
Q uando olhou para baixo, viu a espada de Mondovar atravessada em sua
barriga. Ele não sentiu dor imediatamente, o que o assustou mais ainda. Foi então
que um sono o abateu, e uma vontade de desistir de tudo. Chegou a pensar em
dormir para sempre, e assim fugir de todos os problemas. Era tão difícil viver, era
tão difícil ser filho de uma deusa, tão cansativo. N ão seria melhor aproveitar para
dormir um pouco, e quem sabe nunca mais precisaria acordar?
A os poucos, seu corpo foi despencando no chão, mas não se chocou de maneira
violenta, e sim como se caísse sobre um colchão de plumas. Vanhardt olhou para
Mondovar que simplesmente virou as costas, e desapareceu na escuridão. Q ue ser
terrível era aquele. Tão frio e cruel que parecia não ter alma. Era como um boneco,
com nada no interior, apenas um buraco repleto de escuridão. Vanhardt pensou
que Mondovar seria capaz das maiores crueldades possíveis, porém logo parou de
se preocupar com isso, pois estava tão cansado... Lentamente foi fechando os olhos.
Finalmente poderia dormir.
Capítulo LII - A Nova Terra do Gelo

A pós receber um puxão no colarinho, Vanhardt imediatamente se viu prensado


contra as grades. Q uem o segurava com tamanha força era Léia, sua mãe. O rosto
dela revelava seriedade e ao mesmo tempo compaixão. D e suas mãos brilhavam
uma luz amarela, que curaram a ferida no abdômen do rapaz instantaneamente.
Ela então sussurrou com voz doce e maternal:
N ão ouse desistir! A terra do gelo passa pelo momento mais difícil de toda sua
história. S eus amigos, seu pai, Erick, S elena, todos precisam de você! Eu preciso de
você...
Mãe, encontrei Erick finalmente! Ele estava com Justus...
S ei disso, meu filho, o Templo D ourado é o lar de J ustus e de Bel, mas isso não
vem ao caso agora. O lhe para mim. Q uando tiver estalado esses dedos, você
acordará. E repito, não ouse ficar aqui, preso neste sonho eternamente. Precisamos
de você - a deusa do gelo estalou os dedos, e Vanhardt acordou sobressaltado, com
a luz do sol esquentando seu rosto.
Atrás dele, Ravina servia frutas amassadas para Erick, que sorria
inocentemente. Lila apontava para o horizonte sobre o ombro de Green, ao mesmo
tempo em que o duende coçava o nariz, com fingido interesse. Por alguns
segundos o filho da deusa do gelo se arrependeu de ter desistido de tudo, e quase
abandonado o que já havia construído. O terror exercido pela aparição daquele ser,
de nome Mondovar, foi tão perturbador, que ele próprio se perdoou. Era certo,
contudo, que aquela não seria a primeira vez que a presença de Mondovar o
amedrontaria.
N a verdade, depois do alerta de sua mãe, deduziu que algo muito ruim estava
acontecendo na terra do gelo, e obviamente o cavaleiro da armadura negra estaria
envolvido. Lembrou-se do exército que passou próximo ao grupo dias atrás, e que
deixou a terra arrasada. D e repente, passou a enxergar tudo de maneira tão clara,
que mal se continha. O exército se dirigia à terra do gelo... Eles levavam um
obelisco para lá. E sem sombra de dúvidas era comandado por Mondovar, o que
explica o mesmo sentimento ruim, estando em presença dele ou das tropas. E,
espere mais um pouco... O traidor então seria o superior de Mondovar! E se
estavam indo para a terra do gelo, será que descobriram que Léia era Morgana, e
pretendiam terminar o serviço inacabado?
A s idéias sopravam como um furacão enlouquecido na cabeça de Vanhardt. S e
estivesse certo, uma semana teria se passado, e quem sabe tempo suficiente para
que o exército atingisse a terra do gelo. Foi por isso que sua mãe, naquele sonho,
pedia sua ajuda. O que estaria acontecendo em sua terra natal? Rapidamente ele se
levantou, e ajeitou as trouxas. Chamou os amigos, e explicou-lhes detalhadamente
o sonho que teve, e também as conclusões que chegou. Eles concordaram que
deveriam seguir o mais rápido possível para a terra do gelo, e traçaram planos para
dormir pouco e caminhar muito. Green chegou a dizer que não poderiam ter
certeza da conexão Mondovar-tropas, mas não foi levado em consideração.
Horas depois, cruzavam a planície que levava à terra do gelo cobertos cada um
com sua própria bolha azul, providenciadas por Lila. Erick continuava nas costas
de Ravina, e parecia se divertir muito com a bolha, pois tentava agarrá-la de
qualquer maneira enquanto se deleitava em sonoras gargalhadas. Green foi outro
que adorou a idéia da bolha, pois nestes últimos dias não havia se alimentado nada
bem, e com ela não sentia fome.
N o dia seguinte, já avistavam os primeiros flocos de neve brotando dos céus, e
montanhas cobertas de neve no horizonte. O coração do filho da deusa do gelo
acelerou, em uma mistura de melancolia e felicidade, por estar voltando à sua terra
natal depois de tanto tempo. Logo o chão também estava coberto com um colchão
branco, e ventos fortes causavam atrito ao se chocar com a bolha, produzindo um
murmúrio fantasmagórico. Mesmo dentro da bolha Vanhardt reconhecia o cheiro
de seu lar, e conseguia se localizar muito bem. N ão demoraram mais sete dias para
que chegassem à periferia da velha vila de Crivengart.
O filho da deusa do gelo reconhecera de longe as colinas e vegetações que
indicavam a proximidade da vila. Q uando os primeiros telhados foram avistados,
seu instinto foi o de correr, mas deteve-se ao perceber que algo estava errado.
Havia uma estrutura negra, comprida como um prédio e com o ápice piramidal,
erguida sobre o centro de Crivengart. O obelisco que o exército levava...
I mediatamente o grupo passou a notar um estranho magnetismo, opressor, que
circundava seus corpos, e tirava-lhes as forças.
Pelos deuses, o que é isso? Estou sentindo como se fosse levar um choque a
qualquer momento, além de náuseas... A cho que vou vomitar... - disse o duende
colocando a mão sobre a boca.
Green, estou com um péssimo pressentimento. - murmurou o filho da deusa do
gelo, lacônico, tirando Flama de dentro do braço. - Crivengart está diferente, e não
apenas por esse obelisco no centro da vila, mas também por toda a vibração no ar.
Poderia cortá-lo com Flama facilmente, de tão pesado! A lgo muito grave e muito
ruim está acontecendo. Preparem-se para o pior.
Ravina entregou Erick nos braços de Green, e o bebê desatou a chorar. Talvez
nem fosse por estar no colo do duende, e sim pela mesma opressão invisível que
todos sentiam, mas os prantos do bebê aborreceram Green. Vanhardt fez um sinal
para Ravina, indicando que o acompanhasse. A Guardiã pôs a mochila nas costas
do duende, e cobriu o rosto com o velho capuz. Por fim, Vanhardt virou-se para
Green, e emendou autoritariamente:
D eixo meu filho em suas mãos! D eve imaginar o quanto tenho você em estima.
Por favor, não se aproxime mais do que mil metros da vila. E se avistar algo
estranho, corra. Entendeu?
Van, você têm certeza que...
Ótimo! - interrompeu o filho da deusa do gelo, virando-se dessa vez para a fada.
- E você, fique aqui para tomar conta dos dois, está bem?
A fadinha, numa atitude que Vanhardt nunca consideraria possível, voou até o
peito do rapaz, e espetou-lhe o indicador:
N ão quero parecer grossa, só que dessa vez estou decidida a não obedecê-lo. S e
algo grave e ruim estiver acontecendo naquela vila, eu estarei lá. Você sabe muito
bem que o perigo não virá até aqui, por isso deixou seu filho com Green! N ão tente
me proteger, largando-me aqui com eles, e ainda mais contando essa desculpa
esfarrapada de que eu devia cuidar dos dois. Eu não sou seu bebê! - sem esperar
por qualquer argumentação de Vanhardt, ela voou em direção à Crivengart.
Ravina e Vanhardt dispararam atrás da fada, sem conseguirem alcançá-la.
S egundos depois, quando entraram na vila, não puderam mais vê-la. D e fato, não
havia alma viva nas ruas, nem conversando nas soleiras das portas, e muito menos
trabalhando. S e não fosse por uma minguada fumaça, saindo da chaminé de duas
ou três casas, poderia-se facilmente acreditar que Crivengart estava deserta. Com o
dedo sobre os lábios, Vanhardt pediu que Ravina fosse silenciosa. O s dois
passaram a caminhar lentamente, olhando para todas as direções, porém o único
movimento era o de flocos de neve, que insistiam em cair mesmo sendo três horas
da tarde. A medida que penetravam na vila, sentiam o ar ainda mais carregado e
magnetizado. O coração de Vanhardt batia com o dobro da força para poder
suportar o peso invisível que o oprimia. N ão poderia dizer que Ravina passava pela
mesma situação, pois a Guardiã se mostrava impassível.
D e repente, um ruído de passos chamou a atenção de ambos, vindo próximo de
uma das casas. A porta estava entreaberta, e batia nos ferrolhos como os tic-tacs de
um relógio, culpa de um vento sem força suficiente para fechá-la. A tensão no ar
aumentava. Vanhardt e Ravina se preparavam para serem surpreendidos a
qualquer momento. A espada estava firme na mão do filho da deusa do gelo,
pronta para atingir o primeiro infeliz que cruzasse o seu caminho. E se fosse um
dos habitantes da vila? Conseguiria o rapaz segurar seus instintos a tempo, se
reconhecesse um dos moradores? O utro som veio de dentro da mesma casa, porém
dessa vez parecia mais com um "psiu" do que o barulho de passos. Foi então que
surgiu na janela um senhor de cabelo bem grisalho, o qual Vanhardt reconheceu
imediatamente:
Pai...?!
- Vocês dois - sussurrou Thomas, com a voz mais baixa que conseguia. - Venham
aqui depressa! Não podem ser vistos! Rápido!
O bedecendo à ordem do pai, Vanhardt deu a mão para Ravina, e entraram na
casa. Thomas fechou as janelas com cuidado, e depois virou-se para o casal. Parecia
ter envelhecido dez anos nesse tempo. S em se conter, Vanhardt abraçou o pai em
meio a lágrimas, e batendo com força em suas costas, disse:
Pai, encontrei o seu neto! Trouxe Erick de volta para casa, como prometi!
Bem... trouxe...? E onde ele está...? - Thomas apertou os olhos e balançou a
cabeça para os lados, tentando enxergar o bebê em algum lugar escondido.
Está fora da vila, com um amigo, não se preocupe...
Fora da vila? FO RA D A VI LA ? Minha deusa!!! - o pai de Vanhardt não
conseguiu esconder o terror que o afligiu.
Como assim pai, o que o senhor quer dizer com...
Vamos rápido, antes que seja tarde demais!
N o instante em que se preparavam para disparar atrás de Green e Erick, o
duende entrava pela porta carregando o bebê no colo, com a cara mais sem
vergonha do mundo, e a galinha Clotilde no seu encalço. Thomas pegou o menino
no colo dando urros de alegria, e beijando-o insistentemente.
Por favor, Vanhardt, não brigue comigo... N ão é que tive medo de ficar lá fora,
esperando vocês, mas sabe como é... Poderia aparecer alguma encrenca, e eu seria
obrigado a sacar minha espada para poder acabar com quem quer que fosse. A cho
que até conseguiria lutar com Erick no colo, só que você entende... E se
traumatizasse o bebê?
Está certo, Green, já entendi tudo. N ão estou bravo, na verdade fiquei até feliz
depois de ver a reação do meu pai quando falei que Erick estava lá fora. O brigado
por ser tão covarde - emendou o rapaz, num sorriso sincero. - Mas pai, você pode
nos explicar o que está acontecendo nessa vila?
É claro, meu filho! - Thomas respondeu sem olhar para Vanhardt, assim que
devolveu Erick para Green, pois se ocupou de abrir um alçapão de metal, pesado.
Q uando a portinhola se dobrou, e caiu no chão, levantando poeira e emitindo um
enorme estrondo, ele continuou - Estão todos aqui nos esperando! E você também
pode aproveitar para nos contar sobre esse duende, e sobre "ele" - Thomas apontou
com a cabeça pra Ravina.
A h, me desculpe por não tê-los apresentado. Pai, esta aqui é Ravina, uma amiga
que já nos ajudou bastante. Ravina é tímida, e por isso não abaixa o seu capuz com
muita freqüência, o que deve tê-lo feito se confundir. O duende é Green. Ele já
nos... hmmm - Green cruzou os braços sobre Erick e comprimiu os beiços - fez rir
bastante... às vezes. Enfim, este é meu pai, Thomas Rawdenfosther, ou apenas
Thomas. Meu sobrenome é diferente do dele porque aqui na terra do gelo não
temos o costume de pegar o sobrenome dos pais, como sei que acontece no sul.
D epois de todos se cumprimentarem devidamente, e Ravina haver abaixado o
capuz permitindo que Thomas visse o seu rosto, o pai de Vanhardt não conteve a
curiosidade:
Meu filho, por acaso você e essa dama... Bem vocês dois... Vanhardt, você se
esqueceu de que é casado?
É claro que não; não tire conclusões precipitadas. Eu não esqueci S elena. Vamos
logo!
O filho da deusa do gelo foi o primeiro a descer pelas escadas abaixo do
alçapão, seguido respectivamente por Green, Ravina, Thomas que mais uma vez
tomou Erick das mãos do duende, e a galinha fechando a fila. Estava escuro, e além
de um cheiro de mofo e poeira, podia-se ouvir o murmúrio de pessoas
conversando.
Por favor, acendam a luz - disse Thomas, e imediatamente um lampião foi aceso
sobre uma mesa.
O porão da casa era bastante espaçoso, e acomodava até razoavelmente bem
aqueles quarenta habitantes da vila. Estavam sentados em cadeiras de madeira, ou
ainda de pé, e Vanhardt reconheceu a maioria deles. Atrás da mesa sobre a qual
repousava o lampião, e mais uma pilha de papéis, encontrava-se Runcard Moreller,
que conduzira o parto de S elena; dona Lavínia, uma senhora idosa que não gostava
que crianças brincassem em frente à sua casa; e por fim uma cadeira vazia. O s três
lugares atrás da mesa pareciam ser especiais dentro do aposento. O que mais
surpreendeu Vanhardt dentro do esconderijo improvisado, não foram os objetos,
nem as pessoas, e tampouco essa espécie de reunião que aparentemente estava
acontecendo. Uma criatura parecida com um coelho, vestindo um terno azul,
gravata borboleta vermelha e botas amarelas, discutia em voz baixa com Runcard.
Oswaldo??!
A h, Vanhardt, muito bem, muito bem, muito bem! E bom rever o heróico filho
da deusa do gelo.
I gualmente, O swaldo, mas será que alguém poderia me contar o que está
acontecendo?
É claro, meu jovem - Runcard adiantou-se, e esticou os dois braços pra cima e
pra frente. - Então vamos todos nos sentar. Thomas, pode ocupar seu lugar como
conselheiro. É interessante como o destino trouxe você nesse momento, Vanhardt,
mas enfim... Está iniciada a reunião que definirá o destino de Crivengart!
Capítulo LIII - O Alvorecer de um Líder

Thomas deixou Erick com uma bonita senhora, tomou o terceiro lugar que
permanecia vazio, e sentou-se cuidadosamente, arredando a cadeira de modo a
ficar confortável sob a mesa. O swaldo deu dois passos para trás, ficando colado à
parede, balançou o nariz de coelho como se espantasse uma mosca, e cruzou os
braços. Todos naquele momento mantinham olhos atentos à Runcard, que por sua
vez coçou a garganta com a mão fechada sobre os lábios, e começou a falar
fingindo importância:
Como todos sabemos, nossa amada vila foi invadida há cerca de uma semana,
por um exército de seres estranhos, do qual prefiro não relembrar, devido a tantos
traumas causados por sua mera presença. Era impossível para nós enfrentá-los,
pois nem haveria uma batalha, e sim um massacre. S abiamente, aceitamos que eles
fizessem o que queriam em troca de que fôssemos poupados. Por sorte, eles
quiseram apenas colocar esse obelisco aí fora, e destacaram um único soldado para
que ficasse de vigia. Partiram do mesmo modo que chegaram, sem dar aviso. D ois
dias depois, por um motivo que até agora desconheço, dez companheiros,
infelizmente, tomaram a liberdade de se rebelar, e atacar o soldado que vigiava o
monumento, e foram mortos instantaneamente. Confesso que se não fossem
nossos amigos, eu teria ficado feliz com o falecimento deles. S e aquele soldado
tivesse morrido no lugar, o exército do qual fazia parte teria tomado conhecimento
e, sem dúvida, retornado e aniquilado Crivengart. Pudemos então continuar nossa
pacata vida, desempenhando as tarefas diárias, sem que fôssemos submetidos a
qualquer mal-trato ou privação. A pesar disso, parece que existem alguns
companheiros insatisfeitos com nossa situação atual, e que querem iniciar uma
nova rebelião, além de vingar os companheiros mortos. A cho que estes não
ouviram o soldado dizer, que não toleraria uma nova revolta, e que toda a vila seria
destruída se ousássemos enfrentá-lo ou derrubar o obelisco!
Runcard, você sabe que não é bem assim! - levantou um aldeão de
aparentemente quarenta anos, cabelos loiros, de fios grossos, e compleição magra. -
D esde que esse obelisco foi plantado aí, nossa vida não tem sido a mesma. S ó um
idiota não perceberia a aura de tristeza que tem tomado conta de todos. Minha
esposa chora o dia inteiro sem motivo, meus garotos não querem mais brincar ou
trabalhar, e nem conseguem sorrir. Algo está acontecendo! É magia, e maligna!
N ão vamos exagerar, Greylok. N ão chega a tanto - tornou Runcard, com a mão
espalmada, em sinal de pare. - Essa tristeza é luto por nossos amigos que
morreram, e também trauma pela passagem do exército. Todos nós sentimos
assim, alguns mais e outros menos... A tristeza é natural, mas garanto que vai
passar, e logo...
D eixe de ser ignorante, Runcard. N ão vê o que está diante dos olhos de todos! -
dessa vez adiantou-se uma moça mais jovem, mas com rugas no rosto inchado, e
semblante preocupado. - A lgo muito ruim está acontecendo, e nos afetando! N ão
temos vontade de trabalhar, conversar, e muito menos festejar! O nde está a alegria
que sempre jorrou nessa vila, mesmo nos dias mais frios?
É, sim, também acho que seja magia! A quele monumento é maligno! - gritou
alguém do fundo.
N esse momento um múrmurio baixo tomou conta do aposento, e em poucos
segundos se tornou uma discussão calorosa em que praticamente todos tomavam
partido. O s únicos calados eram Vanhardt, Ravina, Thomas e O swaldo. Até Green,
que só agora fora apresentado à situação, gesticulava e discutia com um senhor de
idade, defendendo que eles deveriam ficar quietos, em vez de se arriscar a
enfrentar um exército. D e fato, havia dois lados em disputa: um que acreditava que
Crivengart estava sob o domínio de forças do mal, vindas provavelmente do
obelisco, e outro que achava que tudo corria bem e que não deveriam fazer nada,
pois o sentimento de infelicidade geral, e o pessimismo, eram parte do trauma
causado pela passagem do exército. D ez minutos se passaram, e os ânimos não
ficaram menos exaltados: a discussão só parou quando Runcard se armou de um
martelinho e golpeou a mesa com força algumas vezes.
S ilêncio, por favor, S I LÊN CI O ! S e não existir organização, não chegaremos a
lugar algum; além disso, podemos ser ouvidos, e uma conspiração descoberta não
nos cairia bem nesse momento. S eria melhor passarmos logo para a votação, pois
acredito que todos já tem opinião formada, e horas de blá-blá-blá não fariam muita
diferença. A ntes, queria apenas apresentar umas considerações finais. Em primeiro
lugar; vocês querem desafiar o soldado que defende o obelisco, para pô-lo abaixo,
certo? Pois bem, como farão para derrotá-lo? Esqueceram que com um golpe
apenas ele matou dez de nossos companheiros, dentre eles alguns dos melhores
guerreiros? N em vimos o que ele fez, e acredito ser magia! Uma nova investida só
resultaria em mais mortes! Em segundo lugar, repararam no tamanho do obelisco?
Q uanto acham que aquilo pesa? A creditam seriamente que amarrando um ou dois
burros, e puxando o monumento, ele vai ceder? Precisaríamos de no mínimo cem
cavalos, o que está longe das nossas possibilidades. E terceiro...
Runcard - adiantou-se O swaldo, surpreendendo a todos, com voz humilde. -
Meus amigos, meus amigos, meus amigos, e a proposta que da deusa do gelo? Ela
está disposta a ajudá-los, com o que for necessário.
N ão me venha com essa, coelho, - continuou Runcard - essa deusa vive
enclausurada, quase nunca nos ouve, e de repente se prontifica a ajudar? Eu
desconfio muito... E como dizia, em terceiro lugar: o exército! I ndependente do fato
de matarmos ou não o soldado, derrubarmos ou não o monumento, ainda temos
que enfrentar as tropas de Mondovar, e duvido muito que mesmo uma deusa...
Q uando o nome "Mondovar" foi pronunciado, Vanhardt saiu de seu estado de
quase sono, e levantou-se, com os olhos arregalados. Falou então com voz
preocupada, dirigindo-se a Runcard, e atraindo todos os olhares:
Você disse Mondovar?
—... e nunca venceríamos... Hã? Como é rapaz? Sim, Mondovar, o nome que está
na boca de qualquer habitante de Kether nesse instante!
Então Mondovar é mesmo o comandante dessas tropas? E ele esteve aqui?
Ele é o comandante sim, mas não estava junto da tropa. Um de seus
mensageiros veio a nós, representando-o, dizendo que se não nos rendêssemos, a
vila seria dizimada. Não tivemos outra escolha, a não ser...
Eu já sei, você às vezes é bem repetitivo, sabia ,Runcard? Eu quero saber se ele
botou os pés nessa vila? A lguém o viu? S abem se ele tinha prisioneiros? I magino
que Selena poderia estar em seu poder.
N ão, rapazinho, ele não botou os pés aqui, ninguém o viu, e não tinha
prisioneiros! A fama, entretanto, veio com ele, e sabemos das outras vilas por onde
passou, e na qual não restou um prédio de pé, uma alma viva. S e S elena estiver
mesmo com ele, depositamos nossos sentimentos de compaixão, e tomara que
todos os deuses olhem por ela!
Vanhardt passou alguns segundos pensativo, enquanto a turba fofocava
discretamente. Então ele estava certo ao pensar que Mondovar era o comandante
daquelas tropas. Mas pelo visto não esteve em Crivengart, e provavelmente não
levou S elena para lá. O nde será que ele estaria? Uma força fora do comum, já
conhecida de Vanhardt, brotava na base de sua espinha. D essa vez, entretanto, a
força emergia numa mistura de raiva e esperança. Raiva por ele saber como
Mondovar estava tratando S elena, e esperança por saber que ele tinha uma chance
de acabar com aquilo tudo. A cabar com as forças que dominavam a vila, libertar o
seu povo, e ao mesmo tempo derrotar Mondovar. E ele devia tomar a palavra, se
quisesse que a vila o ajudasse.
Runcard, você defendeu o seu lado, agora deixe que eu defenda o meu -
Vanhardt caminhou até a mesa, subiu nela, e virou-se para as quase quarenta
pessoas que se reuniam debaixo daquela casa.
Rapazinho, quem você pensa que é para achar que tem direito a alguma coisa
aqui? - disparou D ona Lavínia, a senhora que se sentava atrás da mesa, ao lado de
Runcard e de Thomas.
Eu sou tão habitante dessa vila quanto a senhora, e tenho os mesmos direitos
que qualquer um daqui. N asci nessa terra gelada, e passei minha infância sentindo
frio em meu coração, pelo modo como era tratado pelos meus vizinhos - olhares de
surpresa e constrangimento foram lançados sobre Vanhardt. Ele continuou, como
se nada visse. - Hoje, porém, ouso afirmar que entendo o medo de vocês. É o
mesmo medo que todos têm de Mondovar, e seu exército de mortos- vivos. O
mesmo medo que eu e meus amigos de jornada tivemos ao observar aquele
exército marchando, centenas de quilômetros ao sul daqui, e deixando a terra
infértil e arrasada por onde passavam.
À medida que o jovem filho da deusa do gelo discursava, mais pessoas
prestavam a devida atenção em suas palavras. Ele não era o garoto ingênuo que
saiu dali, e desconhecia o mundo e as pessoas. Havia retornado como um
verdadeiro homem. A s provas por que passou, as lutas e provações, a morte que
bateu em sua porta inúmeras vezes, proporcionaram material que dava subsídio
para um enorme crescimento espiritual. Vanhardt hoje era um homem feito, com
palavras fortes, e que despertava sentimento de esperança na alma de quem o
ouvia. D iscursava como um orador profissional, dando a entonação certa a cada
palavra, fazendo pausas entre as frases, que por sua vez gerava curiosidade para a
sentença seguinte. S uas mãos não gesticulavam aleatoriamente, mas dançavam
junto com as palavras, que eram derramadas como mel sobre os ouvintes. Ravina e
Green ficaram impressionados com o Vanhardt que viam. Ele saiu bastante
diferente de como entrou no Templo Dourado.
Medo, meus amigos, que só pode ser gerado por um único motivo:
desconhecimento. S ó temos medo do desconhecido. Até mesmo os deuses, dos
quais veneram tanto, temem alguma coisa. D igo isso, pois já estive em mais de
uma oportunidade cara a cara com eles. Mas vocês devem estar se perguntando,
por que ele está dizendo tudo isso? E com muito prazer, irei responder. E óbvio que
esse obelisco, está aos poucos sugando a força vital de todos nós, e quem sabe não
faz o mesmo com habitantes de outras vilas aqui perto? Q uando vi Thomas, meu
pai, achei que ele tinha envelhecido dez anos! E o mesmo acontece com cada um de
vocês. O que será de nós daqui a alguns anos? Ficaremos iguais aos cadáveres que
perambulam como soldados, nas tropas de Mondovar? E vocês o que vão fazer?
Permanecer como escravos, dando dia a dia o seu sopro de vida para aquele
monumento? Vendo seus irmãos, irmãs, filhos, avós, pais, definhando, sem
levantar um dedo sequer? N ão meus amigos! Hoje, eu convido vocês a enfrentar
esse medo, o medo do desconhecido, ao meu lado. Lutar contra as forças
opressoras que roubam as nossas vidas, a fim de recuperar aquilo que é de direito
de cada um. N ão exigimos mais do que é justo, mas aquilo que merecemos! Eu irei
derrotar aquele soldado e derrubar o monumento, recuperando a esperança que sei
que arde como chama no coração de todos vocês, assim que sair desse porão! -
Vanhardt parou de falar dando um soco na mesa, e as pessoas murmuraram
empolgadas. A maioria parecia satisfeita com a idéia, apesar de ainda relutantes.
— Bem, rapazinho, então você quer desafiar não apenas o soldado, mas também
destruir o obelisco, e pelo jeito derrotar todo o exército de Mondovar, não é? E
como pensa fazer isso? S abemos que é o filho de uma deusa, mas tem poder pra
tudo o que disse?
—Tenho, Runcard... - Vanhardt falava misteriosamente, e, com movimentos
deliberados, desceu da mesa e foi retirando Flama de dentro do braço lentamente.
Q uando ela saiu por completo, ele ergueu-a no ar, permitindo que uma luz num
tom avermelhado emergisse de sua lâmina, e banhasse os presentes.
Todos sentiram suas forças retornando aos poucos, como se a aura magnética
que roubava suas energias tivesse desaparecido. Era um verdadeiro sopro de vida.
Até mesmo o rosto das pessoas, marcado por rugas, manchas, e marcas de idade,
rejuvenesceu num piscar de olhos. Muitos deles, outrora extremamente debilitados
física e mentalmente, sentiram a força muscular voltando aos membros e até uma
alegria de viver. O s olhos, cheio de vida, pareciam acreditar em uma vitória. Mas
ainda era apenas um rapaz contra um forte soldado, um imenso obelisco, e um
exército inteiro.
— Ótimo, Vanhardt, você teve direito ao seu discurso, e até a um show de luz,
mas agora vamos definir o futuro de nossa vila com uma votação, que é a maneira
mais democrática - emendou friamente Runcard. Vanhardt guardou Flama
novamente em seu braço, mas o sopro de energia ainda tocava o coração das
pessoas, e permaneceria assim por algum tempo. - Q uem estiver de acordo com
Vanhardt, nessa missão suicida de lutar contra Mondovar, levante a mão! Q uem for
sensato, e se negar a uma loucura como essas, mantenha-a abaixada.
Timidamente, algumas pessoas ergueram o braço acima da cabeça, entre elas
Thomas, Vanhardt, Ravina (esta teve de cutucar Green para que ele imitasse os
outros), e mais 5 ou 6 habitantes. Runcard, ao perceber que Ravina e Green
votavam, apontou para os dois, e disse que como eles não eram habitantes da vila,
não poderiam votar. Com semblantes tristes, os dois abaixaram os cotovelos.
Ravina esperava que mais alguns tomassem coragem e votassem a favor, pois
parecia ser uma vitória esmagadora do não. Ela entendera os planos de Vanhardt:
ao mesmo tempo em que ele pretendia libertar sua vila, queria chamar a atenção de
Mondovar para que ele voltasse até Crivengart. S ó através de Mondovar chegariam
até S elena, pois ele certamente a mantinha em cativeiro. O grande problema seria
derrotá-lo, e o seu exército. E mais difícil ainda, extrair tal informação dele.
O filho da deusa do gelo já ia admitir a derrota, e sair decepcionado de
Crivengart, quando Oswaldo novamente tomou a palavra.
Pessoal, volto a deixar clara a proposta da excelentíssima e digníssima Léia, a
deusa do gelo. Ela está disposta a ajudá-los contra Mondovar, mas é óbvio que
vocês devem deixar ser ajudados. A credito piamente que Vanhardt, aliado às forças
de minha D ama, formarão uma frente respeitável perante Lord Mondovar.
Respeitável, muito, muito respeitável!
Pouco a pouco, novos braços foram sendo levantados, dando mais ânimo para
Vanhardt. Chegaram a uma soma de 18 braços levantados, contra 22 abaixados.
A inda sim era uma derrota. O que o jovem não esperava, foi o que aconteceu em
seguida. Um antigo amigo, ou inimigo, desde os seus tempos de criança, Rufus,
ergueu o braço. Rufus estava muito mudado: rosto mais largo, barba vermelha
cobrindo cada centímetro da mandíbula e bochechas, cabelos da mesma cor que a
barba, tocando os ombros. Crescera bastante também, naquele momento não se via
alguém maior, e mais largo: os músculos de seus braços pareciam melões de tão
avantajados. Rufus cutucou a moça sentada ao seu lado, e que tinha um bebê no
colo (provavelmente a mulher e filho de Rufus), que de cara amarrada também
aderiu ao "sim". A s somas agora se igualavam: 20 braços levantados contra 20
abaixados. Vanhardt cumprimentou Rufus discretamente, com um sorriso nos
lábios, sinceramente agradecido. O seu antigo inimigo fez o mesmo.
É, então temos um empate. D esse modo, serei obrigado a passar a decisão para
a mesa dos delegados, que no caso são Lavínia, Thomas, e eu próprio - disse
Runcard, despreocupado.
Vanhardt gemeu irritado, pois já sabia o resultado da decisão. Runcard e dona
Lavínia eram obviamente contra qualquer tipo de insurreição, apenas seu pai,
provavelmente, seria a favor. E de nada adiantaria discutir, dizendo que não cabia à
mesa dos delegados a decisão, pois não tinha argumentos. A primeira votação fora
empate, e eles precisavam de um novo tipo de votação para desempatar.
Q uem é a favor de nos rebelarmos, levante a mão, e quem for contra, mantenha-
a abaixada.
Thomas foi o único a levantar a mão, com tristeza. A ntes, entretanto, que
Runcard batesse o martelo, outra mão se ergueu, e foi a do próprio Runcard.
N aquele momento, a surpresa não achou lugar dentro da sala, de tão saturada, e
fugiu pela fresta do alçapão, fazendo um pernilongo do lado de fora erguer as
anteninhas. Perplexo, e mais exagerado que os outros, Green grunhiu:
Mas que merda é essa? Runcard mudou de lado? A lguém me explica o que está
acontecendo?
É muito simples, errr... D uende. A cabei me convencendo que um dia ou outro,
alguém iria acabar se rebelando, e entendi que é melhor contar com a ajuda de
Vanhardt, e sua mãe, contra nossos inimigos. S ei que é uma loucura, mas enfim,
você venceu Vanhardt. S e for para morrermos, que seja com honra, e não
definhando como jumentos atolados.
Um urro de alegria percorreu o aposento, e muitos deram tapinhas nas costas
felicitando Vanhardt e seus companheiros. A ntes que ele saísse pelo alçapão,
Rufus tocou o seu braço, e murmurou:
Escute bem... N a infância tivemos nossas desavenças, e talvez tenha o ferido de
algum modo. Peço desculpas por isso. A gora minha família e eu, além de
Crivengart, conta com você e seus poderes. S e não for capaz de fazer o que
prometeu, juro que eu mesmo irei provocar a maior quantidade de dor possível
nesse seu corpo minúsculo - o rosto de Rufus revelava a verdade em suas palavras,
porém não deixava de transparecer uma pontada de esperança.
N ão se preocupe, Rufus. S e eu falhar, provavelmente já sentirei esta dor antes
de morrer - Vanhardt sorriu ironicamente.
O s habitantes da vila empurraram o alçapão pra fora, e levaram Vanhardt e
seus amigos para fora, agitados. Até aqueles que tinham votado contra, sentiam-se
empolgados com a possibilidade da vitória, e da liberdade. Thomas arredou sua
cadeira pra trás, e levantou, tocando gentilmente no ombro de Runcard.
Confio no meu filho. O brigado por fazer o mesmo - o pai de Vanhardt deu um
sorriso, e não disse mais nada. A quele era seu jeito, poucas palavras, mas muita
sinceridade e coragem. Saiu do porão sem fazer muito barulho.
O s últimos a restarem no aposento foram Runcard e dona Lavínia. A senhora
idosa mordia os lábios, e enrugava a testa, juntando as sobrancelhas,
profundamente irritada e insatisfeita.
Q uem é você para dar crédito a um rapazinho mimado e orgulhoso? A cabou de
decretar o fim de Crivengart.
N ão seja inocente, minha cara - a voz de Runcard tornara-se fria e calculista, e
seu rosto fechara-se numa expressão sombria. - Eu nunca faria nada que
comprometesse a nossa sobrevivência. Preste bem atenção: eu não acho que
Vanhardt possa derrotar o soldado que vigia o monumento. Lembra como este
matou nossos companheiros sem se mover? O mesmo acontecerá com o filho de
Thomas. Depois disso, diremos que o rapaz agiu por conta própria, e imploraremos
misericórdia. Pense bem, de um modo ou de outro, esse garoto "mimado e
orgulhoso" iria acabar despertando uma revolta. Com a atitude que eu tomei, ele
será morto, não nos causando problemas, e também servindo para acabar de vez
com a vontade desse povo de se rebelar.
Hmmmm, você é mais astuto que uma raposa velha, Runcard! A minha única
preocupação é se realmente seremos perdoados...
Ah, fique tranquila Lavínia. O soldado preferirá ignorar a revolta de uma pessoa
isolada, não contando nada aos seus superiores, e fingindo que presta um bom
serviço. Melhor manter seus comandantes tranquilos, do que ter de fazê-los voltar
irritados a um vilarejo como o nosso. Eu não gostaria de ter um comandante como
Mondovar irritado.
D epois de olharem para os lados, ajeitarem os cabelos e as roupas no corpo,
Lavína e Runcard saíram do porão. Por um descuido, não tomaram conhecimento
de um pequeno vulto, que debaixo de uma das cadeiras escutou a toda conversa,
enquanto procurava por uma galinha fujona. A pós alguns minutos, e certo de que
ninguém mais estaria próximo, Green se esgueirou para fora de seu esconderijo e
saiu correndo atrás de Vanhardt.
Capítulo LIV - Mais do que Velocidade e Precisão

A lguns poucos flocos de neve se deram ao trabalho de cair e macular a


atmosfera que até alguns minutos atrás se encontrava pacífica. Uma discreta
camada de neve cobria as ruas de Crivengart. O sol, a meio caminho do horizonte,
indicava que o fim do dia demoraria mais um tanto. Vanhardt caminhava com
passos curtos, cabeça ereta e olhar confiante, em direção ao seu oponente, que
permanecia encostado em uma árvore a vinte metros de distância. O soldado
mantinha as pernas cruzadas, despreocupadamente, e segurava uma gaiola na mão
direita. O obelisco se erguia majestosamente dezenas de metros atrás dele.
Q uando Vanhardt diminuiu a distância para dez passos, notou que Lila estava
dentro da gaiola, deitada.
Você... N ão perderei tempo perguntando como capturou minha amiga... S olte-a
e vá embora dessa vila, e permitirei que preserve sua vida. O u fique e sofra a fúria
de minha lâmina - a voz de Vanhardt amedrontaria qualquer lutador mais
inexperiente.
N aquele momento, os habitantes da vila acompanhavam os acontecimentos de
longe, sob a proteção de suas casas, e aqueles mais valentes no meio da rua. Green
e Ravina permaneciam ao lado de Thomas, que balançava Erick nervosamente no
colo. O oponente de Vanhardt era um homem esguio, de pescoço comprido, braços
e pernas finas. O rosto era esticado, como o de um cavalo, sem barba, e os cabelos
negros caíam numa franja sobre a testa. A boca por sua vez, não parava de
mastigar algo pegajoso. A o contrário do que pudesse supor, não usava farda, mas
uma cota de malha simples embaixo de um colete vermelho. N ão ostentava
qualquer símbolo indicando que fazia parte de um exército. Ele depositou a gaiola
de Lila no chão, cruzou os braços, e disse, ainda mastigando:
Em primeiro lugar, meu nome é Rogudim, e não "você". E em segundo lugar, -
ele cuspiu algo que pareciam ser folhas transparentes. - Rapaz, achei que essas asas
de fada fossem gostosas, mas sinceramente, tem um paladar nada agradável!
Parecem frango, e eu odeio frango!
A pertando os dedos contra a palma da mão, Vanhardt quase furou a própria
pele. Seu rosto ficou ruborizado, e sentia o sangue ferver dentro das veias.
Rogudim... - a voz saía apertada de traz dos dentes cerrados. - Você arrancou as
asas da minha amiga?
É claro que sim! S ão elas que dão o poder para a sua "amiga". A rranquei-as logo
que a capturei, pois sem as asas, ela não pode usar magias e fugir da minha gaiola.
O uvi dizer que tem um gosto excelente, uma iguaria, além de propriedades
curativas. Uma mentira; na verdade não têm sabor muito diferente de frango, e não
consegui engoli-las apesar de ter tentado por duas horas. Uma pena não?
O rosto de Vanhardt não se decidia entre qual expressão tomar. A ntes de se
dirigir para o centro de Crivengart, onde encontraria o suposto soldado que vigiava
o obelisco, recebera uma enxurrada de informações. Thomas, para prepará-lo,
decidiu contar como foi a luta que resultou na morte dos dez crivengartenses
rebeldes. Eles cercaram Rogudim, formando um círculo, mas antes que tivessem
tempo para erguer suas espadas, caíram no chão ao mesmo tempo. Thomas foi um
dos que correu para ajudá-los, e percebeu que os corpos estavam cobertos de furos
com a largura de dois dedos, principalmente no pescoço e tronco, na altura de
artérias importantes. A maioria morreu antes de ser socorrida, e mesmo aqueles
que tiveram atendimento, não sobreviveram, devido às intensas hemorragias. O pai
de Vanhardt não fazia a mínima idéia de como aquelas lesões apareceram, porém
desconfiava seriamente de alguma magia.
D e posse das informações relativas à luta relâmpago, era hora de decidir o
melhor horário para desafiar o soldado. O filho da deusa do gelo afirmou que não
esperaria um segundo sequer, e pediu que indicassem logo onde encontraria o
soldado. O povo se exaltou, pois não esperavam uma atitude assim imediata, mas
de qualquer forma informaram ao filho da deusa do gelo que ele encontraria seu
oponente facilmente no centro de Crivengart. Por fim, antes de seguir para o local,
Green contou-lhe nos ouvidos a conversa que ouviu entre dona Lavínia e Runcard.
Vanhardt permaneceu sério durante o relato, e depois disse para o duende não se
preocupar: ele não perderia a luta, se era assim que Runcard pensava. S ó depois
trataria de acertar sua situação com o pai de Rufus.
A última a dirigir-lhe a palavra, foi Ravina, que insistia em participar da luta. O
jovem negou com a cabeça, argumentando que ela teria outra oportunidade para
pagar sua dívida. N aquele momento ele precisava provar para a vila que era capaz
de proteger a todos. A pós um beijo na testa do filho, que esticou os bracinhos
como se quisesse alcançar o colo do pai, Vanhardt rumou para o centro de
Crivengart.
A gora se via em frente ao inimigo, que por pura maldade arrancara as asas de
Lila. A fada certamente estaria desmaiada, em virtude da dor de perder parte de
seu corpo. N aquele instante Vanhardt entendeu por que, algumas horas atrás,
Thomas estava tão apreensivo ao saber que Erick se encontrava na periferia de
Crivengart. S e Rogudim tivesse encontrado o bebê, é possível que fizesse algo
parecido. Q uem sabe não arrancasse uma mão, ou pé de Erick por pura diversão?
Vanhardt conseguia enxergar a maldade escorrendo pelos olhos de Rogudim, que
sorria sarcasticamente.
D elicadamente, o jovem tocou seu braço, e deslizou Flama para fora. Movia
suas mãos de maneira calculada e decidida, para não assustar o oponente e nem
demonstrar força desnecessariamente. A lâmina da espada mudou da cor prata
para o vermelho, e passou a arder em chamas, como se fosse uma tocha. O s
habitantes da vila murmuraram alegremente, encantados com o poder
demonstrado por Vanhardt. Rogudim, por sua vez, não aparentou nenhuma
surpresa.
Escute bem, Rogudim. A ntes de observar o que você fez com minha amiga,
estava disposto a deixá-lo ir em paz. Mas agora... A GO RA N A O ! Meu nome é
Vanhardt Mohr D aicecriv, filho da deusa do gelo. E o que farei com você será um
exemplo do que acontecerá com todos os seguidores de Mondovar.
A h, sei, puxa, estou até com medo! Por favor, não me mate, ai, ai, ai! - o tom de
Rogudim era visivelmente debochado, deixando Vanhardt ainda mais furioso. -
N ão seja ridículo! Vou lhe dar uma demonstração, para que veja com quem está
lidando "filho da deusa do gelo", e baixar essa voz petulante. D eve estar curioso pra
saber como matei aqueles que vieram no outro dia, antes de você, certo? Então
preste bastante atenção.
Rogudim mostrou as duas mãos vazias, girou-as para cima, e para baixo. D epois
enrolou a manga direita até a altura dos ombros, seguida da esquerda, como um
mágico antes de realizar o truque, e mais uma vez mostrou as mãos vazias.
Finalmente, fechou a mão direita, e quando abriu, segurava uma adaga. O s
crivengartenses abriram as bocas, impressionados. Rogudim, com um sorriso
esnobe, disse:
Puxa, senhor Rogudim, como fez a adaga aparecer em sua mão? - ele imitava a
voz fina de uma menininha, enquanto brincava com a arma entre os dedos. - É
muito simples; a mão é mais rápida que o olho. D epois que fechei as mãos, gastei
um décimo da velocidade do piscar de olhos para abrir meu colete com a mão
esquerda, retirar a adaga com a mão direita, e enfim mostrá-la para você. Rápido
não é? Mas o seu problema rapazinho, não é apenas a minha velocidade. Maior que
ela, apenas a minha precisão. A ntes que você percorra essa distância entre nós, sou
capaz de cravejá-lo com todas essas adagas que guardo aqui, - Rogudim abriu o
colete para os lados, revelando dezenas de adagas enfiadas em bolsos próprios - no
lugar que eu desejar. N a verdade precisaria apenas de uma, no seu pescoço, mas
gosto de deixar cadáveres iguais a uma peneira! Foi o que aconteceu com aqueles
infelizes que ousaram, antes de você, se opor ao poder de Mondovar!
Green deixou o queixo cair, gemendo atrás de Ravina:
Ele não pode vencer! Ravina, Vanhardt não pode vencer! Vamos dar um jeito de
tirá-lo de lá!
Green, agora é tarde... Vanhardt... Boa sorte! - sussurrou a Guardiã.
A maioria dos aldeões pensava como o duende, e sabia que mesmo Vanhardt
sendo filho de uma deusa, não seria páreo para Rogudim. A lguns fecharam os
olhos, para não ver a luta que já terminara antes mesmo de começar. Vanhardt,
entretanto, continuava quieto, com Flama apontada para cima, entre suas duas
mãos. Ele ergueu-a lentamente para o céu, e disse:
Se for assim, atire... Pois aqui vou eu! AHHHHH!!!
O grito de Vanhardt se embebia de raiva e força, e ele avançou como um lobo
em direção a Rogudim. Este balançou a cabeça negativamente, empinou a adaga na
mão, e atirou-a para frente. A lâmina rasgou o ar numa velocidade exorbitante,
refletindo a luz do sol, e atingiu o ombro esquerdo de Vanhardt praticamente no
mesmo momento em que fora lançada. O filho da deusa do gelo deixou Flama cair
na sua frente, com o corte virado para cima, e apontando para Rogudim. A dor era
excruciante, e Vanhardt, em ato reflexo, segurou a adaga presa em seu corpo com
ambas as mãos. A inda esticou o pé, tentando puxar o punho de Flama, e
permaneceu respirando com dificuldade. Rogudim já estava munido de outras três
adagas:
Era uma vez o filho da deusa do gelo... Q ue sofreu horrores antes de ser morto
por Rogudim, um humilde servo do S upremo Lorde Mondovar. Pois acho que
brincarei um pouco com você antes de matá-lo. Q ue tal eu arrancar esse braço
inteiro? E depois o outro? Ficará igual à fada! Essa luta terminou para você, garoto!
S angue corria farto pelo ferimento no ombro de Vanhardt, banhando seu tórax,
e colorindo a neve de vermelho vivo. Ele continuava com o pé sobre o punho de
Flama, porém sem se mover. Calmamente, e tentando não aparentar sofrimento,
sussurrou:
Essa luta está mesmo perdida, Rogudim. Mas para você! S e não reparou bem,
quem acaba de perder um membro, foi você mesmo, e se trata de sua mão
esquerda! D e maneira muito justa, como arrancou as asas de Lila, tirei uma de suas
mãos em troca!
Rogudim olhou assustado para sua mão sem vida, caída no chão, e para o
segmento de braço que não mais a exibia. A superfície do punho estava queimada,
no local onde sofrera o corte, como se tivesse sido cauterizada. Uma dor
indescritível começou a percorrer seus nervos, partindo de seu punho, cruzando o
antebraço e braço, terminando nos ombros.
A HHHH!!! O que você fez?! Como me cortou dessa distância? - os olhos de
Rogodim saltavam das órbitas, e de sua testa despontavam veias ingurgitadas.
Muito simples... - Vanhardt ainda arfava, com as mãos sobre o ombro ferido. -
Q uando Flama escapou de minha mão, e caiu na neve, ela não cortou apenas o ar,
mas sua mão junto. O poder dela vai muito além da superfície de sua lâmina; se
estende conforme a minha força, e o meu desejo. Foi muito inocente de sua parte
subestimar o filho de uma deusa! N este momento, estou com meu pé sobre o
punho de Flama, e a lâmina dela aponta para você. O mínimo de força que eu
utilizar, deslocando meu pé pra baixo, fará com que a ponta de Flama se levante, e
corte seu tronco, de baixo pra cima. Isso certamente o partiria ao meio.
A h... - as feições de Rogudim alternavam entre o desespero e o sarcasmo. -
Porém, o que impede que eu lance uma adaga agora mesmo, acertando o seu
pescoço? Posso até morrer, pois o peso de seu corpo seria muito mais do que
suficiente para erguer a ponta de sua espada, porém ao menos levarei você para o
túmulo.
Um único fato, Rogudim: sou filho de uma deusa. Meus poderes vão muito
além de poder cortar pessoas à distância. A brangem também as esferas da magia
relacionadas à cura, e uma dificuldade de ser morto semelhante à dos deuses. Uma
adaga no meu pescoço doeria muito, entretanto, não me mataria. Vamos Rogudim,
serei piedoso com você. Pegue este lixo que cortei, e que você chama de mão, e vá
embora dessa vila, sem olhar para trás. Pouparei sua vida. Q uando voltar para
Mondovar, diga que o destino dele será pior que o seu, se não me devolver Selena.
Eu... - o corpo de Rogudim tremia desordenadamente, como se uma onda de
frio houvesse penetrado seus ossos. A aura de superioridade e ironia que o
envolvia, desaparecera completamente. - N ão posso voltar para o S upremo Lorde
Mondovar. Ele não perdoaria minha falha...
O ra, não seja tolo, Rogudim. Você é um guerreiro e tanto, Mondovar não tem
motivos para se desfazer gratuitamente de um soldado tão talentoso. A lém do
mais, ele vai querer manter você vivo, pois é o único que pode fornecer detalhes
sobre mim, e sobre a vila. Agora vá, Rogudim!
O soldado, humilhado, abaixou-se, e pegou a mão que já estava fria. Ele
demorou o olhar em Vanhardt e, depois, para os habitantes que observavam a luta.
Finalmente, abaixou a cabeça e deu as costas. N ão falou mais nada, e caminhou
abatido para longe de Crivengart.
O s habitantes da vila, por sua vez, explodiram de alegria, e correram para
cumprimentar Vanhardt, que requisitava calma, principalmente aos que quase
acertaram seu ferimento. Ele retirou a adaga com calma, e se curou, passando por
cima do ombro a mão que emitia uma luz amarela. D epois se apressou em tirar
Lila da gaiola. Ela continuava desmaiada, e o rapaz pediu para Ravina segurá- la,
enquanto cada um dos habitantes de Crivengart o cumprimentava. Q uando chegou
a vez de Runcard parabenizá-lo, ele chutou-lhe a barriga, jogando-o no chão, e
apontou Flama para o seu pescoço.
Capítulo LV - O Obelisco

