A Casa Na Obra de Joao Filgueiras Lima L
A Casa Na Obra de Joao Filgueiras Lima L
A Casa Na Obra de Joao Filgueiras Lima L
Universidade de Brasília
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Programa de Pesquisa e Pós-Graduação
email | adalberto.vilela@me.com
V i l e l a Jún i o r , A da l be r t o José .
V699c A casa na ob r a de João F i l gue i r as L ima , Le l é / Ada l be r t o
José V i l e l a Jún i o r . - - 2011 .
357 f . : i l . ; 30 cm.
C D U 72 . 036
Adalberto José Vilela Júnior
Banca Examinadora
à prof. Sylvia Ficher, por ter me conduzido nos rumos da pesquisa científica e pela
dedicação na orientação deste trabalho;
ao Kennedy e à Kelly Gonçalves, por estarem sempre ao meu lado e por fazerem
parte da minha vida;
aos arquitetos Frederico Carvalho, Sônia Almeida e Kristian Schiel, por comparti-
lharem suas experiências pessoais e profissionais ao lado de Lelé;
aos amigos do CTRS, Waldir Silveira e Jurandir Amorim, pelas valiosas contribui-
ções;
ao Vicente Muñoz, das Indústrias Gravia, pelos relatos técnicos da Residência João
Santana;
à Luana Wernik, Ivan Oliveira e Haroldo Brito, pelo auxílio na editoração gráfica;
aos professores Andrey Schlee, Eduardo Rossetti e Elane Ribeiro, pelas observações
precisas durante a pesquisa;
à prof. Christina Jucá, pelo trabalho inspirador sobre a obra de Vilanova Artigas;
ao Paulo Sérgio Peixoto, por acreditar no meu trabalho. Sem seu apoio, certamente
não teria alcançado os objetivos da pesquisa;
aos amigos Fernando, Aloísio, Edna, George da Guia, Eduardo Santana e a todos os
Amarelos. Vocês também participaram dessa conquista;
ao Rômulo Araújo, pela ajuda na fase final do trabalho e pelos modelos virtuais;
aos colegas de trabalho, pela compreensão nas minhas ausências, e aos chefes
Charles, Isabelle, Bortolotto, Marconi, Márcia e Neusvaldo, pelo apoio indispensá-
vel durante a pesquisa;
à Joana França e Leonardo Finotti, pelas belas fotografias. Joana, suas fotos tra-
duzem a emoção dos espaços. Obrigado por ter me acompanhado nessa aventura!
Resumo
Abstract
Introdução 17
1 | O sentido da arquitetura 24
Panorama da obra de João Filgueiras Lima
Conclusão 284
288
– que surge inicialmente com o movimento neo- Brasília e suas produções residenciais. Em outubro
colonial, caracterizado pela valorização da arqui- daquele ano, participaria juntamente com outros
tetura tradicional – vai encontrar no modernismo estudantes do lançamento de um livro que até hoje
um importante vetor de propagação e difusão, permanece como uma das grandes referências sobre
adaptando-se às condições específicas das diversas sua obra, o João Filgueiras Lima, Lelé, publicado
regiões. pelo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, carinhosamen-
A casa moderna foi um excelente laboratório te chamado de “livro vermelho”, por muito tempo
para estas experiências regionalistas. Nela puderam minha principal fonte de informação.
ser inseridos elementos da cultura brasileira, inde- Por ter visitado a maioria dessas casas há mais
pendentes do ideário racionalista europeu, em um de 10 anos, resolvi que o Mestrado seria o momen-
esforço de renovação da linguagem vigente. A par- to oportuno para dar continuidade àquele traba-
tir da década de 1940, este esforço se tornará mais lho. Contudo, não mais como um caso isolado, cujo
visível em projetos onde aspectos de vanguarda e mote principal era a elaboração de fichas de inven-
tradição convivem harmonicamente, como na Casa tário que compunham uma pesquisa maior sobre a
Hungria Machado (1942), de Lucio Costa. A inte- arquitetura e o urbanismo da cidade. O grande de-
gração com a natureza assume caráter de premissa safio agora seria tratar estas residências de maneira
projetual na Casa Milton Guper (1951-53), de Rino integrada, inserindo-as em um contexto próprio do
Levi. Na Residência Olga Baeta (1956), de Vilano- movimento moderno da arquitetura.
va Artigas, sobressaem as referências regionais do A necessidade da catalogação ficou evidente
autor, que se expressam em soluções construtivas. quando resgatei aquelas fichas e constatei que o
Naquele momento em que as atenções se vol- caminho era, de fato, registrar para preservar. Em-
tam para o grande feito da construção da Nova Ca- bora muitas residências tenham sofrido nesse meio
pital, um jovem arquiteto inicia discretamente sua tempo alterações de níveis variados, observei que
carreira nos canteiros da superquadra 108 Sul e do sempre houve o respeito pelo projeto original que
campus da Universidade de Brasília. João Filgueiras as caracteriza.
Lima iria assimilar as dificuldades encontradas no O encaminhamento da pesquisa findou por su-
período à sua prática profissional, adotando técni- gerir a estrutura da dissertação em três capítulos.
cas de pré-fabricação como solução para garantir O primeiro, O sentido da arquitetura: panorama da
maior agilidade de execução e economia de recur- obra de João Filgueiras Lima, destina-se à apresen-
sos financeiros e materiais. A experiência de Lelé, tação do arquiteto, realizada ao longo de sua tra-
e seu modo particular de pensar e fazer arquitetura, jetória profissional. Nesse percurso, algumas obras
motiva este trabalho, voltado prioritariamente para mais significativas foram selecionadas e organiza-
sua produção residencial. das de tal modo que permita ao leitor compreender
Meu interesse pela arquitetura de Lelé surge os caminhos e a sucessão de fatos que conduziram
durante a graduação, quando em 2000 desenvolvi a arquitetura de Lelé a um alto grau de desenvol-
uma pesquisa de iniciação científica, sob orienta- vimento tecnológico, sem contudo desvincular-se
ção da prof. Sylvia Ficher, intitulada Arquitetos de
21
de suas premissas estéticas e de seu engajamento de habitação social ganham maior visibilidade e o
social. Estado finalmente passa a considerar políticas pú-
O segundo capítulo, A casa no movimento mo- blicas voltadas para o controle do crescimento ur-
derno: uma breve história da arquitetura residencial bano desordenado e a falta de habitação que assola
no Brasil, traz para a discussão a temática da resi- a população.
dência inserida em um contexto histórico, sociopo- É nesse momento conturbado da vida política
lítico, cultural e econômico, desde a segunda me- no Brasil, de crescimento econômico e desenvolvi-
tade do século XIX até o presente. Por uma questão mento industrial que se situa a obra de Lelé. Mar-
de organização das ideias, optou-se por dividir o cado pelo entusiasmo e pela confiança caracterís-
capítulo em três partes, tendo sempre a casa como tica da geração de Brasília, Lelé começa a trilhar,
eixo central da discussão. A primeira parte, Antece- a partir da década de 1960, um caminho fértil que
dentes de uma modernidade anunciada (2ª metade definirá toda sua trajetória: o engajamento e, por
do séc. XIX-1922), tem por finalidade apresentar quê não dizer, uma vocação para as soluções de in-
algumas iniciativas identificadas com o pensamen- teresse social. Do hospital à parada de ônibus, o se
to racionalista, e que de certa forma prepararam o vê em Lelé é uma satisfação imensa em poder con-
ambiente, mais na prática do que na teoria, para tribuir para o desenvolvimento social e econômico
um estágio posterior de consolidação de uma lin- do país, reduzindo as desigualdades através de uma
guagem definitivamente moderna. arquitetura mais acessível, generosa e tecnologica-
A segunda parte, Modernidade heroica (1922- mente avançada.
