Fichamento Antropologia Teológica 2

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TCC – Antropologia Teológica

Antes de tudo, convém advertir e insistir no fato de que a AT como disciplina é relativamente recente no estudo da teologia: “surgiu
ou ao menos explodiu no início da década de sessenta”2 . É o que se pode constatar, por exemplo, na afirmação de Karl Rahner, uma
referencia fundamental em se tratando de AT, em um artigo publicado em 1957 e intitulado precisamente de Antropologia Teológica:
“A construção propriamente dita de uma antropologia (teológica) ainda não aconteceu. A antropologia ainda é repartida nos diferentes
tratados, sem uma elaboração do fundamento sistemático de sua totalidade. A antropologia, no sentido aqui indicado, é ainda uma
tarefa não realizada pela teologia, naturalmente não no sentido de que as afirmações concretas e de conteúdo dessa antropologia ainda
devam ser encontradas pela primeira vez – trata-se evidentemente de afirmações da revelação sobre o homem –, mas sim no sentido
de que a teologia católica ainda não desenvolveu nenhuma antropologia completa partindo de um ponto de vista originário”3 . Como
se vê, a expressão AT aparece, aqui, como “o nome de uma disciplina ainda não existente naquele momento, cuja elaboração, porém,
aos poucos se mostra necessária”. (2 U. VÁZQUEZ MORO, “Teologia e antropologia: aliança ou conflito?”, Perspectiva Teológica
60 (1991) PP. 163-174, aqui p. 163; Cf. F. ELISONDO, “Antropologia”. In: C. FLORISTÁNSAMANES – J.J. TAMAYO-ACOSTA,
Dicionário de Conceitos Fundamentais do Cristianismo. Paulus, São Paulo, 1999, pp. 23-32, aqui pp. 30s; F.G. BRAMBILLA,
Antropologia teologica. Queriniana, Brescia, 2009, PP. 17s. 3 K. RAHNER, “Anthropologie, theologische Anthropologie”. Apud L.
F. LADARIA, Introdução à antropologia teológica. Loyola, São Paulo, 1998, p. 24. 4 L.F. LADARIA, Luis. Op. cit.. p. 24.)

“Não se pode negar que o ser humano sempre ocupou um lugar central na reflexão sobre a fé e foi o objeto máximo de preocupação
pastoral da Igreja” L.F. LADARIA, Antropologia teológica. UPCM, Madrid – PUG, Roma, 1983, p. 1.

No entanto, como constatava Rahner ainda no final dos anos 50, não havia na teologia uma elaboração sistemática da realidade
humana em sua respectividade e relação com Deus. Os assuntos ou temas mais diretamente referidos ao ser humano estavam
fragmentados e repartidos em “diferentes tratados” (criação, pecado, graça etc.). Ladaria.

“o interesse que o homem desperta no momento presente em diferentes campos da ciência tem uma correspondência muito clara na
teologia [...]. Por isso entrou na linguagem da teologia a expressão ‘antropologia teológica’, disciplina que englobaria os diversos
ensinamentos sobre o homem antes dispersos em diferentes tratados” L.F. LADARIA, Op. cit., p. 1

“pode-se dizer que a teologia registrou também sua ‘virada antropológica’”F. ELISONDO, Op. cit., p. 27. (ELISONDO, F.
“Antropologia”. In: C. FLORISTÁN-SAMANES – J.J. TAMAYO-ACOSTA, Dicionário de Conceitos Fundamentais do
Cristianismo. Paulus, São Paulo, 1999, pp. 23-32).

entramos de cheio na problemática do estatuto teórico da disciplina AT: o ser humano em sua respectividade e relação com Deus, tal
como ele se revelou na história de Israel e, nela, de modo definitivo, na vida/práxis de Jesus de Nazaré.