Vanhardt prendia o tórax de Runcard com o pé, enquanto as chamas que


envolviam a lâmina de Flama beijavam o seu pescoço, sem queimá-lo. A lguns
Crivengartenses tentaram segurar o jovem, mas Ravina e Green se adiantaram,
impedindo-os. Runcard engolia litros de saliva, e suava frio. S eu filho, Rufus, foi o
primeiro a falar.
O que está fazendo, Vanhardt? Enlouqueceu?
N ão, Rufus, felizmente para todos nós não perdi a sanidade. Porém seu pai é
que não está batendo bem da cabeça. Pergunte a ele o que andou tramando com
dona Lavínia. A lgo a respeito de utilizar a minha morte para ninguém mais se
revoltar. S ó não deu certo porque eu não morri, não é Runcard? - Vanhardt
aproximou a lâmina ainda mais do pescoço do homem, e dessa vez as chamas
davam voltas no pescoço dele. Todos estavam tão entretidos com aquela cena, que
não notaram uma senhora idosa que se esgueirava para longe dali, sem fazer
barulho.
Vanhardt, escute só... Thomas, por favor... Greylock! - Runcard procurava
desesperadamente por ajuda em cada rosto. - Eu só fiz o que era melhor para a vila!
Não queria que você morresse, mas se isso acontecesse, eu já reservava um plano!
N ão foi isso o que fiquei sabendo Runcard. Parece que você estava mais
interessado na minha morte...
Espere aí, como ficou sabendo? Está lendo nossos pensamentos? Eu não
permito que faça isso! - agora as emoções de Runcard fluíam do medo para a raiva.
—- Calma, não li os pensamentos de ninguém. Mas filhos de deuses têm
poderes que vão além da lógica, como vocês mesmo viram há minutos atrás. Não se
surpreenda se algo inesperado vier de alguém como eu. O lhe só Runcard, você foi a
pessoa que conduziu o parto de S elena, e ajudou a trazer Erick a esse mundo. Por
causa disso, e só por causa disso, eu não lhe farei nada. Encare como um aviso, e
tome cuidado daqui em diante. Q ualquer deslize, e não terei a mesma piedade. -
Vanhardt guardou Flama dentro do braço, fazendo as chamas se apagarem.
O s habitantes de Crivengart ainda atordoados com todos os acontecimentos,
não sabiam como reagir. É interessante notar como nesse tipo de situação ocorre
algo que pode ser chamado de "efeito manada": uma pessoa inicia uma
determinada ação, e as outras a imitam. N ão que essa pessoa seja a mais esperta, e
a atitude dela é a mais sensata, mas por falta de iniciativa, e de pensar em coisa
melhor, as outras resolutamente a seguem. E foi o que aconteceu ali. Vanhardt
caminhou em direção ao obelisco, e todos o seguiram, incluindo Thomas
balançando Erick no colo, Ravina com Lila ainda desmaiada, Green, O swaldo,
Rufus e Greylock. S omente Runcard ficou para trás, preferindo rastejar como uma
cobra, humilhado, até sua casa. Ficaram sabendo algumas horas mais tarde que o
homem acabou pegando um cavalo nos estábulos, e fugiu em disparada para rumo
desconhecido.
I gnorando as pretensões de Runcard, Vanhardt seguiu até o obelisco, e, cerca
de cinco metros antes de atingir os pés do monumento, bateu o nariz contra uma
superfície extremamente dura, e foi jogado para trás. Ele levantou- se
imediatamente, olhando para os lados, porém não detectou inimigo aparente.
Esticando o braço, tocou numa superfície lisa como vidro, mas completamente
invisível. Atrás dele estavam Ravina e Green, este último com a mão coçando o
queixo pensativamente:
Sei muito bem o que é isso, Van. Chama-se "Parede invisível"!
Um nome meio óbvio não, Green? - respondeu Vanhardt, sem olhar para o
duende, alisando a ponta dos dedos sobre o plano que não apresentava qualquer
fissura.
N ão fui eu quem inventou o nome! S e fosse minha, seria "A intransponível
Green".
Hmpf. Ótimo Green, mas poderia nos acrescentar alguma informação útil 7.
Pra sua sorte, eu posso. É uma parede que apenas magos muito poderosos são
capazes de conjurar. Geralmente serve pra proteger algo importante de
desconhecidos. É melhor não tentar usar Flama contra ela.
E por que não?
Porque se ela receber danos mágicos irá rebater, e não sei se você sobreviveria...
É, provavelmente não. Como farei pra atravessá-la, então? - o filho da deusa do
gelo continuava encarando a parede invisível, compenetrado.
S e o mago que a conjurou estivesse aqui, poderíamos obrigá-lo a desfazê- la...
Mas sem ele, não sei.
O swaldo cutucou os ombros de Vanhardt, e apontou com a cabeça uma casa de
portas e janelas fechadas:
S egundo seus vizinhos, aquela era a casa que Rogudim usava como moradia.
Entrarei lá para procurar qualquer coisa que possa nos ajudar.
Ótima idéia, Oswaldo! Enquanto isso, tentarei um dos meus truques aqui.
O coelho seguiu para a casa que logo voltaria para as mãos de um
Crivengartense, e Vanhardt, por sua vez, sussurrou algumas palavras em voz baixa.
Com os joelhos ligeiramente flexionados, o filho da deusa do gelo ergueu os
punhos na altura dos ombros, em posição de luta, e depois deu um soco com toda a
força na parede. A pancada reverberou como uma pedra atirada em um lago, em
ondas que partiram do ponto onde a mão de Vanhardt acertou, para a periferia.
O que você está tentando, Van? Força bruta?
Se magia não funciona, talvez isso funcione, Green. Engraçado, quando acertei o
golpe, senti que uma parte da parede cedeu à minha força. S ó que ela
imediatamente voltou ao normal. Quem sabe se eu...
Vanhardt acertou uma segunda pancada, e outra onda reverberou pela parede,
com os mesmos resultados da primeira. D essa vez foi Thomas quem se adiantou, e
comentou com olhos sagazes:
Filho, está se esquecendo da física? A i, ai, bem que eu insisto em montar uma
escola nessa vila, mas ninguém me escuta! Também, se meu próprio filho era um
dos que menos gostavam de estudar. Pressão é igual a força dividida sobre a área.
Com uma mesma força, poderá aplicar pressão maior se diminuir a área de
contato. Talvez assim consiga atravessar essa parede.
Não entendi uma palavra do que disse, pai...
Thomas balançou a cabeça, desanimado, e olhando o filho dos pés à cabeça.
Esse é o meu Vanhardt... Tudo bem, simplificando: em vez de utilizar as costas
de seus quatro dedos no soco, porque não acerta apenas as dobras dos dedos na
parede? A pressão será maior!
O lhando sério para o pai, com medo de perder a pequena autoridade que
adquirira ao derrotar Rogudim, Vanhardt acabou decidindo adotar o seu conselho.
Ele se colocou novamente em posição de luta, e golpeou a parede, dessa vez
acertando os nós dos dedos. A o contrário das outras tentativas, uma parte deles
atravessou a superfície invisível, e Vanhardt chegou a sentir o ar mais quente do
outro lado. Com a mão ainda colada na parede, aproveitou para esticar os dedos
por dentro da abertura, e depois enfiou também os dedos da mão esquerda. Como
se estivesse de frente para uma porta de deslizar, ele colocou as costas dos dedos
umas contra as outras, e fez força para a direita e para a esquerda com as
respectivas mãos. A parede não cedia. Respirou fundo e continuou fazendo força;
suas bochechas ficaram vermelhas, veias saltaram do pescoço, suor escorria
profusamente pela testa, enquanto um gemido escapava pelo canto da boca.
S ó não peida... - comentou Green em tom disfarçadamente sério, e tapando o
nariz com a mão.
Lutando para não desconcentrar e rir, ao mesmo tempo em que continuava
tentando "abrir" a parede, ele sentiu que a estrutura começou a ceder. A parede
invisível vibrou, e pequenas explosões coloridas, como fogos de artifício escaparam
do local onde Vanhardt fazia força. O filho da deusa do gelo finalmente venceu
quando de repente suas mãos não tocavam mais nada, e o impulso dos braços
acabou jogando-o no chão. A magia que mantinha a parede de pé fora desfeita.
Este é um outro ponto interessante da física, - Thomas falava enquanto esticava
o braço para ajudar o filho a se levantar - a inércia. O utro dia podemos discutir
isso. Ou não.
O que importa é que a parede não representa mais um obstáculo - disse
Vanhardt. - Muito bem pessoal, vamos entrar.
A companhado por Green e Ravina, Vanhardt procurou algum sinal na parede
do monumento, que pudesse revelar uma forma de entrar, porém não foi feliz. O
obelisco era composto de uma pedra negra, opaca, e não apresentava a mínima
fissura. A ntes que partisse novamente para a força bruta, foi interrompido por
Oswaldo que havia voltado de sua excursão.
Honorável filho da deusa do gelo, não encontrei nada que possa ajudá- lo. D e
qualquer forma, fico feliz ao perceber que venceu a parede invisível. Vejo que seu
próximo passo é... Humm... Humm... - o coelho demorou os olhos por alguns
segundos no obelisco, e chegou a roçar-lhe a mão cuidadosamente. - I nteressante...
O bservando essa superfície do obelisco, meu caro herói, acabei por me recordar de
algo valioso que sua mãe enviou, e que me esqueci de entregar. Peço perdão por
essa falha irreparável, irreparável! - os olhos de O swaldo só faltavam chorar,
enquanto ele tirava de dentro das costas um cubo negro. A face superior do objeto
apresentava quatro obeliscos em miniatura, um em cada quina.
Hummm - dessa vez foi Vanhardt quem gemeu, enquanto analisava o estranho
objeto, agora em suas mãos. - É interessante, O swaldo, mas por que minha mãe o
enviou?
Faço minhas as palavras da deusa: "Entregue-o para meu filho, pois será
necessário para abrir as portas da fonte do poder do traidor".
"Fonte de poder do traidor"... Então minha mãe já está ciente da conexão
Mondovar - traidor. Talvez ela sempre estivesse um ou dois passos na minha
frente. Enfim, vamos ver se isso aqui funciona.
Encostando uma das bordas do cubo na parede do obelisco, um leve tremor
repercutiu na superfície, e o som do atrito entre rochas pôde ser ouvido a dezenas
de metros. Um pedaço da parede, do tamanho e formato de uma porta, se deslocou
para cima, revelando uma entrada. Vanhardt olhou para os dois companheiros,
esperando a confirmação de que o acompanhariam para dentro do obelisco: Ravina
balançou a cabeça afirmativamente, e Green, contrariado, respondia "não" com a
cabeça e com os dedos.
Você pediu para me acompanhar aonde quer que eu fosse, não foi? A gora não
pode escapar! Talvez nos ajude lá dentro - Vanhardt agarrou a gola de Green, e
posicionou-o estrategicamente ao seu lado, impossibilitando qualquer tentativa de
fuga.
Mestre Vanhardt, deseja que eu também o siga?
D e maneira alguma, O swaldo. Tenho uma missão mais importante para você.
Por favor, leve Lila para minha mãe, e conte o que aconteceu. S ó ela poderá ajudar
a fada.
Certamente, senhor, e imediatamente! - o coelho abaixou-se numa reverência, e
pegou a fada das mãos de Ravina com cuidado. D epois partiu em disparada para
longe do centro de Crivengart.
Livre da obrigação de segurar a fada, a Guardiã pôde examinar mais
cuidadosamente o cubo entregue por O swaldo. A lguns segundos em silêncio
permitiram algumas suposições, que ela logo compartilhou com seus amigos:
Vanhardt, Green, as palavras do coelho associadas a esse cubo me suscitaram
algumas idéias. D igam se acharem absurdo. Uma dúvida me intrigava, e era o
motivo de Mondovar escolher justamente esta vila, não tão numerosa, e sem
qualquer recurso valioso, para implantar o obelisco. Está meio óbvio para nós que o
monumento suga a energia da população, e provavelmente reenvia ao seu
construtor. A gora, analisando estes pequenos obeliscos no cubo, imaginei que na
verdade, o monumento que estamos vendo faz parte de um complexo maior,
formado por mais outros três obeliscos. Talvez Crivengart se localize num ponto
específico, no qual associado aos outros três obeliscos funcione adequadamente
aos propósitos do criador. É muito comum esse tipo de associação de estruturas
para potencializar um determinado efeito.
É uma teoria interessante, Ravina, e gostaria muito de discutir isso mais tarde.
A contece que não podemos perder tempo agora, pois a vila ainda está ameaçada.
Pai, por favor, tome conta de Erick. Prontos ou não chegou a nossa hora! - Vanhardt
foi o primeiro a entrar no obelisco depois de acariciar os cabelos do filho.
S eguiram-se a ele um duende relutante, e uma Guardiã que se certificava de que
ele não daria um jeito de escapar. Uma leve tensão abraçou a vila em peso, levando
todos a manter a respiração pausada por alguns instantes.
Capítulo LVI - Um Novo Encontro com o Mal

Q uando o feixe de luz originado na ponta do indicador de Vanhardt venceu as


trevas do ambiente, permitiu aos três perceber que ele era muito maior do que o
esperado. Espelhos de todos os tamanhos, desde aqueles menores que a palma de
uma mão até outros que ousavam ser da altura de um prédio, se amontoavam
pendurados nas quatro paredes interiores. S uas bordas eram salpicadas com
pedras preciosas sobre um filete de ouro puro, e os formatos dos espelhos eram
dos mais variados: triangulares, hexagonais, esféricos, ovais, quadrados, e outros
completamente irregulares. Estavam dispostos de uma maneira simétrica, e
apontavam para uma estrutura no centro do salão: uma esfera, branca perolada,
não maior do que uma melancia, e se apoiava sobre uma mesinha cilíndrica, de um
metro de altura. O utro objeto interessante estava situado na parede norte, entre os
espelhos. Era uma espécie de estante, pouco mais alta que um ser humano,
retangular e com fileiras de prateleiras na frente, contendo teclas de marfim
semelhantes às de piano. D ois braços extras de prateleiras saíam da extremidade
direita e esquerda da estante, em direção ao centro do salão, e possuíam as mesmas
teclas de piano. Uma cadeira redonda se encontrava esquecida em frente a esse
estranho objeto, de modo com que uma pessoa ali sentada pudesse operar o
mecanismo, apenas esticando os braços, sem qualquer dificuldade.
O que mais atraía a atenção dos presentes, entretanto era um intrincado
emaranhado de tubos, do calibre de uma coxa humana, com as bocas enroscadas
na parte superior da esfera. O s tubos, azuis, seguiam verticalmente para cima, até
onde a vista não mais alcançava, e se enrolavam como um gigantesco tufo de
cabelos. Como se estivessem vivos, pulsavam semelhantes a artérias, ritmadas.
Vanhardt sentia uma energia perversa emanando da esfera e seus tubos, muito
maior do que aquela cujo véu deitava sobre a vila de Crivengart. Ele se aproximou
da estante com as teclas de piano, e notou que numa das prateleiras centrais, havia
um espaço livre de teclas, quadrado, e com quatro buracos em cada uma das
quinas. Calculando a distância entre os buracos, e o seu tamanho, percebeu
facilmente que os obeliscos em miniatura do cubo que sua mãe lhe enviou,
encaixariam ali perfeitamente.
Ei, pessoal, veja só! - o filho da deusa do gelo fez sinal para que o duende e a
Guardiã se aproximassem. - D eixa de ser medroso, Green, isso não vai te morder! -
ele apontou para o espaço livre de teclas, e continuou - A cho que o cubo se encaixa
aqui. Será que devo arriscar colocá-lo?
A Guardiã, com dois dedos sobre os lábios, olhava para os lados, pensativa.
Depois de alguns segundos em silêncio, ela tirou os dedos da boca, e disse:
A credito que, de princípio, deveríamos procurar entender o funcionamento
dessa estrutura, para a partir daí, decidirmos o que fazer. A ssim temos chances
menores de cometer algum erro. Pelo que notei, estes espelhos cobrem as quatro
paredes do chão ao teto. O fato suspeito, é que todos estão voltados diretamente
para aquela esfera no centro. Forçando um pouco a imaginação, e lembrando o que
discutimos a pouco, ouso afirmar que esses espelhos estão dirigindo a energia
roubada da vila de Crivengart para a esfera. Essa, por sua vez, processa tal energia,
e a desvia através da tubulação rumo ao teto do obelisco, de onde provavelmente é
enviada ao seu destino.
Um bom chute, mas até que ponto isso pode nos ajudar, ô lagartona? -
comentou Green, que procurava se posicionar entre o filho da deusa do gelo e a
Guardiã, onde se sentia mais protegido.
Essa mesa com teclas deve controlar o funcionamento do mecanismo. S e
soubéssemos manejar a mesa, poderíamos cortar o fluxo de energia em algum
desses pontos.
E não seria mais fácil destruir isso tudo aqui de dentro? - perguntou Vanhardt,
preparando-se para tirar Flama de dentro do braço.
Pode ser que sim. Mas até onde você nos garante que não vai explodir o
mecanismo e nós três juntos?
É... Melhor não arriscar, não é mesmo? Bem, vamos ver o que esse presentinho
aqui pode fazer com a mesa. - o filho da deusa do gelo deslizou com cuidado os
mini-obeliscos dentro dos buracos, e quando ouviu um "clique", anunciando o
encaixe, se afastou. A mesa emitiu um silvo agudo, e depois começou a roncar.
O s espelhos que até aquele momento pareciam inofensivos passaram a brilhar
como o sol, ferindo a vista dos presentes. S egundos depois, a intensidade da luz já
havia diminuído, e eles puderam observar inúmeras inscrições em vermelho sobre
um fundo negro, repetidas em cada um dos espelhos.
Ótimo, ligamos! - disse Vanhardt colocando as mãos na cintura. - S e eu
soubesse ler, resolveria o nosso problema num instante. Pena que nunca fui fã de
escola... Puxa, se meu pai estivesse aqui. Ravina, você não sabe ler?
S im, mas apenas na nossa língua. Essas inscrições são de outro tipo de língua,
completamente diferente da nossa. Acho que nem seu pai poderia nos ajudar.
N aquele instante, uma tosse convulsivante surgiu de um ponto entre Vanhardt
e Ravina, e caminhou lentamente em direção à cadeira redonda. Green, fonte da
tosse forçada, alisou os cabelos ralos, juntou as mãos, estalando todos os dedos
enquanto esticava o braço pra frente, e depois arranhou a garganta ruidosamente
mais uma vez, atraindo toda a atenção possível. Com gestos delicados, sentou-se na
cadeira, arredando-a para frente. A ssim que terminou o longo ritual, ele estufou o
peito, e sorriu de maneira pomposa:
É óbvio que se não fosse a insuperável sapiência do maior duende de todos os
tempos, vocês dois ficariam presos aqui dentro sem saber o que fazer. A minha
vasta cultura, entretanto, reconhece esse idioma como sendo uma língua secreta da
ordem chamada D ivina S erpente. Consigo lê-lo perfeitamente, e já até sei o que
fazer. N o entanto... - Green abaixou o tom de sua voz, deixando um silêncio
misterioso no ar.
D iga logo o quê, seu duende metido! Está nos atrasando! - Vanhardt retornava à
sua velha impaciência.
N o entanto, ajudarei vocês, mas quero que antes a minha pessoa seja
devidamente valorizada! D êem um beijinho aqui na minha mão, e repitam: "Ó
senhor Green, nos abençoe com a sua sabedoria, e permita humildemente que sua
infinita bondade recaia sobre nós".
Ravina permaneceu quieta, porém Vanhardt não conseguiu manter a
compostura. Ele arrancou Flama de dentro do braço violentamente, e rodopiou-a
no ar. Depois fincou a ponta no solo, apoiando as duas mãos sobre seu punho.
Green, admito que às vezes você é até engraçado. O problema é que minha
esposa continua desaparecida, Lila perdeu as asas e está desmaiada, desafiamos
Mondovar, que provavelmente já está ciente da situação, e a vila conta conosco para
destruir esse obelisco! O u seja, não estou com tempo para suas gracinhas. O u você
nos ajuda a resolver o problema, ou nos dá licença, a não ser que esteja com
vontade de dar "um beijinho" na lâmina de Flama.
Hehehe! Puxa Van, não precisa ficar tão bravo com essa brincadeirinha - o
duende, disfarçadamente, limpava uma gota de suor que descia languidamente
pela testa, enquanto se esforçava para dar o sorriso mais simpático que conhecia.
Q ueria só descontrair, o clima estava tenso. Pois bem, vamos à leitura. S ão
vários tópicos um sobre o outro, e vou repetir para vocês: "Câmara de fluxo, índice
de absorção, N ível de quantuns, Rede de armazenamento, Manutenção... hummm,
olhem esse, é interessante: Emergência".
Gostei dele! Pode acionar Green!
A ntes que a Guardiã pudesse intervir, pedindo tempo para analisar cada tópico,
Green apertou uma série de teclas, fazendo com que aquelas inscrições repetidas
em cada espelho desaparecessem, e surgissem outras diferentes em seu lugar.
Green fixou os olhos, e leu para os companheiros:
"Alerta à Ordem - Reparo impossível - Dano permanente à estrutura
Auto-destruição..."
Achamos! Se ativarmos esse último item, o obelisco provavelmente virá abaixo.
A cho que sim, Van, mas como faremos pra sair daqui antes dele nos levar
junto? - perguntou o duende.
Bem, isso eu não...
D e repente, o feixe de luz que partia da ponta do indicador de Vanhardt foi
engolfado por uma escuridão que partia dos quatro cantos. O ar gelou, e o único
som audível era o da batida dos corações. Green agarrou o primeiro braço que
conseguiu tocar no meio daquele breu, enquanto Ravina se preparava para assumir
a forma de lagarto. A s palavras escritas em vermelho nos espelhos desapareceram,
dando lugar a uma sinistra figura. Era a de um elmo negro, com órbitas onde
flutuavam dois olhos vermelhos. Vanhardt já havia visto aquele ser num de seus
sonhos. Era ninguém menos do que o famigerado Mondovar. A imagem estava
observando-os, e uma voz metálica inundou o ambiente ao mesmo tempo em que a
boca da figura mexia:
Vanhardt Mohr D aicecriv... e amigos! N ão sei se me conhecem, então permitam
que seja apresentado adequadamente. Meu nome é Mondovar, mas podem se
dirigir a mim como S upremo Lorde Mondovar. Q ual são as últimas palavras dos
três antes que sejam mortos?
S eu desgraçado, onde está minha esposa? - Vanhardt apontava Flama para um
dos maiores espelhos a estampar o semblante de Mondovar.
A h, não se preocupe, rapaz. Estou cuidando muito bem dela... O u melhor,
muito mal!
Se você tiver ousado...
O usei muito mais do que você possa imaginar, filho da deusa do gelo! -
interrompeu Mondovar, com voz cada vez mais amedrontadora.
O ... quê? Como sabe que sou filho de uma deusa? O Q UE VO CÊ FEZ CO M
SELENA??? - Vanhardt gritou com uma fúria explosiva.
Ela até resistiu por algum tempo, o que foi em vão! - a voz metálica de
Mondovar penetrava nos ouvidos dos presentes cada vez mais opressora. - Todos
os seus segredos mais íntimos são meus! Espero que ela esteja apreciando essas
semanas em minha prisão, pois provavelmente ficará aqui por muito tempo!
Mondovar, eu nunca falei tão sério em toda a minha vida. O u você traz a minha
esposa aqui sem um mísero arranhão, ou prometo que irei feri-lo o máximo que
minha força permitir.
A gora é tarde, filho da deusa do gelo. Você não pode salvar sua esposa. Ela está
condenada. A ssim como vocês três, e essa vila ridícula! Minhas tropas já estão
marchando, e dessa vez não restará pedra alguma de pé nesse fim de mundo!
Adeus!
A imagem de Mondovar sumiu, juntamente com a escuridão que havia tomado
conta do ambiente. Green, cujo tom de pele era esverdeado, estava branco como a
neve, e com a roupa encharcada de suor. Ravina segurava seu bastão com ambas as
mãos, e o cérebro trabalhando depressa. Vanhardt, por sua vez olhava para o chão,
petrificado.
Selena... o que ele fez com minha esposa...
O barulho de vidro se quebrando retirou Vanhardt do seu estado entorpecido,
alertando-o de que os espelhos despencavam das paredes um a um. O s tubos
passaram a se romper em pontos variados, enquanto uma gosma amarela era
jorrada do seu interior, com a mesma pressão de uma artéria arrebentada. O chão
trepidava, e as paredes balançavam como se um terremoto tivesse atingindo a terra
do gelo. Mais barulhos somavam-se ao de vidro se partindo, e tornaram-se tão
intensos que não era possível escutar o som da própria voz. Green se escondera sob
a estante, protegendo-se das lascas de vidro que atingiam o chão com tamanha
força que matariam um elefante. Ravina estava rente à parede, e golpeava-a com o
bastão, enquanto gingava para os lados, desviando-se dos pedaços de vidro.
O filho da deusa do gelo acertou Flama contra a parede, mas foi jogado pra trás
com a força de seu golpe. N ão produzira qualquer dano. Um pedaço do teto, maior
do que uma carroça, destruiu metade da estante onde Green se escondia, errando-o
por alguns centímetros. Vanhardt olhava para os lados, confuso, procurando
alguma saída milagrosa. A cima de sua cabeça, outro pedaço do teto, três vezes
maior do que o primeiro despencava numa velocidade vertiginosa.
Visto de fora, uma nuvem de poeira se ergueu centenas de metros, na forma de
um cogumelo, e não restava nada além de uma pilha enorme de destroços onde
fora o obelisco.
Capítulo LVII - Palavras como Fogo

O s poucos habitantes de Crivengart que ainda circulavam pelas ruas correram


para o esconderijo mais próximo quando o obelisco começou a desmoronar. Houve
uma gritaria generalizada à medida que os primeiros pedaços do teto e parede do
monumento tombaram, um deles acertando e destruindo completamente uma casa
que por sorte estava vazia. Em alguns segundos, a gigantesca estrutura passou a
consumir-se em uma nuvem de poeira que se espalhou por centenas de metros ao
redor, cobrindo o telhado de todas as casas com pó cinza. O solo de Crivengart que
vivia sob um tapete de neve, agora se encontrava salpicado pela poeira que insistia
em cobrir cada centímetro da vila. Ela entrava nas casas pela soleira das portas,
janelas abertas, e agregava em muros e cercas. Até mesmo alguns habitantes,
dentre eles Thomas, o pai de Vanhardt, ficou com a aparência de limpador de
chaminés. Erick só foi salvo, pois estava devidamente protegido no berço, sob um
pano de algodão.
Q uando a tempestade cinza passou, os habitantes, timidamente, passaram a
sair de suas casas. S entiam como se correntes invisíveis que prendiam os membros
do seu corpo tivessem se desfeito, e o peso que cada um carregava nos ombros
agora não passava do próprio ar acima deles. O poder opressor do obelisco
desaparecera completamente. O local onde antes ele se erguia, abrigava pilhas de
rochas negras, a maior delas do tamanho de um prédio de três andares. A lgumas
mulheres colocaram a mão sobre a boca, assustadas, e outras choravam pelo
destino do filho da deusa do gelo. Greylock murmurava frases curtas, algo sobre
"como alguém sobreviveria àquilo".
Thomas correu para o monte de destroços, e começou a jogar os menores para o
lado, a fim de tentar encontrar o filho soterrado. Ele gritou por ajuda, e logo vários
homens e algumas mulheres se solidarizaram, retirando os destroços do obelisco
que podiam. O rosto de Thomas estava vermelho, e ele bufava, à medida que
avançava feroz sobre as pedras, procurando desesperadamente por um sinal de seu
filho. Um dos homens que, parado, assistia à cena, comentou:
— O rapaz realmente cumpriu o que prometeu. S erá uma pena se ele tiver
mesmo morrido!
Thomas pensou em parar para argumentar contra o homem, mas desistiu ao
perceber que aquilo poderia custar a vida de seu filho. A lguns segundos depois,
quando lágrimas custosas desciam do canto de seus olhos, e ele lutava contra uma
pedra maior do que suas forças, um barulho irrompeu do meio da pilha de
entulhos. Uma das rochas maiores voou cinco metros pra cima, e quase esmagou
Thomas que se desviou no último instante. Do buraco que se abrira onde a rocha se
apoiava, uma mão fechada, erguida para cima, permanecia hasteada. Thomas e os
outros correram para lá, e passaram a jogar para o lado as pedras pequenas que
circundavam o braço. Para a surpresa de todos, uma camada de gelo brotou
quando a área foi parcialmente limpa. A baixo dela, podiam ver o reflexo de três
pessoas, que logo foram identificadas como Green, Ravina, e Vanhardt, este último
com o braço ainda esticado em um buraco através do gelo. O s três estavam numa
espécie de iglu, que os protegeu dos pedaços do obelisco. A o limparem
completamente o teto abobadado do iglu, os habitantes recuaram, e Vanhardt deu
um outro soco no gelo, destruindo a camada superior. Com a ajuda de Thomas, os
três sobreviventes saíram do buraco, e receberam uma salva de palmas e muitos
gritos de agradecimento.
Muito obrigado Vanhardt, filho de Thomas e da deusa do gelo! - exclamou um
Greylock sorridente, com a mão sobre o ombro de Vanhardt. - Graças a vocês
estamos livres novamente!
Ele fez o que prometeu, pessoal! - disse Evans, o homem que pensou na
possibilidade da morte de Vanhardt.
D os três heróis, Green era o mais deslumbrado. Ele subiu em uma rocha, e
colocou as mãos na cintura, enquanto discursava sobre a sua coragem ao entrar no
obelisco, e depois como foi crucial ao desvendar a língua secreta. A lgumas crianças
estavam em volta dele, olhares cintilantes, e algumas pensavam em tocá-lo, para se
certificarem de que o duende era real. Ravina, ao contrário de Green, limitou-se a
cobrir o rosto com o capuz, e descer da pilha de destroços. Ela sentou-se quieta em
uma tora de madeira que servia de banco, na varanda de uma casa ali perto.
Vanhardt, o herói mais ovacionado, derrubou Green de seu pedestal, e subiu na
mesma rocha. Murmurou ao duende um "depois você termina de se gabar", e
levantou ambos os braços, pedindo silêncio.
Por favor, meus vizinhos e amigos! S ilêncio, por favor! - quando conseguiu calar
a turba alvoroçada, ele abaixou o braço, e iniciou um discurso. - Eu sei que todos
estão contentes por termos destruído o mal que tirava a capacidade de sermos
felizes. I sso é tão motivo júbilo pra mim quanto é pra vocês. Foi com a sua
confiança, e a esperança de que a luta pela felicidade não seria em vão, que
pudemos livrar Crivengart do estrume de Mondovar! - alguns na platéia riram com
aquela menção. - N ão poderia, entretanto, deixar de alertá-los, e aproveitar para
reforçar o seu voto de confiança.
"Mondovar, o canalha que ousou pensar que vocês seriam como ovelhas
indefesas, e não reagiriam, voltará, com toda a sua corja. N este momento ele já
sabe o que fizemos, e certamente prepara o seu exército para retornar à Crivengart.
O que ele não espera, dessa vez, é encontrar uma resistência feroz e imbatível, de
cada um de nós, Crivengartenses, que acreditam na vitória. A lém do mais, eu,
Vanhardt Mohr D aicecriv, filho da deusa do gelo, irei pessoalmente pedir auxílio à
minha mãe. Ela sem dúvidas nos apoiará com tropas divinas, que ao lado de cada
um de vocês, irá defender essa vila com todo o seu sangue e suor. É por isso que
conto com a ajuda de todos. S aibam que a arma mais forte, e que Mondovar não
acredita que possuímos, é a esperança. Esperança de que não seremos meros peões
nesse jogo. Esperança de que a nossa vida pode melhorar amanhã, e que o nosso
destino não será o mero desejo de um poderoso. Esperança de que podemos lutar
pelo nosso futuro, e de nossos filhos, com nossas próprias mãos, e de que nunca
seremos subjugados se nos mantivermos unidos. Esperança de que não iremos nos
render, e Crivengart será uma vila mais próspera e feliz, assim que a tempestade
passar. N ão meus amigos, não seremos derrotados hoje, e nem amanhã. S omos
filhos da terra do gelo, mas nosso coração é quente como fogo! Provaremos a
Mondovar e seus súditos que somos tão duros quanto o gelo eterno das nossas
montanhas, e daremos a ele uma lição da qual nunca se esquecerá. Bravos
crivengartenses, ergam as suas mãos. Q uem estiver do meu lado nessa luta, gritem
comigo - ele fez uma pequena pausa, e ao ver todas as mãos erguidas, encheu os
pulmões, e disparou: - POR CRIVENGART!"
A multidão em frente ao filho da deusa do gelo, inspirada por aquele inflamado
discurso, uniu as suas vozes, e gritaram em uníssono:
— POR CRIVENGART!
Vanhardt desceu da pilha de rochas, e assustado, foi erguido pelas mãos de
vários dos moradores. A lguns gritavam o nome dele, outros tentavam tocá-lo, e
deitado, sobre aquele mar de braços que o mantinham erguido, o filho da deusa do
gelo estava assustado. Primeiro consigo mesmo, pois não esperava discursar com
aquela intensidade. Uma força sobrenatural tomou conta de suas idéias e de sua
garganta, e as palavras saíam da boca inspiradas por essa força. Ele adquirira uma
maturidade que até então desconhecia, e transmitia uma moral, e uma força de
vontade para seus ouvintes, que nem os maiores imperadores de qualquer reino de
Kether ousavam se igualar. Percebera então, que seu poder não residia puramente
naquele vindo de sua mãe, mas também numa mente mais madura, capaz de
inflamar e unir multidões, além resolver problemas com idéias criativas e
funcionais.
O segundo motivo de estar assustado era apenas a uma palavra: Mondovar. A
confiança que transmitia para os moradores da vila não era a mesma que circulava
dentro de si. A simples presença de Mondovar exercia uma influência e uma
opressão cem vezes maior que aquela gerada pelo obelisco. Além do mais, ele tinha
uma boa noção da força de suas tropas, que em épocas muito remotas invadiram o
castelo de sua mãe, a deusa da morte na ocasião. Tais tropas não encontrariam
dificuldade em subjugar uma vila como Crivengart. Ele precisava ir ter com Léia
imediatamente.
D epois de alguma luta contida para se desvencilhar dos braços da multidão,
Vanhardt disse que precisava conversar com a deusa do gelo. O s aldeões deram
outra salva de palmas, e gritos de viva, e o puseram no chão. O rapaz pediu ao pai
para abrigar Green e Ravina em sua casa enquanto ele falava com sua mãe.
N ão deseja companhia? - perguntou a Guardiã, séria, oculta sob o capuz que
escondia seu rosto.
N ão, Ravina, obrigado. Gostaria de falar com minha mãe a sós. Tenho muitas
coisas a tratar com ela - respondeu Vanhardt procurando não ser indelicado.
Puxa, eu queria tanto me encontrar com uma deusa... - disse Green, sorridente,
ainda encantado por sua aclamação como herói.
Haverá outras oportunidades. Não se preocupem, voltarei em breve!
A cenando com as mãos para os Crivengartenses, Vanhardt foi se afastando aos
poucos. A lgumas crianças ousaram acompanhá-lo por alguns metros, mas
desistiram quando ele deixou a periferia da vila. A pesar de agora possuírem uma
admiração e confiança no filho da deusa do gelo, os habitantes não deixavam de
manter respeito. E aliado a esse respeito, existia a uma espécie de receio, medo do
que ele poderia fazer. Por isso, Vanhardt não precisou pedir a nenhum dos aldeões
para que não o seguissem; assim o fizeram espontaneamente.
O caminho percorrido até a casa de gelo era velho conhecido de Vanhardt, e não
demorou mais do que meia hora. Pronunciando as palavras mágicas que aprendeu
há anos atrás, ele esperou a muralha de gelo se abrir, e entrou, com uma alegria
que transbordava em seu peito. Logo na ante-sala, ele viu sua mãe sentada atrás da
mesa feita do material que compunha praticamente toda a casa. A deusa usava um
vestido prateado, de franjas nas bordas e uma fita cor de diamante prendendo a
cintura, enquanto duas alcinhas transparentes revelavam ombros tão claros como a
neve. O rosto de Léia, entretanto, não era dos melhores que Vanhardt já vira. S eu
semblante era sério, com um misto de tristeza, e os lábios se contraíam como se
lutasse para manter num sorriso forçado. D elicadamente, ela arredou sua cadeira
para trás, e levantou-se, caminhando com leveza até ficar de frente para o seu filho.
Vanhardt, só de olhar seu rosto percebo quanta experiência e força adquiriu
nessas semanas, ou meses, em que ficou longe - Léia apontou o rosto para baixo, e
pegou a mão do filho. - Estou feliz.
—. A cho que todas essas dores que suportei tornaram-me capaz de ajudar
aqueles que precisam, como meus amigos, meu filho...
S im, mas infelizmente, não a sua esposa! Forças muito maiores e mais sombrias
do que imaginamos estão por trás de vários acontecimentos, desde o rapto de
Erick, e sinto que somos marionetes desse jogo.
S ei onde S elena está, mãe. Mondovar a pegou! E temo muito pelo que ele possa
ter feito à minha mulher. As coisas que ele me disse...
Eu sei querido, eu sei. D escobri naquele dia no qual você o encontrou no plano
astral. D e qualquer maneira, agora passo a enxergar mais claramente. O cubo, os
rostos que eu via... A profecia do oráculo. A pesar disso, alguns fragmentos fogem à
minha compreensão. - Léia fitava o vazio, imersa em seus pensamentos.
O que foi, mãe? Conte-me tudo o que sabe! A liás, os Pepenjis estão na piscina?
Confesso que sinto um pouco de saudade deles.
A ntes de deixar que o filho fosse atrás dos seus antigos amigos, ela encarou-o
de maneira séria. Depois de alguns segundos calada, Léia disse num tom pesaroso:
S erá uma boa idéia que veja o que aconteceu com eles. A ssim entenderá
profundamente qual é o perigo com que teremos de lidar, e a sua crueldade.
A ssustado com as palavras de sua mãe, e temendo pelos Pepenjis, Vanhardt
disparou para a sala de recreação. A visão que teve ao chegar deixou seus olhos
turvos, o coração diminuiu o ritmo dentro do peito, e o sangue fugiu dos seus
membros, e da cabeça. Era como se visse um retrato, e não uma imagem real.
Aquilo não podia ter acontecido, não com os Pepenjis... Não com os seus amigos...
Capítulo LVIII - Confidências