1960), coincide com o momento de afirmação do Suas casas são apresentadas aqui como refle-
modernismo no país. Sua genealogia será percorri- xo de sua própria trajetória, marcada fortemente
da em exemplos, em alguns casos paradigmáticos, pelas pesquisas com materiais e sistemas constru-
que remontam à trajetória da casa moderna desde tivos empregados em seus projetos institucionais.
seu surgimento oficial com Warchavchik, em 1927, Estas casas, projetadas quase que exclusivamente
no contexto cultural pertencente à Semana de 22, para amigos, testemunham uma carreira de expe-
até a construção de Brasília, considerada pela críti- rimentação e uma busca incansável por soluções
ca como apogeu da arquitetura nacional. que atendam aos critérios plásticos, estruturais e
Na terceira parte, Caminhos e descaminhos na funcionais, sem contudo abandonar seu forte cará-
modernidade (década de 1960 até o presente), se- ter humanístico.
rão abordadas as principais experiências que con- Por fim, no terceiro capítulo, Visita guiada às
duziram o tema da residência moderna a novas -
tipologias, usos e relações com a cidade. Longe zação do olhar, propõem-se um estudo aprofundado
dos modelos canônicos estabelecidos pelas “caixas de quatro casas de Lelé. Estas foram escolhidas por
brancas”, os projetos dessa fase suscitam uma re- sua relevância no conjunto da obra do arquiteto,
flexão mais apurada do valor da arquitetura frente e por sua representatividade quanto aos sistemas
à sociedade, sobretudo durante a ditadura militar. construtivos adotados: alvenaria de pedra, tijolo,
Nesse período de pujança econômica, os modelos concreto e aço. Para subsidiar teoricamente este
22
Rio de Janeiro em 1932, no bairro do Encantado, de Belas Artes para cursar artes, optou por ar-
quitetura, após ter assistido as aulas ministradas
Zona Norte da cidade, adquire desde cedo o gos-
por Carlos Leão, a quem se referiu como: [...] um
to pela música. Filho de pai tocador de acordeão homem de uma cultura formidável. Era um sujeito
e mãe dona de casa, o jovem garoto morador do extraordinário. Eu sou arquiteto, hoje em dia, e
devo a ele, porque ele é quem me formou. Ele fez
subúrbio aprende e domina o instrumento, apresen-
minha formação, tudo que sei devo a ele – me deu
tando-se com outros músicos na noite carioca num
o conceito de arquitetura.3
período em que as aulas na Escola Militar deram
lugar à vida de boêmio. A figura de Aldary Toledo mostra-se de grande
Entretanto, o ofício da música não lhe garan- importância na formação profissional e intelectual
te o sustento necessário para prover sua família, de João Filgueiras Lima. Através de seus projetos,
obrigando-o a buscar uma alternativa para manter Lelé entra em contato com a linguagem adotada
financeiramente a casa, sobretudo após a morte pelos arquitetos modernos, que posteriormente se
de seu pai, em 1952. Com certa habilidade para encontraria absorvida ao seu próprio repertório for-
o desenho e caricaturas, e induzido por um colega mal. Segundo Elane Peixoto, a arquitetura de To-
de turma na Marinha, Lelé ingressa na Faculdade ledo é pautada por um humanismo extremo e um
2
Nacional de Arquitetura em 1951, no Rio de Ja- vocabulário variado, composto por uma riqueza de
neiro, onde conclui seus estudos em 1955. Durante materiais, escolhidos segundo suas disponibilidades
os anos na Faculdade, Lelé participava do grupo e também compreendidos em seus potenciais cons-
formado em torno do arquiteto Aldary Toledo, oca- trutivos. Sobre este conceito de arquitetura, Toledo
sião preciosa para aqueles jovens que buscavam esclarece:
orientações para suas atividades acadêmicas, e ao
mesmo tempo desfrutavam da sólida formação inte- [...] A arquitetura para mim, o importante é o
homem. Ele tem que ser atendido na escolha dele.
lectual do arquiteto em momentos em que a pauta
Toda arquitetura, no mundo inteiro, sempre foi
da noite abordava temas como a arte e a vida. Se-
gundo Elane Peixoto: homem, para atender às necessidades dele. O que
me importava muito era, assim, o homem em si,
não a arquitetura. O homem é que era importante,
Aldary Toledo é, além de um arquiteto da primeira
dentro dessa arquitetura também. E assim sendo,
geração de modernistas, um autêntico artista que
eu pesquisava muito mais, assim, o que interessa-
conviveu com Portinari, tendo sido este seu pro-
va ao homem do que propriamente o que interes-
fessor de desenho e pintura. Ao seu círculo de con-
sava à arquitetura.4
vivência pertenceram Oswald de Andrade, Jorge de
Lima, João Cabral de Melo Neto, Lucio Costa, Attí-
lio Corrêa Lima, Carlos Leão, entre outros. Embora Percebe-se nas suas obras, sobretudo no con-
tenha, em 1933, ingressado na Escola Nacional
junto de edificações em Cataguases-MG, dentre
elas a residência José Pacheco de Medeiros Filho perquadras, chegando ainda na primeira etapa de
(1943), o Hotel Cataguases (1951) e a Capela de sua construção.6
Nossa Senhora do Rosário, um certo apreço pela A superquadra à qual Ana Gabriella Guimarães
tradição fundada por Lucio Costa, condensado no de refere é a 108 Sul, ou na forma do endereça-
pensamento e no savoir-faire do que mais tarde se mento padrão de Brasília, SQS 108. Trata-se de uma
convencionou chamar Escola Carioca. É natural que quadra projetada por Oscar Niemeyer e executada
estas sejam as influências presentes na arquitetura pela construtora ECISA (Engenharia, Comércio e
de Toledo, pois, segundo Elane Peixoto, o arqui- Indústria S/A). Como pode ser observado no tre-
teto:
-
lhando como desenhista para a equipe que se for-
mou para projetar a Universidade do Brasil, previs-
ta para ser construída na Mangueira. Esta equipe
era composta por Niemeyer, Hélio Uchôa, Jorge
Moreira, Attílio Corrêa Lima e Carlos Leão. Insta-
lada em um escritório no Ministério da Educação
e Saúde, ainda em obras, essa equipe dissolveu-se
e, posteriormente, já como arquiteto, Toledo, jun-
tamente com Ernani Vasconcelos e Jorge Moreira,
projetou a Universidade do Rio de Janeiro, na Ilha
do Fundão. Entre os edifícios dessa universidade,
a Faculdade de Engenharia é a que encerra as 1. Superquadra 108 Sul em construção.
5 Fonte: Lina Kim; Michael Wesely (2010)
maiores contribuições do arquiteto.
-
dade com o barroco dos nossos tempos coloniais
7
que sugere as descontraídas formas de um novo e
surpreendente vocabulário plástico. baseada não
em caprichos, mas em tecnologia contemporânea,
A relação com Oscar Niemeyer, outra figura que
aplicada com criatividade à solução de problemas
influencia decisivamente sua trajetória profissio- espaciais, é que emerge uma arquitetura real,
nal, começa em 1957, data em que Lima resolve
1950 apud PEREIRA, Miguel Alves, Arquitetura,
ir para Brasília. O início da trajetória profissional
texto e contexto: o discurso de Oscar Niemeyer,
de Lelé acontece em um local e momento histó-
rico considerados por alguns críticos por encerrar
um período de apogeu da produção arquitetônica Outro fator que colabora para que grande par-
no Brasil, pautada por realizações bem recebidas te de suas pesquisas fossem posteriormente dire-
pela crítica internacional, como é o caso do Mi- cionadas para a racionalização de componentes
nistério da Educação, no Rio, do Pavilhão da Feira pré-fabricados está diretamente relacionado ao
Mundial de Nova York e da Pampulha, em Minas período de desenvolvimento industrial em que se
Gerais. Essas obras despertam no jovem arquiteto encontrava o país na segunda metade do século
a curiosidade pelo impacto e repercussão que cau- XX. Cidades como São Paulo e Rio já observavam
saram na época. Posteriormente, essa curiosidade uma urbanização e mudanças nos modos de vida
dará lugar ao interesse pela arquitetura de maior da população característica da pujante industriali-
alcance popular, colocando Lelé em sintonia com o zação. É oportuno destacar aqui trecho do discur-
engajamento histórico e o comprometimento social so proferido por Vilanova Artigas para a turma de
próprios do pensamento gerado no interior do Mo- formandos da FAUUSP de 1955, pois a mensagem,
vimento Moderno. como bem destaca Elane Peixoto [...] retrata com
Entretanto, ao buscar referências sobre o con- propriedade o quadro de expectativa gerada em rela-
teúdo do discurso de Niemeyer no período entre ção à arquitetura brasileira e aos jovens formandos
Pampulha (1942) e Brasília (1957), anos que com- daquele tempo.8
preendem aquele em que se forma o arquiteto João
Filgueiras Lima (1955), percebe-se uma clara su- [...] É inegável que nossa arquitetura tenha
granjeado sucesso mundial justamente por
pervalorização da expressão plástica da arquitetu- apresentar alguns aspectos originais, tipica-
ra, em detrimento, segundo Niemeyer, de um “fun-
cionalismo ortodoxo”. Nas palavras do arquiteto: na prática, que o processo de universaliza-
ção da arte é alcançado na medida em que
[...] a arquitetura no Brasil, superando a fase do
mais características do seu próprio povo. [...]