Temos, aqui, três questões fundamentais e decisivas para o desenvolvimento de uma AT: seu objeto material (o homem); seu ponto de
vista ou, na linguagem clássica, seu “objeto formal” (o homem em sua relação com Deus); seu método (a revelação cristã). “Pode-se
falar do homem, e de fato se fala, sob muitos pontos de vista: filosófico, psicológico, médico, sociológico... O termo ‘antropologia’
tornou-se em muitos casos um termo equívoco. É evidente que a palavra nos remete ao homem, nos mostra que ele é o objeto material
de nosso estudo. Mas isso não basta; precisamos deixar claro, e isso sem dúvida é muito importante, o ponto de vista a partir do qual
procuramos abordá-lo. O adjetivo ‘teológica’ diz-nos qual é esse ponto de vista: trata-se do que o homem é em sua relação com o
Deus Uno e Trino revelado em Cristo. Ao mesmo tempo, indica-nos, pelo menos em linhas gerais, o método que precisamos seguir
para alcançar o objetivo: o estudo da revelação cristã. Procuremos introduzir-nos na ‘antropologia teológica’, ou seja, naquela
disciplina ou, melhor ainda, naquela parte ou setor da teologia dogmática que nos ensina o que somos à luz de Jesus Cristo revelador
de Deus”. L.F. LADARIA, Introdução à antropologia teológica. Op. cit., p. 11.

Todos os temas ou assuntos abordados e desenvolvidos nesta disciplina dizem respeito ao ser humano em sua respectividade e relação
com Deus a partir de Jesus Cristo.

De modo que não basta afirmar que a AT trata do ser humano. É preciso explicitar o ponto de vista sob o qual o ser humano é
abordado nessa disciplina, o que implica reconhecer a existência e legitimidade de outros pontos de vista e, mesmo, a articulação e
interação desses diversos pontos de vista, uma vez que todos eles dizem respeito a essa realidade concreta que é o ser humano.

“a revelação cristã não pretende de modo algum ser a única fonte de conhecimento sobre o homem. Antes, ela pressupõe
expressamente o contrário. Sem perder nada da especificidade teológica, a reflexão cristã sobre o homem deve enriquecer-se com os
dados e as intuições provenientes da filosofia e das ciências humanas” L.F. LADARIA, Op. cit., p. 12.

A AT se dedica ao estudo da dimensão teologal e teológica da vida humana, isto é, daquela dimensão que diz respeito à
respectividade e à relação do ser humano com Deus. Esse é seu objeto material.

a abordagem do ser humano do ponto de vista de sua respectividade e relação com Deus tornou-se também problemática. E
problemática não só no sentido de que essa respectividade e relação do homem com Deus deixou de ser evidente, mas, mais
radicalmente, no sentido de ser posta sob “suspeita” e, inclusive, de ser negada. De modo que a abordagem do homem pôde ser feita
prescindindo de Deus e até mesmo em contraposição a ele.

Noutras palavras, trata-se de ver se a realidade humana não tem uma dimensão que envolve e dá acesso à realidade de Deus
(dimensão teologal da antropologia)45 e se a experiência de Deus não implica necessariamente o ser humano (dimensão antropológica
da teologia) (Esse ponto foi particularmente destacado por Rahner e adquiriu um amplo consenso no conjunto da teologia nas últimas
décadas, não obstante os acentos, as ponderações e a diversidade de abordagens e formulações).

Na verdade, esse tem sido um perigo e uma tentação constantes na história da teologia no passado, mas também no presente. E isso,
inclusive, quando se afirma explicitamente a intenção de falar de Deus e do homem a partir de Jesus Cristo. Daí que não baste afirmar
a centralidade de Jesus Cristo para o discurso teológico e antropológico cristãos. Isso a tradição teológica sempre fez. É preciso levar
a sério o caráter histórico da revelação cristã e falar de Deus e do ser humano a partir da vida concreta de Jesus de Nazaré, o Cristo, tal
como aparece na Sagrada Escritura.

O Concílio Vaticano II, tomando a escritura como que “a alma de toda teologia” (DV 24; OT 16), favoreceu e impulsionou a
redescoberta do caráter histórico da revelação e, com isso, a formulação do discurso teológico em categorias práxico-históricas. Isso
possibilitou e facilitou a redescoberta da densidade teológica da vida concreta de Jesus de Nazaré como lugar fundamental da
revelação do mistério de Deus e do mistério do ser humano – algo extremamente relevante e decisivo para a AT.

No que diz respeito concretamente ao discurso teológico sobre o ser humano, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, de modo
particular nos números 10 e 22, como afirma Ladaria, teve o grande mérito de estabelecer o “princípio” e indicar um “caminho para a
construção de uma AT completa e para a consolidação da disciplina sob forma unitária” – ainda que nem sempre tenha sido
consequente com esse “princípio” e esse “caminho” L.F. LADARIA, Op. cit., pp. 26-28.