O filho da deusa do gelo permaneceu paralisado por alguns instantes. S eus


membros não o obedeciam, muit o menos a cabeça. Esta última era um turbilhão
de pensamentos, que se enroscavam e se sobrepunham, fundindo passado e
presente. A s lembranças das brincadeiras com os Pepenjis vinham à tona,
juntamente com a imagem que ele presenciava no momento: as criaturinhas que
lembravam pingüins presas em uma das paredes de gelo, com os rostos retorcidos,
reflexo da dor ou terror que sentiram antes de morrer. Vanhardt iniciou um
caminhar duro, pesado, como se fosse uma árvore andando sobre suas raízes.
Q uando se aproximou da parede onde adormeciam os corpos sem vida, pôde ver
alguns ferimentos em seus corpos, negros, pútridos, que cobriam os troncos e
cabeças.
— Mãe... - a voz de Vanhardt escapava cheia de raiva pelas frestas dos lábios,
que teimavam em não se abrir -... o que, exatamente, aconteceu aqui?
A deusa do gelo continuou parada na porta, sem se atrever a dar um passo. Ela
juntou as mãos, e colocou-as na frente do corpo, tentando mostrar-se tranqüila e
acolhedora. Com um sorriso triste, contou a seu filho:
Mondovar descobriu o nosso esconderijo, e mandou alguns soldados aqui.
A queles seres perversos, que uma vez invadiram meu castelo quando eu ainda era
a deusa da morte, voltaram. Com braços esqueléticos, e uma presença maligna,
aqueles que escaparam da morte, mas não caminham entre os vivos, mataram os
Pepenjis um a um. Q uando cheguei era tarde de mais. A inda consegui persegui-
los, e mandei todos para o outro mundo. É óbvio que isso não traria os Pepenjis de
volta.
Por que Mondovar faria isso? - Vanhardt ficou mais exaltado. - Como ele
descobriu nosso esconderijo?
Através de S elena, provavelmente. E fez isso como um meio de nos atingir...
para que nos desestabilizássemos. É por isso que te peço, meu filho, não deixe
que...
Mãe, se essa conversa fosse há alguns anos atrás eu já teria te atacado. -
interrompeu Vanhardt. - S ó que eu não tenho mais dez anos de idade, e no final
das contas, não iria até o fim; nunca a machucaria. Porém gostaria que respondesse
às minhas perguntas com toda a sinceridade do mundo. Meses atrás, quando Hilda
raptou meu filho, por que você não a impediu? E depois por que não foi atrás dela,
quando pôde? E minha esposa, deixou que ela também fosse raptada? N ão consigo
entender, você não é uma deusa, mãe? Pra que serve os seus poderes?
Léia desviou o olhar para o lado, sem conseguir encarar o filho nos olhos. S uas
feições tornaram-se mais sombrias, e mirando o vazio, ela respondeu o filho:
Por mais que duvide de meus poderes, sou sim uma deusa! - Ela esticou o braço
direito para frente, com as mãos espalmadas, e braços invisíveis envolveram as
pernas e braços de Vanhardt, prendendo-o na parede. - Mas se acha que um deus é
onipotente, e onisciente, está muito enganado. S e quer saber a verdade, eu a darei!
Q uanto a duas de suas perguntas, por que não impedi que Erick e S elena fossem
raptados, tenho uma resposta simples: eu não sabia que eles iriam ser, ou estavam
sendo levados. Como naquele momento eu não observava S elena nem Erick, não
tomei conhecimento do que estava acontecendo até momentos depois, quando fui
devidamente informada. A gora talvez você consiga perceber como "o traidor"
conseguiu me superar. Ele utilizou um meio de esconder suas tropas de minha
percepção, e só fui alertada do que acontecia quando tudo estava perdido. S e eu
soubesse previamente que ele e suas tropas se movimentavam próximo ao meu
castelo, teria tempo de preparar as defesas, e até pedir ajuda, de modo a não ser
surpreendida.
E quando soube do desaparecimento dos dois, por que não foi atrás deles?
N o caso de S elena eu tentei, mas não havia rastro a seguir. I nvestiguei com
todas as minhas capacidades, porém não pude definir seu paradeiro. Como você
me confirmou, ela está com Mondovar. Q uanto a Erick, não fiz isso, por sua causa.
Veja bem Vanhardt, é verdade que eu poderia ir pessoalmente atrás de Hilda, mas
nesse caso você não estaria tão forte como agora. O poder que você revela hoje teria
levado mais de dez anos para vir à tona em condições normais, ou seja, se eu o
treinasse. D eliberadamente deixei que você fosse atrás de seu filho, correndo o
risco de morrer, para que passasse por dificuldades, e assim pudesse desenvolver
suas habilidades. Minha presença não foi negada, entretanto, pois parte de mim, a
fada A lilandra, estava ao seu lado todo o tempo. A lém disso, enviei-lhe tropas
quando foi necessário. S e agi corretamente ou não, se foi ético de minha parte, se
tinha direito de assumir tais responsabilidades, deixarei que o peso do universo
recaia sobre meus ombros. N ão admitirei ser julgada por ninguém, exceto pelas
leis universais. O seu desempenho, contudo, excedeu qualquer expectativa. Q uem
além de você poderia entrar nos domínios de Laodicéia e recuperar a arma que
portei por tantos anos? E quanto ao Templo D ourado, quando reencontrou seu
filho, e teve de ficar frente a um dos deuses maiores, aliás, o líder do Panteão?
A cha que uma deusa como eu teria a capacidade de entrar nos domínios de
Laodicéia ou J ustus sem sofrer uma retaliação? - Léia deixou a pergunta morrer no
ar.
Posso até aceitar essas explicações, só que há algo que você não pode justificar.
Porque abandonou Crivengart quando os aldeões mais precisavam? Como
abandonou meu pai e todos os outros à mercê de Mondovar e seu exército,
permitiu que aquele maldito obelisco fosse plantado, e não fez nada para retirá-lo?
- os braços e pernas de Vanhardt se debatiam contra os grilhões invisíveis que o
prendiam, sem conseguir se soltar.
I sso será um pouco mais difícil de esclarecer. A cho que primeiramente você
deve saber o que é o oráculo. Existe um ser neste mundo, ou pelo menos existia,
capaz de fazer profecias. Esse ser era agraciado visões do futuro; penetrava na linha
do tempo e conseguia arrancar fragmentos, que analisava, e conseguia produzir um
relato vago de coisas que viriam a acontecer. D esde o seu aparecimento, o oráculo
nunca errou suas previsões. Eu fui até ela a fim de pedir que visse o meu futuro,
um fato inédito entre os deuses, e irei relatar o que me foi dito na ocasião.
Procurando relembrar as palavras exatas usadas pelo oráculo, Léia relatou a
previsão para Vanhardt. Este ficou calado todo o tempo, balançando negativamente
algumas vezes numa clara demonstração de dúvida e confusão. A o terminar o
relato, a deusa do gelo liberou o filho dos grilhões invisíveis, e concluiu fitando o
rapaz nos olhos:
Entendeu por que não pude agir?
Pra falar a verdade, não. Uma previsão nada esclarecedora a meu ver, e só serviu
pra criar dúvidas - Vanhardt coçava os pulsos e tornozelos.
N ão me surpreende o seu pensamento ter sido parecido com o meu, pelo
menos à princípio. S ó que dias meditando sobre o assunto, acabaram iluminando
as minhas idéias. O oráculo deixou claro, na primeira parte da previsão, que eu não
deveria enfrentar Mondovar e sua tropa até que você retornasse. Você é um
"Elohim", ou filho dos deuses, e nossa única chance de vitória. O resto da profecia
se relaciona àquele cubo, que além de ser uma chave para o obelisco, servia para o
traidor me espionar. S orte eu ter desvendado isso antes que fosse tarde, e pude
cobri-lo para que não fosse observada além do necessário. A terceira parte da
previsão é a pior delas. Como já era de suspeitar, Mondovar mantém S elena em
cativeiro, e deve ter se utilizado de artes negras poderosíssimas para arrancar
informações de sua esposa, meu filho. Tão fortes, que talvez o único jeito de
libertá-la será...
... matá-la! - Vanhardt completou a frase da mãe, com o rosto tomado por
surpresa. - Deve ter um outro jeito mãe, não é possível!
Talvez tenha, porém não o conhecemos por enquanto. Compreende o poder de
nosso inimigo? S ua crueldade não obedece limites. Você precisa retornar para casa,
e preparar a defesa de Crivengart. S egundo meus informantes, Mondovar estará
aqui em menos de uma semana. A ssim que for possível enviarei ajuda. A h, falando
em ajuda, Lila está descansando em meu castelo. N ão foi difícil recuperar suas asas
e o seu poder, mas ela ainda está muito cansada. S ó não entendi a natureza de um
pedido muito estranho que ela me fez.
Que pedido?
É segredo, Lila insistiu para que eu não o revelasse. Q ue seja! Enfim, Vanhardt,
meu filho, espero que este nosso encontro tenha sido suficientemente esclarecedor
para ambas as partes. S e precisar falar comigo novamente, visite o plano astral,
como já fizera anteriormente. Garanto que dessa vez será muito mais fácil - Léia
sorriu gentilmente, e desapareceu no meio de uma fumaça branca, deixando
Vanhardt refletir sobre a conversa. Ele olhou novamente para seus amigos Pepenjis
mortos, e pensou no que seria de sua esposa. Mondovar não se atreveria...

Longe dali e algumas horas mais tarde, momento em que a noite já cobria toda
a terra do gelo, os pouco mais de duzentos crivengartenses comemoravam a vitória
ao redor de três fogueiras. Eles fincavam espetos na terra obliquamente, a menos
de um metro do fogo, permitindo que as grossas coxas de ovelha fossem assando
aos poucos, com apenas o calor. Um barril de cerveja fora aberto, e era servido em
grandes canecas de ferro. Rufus aproximou-se montado num cavalo negro, de pêlo
devidamente escovado e porte robusto, seguido por dois amigos que também
montavam garanhões. Puxando as rédeas e obrigando o cavalo a parar, ele passou a
cutucar os aldeões com as esporas, e a gritar com eles:
Ei, o que deu em vocês? Esqueceram-se de que Mondovar pode estar aqui a
qualquer momento? Não é hora de festejar, e sim de trabalhar!
Mas senhor Rufus, filho de Runcard, estamos apenas alegres com nossa
pequena vitória. A proveitamos até para agradecer a mãe de Vanhardt, pois a deusa
do gelo nos abençoou. - Um velho, cuja boca contava com apenas três dentes
sobreviventes, foi o único que teve coragem para argumentar com Rufus.
Podem fazer isso depois que derrotarmos Mondovar... se isso for possível! - a
última frase não passou de um muxoxo, e Rufus füstigou a fogueira com uma
espada longa, jogando a lenha na neve. D epois desceu do cavalo e passou a jogar as
canecas de cerveja e a carne dos habitantes no chão, gritando para que
trabalhassem.
Uma mão deteve a tentativa de Rufus de empurrar o velho banguela, e quando
o filho de Runcard se virou, pronto para disparar impropérios contra o
intrometido, encontrou o rosto de seu antigo inimigo dos tempos de criança:
Vanhardt. Balbuciando palavras sem nexo, Rufus soltou o velho.
Vanhardt, que bom vê-lo de volta! Inspirado em seu discurso, estava justamente
animando os nossos vizinhos a se juntarem a nós, para construirmos defesas na
vila. Não concorda que seria um abuso festejar quando o perigo está tão próximo?
N a verdade não, Rufus. Eu não concordo. A cho que faz muito bem
comemorarmos a vitória de hoje, mesmo que o dia de amanhã seja incerto. I sso irá
aumentar o moral de nossos amigos, e a noite proverá um descanso que há muito
eles anseiam. Estou certo de que amanhã estarão muito mais dispostos, e renderão
mais do que se passassem a noite trabalhando. Recomendo que você faça o mesmo
- apontando o indicador para a pilha de lenha apagada, Vanhardt disparou uma
bola de fogo do tamanho de uma laranja, reacendendo a pira. O s aldeões deram
vivas, e o velho banguela agradeceu humildemente. - A lém disso, esta talvez seja a
última ocasião de festejarmos. Vai negar isso a eles? - a última frase foi
devidamente baixa, para que apenas Rufus escutasse.
Você tem razão - Rufus se ajoelhou em frente a Vanhardt, e fez sinal com a
cabeça para que os dois que o acompanhavam se juntassem a ele. - Obrigado!
A ceitarei de bom grado seu agradecimento se não se ajoelhar mais - o filho da
deusa do gelo pôs Rufus de pé - N ão sou nem um rei, nem um deus para que me
trate dessa maneira.
É... É claro!
A festa reiniciou, e logo um trio de aldeões trouxe dois tambores e uma flauta, e
passaram a tocar músicas alegres. Vários crivengartenses puxaram os pares para a
dança, e o clima da vila voltara àquele dos anos mais felizes. lovens mulheres
observavam Vanhardt, esperando que ele convidasse qualquer uma delas para a
dança. O rapaz, entretanto, não se esquecera de sua esposa, e não se permitia um
contato mais íntimo com outra mulher. Green, ao contrário, dançava com todas as
humanas que encontrava, e entornava uma caneca de cerveja atrás da outra.
Pegando um pedaço de carne, e olhando ao redor, Vanhardt encontrou Ravina
sentada sobre um bloco de pedra negra, ruína do obelisco, perto de uma das
fogueiras. Ele juntou-se à Guardiã, oferecendo um pedaço de carne, e perguntando:
Ravina, você viu meu pai? Ele não está aqui.
O brigada - agradeceu Ravina antes de pegar um naco da carne. - S eu pai disse
que ficaria com Erick em casa, pois a noite está muito fria. Ele pediu também para
que você ficasse aqui com todos, em vez de voltar para casa. S eria falta de
educação, e como eles também necessitam de você, e vice-versa, a melhor
alternativa é fortalecer esses laços através de uma confraternização.
Meu pai é um homem sensacional - os olhos de Vanhardt derramavam
sinceridade. - Mesmo sozinho, ele conseguiu me criar, enfrentando tantas
dificuldades. E nunca reclamou de nada! Até hoje ele me ajuda um bocado.
Eu notei que vocês dois se dão bem. A liás, lembrei-me agora de sua luta contra
Rogudim, e algo permaneceu sem explicações. Você disse que mesmo se recebesse
um golpe no pescoço, ficaria vivo, em virtude de uma dificuldade de morrer
semelhante aos deuses...
Há!Há!Há! Ah, aquilo foi um blefe. Eu posso ter poderes, mas não desse tipo. Se
não tomar cuidado, posso morrer como qualquer humano comum. Foi uma sorte
Rogudim ter acreditado,
É, foi mesmo. E como soube da traição de Runcard?
A quilo foi mais fácil, Green me contou. O lha Ravina, eu protelei um pouco uma
conversa com você, por temer a sua reação, porém não posso adiar mais. É um
assunto seríssimo.
A Guardiã se escondeu debaixo do capuz, e cruzou as mãos delicadamente.
S empre que ela fazia assim, se fechava, Vanhardt podia sentir uma frieza sendo
irradiada.
Pode falar.
D aqui há cerca de uma semana, o exército do traidor, liderado por Mondovar,
chegará em Crivengart. Será uma batalha como nenhum de nós dois, Green ou Lila,
e muito menos os moradores daqui presenciaram anteriormente. D e fato, o que
realmente me preocupa são os aldeões, que não podem se defender,
Vanhardt, eu já te conheço há algum tempo, e sei quando está rodeando algum
assunto. Como diria Green, "desembucha" - mesmo a piada não eliminou o ar frio
de Ravina.
Certo. Eu não quero que você lute ao meu lado. N em você, nem Green, e
nenhum dos aldeões. Há um celeiro que pode muito bem abrigar todos com folga,
e você ficaria encarregada de defendê-los.
E pretende enfrentar os inimigos sozinho?
Claro que não. Logo minha mãe enviará criaturas para nos ajudar. A inda há
tempo para os preparativos.
Não vejo de onde tirou essa idéia. De qualquer forma não farei o que me pede.
Eu sabia que você iria dar problema.
Escute aqui, meu rapaz, - a Guardiã se levantou e saiu debaixo do capuz,
colocando seus olhos cor de esmeralda tão perto dos de Vanhardt, que quase se
beijavam - problema eu lhe darei se não me deixar pagar minha dívida. D esde o dia
que salvou meu povo, carrego o peso dessa dívida nas costas. A gora que tenho a
oportunidade de me libertar dela, ajudando o seu povo em troca, não recuarei.
Lutarei sim ao seu lado, mesmo que isso signifique a minha morte. Prefiro deixar
de existir a viver sentindo-me culpada, e com a desonra ferindo o meu espírito. E
nada que diga me fará mudar de idéia.
O filho da deusa do gelo chegou a sufocar com tamanha firmeza e decisão que
transbordavam dos olhos da Guardiã. A o mesmo tempo em que se sentia
desapontado por não poder protegê-la, admirava-se pela coragem da guerreira. E
obviamente, ela era uma força importante a ser somada na luta contra Mondovar.
Que assim seja! Tomara que não nos arrependamos depois. Agora vamos cuidar
daquele baixinho verde, que já deve estar tropeçando nas próprias pernas após
tanta cerveja.
Capítulo LIX - Preparativos

A manhã do dia seguinte nasceu num clima totalmente diferente daquele da


noite anterior. O s aldeões estavam tensos, ansiosos, como se algo terrível fosse
acontecer no minuto seguinte. A ressaca de Green obrigava-o enfiar a cabeça na
neve a todo momento, numa técnica que ele inventara para melhorar uma dor de
cabeça, mas nem essa hilária atitude arrefeceu os ânimos vigentes. Vanhardt, não
muito melhor disposto que os outros crivengartenses, chamou Rufus para ter com
ele em particular.
O seu pedido é uma ordem, mestre Vanhardt! - o filho de Runcard baixou
discretamente a cabeça ruiva ao entrar na casa do filho da deusa do gelo que se
tornara um centro de operações.
J á pedi que parasse com isso, Rufus. Pode me chamar de Vanhardt, ou apenas
Van. Tenho uma importante missão para você, se achar que pode cumprir. Gostaria
que chamasse outros três ou quatro homens valentes e que montassem bem, e
fizesse um reconhecimento ao sul de Crivengart. Procure localizar o exército de
Mondovar, e a direção que ele está tomando. Essa informação pode ser crucial para
podermos nos defender adequadamente no caso de um ataque. Consegue fazer
isso?
É claro que sim, mest... er... Vanhardt. S e for pelo bem de Crivengart, trarei as
informações mais completas possíveis.
Ótimo! E tome cuidado. N ão se aproxime demais dos inimigos, pois eu já vi o
que eles podem fazer. Agora vá, e que a deusa do gelo os abençoe!
N ão foi difícil para Rufus achar companheiros que topassem a missão, e depois
de meia hora arrumando cavalos e suprimentos, eles partiram para o sul. A esposa
de Rufus e suas crianças choraram como se ele caminhasse para a morte. Vanhardt
sentiu uma pontada de medo pelo que pudesse acontecer com o filho de Runcard.
Eles foram sim, inimigos quando crianças, mas o tempo foi duro para os dois, e
modelou a personalidade de ambos. Agora eram vizinhos e parceiros.
A primeira linha de defesa contra o exército de Mondovar era bastante simples.
S eria construída uma muralha ao redor de Crivengart, de uma altura de no mínimo
três metros, e a dez passos de distância da periferia da vila. Cavariam também uma
fossa logo atrás da muralha, com cinco passos de largura, e a maior profundidade
possível. Vanhardt esperava que com a muralha e a fossa, os inimigos tivessem
dificuldade de penetrar na vila. Ele planejava travar a batalha fora dos limites de
Crivengart, e terminá-la por lá, de modo que os habitantes se mantivessem seguros
dentro da vila.
A segunda linha de defesa seria um celeiro grande e antigo, mas ainda em uso,
o qual seria desocupado para que pudesse servir de abrigo durante a batalha.
Vanhardt insistiu teimosamente, e por horas, que seria melhor os habitantes se
protegerem no celeiro do que lutar ao lado dele e Ravina. O s homens e mulheres
corajosos o suficientes para o combate, ficariam encarregados de proteger aquele
local. D epois de um pequeno tumulto, todos entenderam que não tinham
experiência em batalhas, e se ficassem do lado de fora das muralhas teriam pouca
chance de sobrevivência.
E essa tal de Guardiã... Ravina, não é? Por que ela vai lutar ao seu lado? Ela é
mulher, e não parece muito forte. - perguntou Evans, desconfiado.
-— N ão vejo problema algum no fato dela ser mulher, e garanto que Ravina é
muito mais forte que você, e tão corajosa quanto qualquer outro, senhor Evans. E
além do mais, ela... hum... ela pode se proteger. - Vanhardt não achou que seria
uma boa hora para revelar a habilidade de Ravina se transformar em Lázaras, o que
poderia assustar as pessoas.
A ssim estabelecido, metade da vila cuidava para pregar tábuas de madeira nas
janelas do celeiro, jogar folhas verdes no teto da construção para que não se
incendiassem facilmente, retirar o trigo e guardar em algumas casas ali perto, com
o objetivo de liberar espaço e também evitar que pegassem fogo. A outra metade
da vila se ocupava de construir a muralha. Thomas ficou encarregado de liderar a
construção da parte norte. Para isso, o pai de Vanhardt liderava um grupo de
pessoas que carregavam destroços do antigo obelisco para o norte da vila,
colocando-os em fila de modo a proporcionar a melhor defesa. Utilizavam carroças,
cavalos, e até as mãos para a tarefa. Vanhardt por sua vez tomara para si a
obrigação de construir a parte leste, oeste, e sul da muralha. Greylock, que mesmo
não sendo tão habilidoso quanto Lionel, assumiu a posição de ferreiro quando este
morreu, e se encarregou de produzir armas para os habitantes.
Talvez vocês devam ter achado estranho eu afirmar que o filho da deusa do gelo
construiria o maior pedaço da muralha, e não citei se ele teria ajuda. N a verdade,
ele faria tudo sozinho, enquanto os outros cavariam a fossa. S im, eu disse sozinho.
Utilizando uma das primeiras magias que aprendeu, Vanhardt criava lanças de
gelo (estas com três metros de altura, e dois palmos de largura) e fincava-as no
solo, deitadas pra frente, numa espécie de paliçada, só que de gelo. A lguém dissera
pra ele que aquilo era feito, no caso, com madeira, em batalhas, principalmente
para se defenderem da cavalaria. O filho da deusa do gelo se inspirou na idéia, só
mudando a matéria prima. Fez questão também de não deixar um espaço maior
que um palmo de distância entre as lanças, de modo a não permitir que qualquer
coisa passasse entre elas. D e meia em meia hora o rapaz sentava-se para descansar,
e levantava-se assim que se restabelecia para continuar a construção.
Logo atrás dele, Ravina e Green ajudavam outras cinqüenta pessoas a cavar a
fossa atrás das lanças de gelo. N ão havia pás para todos (Greylock também ficara
encarregado de fabricá-las), e assim, aqueles que nãos as tinham, improvisaram
pedaços pontudos de madeira, e iam afofando a terra na frente dos outros que
cavavam. A pós um dia inteiro de trabalho, cerca de um décimo da muralha já
estava de pé, mas apenas a metade disso em relação à fossa.
N ão sei se teremos tempo para construir tudo em menos de uma semana.
Mondovar chegará aqui antes do muro estar terminado! - comentou Evans em uma
reunião no centro de operações, na qual contavam quinze representantes da vila.
D eixe de ser pessimista, homem! A manhã Greylock terá terminado mais pás, e
a fossa será acelerada. Q uanto à muralha, acho que seria melhor abandonar os
pedaços de obelisco, muito custosos para carregar, e cortarmos árvores para dispor
ao lado das lanças de gelo. - Thomas era o mais respeitado, depois de Vanhardt, até
mesmo por ter sido um dos três conselheiros da vila.
Árvores? Cortar árvores? I sso sim demoraria muito mais! - exaltou-se uma
mulher no fundo. - E onde está a ajuda que a deusa do gelo prometeu?
Vanhardt levantou-se e se dirigiu para o centro do círculo formado pelas quinze
pessoas presentes, olhando no rosto de cada uma. S entia o peso da
responsabilidade nos ombros; a vida deles dependia substancialmente de seus
esforços. Por mais que os aldeões se dedicassem, fariam uma diferença muito
limitada se os compararmos com as gigantescas tropas de Mondovar. N ão
possuíam, como ele, poderes divinos capazes de alterar consideravelmente os
rumos dos acontecimentos.
Por favor, atenção. N ão vamos nos desesperar, devemos nos ater a uma questão
mais importante. A muralha e a fossa, além do celeiro, foram ótimas idéias que
tivemos para proteger a vila. Temo, contudo, que isso não seja suficiente para
barrar o avanço de Mondovar. Precisamos de algo muito maior e mais forte do que
temos para ousar pensar numa vitória.
Maior? A lgo MA I O R? S eu filho está louco Thomas, não estamos dando conta de
fazer o mínimo e o garoto quer mais! - Evans socou uma mesa.
Evans, se não parar com esses comentários derrotistas será retirado daqui! J á
estamos preocupados o suficiente; não precisamos agora de alguém que só pensa o
pior buzinando nos nossos ouvidos. Pessoal, eu sei que contam muito com minha
mãe, a deusa do gelo, porém quanto a isso não haverá decepção. Minha mãe
sempre cumpre suas promessas. A ajuda virá quando for possível! A gora, vamos
nos concentrar...
Possível? E se o possível for depois que Mondovar tiver nos massacrado? - dessa
vez foi uma jovem moça que reclamou.
É isso mesmo! - outras vozes se somaram, e uma grande confusão se espalhou
pela casa de Vanhardt.
A noite se esticou sem que nada de novo fosse acrescentado, apenas queixas de
falta de comida, de pás, brigas das crianças, e outros acontecimentos
insignificantes. O s presentes voltaram para suas casas desanimados, temendo
terem feito a pior de suas decisões ao desafiarem Mondovar. Green e Ravina
tentaram consolar Vanhardt, mas esse parecia especialmente abatido:
Eles só sabem reclamar! N ão comentam o que há de bom, como o celeiro que já
está adiantado!
Meu filho, eles estão com medo - Thomas sentou ao lado do filho, e encostou o
indicador no peito dele. - Eles não enfrentaram desafios tão grandes quanto você, e
nem se sentem especiais. N a verdade todos acham que irão morrer assim que
Mondovar chegar. O seu papel, como filho de uma deusa, é justamente dar-lhes
esperança, como naquele discurso que fez assim que destruiu o obelisco.
Está certo, pai...!
Com as palavras de seu pai na cabeça, Vanhardt decidiu encontrar com a mãe
no astral. O pequeno Erick estava aos cuidados de uma vizinha, que adorava
crianças, e por isso ele não tinha que se preocupar com os choros noturnos do filho.
Entrou no seu velho quarto, e ajeitou-se confortavelmente na cama, imaginando
que sofreria algum tempo para conseguir se libertar do corpo físico. A o contrário
de seus temores, e exatamente como Léia afirmara, dessa vez ele conseguiu sair
facilmente do corpo, e não perdeu tempo, dirigindo-se imediatamente para o
castelo de cristal.
Ele nunca descobrira a localização exata do castelo de sua mãe, apenas que era
sobre as nuvens, e ao norte da terra do gelo. É certo que poderia se concentrar para
ir diretamente para o salão do trono, só que dessa vez não queria isso. Estava
cansado, e precisava de algo para acalmar seu espírito. Atravessou as paredes de
sua casa, abriu os braços, e passou a voar cada vez mais para cima, seguindo os
ditames de seu coração. S empre que se encontrava naquele plano diferente do
físico, sentia um magnetismo no ar, mas não opressivo como o emitido pelo
obelisco. Era como se a magia estivesse em contato com cada célula do seu corpo,
ou melhor, em cada partícula de sua alma. A magia no seu estado mais puro. O
tempo também parecia volátil ali, e por isso difícil de ser mensurado (horas
podiam ser minutos, e vice-versa), por isso não conseguia saber dizer quanto
tempo se passara quando viu uma construção erguendo-se logo à frente. Brilhava
como o próprio sol, mas em todas as cores possíveis, um verdadeiro arco-íris. A luz
que tocava o corpo de Vanhardt era fria e acolhedora, assim como a presença de
sua mãe. Encantou-se com a beleza de incontáveis torres (cem talvez?), todas feitas
com cristais, uma ponte que dava acesso à entrada principal que parecia ser de
diamante e tinha a largura da vila de Crivengart. O portão era um espelho
gigantesco, refletindo as nuvens à sua frente, e proporcionando um disfarce pouco
efetivo, pois o resto da construção era opulenta e grandiosa.
S eguindo seus instintos, ele atravessou as paredes, cruzou corredores quentes e
outros frios, e passou algumas portas até chegar ao salão do trono. S ua mãe
ajeitava um vaso de flores quando o viu chegar, sorrindo discretamente.
Não falei que seria mais fácil vir aqui?
É, mãe. Você sempre acerta.
Q uisera eu ser assim. Um elogio que não corresponde à verdade, mas que
agradeço de qualquer modo!
Mãe, como das outras vezes, venho aqui com um pedido. É uma pena que esse
seu filho só sirva para importuná-la! Meus vizinhos estão com medo, pois a
construção de nossas defesas está demorando muito mais do que o imaginado. S e
as previsões de que Mondovar chegará em uma semana estiverem corretas,
terminaremos em cima da hora. E eu acho que só aquela muralha e a fossa, além do
celeiro, não serão suficientes.
Entendo. Q uanto a isso não se preocupe, pois estive ocupada com umas
improvisações em meus ajudantes de jardinagem, e amanhã estarão prontos. Eu
acho que a nossa maior atribulação se resume à outra questão. Essa sim digna das
maiores preocupações. Havia eu colocado nossos melhores espiões, uma dupla de
lobos brancos, no encalço do exército de Mondovar, mas especificamente hoje não
recebi nenhuma notícia deles, como aconteciam todos os dias. Mandei outra dupla
atrás deles, e infelizmente só encontraram corpos jazidos na neve...
Err... desculpe-me, mãe, mas esse é mesmo um problema sério? N ão querendo
me desfazer da importância dos lobos que faleceram, mas esses outros poderiam
ocupar o lugar deles, não? E na guerra sempre ocorrem baixas.
S im, baixas acontecem, e os dois poderiam assumir o papel de espiões. O
grande problema é que eles não encontraram o rastro das tropas, e admito que não
são piores rastreadores do que os que faleceram. A lém disso, é muito difícil
esconder a passagem de um exército daquela conjuntura. A ssim, acredito que
Mondovar fez algo que alterou sua posição. Eles podem estar em local
completamente distinto, e poderão nos atacar de uma posição que não
esperávamos, como do norte. A minha experiência, contudo, diz que essa não é sua
intenção. N a verdade, Mondovar apenas cuidou para encurtar a distância, por um
meio que eu desconheço, e provavelmente estarão marchando sobre Crivengart em
menos que uma semana. Talvez até na metade desse tempo. A preocupação maior
desse ser maligno não é nos surpreender atacando de uma posição diferente, mas
sim muito mais cedo do que imaginávamos.
Se for assim...
S e for assim estaremos encrencados - a deusa do gelo impediu que o filho
dissesse algo muito pessimista. - E isso não é tudo. Como julgávamos que o prazo
seria de uma semana, eu acelerei o processo de hibernação de minhas criaturas,
para que elas nascessem antes disso, e o ajudassem na batalha. S e Mondovar
aparecer aqui antes de uma semana, porém, não vejo o que posso fazer. A
aceleração da hibernação já me custou a morte prematura de algumas criaturas, e o
risco de que algumas nasçam com problemas. S e eu tiver de repetir o processo,
pode ser que nenhuma esteja em condições de batalha.
O filho da deusa do gelo não sabia como reagir, e apenas ficou de pé, parado.
Ele e sua mãe ainda conversaram por algum tempo, sobre detalhes da construção
das defesas, e os planos de Vanhardt para fazer algo que proporcionasse uma
proteção mais efetiva, e que realmente causasse danos à Mondovar e suas tropas.
A inda tiveram tempo para discutir frivolidades, como as palhaçadas de Green, ou a
inteligência investigativa de Ravina. Vanhardt quis saber como Lila estava, e sua
mãe disse que passava bem, mas se recusava a sair do quarto onde estava. Q uando
indagada por que, a deusa do gelo não soube explicar exatamente. A fada sentia-se
envergonhada por alguma coisa, não revelando maiores detalhes. Q uando
Vanhardt ameaçou ir vê-la, Léia impediu, deixando claro que a fada insistiu em não
ser vista, principalmente por ele.
Vanhardt voltou para o seu corpo, e o conforto de sua cama, com a cabeça cheia.
Mondovar se mostrava mais astuto que podia-se supor, e agora sua amiga agia
como uma criança mimada. A vila não iria gostar nada das notícias, e ele decidiu
não contar a ninguém antes de ter certeza das movimentações de seu inimigo.
Q uanto à amiga, não se preocuparia em encontrar com ela. Talvez fosse melhor a
fada, que andou agindo de modo estranho nos últimos tempos, passar algum
tempo sozinha. E assim, o filho da deusa do gelo adormeceu.
Capítulo LX - Um Incerto Prelúdio

O s crivengartenses se levantaram com o humor melhor na manhã seguinte,


segundo alguns relatos, devido a uma misteriosa brisa que adoçou o sono de todos
eles. Vanhardt voltou ao trabalho pensando em como sua mãe era perspicaz, e
certamente, com uma deusa como ela abençoando a vila, mesmo Mondovar e o
traidor teriam sérias dificuldades em vencê-los. N a metade da manhã, O swaldo
apareceu em seu cisne branco, carregando uma sacola azul de seda, de onde
pularam uma dúzia de esquilos, com o nariz vermelho e brilhante, e cujas patas
dianteiras apresentavam garras metálicas do tamanho de uma palma humana.
O s Hurqxes nunca, nunquinha, nunca mesmo, tiveram um desafio tão grande
pela frente, por isso sua mãe concedeu-lhes essas garras, para que cavassem
melhor. Eles cuidavam dos jardins da magnífica deusa do gelo, que, diga-se lá, não
chegam aos pés do que você pretende fazer aqui. I sso sim é um desafio, sim, sim,
sim!
Mal chegaram e as criaturinhas já pareciam saber exatamente o que deveriam
fazer. Mergulharam na fossa, assustando os moradores que ali trabalhavam, e
imediatamente começaram a jogar quilos e mais quilos de terra para fora do
buraco. Em poucos minutos, a fossa já havia crescido o mesmo tanto que os
moradores gastaram para cavar em um dia inteiro. A dmirados com a capacidade
dos Hurqx, a maioria dos trabalhadores abandonou a sua tarefa, preferindo ajudar
na fortificação do celeiro. Green foi um dos que jogou a pá para o alto, e sentou-se
numa pedra limpando um suposto suor no rosto.
A h, agora que esses bichinhos chegaram acho que podemos descansar. Eu
realmente mereço um repouso!
Podemos ajudar a aprontar o celeiro - disse resolutamente a Guardiã para o
duende.
Deixa de ser estraga prazeres, lagartona. Você é muito certinha! Senta aí e relaxa
também.
Ravina limitou-se a se dirigir para o celeiro e oferecer ajuda. Enquanto isso,
Vanhardt continuou a fincar lanças de gelo no chão, procurando não se distrair
com a novidade. O dia transcorreu com ânimos exaltados, e os trabalhos se
encerraram quando o sol se pôs. Mais da metade da fossa fora cavada e o celeiro
precisava apenas de alguns detalhes, como armadilhas para urso que seriam
disfarçadas no chão, porém sinalizadas a fim de que nenhum desavisado
acidentalmente ficasse preso. Vanhardt se acostumara com o ritmo do seu serviço
e, portanto, rendera o dobro do dia anterior. S omado aos esforços de Thomas e sua
equipe no lado norte, completaram quase dois quintos da muralha. A reunião no
centro de operações foi muito mais tranqüila e otimista, e em menos de meia hora,
quinze aldeões voltavam para suas casas, plenamente satisfeitos.
O dia seguinte foi semelhante ao anterior, com otimismo renovado, e um ritmo
acelerado nos trabalhos. Uma brisa fresca soprava quando o sol se encontrou na
metade do céu, e com ela uma surpresa veio alterar o rumo dos acontecimentos.
Rufus e três companheiros entraram galopando disparados na vila, como se
fugissem de alguma coisa, perguntando pelo filho da deusa do gelo. N ão foi difícil
encontrar Vanhardt, que se assustou com o retorno precoce dos batedores.
Por que retornaram tão cedo? - perguntou Vanhardt incrédulo. - Faz pouco mais
de dois dias que saíram, não me digam que...
—A s notícias são as piores possíveis, mestre Vanhardt, digo... er... Vanhardt. -
interrompeu Rufus descendo de seu cavalo, e tentando se esconder de olhares
curiosos. - Lutamos até mesmo contra nossos olhos, acreditando que éramos
vítimas de uma malévola ilusão, mas infelizmente estávamos errados. Exatamente
após um dia e meio de galope, assim que saímos da vila, preparávamos para descer
uma colina, quando fomos surpreendidos por uma visão que por pouco não nos
derrubou de nossas selas: um exército, formado por cerca de dez mil criaturas que
pareciam saídas do reino do mal, marchavam sob a planície. Mesmo de longe
pudemos perceber que eram os mesmos que estiveram aqui anteriormente, com
suas capas negras encobrindo um corpo esquelético e presença macabra. Tambores
ribombavam num ritmo sinistro, que apesar de trazer angústia aos nossos
corações, incentivavam aquelas tropas a marcharem com mais fervor. A lém disso,
uma máquina difícil de ser descrita, estava no meio deles. Era como uma
carruagem, porém vinte vezes maior do que qualquer uma que conhecemos.
Forrada de metal em todos os cantos, e com um par de chifres de marfim, do
tamanho de pinheiros, incrustados na frente do veículo. A s rodas também eram de
metal, não menores do que uma casa, e possuíam espículas saindo de suas laterais.
N o teto, um trono feito de ossos servia de assento para aquele que parecia ser o
líder deles.
Rufus, o que acaba de me dizer é terrível - comentou Vanhardt com a cabeça
baixa, meditativo. - S e calcularmos que vocês demoraram cerca de um dia para
voltar, podemos esperá-los aqui amanhã mesmo, no máximo depois de amanhã!
Exatamente, senhor. Gostaria de aproveitar para avisar a minha família da
situação, e...
D e jeito nenhum, Rufus! - interrompeu o filho da deusa do gelo, olhando para
os lados, preocupado. - Essa é uma informação que se cair nos ouvidos de nossos
vizinhos colocará a vila em alvoroço - emendou o jovem sussurrando. - N ão
queremos que eles se assustem antes da hora, e desistam de terminar os trabalhos.
Precisamos de todos animados, e não desesperados. Leve seus amigos para fora de
Crivengart, não importa onde, e só volte aqui depois do anoitecer. Até lá os
serviços já estarão adiantados, e assim poderemos contar a verdade a todos.
Enquanto isso, cuidarei de avisar minha mãe.
O filho de Runcard concordou com a cabeça, e novamente subiu em seu cavalo,
acertando as esporas nos flancos do animal e partindo em disparada, seguido por
seus companheiros. Vanhardt procurou por O swaldo, que naquele momento
ajudava Thomas, e chamou-o para um canto.
Por favor, O swaldo, preciso que alerte minha mãe imediatamente. D iga a ela
que Mondovar está a cerca de um dia de distância de Crivengart, e conta com dez
mil soldados. Eu tentarei acelerar a construção da muralha.
I sso é realmente terrível, terrível! I rei conforme suas ordens, oh destemido
Vanhardt!
O assistente da deusa do gelo desamarrou as rédeas de seu cisne branco, que
estava acomodado no estábulo, e voou em direção ao norte. Logo alguns
crivengartenses se aproximaram de Vanhardt, perguntando se não era Rufus que
eles viram galopando pela vila. O jovem inventou alguma desculpa esfarrapada,
algo relacionado a dificuldades enfrentadas por Rufus em sua jornada e retornado
para se reabastecer de suprimentos. Vanhardt não perdeu tempo e voltou para seu
trabalho com as lanças de gelo, fugindo de mais perguntas embaraçosas.
A o cair da noite, toda a fossa estava concluída; além disso, a muralha formada
pelas lanças de gelo e pedaços do antigo obelisco precisava de apenas alguns
metros para fechar um círculo em torno de Crivengart. O celeiro, por sua vez, já
tinha sido finalizado naquela tarde, e os moradores abasteciam-no de água e
alimentos. Greylock, que após a chegada dos Hurqxes não precisou mais fabricar
pás, agora recebia a ajuda de moradores, e forjava espadas e escudos improvisados.
S omavam-se vinte pares no total. N um trote mais lento, Rufus e os outros três
companheiros chegaram à vila, e involuntariamente atraíram a atenção dos aldeões
que não mais se viam ocupados com suas obrigações. Uma multidão foi se
formando ao redor dos quatro, ansiosos por novidades, e Rufus esperou um sinal
para que pudesse informar as terríveis notícias.
Como esperado, um rebuliço tomou conta da vila, imersa em gritos abafados
assim que Rufus terminou de falar. O filho da deusa do gelo pediu a todos que se
acalmassem. Ele e sua mãe já previam aquela alteração nos planos, e estavam
preparados. Era necessário, naquele momento, que todos os moradores se
concentrassem em levar os pertences íntimos para o celeiro, e lá se estabelecessem.
A pesar de ele ser grande, e capaz de abrigar a todos, precisariam de atenção e bom
senso para não carregar objetos desnecessários e entupirem o local. S em perder
tempo, as mães empurraram as crianças para o abrigo, como se Mondovar fosse
chegar na mesma noite à Crivengart. O s pais, não menos desesperados, fechavam
as suas casas e pregavam tábuas nas portas e janelas, tentando promover alguma
proteção aos seus lares que ficariam à mercê dos invasores.
S enhor Vanhardt, por favor! - J úbia, a mulher de peso pouco acima do ideal, e
que tomava conta de Erick, se aproximou com o bebê no colo. - Você gostaria que
Erick ficasse comigo e as crianças no abrigo? Eu acho que posso tomar conta dele.
Tenho certeza de que sim, J úbia - o filho da deusa do gelo deu um beijo nas
bochechas do menino, e tocou o ombro da vizinha. - É uma pena eu não poder
passar mais tempo com meu garoto, mas acredito que ninguém poderia cuidar dele
melhor do que você. Seria uma honra se cuidasse dele pra mim no celeiro.
A babá de Erick enxugou algumas lágrimas no rosto, e voltou comovida para
sua família, apressando-os a carregar seus pertences até o abrigo. A vila de
Crivengart nunca esteve tão movimentada, mesmo em seus mais de quinhentos
anos de existência. Era um mar de pessoas seguindo ora para cima, ora para baixo,
trombando, caindo, levantando, chorando, gritando. O colchão branco de neve que
sempre se fazia presente, devido ao clima abençoado da terra do gelo, dessa vez se
misturava à terra castigada por centenas de passos e em poucos minutos,
transformou-se num lamaçal que dificultava ainda mais a locomoção. Fugindo do
tumulto, Vanhardt coincidentemente encontrou Ravina alguns metros além da
parede sul de gelo. Ela estava sentada sobre uma rocha quadrada, e por pouco não
foi vista pelo filho da deusa do gelo, devido à escuridão de uma noite sem lua.
Vanhardt sentou-se do lado da Guardiã, colocando a cabeça entre as mãos,
meditativo.
S abe... - começou Ravina olhando para frente, sem mirar nada específico. -
A pesar de ter sido agraciada com essa benção-maldição de Lázarus, e me julgar
forte, acho que nunca fui preparada para enfrentar uma situação como essa. Em
minha vila, mesmo sem saber que eu podia me transformar em lagarto, todos
diziam que eu era a "guerreira sem medo", devido ao meu estilo de luta. S e naquela
época eles estavam certos, eu não sei dizer, porém nesse exato momento o apelido
nunca caiu pior. Há um frio estranho em meu estômago, e sinto como se meu
coração fosse pular da garganta. Mal consigo engolir a saliva. Vanhardt... - ela então
mergulhou seus olhos nos do filho da deusa do gelo - eu estou com medo! N ão
consegui ficar dentro da vila, com todas aquelas pessoas olhando pra mim. Elas
querem que eu devolva confiança pra elas, mas meu medo impede qualquer ação
nesse sentido. O lhe minhas mãos - Ravina abriu a mão, esticando bem os dedos, e
Vanhardt pôde ver que ela tremia. - Está assim há algumas horas. N ão pára de
tremer, não importa o que eu faça.
Ravina - o filho da deusa do gelo segurou firme a mão da Guardiã, transmitindo
um calor apaziguador, e fazendo-a parar de tremer instantaneamente. - Você não
precisa lutar, eu já disse. Ficaria feliz se fosse para o celeiro, e protegesse meus
vizinhos. Eu posso cuidar de tudo aqui fora.
N ão, você não pode - a Guardiã carinhosamente desvencilhou sua mão das de
Vanhardt, e enfiou-a debaixo do manto, envergonhada. - A lém disso, acho que não
entendeu o que eu quis dizer. N ão estou com medo de enfrentar aquelas criaturas,
e muito menos de morrer. Laodicéia guia o meu destino, e se eu perecer, sei que
terei cumprido a minha missão. Tenho medo de não conseguir ajudar você, sua
família e seus amigos, tenho medo de não ser forte o suficiente para pagar a minha
dívida. Você é filho de uma deusa, e seus poderes são maiores que o de qualquer
mortal. Mas eu sou apenas uma humana, com uma habilidade incomum.
Vanhardt queria dizer para ela que tudo aquilo era bobagem, e que Ravina
poderia se virar muito bem, entretanto não foi capaz de mentir. Ele não sabia se,
com todos os seus poderes, ele próprio seria capaz de defender a vila. A inda mais
com o fato de sua mãe se vir obrigada a acelerar a incubação outra vez, correndo o
risco de inviabilizar todas as suas criaturas. Talvez estivesse apenas ele e Ravina
contra Mondovar e todo o seu exército. E se fosse assim mesmo, não haveria
possibilidade de vitória.
O filho da deusa então tentou sorrir, mas seu rosto ficou mais próximo de uma
careta do que de um sorriso. S entia-se só, vazio, como se estivesse dentro de um
buraco profundo, e não houvesse ninguém para esticar-lhe a mão. Estava feliz por
Ravina lutar ao seu lado, porém nem mesmo ela poderia fornecer aquilo que o filho
da deusa do gelo queria. D e repente, ele viu Green zanzando pelas redondezas, e
resolveu chamar o duende:
Ei, verdinho, você se perdeu? A vila fica pra lá! - debochou Vanhardt apontando
para Crivengart.
E óbvio que não! Estou procurando Clotilde, você por acaso a viu?
A galinha? Não Green, faz um bom tempo que não a vejo...
Eu também não a vi... - comentou Ravina.
Pois é, e nem eu! Estou preocupado com ela.
Talvez tenha se escondido em algum lugar, para fugir da batalha.
S e for isso, ela é mais esperta do que nós dois, hem, hem! Van, agora que estou
reparando, sua mãe não vai lhe fornecer nenhuma armadura divina?
A rmadura divina? A cho que não, Green. Custei a adquirir uma arma, que dirá
uma armadura...
É, tem razão, elas são realmente raras. Até mesmo entre os deuses são poucos
os que têm condições de usar uma armadura divina. Fiquei sabendo que as
melhores proteções são as de J ustus, S alazar e N úbia. Mas se você conseguisse
uma, ficaria protegido contra qualquer dano físico, e grande parte dos danos
mágicos!
A cho que a minha mãe é daquelas que usam armaduras mais simples, porque
nunca a vi com nenhuma. E provavelmente não sobrará muita coisa pra mim.
Pois bem, o papo está bom, mas eu preciso continuar procurando aquela
galinha. Pode estar sentindo frio a coitada. Boa sorte para nós amanhã! Pra você
também Ravina!
Boa sorte, Green.
Boa sorte, verdinho safado! - disse o filho da deusa do gelo logo após a Guardiã.
D epois de Green ir embora, Vanhardt virou seu rosto para o lado, e pôs-se a
encarar a periferia sul da vila. S eria por ali que Mondovar provavelmente viria,
marchando com suas tropas, quem sabe se não dali a algumas horas? D e repente,
uma idéia assaltou-lhe os pensamentos. Há alguns dias ele já vinha tentando
imaginar uma defesa que pudesse causar mais estragos ao contingente de seu
inimigo do que uma simples muralha de lanças e uma fossa, e agora inspirado, ele
se deparara com a idéia.
— Ravina, você é uma das mulheres mais incríveis que já conheci. Confie em si
mesma! - ele se levantou da pedra, e piscou para a Guardiã, dessa vez com um
verdadeiro sorriso. - Tenho uma coisinha para fazer agora, mas adorei conversar
com você. E pode ter certeza que não é a única que está com medo... A inda me
sinto meio nauseado! - o filho da deusa do gelo despediu-se da Guardiã, e voltou
correndo para Crivengart.
A lgumas horas depois, todos os habitantes da vila se encontravam instalados
no celeiro. Meia dúzia de homens, liderados por Rufus, faziam patrulha próximos à
vila. Uma sopa de legumes com pedaços de carneiro era servida dentro do prédio,
cujos aldeões saboreavam com paciência e veneração. S eria talvez sua última
refeição antes da batalha, e quem sabe, da morte de todos. Um som de grande
magnitude foi ouvido em determinado momento, e vinha pelo lado sul de
Crivengart. Era como se uma avalanche houvesse deslizado por uma montanha, e
depois interrompida em seu percurso, pois o barulho não durou mais que meio
minuto. A lgumas crianças gritaram aterrorizadas, e suas mães tentaram acalmá-
las. N inguém ali dentro se atrevia a ir ver o que era, mas rezavam para que não
fosse o impiedoso Mondovar e seu exército.
Capítulo LXI - A Defesa pela Liberdade Jamais esteve tão em Guarda