funcionalismo ortodoxo, agora está em busca de
expressões plásticas. É a extrema maleabilidade
Mas a arquitetura brasileira apresenta ainda
dos atuais métodos de construção, aliada ao nosso
outra característica de indiscutível importância.
É seu caráter inovador no terreno da técnica, o
7 Giancarlo Latorraca (org.). João Filgueiras Lima, Lelé. Lis-
boa: Editorial Blau, São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi,
1999, p. 15. 8 Elane Ribeiro Peixoto (1996). Op. Cit. p. 16.
29
constante aproveitamento em seu bojo de to- de Exposições do CAB (1974) em Salvador, onde se
das as conquistas da engenharia brasileira. O
percebe uma supervalorização da estrutura.
caráter inovador de nossa arquitetura não pode
ser apreciado isoladamente, nos limites do fato Por estas e outras razões fica evidente que,
arquitetônico. É o resultado de todos os feitos do naquele momento, a aproximação entre o discurso
avanço no domínio da técnica e da ciência. [...]
de Niemeyer e as realizações de Lelé se restringem
mais ao plano da amizade e admiração que o jovem
mergulhada no analfabetismo e sem assistên- arquiteto nutre pelo trabalho do mestre, do que
cia médica e hospitalar, está a exigir um grande
propriamente pela afinidade de suas respectivas
número de edifícios destinados às escolas, hospi-
tais e sanatórios. E é só na proporção em que os produções.
arquitetos derem conta desses grandes problemas
construtivos que nossa arquitetura conseguirá
As primeiras necessidades foram surgindo à ma- Segundo Lelé, a distribuição das superquadras
neira que Lelé tomava conhecimento da empreitada foi definida já em Brasília pela Novacap, sendo que
em que havia se envolvido. No início de 1957, Lelé cada Instituto de Aposentadoria ficaria responsá-
se coloca à disposição da direção do Instituto dos vel pela construção de pelo menos duas delas, seus
Bancários no Rio, onde trabalhava como desenhis- respectivos blocos de apartamentos e equipamen-
ta, para integrar a equipe que iria construir a Su- tos complementares.
perquadra 108 Sul, designada para aquele instituto.
A Superquadra 108, na qual eu trabalhei, foi
Imediatamente fui intimado a procurar o arquite- designada para o IAPB. Elas foram designadas
to Oscar Niemeyer e sua equipe para receber os já em Brasília, sendo que cada Instituto de Apo-
desenhos iniciais dos projetos dos 11 edifícios de sentadoria tinha o compromisso de construir pelo
apartamentos a serem construídos pelo instituto
na nova capital. Fui recebido inicialmente por
Nauro Esteves, chefe do escritório de Oscar que
teve uma participação importantíssima na cons- tinha quatro superquadras, mas os outros tinham
trução da cidade. Nauro, apesar de seu tempe- só duas.13
ramento introvertido e seco no trato com outros
Assim, o ritmo frenético das obras e a solidão
participar daquela aventura. Já Oscar, com quem
implacável do Planalto Central davam o tom dos
estive rapidamente na ocasião, em tom de brinca-
deira enalteceu minha coragem.11 trabalhos que avançavam noite adentro, na expec-
tativa de cumprir o exíguo prazo de três anos e
O conceito de Superquadra presente no Plano cinco meses estabelecido por Juscelino Kubitschek
Piloto de Brasília deriva da Unidade de Vizinhan- para a inauguração da cidade. A pressão feita sobre
ça proposta por Clarence Perry em 1923, inspirada os arquitetos e engenheiros das obras ficava a car-
pelas teorias da Cidade Jardim de Ebenezer Howard go de Israel Pinheiro, mineiro de Paracatu e velho
na Inglaterra do século XIX. Contudo, no que tange amigo de Juscelino. O engenheiro chefe da Nova-
à superquadra brasiliense, o que nos interessa nos cap era temido por seu temperamento autoritário e
princípios da Cidade Jardim é sua preocupação com a maneira rude de cobrar as etapas da construção.
uma nova forma de vida, concretizada em uma nova Após a passagem pelos hotéis Paraíso e Santos
forma urbana, caracterizada pela presença dominan- Dummond, ambos no Núcleo Bandeirante, Lelé e
te de espaços permeados por parques e jardins. Um alguns colegas de trabalho se veem obrigados a se
momento de ruptura com a cidade tradicional, que mudar para o canteiro de obras da 108 Sul, haja
subvertia suas principais relações espaciais na busca vista o crescimento do grupo e a quantidade de
de propiciar um maior domínio público do solo, em operários a serviço do IAPB. Naquele momento,
lugar de uma generalizada privatização do espaço
mento e prática urbanística. In: Brasília 1960 - 2010: passado,
urbano.12 presente e futuro. Francisco Leitão (organizador) [et al.] – Bra-
sília : Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Meio
Ambiente, 2009, p. 120.
11 João Filgueiras Lima. Crônica. Revista AU n. 192, março
13 Entrevista realizada por Ana Gabriella Lima Guimarães com
2010, p. 68.
o arquiteto Lelé em 07/06/2001, São Paulo-SP, in: GUMARÃES,
12 Marília Machado. Escala Residencial: Superquadra – pensa- Ana Gabriella Lima. Op. Cit., p. 13.
31
para criar o DUA, Departamento de Urbanismo e Ar- Serviços Gerais e os Edifícios de Apartamentos para
quitetura de Brasília, órgão da Novacap responsável Professores da UnB (Colina), ambos de 1962.
pela urbanização da cidade. O pedido de demissão de cerca de 90% do qua-
dro docente da UnB foi encaminhado à Reitoria em
Oscar me chamou para trabalhar na DUA, mas nis-
protesto e repúdio ao afastamento de 15 professo-
Ribeiro estava tomando a frente do negócio. Então res considerados subversivos pelas forças militares,
Oscar disse: você vai para a Universidade de Bra- que assumiram o poder após o golpe de 64.
a funcionar, mas só em 62 que a Universidade foi Eu fui lá como professor. Eu já fui indicado por
inaugurada. Nós fomos transferidos para a UnB Oscar com as seguintes funções: coordenador do
quando ela foi criada mesmo, quando começaram curso de pós-graduação, secretário executivo do
as obras da Universidade.15 Centro de Planejamento e responsável pelo curso
de técnica da construção. Eu tinha essas três in-
cumbências.16
15 Entrevista realizada por Ana Gabriella Lima Guimarães com 16 Entrevista realizada por Ana Gabriella Lima Guimarães com
o arquiteto Lelé em 06/07/2001, São Paulo-SP, in: Ana Gabriella o arquiteto Lelé em 06/07/2001, São Paulo-SP, in: Ana Gabriella
Lima Guimarães. Op. Cit., p. 21. Lima Guimarães. Op. Cit., p. 23.