“o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado”; “na mesma revelação do mistério do Pai e
de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao homem e lhe descobre sua altíssima vocação” (GS 22).

De modo que, para se falar cristãmente do homem em sua respectividade e relação com Deus, é preciso se voltar para a vida concreta
de Jesus de Nazaré, em quem o Verbo de Deus se fez carne.

Constituem uma espécie de método fundamental ou de pressupostos epistemológicos fundamentais da AT: seu assunto (dimensão
teologal da vida humana ou respectividade e relação do homem com Deus) e seu método (a partir da vida concreta de Jesus de
Nazaré).

O ser humano continua no centro da história da salvação e, neste sentido, pode-se falar de certo antropocentrismo na teologia cristã.
Mas o ser humano que está no centro da história da salvação tem uma dimensão natural essencial e é parte da própria natureza.
Enquanto tal, não pode ser considerado independentemente nem muito menos em oposição à natureza. Noutras palavras, o que está
em crise não é a centralidade do ser humano no cosmos nem muito menos na história da salvação, mas um modo de entender e
configurar essa centralidade, em oposição a outros seres humanos e ao conjunto da natureza.

BEOZZO, J. O. (org.). O Vaticano II e a Igreja latino-americana. Paulinas, São Paulo, 1985.

LADARIA, L. F. Antropologia teológica. UPCM, Madrid – PUG, Roma, 1983.

_____, Introdução à antropologia teológica. Loyola, São Paulo, 1998.

LIMA VAZ, H. C. Antropologia filosófica I. Loyola, São Paulo, 199.

MONDIN, B. Antropologia teológica: história, problemas, perspectivas. Paulinas, São Paulo, 1986.

RAHNER, K. Teologia e antropologia. Paulinas, São Paulo, 1969.

ZILLES, U. Filosofia da religião. Paulus, São Paulo, 2002.

A antropologia, segundo a etimologia, é a ciência que busca conhecer o antropos, o humano. A Antropologia se ocupa em estudar o
homem buscando compreendê-lo através de seus antepassados históricos, abordando civilizações, etnias, tradições, culturas, religiões,
rituais, símbolos, dentre outros. Aqui, o foco principal é sempre o homem.

Os gregos formaram numerosas perspectivas filosóficas e nelas se refletem os grandes problemas metafísicos, gnosiológicos, éticos e
religiosos. O mesmo se pode dizer das populações cristãs desde os tempos da Idade Média. Também elas, embora profundamente
preocupadas com o sobrenatural, com a relação do homem com Deus, com a vida futura e com a salvação eterna, elaboraram
interpretações filosóficas bastante diversificadas. Todavia, de acordo com a Bíblia, o homem foi criado à Imagem de Deus e, portanto,
tem relação com Deus. Traços desta verdade acham-se até na literatura pagã.

“Um homem só consegue sobreviver até em condições mais desumanas se mantiver um sentido para sua vida se projetando em Deus”
(Victor Frankl).

«Nele [Cristo] a natureza humana assumida, não absorvida, foi elevada, também em nós, a uma dignidade sem igual. O
Filho de Deus, por sua encarnação, uniu-se de certo modo a todo homem». (GS 22).
”Assim como a cabeça e os membros de um corpo vivo, ainda que não se identifiquem, são inseparáveis. Cristo e a
Igreja não se podem confundir, porém tão pouco separar-se. Eles constituem um só “Cristo total”. Congregação para a
Doutrina da Fé, Dominus Iesus, 16.

“Na unidade de corpo e alma (corpore et anima unius) o homem, por sua própria condição corporal sintetiza em si os
elementos do mundo material de tal maneira que por seu intermédio alcança o seu ponto mais alto e alça a voz para o
louvor livre ao criador. Por tanto não é lícito ao homem desprezar a vida corporal, mas que, pelo contrario, deve
considerar seu corpo como bom e digno de honra, como criatura de Deus que há de ressuscitar no último dia. Ferido
pelo pecado, experimenta, sem dúvida, as rebeliões do corpo. A mesma dignidade do homem pede que glorifique a
Deus em seu corpo...” (GS 14).

«o mistério do homem só se esclarece no mistério do Verbo encarnado» (GS 22).