Lorehardt era o terceiro filho mais velho de Evans J andeler. O sol mal deitava
seus primeiros raios dourados sobre o horizonte e o filho mais impetuoso de Evans
se esgueirou atrás de uma casa próximo à parede sul da muralha de gelo, de onde
podia enxergar através das frestas das lanças. D eixou seu escudo e espada
roubados da vila sobre a neve, murmurando impropérios relativos ao
equipamento. A s armas produzidas por Greylock eram de qualidade muito inferior
àquelas que Rufus, S tevens, Bolha e Tagh carregavam. Era verdade que as espadas
portadas pelos melhores guerreiros da vila foram compradas no mercado de
D aicevalor, mas bem que o velho Greylock podia se esforçar para fazer itens mais
bem acabados. N aquele momento, tudo que Lorehardt queria era se dedicar a
pensamentos inofensivos como esses. D esde a madrugada, quando o som agudo
do sino colocado no centro da vila alcançou os ouvidos dos pouco mais de duzentos
aldeões, indicando que Mondovar e seu exército haviam chegado, e ao mesmo
tempo pondo o lugar enlouquecido, o filho de Evans não se sentia bem.
D iferentemente de seu pai, um covarde na opinião de Lorehardt, ele queria fazer
como Rufus, S tevens e os outros. S ubir num cavalo, pegar uma espada ou um
machado, e lutar contra qualquer criatura que invadisse sua vila.
O barulho dos tambores ribombando longe, talvez dois ou três quilômetros, e
uma visão fragmentada, montada pelos retalhos das frestas entre as lanças de gelo,
de um exército que ocupava quase todo o horizonte, aumentaram a ansiedade de
Lorehardt. Enxugou o suor da testa com a manga da camisa, e respirou
profundamente, tentando abrandar as batidas nervosas de seu coração. Voltou sua
mente para os pensamentos inocentes. O pai de Lorehardt nem ousara convencer
seus dois irmãos mais velhos a não irem para a batalha, mas só faltou amarrar o
garoto na cama. D elmécius era apenas cinco anos mais velho que ele, e Karl, dois!
A lém de tudo com dezesseis anos de idade ele já era um adulto para os padrões da
terra do gelo. A desculpa de que deveria ficar dentro do celeiro, para proteger suas
irmãs e a mãe ao lado do próprio Evans era obviamente fruto da covardia. D isposto
a não manchar a honra de sua família, o rapaz roubou uma espada e escudo
displicentemente encostados a uma parede do celeiro, provavelmente esperando
pelo dono que se despedia da esposa ou filhos. O lhando para os lados, e
percebendo que os outros estavam ocupados demais para notar a sua fuga, ele saiu
do celeiro e correu para perto da muralha sul, de onde agora podia avistar o
exército inimigo.
D epois de esticar o pescoço, e fixar os olhos, ele conseguiu enxergar Vanhardt.
Esse sim era um verdadeiro herói. Q uando Lorehardt estava ajudando os outros a
preparar o celeiro, ouviu boatos de como antigamente o filho da deusa do gelo era
ignorado, e por vezes maltratado pelos aldeões. E, no entanto, mesmo depois de ter
passado por essas mazelas, ele colocava sua vida em risco mais de uma vez para
salvar os vizinhos. O filho da deusa do gelo, seu campeão, estava quieto, com a
poderosa Flama fincada no chão, e olhando para os inimigos, enquanto uma leve
brisa insistia em manter seus cabelos atrapalhados. S erá que Vanhardt não sentia
medo? Lorehardt achava que não.
O som dos tambores só fez aumentar, e Lorehardt podia ouvir os passos dos
soldados e o farfalhar das armaduras, abafados por gritos e a gargalhadas
macabras. Um nó se fez na garganta do garoto quando este viu o que dali a poucos
minutos poderia estar passando por cima da muralha. O exército inimigo era
realmente muito grande, e se tornou impossível ver os soldados que estavam nos
extremos leste e oeste da linha de frente, devido à distância. A lém disso, uma força
sinistra, parecida com aquela que os oprimia quando o obelisco estava de pé,
porém vinte vezes mais poderosa, pesava sobre os ombros do garoto.
D e repente, começou a se sentir nauseado, e logo um jato de vômito jorrou da
sua garganta maculando a neve e formando uma poça. S eus membros tremiam, e
um vazio tomava conta de seu peito, esmagando o pequeno coração do garoto.
Ele continuava ouvindo os tambores e o marchar dos inimigos, principalmente
suas gargalhadas, que era o pior de tudo. D epois de vomitar novamente, um suco
ralo, esverdeado, fruto de um estômago vazio, sentou-se no chão com lágrimas nos
olhos, e segurando a cabeça com as mãos. S entia medo, muito medo, e achava que
nada conseguiria tirá-lo dali. Tinha medo de morrer, e sabia que esse seria seu
destino se ali permanecesse. Como Vanhardt e aquela mulher, a Guardiã, tinham
coragem de enfrentar sozinhos todos os inimigos? Lorehardt começou a chorar e
soluçar, agradecendo no fundo de seu coração o filho da deusa do gelo e seus
amigos. D epois bochechou um pouco de neve para tirar o gosto de vômito, e
levantou-se, ainda tremendo. Rapidamente pegou a espada e escudo estirados no
chão, e correu furtivamente entre as casas, para não ser visto, voltando para o
celeiro e a sensação de segurança.
Lá dentro, D ona Lavínia, uma mulher seca e rancorosa, se encontrava sentada
com os braços cruzados sobre o peito. Até hoje ela remoía mágoas a respeito de
Runcard, seu parceiro de maquinações. A quela raposa velha fugiu da vila quando
se viu ameaçado, e nunca mais deu as caras, deixando ela ali, sozinha. N em mesmo
o apoio de seus filhos, como Evans, a deixava confortável. S abia que todos na vila a
olhavam de lado, assim como faziam com o filho da deusa do gelo antigamente.
A quele rapazinho atrevido se achava o salvador do mundo, e havia condenado
Crivengart à completa destruição. Certamente todos no celeiro seriam meros
cadáveres dentro de algumas horas, quem sabe minutos. S e seus vizinhos não
fossem tão burros, e enxergassem o mal que aquele falso filho de uma deusa trazia,
já teriam expulsado-o, além do pai e do bebê.
A velha, extremamente perspicaz, não teve dificuldades para notar seu neto,
Lorehardt, um rapazinho curioso e ordinário, entrar no celeiro tentando se
disfarçar entre tábuas soltas. Logo o garoto estava sentado ao lado da mãe, Mirtes a
inútil esposa de seu filho. S ua nora era tão incapaz de criar filhos que por causa
disso produzia aberrações como Lorehardt, que às vezes pensa ser o dono do
universo. D ona Lavínia sentiu um frio percorrer sua espinha, deixando-a inquieta,
assim como os outros aldeões, que repentinamente começaram a murmurar, e
algumas crianças a chorar. O fim estava próximo. Mesmo seus ouvidos ruins eram
capazes de perceber as batidas cadenciadas de tambores, e gritos ecoando pelo ar.
A ntes de se deitar, e esperar pelo fim, ela viu Thomas, o pai daquele que era
culpado de tudo isso, pegar uma tábua retangular, prender numa das paredes, e
depois pedir algumas crianças, de seis a dez anos, que fizessem um círculo.
— Muito bem meninos e meninas, isso mesmo, sentem um do lado do outro.
N ão precisam chorar! Vocês já são grandinhos. Prestem bem atenção no que vou
fazer aqui... - Thomas pegou um pedaço de carvão que havia espirrado da lareira
improvisada, e passou a rabiscar na tábua de madeira. - Vou ensinar vocês a ler,
tudo bem? - depois murmurou consigo mesmo - J á passou da hora de criar uma
escola nessa vila.
O pai de Vanhardt passou a desenhar figuras estranhas no quadro, e pedia para
as crianças repetirem o som que elas significavam. A ssim, conseguiu fazer com que
todos, até mesmo os pais se distraíssem, e também dessem os primeiros passos no
caminho da leitura. O s comentários de que as tropas da deusa do gelo não viriam, e
de que o jovem Vanhardt sozinho não conseguiria deter Mondovar, pararam de
correr entre os aldeões, fazendo com que Thomas se sentisse plenamente satisfeito.
Uma distração como aquela serviu melhor que o imaginado para diminuir a
ansiedade dos aldeões, e impedir que o pânico e o desespero os fizessem agir por
impulso. A gora cabia a seu filho, e a deusa do gelo, cumprir a parte deles e salvar a
vila.
Longe dali, Vanhardt permanecia quieto, como uma estátua, observando o
magnífico exército de Mondovar marchar como uma nuvem de gafanhotos
famintos em direção à sua vila. Contavam certamente com mais de trinta mil
soldados, três vezes além do que esperavam. A carruagem de medidas
desproporcionais, e maior do que um prédio, também estava no meio deles. A
bizarra estrutura móvel emanava uma força maligna que somada àquela gerada
pelos espectros poderia reduzir um homem comum às cinzas ao tirar-lhe as
esperanças e a vontade de lutar. O filho da deusa do gelo não sabia como a Guardiã
estava se virando para não sucumbir a essa ameaça, porém ele sentia cada célula de
seu corpo vibrando numa polaridade oposta, emitindo uma força positiva, e
mergulhando sua alma num mar de esperança e força de vontade. Q uanto mais
eles tentavam arrancar sua energia, mais esta crescia e ardia furiosa, nascendo na
base de sua espinha, e aguardando pacientemente o momento de explodir.
D e repente, o exército invasor parou de marchar assim que o som dos tambores
morreu. O s únicos ruídos que se faziam ouvir eram o da brisa uivando baixo e o de
flocos de neve que caíam timidamente, tocando o chão com doçura e se
desmanchando imediatamente. Vanhardt girou sua cabeça para a esquerda, e a
Guardiã que estava a pouco menos de dez metros de distância o encarava
interrogativamente. Ele balançou a cabeça em sinal positivo, e Ravina se agachou
sobre a neve iniciando a transformação em Lázarus. A bela guerreira agora era
uma criatura semelhante a um lagarto, com pele de cobra e garras afiadas, além de
uma boca comprida, capaz de estraçalhar ossos com uma mordida.
O silêncio anunciava o destino fúnebre reservado para todos que se
encontravam sobre aquele campo. O filho da deusa do gelo esperava pelas tropas
de sua mãe, que até o momento nem deram sinal. Coincidentemente, uma pomba
branca pousou no ombro de Vanhardt, esticando a patinha curta, que carregava um
papel amarrado. O rapaz desfez o nó com cuidado, e retirou o papel. A pesar de não
saber ler, as palavras ali desenhadas saltaram para dentro da mente dele, e a voz de
Léia se fez ouvida:
"Não se desespere, logo estaremos aí. Boa sorte!"
— Atrasada... Mulheres! S erá que são todas iguais? - Vanhardt resmungou
baixinho, e amassou o papel numa bola, atirando-a pra frente. A pomba levantou
vôo, e retornou para o céu resplandecente. - Tomara que ela não se atrase demais!
D o outro lado, as tropas de Mondovar se remexiam como cães famintos,
prontos para ir atrás de sua saborosa refeição. Uma trombeta soou por cerca de
meio minuto, e os gritos das criaturas agora foram mais altos e mais fortes, devido
à expectativa da batalha iminente. O s tambores voltaram a soar, mas num ritmo
diferente, acelerado. O s espectros amaldiçoados se posicionaram com as espadas
em punhos, e pernas flexionadas. O último som a atingir a terra do gelo antes do
confronto foi o da trombeta, que ao ser tocada pela segunda vez serviu de estopim
para uma explosão de gritos e berros. Um mar negro de criaturas açoitado por
terrível tormenta passou a mergulhar na direção da pequena vila de Crivengart.
A hora chegara, e não havia mais como voltar atrás. Uma distância de menos de
quinhentos metros separava Vanhardt e Ravina dos inimigos, e foi encurtando
rapidamente. Vanhardt continuou firme como uma estátua, olhando Flama fincada
no chão, e aguardando o momento certo de agir. Ravina já na forma de Lázarus
lambia suas presas, e preparava-se para partir pra cima dos invasores. A distância
diminuiu para trezentos metros, e os dois amigos permaneciam imóveis. O s berros
iam aumentando de volume, e pareciam vir de uma única criatura grotesca, que
avançava como uma serpente de escamas negras e destruía a terra por onde
passava. O filho da deusa do gelo abaixou-se, pegando dois fios quase invisíveis no
chão, uma com cada mão. Não podia mais esperar.
Capítulo LXII - Dragão de Fogo

N a noite anterior ao ataque de Mondovar, Vanhardt foi inspirado por uma


ótima idéia, que lhe permitiria causar um dano maior às tropas de seu inimigo,
além de favorecer estrategicamente a sua posição. Com a ajuda dos Hurqxes, ele
cavara uma piscina de um metro de profundidade, e comprimento equivalente a
todo o perímetro sul de Crivengart, chegando à incrível marca de cem metros. A
largura era vinte vezes menor que isso. D epois pedira a um dos Hurqxes que
cavasse o mais fundo possível, até atingir um lençol freático, e enchesse a piscina
improvisada de água. N ão foi muito difícil para congelar toda aquela água, depois
de mergulhar a mão e concentrar por meia hora. A primeira etapa da armadilha
estava quase pronta.
Com a ajuda de Flama, ele cortou, separando do solo, todas as paredes da
piscina, formando um imenso bloco de gelo, uniforme, sólido e independente.
Faltava um detalhe. Vanhardt fabricou dois pedaços compridos de fios de Gaia, e
amarrou duas pontas dos fios nos dois extremos do bloco, voltados para o lado que
Mondovar supostamente viria com suas tropas. Contando com o talento nato de
engenharia dos Hurqxes, colocou pedais e apoios na base do bloco, ou seja, o lado
voltado para Crivengart, a fim de sustentá-lo quando fosse erguido. Agora restava a
segunda etapa da armadilha.
O filho da deusa do gelo cavou um novo buraco com a ajuda dos esquilos com
garras, ao lado do primeiro, e do mesmo comprimento, porém mais próximo de
Crivengart. S ó que esse era muito mais fundo, cerca de dez vezes maior que aquele
que dera origem ao monobloco. N o fundo desse buraco, cravou centenas de lanças
de gelo, deixando as pontas afiadas voltadas para cima. D epois voltou à superfície,
e usando o resto de sua energia, soprou sobre o buraco, fazendo surgir uma
finíssima camada de gelo sobre ele, de modo que os inimigos não pudessem vê-lo,
mas que facilmente se quebrasse se qualquer um deles caísse ali.
O funcionamento da armadilha seria muito simples: num primeiro momento,
Vanhardt puxaria as duas pontas soltas dos fios de Gaia, e ergueria o bloco de gelo
na frente do exército inimigo quando ele atacasse. S urpreso com a aparição da
muralha, as tropas de Mondovar se dividiriam em duas frentes, uma seguindo pelo
leste e a outra pelo oeste, procurando desviar do obstáculo. A ssim, Vanhardt
cuidaria de uma das frentes, enquanto Ravina ficaria com a outra. N um segundo
momento, se as criaturas resolvessem passar por cima da muralha, elas cairiam no
buraco após quebrar a fina camada de gelo que o cobria, e se estraçalhariam nas
lanças ali depositadas.
A gora Vanhardt estava de costas para seus inimigos, virado na direção de
Crivengart, com os fios que se enrolavam em suas mãos em máxima tensão no
trajeto até as extremidades do bloco de gelo. O rapaz iniciou um lento e penoso
caminhar, que se provaria tão desafiador quanto qualquer uma de suas lutas
passadas. S eu rosto se contorcia de dor, com os olhos apertados, suor escorrendo
pela testa, e a boca aberta pela metade, mostrando os dentes do lado esquerdo. A s
mãos sangravam vítimas dos fios muito finos, e seus ombros só não padeciam do
mesmo problema porque recebiam a proteção do corselete de couro que o jovem
vestia. A ndava com dificuldade, pé ante pé, causando profundas marcas na neve, e
em certo momento se deteve sem conseguir mover mais nenhum centímetro. Cada
músculo e tendão de seu corpo se tencionavam ao limite, num estado semelhante
ao de uma bomba milésimos de segundos antes de explodir. A força necessária
para erguer a muralha era realmente absurda, e por um leve momento chegou a
duvidar se ele a teria. Mais um gemido de dor, gotas de sangue escapando de suas
mãos e pingando na neve, e lembrou-se de todos os desafios que enfrentou até
então, de todo o seu sofrimento. A quele desafio era uma gota d'água se comparado
ao oceano de dificuldades que superou.
Enfiando as pontas do pé na neve, buscou apoio para o seu corpo, e concentrou
seus pensamentos na vila de Crivengart, nos seus amigos, e principalmente na sua
família. Thomas, Erick... S elena! Com a lembrança de seus entes queridos dando-
lhe conforto e inspiração, o filho da deusa do gelo perseguiu uma força muito
maior do que a crafo adimapla poderia proporcionar, e aos poucos, conseguiu fazer
com que o bloco se mexesse. Enquanto ele erguia seus dolorosos centímetros, os
espectros se encontravam a menos de cem metros de distância, e provavelmente
venceriam aquele espaço em poucos segundos. Vanhardt não desanimou e
continuou os seus esforços sobre-humanos, erguendo os primeiros metros. Ravina
por sua vez, percebendo que logo a muralha estaria de pé dividindo os inimigos em
duas frentes, partiu em disparada para o flanco leste. Q uando ela estava a poucos
metros de chegar à extremidade da parede, notou os primeiros espectros surgindo
de trás da estrutura. Felizmente, a parede estava completamente de pé, e o plano
funcionara como o esperado. Deu-se início o combate.
J ogando suas garras para cima e para baixo, sem parar de correr, ela estraçalhou
os braços e colunas vertebrais dos inimigos, fazendo quatro vítimas no primeiro
encontro. O lagarto possuía agilidade suficiente para escapar de cada golpe das
espadas adversárias, e emendar contra-ataques fulminantes, que destruíam
instantaneamente os espectros. A li, de perto, Ravina viu os rostos das criaturas,
caveiras de aparência putrefata, com nódulos ulcerados e pústulas nos ossos, além
de vermes saindo pelas órbitas e pela boca. A aparência horrenda dos espectros
não afetou a Guardiã, que insistiu atacando impiedosamente ao mesmo tempo em
que pulava, abaixava e rodopiava, se desvencilhando habilmente dos golpes
inimigos.
Vanhardt já havia se livrado dos fios de Gaia e arrancado Flama do chão, e
corria velozmente para a extremidade do qual ficou encarregado de proteger. A sua
posição fora tomada por dezenas de espectros, em virtude do pequeno atraso que
teve ao levantar a parede. Mesmo de longe, o filho da deusa do gelo rasgou o ar
com sua espada horizontalmente, destruindo os seus primeiros alvos. Logo estava
no meio deles, girando Flama em todas as direções, e quebrando os ossos das
criaturas que não conseguiam se aproximar o suficiente para feri-lo. Q uem
imaginaria aquilo? Há apenas poucos meses, o jovem que apresentava dificuldades
para criar um punhado de neve, agora era capaz de conjurar muralhas gigantes de
gelo, e demonstrar capacidades de luta muitíssimo superiores a de qualquer
humano ordinário. Ele seguiu atacando sem hesitar, e derrotava um ou dois
adversários a cada golpe. Mesmo com toda a sua habilidade de luta, e já haver
destruído mais de trinta espectros, Vanhardt notava estarrecidamente que a cada
inimigo derrotado, cinco tomavam o lugar deste. A ssim, com poucos minutos de
combate ele já estava cercado por uma multidão de espectros, e estes conseguiam
chegar cada vez mais próximos dele.
A pesar de tudo, a mente Vanhardt procurava não se fixar em preocupações com
o transcorrer da batalha. Cada célula de seu corpo ficava mais carregada de
energia, e suas artérias e veias pareciam conter magma em vez de sangue. O
coração se tornara uma bomba propulsora mais forte que o de um elefante, e os
pulmões se enchiam de uma lufada de ar a cada inspiração. N ovos inimigos
tombaram às investidas de Flama, e um magnetismo foi tomando conta da carne,
da pele e dos nervos do herói. S ua coluna vertebral, cujo fogo ardia vigorosamente
sempre que ficava mais forte, dessa vez explodia furiosamente como um incêndio
incontrolável. Ele sentia como se uma serpente tomada de fogo fosse subindo
vértebra após vértebra, numa espiral, e se aproximava perigosamente do seu
pescoço.
N aquele momento, o mundo do qual Vanhardt fazia parte passou a tomar
dimensões totalmente novas e extraordinárias, graças a um estado de percepção
que se aproximava do puramente divino. A s cores que via se multiplicaram em
milhares de outras, e agora era capaz de perceber uma riqueza indescritível de
detalhes, que anteriormente não existiam. Via moscas no céu, todos os milhares de
flocos de neve que caíam preguiçosamente, cada fio solto do manto dos inimigos, e
sentia cada gota de suor escapando de seus poros: absolutamente tudo. O s
movimentos dos espectros se tornaram mais lentos, assim como seus próprios
golpes. I sso era uma vantagem, pois passou a se desviar de qualquer ataque sem
necessitar de muito esforço. S ua alma se tornara una ao universo, e seu corpo
dançava naquele mundo onde podia enxergar a verdade contida em cada coisa.
Flama por sua vez, recebera uma carga formidável de energia, e transformava em
pó cada inimigo que atingia. Estes se somavam dez ou doze por golpe. O filho da
deusa incrivelmente conseguiu equilibrar a balança na qual o número de espectros
infinitamente superior os permitia ganhar terreno. A velocidade e a quantidade de
inimigos que derrotava passaram a pesar positivamente no seu lado da balança.
A serpente de fogo que incendiava por dentro a espinha dorsal de Vanhardt
avançava perigosamente para dentro do crânio do jovem, que por sua vez se sentia
cada vez mais forte e mais rápido. I nstintivamente sabia que a energia acumulada
desmedidamente em seu corpo, se aproximava do limite, e poderia explodir a
qualquer momento. S eus movimentos se tornaram instintivos e automáticos, e
Flama girava e golpeava como se fosse uma extensão de seu braço, pondo abaixo
centenas de espectros sem dificuldade. D e repente, uma dor quase insuportável
latejou dentro do cérebro do jovem. A serpente de fogo atingira o seu destino final,
e a energia crescera dentro do rapaz incontrolavelmente. Ela teria de escapar de
alguma forma.
D o alto da gigantesca carruagem de ferro que vinha logo atrás das primeiras
frentes de espectros, Mondovar se encontrava sentado num trono de ossos, atento.
Ele não se movera quando uma muralha de gelo se ergueu na frente de suas tropas,
e limitou-se a respirar profundamente ao observar a linha de frente dos espectros
ser dizimada por Vanhardt e seu amigo lagarto. A gora, porém, sentia uma sutil
mudança das energias circulantes em torno do filho da deusa do gelo. Ele se
afastava do seu lado humano, deixando transparecer toda a divindade que
continha. Mondovar subestimava completamente o seu adversário, e só se
preocupou com os rumos da batalha quando viu o próximo passo dele.
Um cone de chamas surgiu nos pés de Vanhardt, e subiu em espiral pela sua
cintura e tórax, envolvendo daí a cabeça e braços, e por fim chegando até as pontas
dos dedos. A s chamas foram aos poucos mudando de forma, e logo tinham o
aspecto de um dragão, com escamas laranja e vermelhas que ardiam furiosas, e
olhos que brilhavam como dois sóis. A boca escancarada revelava centenas de
dentes brancos como marfim, e uma língua vermelha dançava
descoordenadamente. O dragão de fogo depois de serpentear três vezes e meia ao
redor de Vanhardt, saltou do corpo do herói e voou em frente, com a boca aberta, e
incendiou todos os espectros que se encontravam em seu caminho. D epois de
percorrer quase cinqüenta metros, a serpente de fogo rugiu como um leão
selvagem, e desapareceu em milhares de fagulhas cintilantes. O s espectros que
foram atingidos pelas chamas não passavam de cinza espalhada sobre a neve.
A ssustando o nobre homem de pé ao seu lado, Mondovar se pôs de pé. O tho
que usava uma armadura prateada, e guardava um machado de lâminas vermelhas
nas costas, descruzou os braços assim que seu mestre se levantou. O novo truque
do rapaz que teimava em defender sua vila preocupou o Supremo Lorde Mondovar,
e isso era no mínimo interessante. D e relance, O tho contou quase duzentos
espectros que pereceram no golpe do rapaz. D esde seu primeiro encontro com
Mondovar, pelo qual sentia medo e admiração fundidos em um só sentimento, o
general negro nunca vira reação semelhante. S eu S upremo Lorde era sempre frio e
taciturno, e a única mudança em seu estado de espírito era quando ficava zangado,
e destilava ódio pelos poros.
Mondovar então passou a palma da mão sobre o queixo de seu elmo, e manteve
o olhar fixo no campo de batalha. A sua direita, o lagarto se encontrava cercado de
espectros, e já tinha sido ferido duas ou três vezes, apesar de continuar lutando
com a mesma força, vigor e destreza. D o lado esquerdo, Vanhardt era o que mais
causava estragos. Q uase mil espectros foram derrubados com seus golpes, e estes
insistiam a morrer sem muita resistência. Com a voz metálica e sinistra de sempre,
Mondovar sentenciou ao seu general:
O tho, está na hora de começarmos a batalhar de verdade. - Revelando uma
diversão secreta, Mondovar continuou - Este rapaz, e sua amiga que se transformou
em lagarto já causaram baixas demais em nossas tropas. Vamos atingir o seu ponto
fraco. Q uero que metade dos espectros de nosso flanco direito ignorem o lagarto e
marchem em direção à vila, o mesmo acontecendo com aqueles do flanco esquerdo.
A o mesmo tempo, as tropas que estão atrás da muralha de gelo atravessarão
aquele buraco bem no seu centro, e se juntarão aos que estiverem na frente, para
pôr abaixo esse lugarzinho ridículo.
S upremo Lorde... D esculpe a minha ignorância, mas... - O tho olhava fixamente
para a muralha de gelo, tentando desvendar algo que aparentemente só Mondovar
notava. - Eu não vejo nenhum buraco no centro da muralha!
É mesmo? Hmmm... Então olhe mais uma vez.
S acando a espada que repousava na bainha, Mondovar desferiu um golpe. Um
fio de angústia deslizou da boca do estômago de O tho até a sua garganta, ao sentir
a energia que emanava daquela arma. Era a famosa Ceifadora de Vidas, com a qual
seu mestre derrotou anteriormente onze dos doze membros do Círculo I nterno da
D ivina S erpente. S ó ele, O tho, sobreviveu à chacina, ao inteligentemente não se
opor a Mondovar. Graças a isso agora era o seu primeiro general. Aparentemente, o
golpe não causou nenhum estrago na muralha, e o S upremo Lorde deslizou a
espada suavemente para dentro da sua bainha. A lguns segundos mais tarde,
contudo, uma explosão na base central da muralha atirou lascas de gelo em todas
as direções, ferindo até mesmo alguns espectros. Um buraco com cerca de quatro
metros de diâmetro surgiu onde antes era um bloco maciço de gelo, fornecendo
uma passagem livre para o outro lado. I mediatamente O tho apontou o indicador
direito para a frente, e gritou:
— Trovador! S oe a canção de avançar! Metade daqueles que enfrentam os
inimigos deve abandonar os alvos, e seguir para a vila. O s que estão próximos da
abertura na muralha devem trespassá-la, e se juntar aos que se encontrarem à
frente.
Um homem vestido com uma capa violeta, e dois andares abaixo de onde O tho
e Mondovar se encontravam, ergueu uma trombeta em forma de concha, e soprou
sem hesitar. Um som agudo, contínuo, se fez ouvir a quilômetros de distância, e
logo foi entrecortado por algumas pausas, terminando em tom mais grave. O s
espectros hipnotizados por aquele som seguiram as ordens fornecidas por O tho, e
os rumos da batalha alteraram.
N o flanco leste, Ravina que havia sofrido alguns arranhões, além de um corte
mais profundo no andar inferior de seu abdome, viu seus adversários diminuírem
em número. A liviada num primeiro momento, cobriu-se de terror quando notou
que os espectros que abandonavam a luta se dirigiam para Crivengart. A Guardiã
ainda tentou deter a sua marcha, mas logo foi bloqueada por cinco espectros.
Mesmo desferindo golpes precisos nas gargantas e tronco dos adversários, e se
esquivando dos contra-ataques, logo estava cercada por mais uma torrente de
espectros. Era impossível detê-los. Por mais que derrotassem os inimigos, dez
outros tomavam o lugar de cada um que tombava. S eus músculos começavam a se
queixar de cansaço, e câimbras ameaçavam inutilizá-la a qualquer instante. Ravina,
apesar de tudo, continuava a lutar com o mesmo afinco de antes. Ela tinha uma
dívida com Vanhardt, e não morreria em paz se não a pagasse.
D o outro lado, Vanhardt também percebera a mudança de disposição dos
espectros. Quando uma boa quantidade havia desistido de lutar consigo, e pôs- se a
caminho de Crivengart, ele concentrou-se na serpente de fogo que rodeava sua
espinha dorsal, e obrigou-a dessa vez a penetrar em seu cérebro. Como da primeira
vez, o dragão de fogo se externalizou, e subiu em espiral desde seus pés até a
cabeça e pontas dos dedos. Um grito de guerra coberto de fúria e força de vontade
foi o sinal para o dragão saltar de seu corpo, e avançar sobre os espectros que se
aproximavam de Crivengart. Todos eles foram dizimados pelo simples toque das
escamas cobertas de chamas, e uma explosão de fagulhas vermelhas e laranjas
iluminou por alguns instantes as portas da vila.
Um discreto sorriso no canto dos lábios de Vanhardt surgiu quando este viu um
outro grupo de espectros quebrar a fina camada que recobria o buraco atrás da
muralha de gelo, depois de mais de cem destes terem atravesssado. A pós
despencarem alguns metros, encontraram o seu fim nas lanças ali cravadas. O utros
ainda continuaram a atravessar a abertura na muralha e a despencar no buraco,
que parecia um ralo sugando os espectros para a morte. Um soco de Mondovar em
sua cadeira, e uma ordem de O tho, foram necessárias para que os espectros
parassem de mergulhar para o fim de suas existências. O estrago, porém, já havia
sido feito.
Capítulo LXIII - O Último Bastião de Crivengart