33
programa adaptável às solicitações imprevistas é só que Lúcio Costa previa no plano urbanístico
no campus da UnB oito áreas para os Institutos
forma e por uma linha horizontal, fosse capaz de Centrais, cada uma delas contando com edifícios
revelar um certo dinamismo, característica pela
qual está fundamentada a própria ciência.17 laboratórios, departamentos, bibliotecas, etc. No
de de Brasília, não poderia dispor de uma liberda- do protótipo para habitação estudantil ou as edi-
de plástica de componentes tal como conhecemos ficações complementares do conjunto do Instituto
hoje. Entretanto, ao observarmos os projetos rea- Central de Ciências.
lizados por Niemeyer nesta fase da pré-fabricação, Por outro lado, as obras de Lelé nesses primei-
nota-se a presença constante de alguns elementos, ros anos na Universidade, apesar de bem resolvidas
geralmente moldados in loco e colocados em desta- tecnicamente, ainda se mostram contidas no arca-
que na composição. Estes elementos interrompem bouço estrutural que as define. A adoção da volu-
a rigidez da modulação estabelecida pelo sistema metria simplificada dessa fase será completamente
construtivo e garantem o desejado contraste entre revista nos anos subsequentes, quando passará a
as partes. É o caso da Igreja do Instituto de Teolo- adotar, ainda no esforço da industrialização, gran-
gia com suas paredes em planta livre, das janelas des balanços, curvas e movimento nas coberturas
de seus projetos. Sobre este assunto, Lelé esclare-
ce que [...] a adoção do partido arquitetônico re-
tangular decorreu da incorporação de elementos de
a Gabriella Lima:
O partido do edifício baseia-se na repetição mo-
A Universidade tinha que ser implantada gradu-
almente com alguns cursos já funcionando, in- dulada dos componentes pré-fabricados, vigas e pi-
clusive o de arquitetura que inicialmente foi lares, inseridos em uma malha ortogonal responsá-
implantado no próprio Centro de Planejamento
vel por conferir ritmo e simetria a todo o conjunto.
nosso. E havia também uma área no proje-
to de Dr. Lucio destinada aos serviços gerais, O sistema estrutural é formado por quatro linhas
em suma, espaços para atividades adminis- de pilares dispostas no eixo longitudinal, sobre as
trativas, almoxarifado, essas coisas todas.
quais se apoiam, no mesmo sentido, quatro vigas
8. Galpão de Serviços Gerais UnB - croqui. 22 Entrevista realizada por Ana Gabriella Lima Guimarães com
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999) o arquiteto Lelé em 06/11/1998, Salvador-BA, in: Ana Gabriella
Lima Guimarães. Op. Cit., p. 43.
38
-
dio é necessário que as instalações também se-
rotulados tipo “Gerber” com vãos de 13 e 15 me- Os esforços de Lelé no tocante ao emprego de
tros. Neles se apoiam as lajes nervuradas, também
elementos pré-fabricados na Universidade indicam
protendidas, que constituem os pisos dos aparta-
mentos. As vigas “U”, nos extremos do bloco, são uma prática que se desenvolverá ao longo de sua
24
carreira, justificada pela ampla utilização, agilida-
de de distribuição e montagem, além do fator eco-
A fachada em cobogó resgata um elemento de nômico. O emprego dessas soluções em uma escala
origem árabe, aclimatado no país durante o período maior, poderia, por exemplo, minimizar a grande
colonial, e, mais tarde, amplamente utilizado na deficiência por habitação e outros equipamentos
arquitetura moderna brasileira. Não se trata aqui de urbanos tão urgentes à maioria das cidades brasi-
uma referência direta de Lelé à nossa tradição colo- leiras. Segundo Ana Paula Koury:
nial, apesar de relatos onde, segundo Ana Gabriella
Lima, o arquiteto passou uma tarde discutindo so- [...] ao aderir ao esforço de racionalização do
processo de produção empreendido por alguns
bre o projeto com Lucio Costa.
arquitetos contemporâneos, e, considerando as
É mais provável que a referência do grande propostas de produção em larga escala realizadas
painel em cobogó na fachada oeste da Colina te- para enfrentar a intensa urbanização brasileira
nos anos 60, Lelé evidencia, através de suas inici-
nha vindo dos blocos da 108 Sul, a Superquadra
ativas, uma nítida incompatibilidade entre prática
projetada por Niemeyer seis anos antes, na qual
e projeto.25
Lelé iniciou seus trabalhos em Brasília. Cabe res-
saltar que, em vários blocos de apartamentos da Sobre as deficiências da indústria da construção
cidade, especialmente na Asa Sul, este modelo de civil no Brasil, Lelé assim comenta:
fechamento encontrado nas fachadas voltadas para
a circulação e/ou serviços foi bastante difundido, A indústria da construção civil mantem-se estag-
nada, impedindo que evoluamos junto com ela. A
transformando-se num elemento de identidade cul-
industrialização abre espaço para que possamos
tural para os moradores da Capital. desenvolver com maior primor certos aspectos do
projeto, no entanto, a estrutura arcaica e desor-
ganizada da indústria da construção no Brasil
conforma-se como uma pedra em nosso caminho.
26
13.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
parte dos profissionais envolvidos. Dentre as mais local; e uma torre de escritórios de planta quadra-
recentes, destacam-se a demolição da marquise de da, com cinco pavimentos, abrigando as funções
ligação do bloco Administrativo ao posto de abas- administrativas, vendas e habitações. Estas últimas
tecimento, o fechamento do mezanino do antigo foram reunidas no 1º pavimento e dotadas de aces-
hall de exposições de pé-direito duplo, que contava so independente, realizado através de uma torre de
com um relevo de Athos Bulcão, e a retirada do escada externa. O primeiro acréscimo se deu em
painel de azulejos sob a cobertura do posto, do 1975, quando a torre foi demolida para dar lugar às
mesmo artista. novas instalações do plano de ampliação das ofici-
Basicamente, a composição do conjunto está nas. Segundo o autor:
dividida em dois volumes: um bloco de oficinas,
horizontal e mais baixo, implantado longitudinal-
consta de um bloco em subsolo de 35m de largura
mente no terreno acompanhando a topografia do por 75m de comprimento, com uma zona em dois
níveis, nas cotas -2,53m e -5,20m, destinada à
seção de peças e a restante em um nível na cota
-5,20m com pé-direito de 4m, destinada à seção
de funilaria e pintura. O acesso é feito por rampas
colocadas em pontos convenientes, permitindo a
circulação correta de veículos e de acordo com as
normas do Departamento do Corpo de Bombeiros
de 1000m2
-
jetadas duas coberturas justapostas de 24x24m
14. DISBRAVE - torre de escada demolida em 1975. apoiadas, cada uma, em um pilar único. Na parte
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999) central dessa cobertura, do lado da W3, localizam-
43
se escritórios para venda de veículos usados, bar, estabelecem a ligação entre a nova estrutura e a
salão para exposição e venda de acessórios e ins- alvenaria existente nos vãos correspondentes ao
portão de acesso e ao local destinado à lavagem
de lavagem rápida. Ainda sob os balanços da de peças. A maior parte das águas pluviais é co-
cobertura, na parte externa, estão localizadas as nectada a tubos no interior dos pilares.28
bombas de gasolina e exposição de veículos usa-
dos. Essa construção liga-se ao prédio principal
existente por meio de uma passagem coberta.27
15.