Como é bem sabido, esta dimensão cristológica da teologia da imagem se perderá nos séculos sucessivos, quando o
ponto de referencia será sobretudo a Trinidade refletida na alma humana, em sua memória, inteligência e vontade.
Perdido o ponto de referência cristológica, não se atribuirá à dimensão corporal do homem a dignidade de imagem de
Deus, pois é evidente que Deus em si mesmo é incorpóreo. Uma certa recuperação tímida se observa em alguns
documentos nos últimos tempos, ainda que, todavia não se possa dizer que a referencia cristológica tenha voltado a ser
tão decisiva como o foi nos primeiros tempos da Igreja. Cf. CIC 364. 382.

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RUBIO, Alfonso Garcia [org]. O humano integrado: abordagens de antropologia teológica. Petrópolis, RJ : Vozes, 2007.
[Novos rumos da antropologia teológica cristã. Alfonso Garcia Rubio]

“Como é sabido, a visão do ser humano enquanto pessoa vai se desenvolvendo, na revelação bíblico-cristã, em conexão
com a auto-revelação de um Deus com características pessoais. Um Deus que tanto no seu agir salvífico - tema central
no Antigo Testamento e no Novo Testamento - quanto na ação criadora divina, é apresentado na sua relação dialógica
com o ser humano”. (p. 261).

“Na criação e na salvação, mediante Jesus Cristo, está a origem do conceito de pessoa desenvolvido pela Igreja”. (p.261)

“ela leva consigo a vivência de uma atitude fundamental descrita no hino cristológico de Fl 2,6-11. Esta atitude
fundamental origina o dinamismo de desprendimento-encarnação-serviço presente na vida toda de Jesus de Nazaré”.
(p.263)

Uma vez que para os gregos era secundário se pensar em temas como liberdade e amor, ao seu ver meros acidentes e
até algo supérfluo, e a ocupação de sua filosofia pairava muito mais entre a reflexão acerca da substância e da natureza
das coisas, que configura o verdadeiro ser: “Em decorrência da revelação desse Deus, muda a visão do mundo e do ser
humano. O mundo é visto "como espaço vital do amor. Ele se torna palco das liberdades e aceita o risco do mal"7 . E o
ser humano, nesse mundo criado pela liberdade amorosa do Deus pessoal, passa a ser valorizado como pessoa, valor
supremo da criação. De fato, é grande mérito da teologia cristã ter desenvolvido a visão do ser humano como pessoa .
Certamente, o ser humano é um indivíduo (indicando, assim, o âmbito do ser-natureza) mas, ao mesmo tempo, é
pessoa (indicando & fonte de sentido)”. (p.264-5)

“O sentido provém sempre da liberdade, e não pode ser reduzido ao plano da natureza. É verdade que o ser humano é
também "natureza". Estruturas e necessidades constituem a base para que o sentido possa ser dado pela liberdade10 .
A natureza constitui o suporte indispensável da pessoa, mas o prioritário é o nível pessoal, uma vez que só nele,
mediante a liberdade, pode ser decidido o sentido dado à própria vida” (p.265).

“Se o decisivo em Deus é o Amor e a Liberdade, devemos concluir que o ser humano, criado à imagem desse Deus,
deverá ser valorizado, sobretudo pela capacidade de se decidir com liberdade (de maneira condicionada e finita, mas
real) e de amar (também de maneira limitada e penetrada de ambigüidade, mas real). Ou com outras palavras, o ser
humano, na perspectiva cristã, é acima de tudo alguém, uma pessoa chamada a se decidir na abertura, para acolher o
dom de Deus salvador-criador e para viver o amor concreto aos outros seres pessoais e a assumir sua responsabilidade
face ao mundo criado pelo amor de Deus. Alguém criado à imagem de um Deus criador-salvador, chamado a criar algo
novo na história e no cosmo” (p.265). Convém ressaltar o fato de que o pensamento grego clássico predominante
tendia a reduzir a realidade toda ao domínio do ser entendido como natureza.
“Para a perspectiva bíblica, o ser humano não está "condenado" a imitar a natureza, nem tem por que sentir-se culpado
quando "inventa" algo novo. Quando desenvolve a sua criatividade, não está roubando nada aos deuses (mito de
Prometeu), mas, ao contrário, está realizando aquilo que constitui sua vocação profunda, criado que é por um Deus que
é Liberdade, Invenção, Amor” (p.266). Conforme a perspectiva bíblica da criação, continua A. Gesché.