D entro do celeiro, a tensão triturava as emoções dos aldeões. A lguns bebês


choravam, dentre eles Erick, e as mães e babás nervosas não tinham sucesso em
fazê- los parar. A s crianças se agarravam nas barras das calças dos pais, que por
sua vez não tinham barras para se segurar, e por isso espremiam os cabos das
espadas contra os dedos. O medo da morte se mostrava estampado no rosto de
cada morador, até mesmo nos mais corajosos. O gemido da porta recebendo
pancadas provocou grito de algumas mulheres e uma imediata mobilização dos
homens, que improvisaram uma formação defensiva esperando o ataque dos
espectros. Evans J andeler retirou as travas de madeira com cuidado, e abriu uma
fresta. Todos soltaram o ar preso nos pulmões ao aliviados, notarem que era Rufus
quem entrava no celeiro.
— O s espectros estão pulando o muro em torno da vila, e logo chegarão aqui! -
o rapaz tinha uma voz séria, e não sorria. - Precisamos de todos que tenham
coragem de lutar para proteger o celeiro! S omos a última linha de defesa...! - a frase
foi mais pra si mesmo do que para os outros.
Thomas foi o primeiro aldeão a se armar de um martelo de ferreiro, e enfiar o
antebraço num broquel. D eu passos lentos até J úbia, que tomava conta do seu
neto. Ele encarou as faces cobertas de lágrimas do bebê, que ao ver o avô, deu um
sorriso brincalhão. A gora, entretanto, Thomas não poderia brincar com ele. Coçou
os pés de Erick, e deu um beijo na bochecha do menino, caminhando depois para o
lado de Rufus, de cabeça baixa, contemplativo. O utros doze ou treze aldeões
reuniram o fio de coragem que impedia a loucura de se apossar de seu íntimo, e se
juntaram a Rufus e Thomas. Até mesmo Evans J andeler se uniu à pequena força.
Q uando a porta ia sendo aberta para que o grupo saísse, um grito agudo ecoou no
fundo do celeiro. Uma pequena criatura verde saiu de trás de uma mesa posta
deitada. Green tomou uma espada curta das mãos de uma senhora que mantinha
seus sete filhos ao redor, como pintinhos em volta de sua mamãe galinha.
Desculpe, mas eu vou precisar disso mais do que a senhora!
O duende correu para perto de Thomas, que manteve uma fresta da porta
aberta. O pai de Vanhardt arregalou os olhos, assustado com a coragem súbita do
duende.
N ão adianta me olhar desse jeito, ô vovô! S ó estou indo para evitar mais mortes,
protegendo vocês todos, seus inexperientes. Humpf! E além do mais, logo Léia terá
enchido isso aqui de tropas!
Balançando a cabeça negativamente, Thomas sorriu, e fechou a porta logo atrás
do duende. Rufus ouvira o que Green falara, e refletiu rapidamente. S eria muito
bom mesmo se a deusa do gelo mandasse ajuda - chegaria na hora certa! Bem,
talvez um pouco atrasada, pelo menos para salvar a vida de Vanhardt. Ele pensava
no filho da deusa do gelo, cercado por todos os espectros. A ssistira aos primeiros
minutos da batalha, observando atentamente a Guardiã, que havia se transformado
num lagarto, e Vanhardt, desafiando as forças de Mondovar. O que movia aqueles
dois, pondo- se frente a frente contra trinta mil inimigos? N ão teriam eles medo da
morte? S erá que acreditavam que podiam vencer? N ão, vencer não, mas Rufus
instintivamente soube que eles acreditavam que poderiam atrasar Mondovar.
N aquele momento, arrependeu-se quando nos tempos de criança maltratou o filho
da deusa do gelo. Ele era uma pessoa boa, afinal. Era uma pena que os dois
provavelmente nunca mais se veriam. Pelo menos era o que seu coração dizia.
D ispostos numa força de quarenta guerreiros, pois havia mais de vinte homens
lá fora, Rufus pediu que os Crivengartenses fizessem um círculo, para que pudesse
passar melhor as instruções. Contavam ali rapazes com pouco mais de dezesseis
anos, barba começando a despontar, enquanto outros próximos aos sessenta, com
os cabelos e barba quase brancos por completo. Estavam prontos para defender a
sua vila, o seu lar, as suas famílias. O s homens entreolhavam-se, buscando
coragem naquele ao seu lado e à sua frente. Pigarreando com a mão fechada sobre
a boca, Rufus falou:
Entre os espectros e o celeiro só existe um obstáculo, e somos nós. Q uando
olharem para aquelas criaturas, vocês sentirão medo, e nada mais. Provavelmente
até ficarão paralisados, frente ao horror que eles tentarão nos incutir. Eu peço,
entretanto, que não se deixem levar. D evemos lembrar que somos agora os únicos
capazes de defender nossas famílias, que estão ali dentro do celeiro. Eles torcem
por nós. A ssim como confiamos no filho da deusa do gelo, eles confiam em nós.
Não podemos decepcioná-los!
O s aldeões confirmaram com a cabeça, temendo usar a voz e essa ficar presa na
garganta. Green, debaixo de todos, esticou a mão fechada para frente. O s outros,
então, colocaram suas mãos por cima da do duende, obrigando-o a quase ajoelhar
na neve, com o peso daquelas quarenta mãos. O duende, contudo, manteve-se
firme. Numa voz séria, diferente de como costumava falar, ele afirmou:
Foi um prazer ser recebido em sua vila. A ssim como eles diziam no lugar onde
nasci e cresci: boa morte!
O prazer é nosso, duende - sorriu-lhe Thomas ironicamente. - E boa morte para
você também.
O uvindo os urros dos espectros ao longe, os guerreiros de Crivengart logo se
posicionaram em frente ao portão do celeiro. Rufus organizou uma formação em
"V", na qual ele tomou a frente. D aquela forma, eles recebiam a proteção em um
dos flancos, e por sua vez ficavam responsáveis por proteger o do companheiro.
Rufus teria os dois flancos protegidos, porém receberia a pior carga dos espectros,
por estar na ponta do "V". Thomas puxou Green para o seu lado, na terceira fileira
do lado direito da formação. D eu tapinhas na cabeça do duende, e falou de costas
para Green:
Não deixe que eles me furem, senão terá que prestar contas ao meu filho!
Está duvidando do poderoso Green, um dos maiores duendes guerreiros de
Kether? Vanhardt não chega perto das minhas habilidades guerreiras! S e é que ele
ainda está vivo... - a última frase foi um sussurro praticamente inaudível.
Logo as tropas de Mondovar estavam incendiando as casas, destruindo as
varandas, e atravessando o centro de Crivengart como um bando de animais
incontroláveis e sanguinários. Rufus pedia calma, principalmente para alguns que
gemiam. O utros por si só permaneciam firmes em suas posições, mas
amedrontados. A s pernas do duende tremiam, e ele lutava contra suas mãos que
não deixavam a espada curta na vertical. Esfregou os olhos com força, obrigando-os
a ficar bem abertos e atentos. O s espectros se aproximavam como cães
ensandecidos, uma massa negra, uniforme, destruindo tudo por onde passava. O
coração do duende disparou quando eles estavam apenas alguns passos de
distância. A lguns menos sortudos tiveram as pernas presas por armadilhas de
urso. A hora chegara.
N o primeiro choque entre as duas frentes, dois crivengartenses voaram dois
metros na vertical, e tombaram no chão, mortos. Rufus gritou como um lobo
selvagem, e passou a girar sua espada para os lados com força, tentando atingir as
cabeças ou o qualquer parte vital dos inimigos, mas depois de quatro ou cinco
tentativas conseguiu apenas quebrar um dedo de um deles. O s outros
crivengartenses logo sentiram a força dos espectros, que se espalharam ao redor da
formação em "V". A pós alguns minutos outros três aldeões tombaram, e ainda não
haviam feito nenhuma vítima do lado oposto. O confronto saía pior do que Rufus
imaginara. Q uando observou a luta de Ravina e Vanhardt contra os espectros,
acreditou que seria mais fácil derrotá-los, mas agora que havia sofrido um perigoso
arranhão no pescoço, e o melhor que fizera foi destruir uma perna de um
oponente, pensava o contrário. S eu amigo Tagh, posicionado dois homens à
esquerda, foi o primeiro a fazer uma vítima, e seguiu-se um grito de entusiasmo
dos Crivengartenses. Logo Thomas fizera uma segunda vítima, e ainda uma
terceira, ao emendar uma martelada subseqüente na cabeça de outro espectro.
Green ocupava- se de proteger o flanco do pai de Vanhardt, que freqüentemente
ficavava exposto. Ele mesmo quase recebera um golpe no pescoço ao proteger
Thomas.
Rufus continuava atacando como louco, e dessa vez destruíra um braço daquele
espectro que havia perdido a perna, e que por isso lutava deitado. Bolha, seu maior
amigo desde a infância, e que se encontrava à sua direita, recebeu uma estocada
que lhe atravessou o abdome. O jovem, pai de duas crianças, caiu de joelhos no
chão, já sem vida. Rufus gritou como se ele mesmo tivesse tomado o golpe, ou
perdido um filho, e avançou a lâmina de sua espada contra a cabeça do espectro,
destruindo-a em mil pedaços. Continuou atacando com a mesma força,
derramando fúria em cada investida, e fazendo mais duas vítimas. Recebeu um
golpe no ombro esquerdo, obrigando-o a deixar o escudo no chão. Um grito no
fundo da formação indicava uma nova morte de um dos guerreiros de Crivengart.
Por quanto tempo suportariam aquilo?
D entro do celeiro a inquietação beirava o insuportável. O calor ali era grande,
pois além de cada fresta se encontrar fechada, as lamparinas acesas nos vários
cantos só faziam aumentar a temperatura. O uvia-se o grito dos homens lá fora, e as
crianças choravam como nunca. S ons no telhado fizeram as mães suspeitar de
espectros, mas uma delas, mais observadora, reparou que provavelmente seriam
tochas sendo atiradas. Por sorte eles salpicaram o teto com neve e folhas verdes, a
fim de evitar um incêndio. A s mães apertaram mais ainda os filhos perto de si,
pedindo calma. D ona Lavínia do seu canto resmungava que aquilo era culpa de
Vanhardt e sua mãe. A deusa do gelo não aparecera, e provavelmente nunca o
faria. Todos morreriam sem qualquer honra.
A velha só parou de falar quando as tábuas que protegiam uma das janelas
foram atiradas longe, e uma criatura coberta com farrapos negros, e mãos
esqueléticas adentrou o celeiro. A s crianças gritaram, e as mães as empurraram
contra as paredes, numa proteção instintiva. A criatura cuja cabeça era uma
caveira, com vermes saindo dos olhos e entrando em sua boca, olhava de um lado
para o outro, como um lobo escolhendo a ovelha a ser devorada. Ele caminhava
lentamente, segurando uma espada com lâminas enferrujadas, e jogava o corpo de
um lado para outro, duro como um morto. Houve mais gritos, e a maneira como a
mandíbula da criatura se mantinha abaixada lembrava um sorriso secreto. Em
determinado momento, o espectro fixou as órbitas vazias em uma criança de três
anos, Catarina, uma das que mais chorava. Passou a andar em sua direção, e todas
as mães ao redor gritaram desesperadas por ajuda. O s guerreiros corajosos,
contudo, estavam fora do celeiro lutando contra os invasores, e ali só havia alguns
velhos demais, outros muitos novos, e alguns covardes. Q uando estava a dois
passos de distância de Catarina, o espectro ergueu a mão esquelética para frente, a
fim de agarrar a criança.
D e repente, um vulto subiu nas costas da criatura, obrigando-a a arquear para
trás. O espectro gingava para a direita e para a esquerda, mas não conseguiu se
livrar de Lorehardt, que se segurava no pescoço dele como se sua vida dependesse
disso. A criatura acabou caindo para a direita, soltando a espada enferrujada. O
garoto, mais que depressa, agarrou a espada e afundou-a no tórax da criatura, na
altura do coração. O espectro gemeu, porém esticou o braço agarrando o pescoço
do pequeno Lorehardt. Com uma força maior que a de um humano, a criatura
esquelética pressionou o pescoço do menino, que imediatamente se fez branco. A
sua sorte foi que Grindell, mãe de Catarina, arrancou a espada anteriormente
cravada no tórax do espectro, decepou o braço que segurava Lorehardt, e por fim
destroçou-lhe o crânio. Só assim o espectro parou de se mexer.
O s aldeões ainda estavam chocados, sem esboçar nenhuma reação. Lorehardt
correu para um armário abarrotado com panelas e sacos de alimentos, e empurrou
para o lado da janela que fora aberta, e que por sorte não foi invadida por outro
espectro. Grindell ajudou-o a empurrar, mas mesmo os dois não conseguiam
vencer o peso do armário. O utras duas mães, e um velho chamado J urmandahk,
pai de Greylock e provavelmente o crivengartense de idade mais avançada,
ajudaram no esforço, e finalmente conseguiram posicionar o armário de modo a
bloquear a janela.
A porta do celeiro se tornou alvo de alguns golpes furiosos, e um silêncio
retumbante perpetuou pelo celeiro. A voz de Greylock pedindo que eles abrissem a
porta foi o suficiente para que duas jovens retirassem as travas ,e abrissem a porta.
O s primeiros a entrarem foram Greylock carregando seu filho, Ernemidas, nos
ombros, atingido por uma flecha. D epois dele seguiram-se vários outros
guerreiros, sendo que os últimos foram S tevens, Thomas, Tagh, e finalmente
Rufus. Este último estava cravejado com uma flecha no ombro e outra na coxa, e
travava árdua batalha contra três espectros ao mesmo tempo em que forçavam
entrada no celeiro.
Fechem a porta agora! - gritou o filho de Runcard, para seus companheiros.
Se a fecharmos, o senhor ficará do lado de fora! Não faremos isso!
Rufus deu um poderoso golpe na horizontal, decepando a cabeça de um
espectro e obrigando os outros dois a recuar um passo, tempo suficiente para que
ele entrasse no celeiro, e as portas se fecharam na sua frente, seguidas pelas tábuas
que as bloquearam. Thomas contou vinte e oito guerreiros que entraram no celeiro,
mas sentiu falta de um que lutou ao lado deles.
Green? O nde está Green? - perguntou o pai de Vanhardt, procurando- o
desesperadamente.
É uma pena, mas parece que o duende não teve mais sorte que nossos outros
companheiros que tombaram - murmurou S tevens, que havia acabado de colocar a
tábua atrás da porta. D e repente seus olhos se arregalaram, e um fio de sangue
correu por seu abdome, de onde surgira uma lâmina de um dos espectros.
S em pensar duas vezes, Rufus decepou o braço que havia penetrado por uma
fresta da porta, e atingido seu companheiro. O utras duas lâminas, contudo,
atravessaram a porta de madeira, atingindo o peito de Rufus. O filho de Runcard
enfiou a sua própria espada através da porta, pondo fim à vida de mais um
espectro. D epois caiu ajoelhado no chão, e foi cravejado por mais três lâminas
enferrujadas.
Um grito agudo ecoou pelo celeiro, e a mulher de Rufus tentou alcançar seu
marido, sendo impedida por Thomas que a segurou com firmeza. A mulher lutava
como um touro, e Thomas não sabia dizer se era mais difícil combater os espectros
ou segurar a esposa de Rufus.
Todos para o fundo do celeiro já! A porta vai cair! Formação de defesa aqui na
frente! - a voz do pai de Vanhardt trovejava, incitando seus companheiros. - e você,
Freya, não vá pôr fim à sua vida inutilmente! S eu marido foi um dos maiores
guerreiros que Crivengart já conheceu, e sua memória seria honrada se a mulher
dele criasse seus filhos para serem tão fortes, honestos, e corajosos como o pai. E
não se fosse morta por uma atitude impensada.
A mulher se desvencilhou de Thomas, mas pareceu escutar suas palavras,
quando juntou os filhos e correu para o fundo do celeiro. Estrondos ribombavam
na porta, denunciando seu fim iminente. O fundo do celeiro estava abarrotado com
todos os cidadãos de Crivengart que ainda permaneciam vivos, e a aparência deles
era a de completo desespero e desolação. Uma linha de guerreiros se formou na
frente, preparados para o último embate que se daria a poucos instantes, com
Thomas no primeiro plano. Pelo menos morreriam com honra. Um estrondo maior
ainda encheu os ouvidos dos aldeões, assim que a porta veio abaixo. Uma nuvem
de poeira cinza se levantou, bloqueando a luz do sol e a visão dos espectros.
Q uando esta baixou, uma multidão daqueles seres se formou na entrada do celeiro.
Havia pelo menos dez deles para cada um dos crivengartenses.
Capítulo LXIV - Nêmesis

O s músculos da Guardiã, apesar de serem mais fortes e resistentes em sua


forma de lagarto, sofriam de exaustão. Cada ataque fazia as fibras nervosas
transmitirem sinais de dor, e Ravina se tornara mais lenta. A cabeça já não
funcionava como no início da batalha, e por isso abandonara qualquer estratégia de
luta, confiando apenas em seus instintos. Mesmo vítima dessas adversidades, a
guardiã se saía bem, e acumulava uma pilha de espectros ao seu redor. N ão fazia
idéia de quanto tempo mais suportaria aquele ritmo, porém quando foi atingida no
ombro, e em seguida na coluna lombar, deduziu que não seria por muito.
O lagarto mordeu o braço de um dos espectros, esmigalhando-o, e acertou o
rabo no tronco dele, tirando-lhe a vida imediatamente. D epois girou em torno do
próprio eixo, e golpeou o pescoço de outro inimigo, decapitando-o, e partiu pra
cima do terceiro. A balança continuava injusta contra os defensores de Crivengart.
Por mais que as armadilhas de Vanhardt tivessem surpreendido o inimigo, este
acabou se recuperando após um tempo, e a batalha voltara a soprar a seu favor.
Cerca de vinte espectros circundavam Ravina, e atacavam praticamente ao mesmo
tempo. O corpo de lagarto felizmente permitia-a realizar acrobacias de modo a se
esquivar das investidas adversárias, e emendar contra-ataques. O sangue que lhe
escorria das feridas, e o período que se mantinha naquela forma, talvez o maior
desde que foi agraciada com a benção-maldição, cobravam agora o seu preço.
D e repente, os espectros pararam de atacar, e a Guardiã teve um mau
pressentimento. Lentamente ela se virou para um grupo de criaturas que abria
passagem para um homem. Ele tinha a pele negra como o céu à noite, sem estrelas,
e mais alto que qualquer outro humano que ela vira. Usava uma brilhante
armadura prateada, decorada com detalhes em púrpura, e várias serpentes
esculpidas, com as cabeças voltadas para baixo. N as costas, sustentava um
machado de lâminas vermelhas, o qual logo tratou de erguer com as duas mãos. O
rosto do homem, que era calvo, exibia uma cicatriz oblíqua que ia da testa até as
bochechas do lado oposto. Ele sorria com malícia, e lambia os beiços como se
estivesse prestes a se deliciar com um saboroso banquete.
— Muito prazer, meu nome é O tho D amascus, seu futuro carrasco. - o general
caminhava em círculos ao redor da Guardiã, e observava-lhe atentamente. -Eu não
sou o tipo da pessoa que se gaba das qualidades, e discursa como um idiota
perante o adversário. Eu luto, e mato. Porém, sinto-me na obrigação de explicar aos
meus inimigos porque eles morrerão, quando tenho tempo. Meu mestre estava
aborrecido com o rumo dessa batalha, que já custa inúmeras vidas, e pediu-me que
ajudasse a encerrá-la logo. E é por isso que você morrerá.
Entendo... - respondeu o lagarto, mostrando as dezenas de dentes
extremamente afiados. - E o seu mestre mandou o lixeiro fazer o trabalho sujo?
Claro que sim! E estou grato em poder enviar para o outro mundo um lixo como
você! - O tho não perdeu mais tempo, e avançou contra Ravina com o machado
erguido.
Havia um cheiro estranho no ar, que despertou a curiosidade da Guardiã. A lém
disso, o golpe do inimigo se mostrava muito exagerado, e aparentemente amador,
de modo que ela não lhe atacou o tronco, como seria natural - mirou, sim, o braço
do oponente. O tho assustou-se com a velocidade de raciocínio do lagarto, que
previu o engodo. O general queria que Ravina avançasse para o seu tronco, e assim
ele poderia acertar o braço do lagarto com seus cotovelos, local onde ele escondia
duas adagas envenenadas. A esperteza de Ravina, ao detectar o veneno pelo odor,
permitiu que ela acertasse de raspão os braços de O tho, atirando o seu machado
alguns metros à frente, e obrigando o general a se esquivar com o corpo, evitando
um ataque no pescoço que seria mortal.
Felizmente, O tho conseguiu colocar dois passos de distância da Guardiã, que
também se surpreendeu com a agilidade daquele homem grande. O s dois agora
trocavam olhares ameaçadores, apesar de não moverem um músculo sequer. O s
espectros que formavam um círculo ao redor também não se intrometiam na luta.
O tho olhou para baixo e para frente, onde seu machado se encontrava. Ele
precisava de uma arma, pois as mãos nuas não conseguiriam penetrar a couraça do
lagarto. Como o machado estava fora de alcance no momento, ele buscou as adagas
envenenadas nos cotovelos, escondidas sob o pedaço da armadura que cobria o seu
antebraço, porém arregalou os olhos ao notar que não havia nada ali.
Procurando por isso? - Ravina agora fez questão de mostrar sua língua
comprida, e depois abriu as garras, revelando duas adagas finamente decoradas.
Ela abaixou o focinho, cheirando os objetos, e depois os atirou no chão, cobrindo
com um pouco de neve. - I sso iria me machucar. Graças a Laodicéia, o corpo de
lagarto possui um olfato cem vezes melhor que o de um humano. N ão foi difícil
farejar o veneno debaixo da sua armadura, e depois arrancar as adagas que o
continham.
Pensa que é esperta, então? - o general das tropas de Mondovar esticou os
braços pra frente, e pôs-se a avaliar cuidadosamente as palmas das próprias mãos. -
A cha que seu corpinho fornece uma vantagem sobre a minha pessoa? Lamento
afirmar minha cara, mas eu também possuo um corpo especial. Estamos
empatados. Observe!
Apertando bem as pálpebras e as mãos, mostrando os dentes que espremiam as
gengivas, fazendo-as sangrar, e com os músculos que estufavam alguns
centímetros, atirando todas as peças de sua armadura no chão, O tho começou a se
transformar. D epois disso os pêlos do seu corpo se eriçaram, e aos poucos foram
crescendo. Tanto os bíceps, tríceps, quanto os quadríceps, aumentavam de
tamanho e se delineavam em formas perfeitas. O s pêlos continuavam a crescer, e
agora se multiplicavam, cobrindo até mesmo lugares antes inférteis como a cabeça
calva do homem. A os poucos O tho ia se parecendo mais com um urso que com um
ser humano. A s unhas viraram garras afiadas, de vários centímetros de
comprimento, os pêlos negros e grossos se espalhavam por todo o corpo, o nariz
encolhera e a boca ficara maior, capaz agora de triturar os membros da Guardiã. O s
braços e pernas do homem-urso alcançaram a grossura de pinheiros, e
derrubariam uma casa sem muito esforço.
Ravina não esperava aquela mudança repentina no duelo. S eria O tho também
discípulo de Laodicéia, e recebera uma benção-maldição como a sua? A s dúvidas,
contudo, não poderiam atrapalhá-la nesse momento, que seria decisivo. O
duelo se resolveria em poucos ataques, e Ravina sabia disso.

A sensação era familiar, assim como o peso de uma tonelada para cada
partícula do ar. Vanhardt nunca estivera assim tão perto de Mondovar, a dez
passos de distância, no máximo. O filho da deusa do gelo arfava, seu pulmão
travava um duelo a cada inspiração para captar miseráveis golfadas de ar. O
coração do rapaz era uma bomba que explodia a cada batida, como se tivesse de
empurrar o mesmo volume de sangue que um rio. Todo o seu corpo conspirava a
fim de trabalhar no limite extremo, para que ele não caísse ajoelhado aos pés
daquele ser. A mera presença era tão marcante e aterradora que mesmo sendo um
semideus, Vanhardt sofria seus efeitos. O s sentidos mais aguçados que o jovem
adquirira no meio da batalha permitiram que ele percebesse uma discreta tensão
no braço direito de Mondovar, e uma respiração perfeitamente ritmada, que
subitamente se interrompeu. Ele atacaria.
A ntes que Vanhardt erguesse Flama numa posição defensiva, o líder do exército
de espectros amaldiçoados apontou o indicador para o céu, e uma chuva de
relâmpagos caiu sobre uma centena de soldados esqueléticos que os circundavam.
Vanhardt arregalou os olhos, assustado por Mondovar atacar seus próprios
guerreiros, e também por aquele ataque tão rápido e aparentemente simples ter
sido capaz de derrotar a mesma quantidade de inimigos que Vanhardt, quando
este liberava o dragão de fogo.
— N osso duelo seria muito pobre se uma platéia horrenda como essa o
assistisse - disse Mondovar, em sua voz cavernosa e que manteve os outros
espectros afastados quase vinte passos. - Posso dizer que você tem me
impressionado muito ultimamente meu rapaz, mais do que eu admitiria. I nsultou-
me quando conversamos através dos espelhos, pôs abaixo meu obelisco depois de
derrotar o soldado que o guardava. D estruiu uma quantidade nada desprezível do
meu exército, além de ter me obrigado a descer do trono e vir enfrentá-lo
pessoalmente. S ão proezas que impressionariam até os deuses! - a última frase
soou mais metálica que as outras, e continha uma discreta ironia.
Q ue bom, Mondinho! Como você demorou a aparecer, eu jurei que estava se
borrando de medo! - Vanhardt passou a mão no seu traseiro, a fim de representar
visualmente a piada. - A dmita, esses soldados magrelos não são de nada! Eles
estavam servindo de ótimo treino, pois eu não tive muitos alvos móveis para testar
Flama. Tomara que você seja um pouco mais forte que eles, senão serei obrigado a
vendar meus olhos e amarrar um dos braços pra trás para termos uma luta justa!
É triste ver como uma pessoa medíocre como você se utiliza de ameaças infantis
para tentar me desestabilizar. N ão há crianças aqui, meu caro, e suas palhaçadas
não me fazem rir. S inceramente, esperava mais de um homem que me dera tanto
trabalho.
Tudo bem, Lorde Mondovar, se quer ameaças sérias, irei despejá-las! - o tom
zombeteiro de Vanhardt sumira completamente, só restando em sua voz seriedade
e frieza. - O nde está a minha esposa? Q uero que você a entregue agora, e reze para
ela não ter sofrido quaisquer maus-tratos!
O inimigo de Vanhardt, vestindo a sua imponente armadura negra, ficou quieto
por alguns segundos. O filho da deusa do gelo daria tudo para naquele momento
observar as feições de Mondovar, encobertas pelo elmo.
A pesar de não lhe dever satisfações, senti... hum... vamos dizer, "pena" de você,
e por isso lhe darei respostas. S ua esposa continua no mesmo lugar de antes, pois
nada mudou. Às noites ela ainda chama por você, e eu a flagro chorando inúmeras
vezes. Mas posso garantir que nos últimos tempos ela anda meio esquecida...
Basta, covarde! A rrancarei minhas respostas quando colocar o seu pescoço
contra a lâmina de minha espada. Prepare-se! - Vanhardt segurou Flama firme
entre as duas mãos, fechou os olhos, e se concentrou.
Q ue assim seja, filho de Léia! - Mondovar cruzou os braços, abriu um pouco as
pernas e flexionou discretamente o joelho. - Vamos ver o que é capaz de fazer.
Darei a oportunidade de um ataque, porém um apenas.
A s moléculas do corpo de Vanhardt passaram a vibrar como um ser
independente, dotadas das mesmas capacidades que possuíam unidas. Ele podia
contar cada respiração sua e do seu adversário, além dos movimentos de cada um
dos milhares de espectros ao seu redor. A leve brisa que soprava na sua nuca,
assim como um floco de neve que beijava a testa do elmo de Mondovar, também
era notada. N ada que acontecia num raio de um quilômetro passava despercebido
aos sentidos do filho da deusa do gelo. A quele estado de êxtase, de plenitude e
união com o universo, estava muito mais próximo do divino que do humano, e por
isso
Vanhardt julgou que assim era como os deuses se sentiam. Ele então se
concentrou para que todo o seu corpo e sua alma o ajudassem a criar o maior e
mais poderoso dragão de fogo. S eu inimigo, por arrogância, permitiria que ele
desferisse um golpe. A penas um. E ele não queria receber o contra-ataque de
Mondovar, pois seus sentidos o alertaram de que o S upremo Lorde mantinha
guardada na bainha, a arma mais poderosa de Kether: a Ceifadora de Vidas. A
mesma arma que por pouco não colocou fim à existência de sua mãe.
O dragão de fogo repetiu a mesma dança de antes, e passou a circundar os pés
de Vanhardt e foi subindo em espiral pelo seu corpo. D esta vez a serpente
flamejante se comunicava telepaticamente com o rapaz, que não poderia dizer até
que ponto ela era um ser independente, ou parte dele próprio. N o fundo, seu
íntimo lhe dizia que o dragão era uma manifestação do divino dentro dele, e por
isso era, e ao mesmo tempo não era, ele próprio. Vanhardt continuou se
concentrando, captando e compartilhando toda a energia que era capaz, e o dragão
crescia em força e tamanho. Q uando chegou à cabeça de Vanhardt, já era cerca de
três vezes e meia maior que o filho da deusa do gelo. A brindo os olhos, e
completamente ciente de onde se situava no universo, e o que fazia, Vanhardt
abaixou lenta e deliberadamente a ponta da lâmina de Flama, pondo-a na direção
de Mondovar. O dragão de fogo obedeceu a uma ordem velada e instintiva,
saltando da cabeça de Vanhardt para o seu braço, e depois se atirando para a frente
na plenitude de seu fulgor e imponência.
O ar entre os dois adversários queimou e tingiu-se de laranja, e à medida que o
dragão de fogo o cruzava contorceu-se, revelando uma profusão de milhares de
tons que variavam do amarelo puro como ouro até o vermelho sangue. Centelhas e
fagulhas cintilavam como numa chuva de vaga-lumes e banhavam o solo branco,
como se fizessem questão de decorá-lo e torná-lo um palco digno do duelo entre as
duas potências. Q uando o dragão atingiu Mondovar, o fez numa força e velocidade
magníficas, produzindo um estrondo mais forte que o de um trovão, e que poderia
ser ouvido a dez mil passos de distância. Uma nuvem de fumaça de onde
pipocavam bolhas amarelas envolveu Mondovar, impedindo a visualização do que
aconteceu. Quieto por alguns segundos, e com uma expectativa crescente dentro do
peito, Vanhardt aguardou a fumaça baixar. Esta foi teimosa, e tapou qualquer
possibilidade de vislumbre num primeiro momento - segundos mais tarde,
entretanto, tornou-se mais condescendente, e permitiu que a luz do sol revelasse o
que acontecera.
Era incrível e ao mesmo tempo fabuloso. Vanhardt não se segurou, e sorriu
abertamente ao ver que o S upremo Lorde Mondovar continuava de pé na mesma
posição de antes, com a Ceifadora de Vidas erguida em posição defensiva, sem um
mínimo arranhão na armadura. A situação era tão absurda e inverossímil que o
filho da deusa do gelo pôs-se a gargalhar francamente, dando tapas no joelho com
a mão livre. Como podia ser? O golpe mais poderoso do arsenal de Vanhardt
simplesmente não surtira mínimo efeito, e o inimigo preparava-se para contra-
atacar com a arma mais mortífera de Kether.
Foi uma bela tentativa, Vanhardt. Contudo, pra minha sorte, e graças a essa
espada mágica, infrutífera - a voz de Mondovar continuava metálica e fria,
provando que realmente não se abalara com aquele ataque. - Eu dei uma
oportunidade e você desperdiçou-a, portanto farei como o combinado. Proteja-se se
puder.
O guerreiro de armadura negra cortou o ar horizontalmente com sua espada, e
diferentemente do ataque de Vanhardt, fora muito mais silencioso, e menos
espalhafatoso. E também ao contrário da investida daquele, conseguiu lançar seu
oponente a cem metros de distância, atirando um monte de neve para o alto, e
deixando-o imóvel no chão. D esde a sua criação, e até aquele dia, a Ceifadora de
Vidas matou todos os seus inimigos com apenas um golpe. Mondovar apresentava
completa consciência desse fato, e não se assustou quando viu que seu inimigo não
esboçava qualquer reação. Estava morto, sem sombra de dúvidas. O líder dos
espectros guardou a arma e virou as costas, pretendendo retornar para sua
carruagem, mas uma pontada de curiosidade assaltou-lhe ao detectar uma energia
familiar, e acabou permanecendo parado. N ão podia ser. S implesmente não
poderia ser!
Com movimentos cuidadosos, Mondovar virou-se para o local onde Vanhardt
caíra desfalecido. O rapaz estava ali, com uma ferida superficial nas bochechas de
onde escorria um filete de sangue, os cabelos desgrenhados, o peito arfando, a mão
direita apoiada em Flama que fincada no chão, serviu de bengala para que ele se
erguesse. O dragão dourado nascia aos pés do jovem guerreiro que novamente se
colocou em posição defensiva. Punho pra baixo e lâmina pra cima, Vanhardt teve
de gritar para que fosse ouvido daquela longa distância:
Você vai descobrir que sou teimoso...! - ele limpou a ferida na bochecha com o
dorso da mão esquerda, e tornou a segurar a espada. - Muito!
Vejo que sua espada também é formidável! Pelo magnetismo que detecto num
ponto específico de sua lâmina, a dois terços de distância da guarda, pressuponho
que você conseguiu bloquear a minha investida. Veremos agora se você e sua arma
são capazes de fazer o mesmo com múltiplos golpes.
O s braços de Mondovar se moveram numa velocidade tão impressionante, que
Vanhardt mal pôde ver quando ele retirou a Ceifadora de Vidas da bainha e
começou a atacar. Três golpes foram desferidos um trás do outro, e o barulho de
metal se chocando contra metal tilintou pelos campos de neve de Crivengart,
arremessando o filho da deusa do gelo algumas dezenas de metros para trás,
fazendo-o se chocar contra a paliçada improvisada de lanças de gelo. Com extrema
dificuldade, e para pura perplexidade de Mondovar, Vanhardt empurrou as lanças
quebradas pela força do impacto para o lado, e levantou-se mais uma vez,
apoiando-se em Flama. S ua aparência piorara visivelmente: apresentava
hematomas e equimoses no rosto, a roupa fora rasgada e queimada em vários
pontos, e grandes inchaços acometiam seus punhos e joelhos. Cortes de vários
centímetros de largura abundavam em seu tórax e membros inferiores, porém
mesmo ferido, Vanhardt procurava se manter na postura mais digna possível.
A rfando muito, e como se Flama pesasse uma tonelada, ele ergueu-a uma última
vez.
Mondovar teve de caminhar para frente, por alguns metros, para que ficasse
numa distância na qual fosse ouvido e ao mesmo tempo pudesse atingir o filho da
deusa do gelo. A sua arma possuía um belo raio de alcance, mas lançara Vanhardt
tão longe que acabou sendo superado. A ssim que Mondovar atingiu uma distância
que julgou adequada, sentenciou:
— O utra vez fui prepotente, e subestimei-o. Você ultrapassou minhas
expectativas. D evo admitir: é um grande guerreiro, Vanhardt Mohr D aicecriv.
Porém, como não posso permitir que essa batalha tome um rumo indesejado,
acabarei com sua vida imediatamente. N ão se preocupe. O golpe que utilizarei,
chama-se "O último suspiro", e foi-me ensinado diretamente pela divindade
superior da qual sou mensageiro. É um golpe que só pode ser utilizado uma vez em
toda a vida, mas possui um efeito extraordinário. A ssociado também ao poder da
Ceifadora, posso garantir com absoluta certeza que não mais o verei respirar daqui
a alguns segundos.
Foi tudo muito rápido, impedindo qualquer reação de Vanhardt, e se não fosse
o seu estado de percepção aumentado, ele não faria a mínima idéia do que
acontecera. Mondovar ergueu a Ceifadora de Vidas para cima, e um relâmpago
vindo dos céus atingiu em cheio a ponta da arma. Em seguida, ele apontou-a para
frente, e uma esfera negra, do tamanho de um crânio, e com rajadas elétricas na
sua superfície, foi arremessada contra o filho da deusa do gelo. A ssim que a esfera
atingiu seu alvo, uma profunda escuridão bloqueou qualquer feixe de luz por mil
metros de raio, e durante alguns segundos nada podia ser visto. Q uando a luz
voltou ao normal, Mondovar soube que seu dever fora cumprido. N ão havia sinal
de vida do corpo inerte do filho da deusa do gelo.
Capítulo LXV - Crepúsculo de uma Batalha

A luta protagonizada por Ravina, em sua forma de meio-lagarto, e O tho, o


general meio-urso, se prolongava por dramáticos minutos. Pareciam um casal,
dançando uma canção violenta e febril, se atacando e se esquivando mutuamente,
sem cessar. Gotas de suor voavam de um lado para o outro, garras se chocavam,
couro era rasgado, e urros ameaçadores partiam de ambos adversários. Tal
espetáculo era presenciado por um círculo de espectros que assistia passivamente,
como cadáveres que não perceberam estar mortos. N aquele momento, o general
levava discreta vantagem, em virtude de um corpo menos cansado e calejado. S uas
garras, vez ou outra, feriam membros e tronco de Ravina, que não revelava
velocidade ou força suficiente para se esquivar ou defender.
A Guardiã percebera então porque aquele homem possuía cargo hierárquico tão
importante, e se fazia tão seguro de si. Era sem dúvida o guerreiro mais completo e
disciplinado que ela vira lutar. Emendava seqüências ofensivas que a distraíam, e
depois serviam para machucá-la. A o mesmo tempo, defendia cadenciadamente
todos os golpes que lhe eram direcionados, e ainda contra- atacava perigosamente.
N ão bastasse isso, ele estrategicamente buscava cansar a Guardiã, que após
enfrentar ao todo quase uma hora de batalha, tinha os músculos no final de suas
forças, e que logo entrariam em colapso. A linda guerreira previa um final nada
favorável se continuasse naquele ritmo.
S urpreendendo o inimigo, Ravina iniciou uma série de golpes giratórios,
utilizando a cauda, as garras dos pés, e até a cabeça. O tho, mesmo após anos a fio
de intenso treino militar e artes marciais, nunca presenciara uma iniciativa como
aquela. S eu arsenal de movimentos não continha uma resposta eficaz, e por isso ele
acabou perdendo o equilíbrio ao improvisar um contra-ataque.
Vendo o inimigo perder a base, a Guardiã sentiu que o momento era mais que
oportuno. I nfelizmente, um acontecimento externo viria alterar os rumos daquela
peleja. Uma profunda escuridão recobriu o sol e deitou seus tentáculos envoltos
em trevas sobre o campo de batalha. N em quando ela fechava os olhos presenciava
tão completa negrura, e seus sentidos, já extenuados, não puderam se adaptar a
tempo. Mal sabia ela que a mudança repentina era obra do S upremo Lorde
Mondovar, enquanto combatia Vanhardt. O adversário de Ravina, ao contrário
desta, agora se beneficiava dos anos de treinamento que o ensinaram lutar às
cegas, e imediatamente passou-lhe uma rasteira, levando-a ao chão. O meio-urso
não demorou dois segundos para subir em seu tronco e imobilizá-la, urrando
grotescamente. A s trevas, assim como vieram, acabaram voltando à sua origem,
permitindo que raios solares iluminassem a derrota de Ravina. Como uma fera
ensandecida, esta tentava se libertar de um abraço infalível, sabendo que era sua
única chance de sobrevivência. O tho agrediu seu rosto comprido várias vezes com
as garras de urso, até as gengivas sangrarem, e dentes se quebrarem. Por muito
pouco a Guardiã não perdeu a consciência.
Foi realmente um belo aprendizado ter lutado com você - O tho ergueu a garra
direita, o mais alto que podia, preparando o golpe derradeiro. - Confesso que por
um momento achei que iria peder. - O urso arfava e deixava gotas escorrerem por
seus pêlos grossos e caírem sobre Ravina.
S abe o que eu faço em gente como você? - perguntou o lagarto, com voz rouca, e
remexendo a língua dentro da boca. - Eu cuspo!
Uma rajada de saliva misturada com sangue voou em direção ao rosto de O tho.
A quele cuspe, porém, não era comum. Misturado a ele ia um canino de dez
centímetros de comprimento com ponta voltada pra frente, dente quebrado por
O tho e preparado minuciosamente por Ravina dentro da boca. O dente atravessou
o olho esquerdo do urso, obrigando-o a levar ambas as mãos ao excruciante
ferimento, enquanto berrava enlouquecido:
AAH!!! AAAAAAAAHHH!!!
A proveitando o instante de distração, e utilizando as forças reservas, Ravina
enfiou sua garra no peito do general, na altura do coração. Este abriu o olho são,
como se não acreditasse no que acabava de presenciar. Ele perdera. Deixara escapar
entre os dedos uma luta já vencida. S uas pálpebras se moveram
espasmodicamente, e em seguida desceram lentamente sobre o olho. O s braços
perderam a tensão e penderam ao lado do tronco. Logo seu corpo caía para o lado,
inerte, e a neve recebia-o de braços abertos, tranquilamente, como uma mãe a um
filho. Ravina por sua vez despencou para trás, esgotada.
O s espectros se aproximaram dos dois corpos ali deitados, como se tivessem se
libertado de um encantamento. S eu general estava morto, mas a inimiga ainda
respirava. E a ordem era que nenhum inimigo poderia viver. Q uando a Guardiã
conseguiu erguer a pálpebra de um olho, vendo vultos nebulosos erguendo
espadas, não sentiu medo, e sim paz. Havia pagado a dívida com Vanhardt. Estava
mais próxima da inconsciência, e naquele momento mal podia pensar em qualquer
coisa. Queria apenas permanecer naquela paz. A verdadeira e única paz, enfim.