tão Hospital Distrital de Taguatinga partiu de Oscar
Fonte: Joana França (2011) Niemeyer, que em 1967 havia estabelecido junto à
Secretaria de Saúde de Brasília as diretrizes para as visto nas mudanças feitas no seio do novo progra-
construções hospitalares da rede pública. Sobre os ma, organizado com a colaboração do Dr. Carlos
novos conceitos aplicados ao projeto do Hospital Gonçalves Ramos, onde se percebe uma maior flexi-
de Taguatinga, Guimarães esclarece: bilidade dos espaços internos, sempre que possível
permeados por áreas verdes. É o caso do bloco de
A partir da inauguração do Hospital Distrital,
internações. O espaço ali foi conscientemente oti-
surge uma nova ordem em termo de planejamento
hospitalar baseado na criação de sistemas inte- mizado em detrimento do superdimensionamento
grados, ou seja, centralização e setorização de to- tradicional e estanque dos setores de ambulatório e
dos os serviços num só ente físico [centralização
emergência, responsável em grande parte pelo au-
dos setores relativos aos serviços gerais básicos
- mento da demanda e subsequente falhas de aten-
- dimento.
nação, emergência, enfermarias, etc.], composto
Em razão do terreno em declive acentuado, o
destinações terapêuticas e áreas sujeitas a am- Hospital de Taguatinga foi implantado em quatro
- níveis distintos. Essa solução reforça uma preo-
lidade foram introduzidos com intuito de equacio-
cupação do arquiteto em implantar seus edifícios
nar um antigo problema manifestado na estrutura
organizacional dos hospitais públicos brasileiros, de acordo com as condições topográficas locais,
erigidos conforme soluções antifuncionais e com evitando assim grandes movimentações de terra,
os dias contados para cair na obsolescência.29
sempre dispendiosas. Com uma área de 27.690 m2,
o projeto para o então Hospital Distrital foi pensa-
Ao propor novos conceitos aplicados ao Hospi-
do a partir do escalonamento entre os diferentes
tal de Taguatinga, Lelé não só contraria velhos há-
níveis. No nível mais baixo foi implantado o bloco
bitos enraizados na cultura médica da época, como
de internações vertical com cinco pavimentos. Nos
critica veementemente a estrutura física da rede
demais níveis, foram implantados os blocos hori-
hospitalar vigente. Exemplo desta postura pode ser
zontais abrigando os serviços gerais, os serviços
31 Idem, p. 83.
30 Idem, p. 68.
46
tecido urbano tradicional de Salvador definida para terreno bastante acidentado, favorecendo o uso de
o CAB responde aos anseios de um Estado que se pilotis a fim de evitar grandes movimentações de
queria moderno e que tivesse sua imagem vincula- terra; a extensibilidade, garantindo o crescimento
da ao arrojo arquitetônico que financiava. linear e por pavimento nas edificações moduladas;
As soluções dadas ao conjunto foram conduzidas o curto período para execução das obras, mais pre-
pelo “Programa de Interpretação do Plano Urbanís- cisamente 18 meses; a flexibilidade das instalações
tico” que previa, dentre outras diretrizes, a implan- além da proteção das fachadas e uso da ventilação
tação de edifícios com área acima dos 10.000m em2
natural.
Deste conjunto de diretrizes surgiram os primei-
ros prédios: as Secretarias (1973). Basicamente, o
sistema estrutural dos cinco edifícios construídos
para abrigar os escritórios do CAB foi baseado
numa grande plataforma de concreto fundida no
local, apoiadas por pilares centrais distantes entre
si 16,5m, sobre a qual se apoiam nas extremidades
caixas pré-moldadas de concreto compondo as fa-
chadas longitudinais. O partido das caixas (alvéo-
los) é similar àquele adotado no Hospital de Tagua-
tinga. No eixo central do edifício, pórticos apoiam
as lajes transversais pré-fabricadas em concreto, as
quais vencem vãos de 7,70m.
Os prédios das Secretarias possuem três pavi-
21. Secretaria - CAB.
Fonte: Módulo n. 57 (1980) mentos escalonados, pilotis no sistema de lajes
47
nas extremidades configurando as fachadas. Sobre 28. Edifícios da Camargo Corrêa - escritórios.
este conjunto se encontram as lajes pré-fabricadas, Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
com vãos variando entre 6,60 e 7,70, conformando Embora tenha sido previsto sistema de ar con-
assim os respectivos pavimentos. dicionado tipo fan-coil em todos os ambientes, foi
Ligadas por uma passagem coberta, as duas tor- realizado um minucioso estudo de insolação nas fa-
res possuem três subsolos para garagem, abrigando chadas norte e sul de ambas as torres, resultando
cerca de 560 veículos. A localização de elevadores, na adoção de brises-soleil coloridos instalados nos
escadas e sanitários coletivos foi deslocada para caixões das fachadas como solução térmica e plás-
a torre lateral a fim de liberar a ocupação dos es- tica do conjunto.
critórios com total flexibilidade nos andares tipo.
Outro ponto favorável nesta questão são as ins-
talações de água e de esgoto que correm sempre
pelos poços de exaustão, ao passo que a fiação da
rede elétrica e telefônica se distribuem pelo teto
em canaletas fixadas nas fundições dos trechos de
concreto entre as peças de laje.
27. Edifícios da Camargo Corrêa - situação. 29. Edifício Morro Vermelho - Setor Comercial Sul.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999) Fonte: Lina Kim; Michael Wesely (2010)
51
Campello em 1959. Trata-se de um pequeno con- Lelé trabalhou de maneira muito cuidadosa e en-
Contudo, por uma série de razões de natureza es- uma solução inviável que causaria imenso prejuízo
truturais e econômicas, acabou moldado in loco. ao projeto. A solução buscada pelo arquiteto visa-
Atento para questões como economicidade e va dotar as enfermarias intercaladas de uma área
padronização de componentes construtivos, Lelé mais amena com sol e jardins, de forma a contribuir
desenvolve um elemento pré-fabricado em “V” com para a desejada manutenção do equilíbrio psicoló-
60cm de altura por 1,15m de largura, o qual, além gico dos pacientes. Nesse sentido, os octógonos da
de vencer vãos e se comportar como laje dos pavi- fachada funcionam como janelas para o exterior.
mentos, servia como calhas nas coberturas, apoio Ainda sobre o uso da viga, Lelé conclui:
para os sheds de concreto e ainda permitiam a cria-
Na residência do Minsitro usei-a de maneira for-
ção de terraços-jardins e a passagem de tubulações tuita, apenas para obter vãos maiores que dispen-
de ar condicionado e demais instalações. sassem um grande número de apoios, favorecendo
Perguntado a respeito do uso da imensa viga assim a implantação da piscina no nível térreo. No
caso do Sarah, a viga vierendeel assume um papel
vierendeel na fachada do bloco de internação do determinante.37
Sarah Brasília, vencendo vãos de 20 metros e 10 em
balanço, Lelé responde: A viga vierendeel do hospi-
tal de Brasília foi usada em decorrência do partido.
Como este tipo de estrutura era muito mais cara,
um engenheiro sugeriu até que se estudasse uma 37 Entrevista realizada por Ana Gabriella Lima Guimarães com
o arquiteto Lelé em 08/04/2003, Salvador-BA, in: Ana Gabriella
alternativa com pilares, no entanto demonstrei ser Lima Guimarães. Op. Cit., p. 171.