“A conclusão que A. Gesché tira da originalidade da fé cristã em Deus criador é deveras muito importante: a teologia da
criação aponta já, desde o início de tudo, para a prioridade da liberdade e da criatividade sobre os determinismos da
natureza. Colocar o Deus criador no início de tudo significa que é a liberdade, e não a fatalidade ou o destino, a guiar o
cosmo e a história humana”. (faz uma leitura das reflexões de A Gesché em: GESCHÉ, A. Deus para pensar-2: O ser
humano. São Paulo: Paulinas, 2003, p, 54-56”). (p. 266)

“O avanço das ciências, delineando uma nova visão do ser humano e do mundo, por um lado, e, por outro lado, a
prioridade que foi concedida ao dado bíblico sobre qualquer sistematização teológica, fato tornado possível mercê ao
desenvolvimento da exegese bíblica, acordaram a reflexão teológica para a necessidade de repensar as afirmações da
antropologia cristã.

A teologia, especialmente a partir do Concilio Vaticano II, tem procurado superar o divórcio entre teologia e cultura
moderna, embora o resultado tenha ficado aquém do esperado na década de 60 do século passado. Constato, depois de
46 anos de magistério teológico, que os grandes desafios suscitados pela ciência e pela cultura moderna/pós-moderna
não são ainda enfrentados e respondidos, em boa parte das nossas casas de formação teológica. Ainda subsiste, como
pano de fundo, uma visão do mundo e do homem que a ciência atual considera inaceitável.

Contudo, são muitos os teólogos que vão percebendo, cada vez mais claramente, a necessidade de mudar para poder se
comunicar significativamente com uma cultura e com uma visão científica do mundo e do ser humano muito diversa da
visão clássica, com a qual a teologia e a comunicação eclesial se mantiveram tão intimamente unidas. O novo ramo da
teologia, a antropologia teológica, tem buscado, não sem dificuldades, o diálogo crítico com a modernidade e, de
maneira incipiente, com a cultura pós-modema” (p.268).

“É pela fé bíblico-cristã que sabemos que a criação do mundo, em certo sentido, visa o aparecimento do ser humano,
imagem de Deus, capaz de se decidir pela abertura ou pelo fechamento ao dom de Deus, capaz de um autêntico diálogo
com Ele. Visa a criação de um ser livre, capaz de escolher por ele mesmo. Destino surpreendente para a gigantesca
evolução do universo! Para o teólogo e, em geral, para a pessoa de fé, é motivo de alegria o fato de que, a partir da
própria ciência, cientistas se abram a essa perspectiva. O universo inteiro fica "personalizado", como já intuía T. de
Chardin. Ou, conforme afirma a fé cristã, a criação toda apresenta um caráter "responsorial".

“Começa, assim, a ser superada a brutal separação entre o cosmo e o ser humano, desenvolvida pela ciência
mecanicista moderna” (p. 271).

“a mente não é vista mais como uma coisa, mas como um processo, como a atividade que organiza o sistema vivo. A
mente está presente em todo ser vivo, mesmo naqueles que não possuem cérebro (a planta, por exemplo). Todo
sistema vivo "conhece", possui alguma cognição. Mesmo os organismos mais simples possuem percepção de mudanças
no meio ambiente. Mente e matéria são duas dimensões da vida, de toda vida, mesmo a mais simples. A relação entre
mente e cérebro fica, assim, clarificada. A mente não é a famosa "coisa pensante" (res cogitans), mas o processo de
cognição, o processo mesmo da vida. O cérebro, nesta perspectiva, é "uma estrutura específica por meio da qual esse
processo opera"' . A desgastante e estéril dicotomia entre mente e matéria vai sendo superada, finalmente”. (p.276)

“a autonomia está presente na auto-organização própria dos sistemas vivos. Mas, trata-se de uma autonomia
inseparável da dependência em relação ao seu meio ambiente. Existe em todo ser vivo a capacidade de adaptar-se, de
relacionar-se com o meio ambiente na procura da sobrevivência. A conclusão é que o ser vivo, todo ser vivo, a começar
pela bactéria, o mais simples de todos, é um indivíduo, ao mesmo tempo autônomo e dependente. Quer dizer, possui
uma certa subjetividade. O que estes estudos querem ressaltar é que a cognição bem como a subjetividade são
constitutivos de todo o sistema vivo”. (p.276) (citando MORIN, E. "A noção de sujeito''. In: SCHN1TMAN, D.F. (org.).
Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 45-55).