S eus ouvidos zumbiam, como se uma abelha estivesse presa ao lado de cada
tímpano. E o corpo leve como uma pena - praticamente podia voar. A quela
sensação, uma velha conhecida sua, de magnetismo e importância, rodeava sua
pele, e era suave e doce, ao contrário de algumas ocasiões anteriores. Q uando
Vanhardt abriu os olhos, não se assustou ao perceber que voava de verdade, alguns
metros acima do solo. Um fio de prata ligava seu umbigo até um corpo deitado no
chão, de um homem, que ao reparar bem, era o seu próprio corpo.
Estava naquela dimensão que Lila chamara de "astral", e não se assustava por
isso. O mundo ali parecia ao mesmo tempo real e um sonho, e seus sentidos às
vezes se misturavam, como quando sentia o "cheiro das cores". A s lembranças dos
últimos momentos derrubaram alguma porta em sua mente, e jorravam como uma
cachoeira. Revivia pela segunda vez o que acontecera, porém de maneira tão
realista e intensa quanto da primeira.
Mondovar atirara uma bola negra coberta com relâmpagos em sua direção, e
por um milésimo de segundo soube que sua vida teria fim naquele instante. D e
repente, entretanto, enxergou uma luz branca, fortíssima, como se um pedaço do
próprio sol cruzasse os céus, vindo do leste. Era do tamanho de uma laranja, e
deixava um rastro branco por onde passava. Em virtude de uma velocidade
semelhante à da bolha negra, a pequena fonte de luz se chocou contra esta antes
que Vanhardt fosse atingido.
Uma micro-explosão, tão furiosa como se dois universos estivessem se
chocando reverberou dentro de um raio de pouquíssimos metros, iluminando
aquela área por uma infinidade diferente de cores, e produzindo um som como o
de um choro agudo. Mondovar em seu estado de concentração não foi capaz de ver
o que acontecera, e acreditou que seu ataque houvesse atingido Vanhardt. Este
último, por sua vez, sentira uma fração do impacto, que foi capaz de atirá-lo para
fora de seu corpo físico. N em queria imaginar o que teria acontecido se o golpe o
tivesse atingido em cheio.
A ssim que as lembranças o libertaram, ele olhou para o chão. S eus instintos o
guiavam na procura de algo que ignorava, porém quando viu, seu peito se encheu
de alegria e pavor.
Lila!!! - gritou o rapaz enquanto voava de volta para seu corpo físico, e levantava
com dificuldade.
Ele se via frente a duas opções agora: aproveitar que Mondovar virara as costas
e tentar derrotá-lo, invocando o dragão de fogo, ou ajudar sua amiga, estirada
sobre a neve, que talvez até já estivesse morta. S em hesitar entre as alternativas,
Vanhardt deixou profundas marcas na neve enquanto se aproximava da fada, e
colocava Flama dentro do braço. Ele caiu de joelhos assim que chegou ao seu lado,
e levantou-a nas duas mãos. A fadinha se encontrava exatamente igual a vira pela
última vez, com os longos cabelos verdes esticados ao lado do corpinho que usava
um vestido de folhas vermelhas, e as asas, intactas, em suas costas. Mantinha a
boca semi-aberta, e parecia dormir tranquilamente. Estacas de gelo fictícias
atravessavam o peito de Vanhardt que não sabia como reagir.
Lila, por favor... Lila, não morra! - pequenas lágrimas se formavam no canto dos
olhos do rapaz que previa o pior. - N ão ouse Lila, não ouse! S e você me deixar com
quem irei reclamar? - as lágrimas agora molhavam o vestido da fada, uma a uma.
Gemente, e revelando extremo esforço, a fada virou a cabeça para o lado, e abriu
os olhos piscando muito:
Oi... - a voz de Lila saía fraca, como se suas últimas forças se esvaíssem.
Q ue bom que cheguei a tempo... eles são lentos! - o indicador daquele ser
pequenino apontava para o céu, na direção do norte, e Vanhardt viu que figuras
brilhantes salpicavam o horizonte.
Eu vi Lila; as tropas de minha mãe estão vindo. O uça-me com atenção: irei te
curar, e tudo ficará bem... Poupe suas forças, ok? - a mão do filho da deusa do gelo
emanava uma luz amarela, quente e aconchegante, que analgesiaram os membros
doloridos da fada. A água nos olhos de Vanhardt continuou a derramar, pois ele
viu que suas energias curadoras pareciam fugir pelos poros da amiga assim que
entravam no seu corpo pequenino.
Tudo bem, Van. N ão adianta, eu sinto... N ão tenho medo de morrer. É porque
não está doendo... - Lila esforçava-se para sorrir - N ão me arrependo de nada
também. N a verdade, só de uma coisa. Vanhardt Mohr D aicecriv, eu nunca te disse
isso de maneira clara, mas... - os olhos da fada de repente fecharam, ela tremeu
num espasmo, e nada mais saiu de sua boca.
N ão!!! - O filho da deusa do gelo socou o chão com a mão diferente daquela que
tentava curar a fadinha. - Lila, volte! LILA! AH!!!
A o ouvir os gritos, Mondovar parou. N ão podia ser. Ele avaliara o adversário
anteriormente, e nenhuma energia era detectável no seu corpo. Era impossível que
Vanhardt estivesse vivo! Lentamente ele foi se virando, e se deparou com o rapaz
de pé, encarando-o com o rosto sério e banhado em fúria, segurando algo sobre a
mão direita que a distância o impedia de determinar o que era.
Mas como...? - a voz de Mondovar escapava sussurrante de trás do elmo.
Pelos deuses, isso é impossível! Ele sobreviveu!
S eu canalha miserável! O que eu fiz para você tentar tirar da minha vida tudo o
que é importante para mim? - Vanhardt apontava para Mondovar, enquanto um
dragão de fogo, agora com escamas vermelhas, brilhantes, e duas vezes maior do
que os anteriores, serpenteava em espirais nas pernas do rapaz. - O nosso duelo
ainda não terminou. Eu juro que no próximo encontro o matarei... N em que seja a
última coisa boa que eu faça na minha vida!
O dragão saltou de Vanhardt, e parou ao lado do jovem, abaixando a cabeça. Ele
era cilíndrico, com cerca de cinco metros de comprimento. D uas patas dianteiras,
próximas à cabeça, apresentavam garras incandescentes, de cor amarela. O rabo
por sua vez ia se afunilando aos poucos, e terminava com escamas liláses no seu
dorso, que resplandeciam ao contato com a luz do sol. A cabeça era retangular,
esticada para frente, mostrando três fileiras de dentes brancos como marfim.
Telepaticamente falou com o dono, explicando que seu nome era Kundalini, e que
estava ali para servi-lo. S ubindo nas costas do dragão, com a fada na mão esquerda
que continuava emitindo uma luz amarela, Vanhardt pressionou a face de dentro
das coxas contra o corpo do animal que lhe serviria de montaria. S em retirar os
olhos do inimigo, o filho da deusa do gelo cutucou as costas do dragão vermelho
com a mão livre, e alçou vôo depois de girar 180°, rumando para o norte. Falou
mentalmente com Kundalini, pedindo-o para subir o mais alto possível, e se
afastasse dali. Q ueria chegar o quanto antes no castelo de cristal, e tentar salvar
Lila.
Mondovar não esboçou nenhuma reação quando viu uma nuvem branca se
erguer assim que o dragão saiu do chão. Ele assistiu pacientemente Vanhardt
ganhar altura, e sua figura diminuir de tamanho. N ão queria reagir. N a verdade,
estava tão assustado, que não sabia como reagir. S obreviver àquele ataque da
Ceifadora de vidas só podia significar que o rapaz adquirira um poder equivalente,
se não superior, ao dos deuses. E isso era no mínimo assustador.
N o trajeto, o filho da deusa do gelo olhou para baixo, e viu a vila de Crivengart
ardendo em chamas, e o celeiro cercado por centenas de espectros. S eus vizinhos,
amigos, seu pai, e até o pequeno Erick estariam todos ali, correndo perigo. E ao
mesmo tempo Lila só resistia abraçada a um fio de vida, graças à magia Aruc vanidi.
S e salvasse sua família e os vizinhos, Lila morreria, e se tentasse fazer o inverso, as
vítimas seriam a família e os vizinhos. O jovem herói fechou os olhos, gritando em
sua alma, tentando fazer com que sua voz interna alcançasse a deusa do gelo. Por
favor, mãe, lembre-se do seu filho! Ajude-me! Eu não conseguirei sem a sua ajuda!
A ssim que abriu os olhos, viu criaturas iguais a seres humanos, com espadas
prateadas nas mãos, e longas asas de penas brancas como as de cisnes voando em
sua direção. Eram figuras magníficas, com vestes douradas, brilhando e
resplandecendo. Vanhardt contou sete deles, e notou que se tratava daqueles
"lentos", os quais Lila indicara anteriormente ao apontar para o céu. O s anjos, seres
dos quais o jovem ouvira histórias a respeito quando era criança, passaram ao lado
dele, cumprimentando-o com a cabeça, e depois seguiram na direção de onde
Mondovar e grande parte dos espectros se encontravam. Atrás deles, centenas de
Grilliardus desciam em rasantes, mirando o celeiro e já arrancando a cabeça de
inimigos nos primeiros golpes. S obre a terra, cruzando a muralha improvisada ao
norte da vila, dezenas de animais grandes e peludos, os Crivmarions, além de
milhares lobos brancos e seus parentes menores, os lobos das estepes, seguiam
furiosamente contra as tropas que se encontravam próximas ao celeiro e não foram
atingidas pelos primeiros ataques dos Grilliardus.
Léia realmente se atrasara, e muito, pelas contas de Vanhardt, porém esse era
um problema secundário a ser discutido. A fada não estava nada bem, e poderia
falecer a qualquer segundo. A ssim que Vanhardt percebeu que seus poderes não
seriam capazes de curar a amiga, ele entendeu que a única entidade que poderia
fazê-lo seria sua mãe. Ele agora voava sobre o dragão de fogo, cujas escamas
flamejantes não o queimavam, tentando chegar o mais rápido possível ao castelo
de cristal. D epois que deixasse Lila aos cuidados de Léia, voltaria para terminar a
batalha, e dar fim à vida de Mondovar.
D entro do celeiro, onde se refugiavam os últimos moradores vivos da vila,
Thomas e os outros soldados, que permaneciam de pé e lutando heroicamente, se
assustaram quando os espectros pararam de entrar no abrigo. N a verdade, estes
até mesmo deixavam o local, para enfrentarem uma ameaça externa.
É a ajuda da deusa do gelo! Até que enfim ela nos agraciou! - exclamou
Ganimex, um dos filhos de Greylock.
S e tivesse chegado antes teria sido uma verdadeira ajuda. A gora, está tentando
apenas salvar o chapéu do afogado. - D ona Lavínia se ergueu de trás de uma
mobília onde se escondia, e cuspiu no chão.
Pelo menos ela veio, e estamos salvos. D evemos agradecer por isso, pois nada
fizemos até hoje a favor da deusa do gelo! - Thomas dissipou um burburinho com
sua voz grave. - E tratem de continuar em suas posições, pois a batalha ainda não
terminou. - O pai de Vanhardt apertou o martelo entre os dedos, e manteve os
olhos fixos através da porta quebrada, onde via Grilliardus, ursos das neves e lobos
lutando contra espectros.
D o lado de fora, a batalha seguia fervendo. A s tropas de Léia chegaram com
fôlego novo, e num primeiro momento fizeram centenas de vítimas que caíam sem
oferecer resistência. A gora, contudo, a vantagem desaparecera completamente.
Q uando um espectro caía, um lobo, um urso ou Grilliardus caía junto. A s baixas
eram iguais para os dois lados, o que era muito pior para a deusa do gelo, que
apresentava um contingente cerca de trinta vezes menor. Havia algo errado. Em
tese, tanto os lobos, quanto os Grilliardus e os Crivmarions seriam mais fortes que
os espectros. Mas quando se enfrentavam em um contra um, a probabilidade era a
mesma de sair uma vítima para qualquer lado. Exceto os Crivmarions, que
destruíam dez inimigos antes de tombarem, as tropas de Léia iam diminuindo de
número a olhos vistos.
A resposta para essa pergunta era simples, e também ajudava a explicar porque
tamanho atraso de Léia para enviar seus soldados à guerra. Cada criatura da deusa
do gelo estava encubada e só ficaria pronta daí a muitos meses, ou até anos. Frente
a uma ameaça iminente, a antiga deusa da morte descarregou uma enorme
quantidade de energia divina, procurando acelerar o processo, atitude esta
denominada "carga". A carga certamente comprometeria o desenvolvimento de
suas tropas, porém era uma decisão necessária, e foi tomada sem hesitação.
A contece que Mondovar chegou um dia antes do previsto, passando uma rasteira
nos planos da mãe de Vanhardt. S e ela tirasse os soldados da encubação naquele
instante, a grande maioria faleceria. S em outra opção, ela deu uma "segunda carga"
de energia divina em suas criaturas. D esde o surgimento de Kether, e das
primeiras batalhas divinas, isso só havia sido realizado uma ou duas vezes, e com
resultados catastróficos. A s tropas nasciam malformadas, com membros em
lugares errados, imprestáveis, além de um grande número de fatalidades. Mesmo
sabendo das terríveis conseqüências, Léia assim o fez, e esperou até o último
minuto possível para tirar suas criaturas das cubas, tentando diminuir os
resultados negativos.
A s criaturas enfim nasceram, e com membros nos lugares certos, e aparência
pelo menos próxima do normal. Houve é claro uma grande taxa de mortos - no
caso, um quinto do total. A situação foi pior para sua tropa de elite, os "anjos da
morte". D os doze que haviam sido preparados, apenas nove nasceram vivos, e dois
deles morreram alguns minutos depois do nascimento. A gora que todos se
encontravam em batalha, Léia percebia que apesar de uma boa aparência externa, a
habilidade de combate das criaturas foi comprometida, e por isso elas não se
mostravam tão fortes. O número inferior do contingente poderia ser
comprometedor, visto que os espectros conseguiam manter a balança de perdas
equilibrada.
O s anjos da morte eram uma exceção aos resultados negativos gerados pela
"segunda carga". A primeira missão da tropa de elite foi salvar Ravina, que cercada
por espectros, estava prestes a ser massacrada. Eles deram rasantes circundando os
espectros, e depois desceram as espadas sobre suas cabeças e corpos deixando
meia dúzia de vítimas fatais. D epois pousaram no chão e fizeram um círculo ao
redor do lagarto, e como se fossem uma criatura única, desfiavam golpes atrás de
golpes, de maneira rítmica e simétrica, como uma equipe, e destruindo dezenas de
inimigos em poucos segundos. S eguindo a ordem de um deles que usava fitas
vermelhas amarradas no braço, e aparentemente era o líder, três anjos alçaram vôo
e passaram a atacar os flancos, vindo por trás, numa estratégia que desorientou os
espectros.
Mondovar viu os reforços de Léia chegar, e mesmo assim não parecia
preocupado. A s tropas que estavam com ele agora corriam desorganizadamente,
ou para dentro de Crivengart, ou de encontro aos anjos da morte. Ele virou as
costas e caminhou lentamente para a sua carruagem de ferro. Q uando chegou aos
seus pés, olhou para o transporte que mais parecia um prédio. Mesmo usando uma
armadura aparentemente pesada e limitadora de movimentos, depois de três
pulos, conseguiu escalar sem demonstrar dificuldade os nove metros que
separavam o chão do trono de ossos ali instalado. D ando tapas para retirar a neve
que depositara no acento e nos encostos para braços, ele sentou-se, e passou a
admirar a batalha. D ali a poucos instantes, todos os inimigos estariam mortos, e a
vila finalmente tomada. A missão fora mais difícil do que ele previa, mas enfim
poderia reerguer o obelisco naquele ponto estratégico ao norte do continente.
D entro do castelo de cristal, Vanhardt cruzava os corredores montado em seu
dragão incandescente. S ubira alguns vãos de escadas, passara sob portais, e se
aproximava do salão do trono. O bedecendo a um estalo dos dedos do rapaz,
Kundalini desapareceu em faíscas amarelas e vermelhas, e Vanhardt aterrissou
com largas passadas, para que não caísse. Ele abriu as enormes portas com força e
disparou para dentro, gastando todo o seu fôlego para dizer à mãe:
Mondovar atacou Lila e agora ela está morrendo, mãe! Eu a trouxe aqui para...
Mãe?
A deusa do gelo terminava de afivelar um cinto, e ajeitar um elmo cilíndrico na
cabeça. Ela deu pancadinhas na malha de prata que cobria seu dorso e metade de
suas pernas, testando-a inocentemente. Pegou o cetro que estava enfiado num dos
braços de seu trono e depositou um olhar misterioso no filho.
N ão se assuste, meu querido. O mundo seria um lugar muito melhor se todos
soubéssemos qual é o nosso momento. Eu pelo menos sei que agora é o meu. O
que ia mesmo dizendo?
É... E... - a saliva rareava dentro da boca do rapaz, que não esperava ver sua mãe
se juntar à batalha. - Lila está muito ferida, e não consigo curá-la! Eu a trouxe, pois
imaginei que você seria a única capaz de fazer algo.
Traga-a aqui, rápido! - a deusa do gelo bateu no chão três vezes com a base do
cetro, fazendo surgir dali uma mesa, com pernas espiraladas e um tampo quadrado
e finíssimo de cristal.
Com cuidado Vanhardt colocou a fada sobre a mesinha, sem deixar de manter
uma mão sobre ela, de modo que os feixes amarelos da Aruc vanidi a banhassem
continuamente. A deusa do gelo fechou os olhos, colocou a ponta do indicador na
testa da fada, e inspirou profundamente. D epois de alguns minutos meditando, ela
expirou, e abriu os olhos, com um semblante nada feliz.
A lilandra está ferida em sua alma, e não consegue mais reter energia vital
dentro de si. É como um balde furado, que por mais que o enchamos, logo volta a
se esvaziar.
Então é só fechar o buraco, mãe! N ão temos muito tempo, me diga como
faremos isso?
Escute com atenção, meu filho. A lilandra foi um ser que desde o seu
nascimento devotou-se a uma missão, que era ajudá-lo. Em todas as vezes que
conversamos, ela me dizia que estava extremamente feliz. Até nos últimos dias que
estivemos juntas, período em que curei suas asas, ela me falava que não queria
abandonar a missão. Ela o amava tanto, que até me pediu que eu a transformasse,
para que assim pudesse ficar mais próxima de você. Q ueria virar humana. Eu
respondi que não era possível, e Lila ficou muito angustiada, isolando-se no quarto
em que estava instalada. Hoje, entretanto, acordou com o mesmo semblante de
antes, risonho, dizendo-me que não importava em não poder virar humana. Ela
simplesmente queria ficar ao seu lado, e devotar sua vida para ajudá-lo. A gora
venha aqui. - Léia soprou sobre a fada, e uma redoma de luz amarela ficou ali,
permitindo que Vanhardt desfizesse sua magia e seguisse mãe.
O s dois se aproximaram da fonte redonda, onde havia gelo, que logo se
transformou em água quando Léia deslizou o cetro sobre sua superfície. A s
imagens, ligeiramente distorcidas, se apresentavam sobre um fundo azulado, e
mostravam a batalha em Crivengart. Crivmarions, lobos e Grilliardus se
engalfinhavam numa luta sangrenta contra os espectros. A mbos os exércitos não
moviam um centímetro, e na linha de frente centenas de vítimas tombavam de
ambos os lados. D entro do celeiro, crianças choravam, e homens recebiam
curativos improvisados, que provavelmente eram a única chance de sobreviverem.
N o colo de J úbia, Erick estava roxo de tanto se espernear, e a mulher tentava
acalmá-lo. Em outro ponto, os A njos da morte lutavam valentemente contra os
espectros, porém o cansaço já era visível, e eles começavam a receber os primeiros
ferimentos. Um deles caiu, e se não fosse um puxão de A nael, o líder, estaria
morto.
Eu não posso salvar Lila. Existe um meio, uma espécie de cirurgia, mas nunca a
realizei antes. Precisaríamos de um deus muito experiente, além de um ajudante, o
que é inviável no momento. A lém do mais, levaria horas. Eu não posso dedicar
todo esse tempo para salvar Lila, enquanto tantos estão em perigo. Lembre-se que
seus amigos estão lá. Até mesmo seu filho! S into muito meu querido, mas Lila
morrerá para salvarmos muitos. Eu disse para você que deveríamos saber qual é o
nosso momento. Lila sempre soube qual era o dela.
Vanhardt foi até a mesinha, e observou atentamente o rosto de sua amiga. Ela
parecia tão tranqüila. O rapaz lembrou-se de suas últimas frases: Não tenho medo de
morrer. É porque não está doendo... Realmente não parecia doer, pois ela se mostrava
em paz. Uma lágrima escorreu dos olhos do jovem, enquanto ele rememorava seus
momentos felizes com a fada. Vanhardt ia deixando o salão do trono, cabisbaixo e
tentando deter um choro iminente, quando sua mãe chamou-o, assustada.
Vanhardt! Venha aqui! Olhe! - Léia apontou o cetro para dentro da fonte.
A s imagens refletidas na superfície líquida fizeram o coração do filho da deusa
do gelo crescer de tamanho, e bombear sangue com muito mais força. S eus olhos
se arregalaram, e um fio de esperança cresceu em seu peito. N as periferias leste e
oeste de Crivengart, uma nuvem branca se erguia devido à passagem de um
numeroso exército. Contavam-se milhares de criaturas de ambos os lados, que se
aproximavam numa velocidade estonteante em direção à pequena vila no meio da
terra do gelo. Quando o espelho aquoso refletiu as criaturas de perto, pôde-se notar
que eram gafanhotos, grilos, besouros, abelhas, mariposas, e toda uma vasta gama
de insetos gigantes. A lém disso, vindo do sul, e fazendo a terra tremer, um exército
não muito menos numeroso de minotauros descia uma colina e já atacava as
fileiras de espectros posicionados atrás da carruagem de ferro que carregava o
obelisco.
A balança que se mantinha equilibrada, agora se virara completamente para o
lado dos Crivengartenses. As tropas de Mondovar não estavam preparadas para tão
imediato revés, e logo centenas e centenas de espectros tombavam sem esboçar
reação. O s reforços iam costurando as linhas inimigas, sem deixar ninguém de pé.
O s A njos da morte, que se encontravam numa posição puramente defensiva, logo
contaram com a ajuda de uma pequena equipe de minotauros, que se destacou da
força principal, e era liderada por Taurok, dentro de sua elegante armadura
dourada. O deus dos minotauros girava o machado que antes fora de Ghar com
maestria, e dizimava dezenas de inimigos. Ele foi o responsável pela equipe
conseguir penetrar as fileiras de espectros que os separavam da tropa de elite de
Léia. A njos e minotauros passaram a lutar lado a lado, frente ao inimigo que ficara
completamente descoordenado.
N ão demorou muito tempo até que metade das forças de Mondovar fosse
derrotada. O guerreiro de armadura negra bem que tentou reorganizar suas tropas,
porém conseguiu oferecer apenas uma média resistência aos reforços. Ele até
cogitou em se unir pessoalmente à batalha, desistindo logo da idéia ao pressentir
um final completamente desfavorável de seus esforços. Trombetas ressoaram
sobre o campo, anunciando uma retirada. N aquele ponto, a vila de Crivengart já
estava livre de espectros, e ao notar que os inimigos, e até a carruagem gigante de
ferro, fugiam desesperadamente, o povo expulsou um grito entalado no fundo da
garganta. Haviam nascido de novo; haviam vencido uma luta impossível. O s
milhares de espectros que antes avançavam sobre a pequena vila, agora seguiam
por caminho oposto, e aquela visão não era nada desagradável.
O s A njos da morte e alguns minotauros quiseram seguir a carruagem de ferro
que escapava com um montante de pouco mais de dez mil soldados, porém Taurok
foi enfático: ninguém mais pereceria naquele dia. Especialmente aqueles do seu
lado. O s minotauros então desistiram da idéia, e os A njos, mesmo não tendo
Taurok como seu mestre, e depois de receberem um sinal afirmativo de A nael,
acabaram acatando as instruções do deus dos minotauros.
Q uando as frentes se encontraram, insetos, minotauros, tropas de Léia, e
Crivengartenses, saudaram-se com alegria e entusiasmo desmedido. O s humanos
ficaram ligeiramente temerosos frente aos monstros que sempre os assombraram,
porém, ao perceber que eles nada fariam de mal, acabaram relaxando. Taurok
encontrou um grupo de insetos, e precisou empurrá-los para prosseguir
caminhando. Procurava pelo mestre deles, e não demorou para encontrar Zing, que
sentado em um trono nas costas de um besouro, saboreava um cálice de seu
famoso néctar.
N ão poderia encontrar Vossa D ivindade em situação diferente, nobre Zing -
Taurok, com um sorriso no rosto, apontava o machado para o copo na mão do deus
dos insetos.
Logo notei que aquela parede que vinha derrubando meus súditos não seria
outro exceto o poderoso Taurok! - Zing ergueu seu cálice para o céu, e continuou -
Venha, tome um gole! D epois de uma vitória como essa, nada melhor do que uma
comemoração digna!
Próximo ao celeiro, ajudando a estancar sangramentos, cobrir feridas, e tentar
impedir as crianças de brincar com os insetos gigantes, Thomas notava a falta de
um amigo.
Greylock, você estava do meu lado quando os inimigos nos cercaram, e fomos
obrigados a voltar para o celeiro, certo?
Com certeza, Thomas! - Greylock tomava um estilingue das mãos de um garoto
que atirava pedrinhas num grilo. - Por que a pergunta?
É porque Green também estava do meu lado, mas ele não entrou no celeiro
conosco. Cheguei a pensar que ele estava morto, só que também não vi seu corpo
aqui fora. O que será que aconteceu com aquele duende?
Capítulo LXVI - O que Aconteceu com Green

D urante a batalha, e depois de escapar de dois ataques dos espectros, que


afundaram espadas enferrujadas na neve, Green se abrigou numa casa próxima ao
celeiro. A luta o atirara longe demais das portas de celeiro, e ele assistira,
assombrado, elas se fecharem. Morto era como ele estaria dali a alguns minutos se
não encontrasse outro abrigo. Entrando pela janela dessa casa, o duende tratou de
fechá-la sem fazer barulho, e colocar escoras de madeira. Estava tudo muito escuro
lá dentro, e ele pouco enxergava a um palmo de distância dos seus olhos. Tateou o
chão em busca de algum móvel para se esconder embaixo, e tomou um susto ao
tocar em penas macias, e escutar um "co-co-cooó" logo em seguida.
Clotilde? Reconheço esse cacarejo em qualquer lugar, é você minha filha? - o
duende continuou tateando, e notou barbantes amarrados na perna direita da ave. -
Eu não acredito, esses aldeões safados capturaram você! A posto que iam fazer um
ensopado! N ão minha querida, fique tranqüila, o titio Green aqui vai soltá-la, e
tudo vai ficar bem... Mas faça silêncio ou os espectros podem nos ouvir... - Green
sussurrava enquanto cortava o nó com sua espada.
O ra, ora, quem diria que eu iria encontrá-lo logo aqui! - uma voz, ecoou pela
escuridão, e quando Green a reconheceu, teve o rosto tomado por indizível
perplexidade.
É você!
S im! - o rosto de Hilda Risalv surgiu, quando essa acendeu uma chama na ponta
do indicador, que apontava para cima. - Há quanto tempo não nos vemos, meu
nobre colega?
S ua maldita! Estive atrás de você e do seu marido todo esse tempo, a fim de
matar ambos! O que vocês fizeram conosco foi inaceitável! - o duende apertou com
força a algema pendente no seu pescoço.
I naceitável é um miserável como você falar nesse tom comigo. S eu irmão teve o
que merecia, e como não podemos mais nos utilizar de seus poderes, você não
passa de lixo! Eu reparei que tem um afeto por esse animalzinho. Que tal se eu...
A mulher atirou a chama do indicador para cima, acertando e acendendo um
lampião pendurado no teto. Com os cinco dedos apontados para o teto, Hilda fez
com que a galinha levantasse cerca de um metro do solo. Clotilde cacarejou
desesperada, enquanto a mulher, que gargalhava malignamente, fazia a galinha
rodopiar.
Pare com isso agora, maldita! PARE!!!
Como deseja Green... - Hilda apertou os dedos contra a palma da mão, e um
som, como o de um graveto se quebrando, foi ouvido antes da galinha cair imóvel
no chão!
N ÃO !!! - Green se ajoelhou ao lado da galinha, cujos olhos refletiam o vazio. Ele
procurou levantar Clotilde, mas o pescoço da galinha tombou. Hilda o quebrara, e
Clotilde estava morta. - Você... você... você não sabe o que acabou de fazer...! - com
lágrimas escorrendo pelas bochechas, Green procurou disfarçadamente um objeto
no bolso de suas calças.
N ão seja patético, duende covarde! Eu sei muito bem o que fiz: provoquei!
Humilhei! S em você e seu irmão, meu marido se desesperou, e por isso fugiu com
S elena para longe. Q uase perdi meu posto dentro da D ivina S erpente. Por sua
culpa minha vida quase foi arruinada.
E você e seu marido arruinaram a minha e do meu irmão! Há vinte anos,
quando nos acharam! - o duende gritava furioso e girava uma corda com um laço
acima da própria cabeça.
O que está tentando? Brincar de vaqueiro? S e você tentar me laçar, usando um
objeto comum, demonstrará que é mais burro do que eu imaginava. Lembre-se que
posso mover os objetos com minha mente, e nunca o deixaria me laçar.
I sso se a corda fosse comum! - Green atirara o laço sobre a cabeça de Hilda, e
quando puxou a corda, ela prendeu ambos os braços da mulher, juntos da cintura.
Ele deu outro puxão derrubando Hilda no chão como uma árvore depois de ter a
base do tronco serrada. - E agora, baronesa de Avendorh? O que S ua S apiência fará
a respeito?
Hilda remexeu-se, porém continuava bem presa dentro das cordas. Green
aproximou-se dela, sem exibir sorriso algum. Estava surpreendentemente sério. Ele
passou a espada que mantinha na mão esquerda para a direta, deixando a corda no
chão, e procurando ter certeza do que ia fazer. Ele não era assassino, mas aquela
mulher foi diretamente responsável pela morte dos que ele amava. Hilda não podia
viver, ou praticaria aqueles crimes novamente. Escutando um novo barulho,
provavelmente referente à luta fora daquela casa, Green viu sua espada ser
arrancada da sua mão e jogada contra a parede. Q uando deu por si, Hilda
continuava deitada no chão, mas com as cordas soltas, e as mãos esticadas para
frente, abertas.
Mas... O quê?
Há!Há!Há! - o riso quase infantil da mulher era profundamente irritante. -
Como foi ingênuo! D iga-me que é mentira, diga-me que não é tão estúpido! N ão
apertou o laço e ainda soltou a corda! Eu não precisei de força nenhuma para me
soltar! Há!Há!Há! Realmente, o seu irmão era o único que prestava. Mostrava
alguma coragem, e uma inteligência infinitamente superior à sua!
O corpo do duende foi jogado contra a parede do fundo, e depois contra a da
frente, e só parou quando Hilda o deixou cair de rosto no chão. O nariz de Green
sangrava, e ele tentava se levantar com dificuldade. N ovamente a mulher atirou-o
no teto, e depois contra uma mesa coberta com um forro. D essa vez Green gemia, e
achou que tinha quebrado uma dúzia de ossos. A mulher aproximou-se lentamente
do duende, e virou-o de barriga pra cima com a ponta da bota. Hematomas
cobriam-lhe o rosto, especialmente ao redor das órbitas, e sangue escapava-lhe
pelo nariz. D isplicentemente, Hilda puxou uma cadeira para perto, e sentou-se de
pernas cruzadas.
Q uando entrei por aquela porta, pensei em ficar apenas olhando pela janela,
esperando que alguém escapasse do celeiro. Q uando o espertinho assim o fizesse,
me encarregaria de eliminá-lo. N unca, em toda a minha existência, eu sonharia que
veria você entrar por aquela janela. D uvidei tanto, que só tive a certeza quando
pronunciou o próprio nome. Meu queridinho, você nos deu tantas alegrias, e tanta
dor. Escute! Escute bem! N ão ouço mais gemidos, nem espadas tilintando. A cho
que todos foram dizimados! A h, será muito mais divertido ver meus espectros
acabarem com você!
Em seu orgulho desmedido, Hilda não cogitou que os gritos de comemoração
fossem dos Crivengartenses, e não dos espectros. Ela atirou o duende pela janela,
esperando que lá fora um bando de soldados esqueléticos e famintos o
devorassem. A ssim que saiu pelo mesmo local, qual não foi seu espanto quando se
deparou com insetos gigantes, minotauros, e humanos feridos.
Green? - gritou Thomas, correndo até o pequenino, e verificando o seu pulso. -
Graças a Léia, ainda está vivo!
Há! Há! Há! GUÁ! GUÁ! GUÁ! - o duende se engasgou com o próprio sangue
misturado à saliva. - Burro... burro... Quem é a burra aqui?! GUÁ, GUÁ!
S em esboçar reação, a mulher levantou as mãos, e logo um gafanhoto pôs- se a
prender os seus pulsos nas costas. Como fora imprudente! Presa! Presa da maneira
mais ridícula possível! Em confiança e orgulho desmedido, atirou-se de encontro
ao centro do exército inimigo, deixando-se capturar sem poder oferecer qualquer
resistência. I nfelizmente nem toda sua inteligência ou magia a salvariam agora.
D epois de observar o exército ao seu redor, que a olhava com curiosidade, a
feiticeira tratou de abaixar a cabeça. N ão deixaria aqueles olhares ferirem mais
ainda a sua dignidade.
Uma borboleta curandeira tratou de sarar as feridas do duende, que logo
recebeu o abraço de Ravina, já em sua forma humana, e também livre de
ferimentos.
Eu achei que você não sobreviveria à batalha. - disse a Guardiã, com o rosto
sério. Green notou que era verdade.
É tão bom ter amigos otimistas! - Green deu um sorriso irônico. - Mas onde está
Vanhardt? Não me diga que ele...
N ão, Green, relaxe. Ele está bem, no castelo da mãe. A quele minotauro ali, e a
abelha superdesenvolvida do lado dele, são dois deuses: Taurok e Zing,
respectivamente. O swaldo acabou de mandar uma mensagem para os dois,
convidando-os, e também a nós, para irmos até o castelo de cristal.
Festa? Eu bem que mereço... Mas será que podemos levar uma terceira pessoa?
Vanhardt também ficará satisfeito por vê-la. Eu garanto.
Capítulo LXVII - O Paradeiro do Manto das Ilusões

A sala era pequena, cerca de oito metros quadrados. D ois sofás verdes em
cantos opostos, de penas de ganso, um candelabro com três cristais no teto, e um
tapete redondo, roxo nas bordas, e amarelo no centro, eram os únicos pertences no
cubículo. Ravina se afundava no sofá, com a mão direita sob o queixo, e olhava
fixamente para Green que andava de um lado para o outro no aposento.
Green, você está me deixando nervosa! N ão me diga que tudo isso é por causa
da operação de Lila? Léia falou que é um pouco demorada, mas com Taurok e Zing
como assistentes ela descartou a possibilidade de erros. S ó não dará certo se o
corpo de Lila rejeitar parte da energia vital de Vanhardt.
Pra ser sincero, não é isso que me preocupa. Bem, talvez um pouco. Eu gostaria
logo de saber o que será feito daquela megera! - Green coçava a cabeça, e suava
pelas têmporas.
Está falando de Hilda Risalv? A sogra de Vanhardt?
A própria! O s soldados não me deixaram matá-la, dizendo que era prisioneira
de guerra. Os deuses só decidirão o seu destino depois da cirurgia.
Você me deixou curiosa, Green. Parece que conhecia essa mulher de tempos
atrás. Por que deseja tanto assim que ela morra?
O duende olhou para as algemas penduradas em seu pescoço, que sempre o
acompanhavam e acariciou-as gentilmente, com os olhos molhados. D epois fitou
Ravina, e inspirou profundamente. D eixando o ar escapar pela boca, de maneira
contida, sentou-se no sofá do outro lado da sala, ainda de olhos grudados na
Guardiã.
Tudo começou há mais de trinta anos. N ão sei precisar bem a data, mas era
uma primavera. Uma vila de duendes incrustada nos pés das Montanhas
Traiçoeiras, no reino de Heltara, comemorava o nascimento de gêmeos, um feito
muito raro na minha raça. A s profecias entre os duendes sempre abordavam
gêmeos que eram capazes de fazer magias poderosas, e esse caso não foi diferente.
A mãe deles acabou batizando-os de Gray e Green.
"Meu irmão e eu logo manifestamos nossos poderes, quando fazíamos o berço
flutuar, e transformávamos pratos de sopa em xixi. Crescemos como se fôssemos
um ser único. Q ualquer coisa que entristecia Gray, ou o deixasse feliz, me
sensibilizava da mesma forma. Eu entendia todos os seus pensamentos e emoções,
sentia o que ele sentia, e até conversávamos pelo pensamento. A nossa infância e
começo da juventude foram recheados de diversão. A dorávamos as festas, e
bolávamos truques cada vez mais elaborados, como transformar bodes em coelhos,
fazer com que a água da cisterna da vila se transformasse em cerveja, e atirar bolas
de fogo no céu, que explodiam como fogos de artifício. N ossos pais eram muito
respeitados dentro da vila por terem filhos tão importantes, e nos amaram de
forma incomensurável. S ei que não fui um filho tão bonzinho, e recebia castigos
mas... Nada a reclamar, sabe?"
"Um dia, porém, numa competição entre os duendes, na qual Gray eu e éramos
proibidos de participar por motivos óbvios, aconteceu um evento que mudaria a
vida de todos ali. A disputa baseava-se em qual duende seria capaz de devorar
mais pãezinhos amanteigados em menor quantidade de tempo. Gray e eu
estávamos escondidos atrás do moinho, preparando uma chuva de pães miniaturas
assim que acabasse o torneio, mas nossa vila foi invadida por um bando de ores
que não esperaram para atacar quem viam pela frente. É lógico que meu irmão e eu
não deixamos baratos, e contra-atacamos os ores com nossas bolas de fogo, e
espinhos que fazíamos brotar da terra. N ão me lembro do que aconteceu depois,
mas julgo que fomos atacados por trás justamente por Hilda Risalv e seu marido.
Q uando acordamos, estávamos presos no castelo dela, ligados por essa algema que
até hoje pende no meu pescoço. A s algemas eram imantadas, ou seja, não
poderiam ser destruídas com magia. Eles sabiam que se fôssemos separados,
perderíamos nossos poderes, por isso nos prenderam daquela forma. Passamos por
todo tipo de tortura, culpa de um monstro chamado Krular, por quase uma
semana. S ó aceitamos trabalhar para eles quando ameaçaram matar nossos pais,
que ainda estariam vivos, na vila dos duendes. Foi a decisão mais errada que tomei
até hoje."
"A parti dali, posso dizer que não enfrentei um único momento de felicidade
durante dez anos. Hilda e seu marido, Lionel Risalv, nos levavam para outros
vilarejos, onde éramos obrigados a matar as pessoas, e capturar objetos de valor.
Às vezes as missões eram de espionagem, e então recolhíamos informações, mas
inevitavelmente éramos obrigados a eliminar todos depois que descobríamos o
necessário. N ão ousávamos fugir, pois Hilda sempre ameaçava matar nossos pais.
N esse período eu aprendi muitas coisas, como o fato do casal pertencer a essa
ordem, D ivina S erpente, e sua língua secreta, informações geográficas, lendas,
plantas de castelos e fortalezas, e muitas outras coisas que demoraria semanas para
lhe contar. Hilda ficou grávida duas vezes nesse período, mas eu não vi nenhum
dos seus filhos. Só uma vez, na verdade."
"N um dia de chuva, meu irmão murmurava no meu ouvido saudades de casa,
de nossas brincadeiras, de nossos pais. Eu também queria vê-los, mas se
fugíssemos dali, acabaríamos desencadeando suas mortes. Foi nesse instante que
uma garotinha, de quase quatro anos de idade entrou no calabouço onde ficávamos
presos. Era loira, com cabelos cacheados cobrindo-lhe os ombros, e tinha um
sorriso misterioso no rosto. Eu não fazia a mínima idéia do motivo dela estar ali, e
me assustei mais ainda quando estas palavras saíram da sua boca:"
"- Seus pais estão mortos! Foi mamãe quem disse, quando discutia com papai."
"A menina deixou o quarto, e eu pensei em ignorar as palavras da maluquinha,
mas meu irmão ficou assombrado. Ele me balançou, gritando que já desconfiava
daquilo. Eles haviam destruído toda a vila, ninguém sobrevivera, só nós dois.
Construíram uma mentira para nos manter fiéis e obedientes como macacos
adestrados. Mesmo assim, relutei. A nos enfurnados em um tipo de vida acabaram
me deixando acostumado... S im, acostumado com a tortura e brutalidade, mas
quem garantia que aquilo não era melhor que o mundo lá fora? S e não fosse meu
irmão, talvez teríamos ficados ali pra sempre, tanto pela sua ousadia e coragem,
quanto pela habilidade. Gray soltou algema que o prendia a mim utilizando um fio
de bronze, e me puxou para fora."
"Pensando agora, é engraçado! Gray poderia ter nos soltado a qualquer
momento, porém queria poupar nossos pais, e por isso não quis correr o risco de
nos libertar. Pais que já se encontravam mortos. N aquele momento meu irmão só
pensava em fugir, e verificar com os próprios olhos o estado de nossa vila.
Passamos por corredores, enfrentamos soldados que guardavam a saída, e
acabamos subindo a muralha e atingindo as margens do lago que cercava
Avendorh. Com nossos poderes não seria difícil cruzar a distância que nos
separava da margem do outro lado, porém Hilda apareceu, atirando carroças em
nossa direção. Recordo-me como se fosse hoje. Meu irmão beijando a minha mão, e
dizendo para não se preocupar. Ficaria tudo bem. Eu deveria pular, e salvar a
minha vida."
"Ele sempre foi o mais corajoso, o mais heróico, o mais inteligente. E eu o
admirava por isso. S em pestanejar, pulei no lago, e nadei com todas as minhas
forças. Como não estava perto de Gray, não tinha os poderes, e quase morri
afogado. Com tremendo esforço consegui chegar até o outro lado, onde vi nuvens
de fumaça se erguendo sobre Avendorh, e o portão de entrada descendo.
I nstintivamente eu sabia que Gray morrera tentando salvar a minha vida. Corri o
máximo que pude, me embrenhando em florestas, galgando pequenos riachos,
evitando as estradas, e comendo as frutas e pequenos animais que encontrava pelo
caminho. Q uando cheguei ao local onde nasci, e passei os momentos mais felizes
da minha vida, tive certeza. Todos os prédios estavam no chão, as cisternas e
moinhos destruídos, e o descampado onde ficavam as plantações tomado por ervas
daninhas. N enhum sinal de vida. Um bardo viajante que me confidenciou
tristemente que nem crianças e idosos foram poupados naquele episódio ocorrido
há oito anos. Uma verdadeira chacina, sem nenhum sobrevivente."
"Meu coração estava destruído. Meu peito abrigava um órgão morto, que boiava
num mar de tristeza. Fugi para as florestas sagradas do norte, e tive de reiniciar um
novo tipo de vida. Como não estava de posse dos meus poderes, aprendi a
sobreviver de pequenos furtos. E desde então só pensava em sobreviver, até ouvir o
nome daquela que destruiu tudo que era importante para mim. Você entende agora
porque eu anseio tanto a morte de Hilda?"
Q uando o duende acabou a sua história, parecia esgotado. Ravina nunca
imaginara um passado tão triste. N um primeiro momento, chegou a pensar que se
tratava mais uma de suas mentiras, porém o jeito como narrava, e o seu olhar,
provavam que era verdade. S erá que as coisas que Green dissera antes não teriam
um fundo de verdade? A quele orgulho exagerado ao contar feitos heróicos que ele
realizara era autêntico? A o mesmo tempo suas atitudes seriam uma maneira de se
defender do mundo que fora tão cruel para ele? Quem sabe, pensou a Guardiã antes
de indagar:
E o seu irmão? Nunca mais teve sinal dele?
N ão... - Green balançou a cabeça, sem encarar Ravina nos olhos. - Hilda me
confirmou a morte dele quando lutamos. Ela não pode viver Ravina, você entende?
- agora ele olhava diretamente para a Guardiã, como se implorasse por ajuda.
A ntes que Ravina falasse novamente, uma porta dupla branca, de correr, foi
deslizada no sentido de abertura, e do portal surgiram Léia, Taurok e Zing. Todos
usavam gorro e máscara brancos, além de um capote azul que trataram de
desamarrar. D epois de jogar o capote para dentro do corredor de onde vieram, e
enquanto tirava o gorro e a máscara, Léia falou suavemente:
N ão se preocupem, o procedimento foi um sucesso. - ela jogou a máscara e o
gorro dentro de uma lixeira improvisada, e continuou olhando fixamente Ravina e
Green. - Como eu disse a Vanhardt antes da cirurgia, Lila apresentava um severo
dano em seu corpo vital. Mesmo com toda a energia divina eu não seria capaz de
curá-la, pois seria como encher uma jarra furada. Como vocês sabem, existem dois
tipos de energia: a vital, que seres como você Ravina, e Green, possuem, e outra que
é a energia espiritual, cujos deuses e seres místicos como Lila apresentam. Para
curá-la, eu precisaria de uma grande quantidade de energia vital, como uma forma
de "estancar" o vazamento. S ó que nenhum humano sobreviveria se eu retirasse
tanta energia assim dele. Foi aí que meu filho, por ser metade homem e metade
deus, se prontificou a ajudar a amiga. Mesmo sem sua energia vital, ele teria a
espiritual, e continuaria vivo. D urante o procedimento de troca de energias,
contudo, eu tive de ser cuidadosa e metódica, e retirar aos poucos sua força vital,
ou causaria o mesmo problema de Lila em meu filho, tornando-o uma jarra furada.
Felizmente, correu tudo bem.
Pois não disse que não precisava se preocupar, minha dama? - Zing adiantou-se
e beijou a mão da deusa do gelo, depois de acariciá-la. - J á tive experiências em
procedimentos semelhantes, e Vossa D ivindade já foi um dos integrantes do
Panteão! Uma dupla perfeita!
Trio, meu caro! E mesmo sendo capaz, Vossa D ivindade não tinha motivos para
contar piadas e flertar com Léia durante a cirurgia - Taurok trombou discretamente
o ombro contra Zing, enquanto fingia jogar seu gorro e máscara na mesma lixeira
de Léia, obrigando o deus dos insetos a soltar a mão dela.
Por favor, amigos, não é hora de discutirmos. Correu tudo bem, e é isso que
importa. S ó me sinto atormentada pelo fato de meu filho não poder mais usar os
poderes divinos como antes... Eu alertei sobre as conseqüências, mas ele só
pensava em salvar a amiga.
Como assim, divina Léia? - perguntou Ravina, erguendo-se e fazendo uma
discreta mesura, em sinal de respeito.
—- Vanhardt abriu mão de cerca de 99% de sua energia vital, o que significa que
ele não pode usar a energia divina como antigamente, ao custo de perder a vida.
Era a força vital que equilibrava a divina, e permitia ele viver a dualidade de um
semideus. S e ele agora abusar do uso da energia divina, seu corpo vital não
suportará, e ele morrerá. - A deusa do gelo inalou ar pelas narinas, e continuou: - A
mudança é permanente, e não há como voltar atrás. É lógico que com o tempo ele
poderá treinar, e aos poucos seu corpo será capaz de suportar cargas cada vez
maiores de energias divinas, mas nunca como já foi um dia. E mesmo sabendo de
tudo isso ele arriscou-se para salvar Lila. A dmito que fiquei orgulhosa - os olhos de
Léia atravessaram a sala, e depois tornaram para o corredor de onde viera.
Ravina tornou a se sentar, e cobrir metade do rosto com o capuz, além de cruzar
os braços. O duende também decidira-se por sentar, porém continuava agitado,
balançando as perninhas. S em saber qual seria o melhor momento para definir o
destino de Hilda Risalv, ele se adiantou, a fim de diminuir sua ansiedade.
Errr... - o duende levantou-se de supetão, e ajoelhou-se no chão. Léia obrigou-o
a se levantar antes que ele falasse: - E quanto a Hilda Risalv, minha senhora? O que
será feito dela?
A inda não decidimos, pequenino - as orelhas do duende ficaram com as pontas
vermelhas em vista do adjetivo usado pela deusa do gelo. - O que há? Venho
notando que você está inquieto.
S em omitir qualquer detalhe, Green repetiu a história que havia contado para
Ravina. Taurok e Zing trocavam olhares ameaçadores de forma velada,
principalmente quando o deus dos insetos cheirava disfarçadamente os cabelos de
Léia. Ela, contudo, mantinha a atenção no relato do amigo de seu filho. Q uando ele
terminou, a deusa deu uma volta pela sala, com as mãos cruzadas atrás das costas.
Todos esperavam uma definição da deusa do gelo, que depois de um momento de
hesitação, sentenciou:
Pode não acreditar, porém sei exatamente como se sente. A sua dor me lembra
cicatrizes que ainda me atormentam... Entretanto, irei garantir-lhe uma coisa: matá-
la não irá aplacar a dor no seu coração. Hilda errou, merece pagar pelo que fez, e eu
tenho uma idéia. Quer ouvir, pequenino?
Mas é claro! - as sobrancelhas do duende arregalaram-se.
Colocarei Hilda congelada num esquife de gelo. A li ela terá tempo suficiente
para pensar em todos os erros que cometeu. Enquanto está privada de sua
liberdade, sentirá na pele o que tirou de outros. A quela mulher ainda tem uma
dívida com meu filho, e imagino que esse castigo permitirá que pague tudo que
deve.
Q uanto tempo ela ficará lá? E não há como Hilda escapar? - dessa vez Green
apertou os dentes contra os lábios, temeroso.
N ão se preocupe, Green; a magia que utilizarei só poderá ser desfeita por mim.
Hilda só poderá sair se eu ordenar, ou se eu morrer, e não pretendo deixar esse
mundo tão cedo - ela sorriu docemente, transmitindo tranqüilidade. - E quanto ao
tempo, eu ainda não defini. Mas em princípio, eternamente.
Eternamente! A quela palavra ecoava no cérebro de Green, e despejava uma onda
de satisfação. Talvez esse castigo realmente fosse pior que a morte. Ficar preso
num lugar pra sempre, sem poder fazer nada. N em mexer os braços e as pernas.
Ele sentia-se justiçado. Zing e Taurok continuavam trocando ameaças, e agora o
deus dos insetos atirava pequenos ferrões nas pernas do outro, que respondia
pisando no seu pé. Léia aparentemente não via os insultos mútuos, e voltou a falar:
Por sorte as tropas do traidor não fizeram uso de uma tática antiga, na época
em que perdi meu posto de deusa da morte. D aquela vez, eu não pude rastreá-los
de modo algum, ainda que estivesse em meu castelo. S ó me dei conta quando a
ameaça era inevitável. Hoje, apesar de Mondovar ter conseguido escapar alguns
momentos de meus espiões, e ter adiantado sua marcha, ele não desapareceu. N ós
o vimos chegar. Por que teria ele abandonado a antiga estratégia? S e tivesse se
mantido encoberto, Rufus não o teria avistado quando ele estava a um dia de
distância de Crivengart, e acabaríamos sucumbindo.
Hum... - Zing tirou o pé debaixo do de Taurok, fitando-o de cara amarrada.
Depois se virou para a Léia, exibindo o sorriso mais amistoso que conhecia. - Minha
deusa, dama mais preciosa de toda Kether, suas palavras agora me fizeram buscar
um ponto em minhas atividades. Estou trabalhando na procura de um artefato
místico, chamado "Manto das I lusões". N ão revelarei o nome de meu contratante,
para não comprometê-lo. O importante é que o poder desse objeto é de transportar
para o seu usuário a capacidade de se manter indetectável. I nvisível a qualquer
meio de identificação. A lém disso, com um pequeno somatório de energia divina, o
item pode estender esse poder para outras criaturas, a desejo do possuidor. O
tempo é limitado, obviamente, porém imagino que aquela divindade que a traiu
possa ter usado o Manto das I lusões quando a atacou da primeira vez. - O deus dos
insetos tamborilava os dedos de suas quatro mãos no próprio peito, e quando
notou que todos o observavam fixamente, escondeu os braços nas costas, e
prosseguiu. - Bem, é possível que o traidor tenha o perdido. D e fato, o rastro
deixado por este manto, indica que ele passou nas mãos de incontáveis deuses,
humanos, e ordens diferentes. S eu último paredeiro preciso, segundo minhas
fontes, seria na ordem D ivina S erpente, de volta aos braços do traidor. O curioso é
que de lá ele também desapareceu. Encurtando a história, se conseguirmos
encontrar o artefato, podemos descobrir quem o criou. E assim, quem é o traidor.
O s olhos de Léia faiscaram, e ela se pôs a pensar. Tudo fazia sentido. O Manto
das I lusões tornou o exército do traidor invisível, permitindo-o invadir seu antigo
castelo. Mesmo havendo recuperado o objeto, o traidor o perdeu mais uma vez, e
portanto não foi capaz de usá-lo em Crivengart. Uma dúvida intrigava ainda a
deusa do gelo. A contratante de Zing era N úbia, segundo sua última investigação
no lar deste. S eria ela "o traidor", e por isso estava tão ávida atrás do artefato? Tal
resposta só seria adquirida quando eles colocassem as mãos no Manto, e Léia assim
desejava o mais rápido possível.
E como faremos para descobrir a atual localização do Manto, Zing? - perguntou
Taurok, que acompanhava atentamente o desenrolar dos fatos.
— A í é que vem a parte difícil. - o deus dos insetos tirou rolos e mais rolos de
pergaminhos de dentro da barriga, espalhando alguns pelo chão, e equilibrando
outros em suas quatro mãos. - A qui estão os nomes de todos os ladrões de Kether,
dos feiticeiros e das ordens de bruxos, e também os locais que vendem itens
mágicos. Eu havia incluído obviamente a Feira dos deuses, porém já andei por lá
durante anos e nada encontrei. Tenho certeza que ninguém o está vendendo. J á
vasculhei mais da metade dessas listas, descartando possibilidades, investigando
os ladrões e os lugares, e nenhum sinal do Manto. A inda existe muita gente para
ser acompanhada e entrevistada, e lugares a serem visitados, portanto há uma boa
chance de que alguém ou algum lugar daí tenha esbarrado com o Manto. S e
descobrirmos quem ou onde, teremos dado o primeiro passo no rastro de sua pista.
É inútil - Taurok jogou folhas para o lado, e sentou-se no sofá verde e fofo,
desanimado. - São muitas pessoas e lugares Zing, nem adianta...
Esperem um minuto - Léia, que lia atentamente a terceira coluna de um dos
pergaminhos, apontou para um nome específico. - Lionel Risalv. O pai de S elena, e
sogro de Vanhardt. Ele está na lista, Zing?
E claro que sim! Um dos maiores ladrões de todo o reino, e acabei de descobrir
agora que parte de seus feitos foram devidos a esse duende e seu irmão. Incrível!
Zing, não sei se estou tentando forçar um pouco as coisas, mas... A cho que foi
justamente Lionel Risalv! - a deusa do gelo revelava espanto. - Por que não pensei
nisso antes?!
Lionel Risalv? É uma coincidência ele ser o sogro de seu filho, mas por que ele?
Creio que há outras pessoas mais capazes e relevantes que...
N ão, Zing, ouça-me. Lionel fazia parte da D ivina S erpente, a ordem cujo traidor
está por trás. Há outra pessoa aqui na lista que seja também membro da ordem?
Creio que não.
A há! - Léia apontou para o deus dos insetos. - N ão é fácil deduzirmos que para
ele, como ladrão renomado, e por fazer parte da ordem, seria muito mais fácil obter
o manto? N inguém iria desconfiar de alguém da própria ordem, e seu acesso seria
facilitado! D epois disso ele fugiria com a filha para a terra do gelo, o que também
se encaixa perfeitamente. Utilizou obviamente as propriedades do artefato para
não ser seguido, e só tempos mais tarde Hilda o localizou aqui, e o matou.
É uma boa suposição, dama do gelo, entretanto, alguns pontos se mostram
incoerentes. - Taurok se levantou, mostrando-se um pouco mais animado. - S e
Lionel furtasse o item, e deixasse Avendorh, certamente os outros membros
tomariam conhecimento e suspeitariam. S endo assim, quando o S r. Risalv fosse
localizado aqui na terra do gelo, seus antigos companheiros fariam de tudo para vir
atrás dele e recuperar o manto. Pelo que me consta isso não aconteceu, pois se
Hilda tivesse obtido o artefato, ele teria sido utilizado na batalha de Crivengart.
S ão argumentos sólidos Taurok, e não sei como rebatê-los - uma pontada de
desânimo se revelou através do semblante da deusa do gelo.
Eu sei como...
Todos se viraram para Ravina, que continuava em seu lugar, semicoberta pelo
capuz, com apenas os lábios à vista. A Guardiã, sem se intimidar, continuou:
Se eu fosse Lionel Risalv, e quisesse fugir de Avendorh com o manto, roubaria-o
alguns meses, ou até anos antes, e o manteria escondido. Buscas seriam realizadas,
possivelmente até eu participaria dela, porém cuidaria para nada ser encontrado.
A ssim, quando fosse fugir, alguns meses ou até anos depois, ninguém desconfiaria
que tivesse sido eu quem roubou o item.
— Hmmm, maravilha! Você tem talento investigativo nato, garota. - Zing
colocou um de seus quatro braços no ombro de Ravina. - D esenvolva esse talento e
talvez vire uma grande detetive no futuro.
Ei, pessoal! - a atenção agora fora desviada para Green, que sorria como se
tivesse descoberto uma mina de ouro. - Um ano antes de meu irmão e eu fugirmos,
Lionel nos pediu para furtar uma capa azul, com estrelas na sua parte interna, em
uma choupana. N ós reparamos que naquele lugar havia várias estátuas e inscrições
típicas da D ivina S erpente, e até imaginamos que ele queria dar o troco em algum
amigo da ordem. D epois nos ordenou que não revelássemos esse trabalho pra
ninguém, principalmente Hilda, ou nossos pais seriam mortos. Também demos de
ombro, pois nem tínhamos a intenção de contar coisa alguma a quem quer que
fosse.
A í está! Uma testemunha! S e o item que você roubou for mesmo o "Manto das
Ilusões", nossas suposições validam-se!
Bem, Léia, pela descrição que Green nos forneceu, posso confirmar com quase
certeza absoluta que aquele era o Manto das I lusões. Muito bem Green. A gora
temos uma forte pista a seguir. Enviarei imediatamente meus servos no rastro de
amigos de Lionel, pessoas que ele possa ter tido contato em sua jornada até
Crivengart.
Boa idéia, Zing. Revistarei a antiga casa de Lionel, pois tenho fortes suspeitas de
que o Manto está escondido lá.
O utros assuntos foram discutidos em seguida, referentes à limpeza e conserto
da vila de Crivengart, enterro dos mortos, e regeneração das tropas, principalmente
das de Léia. Green resmungava com Ravina sobre o fato de eles terem se esquecido
do castigo de Hilda, e a Guardiã pediu que ele tivesse paciência, pois Léia logo se
encarregaria disso.
E quanto a Mondovar, minha rainha? Meus melhores batedores, disseram que
ele parece seguir através das Montanhas Traiçoeiras, em direção ao reino de
Heltara. Não seria uma boa oportunidade de encurralarmos o maldito?
S eria, Taurok, se não precisássemos de descanso. N ão quero partir para outra
batalha com minhas criaturas nesse estado. A credito que você e Zing também não.
A lém disso, devemos continuar atentos, pois podemos sofrer novos ataques. Vocês
conhecem esses deuses menores, sempre farejando inimigos indefesos. D eixe
Mondovar. Eu sei para onde ele está indo, e ele terá o seu momento.
E onde seria? - Taurok enrugou a testa, em sinal de dúvida.
Avendorh. Ele vai para Avendorh. Tenho certeza que lá também encontraremos
S elena. S ó temo por meu filho. Tomara que as previsões do oráculo tenham sido
metafóricas, e que Vanhardt saiba como interpretá-las.
Mal podia supor Léia, que sentado atrás da porta, e com ouvidos atentos,
Vanhardt ficou sabendo onde encontraria seu algoz e sua mulher. Ele levantou-se,
com a mão sobre o peito, e cuidando para não gritar de dor, ou cair desmaiado.
Estava fraco, porém prometeu a si mesmo que não descansaria até cumprir a
promessa que fizera a Mondovar. E agora que sabia o destino de seu inimigo,
trataria de enfrentá-lo assim que suas forças permitissem. Caminhou cambaleante
até um quarto pequeno com uma cama e uma mesinha de cabeceira, além de um
aquário no fundo com peixinhos coloridos. Um último pensamento o perturbou
antes que caísse no sono: como faria para salvar Selena?
Capítulo LXVIII - Todo o Sentimento do Mundo, Morre em um Átimo
de Segundo