54
Companhia de Renovação Urbana A RENURB foi criada em 1979 pelo então pre-
feito Mário Kertész, com o objetivo prioritário de
RENURB implantar o projeto de Transportes Urbanos de
Salvador, 1978-1982 -
senvolvimento desse plano exigia a integração de
todos os setores técnicos de arquitetura e urbanis-
Inicialmente envolvida com o desenvolvimento
mo e determinou a criação de um grande escritório
de componentes para abrigos de paradas de ônibus, de projetos. Para acelerar a execução das obras
a equipe coordenada por Lelé na RENURB se depara e torná-las mais econômicas, decidiu-se adotar
projetos padronizados, empregando componentes
com o primeiro grande desafio: o saneamento do
pré-fabricados de concreto armado produzidos em
Vale do Camurujipe, na periferia de Salvador. O ob- uma usina implantada pela própria Prefeitura.38
jetivo era criar um sistema de drenagem das águas
pluviais, canalização do esgotamento sanitário e A equipe da RENURB tinha um caráter multi-
contenção das encostas em terrenos acidentados, disciplinar. Para assessorar o escritório quanto à
considerados de alto risco de ocupação e de baixa adoção da argamassa armada39 nas obras do Vale
resistência devido ao estágio avançado de assore- do Camurugipe, tecnologia entendida como a mais
amento. Estas condições inviabilizaram o uso de apropriada devido à leveza do sistema e facilida-
quaisquer métodos tradicionais que pudessem ser de de transporte, foram convidados os professores
usados para promover melhoras na qualidade de Dante Martinelli e Frederico Schiel, da Escola de En-
vida da população. A ocupação dos fundos de vale genharia de São Carlos (EESC-USP). Ao fazer algu-
e encostas dos morros em áreas menos valorizadas mas considerações acerca das condições do local,
é resultado de um processo de crescimento desor- Lelé explica que:
denado da cidade.
Esse terreno não tem nenhum suporte para rece-
ber qualquer tecnologia das usuais. Tínhamos que
E completa:
37. Posto Policial - RENURB. 41 Em entrevista ao autor, Lelé comenta que em 1980 havia
feito um projeto anterior, com claras referências à arquitetura
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
de Alvar Aalto, destinada a receber o Papa durante sua primeira
visita à capital baiana. Com prazo exíguo, o projeto acabou re-
proposta não era fazer urbanização, era fazer o cusado pelo arcebispo de Salvador Dom Avelar Brandão, alegan-
saneamento básico. Com argamassa armada con- do que a extrema simplicidade da igreja não condizia com o ilus-
tre visitante. Um novo projeto foi construído pelo mesmo mestre
de obras da Residência Nivaldo Borges, o artesão espanhol Tião,
e meio, dois centímetros de espessura para po- baseado na técnica de arcos e abóbodas em tijolos cerâmicos.
derem ser transportadas à mão. Entrevista realizada no Instituto do Habitat, Salvador-BA, em
04/05/2011.
56
45.
Fonte: João Filgueiras Lima (1984)
Segundo Conceição Freitas, Frei Matheus foi construção das Escolas Transitórias, Lelé elaborou
responsável, dentre outros feitos, pela intermedia- uma cartilha com desenhos primorosos e ricos em
ção entre Darcy Ribeiro e o Papa João 23 para que detalhes. Esse material, extremamente didático,
fosse possível criar uma universidade laica em Bra- continha todas as etapas do processo de montagem
sília, a UnB. 44
baseado na pré-fabricação, sistema construtivo até
Os edifícios escolares foram desenvolvidos a então desconhecido na região. Ao final da expe-
partir do módulo construtivo básico de 114,5 x riência, foi executado um protótipo em estrutura
114,5cm, e seu sub múltiplo 57,5 x 57,5cm, e im- de madeira e posteriormente desenvolvidos três
plantados em terreno plano, a fim de evitar movi- modelos básicos em argamassa armada, conforme a
mentações de terra que pudessem onerar o custo capacidade definida no programa: para 30 alunos,
final da obra. Cada escola seria constituída à partir com 155 m2, para 45 alunos, com 180 m2 e para 60
da montagem dos seguintes componentes pré-fa- alunos, com 275 m2.
bricados: calhas para coleta de águas pluviais, pila- Apesar de não ter significado um grande avan-
res, vigas, telhas, sheds, divisórias e caixa d’água. ço no desenvolvimento tecnológico se comparado
A disposição longitudinal no sentido Norte-Sul à obras da RENURB em Salvador, sob o ponto de
favorece as condições de iluminação e ventilação, vista técnico, entretanto, a experiência de Abadi-
contribuindo para um melhor conforto térmico no ânia foi de extrema importância para a avaliação
interior das escolas. do potencial da argamassa armada na produção de
Com o intuito de orientar a mão-de-obra não
especializada envolvida ativamente no programa de edifícios.45 Prova dessa continuidade do potencial
a Leonel Brizola, que desembarcou pessoalmente onde o terreno permitia, e de auditórios, cujo sis-
na pequena cidade do interior de Goiás para ver de tema de cobertura suspensa por vigas treliçadas
perto as obras das quais ouvia falar no Rio de Ja- pré-moldadas foi posteriormente abandonado. Se-
50. Escola com pátio (foto acima). 51. Escola modelo compacto.
Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010) Fonte: Max Risselada (2010)
65
A Fábrica de Escolas surge como um projeto bem sucedido na medida em que, ao surgir de uma
complementar ao programa dos CIEPs (Centros In- experiência anterior, ela se insere em novas reali-
tegrados de Educação Pública), elaborado por Darcy dades sócio-espaciais, bem distintas daquela en-
Ribeiro e projetado por Oscar Niemeyer em 1984. contrada em Abadiânia. Ao atender às regiões onde
O objetivo dos CIEPs era implantar uma nova expe- os CIEPs não conseguiriam ser implantados, essas
riência de escolarização em tempo integral na rede escolas demonstram alta permeabilidade social e
pública do Rio, através de um programa, segundo integram, pela primeira vez, a arte de Athos Bulcão
Gabriella Lima, - aos elementos da arquitetura. Além disso, cabe res-
racterizado por um prédio principal de três pavimen- saltar que esse período foi responsável pelo aper-
tos, construído com 24 salas de aula, gabinete mé- feiçoamento de alguns componentes elaborados na
dico-odontológico, biblioteca de 120m2, restaurante época da RENURB, como os abrigos de ônibus, e,
para 300 alunos e ginásio de esportes. 49
sobretudo, por subsidiar técnica e politicamente o
A área demandada para a implantação de um retorno de Lelé a Salvador no ano seguinte.
CIEP variava entre 10.000 m2, na versão comple-
ta, ou 5.000 m2, na versão compacta, o que exigia
terrenos muito grandes em áreas densamente ocu-
padas como as favelas da região. Nesse sentido,
as escolas térreas e isoladas projetadas por Lelé
se tornaram a opção mais eficiente para atingir as
comunidades dos morros e regiões de difícil acesso
no Rio de Janeiro.
Diante dessa perspectiva, pode-se dizer que a
Fábrica de Escolas foi um programa relativamente
Fábrica de Equipamentos
Comunitários – FAEC
Salvador, 1985-1989
à população da cidade, mas também pelas pesquisas no caso da Recuperação do Centro Histórico, em
tecnológicas que serviram de base para as experiên- 1988, realizada em colaboração com a arquiteta
cias subsequentes dos CIACs e sobretudo do CTRS.50 Lina Bo Bardi.
A larga atuação da FAEC na paisagem sotero- Dentre as intervenções previstas por Lina para o
politana, especialmente nas regiões periféricas e Centro Histórico de Salvador, destacam-se as ações
nas chamadas avenidas de vale, não pode ser dis- promovidas junto aos antigos sobrados na Ladeira
sociada da experiência que se inicia em Abadiânia da Misericórdia, no período de 1986 a 1989. So-
e que posteriormente se instala no Rio de Janeiro. bre as técnicas empregadas no projeto piloto para
De volta a Salvador, Lelé consegue num curto perí- aquele conjunto histórico, Nivaldo Andrade explica
odo executar e aprimorar alguns projetos iniciados que:
com a RENURB, no final dos anos 1970, e ainda
desenvolver parcerias locais bem sucedidas, como Os elementos em ferro-cimento plissado desen-
volvidos por Lelé a partir de sugestão de Lina Bar-
di foram utilizados no caso da ruína dos Três Ar-
cos como contrafortes que funcionam não apenas
estruturalmente, mas também como elementos de
transição e amarração visual entre os altos sobra-
dos que o ladeiam e a baixa estrutura remanes-
cente, com apenas um pavimento de altura. Aqui
a nova estrutura funciona ainda como background
que ressalta o muro existente, tratado como ob-
jeto a ser destacado, em uma relação gestáltica
51
58.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
conclusão.