“O conteúdo da fé bíblico-cristã em Deus criador e no ser humano, sua criatura, não tem dificuldade em aceitar que a
admirável auto-organização que o biólogo descobre como característica do ser vivo, é fruto de uma lenta auto-evolução
do universo. Neste caso, a leitura teológica pode muito bem ser a seguinte: a sabedoria c a bondade do Deus criador
colocou, desde o início da criação, as leis naturais que regem a auto-organização que observamos nos seres vivos”.(p.
277).

“A visão holística do ser humano e do cosmo, influenciada pela física quântica e pela biologia que, na explicação da vida,
desenvolve a teoria dos sistemas vivos, pode ser assim resumida: o ser humano é considerado de maneira integrada,
superando-se os dualismos clássicos e modernos. É visto como um sistema vivo relacionado de múltiplas maneiras com
os outros seres humanos e com o ecossistema vital do qual faz parte. A consciência ecológica é especialmente
valorizada bem como os aspectos mais intuitivos e femininos, a colaboração, a receptividade e a perspectiva sintética”.
(p. 279-280).

“Procurando evitar esse unilateralismo, a reflexão teológica atual revaloriza o dado bíblico que ressalta a íntima união
existente entre o ser humano e o mundo criado pelo amor de Deus. É fácil perceber que essa perspectiva que relaciona
intimamente o ser humano com o cosmo exige, como pressuposto indispensável, uma visão integrada do ser humano”.
(p. 280) Claro que se deve tomar o devido cuidado de não cair numa supervalorização do cosmo em detrimento do ser
humano, como acontece na perspectiva holística.

“Na visão integrada do ser humano, própria da antropologia cristã, a relação entre o ser humano e o cosmo é
desenvolvida de maneira inclusiva”. P. 280).

“Cumpre apresentar, teórica e praticamente, que, na experiência cristã, não se trata de uma repetição literal e
fossilizada do passado, mas de uma vivência atualizada, dinâmica, da proposta do Novo Testamento a respeito da
novidade de vida, no seguimento do caminho percorrido por Jesus Cristo. Que não se trata de viver no passado, mas de
perceber o valor desse passado para o presente, que conserva toda a sua preeminência”. (p. 282).

Analisando G. Lipovetsky, LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio
d'Água, 1989; G. LIPOVETSKY, G. & CHARLES, S. Os tempos hipermodemos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

“O indivíduo pós-moderno não quer saber de deveres absolutos em relação à própria vida. E rejeita, igualmente, o dever
de se sacrificar em nome do social ou em nome de grandes ideais (patrióticos, revolucionários etc.).

Mas, em contrapartida, observa-se uma acentuada valorização da ética: o hiper individualismo coexiste com o
fenômeno crescente do voluntariado, com a solidariedade diante do sofrimento humano, com a indignação moral diante
de injustiças, do terrorismo e do desprezo pelos direitos humanos. A conclusão que o autor tira é a de que continua a
existir um núcleo estável de valores compartilhados. O relativismo moral resulta menos relativista do que se pensava,
numa primeira apreciação.

Chega-se, assim, ao ponto que me parece mais importante para a antropologia teológica na análise feita por G.
Lipovetsky das sociedades pós-modernas atuais. Nelas, o autor percebe a existência de dois modos de viver o
individualismo. Um é o "individualismo irresponsável" em conexão com o niilismo. A cultura pós-modema favorece o
desenvolvimento de um individualismo e de uma autonomia que rejeitam todo valor moral e todo limite. Constatamos
facilmente a presença dessa modalidade de individualismo.

Mas, existe também, hoje, um individualismo responsável que exige uma ética igualmente responsável, que não fique
reduzida ao âmbito individual: "Precisamos, sobretudo, de instituições políticas e econômicas mais justas, mais
inteligentes, mais eficazes"53 . N0 interior do mundo hiperindividualista reaparece, com nova força, a necessidade de
instituições e estruturas a serviço da justiça e da humanização”. (p. 283).