Era uma noite fria e escura, e uma chuva torrencial açoitava sem piedade a
carruagem elegante, puxada por oito cavalos, que subia uma estrada irregular em
direção a Avendorh. A água tamborilava no teto do meio de transporte, e o
cocheiro chicoteava e gritava com os cavalos para que acelerassem. D eslizando
pelas curvas da estrada lamacenta, a carruagem quase perdeu o rumo por duas
vezes, porém logo o castelo despontou no horizonte. O s relâmpagos iluminavam
por instantes o caminho, e assim o cocheiro conseguiu conduzir o veículo até a
margem do lago oposta ao portão de ferro, que ao mesmo tempo servia de ponte.
S enhor, não consigo ver os guardas de vigia! - o cocheiro olhava por cima dos
ombros, e gritava para que a chuva não abafasse sua voz. - Como faremos para
pedir que abaixem o portão?
S ubitamente, o som de metal rangendo se fez ouvir, e a ponte passou a descer
lentamente. Blocos de metal deslizavam de dentro da estrutura, permitindo que
essa tomasse um tamanho muito maior que o original. A ssim que a ponte tocou a
margem, criando uma passagem de ferro sobre o lago, o cocheiro balançou as
rédeas ordenando que a carruagem prosseguisse. Ele ainda não descobrira como a
ponte desceu, pois depois que a atravessou e chegou num pátio calçado, ainda não
via nenhum guarda. N ão ousaria perguntar ao seu senhor, obviamente. Mondovar
já era sinistro o suficiente, e aquela noite fria e chuvosa em nada encorajavam o
humilde cocheiro.
D epois que parou a carruagem, perto de uma baia, ele tratou de abrir as portas
do veículo. Uma luva metálica foi a primeira coisa que o cocheiro pôde ver, e com o
indicador, Mondovar ordenou que seu servo se aproximasse. Uma voz sussurrante
e rouca no fundo acrescentou:
Chegue mais perto.
Com as roupas encharcadas, pernas e braços tremendo, de frio ou de pavor, o
cocheiro que se chamava Gordon deu dois passos vacilantes, e subiu o primeiro
degrau. A luva metálica cujos nós dos dedos projetavam lâminas cortantes,
subitamente agarrou o pescoço do cocheiro, e passou a pressioná-lo. Gordon foi
erguido alguns centímetros acima do degrau, e segurava com as duas mãos o braço
de Mondovar, que insistia em enforcá-lo.
O nde estão meus servos? N ão há ninguém no castelo! Q ue espécie de
brincadeira é essa?
A boca de Gordon cuspiu saliva misturada com água, mas a voz teimava em não
sair da garganta, culpa da força utilizada por Mondovar. O rosto do cocheiro foi
perdendo a cor, ficando pálido, e seus olhos agonizavam. Com um movimento
bruto, ele foi atirado metros de distância para trás, batendo contra uma coluna
cilíndrica, de pedra. Um trovão ecoou enquanto Mondovar desceu da carruagem,
usando sua armadura negra, e olhando para os lados. Ele caminhou lentamente até
o cocheiro, e olhou fixamente o homem que não se levantava, e apenas protegia o
rosto com um braço e demonstrava estar apavorado.
É realmente um inútil. N em conseguiu chegar no prazo de tempo que forneci.
Demorou duas horas a mais.
Mas senhor, a chuva...
Silêncio! Agora me certificarei do que está acontecendo por aqui.
I gnorando o homem que continuou no chão, Mondovar prosseguiu até duas
portas gigantescas de ferro, e abriu-as sem dificuldade. Atravessou um átrio largo,
onde se apresentavam inúmeras estátuas de serpentes enroladas numa espada,
apontando para baixo. S obre um tapete vermelho, Mondovar cruzou um corredor
comprido, que o levou até uma porta que o separava do salão do trono. Ele
pressentiu uma energia diferente vindo do cômodo à sua frente, e fez a porta em
pedaços ao chutá-la.
O salão do trono era gigantesco, com um teto abobadado situado a dez metros
acima do solo, colunas de estilo jónico, com suas respectivas volutas na base e
ápice, espalhadas pelo domo e promovendo a sustentação do mesmo, e um chão de
granito acinzentado. Trinta passos à frente de Mondovar, sentado
confortavelmente no trono erguido sobre uma plataforma também de granito,
estava Vanhardt, com feições severas. O rapaz não se moveu quando Mondovar
caminhou até o centro do salão, e colocou a mão sobre o punho da espada. N ão era
a Ceifadora de Vidas, e o filho da deusa do gelo por um segundo se perguntou por
que Mondovar não estava com um dos artefatos mais mortais de Kether.
O nde estão meus servos? - as palavras eram disparadas como flechas contra o
filho da deusa do gelo.
Eu faço as perguntas aqui, Mondovar. A queles ores não são importantes agora.
Q uero saber onde está minha esposa. Procurei por toda parte e não a encontrei,
mas podia jurar que ela estava aqui.
E la está aqui... - Mondovar pressionou com mais força a mão sobre o punho da
espada, e logo teve de retirá-la da bainha, pois Vanhardt atacava contra sua cabeça
e pescoço.
Chega, Mondovar! Eu cansei! - o semblante de Vanhardt era completa fúria, e o
tilintar de metal se chocando contra metal preencheu o ambiente. - Você irá morrer
antes ou depois de me dizer onde está Selena!
O filho da deusa do gelo, sem a mínima preocupação em se defender, investiu
ofensivamente contra Mondovar que se limitou a se defender. Buscava acertar a
cabeça, as pernas, ou qualquer pedaço do corpo do inimigo, que habilmente se
defendia de todos os golpes. S e o S upremo Lorde portasse a Ceifadora de vidas já
teria matado Vanhardt, mas como o peso da espada que agora usava era maior, e
não apresentava a mesma força, não conseguia fugir daquela situação. Em
determinado momento pôde segurar o punho de Flama, e os dois adversários
ficaram cara a cara, pois o punho da arma de Mondovar também estava preso na
mão esquerda de Vanhardt.
Vanhardt... S elena está aqui! Eu te disse! - naquele momento, Mondovar
abandonou a espada no chão, e levou a mão direita até o elmo.
Mil vezes eu poderia tentar descrever aquele momento, e como Vanhardt se
sentiu, porém fracassaria em todas. O tempo custou a passar para o filho da deusa
do gelo, que não acreditava no que seus olhos insistiam em mostrar. Por um
instante, até desistiu de lutar, e também deixou Flama cair no chão. Como era
possível? Mondovar. S elena. S elena? O s cabelos louros encaracolados, o rosto bem
definido, linda como sempre, lá estava Selena enfiada naquela armadura negra. Sua
esposa era o Supremo Lorde Mondovar.
Capítulo LXIX - O Duelo Final

O filho da deusa do gelo deu três passos para trás, e por pouco não caiu no
chão. S eus olhos vacilavam, e tudo parecia embaçado. Uma torrente de emoções
conflitantes invadia o peito de Vanhardt, que não se decidia entre a alegria de rever
a esposa, e o terror de saber que ela era o seu maior inimigo. S elena continuava
parada a alguns metros dele, com os olhos castanhos que o observavam
atentamente.
Selena... Como? Você é Mondovar? Mas por quê? Eu não entendo...
N ão há muito o que entender - sem a mesma voz metálica de quando portava o
elmo, a esposa de Vanhardt pegou a espada no chão, e se aproximou
perigosamente dele. - S ou filha de Lionel e Hilda Risalv, membros da ordem D ivina
S erpente. Fui treinada desde minha infância nas artes da magia e da guerra,
preparada para planos superiores.
S elena, eu... Eu encontrei Erick! Está com meu pai, em Crivengart! Você atacou
Crivengart! Teria coragem de matar nosso filho? Teria coragem de me matar?
Eu fui chamada, Vanhardt, e obedeci ao chamado. - ela parou a um palmo de
distância de Vanhardt, que se recusava a se defender, e ergueu a espada. - E, sim,
eu teria coragem.
A ponta da lâmina de S elena cortou o nariz de Vanhardt de raspão, que
felizmente chutou o abdome da esposa assim que esta o atacou. A plicando
cambalhotas, e não se deixando cair, S elena nem parecia sentir o peso daquela
armadura, enquanto se preparava para atacar novamente o marido. Vanhardt lia
em seus olhos que ela realmente não hesitaria em matá-lo. Esticando o braço com
as mãos espalmadas, Vanhardt conseguiu trazer Flama até a sua mão a tempo de
defender as investidas de S elena. S eu peito doeu mesmo com a pequena
quantidade de energia divina utilizada. I sso havia acontecido anteriormente,
enquanto ele prendia os ores no calabouço. A gora, contra Mondovar, ou S elena, ele
confirmava que seria inevitável lançar mão de mais força divina. Até quando seu
corpo agüentaria?
Marido e mulher trocavam golpes e se esquivavam, mas Vanhardt se encontrava
em situação desfavorável. S elena conseguira feri-lo duas vezes no braço que
carregava Flama, e ele não conseguia atacar com tanto vigor quanto antes. N a
verdade, ele não queria machucá-la, e ao mesmo tempo queria punir aquele que
roubou a sua esposa. A previsão do oráculo assaltava-lhe a mente como um
vendedor que bate insistentemente à porta. Para libertá-la ele teria de matá-la.
O duelo prosseguiu implacavelmente. Mondovar acertou o punho de sua arma
contra o rosto de Vanhardt duas vezes, fazendo jorrar sangue pelo seu nariz. N ão
demorou para que outro golpe atirasse o filho da deusa do gelo contra uma coluna,
quebrando duas ou três costelas no processo. Vanhardt custou a se levantar,
sentindo-se zonzo, com a visão embaçada, como se agulhas afiadas penetrassem
em cada centímetro de sua pele. N ão ousou, entretanto, se curar, pois a energia
divina que poderia utilizar era limitada.
Está com medo de me ferir, meu amor? - o sorriso malévolo de S elena não
deixava dúvidas que aquela não era a sua esposa. - N ão está sendo o mesmo
adversário de antes. Você me prometeu uma boa luta, e agora se mostra tão
displicente! O que mudou para desistir de lutar?
Tudo mudou! Não pode ser... - a voz de Vanhardt não era a mesma, devido a um
edema no lábio superior. - Eu me lembro do dia em que fui atrás de Erick... A nossa
despedida... Você chorava tanto, era tão frágil...
Aquela Selena que você conheceu se perdeu no tempo. Eu sou Mondovar!
S elena, por favor, me escute! Vamos deixar esse lugar! Vamos voltar para
Crivengart, pegar nosso filho, e reconstruir nossa família! N ão precisa ser assim!
Diga-me o que posso fazer para te libertar desse feitiço!
Você não entende! - S elena aplicou um poderoso golpe na vertical, atirando
Vanhardt ao chão. Ela continuou atacando o jovem que teve enormes dificuldades
para se defender caído. - A S elena que você conheceu não existe. N ão há feitiço
algum!
Mondovar cravou a ponta da espada no ombro direito de Vanhardt, que gritou
imediatamente. Este, por sua vez, utilizou Flama contra o braço do inimigo que só
não foi decepado devido à poderosa armadura que o protegeu. O golpe, contudo,
foi forte o suficiente para obrigar Mondovar a recuar alguns passos, fornecendo
segundos preciosos que permitiram Vanhardt se levantar. Ele estava seriamente
ferido no ombro direito, e não poderia defender qualquer ataque mais forte de
S elena. D essa vez utilizou a Aruc vanidi para se curar, mas acabou ajoelhando-se no
chão e sentindo mais dor do que se tivesse recebido um golpe da esposa.
Você me parece realmente mais fraco do que da última vez em que lutamos.
Fico feliz em saber que o meu golpe com a Ceifadora de Vidas, naquele dia em
Crivengart, mostrou-se de alguma forma eficaz, apesar de não ter tirado a sua vida.
D esse jeito nunca irá me vencer. É um lutador bravo e aguerrido, mas enquanto
não despertar de verdade não será de capaz de terminar a luta vivo.
Despertar de verdade?
S im - Mondovar dava voltas em círculos ao redor do jovem, que o acompanhava
com o olhar. - A persar de pensar estar acordado, você está dormindo. I números
sentimentos, pensamentos, idéias, coisas que não são suas, se encontram
agregadas em sua essência. Está sujo de egoísmo, inveja, ira, e milhares de outras
características que não suas. S ua essência está obscurecida por todos esses
elementos, de modo que não consegue se revelar. D urante a nossa batalha em
Crivengart, por alguns instantes, você soube o que era estar desperto. A cabou
esquecendo, entretanto, e agora está perdido no meio desses agregados que
impedem o verdadeiro Vanhardt de se revelar. É lógico que não acredito que você
eliminaria todos os elementos de uma vez só, e é por isso que sei que irá perder.
Pode até ser verdade, mas nunca desistirei. Selena, eu vou te libertar!
É inútil tentar convencê-lo do contrário. Quem sabe no outro mundo.
S ó então Vanhardt teve plena ciência de que tudo estaria terminado dali a
alguns momentos. Ele nunca libertaria S elena com palavras. Como ela mesma
disse, aquela armadura negra continha em seu interior alguém chamado
Mondovar. S elena não mais existia. A os poucos relembrou comentários de Ravina
sobre "eus" que viviam dentro do que achamos ser um único "eu". O episódio
quando foi romper os selos do Templo D ourado, e se viu mergulhando num lago,
onde dezenas de "Vanhardts" o seguravam. O modo diferente como se sentiu na
batalha de Crivengart, onde percebia tudo ao seu redor de maneira mais viva e
clara; ali não existiam outros "eus". N aquele instante ele era apenas Vanhardt, e
estava verdadeiramente desperto. Mas como despertar novamente sem usar os
poderes divinos? D aquela vez, foram esses poderes que o ajudaram a despertar,
porém agora ele não teria como usá-los, ou do contrário morreria.
Vanhardt jogou Flama para a mão esquerda, e posicionou-se com a respectiva
perna para trás, e a direita na frente. Ele precisava de apenas um segundo. A penas
um segundo desperto, e derrotaria Mondovar. A mulher na frente dele, que uma
vez se chamou S elena, segurou a espada com ambas as mãos, e sorriu
delicadamente. Vanhardt estava cansado, sangrando, inchado, sem energia divina,
e com dores excruciantes em cada célula do corpo. A chance de vencer era remota.
Tudo a partir daí transcorreu muito rápido, em questão de segundos. O maior
embate na vida dos dois não teve centelhas resplandecendo no ar, sons de trovões,
ou gritos ensurdecedores. Mondovar partiu pra cima de Vanhardt, que continuou
imóvel, e atravessou sua lâmina no lado direito do peito do filho da deusa do gelo.
Este ignorou o ferimento, segurou firmemente o punho de Mondovar com a mão
direita, e cravou-lhe Flama numa fresta da armadura na altura do abdome.
Q uem sou eu, um humilde bardo, para poder descrever o que se passou no
coração do filho da deusa do gelo? N ão, infelizmente minha capacidade narrativa
não chega a este ponto. D eixo pra vocês leitores imaginarem a dor, misturada com
pavor, e alívio. Ele conseguiu ficar o seu "um segundo" desperto, e neste tempo
encontrou o lugar onde atacar, e teve plena consciência que essa era a atitude a ser
tomada. O s olhos de S elena se arregalaram, e seu semblante passou de dor, para o
de alegria.
Você me deixou vencer...! Por quê? - gemeu Vanhardt, como se fosse ele que
estivesse morrendo.
N ão, foi você quem conseguiu! - a mulher arfava, e apresentava sérias
dificuldades para falar. - Parabéns meu amor... Eu agora me sinto livre! Há tanta
maldade no mundo... I nfelizmente ela me dominou completamente, e só agora
estou salva. Você... - S elena tossiu, e despejou todo o amor do mundo em um único
olhar. - Você fez bem... Há mesmo tanta maldade no mundo... Por favor, acabe com
ela! Eu sempre te amarei...
A s pálpebras de S elena hesitaram, e por fim acabaram cobrindo os olhos.
Lágrimas começaram a salpicar o rosto da mulher, e o seu corpo começou a
balançar. Vanhardt chorava igual a uma criança e abraçava a mulher ternamente.
Lembranças saltaram em sua mente; o primeiro encontro dos dois, as brincadeiras
de criança, as tentativas de acertar o graveto nas costas uns dos outros. O seu
casamento e como ela estava linda. S elena era linda! O rosto de sua esposa esfriou
rapidamente, e ele beijou suas bochechas com carinho. Ele havia matado a própria
mulher. Olhou para cima, com lágrimas escorrendo pelas bochechas, e gritou:
N ÃO O O O O O O O O O O O O O O O O O O O O !!! - o jovem continuava abraçado ao
corpo que agora não revelava nenhum sinal de vida.
N ão? Eu é que devia dizer não! Você matou um dos meus melhores guerreiros -
uma voz misteriosa emergiu de um canto escuro da sala.
Como? Q uem está aí? A pareça! - Vanhardt depositou com cuidado o corpo da
esposa no chão, e levantou-se, com o sangue de S elena ainda banhando a lâmina de
Flama. Ele não conseguia enxergar o dono da voz, que utilizava as sombras para se
manter oculto.
Você e sua mãe devem morrer de curiosidade para saber quem sou eu! Ah... - de
repente, deixando as sombras para trás, uma figura alta, de armadura prateada,
elmo semelhante a uma caveira, e dois chifres brancos. Em órbitas vazias ardiam
dois olhos vermelhos, profundos. Era o traidor.
Capítulo LXX - O Último Vôo

Então você possui uma espécie de dragão flamejante...? - a criatura retirou


cuidadosamente uma espada da bainha, e alisava a mão na lâmina denteada
daquela que Vanhardt reconheceu como a Ceifadora de Vidas. - Conte-me mais
sobre ele! Eu também tenho um dragão, mas ele é negro, e se chama
Kundartiguador!
Basta! - Vanhardt segurou o punho de Flama, preparando-se para lutar.
N ão irei revelar nada! Foi você quem transformou S elena nessa... nessacoisa!
Por sua culpa tirei a vida de minha própria esposa! Por sua culpa Crivengart quase
virou cinzas, e muitos faleceram perante seus soldados! Por sua culpa minha vida
perdeu o sentido!
Q ue bom saber, me tranqüiliza tanto. Pois também por minha culpa alguém
insignificante como você se tornou um fabuloso guerreiro, e que insiste em
estragar sucessivamente meus planos. Entretanto, se sua vida perdeu o sentido,
deixe que eu lhe dê um novo e magnífico motivo para existir! J unte-se a mim.
S ubstitua S elena como líder das minhas tropas, e venha dominar o mundo ao meu
lado! N ão o quero como um servo, porém como um sócio. E então, o que me diz? -
as chamas dentro as órbitas se avivavam, demonstrando emoção.
Está louco? N unca! Eu não sei o qtie fez com minha esposa, como transformou
uma mulher doce e meiga como ela num monstro chamado Mondovar. S ó sei que
não quero ser substituto desse monstro.
É realmente uma pena, pois assim serei obrigado a eliminá-lo... A deus! A o
pronunciar a última frase, o traidor apontou a Ceifadora de Vidas para
Vanhardt, e instantaneamente um dragão exatamente igual ao do filho da deusa
do gelo, mas de escamas negras como a noite, passou a subir em espiral em torno
da armadura daquele cuja presença era mais aterrorizante que a de Mondovar.
Vanhardt mal conseguia se manter de pé, e sem gritar apavorado. A energia no
aposento tirava o ar de seus pulmões, e minava-lhe a pouca energia que restava. O
traidor revelava pleno vigor físico, enquanto Vanhardt padecia de um corpo
esgotado de energia vital, e incapaz de suportar explosões de energia divina,
calejado ao extremo por dentro e por fora.
Com os pensamentos centrados na esposa falecida ao seu lado, ele reuniu o fio
de energia que restava, e decidiu que só teria tempo e força para um golpe. N ão
haveria mais planos mirabolantes. N ão haveria truques guardados nas mangas.
S eria um ataque puro e simples. Vanhardt invocaria Kundalini pela última vez, e o
lançaria contra o traidor. D epois disso estaria tudo terminado. O dragão faria seu
último vôo, e indubitavelmente Vanhardt sentiria o sabor da vida pela última vez.
D ois pólos posicionados em extremos opostos do aposento, dispostos de
espadas mágicas, e com dragões subindo pelo corpo, se pareciam e se
diferenciavam profundamente. O ataque seguinte, provavelmente seria o maior
espetáculo sobre a superfície de Kether nos últimos séculos. Kundalini refletia
escamas douradas como ouro, e seus olhos brilhavam como diamantes. D o outro
lado, Kundartiguador apresentava escamas que absorviam todas as cores e por isso
eram negras, além de revelar o dobro do tamanho daquele primeiro. Vanhardt e o
traidor trocaram olhares, e se regozijaram pelo último instante que precederia o
embate.
A ntes que os dois disputassem suas forças, contudo, uma lança cruzou o
aposento numa velocidade estonteante e atingiu o dragão negro, que soltou um
grunhido rouco e medonho, e desapareceu em cinzas. I mediatamente, um vulto
branco surgiu em frente ao filho da deusa do gelo, segurando um cetro oco.
Mãe? O que você...?
D urma, meu bem! - Léia virou a cabeça sobre os ombros e beijou a bochecha do
filho, que em seguida caiu ao lado de Selena, num sono profundo.
O vulto branco na verdade era a deusa do gelo, enfiada num vestido longo,
rendado. Uma malha de prata sobre o vestido cobria-lhe o torso e um elmo, do
mesmo material, protegia a sua cabeça. A lança que Léia atirara contra
Kundartiguador, e que havia cravado no chão, deslizou-se de volta para o cetro oco,
encaixando ali perfeitamente e emitindo um sonoro click. Girando a arma como
uma acrobata, a deusa do gelo não deixava o adversário saber quando atacaria
novamente.
Léia! O u posso dizer "Morgana"? O cubo espionou por muito pouco tempo o
seu lar e suas conversas, porém foi o suficiente para me permitir descobrir algumas
curiosidades como a sua verdadeira identidade! O que achou do meu artefato?
D eve ter pensado em usá-lo pelo menos como decoração, pois o colocou em cima
de uma mesa sem graça... - o traidor começara a caminhar ruidosamente ao redor
da deusa do gelo.
Foi útil o suficiente para que meu filho entrasse no obelisco! - a voz da deusa do
gelo era seca e fria, desprovida de sentimento. S eu semblante não se mostrava
diferente.
Um efeito colateral imprevisto. Ghar não foi capaz de implantar o obelisco
como havíamos planejado, porém sua "nora" acabou assumindo a tarefa
esplendidamente. O jovem Vanhardt, infelizmente, destruiu o meu "presente", e
também derrotou a minha guerreira mais poderosa, que, aliás, era uma graça. Acho
que a D ivina S erpente nunca produziu pessoa de tanta fibra, determinação, e ao
mesmo tempo tanta delicadeza.
Talvez ela tivesse se tornado melhor ainda sob a minha guarda. Por que a
requisitou tão cedo? Selena se dava bem com meu filho...
I nteresses próprios, e sabe muito bem do que estou falando. N ós, deuses
maiores, sempre tramamos algo, e Lorde Mondovar era interessante aos meus
propósitos naquele momento. S urpreendeu-se ao descobrir que o meu servo era a
esposa de seu filho?
Um pouco. Porém surpresa maior me ocorreu ao constatar que Vossa Divindade
procurava o oráculo. O que exatamente queria com...
Enquanto Léia se distraía com a conversa, o traidor avançou furiosamente em
sua direção, e num instante atacava-a com a Ceifadora de Vidas. Por pouco Léia
conseguiu conter as poderosas investidas do adversário, porém foi obrigada a se
mover para os lados a fim de que não atingisse o corpo do filho e da nora, ficando
numa posição desfavorável. O s ataques do traidor eram cerca de cinco vezes mais
fortes e mais rápidos que os de Ghar, e em alguns segundos ela já estava exausta
lutando para acompanhar a velocidade do inimigo. O som das armas se chocando
era capaz de explodir tímpanos, e a energia ali liberada podia derrubar montanhas.
Borrões e clarões tingiam a atmosfera no local onde a luta acontecia, em que dez
golpes eram desferidos no tempo de um bater de asas de um beija-flor. A batalha
de proporções titânicas ameaçava não deixar resquício do oponente se apenas um
dos ataques fosse bem sucedido.
Em manobra arriscada e arrojada, a deusa pulou para o teto do salão, e lá
grudou seus pés, ficando de ponta-cabeça. O traidor imitou-a, e logo a batalha
seguia no teto do aposento. A s explosões fruto das armas se cruzando seguiam
sucessivamente, até serem interrompidas por um cone em chamas que fugia dos
olhos do traidor. A deusa do gelo, antes que fosse engolfada pelas chamas, soprou
uma nuvem de gelo, enquanto cuidava para continuar defendendo e atacando com
o cetro. A disputa entre as duas forças, o fogo e o gelo, prolongaram por quase um
minuto, resultando em empate.
Regozijo-me ao notar que se mostra muito mais poderosa do que em nosso
último encontro - o traidor agora colara sua espada contra o cetro de Léia, e
mantinha suas órbitas vazias se fixavam nos olhos dela.
Uma única coisa mudou, - a deusa do gelo mantinha os dentes contra os lábios -
eu não tenho mais medo!
O tempo era uma limitação para aquela luta, e Léia estava ciente disso. D esde a
batalha em Crivengart, a deusa do gelo havia despendido muito de sua energia
divina, e agora contava com poucos recursos. Ela também notara que qualquer
outro deus que lutasse contra o traidor, acabaria sofrendo os mesmos problemas.
A força dele era bruta e completamente fora dos padrões. A pesar de se esforçar ao
máximo para acompanhá-lo, era capaz de defender apenas oito de cada dez golpes
desferidos em sua direção; os outros dois acabavam reverberando em sua
armadura ou então a errava por pouco. A lém do mais, os poucos ataques que ela
conseguia aplicar eram facilmente rechaçados pelo inimigo. Para completar o
prognóstico funesto que se desenhava, Zing e Taurok não viriam ajudá-la. A queles
dois não sabiam onde Léia estava, e se encontravam ocupados na reconstrução de
Crivengart. Estava sozinha, e se não poderia vencer a luta, tentaria ao menos um
empate.
A deusa do gelo se desprendeu do teto e deu três cambalhotas antes de seus
pés tocarem o solo. O traidor tentou seguir seus movimentos, e foi aí que Léia
atirou contra ele as pontas distais dos dedos das mãos. A queles pedaços de
membros logo tomaram uma superfície esférica, e se distribuíram
estrategicamente no ar, voando em alta velocidade contra o traidor. Prevendo uma
ameaça concreta, o inimigo de Léia utilizou os pés para quicar no ar, e voar
horizontalmente até uma das paredes. A s pontas dos dedos pareciam ter vida e
consciência própria, pois continuaram a persegui-lo. O traidor passou a correr com
os pés grudados nas paredes, e as esferas começaram a se chocar contra as colunas
do salão, e mesmo contra a parede. Explosões de metros de diâmetro destruíam
qualquer obstáculo que as esferas encontravam, e o traidor utilizou as quatro
paredes para se desviar dessa poderosa ameaça. A o mesmo tempo, Léia havia
erguido seu cetro, e um dragão branco como a neve se espiralava ao redor de suas
pernas.
Q uando o traidor atingiu a última parede, todas as esferas haviam explodido
em alguma superfície e jogado pedra para os lados, e ele aproveitou para voar
contra Léia, que se encontrava indefesa. A quele minúsculo instante decidiria o
desfecho da luta. E o traidor foi mais rápido. Ele acertou seus pés contra o peito da
deusa do gelo, derrubando-a no chão ao mesmo tempo em que cravava a Ceifadora
de Vidas no dragão branco. Levantando-se cautelosamente, com os pés ainda sobre
a deusa do gelo, impedindo-a de realizar qualquer movimento, o traidor colocou a
Ceifadora contra o seu pescoço.
— Quase. Foi um belo truque, e por muito pouco não me superou. Porém eu fui
mais forte hoje, e ontem. D essa vez não a deixarei escapar. A deus, Morgana. - O
traidor ergueu lentamente sua espada, admirando sua superioridade, porém foi
atingido por um imenso bloco que caiu do teto, pesando toneladas, e levando-o ao
chão.
N a verdade, o truque de Léia foi bem além do que quase. Uma das falanges
distais dos seus dedos se chocou contra o teto exatamente sobre a deusa, enquanto
os outros destruíram deliberadamente as sustentações do edifício. Léia deduzira
que o traidor atacaria enquanto ela invocasse o seu dragão, e acabaria por fim se
posicionando exatamente naquele ponto. O utros blocos continuaram despencando
sucessivamente, e cobriram tanto Léia quanto o traidor.
Transformando os escombros em pó com um golpe, o traidor removeu as
pedras que o separavam de Léia, e notou resignadamente que a deusa do gelo não
mais ali se encontrava. O edifício continuava a desmoronar, e ele olhou
rapidamente para o local onde os corpos de Vanhardt e S elena repousavam, e
acabou vendo apenas o de sua guerreira. Vanhardt e Léia desapareceram. Morgana
mais uma vez escapou de mim. Aproveite querida, pois será a última vez. O traidor não
se preocupou com o corpo de S elena, e mesmo com outros pedaços do teto caindo
aos montes, e as paredes se desfazendo em pedras; resignou-se a caminhar
lentamente até a porta de saída. N ão demorou muito até que Avendorh inteira
fosse abaixo, e uma nuvem de fumaça cinza misturada com poeira cobrisse os céus.

A quela noite na margem do lago de Crivengart estava especialmente fria, e uma


sensação nostálgica pairava no ar. A superfície da água brilhava sob uma lua cheia,
e murmúrios de que N úbia estaria especialmente vaidosa saltavam de boca em
boca. Vanhardt se encontrado sentado sobre uma rocha, com Erick entre os braços.
O garotinho apertava forte o indicador do pai com ambas as mãos, e sorria
singelamente. Q uando tentou levar o indicador do pai na boca, este balançou a
cabeça e puxou o dedo gentilmente.
N ada disso, moleque! Está sujo! E este sorriso gostoso, pra quem é? É pro
papai? Ah, é claro que é pro papai!
Escutando um gemido atrás de si, Vanhardt olhou por sobre os ombros e viu
um cansado Thomas sentar ao seu lado, e brincar com as bochechas do neto.
Está sorrindo pro avô, não é, seu sem vergonha! S orrindo pro avô! - Vanhardt
retirou o pano que cobria a barriga do filho, e começou a soprar ali com a boca,
fazendo barulhos estranhos. Erick gargalhava ao mesmo tempo em que puxava os
cabelos do pai com força.
É, parece que ele vai ficar tão forte quanto o pai - pronunciou Thomas, ajudando
Vanhardt a se desvencilhar do poderoso aperto do filho, com delicadeza.
N em diga isso, pai - Vanhardt finalmente conseguiu se livrar do abraço do filho,
e meteu o indicador de Thomas contra as insaciáveis mãos de Erick. — Com esses
poderes, já tive tantos problemas.
Se não fosse seus poderes, Erick não estaria aqui.
É, mas provavelmente S elena ainda estaria conosco, e eu não teria levado essa
multidão toda para a morte - o jovem apontou para o lago, onde um barco
navegava lentamente sobre as águas, levando mais um caixão.
D urante aquele dia, depois das seis horas, o mesmo barco já havia feito a
viagem incontáveis vezes. A vila de Crivengart contava no total com 286 habitantes:
durante a batalha, 61 deles tinham perecido. A população passara metade da tarde
em vigília, esperando o último dos caixões ser baixado até as profundezas do lago.
Vanhardt observou atentamente o novo caixão sendo retirado do barco, e descendo
com cordas amarradas em cada ponta. Era pequeno.
E uma criança, pai! Mais uma criança... D ói imaginar que foi minha esposa
quem ordenou essa chacina.
A quela não era sua esposa, Vanhardt. D esde que partiu dessa vila, S elena
deixou de existir, e em seu lugar apareceu o monstro chamado Mondovar. Você
mesmo disse que ela havia se transformado completamente!
N o último instante ela olhou pra mim como se fosse antigamente... D isse que
havia muita maldade no mundo, e que eu deveria acabar com ela! Pai, não posso
fazer isso! Meu corpo não é o mesmo de antes... Estou quebrado!
Thomas sorriu, e brincou com Erick, fingindo não ouvir os comentários de
Vanhardt. Ele acariciou a cabeça do pequenino, que continha fios loiros, finos. O s
olhos do garotinho, castanhos claros, da cor de mel, cintilavam iguais os da mãe.
Thomas inspirou profundamente, e disse:
A vila está dividida. A lguns dizem que você é um herói, enquanto outros
reclamam que foi justamente você quem trouxe a morte e a destruição de
Crivengart. Pelo menos num ponto todos estão de acordo: a deusa do gelo está nos
abençoando, e nos protegendo. Até agora aqueles Hurqxes estão colocando casas
de pé. Bem, mas não se preocupe com isso. Logo eles terão esquecido, e tudo
voltará a ser como antes.
O pai de Vanhardt levantou-se e bateu as mãos nos glúteos, se livrando de
musgos que haviam se agarrado em suas calças. Vanhardt não tinha a mesma
certeza de Thomas de que as pessoas se esqueceriam daquilo com facilidade. Era
um evento que ficaria marcado para sempre na história da vila. A ntes de descer da
rocha, Thomas deu afagos encorajadores nas costas de Vanhardt, que ergueu Erick,
oferecendo ao avô.
Tome conta dele um pouco, por favor... Queria ficar sozinho.
S olícito, Thomas pegou Erick, e desceu da rocha com cuidado para não deixar o
bebê cair. O fato de ter matado Mondovar abalou muito o rapaz. Para Thomas era
fácil imaginar que S elena e Mondovar eram pessoas distintas, mas Vanhardt ainda
sentia um nó na garganta quando pensava no que teve de fazer. S em que o jovem
percebesse, uma outra figura sentou-se ao seu lado. Q uando ele se virou, viu Léia,
com um vestido negro, os cabelos soltos, ligeiramente anelados, e sapatos de cristal
com diamantes. O s dedos estavam em perfeito estado, sem faltar uma falange
sequer.
Mãe, você está diferente...! - Vanhardt procurou não se mostrar tão surpreso,
porém não conseguiu se conter.
Essa era minha antiga forma, quando eu era a deusa da morte. Estou bonita?
Nossa... Está sim! Muito! Essa visão devia matar muitos homens!
A deusa sorriu com o trocadilho, e acariciou os cabelos do filho ternamente. Ela
sentia o quanto Vanhardt remoía os últimos acontecimentos. A própria deusa se
surpreendeu ao descobrir a identidade de Mondovar, e custou a digerir a
informação.
Mãe, há algum tempo queria fazer algumas perguntas, porém estou me
segurando. São meio delicadas...
Pergunte diretamente. É a melhor maneira de fazer as coisas; ficamos assim
mais longe das falsas mesuras.
Tudo bem, então. Q uando eu era mais novo, você me enviou numa missão para
salvar S elena e Lionel, contra lobos. Mais tarde, quando fui atrás de Erick tive de
enfrentar tempestades de neve, um Crivmarion, e lobos roubando meus
suprimentos. Entretanto, imagino que tanto os lobos quanto o Crivmarion, além
das tempestades de neve eram obras suas. Em uma conversa anterior, você havia
me dito que fazia as coisas para me deixar mais forte... Mas não é meio cruel da sua
parte?
S e você não tivesse passado por esse tipo de eventos, estaria morto - os olhos de
Léia ficaram sem expressão, e fitavam apenas o vazio. - Crueldade e bondade são
conceitos que muitas vezes só se diferem devido o ponto de vista. Veja bem. N ão
sou do tipo da mãe que como uma galinha coloca as asas sobre os pintinhos, e os
protege das adversidades. Eu acredito que a melhor maneira de aprender as coisas
é superando obstáculos, passando pelos desafios, e isso acaba acarretando dor. A
dor traz inexoravelmente ensinamento. Cabe a nós gravarmos esse ensinamento
em nossa alma, para nunca mais precisarmos passar por dor semelhante.
Vanhardt, eu posso ser a pior das mães, mas infelizmente sou assim, e esse é o
meu jeito de educar. S e tivesse passado a mão na sua cabeça desde criança, você
nunca teria despertado os poderes de forma tão rápida e eficiente. N unca teria
enfrentado sozinho um exército de tamanhas proporções, e salvado a sua vila
inteira. N unca teria posto fim à vida de um ser terrível chamado Mondovar. E
finalmente, nunca teria salvado Erick e Selena!
"Você pode se culpar eternamente pela atitude que tomou contra S elena, mas
não passaria de uma perda de tempo e uma autoflagelação inútil. Ela só seria
libertada se você a matasse, e isso já havia sido profetizado pelo oráculo. Foi divino
de sua parte ter coragem e força para dar cabo do que sabia ser certo. N ão se culpe
por isso. E não se reprima por metade de Crivengart achar que você foi causa das
mortes, e pela destruição da vila. S e não fosse por você, todos eles estariam mortos.
Você foi um herói."
Vanhardt inspirou o ar pesado e frio, oxigenando os pulmões. N o fundo ele não
desgostava de sua mãe. Ela estava certa. Por mais que tivesse sido doloroso, sua
jornada acabou trazendo um imenso crescimento espiritual. D eixou de ser uma
pessoa que respondia passivamente ao mundo, e agora poderia tornar-se ativo.
N aquele instante, vendo o barco retornar à margem para buscar mais um caixão,
ele fez um acordo consigo mesmo. Mesmo que custasse todos os seus esforços, ele
cumpriria o último desejo de sua esposa. Poria fim à toda maldade do mundo.
Obrigado, mãe! Por tudo mesmo! Você é a melhor mãe do mundo!
Vanhardt abraçou a deusa com força, tentando esconder uma lágrima que se
formara no canto dos olhos. Mal desconfiava que Léia também apresentava
semelhante lágrima. - Mas me diga, foi uma pena não ter visto o rosto do traidor...
ou você o viu e não me contou? - Vanhardt fingia coçar o nariz enquanto enxugava
a lágrima.
— N ão, eu não vi. - a deusa do gelo não se preocupou em deixar a lágrima
escorrer pela bochecha. - Foi uma infelicidade. Contudo, ainda há esperança.
Léia revelou à Vanhardt tudo o que foi discutido naquele período após a
cirurgia de Lila, quando eles descobriram que Lionel Risalv foi a última pessoa
conhecida a entrar em contato com o "Manto das I lusões". Eles agora teriam que
refazer os passos do sogro de Vanhardt, descobrir com quem ele se encontrou
depois de deixar Avendorh, e locais onde esteve. A deusa do gelo já havia revistado
sua casa, porém nada encontrou.
-— S e acharmos o Manto das I lusões, poderemos descobrir quem o fabricou e,
consequentemente, a identidade do traidor. Como vê, não estamos tão longe de
descobrir quem seria, e além disso...
S em deixar a mãe completar a frase, Vanhardt correu pela rocha, tomando
impulso, e mergulhou de ponta no lago. Léia não entendeu o que o filho planejava.
Vanhardt nem precisou segurar a respiração, pois desde bebê tinha facilidade para
permanecer longos períodos debaixo d'água sem precisar de ar. A maior
dificuldade encontrada foi a escuridão, e logo se viu obrigado a acender a ponta do
indicador. Com aquele farol luminoso na ponta do dedo, Vanhardt continuou
dando braçadas, desviando-se de peixes, e logo chegou ao fundo do lago. A lgas
multicoloridas abundavam naquela região. Uma vez Thomas disse que as algas só
se proliferavam em grandes quantidades nas águas quentes, mas ali estava uma
prova irrefutável de que o velho professor se enganara. S eguindo sua intuição, o
rapaz nadou até o local que acreditava encontrar os caixões dos Crivengartenses
mortos. Minutos depois, conseguia ver uma multidão de caixões, de todos os
tamanhos e formatos. Podia contar centenas, não, milhares, espalhados no fundo
daquele lago. O s peixes nadavam ao redor deles, alguns dos quais se mostravam
cobertos de algas. Realmente a vila era bem antiga, pois a quantidade de caixões
indicava que muitas pessoas moraram e morreram ali.
Perdido no meio de todos aqueles receptáculos de cadáveres, Vanhardt não
fazia a mínima idéia de como encontraria justamente o de Lionel Risalv. Ele não se
lembrava de nenhuma característica especial no caixão, e também não podia
deduzir o local onde ele fora atirado, pois a área compreendia centenas de metros
quadrados. Resolveu então, apelar para a magia. Fechou os olhos, e procurou
meditar profundamente. Eliminar qualquer pensamento de sua cabeça.
D esaparecer com os outros Vanhardts que discutiam eternamente em seu cérebro,
deixando a sua consciência, a sua verdadeira essência, falar. A ssim, escutando uma
única voz, ele afundou mais no lago, e se dirigiu a um caixão específico. Era
ligeiramente menor e mais largo que os demais. S em hesitar, arrancou a tampa, e
não se surpreendeu ao ver ali dentro o rosto do sogro, intacto. O frio do lago
conservara todas as características de Lionel, e até suas vestimentas. Em sua mente
ele pediu desculpas pelo que teve de fazer com S elena. Um singelo sorriso que
permanecia nos lábios do velho Risalv, que parecia aceitar as desculpas. A lém do
mais, Vanhardt agora sabia que Lionel cometera demasiados erros no passado, e
certamente não poderia julgá-lo. Até mesmo porque estava morto! O Manto, Sr.
Risalv... Eu só vim pegar o Manto!
Capítulo LXXI - Adeus, Amigos!