Aprovado pelo IPHAN em caráter temporário, o Desse modo, pode-se dizer que a arquitetura da
prédio da prefeitura coloca em questão alguns va- FAEC sintetiza os esforços de Lelé frente ao desen-
lores baseados na intervenção em sítios históricos volvimento do sistema construtivo da argamassa
baseada no contraste do espaço no qual se insere o armada, agora com a incorporação de componentes
novo objeto. Segundo Nivaldo Andrade: metálicos, e seu compromisso social. Em parceria
com o poder público, esses projetos se destinam
A torre de circulação pintada de verde, nos fundos
à produção de equipamentos de uso comunitário
imenso duto circular pintado de amarelo, sobre a tendo em vista a melhoria das condições de vida
cobertura, além das marcações horizontais verme- nas comunidades mais carentes.
lhas e azuis introduzem no Centro Histórico uma
paleta de cores vibrantes, estranha à arquitetura
do sítio. Ao mesmo tempo, a volumetria geral do
53 Nivaldo Vieira de Andrade Jr. Op. Cit., 2005, p. 15.
69
59. Prefeitura de Salvador - croqui de locação. 60. Prefeitura de Salvador - esquema estrutural.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999) Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
-
nentes para acolher dez crianças carentes.54
Projetado por Lelé e desenvolvido pela mesma 65. CIAC - prédio de salas de aula.
equipe com a qual trabalhou na FAEC, o conjunto Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
54 Ana Gabriella Lima Guimarães. Op. Cit., p. 149. 55 Giancarlo Latorraca (org.). Op. Cit., 1999, p. 187.
72
Essas empresas foram atraídas pela possibilidade de são elas que sustentam as eleições. A maior parte
do dinheiro gasto nas eleições sai da construção
execução de 5.000 unidades espalhadas por todo
civil.56
território nacional, conforme dados divulgados ofi-
cialmente, o que favorecia uma ampla margem de
Antes de iniciar a instalação das fábricas ne-
superfaturamento nas obras e obtenção de lucros
cessárias à construção dos 5.000 CIACs, a ser im-
de forma ilícita.
plementados dentro dos quatro anos do Governo
Entretanto, o sistema elaborado por Lelé e sua
Collor, foram executados dois protótipos, um no Rio
equipe, baseado na industrialização completa dos
e outro em Brasília. A colaboração de Athos Bulcão
componentes construtivos, dificultava ações dessa
teve continuidade nos CIACs com a transformação
natureza, justamente por privilegiar aspectos como
de portas e janelas das escolas e creches em pai-
economicidade, rapidez na execução e um maior
néis móveis decorados. Contudo, diante das graves
controle com gastos de materiais e mão-de-obra.
distorções sofridas pelo projeto e dos mais variados
Ao perceber os esquemas de corrupção que alo-
problemas de natureza política, até a arte sucum-
cavam verbas dos orçamentos dos Ministérios da
biu às instabilidades do referido governo, poste-
Saúde, Ação Social e Educação para viabilizar as
riormente cassado por improbidade administrativa,
falcatruas, Lelé desabafa:
culminando com o histórico impeachment de 1992.
68. Hospital Sarah Kubitschek Salvador e CTRS (no alto). O Sarah Salvador foi a primeira unidade na vigên-
Fonte: Max Risselada (2010) cia do contrato de gestão entre a Fundação das
Pioneiras Sociais e o Governo Federal. Esse contra-
to que, graças à determinação de Aloysio Campos
-
O Hospital Sarah de Salvador (1991) inaugura gresso Nacional, estabeleceu uma nova forma de
uma nova fase na trajetória profissional de Lelé, administração pública, em que a Associação das
baseada no uso extensivo do aço como elemento Pioneiras Sociais, instituição de interesse privado,
assumiu o compromisso de gerir o patrimônio pú-
construtivo principal na elaboração dos novos pro- blico de uma rede de hospitais na área do apa-
jetos para a Rede de Hospitais do Aparelho Loco- relho locomotor.57
motor. Segundo Lelé:
57 Ana Gabriella Lima Guimarães. Op. Cit., p. 199.
74
Lelé que já havia ensaiado a adoção de um terno para dentro das galerias. O ar que atravessa
acabaram sendo incorporadas e, segundo o plano Devido à limitação imposta pelo Tribunal de
de expansão elaborado pelo próprio Lelé, passaram Contas da União em restringir a produção do CTRS
a configurar o novo Centro de Tecnologia da Rede apenas à ampliação e manutenção dos hospitais da
Sarah, o CTRS. rede, o Centro de Tecnologia da Rede Sarah não
A fábrica do CTRS ocupa 20.000 m e conta com
2
pôde expandir suas bases de produção e desenvol-
as oficinas de metalurgia leve, metalurgia pesada, vimento de tecnologia para outras atividades.
pré-moldados em argamassa armada e plásticos.
O Tribunal de Contas diz que fazemos competição
Segundo descrição do arquiteto:
com a iniciativa privada e nos proibiram de pro-
duzir qualquer coisa para fora, temos de trabalhar
[...] o potencial médio de produção do CTRS exclusivamente para a rede Sarah. Prevíamos uma
equivale à execução de um hospital de 200 leitos, ampliação para essa fábrica, mas parou porque
equipado no valor de US$ 35.000.000. O potencial para fazer só os hospitais da rede Sarah não tem
máximo pode ultrapassar US$ 50.000.000 anuais,
necessidade de aumentar.
sem perda de qualidade ou de custos de produção.
A produção mínima para manter o centro eco-
nomicamente viável não pode ser inferior a US$ Completa Lelé:
60
20.000.000 anuais.
Nós fazemos as obras muito mais rapidamente e
com custo baixo. E nosso tipo de construção é de
qualidade.61
60 Giancarlo Latorraca (org.). Op. Cit., 1999, p. 199. 61 João Filgueiras Lima. In: Bianca Antunes. Integração desde
76
Ironicamente, o próprio Tribunal teve gran- em Macapá (2001), o Centro Ambulatorial Infantil
de parte de suas sedes nos estados projetadas e de Belém (2001) e por fim o Hospital do Rio de
construídas pelo CTRS: Bahia (1995), Rio Grande do Janeiro (2001).
Norte (1996), Sergipe (1997), Minas Gerais (1997), O hospital do Rio, inaugurado em 2009, tem
Alagoas (1997), Piauí (1997), Mato Grosso (1997) um significado especial para Lelé. O momento em
e Espírito Santo (1998). que foi construído coincide com a desarticulação
Ao longo dos últimos 20 anos, desde o projeto do CTRS e o início de uma nova fase na carreira do
para o Sarah Salvador, em 1991, o CTRS ampliou arquiteto: o Instituto Brasileiro de Tecnologia do
sua rede de hospitais para outros estados, contan- Habitat, o IBTH. Segundo Nobre:
do atualmente com nove unidades espalhadas por
Pode-se dizer que o Sarah-Rio representa o so-
todo território nacional: o primeiro hospital da rede
inaugurado em Brasília (1980), o Sarah Salvador Lelé, em termos de erros e acertos, desde Brasília.
(1991), o Sarah Fortaleza (1992), o Sarah Belo Ho- -
rizonte (1992), o Sarah São Luís (1993), o Cen-
dos últimos quarenta anos.62
tro Internacional de Neurociências e Reabilitação,
mais conhecido como Sarah Lago Norte (1996), em
Brasília, o Centro de Reabilitação Infantil do Rio de
Janeiro (2001), o Posto Avançado da Rede Sarah 62 Ana Luiza Nobre. João Filgueiras Lima: arquitetura no
limite. Olhares: visões sobre a obra de João Filgueiras Lima. An-
o princípio. AU, Especial João Filgueiras Lima, n. 175, outubro dré Aranha Corrêa do Lago [et al.]; Cláudia Estrela Porto (org).
2008, p. 58-59. Brasília: EdUnB, 2010, p. 45.