“Aceitar a hipótese evolucionista na origem e no desenvolvimento da vida é bastante comum, hoje, entre os teólogos.
De fato, não se vê por que Deus não poderia ter criado o mundo e o ser humano, mediante uma lenta evolução. Uma
hermenêutica correta dos textos bíblicos sobre a criação abre a possibilidade de uma tal interpretação” (p.284).

“Com efeito, a infinitude, a onipotência e a imutabilidade divinas (natureza divina) deveriam ser entendidas em conexão
dialética com o projeto assumido por Deus, com total liberdade e coerência, de criar seres pessoais, capazes de aceitá-lo
ou de rejeitá-lo. Ora, isto supõe um auto-esvaziamento, totalmente livre, da sua onipotência, urna autolimitação, o
início da kénose que culmina na Encarnação”. (p.285).

“Sim, pode-se falar de autolimitação livre de Deus na criação e, sobretudo, na encarnação do Filho. Nesta visão, emerge
a imagem de um Deus pessoal que não brinca com o ser humano como se tratasse de uma marionete. Um Deus que
realmente é Amor c que, por isso, respeita a alteridade do Outro, do ser humano, aceito, respeitado e valorizado como
Outro”. (p. 285).

“A partir da fé na encarnação, devemos afirmar com K. Ranher que "Aquele que em si mesmo é imutável pode ele
próprio ser mutável no outro e diverso dele" (RANHER, K. Curso fundamental da fé - Introdução ao conceito de
cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 263). E, de fato, Deus se faz homem. E a vida toda de Jesus de Nazaré, a sua
história, o seu devir constituem história e devir do próprio Deus. Assim, a imutabilidade de Deus, por um lado, e a
aceitação da encarnação, por outro, devem ser entendidas também de maneira dialética. A imutabilidade divina deverá
ser defendida de maneira que, simultaneamente, fique afirmada a possibilidade de Deus tornar-se algo diverso dele,
finito, limitado. Isto é assim porque Deus é Amor e total Liberdade”. (p. 285).

“Ora, o que fica evidenciado na encarnação já está presente na criação. Se Deus decide criar e amar outros seres
pessoais, essa mudança não pode ser impedida pela imutabilidade divina. É verdade que Deus, pela sua natureza, é
infinito e não está obrigado a criar, a encarnar-se e amar suas criaturas. Pela revelação, sabemos que é isso o que cie
faz. Pois bem, "se o faz, é porque livremente decide fazê-lo e dar essa forma ao ser infinito"' (p. 285-6).

“Da fé em Deus criador se deduz uma visão do ser humano, criado à imagem desse Deus, chamado a se fazer, a tornar-
se alguém capaz de viver a liberdade criativa e amorosa. Se no início se encontra a liberdade amorosa de Deus, entende-
se com facilidade que não seja a natureza, nem a necessidade e o acaso, nem a fatalidade as que governem o cosmo e a
vida humana. Interpretar o cosmo como criação de Deus salva o ser humano do domínio da fatalidade e da repetição
monótona e asfixiante da necessidade (natureza)” (p. 287). (...) na vivência desta liberdade criativa amorosa, o ser
humano vai criando o sentido da sua vida.

“que o ser humano viva em conformidade com aquilo que já é pela sua vocação fundamental de criatura criadora. (...) o
dom, a liberdade criadora, se toma vocação, chamada. A vocação do ser humano resume-se em tomar-se uma imagem
mais acabada e aperfeiçoada do Deus criador. Todavia, esta vocação é inseparável da responsabilidade criativa, no polo
oposto da permissividade” (p.287).

“Num cosmo que já possui uma virtualidade de sentido, o ser humano é chamado a desenvolver, expressar e
complementar esse sentido. A ação criadora divina é continuada pelo ser humano, é confiada a ele. O cosmo deve ser
contemplado (encantamento), mas deve também ser trabalhado, cultivado, aperfeiçoado. Trata-se de um mundo
inacabado, em evolução, onde há tanta coisa para se fazer, para se inventar!” (p.287).

“o ser humano não é um escravo determinado pela necessidade, submisso à natureza. É alguém, distinto de Deus, que
vive a relação com Ele na liberdade e na alteridade” (p. 288).