O s crivengartenses aguardavam a chegada do barco que ainda deveria levar o


último dos 61 caixões. O s semblantes eram máscaras de mármore, inalteráveis,
frutos de imensurável tristeza. Apesar disso, aqueles que ainda permaneciam de pé
acompanhando o funeral até o fim foram acometidos de uma palidez cadavérica ao,
atônitos, observarem um corpo sair andando do lago. A lgumas mulheres gritaram
e ameaçaram correr, enquanto homens se prepararam para atacar a criatura. S eria
um monstro marinho, ou um dos crivengartenses mortos, retornando ao mundo
dos vivos na forma de um espectro? A criatura, contudo, levantou os braços num
típico sinal de paz.
A luz pode estar fraca, mas não estão me reconhecendo?
É apenas Vanhardt, pessoal, está tudo bem - exclamou um Greylock
desanimado, e ajudando a erguer o último caixão que seria colocado no barco.
O corpo encharcado e pingando, num reflexo disforme da luz da lua e das
tochas acesas, quase tornava o filho da deusa do gelo irreconhecível. Foi uma
felicidade Greylock ter identificado a sua voz, e assim abrandado o ânimo dos
aldeões. Vanhardt não parou para papear com ninguém, pois não sabia quem ali
seria amistoso com ele, e também não queria perder tempo com explicações.
D irigiu-se apressadamente para a rocha onde há pouco havia conversado com sua
mãe, mas foi interrompido no meio do caminho por uma mão que tocou-lhe os
ombros. Um giro rápido em torno do próprio eixo o deixou de frente para Léia,
agora vestida de branco, como uma verdadeira deusa do gelo.
Você adora essas atitudes inesperadas e surpreendentes, não é meu filho?
Mãe, eu tenho uma ótima surpresa! - o sorriso misterioso de Vanhardt não
respondeu a pergunta da deusa. - Um dia, Lila me contou que itens mágicos podem
ser guardados dentro das pessoas - o jovem jogou a mão direita para traz, como se
fosse coçar as costas - em algum local entre seu corpo físico e o astral.
I mediatamente imaginei que Lionel pudesse ter guardado o manto dentro dele, e
acabei acertando!
Vanhardt estendeu um belíssimo manto azul turquesa, com estrelas brilhando
na parte interna. O s crivengartenses que haviam se reunido em volta,
impressionados com a aparição da deusa do gelo, ficaram mais estupefatos com a
visão do artefato. A lguns mais ousados, e supostamente mais educados, chegaram
a se ajoelhar, porém logo receberam puxões e explicações de que não se deve
reverenciar um objeto, ainda que fosse divino.
N ão posso acreditar... - Léia estendeu a mão lentamente, e puxou o manto
enquanto percorria todos os seus cantos demoradamente com o olhar. - É ele... O
Manto das I lusões! Estava tão perto, porém tão longe. Você realmente foi muito
perspicaz. Meus parabéns filho!
Q uem disse que pra ser inteligente precisamos ir "na" escola? - perguntou
retoricamente um Vanhardt que colocava as mãos na cintura, querendo demonstrar
importância.
Ram-raaaam! - pigarreou em resposta Thomas, lutando contra Erick que havia
agarrado vorazmente uma mecha de seus cabelos. - É ir "à" escola! E você deveria
freqüentar uma para ao menos aprender a falar direito!
Pai, assim você me tira a autoridade... - o filho da deusa do gelo mostrava os
dentes cerrados e cuspia lufadas de vento, com as bochechas vermelhas.
Bem, tenho de voltar imediatamente ao castelo de cristal, pois providências
inadiáveis e urgentes devem ser tomadas. Uma boa noite para todos! A proveito
para agradecer a honra de me encontrar na presença de sobreviventes como vocês -
a deusa do gelo dirigia o olhar e o sorriso para cada aldeão em volta. - Todos aqui
são vitoriosos. Enquanto mantiverem o espírito nobre, serão capazes de vencer
qualquer desafio! E, Vanhardt, - Léia se dirigiu por fim ao filho - obedeça seu pai!
D entro de uma nuvem branca que se ergueu subitamente do solo, a deusa do
gelo desapareceu sem deixar vestígios. Uma crivengartense mais animada
exclamou:
Estão vendo como ela é bonita? E fala tão bem... Nos faz sentir importantes!
Mirj, fique quieta! Você não sabe de nada! - respondeu um homem barbudo ao
seu lado.
Q uem não sabe é você, Pacheco! D esde que Vanhardt era um garotinho eu
avisava que deveríamos orar para a deusa do gelo, mas você falava "N ão, Mirj, blá-
blá-blá"!
Vanhardt e seu pai se afastaram lentamente do povo que iniciava uma
discussão. D e repente, viram uma garota de longos cabelos verdes, e um corselete
de couro puído se aproximando. A parentava ter quinze ou dezesseis anos, porém a
luz era insuficiente e não reconheceram seu rosto. A quele cabelo, entretanto, não
era de ninguém conhecido. A garota continuou se aproximando dos dois, e quando
estava a cerca de cinco passos perguntou:
A luz pode estar fraca, mas não estão me reconhecendo?
Ei, fui eu quem disse isso ali há pouco... Espere aí, você é... não acredito! Lila, é
você! E cresceu... Onde estão suas asas? Deixou de ser fada!
Calma, calma! - a fada, ou ex-fada, caiu em gargalhadas enquanto Vanhardt a
abraçava. - A operação acabou sendo um sucesso. A sua energia vital salvou a
minha vida. Por ironia, um antigo desejo meu acabou se realizando!
Como assim? Explica isso direito!
Eu havia pedido a Léia que me transformasse em humana. N ão adianta me
perguntar por que, eu não contarei, era uma decisão pessoal. Léia me disse que era
impossível, pois eu não possuía energia vital, e apenas divina. Por obra do destino,
quando você me passou uma parte de sua energia vital, uma mudança acabou se
desenhando. Léia contou que meu corpo sofreria uma transformação sempre que o
sol se pusesse. Como ele é fonte de energia das fadas, enquanto o castelo de
S alazar estivesse nos céus, eu seria alimentada por ele, e assim me manteria na
forma de fada. Q uando o sol se escondesse atrás do horizonte, contudo, aquela
parte de mim correspondente à energia vital deixaria de ser alimentada pela luz
solar, me obrigando a assumir uma forma humana! Não é incrível?
É, sim, Lila, incrível - Vanhardt observava o corpo proporcionalmente gigante
da fada. - Você está... hum... bonita!
O brigada - Lila mal pôde disfarçar as bochechas se enrubescendo. - Vanhardt,
eu vim até aqui para lhe agradecer. O que você fez por mim foi... er... bem, não
tenho palavras para descrever o que você fez por mim...
A h, que isso Lila, não foi nada! - o jovem coçava a nuca evidentemente sem
graça. - N ão foi muito diferente de quando você entrou na frente do ataque de
Mondovar! Estamos quites...
Falando em Mondovar, Van, eu fiquei sabendo de tudo. S elena era... hum...
Ninguém esperava que...
Vamos esquecer isso. D eixa pra lá. N ão quero pensar muito, e... ei, olha quem
vem lá! Green e Ravina! Puxa, que bom nós quatro reunidos novamente!
Thomas já havia se afastado com Erick no colo para deixar Lila e Vanhardt
conversarem a sós, quando surgiram o duende e a Guardiã a alguns metros. Ravina
vinha encoberta com seu velho capuz e o manto verde, enquanto Green gingava
com o quadril e balançava os bracinhos ao lado do corpo. Este último levantou a
mão acima da cabeça, e imprimiu um poderoso tapa na palma de Vanhardt.
Grande Van! Q ue bom que você está bem! Puxa, está todo molhado... S erá que
está suando de medo até agora pela batalha, hem-hem!
Eu, não, Green, mas notei esse jeito afeminado com que você veio andando.
Acho que a luta te deixou seqüelas, não?
O quê??? O ra seu... - o rosto do duende tomara uma expressão séria e mal-
humorada.
—Parabéns, Vanhardt - cumprimentou a Guardiã, estendendo discretamente a
mão. A ssim que Vanhardt cumprimentou-a, o braço dela escapou por debaixo do
manto, revelando escamas verdes que iam até o pulso. - Ah... você viu...?
Pelos deuses! Até onde vai isso, Ravina?
S ó não se espalhou pelo meu rosto, e as minhas mãos. A cho que fiquei muito
tempo na forma de Lázarus. Provavelmente poderei assumir por apenas alguns
minutos a forma de lagarto, e após isso Lázarus se apossará de mim
completamente. Também não me importo, teria que acontecer uma hora ou outra.
Ravina, isso é triste... - Lila colocou as mãos contra a boca, assustada.
Tudo bem, pessoal, não vamos começar agora a trocar desculpas. Todos nós
ganhamos cicatrizes. Vanhardt não pode usar seu poder divino como antigamente,
pois perdeu grande parte de sua energia vital. Green está arrasado por ter
confirmado que o irmão morreu; irmão esse que era metade de sua alma. Lila é
obrigada todas as noites a deixar de ser fada, e eu... Eu estou assim! - eles não
podiam ver, mas a Guardiã exibia um sorriso amarelo debaixo do capuz. - Vim aqui
para perguntar Vanhardt se estamos quites...
Quites? Está brincando, Ravina, eu é que lhe devo mais uma!
S e é assim, então, vou preparar minhas coisas para voltar até minha vila. D evo
treinar a futura Guardiã, e isso vai tomar muito trabalho!
Eu também vou me despedindo, Van! - Green deu batidinhas nas costas de
Vanhardt. - S eu povo é muito hospitaleiro, mas há uma coisa aqui que não me
agrada nem um pouco, e é esse baita frio. Você anda sempre com pouca roupa
assim só pra mostrar o muque?
Esperem um pouco, já estão indo? No meio da noite?
N ão, Vanhardt, partiremos logo pela manhã. - respondeu Ravina, procurando
encontrar as palavras certas para não ofender Vanhardt. - Eu realmente tenho que
ir, minha vila não pode ficar sem uma Guardiã, e estou fora há muito tempo!
E você, Green?
Puxa, Van, adoraria ficar, porém já disse que o frio é um sério empecilho. Estou
com os ossos chacoalhando debaixo desses três casacos. A gora que sei que Lionel
está morto, e Hilda presa numa esquife de gelo, voltarei para o meu cogumelo em
paz! Finalmente...
E você, Lila, também, vai me abandonar? Meu pai vai preparar um frango-das-
planícies assado com purê de batatas que é uma delícia... - Vanhardt esfregou as
mãos tentando estimular a fome da fada. - Como humana você passou a comer, não
é?
Comer e beber, e descobri que são umas das melhores coisas desse mundo!
A ndei comendo muitos quitutes nesses últimos dias, e entendi por que vocês
humanos fazem cara tão boa enquanto se alimentam, e por que reclamam da fome.
S ó achei desagradável essa parte de urinar... É tão esquisito, e não me senti
confortável!
S e achou esquisito urinar, e quanto a... bem, você sabe. Fezes. É muito mais
estranho - Green arregalou uma das sobrancelhas, curioso com a resposta da fada.
Fezes? O que é isso?
Puxa, você não sabe, Lila? A inda não fez...? - perguntou Vanhardt começando a
ficar interessado naquela história.
Fazer o que gente?! Q ue misério é esse? A lguém, por favor, poderia... - de
repente, um barulho grave como o mugir de um boi escapou da barriga de Lila. - Ei
gente, tem algo estranho acontecendo aqui... parece que... Gente, tem algo muito
estranho acontecendo aqui!
Van, olha só, será que a Lila está com diarréia? Há! Há! Há! Só pode ser!
Green, parece que é verdade... Não acredito...
Q uerem parar com isso?! - com um semblante revelando medo, e pequenas
lágrimas despontando nos olhos, Lila colocava uma das mãos firmemente sobre a
barriga. - Alguém pode me ajudar aqui???
Ravina deslizou ambos os braços ao redor do ombro da fada, e caminhou com
ela até para longe dos dois alcoviteiros. O duende deitava e rolava no chão de tanto
gargalhar, ficando até roxo por perder o fôlego. Vanhardt por sua vez tentava
conter a risada para não ofender Lila, ao mesmo tempo em que fingia repreender
Green. Aquela alegria iria permanecer entre os quatro amigos por muito tempo.
O seu humilde bardo narrador, enquanto escreve as últimas linhas, procura
captar o que se passava na cabeça do nosso herói, Vanhardt Mohr D aicecriv. A o
mesmo tempo feliz por ter atingido seus objetivos, reconquistado o filho,
protegido a vila, feito bons amigos, sua alma continuava atormentada. O choque de
perder S elena, pelas próprias mãos, iria abalar e muito o filho da deusa do gelo
pelos anos vindouros. Com o papiro na mão, fico também me perguntando se
consegui cumprir meus objetivos. Prometi aos leitores um texto não muito
enfadonho, contando a história do nosso herói, e ficarei satisfeito se tiver realizado
a proposta. S e vocês encontrarem por acaso um velho dragão, de nome Frumbus,
enviem para ele uma cartinha comentando a história. Meu nome é Meroho, o bardo
errante, ele saberá como me encontrar. Porém, por favor, chamem-no de "O
poderoso senhor das chamas", pois já comentei anteriormente que ele não gosta de
ser chamado pelo próprio nome. É lógico que a história de Vanhardt não termina
por aqui. I sto foi apenas um começo. Eu não teria condições de contar tudo em um
livro só! A inda falta o meio e o fim, e eles serão contados em seu devido tempo.
Até lá, saldações a todos. A h... J á ia me esquecendo, falta um capítulo! Pelos
deuses, quase termino sem contar o que aconteceu com Léia depois que ela
encontrou o Manto das Ilusões...
Capítulo LXXII - O Retorno da Deusa da Morte

A o se posicionar no lado de dentro da porta que dava acesso ao salão de


reuniões do Panteão, o guardião selecionado para aquele dia pressentia que algo
não correria bem. S empre que as pontas de seus dedos se tornavam
inexplicavelmente geladas, algum fato fugia da rotina, e geralmente não era coisa
boa. Ele observou atentamente os seis deuses maiores se sentarem em torno da
mesa redonda, e também o sétimo membro, uma criatura que tinha a cabeça de
corvo, tronco e pernas de homem, além de braços de onde caíam penas negras
ensebadas. N as últimas três reuniões esse último deus esteve presente, e o
guardião conjecturava se ele iria realmente ocupar o posto de deus maior que por
séculos esteve vago. Balançando a cabeça, o guardião chamado Languedoc se
afastou das distrações, e procurou concentrar em seu trabalho. Ele deveria impedir
qualquer intromissão, e para isso era importante estar atento, e de olho na porta.
Q ual não foi a sua surpresa quando sentiu uma pancada nas costas, e em seguida
voava em direção à parede do lado oposto.
Foi a grande porta de ferro que se abriu repentinamente e atirou longe o
guardião que a vigiava. S e não tivesse sido construída por meios mágicos, e pesasse
toneladas, a enorme porta teria se quebrado em virtude da imensa força utilizada
pelo invasor. O s deuses maiores se levantaram de pronto, colocando as mãos em
armas que guardavam dentro dos corpos, esperando que o intruso aparecesse para
fazê-lo arrepender de tamanha ousadia. A figura com um vestido negro cujas
bordas beijavam o chão, cabelos da mesma cor que caíam pelas costas, e lábios
arroxeados contrastando com uma pele extremamente alva, além de contornos
escuros ao redor dos olhos, penetrou no aposento sem esboçar medo.
Morgana! Então os boatos estavam certos... ou deveria chamá-la de Léia, a deusa
do gelo?... - a voz de Salazar mostrava mais perplexidade que arrogância.
Chame-me até de Minha S enhora, o nome é o menos importante. Q uanto aos
boatos, mostram-se, sim, verdadeiros, pois aparentemente todas as divindades
aqui já têm conhecimento de minha outra identidade. Até mesmo o traidor, que se
encontra se passando por inocente, sabe que me tornei a deusa do gelo! - as
palavras de Léia eram disparadas como flechas ácidas enquanto ela fazia questão
de fitar os olhos de cada um. Q uando terminou de encarar o sétimo deus, com
cabeça de corvo, aproximou-se altivamente dessa bizarra entidade. — Lamento
informar-lhe, porém encontra-se no meu lugar de direito. Por favor, retire-se.
Está brincando - a voz do corvo era um gralhar agudo e irritante, e ele balançava
as asas freneticamente. - Estou há séculos ambicionando esta posição, e até que
enfim consegui! Sou o novo deus da morte, e meu nome é...
O deus com aparência de corvo não pôde completar a frase, pois assim como o
guardião, foi atirado contra a parede, deixando a cadeira vaga. Léia se posicionou
em frente ao banco e fez sinal para que todos deixassem de lado as reverências e se
sentassem.
A ssumiu outra identidade e também ficou mais poderosa... - sentenciou N úbia,
com seu traje semelhante ao da deusa da morte, porém com estrelas que cintilavam
como se aquele fosse o verdadeiro céu noturno.
Isso se chama/é, meus "amigos", algo que os senhores e as senhoras não fazem a
mínima idéia do que seja. O s falsos sorrisos, a decadência, a burocracia, os
discursos vazios, tudo impede que vossas divindades se aproximem o suficiente
dos humanos e vejam como eles devotam a própria vida ao mais profundo amor.
A mor a um deus. Felizmente tenho hoje consciência disso, e posso dizer que,
armada da verdadeira fé dessas pessoas, minha força se tornou muito maior do que
era antes - ela devolveu um olhar frio para Núbia.
Creio que essa troca de ameaças não resultará em nada, e... - J ustus, em sua
armadura que apresentava uma balança estampada no tórax, foi impedido de
continuar pelo deus dos corvos, que se levantou e apontou o indicador para Léia.
I sso não ficará assim! Venceu-me hoje, porém prepararei a minha vingança!
Repito, isso não ficará assim! - o corvo gralhou novamente, e disparou na direção
da porta, deixando o salão de reuniões.
J ustus olhou ao redor, esperando que um novo contratempo o interrompesse.
Languedoc, que também já havia se levantado e se recomposto, até cogitou
comentar que a deusa da morte era uma intrusa, mas aparentemente nenhum dos
outros deuses fez objeção à sua presença. D eduziu então, com prudência, que seria
sábio manter-se quieto. O guardião do Panteão fechou a porta com força, torcendo
para que nenhuma outra surpresa ocorresse. S uas mãos, contudo, continuavam
frias.
Como não houve interrupções, J ustus puxou a cadeira e se sentou, para iniciar o
seu discurso. O s outros deuses que ainda se mantinham de pé também se
sentaram.
A ntes que Vossa D ivindade se unisse a nós, caríssima e honorável Morgana,
discutíamos um assunto de urgente importância. Parece que o "acidente" foi visto
nas fronteiras da capital de A lminster, perto da indestrutível muralha. E a dama
sabe, da mesma forma que todos nós, que ele é a única ameaça concreta aos
deuses. Q uase matou um dos irmãos de status, e não teria dificuldade para repetir
a ousadia, com um final muito mais trágico para o nosso lado.
Ultraje! - Salazar levantou-se e socou a mesa com os punhos fechados.
O "acidente" só representa ameaça aos fracos! D everíamos montar um grupo de
aniquilação para transformá-lo em cinzas! J ustus, se Vossa D ivindade tratar essa
ameaça com a negligência contumaz, provará que é um líder incompetente.
-— Tolice, S alazar, e sabe muito bem disso! S uas ameaças quanto à minha
incompetência só revelam as mágoas por ter perdido o cargo de líder do Panteão.
Estamos cientes de que o "acidente" é um perigo real, e um grupo de aniquilação
não resultaria em nada diferente do suicídio. A cautela é o melhor remédio na
atual conjuntura, e por isso proponho um plano antes de enfrentarmos esse ser.
Q uero pedir o perdão a todos, e gostaria de deixar claro que sei que o "acidente"
é uma verdadeira ameaça aos deuses e também à Kether. Ele, porém, se manteve
muito tempo quieto, e não sabemos se irá mesmo agir. Creio que não ouço falar
dele há quase dez mil anos. - Léia cruzou os braços e imprimiu importância à voz -
D esejo, na verdade, apresentar aos amigos, nesse exato instante, uma ameaça mais
real e iminente do que o "acidente", e ao mesmo tempo relatar a negligência e o
descaso prestados pelo Panteão à minha situação.
"É de conhecimento geral o fato de que, há quase mil anos, fui atacada em meu
próprio lar. Tal afronta à minha soberania e direito de existir foi tão fulminante e
devastador que por muito pouco não me eliminou do mundo que conhecemos. O s
seis aqui presentes acreditaram que eu estava morta, mas por sorte e habilidade,
consegui me salvar. A quele traidor, que na ocasião quase me destruiu, está
presente neste aposento, e não serei tola de encobrir o fato. A gora, vamos frisar
certas questões de vital relevância. N ão houve investigações que apontassem a sua
identidade. N ão houve qualquer tipo de ação que resultasse em frustrar os planos
desse traidor, sendo que ele teria continuado suas maquinações não fosse a
valentia do povo da terra do gelo. Há uma total ignorância consciente quanto às
atitudes do traidor, e ninguém levanta um palmo para evitar que isso ocorra."
"Ê aí que eu me pergunto; até quando isso continuará? Até todos os planos
dessa entidade vil e ardilosa terem sido levados a cabo? S erá que estou diante de
covardes? N ão, estou certa de que não. Eu entendo muito bem que estamos diantes
de uma cegueira deliberada, e que cada um de vossas divindades está se
aproveitando de alguma forma das ações do traidor. Esperando que ele derrote
inimigos mais fortes, para consequentemente se apresentarem mais poderosos.
Gostaria de alertá- los, contudo, que isso não acontecerá. O traidor não é uma
marionete, e não será manipulado. Ele atacará pelas costas todos que acreditam
estar tirando proveito de suas atitudes. Meçam bem minhas palavras!"
Morgana, todos nós nos compadecemos de sua tristeza pelo que aconteceu
anteriormente. - disse J ustus. - Ê incorreto afirmar, contudo, que fomos
negligentes. Houve, sim, investigações, mas estas não apontaram um traço sequer
de quem tivesse feito isso. Chegamos a supor que foi uma obra sua!
Conversa! - S alazar socou novamente a mesa transparente. - Eu propus uma
investigação à vida privada de cada deus maior, porque só um de nós teria
capacidade de destruir um castelo inteiro, e o próprio deus senhor dele. Propus,
além disso, que localizadores fossem implantados a fim de evitarmos que isso
ocorresse novamente. Entretanto, em mais uma prova de sua incompetência,
J ustus, Vossa D ivindade ignorou qualquer uma de minhas idéias. Morgana está
certa; nunca tentamos ajudá-la realmente. N em procuramos descobrir se ela teria
sobrevivido!
Devo agora manifestar minha opinião, nobre Salazar, senhoras e senhores. - Bel,
a deusa da vida, de posse de seu vestido verde e longas madeixas louras, resolveu
falar pela primeira vez. - Talvez investigações mais sérias pudessem ter sido
realizadas, porém analisar a vida privada de cada um, e implantar localizadores, é
demasiado abuso. Temos direito à nossa liberdade e individualidade. Levar um
plano assim adiante é uma lesão a nós mesmos. I sso sem contar que tais medidas
só serviriam para alimentarmos o traidor de informações que ele usaria em
benefício próprio.
N autillus, o deus dos mares e oceanos, que até o momento se mantivera calado,
resolveu se manifestar:
O comentário de Bel vem em bom momento, irmãos de status. N aquela época
minha proposta de formarmos uma liga que pudesse nos proteger mutuamente em
situações de perigo foi ignorada, porém gostaria de colocá-la em discussão
novamente! - esperando manifestações de apoio, N autillus se levantou, e percorreu
os olhos ao redor da mesa.
N ão comece com isso, meu caro, vejo muito bem seus planos! A ssim como
J ustus, Vossa D ivindade só pensa no poder; quer ser líder dessa liga para poder
nos manipular. Vossa D ivindade e J ustus estão juntos e só vêm revelar a falta de
transparência de nosso Panteão. Para quê uma liga, se temos um Panteão? É uma
idéia ridícula! - Salazar se mostrava vermelho de cólera.
Eu concordo com S alazar, não faz sentido uma liga de apoio se temos um
Panteão. Está querendo passar uma idéia de bom moço, de salvador, Nautillus?
Núbia resolveu entrar na discussão.
É claro que sim, N úbia. - N autilllus respondeu misteriosa e friamente à deusa
da noite.
Muito bem, meus amigos, não era até esse ponto que eu pretendia chegar.
adiantou-se novamente Léia. - N o entanto tais idéias e reprimendas serão
eventos passados depois do que tenho a revelar. Felizmente, com a ajuda de
amigos, descobri que o traidor só poderia ter invadido meu castelo de posse de um
único item. Quando sofri aquela invasão, não pude me defender porque fui pega de
surpresa. N ão me era possível detectar o rastro do traidor e de suas tropas. Através
de amigos, acabei descobrindo que apenas um único item em Kether seria capaz
fornecer esse poder, o Manto das I lusões, que torna indivíduos imunes a qualquer
forma de detecção divina. A minha busca pelo traidor estaria terminada se eu
encontrasse tal artefato. Bem, por um feliz acaso eu encontrei-o - Léia enfiou a mão
atrás das costas, e retirou de lá o Manto azul, com estrelas na face interna. - E para
infelicidade do traidor, sua verdadeira face será revelada a todos nós, neste
instante!
Um ar de espanto e perplexidade se abateu sobre todos os presentes. A lguns se
remexeram nas cadeiras, como S alazar e N úbia, porém outros esconderam melhor
seu espanto como N autillus, J ustus e Laodicéia. A deusa da natureza, aliás, se
mantinha quieta todo o tempo, apenas ouvindo e observando. Léia mostrou o item
para todos, e depois o atirou no centro da mesa.
E então, traidor, pode se revelar! S e não admitir que criou o item, ele passará
sob os olhos do Investigador, e nossa máquina revelará a sua identidade.
D epois de alguns segundos de silêncio, N autillus, o deus dos mares e oceanos,
apanhou o objeto com cuidado, e analisou-o dos pés à cabeça. O deus que usava
algas marinhas na cabeça, armadura prateada, e uma capa azul nas costas que
balançava como as ondas do mar, disse algo que não deixou de causar espanto:
Este artefato é meu. Fui eu quem o criou.
Um silêncio mais profundo que a simples ausência de sons caiu como uma
rocha sobre o salão. O lhos arregalados e gargantas engolindo em seco se
multiplicaram. Léia não sabia o que dizer, não sabia o que sentir. Então era
Nautillus? Simples assim?
Basta! A chamos o culpado! A h, eu bem que desconfiava; essa história de criar
uma liga nunca me cheirou bem. Vossa D ivindade foi desmascarada, N autillus, e
sofrerá as conseqüências! - S alazar continuava vermelho, e abria um sorriso
desmedido.
Calma, S alazar, não é tão simples - disse J ustus. - Temos de dar a N autillus a
chance de se explicar... Talvez ele possua um bom álibi, que negue a possibilidade
dele ser realmente o traidor.
O quê? Como assim? - S alazar agora parecia um tomate de tanta fúria. - Ele
admitiu que o Manto foi sua própria criação, não há o que discutir! Estão vendo
como J ustus é um incompetente? N a minha época como líder de Panteão eu nunca
agiria com tanta "delicadeza" e negligência! J ustus, se Vossa D ivindade não punir
Nautillus, estará provando para Morgana que nunca se preocupou com ela!
S uas acusações não me afetam, S alazar - J ustus fechava os olhos por longos
períodos, e inspirava profundamente. - Nautillus tem o direito de se explicar, Vossa
D ivindade querendo ou não. E então N autillus, há algo que gostaria de dizer em
sua defesa?
D epois de um breve minuto calado, o deus dos mares e oceanos resolveu se
manifestar:
Não tenho nada a dizer.
Mas... Mas como assim? Não vai se defender? - Justus parecia contrariado.
N ão - sentenciou N autillus, depositando o Manto sobre a mesa, e cruzando os
braços.
Eu não esperava por isso, mas... hum, se não irá se defender, não tenho outra
alternativa exceto proclamar que Vossa Divindade é culpado por trair Morgana, e...
Esperem um pouco!
Os olhares do salão voaram imediatamente para Bel, que se levantou, ofegante e
parecendo perturbada. A deusa da vida fitava N autillus, e mexia as mãos
nervosamente. D epois de alguns segundos de hesitação, ela finalmente deixou
escapar:
Eu não sei esclarecer o motivo de N autillus não estar se defendendo, porém não
posso me calar. Existe uma falha em todo esse raciocínio de Morgana, ligando o
criador do Manto das I lusões ao traidor, e irei apontar. D ezenas de anos antes de
Morgana ser atacada, o deus dos mares me revelou a existência do Manto das
I lusões, porém se queixou de ter sido roubado. Ele pediu a minha ajuda, pois
confiava em mim para reaver o item. A s buscas se seguiram infrutíferas por anos,
até que se deu a queda de Léia. Fiquei aturdida ao saber que o Manto foi usado
nessa ocasião, mas seria irresponsabilidade nossa condenar N autillus. O traidor
certamente roubou o artefato, e utilizou-o ciente de que a responsabilidade recairia
sobre Nautillus se algo desse errado.
N autillus, exceto Bel, mais alguém sabia da existência do Manto das I lusões? -
perguntou Justus.
Eu já havia pensado nisso, mas além de Bel, não revelei a mais ninguém a
existência do artefato. Não tenho um álibe convincente.
D eixem de ser tolos! N autillus é o culpado, está óbvio! O u o condenamos
imediatamente, ou ele atacará de novo! - S alazar continuava golpeando a mesa com
socos.
Todos esperem um minuto, não podemos nos precipitar. O traidor pode muito
bem estar manipulando N autillus! Responda-me deus dos mares, por que não quis
se defender aquela hora? Está com medo de algo que desconhecemos?
N a verdade, não, J ustus. S implesmente achei que não acreditariam no que eu
dissesse. S e eu falasse que o item foi roubado anos antes, pareceria uma desculpa
muito pobre. D esde o episódio em que o perdi, é a primeira vez que o vejo. Até
tenho as minhas suspeitas de quem possa tê-lo furtado de meu lar, porém não
provocarei confusões sem provas...
Estamos diante de uma situação difícil, não é mesmo grande líder? - perguntou
Núbia, deslizando a mão pelos cabelos, sedutoramente.
É verdade. Bel, Vossa D ivindade pretende continuar testemunhando a favor de
Nautilus?
Sim, Justus.
Bem, como não há provas irrefutáveis contra, nem a favor, vamos votar. Q uem é
a favor da condenação de Nautillus, por favor, erga sua mão.
S alazar foi o primeiro a erguer o braço, seguido de N úbia, e, para surpresa de
todos, Laodicéia. A deusa da natureza era a que sempre falava menos dentro do
Panteão, mas nem por isso era pouco observadora, ou deixava de agir quando
achasse necessário. Eram três votos a favor, precisavam apenas de mais um para
condenar N autillus. Todos olhavam para Morgana, pois aparentemente ela era a
maior vítima ali presente. D epois de hesitar longamente, e ameaçar erguer seu
braço, a deusa da morte preferiu mantê-lo abaixado.
A credito que os que deixaram o braço abaixado são contra a condenação prévia
de N autillus, o que indica três votos a favor, e quatro contra. - Batendo um martelo
contra uma tampa redonda de madeira, J ustus sentenciou. - N autillus está
absolvido das acusações até segunda ordem. Ele, contudo, será investigado, pois o
deus dos mares e oceanos criou o item que culminou na queda de Morgana.
A credito que depois de toda essa discussão estamos cansados. Realizaremos uma
nova reunião daqui a exatamente sete dias, nesse mesmo horário. A questão do
"acidente" ainda não foi solucionada. Está encerrada a sessão.
O mais irritado de todos, S alazar, de ixou a sua cadeira jogando papiros para
cima, e resmungando. Ele olhou desafiadoramente para J ustus, e depois para
N autillus. Por fim pediu desculpas à Morgana, pela incompetência de não terem
encontrado o culpado antes. N úbia ria como se visse diversão naquilo tudo e
abraçou Morgana:
S eja bem vinda de volta - a deusa da morte tentou encontrar falsidade naquelas
palavras, mas não foi bem sucedida. Elas pareciam sinceras. - E N autillus... - ela se
dirigiu então ao deus dos mares e oceanos. - Está com sorte por enquanto. Porém,
se cometer mais um deslize, cairá. Estamos de olhos abertos, não se engane.
J ustus deixou o salão perguntando a Morgana se ele poderia ficar com o Manto
das I lusões durante algumas horas, e ela respondeu afirmativamente. Bel também
se despediu de Morgana, um pouco evasiva, e caminhou para fora ao lado de
J ustus. Laodicéia, com sua roupa de folhas amareladas, cabelos vermelhos,
selvagens, e olhos felinos, caminhou até Morgana com um sorriso discreto. Ela
beijou as duas faces da deusa da morte, e também deixou o aposento. O último
deus ali presente, N autillus, olhava para Morgana aparentemente desconcertado.
Ele se sentou em sua cadeira, respirando pesadamente.
S omos todos marionetes. Estamos envolvidos num jogo, do qual não fazemos a
mínima idéia. - N autillus encarou a deusa da morte, que continuava de pé. -
A queles que acham que estão imunes serão os primeiros a cair. Eu quase fui uma
vítima hoje, e não pude ver de onde o ataque vinha.
Eu sei, N autillus. Q uero que saiba que desde que fui traída, passei a desconfiar
de tudo e de todos. E Vossa Divindade é um dos primeiros em minha lista!
Faz muito bem.
Se me dá licença, gostaria de rever meus aposentos. Há muito não os vejo.
I magino que sim. Talvez não goste da decoração, pois Crowler, o deus corvo,
utilizou-o nas últimas semanas.
N autillus, uma curiosidade: quem indicou Crowler para tomar meu lugar como
deusa da morte?
Laodicéia. Ela argumentou com J ustus que a presença de seis deuses causava
desequilíbrio, e que precisávamos de um novo deus da morte. Crowler era um dos
primeiros candidatos. N osso amigo S alazar reagiu negativamente como sempre,
aprontou um escarcéu, porém nosso líder não deu braço a torcer: o deus dos corvos
passaria por um período de testes. Vossa D ivindade, entretanto, apareceu na
terceira semana em que ele se apresentava como membro do Panteão. I magino que
Crowler perdeu a sua vaga... Mas por que se importa com isso?
Por nada... Por nada... - Morgana deu duas pancadinhas no ombro de N autillus
e deixou o salão.
D epois de algumas horas invocando dezenas de flores que zanzavam de um
lado para o outro, redecorando o quarto onde ficava hospedada quando se reunia
no Panteão, Léia finalmente deitou-se na cama de cortinado azul celeste. Léia.
Morgana. N ão sabia mais qual era seu nome. O s últimos acontecimentos a
deixaram frustrada. Q ualquer um poderia ter roubado o manto de N autillus, até
mesmo Bel! Também continuava com suspeitas em relação à N úbia, que já tinha
conhecimento da existência do Manto das I lusões, e também estava procurando
por ele. S alazar também queria uma condenação muito rápida de N autillus, apesar
de Léia saber que aquelas reações eram típicas do deus do S ol. J ustus podia estar
manipulando todos ali. Até mesmo N autillus poderia estar inventando aquela
história de roubo, e Bel o defendendo equivocada ou conscientemente. Léia
também achou muito estranho o fato de N autillus não querer se defender; será que
ele queria ser condenado? N ão havia motivos para isso. D e todos ali, Laodicéia era
talvez a deusa sobre a qual menos pesavam fatos suspeitos. N ão que isso fosse
completamente bom para a deusa da natureza.
O som de três pancadas leves na porta indicaram que alguém queria falar com
Léia. Com os pensamentos rodopiando em sua mente, a deusa da morte levantou-
se e abriu a porta. Era J ustus, que não usava sua armadura, mas apenas uma túnica
branca, com uma corda amarrada na cintura.
Posso entrar? - Justus sorriu galantemente.
Mas é claro! S ó me prometa que nunca mais tentará colocar Crowler no meu
lugar. - a deusa da morte se afastou, deixando J ustus entrar, e apontando uma
cadeira para ele.
—A quilo foi idéia de Laodicéia. Eu nem queria colocá-lo no Panteão, porém
S alazar foi tão contra a idéia que acabei concedendo um período de experiência ao
corvo apenas para contrariar o nosso amigo deus do S ol. - J ustus sorria como se
pedisse desculpas, sentando-se na cadeira. - S abe, Morgana, não sei como expressar
a alegria por Vossa D ivindade estar de volta. Recebi a visita de seu filho, o Elohim,
um rapaz muito determinado, aliás.
Obrigada. - a deusa se sentou numa cadeira de frente para o deus da jutiça.
Bem, Morgana, vim aqui para lembrar-lhe de que, pelo tratado dos Elohim,
assinado depois daquele episódio da Rebelião dos Elohim, nós não podemos ter
filhos, e...
N ão adianta, J ustus, não respeitarei esse tratado. Eu o assinei, porém, se Vossa
D ivindade se esqueceu, cheguei a "morrer". Hoje, renascida, dou-me o direito de
romper com esse tratado. N ão matarei Vanhardt, e não deixarei ninguém fazê-lo.
S e algum deus for contra, que venha conversar diretamente comigo! - o olhar de
Léia era firme e decidido.
Reportarei sua decisão aos outros deuses, mas posso adiantar que a maioria não
fará objeção. Talvez S alazar; entretanto, ele não terá muita força sozinho. Enfim...
Morgana... N ão vim tratar apenas disso. - J ustus se remexeu na cadeira, como se
estivesse incomodado, e pigarreou. - Realmente é muito difícil revelar isso; não
imagina o quanto me aflige. Porém, como deus da justiça, e líder do Panteão, não
poderia ser negligente em relação a esse importante fato.
Então me conte de uma vez.
Err... Mesmo N autillus dizendo que era o criador do Manto das I lusões, Vossa
D ivindade me conhece, quis confirmar, de modo que usei os olhos do I nvestigador.
A máquina que criamos em conjunto, capaz de identificar objetos dos deuses,
acabou apontando um criador diferente para o Manto das Ilusões. Bel.
N ossa. - Léia procurou disfarçar sua inquietação e surpresa. - Bel criou o Manto
das Ilusões? Mas isso é...?
N ão vamos nos precipitar, Morgana! - J ustus levantou-se e caminhou até a
deusa da morte, que também ficou de pé. - D o mesmo modo que fizemos com
N autillus, não podemos julgar precipitadamente a deusa da vida. N a próxima
reunião eu reportarei o fato aos outros deuses, e chegaremos a um veredicto.
— Entendo, J ustus. Porém peço-lhe para não fazer isso, não agora. D ê-me
algumas semanas para investigar Bel pessoalmente, e depois contaremos aos
outros deuses.
Essa idéia não me agrada muito, porém como Vossa D ivindade é a maior
vítima, farei como me pede. - o rosto de J ustus aproximou-se do de Léia, e ele
pegou a mão da deusa da morte. - Fiquei com saudades suas... Quando seu filho me
falou que estava viva, uma chama que acreditei estar morta no meu coração se
reavivou. - O s lábios de J ustus se aproximaram mais ainda dos de Léia, e só não os
tocaram porque a deusa da morte virou-se de lado.
N ão, J ustus, por favor. N ão deu certo antes, e agora Bel... Ela não vai gostar
nada disso!
Eu é que peço desculpas. - o deus da justiça soltou a mão de Léia, e retirou de
dentro do peito o Manto das I lusões, colocando-o no braço de cobre de uma das
cadeiras. - Q uem sabe um dia, não é? Q uanto à Bel, ficamos combinados daqui a
três semanas?
S im. - Léia acompanhou J ustus até a saída, e ele despediu-se beijando a face da
deusa da morte. O s dois não sabiam, contudo, que dos jardins do Panteão dos
deuses, um dos membros viu a maneira que Justus despediu-se de Léia.
D entro do quarto da deusa da morte, Léia pegou o Manto das I lusões, e passou
a observar o objeto. Ela achava que o artefato responderia a todas as suas dúvidas,
porém acabou despertando muitas outras. Q uem seria o traidor? Mais uma vez,
Léia se deitou em sua cama, fechando os olhos.
E finalmente conseguiu descansar, após quase mil anos.

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