“a liberdade criadora é vivida no reconhecimento, na aceitação e na valorização da outra pessoa, precisamente, como
outra, com a novidade que lhe é própria. Liberdade criadora vivida nos encontros inter-humanos, em diversos níveis
(relações pessoa-pessoa, comunitárias, sociais, políticas...)” (p. 288).

“Não haverá conflito entre a visão de um universo capaz de auto-evolução e a fé em Deus criador, quando a
"autonomia" da criatura for apresentada como querida pelo Deus criador, o que aliás é próprio da teologia bíblico-cristã
da criação. Na antropologia cristã, importa muito ressaltar a autonomia do ser humano e do mundo criado por um Deus
que, conforme assinalado acima, no item 3.1, autolimita, livremente, o seu poder para que o outro, finito, possa existir
de maneira dialógica. Tal é a grandeza da onipotência divina. Trata-se de um Deus que, todo-poderoso e imutável,
conforme a sua natureza divina, limita livremente o seu poder e decide mudar, igualmente com total liberdade” (p.
289).

“Na perspectiva evangélica, ao contrário, a segurança se encontra, paradoxalmente, na insegurança que implica acolher
um Amor e urna Liberdade que não podem ser controlados. É o acolhimento desse amor incondicional que liberta dos
determinismos e falsas seguranças e possibilita viver a aventura surpreendente da vida nova, relacionada, criativa e
fecunda (p. 290).

“Convém lembrar que a comunhão entre os seres humanos e as outras criaturas é um dado da antropologia bíblico-
cristã. Todavia, esta constatação básica encontra sua complementação necessária na afirmação de que o ser humano é
criado à imagem de Deus, com as características pessoais já conhecidas. Entre a relação de comunhão com os outros
seres vivos e a relação de responsabilidade diante deles não há oposição-exclusão, mas uma articulação fecunda de
mútua complementação crítica. Natureza e pessoa não se opõem, antes, se complementam e se corrigem mutuamente”
(p. 291).
Sobre o individualismo pós-moderno “A opção pelos pobres, nas situações e nos compromissos concretos, continua
sendo um sinal fundamental da credibilidade da Igreja. No entanto, pedagogicamente, o caminho para se chegar a
assumir essa perspectiva, na cultura pós-moderna, passa pela prioridade concedida ao subjetivo. É a partir do subjetivo
e do individual que o social, o político e o estrutural podem ser percebidos como objetivos desejáveis e necessários. A
valorização crescente da ética, notadamente no campo econômico e político, oferece a possibilidade de a antropologia
teológica mostrar como a fé crista oferece uma fundamentação profunda para os valores e para as opções éticas. E todo
isto sem esquecer a dimensão curativa da experiência crista, dimensão que está exigindo ser valorizada diante da
angústia da depressão, dos medos que afetam o indivíduo pós-moderno” (p. 292).

“A responsabilidade ética pode ser também o ponto de partida para que a antropologia teológica e a pastoral eclesial
possam ajudar a alargar o horizonte da preocupação ecológica, fortemente presente na sensibilidade pós-moderna.
Trata-se de articular o ecológico com o social e político e com a experiência do Deus cristão. E trata-se de ajudar a
perceber o Deus enador-salvador como último fundamento tanto do cuidado ecológico quanto da preocupação social.
Obviamente, isto só é possível no horizonte de uma visão integrada do ser humano (p. 292).

“De modo especial, no tempo do hiperconsumismo, importa muito o anúncio da boa-nova de que o ser humano é
amado, desinteressadamente e incondicionalmente, por um Deus que é amor em si mesmo, O ponto de partida para
que este anúncio possa ser significativo encontra-se na procura existente na pós-modernidade para viver relações não
comercializadas.

A experiência do amor gratuito de Deus oferece sentido e fundamento para essas relações e constitui a superação mais
radical da tendência a comercializá-las. E trata-se da experiência de Deus vivida no mais íntimo da pessoa humana, não
uma experiência vinda de fora, invadindo a autonomia dela”. (p.293)

“A reflexão sobre o mal e, mais ainda, a luta contra ele continua sendo totalmente necessária. Mas, espera-se que a
realidade do mal não oculte a sobre-abundância da graça e da novidade de vida, em Jesus Cristo.” (p. 294).

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