77
71. Hospital Sarah Fortaleza - vista aérea (acima). 72. Sarah Fortaleza - execução das galerias e dos sheds.
Fonte: Max Risselada(2010) Fonte: Max Risselada (2010)
78
73. Hospital Sarah Belo Horizonte - vista aérea (acima). 74. Sarah Belo Horizonte - acesso ao ambulatório.
Fonte: Max Risselada (2010) Fonte: Max Risselada (2010)
79
75. Hospital Sarah Lago Norte - Brasília | croqui. 76. Vista aérea Hospital Sarah Lago Norte (abaixo).
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999) Fonte: Rede Sarah (2003)
80
77. Hospital Sarah Kubitschek Rio de Janeiro - vista 78. Hospital Sarah Rio de Janeiro - vista do solário e
aérea (acima). auditório ao fundo.
Fonte: Max Risselada (2010) Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010)
81
79. Tribunal de Contas da União na Bahia (Salvador). 80. Tribunal de Contas da União em Alagoas (Maceió).
Fonte: Max Risselada (2010) | acima. Fonte: Max Risselada (2010) | abaixo.
82
Compreender os fatores que culminaram nesse capítulo, cujo conteúdo será apresentado em três
“morar moderno” e as contribuições advindas de momentos:
períodos anteriores é uma maneira de extirpar an-
tigos julgamentos prematuros a respeito das habi-
tações geradas no âmbito da arquitetura moderna, (2ª metade do séc. XIX – 1922);
comumente taxada de impositiva e restritiva. Sob
a ótica da produção residencial de alguns arquite-
tos que contribuíram decisivamente para a conso- (1960 – até o presente);
lidação de uma linguagem amplamente difundida
no Brasil, referenciada até hoje pelos jovens ar- Trata-se aqui de abordar, sumariamente, o sur-
quitetos, espera-se extrair, a partir da análise de gimento, consolidação e os desdobramentos do
alguns exemplos paradigmáticos, os fundamentos movimento moderno no Brasil, delineado a par-
e conceitos que tornaram esses projetos síntese de tir do estudo da casa como elemento-chave para
um pensamento que teve sua origem no idealismo compreender alguns valores e elementos tradicio-
social e no método de investigação próprios da mo- nalmente atribuídos à brasilidade encontrada em
dernidade. certas residências, questionada aqui enquanto
As questões abordadas aqui remetem ao dese- atributo original e exclusivo de uma pretensa pré-
nho da casa enquanto instrumento de experimen- -disposição cultural. Ao expor suas considerações
tação do arquiteto através de sua percepção da ci- acerca do assunto no prefácio de Arquitetura mo-
dade, e da própria sociedade, no momento em que, derna brasileira, Miguel Pereira assim se manifesta:
ao realizar o projeto, o arquiteto inevitavelmente
oscila entre o caráter excepcional de obra de arte e
teórico da arquitetura brasileira, onde ainda paira
a criteriosa análise dos aspectos funcionais e cons- intocável o mito da criatividade do arquiteto
trutivos. brasileiro como parâmetro maior de referência e
julgamento de toda nossa arquitetura. A partir
Para tanto, além de adotar a linha de investi-
daí, a ideia do grande homem, do gênio, tem ali-
gação utilizada por Marlene Acayaba em seu estu- mentado entre os arquitetos a falsa ideia de que
do sobre residências em São Paulo2 – a residência a única saída é a produção de uma arquitetura
voltada para seus valores plásticos, enquanto a
como parte integrante da cidade, a casa e o lote
barreira do subdesenvolvimento não for rompida.
e a solução formal –, serão aportadas à discussão -
casas emblemáticas do movimento moderno no 3
ção do racionalismo de origem corbusiana em São no estágio industrial em que se encontrava o país
Paulo (casa modernista, 1927) e que, mais tarde, no primeiro quarto do século XX.
passa a contribuir de forma autêntica e a responder A partir de 1950, alguns profissionais se dedica-
às exigências ambientais locais (clima, relevo, ve- ram a rever o papel do arquiteto, cuja função, se-
getação) com certa desenvoltura e graciosidade no gundo Artigas, seria superar, através da criatividade,
Rio de Janeiro e posteriormente em outras partes as contradições da realidade social.5 Nos esforços de
do Brasil. compreensão da atividade específica do arquiteto
no país, Sylvia Ficher e Marlene Acayaba apontam
para os textos de Vilanova Artigas em Le Corbusier e
o Imperialismo (1951), Os Caminhos da Arquitetura
Moderna (1952) e O desenho (1967); e também de
Sérgio Ferro em Arquitetura Nova (1967) e O cantei-
ro e o desenho (1979).
O objetivo deste capítulo não está na apuração
das contradições do movimento moderno no Brasil.
O seu interesse está nas casas projetadas no seio
deste movimento, as quais, obviamente, não estão
1. Casa da rua Santa Cruz (casa modernista) - São imunes às tais contradições. Resta saber, de fato,
Paulo. Gregori Warchavchik, 1927. quais foram as contribuições deste período para a
Fonte: José Lira (2011)
expressão arquitetônica nacional, construída mais
na diversidade de modelos e formas que propria-
Contudo, a ideia de que os arquitetos responsá- mente na unidade de soluções.
veis pela afirmação do modernismo no Brasil dispu-
nham de uma criatividade singular sem precedentes
contraria uma visão da arquitetura entendida como Antecedentes de uma modernidade
instrumento de emergência de uma sociedade me- anunciada
2ª metade do séc. XIX - 1922
4
Não há como dissociar os princípios do raciona- Os registros sobre a habitação brasileira feitas
lismo europeu, aclimatado no Brasil na década de pelo engenheiro e arquiteto francês Louis Léger
1920, de uma arquitetura voltada para uma mudan- Vauthier no período em que morou no Brasil, entre
ça social. Essa mudança sugerida e reforçada pela 1840 e 1846, são esclarecedores do modo de vida e
assimilação dos benefícios trazidos pela era da má- organização da casa tradicional brasileira. Suas ob-
quina na Europa não encontraram correspondência servações são especialmente válidas para o Recife,
cidade que ajudou a modernizar e que abriga duas
4 Miguel Alves Pereira. Idem, p. 7. 5 Sylvia Ficher; Marlene Milan Acayaba. Op. Cit., 1982, p. 116.
88
6 Maria Cristina Wolff de Carvalho. Ramos de Azevedo. São Ao se referir a Grandjean de Montigny como
Paulo: EdUSP, 2000, p. 256.
marco, Maria Cristina relembra que, nesse período,
7 Adolfo Morales de los Rios. Grandjean de Montigny e a
Evolução da Arte Brasileira. Rio de Janeiro: Empresa a Noite, a arquitetura doméstica é, nas cidades, feitas de so-
1941, p. 197, Apud Maria Cristina Wolff de Carvalho. Op. Cit.,
p. 256. brados em que a riqueza e até mesmo a opulência
89
estão caracterizadas no volume e no tamanho do Para Segre, no caso do Brasil, a casa isolada
edifício, e não em soluções formais de autores.8 Cor- -
roborando com a ideia de que a habitação burguesa
teria surgido por uma necessidade individualista da onde a criação do sistema construtivo de madeira
elite da sociedade industrial, Roberto Segre afirma balloon-frame facilitou sua difusão no meio-oeste
que: americano; por outro, na Inglaterra, as contradi-
ções urbanas da Revolução Industrial estimularam
O tema da casa individual isolada no terreno ur-
- a construção de residências pequeno-burguesas no
tos simbólicos e projetada por arquitetos, surgiu subúrbio.10
no século XIX com o individualismo da sociedade Já no caso da França, relata Maria Cristina, para
capitalista. Até então, e desde a Renascença, a
vida cotidiana da nobreza e da burguesia abas- Julien Azaïs Guadet, arquiteto francês e importan-
tada era associada aos grandes palácios ou às te professor da Escola de Belas Artes de Paris, a
luxuosas mansões urbanas, inseridas na malha da habitação moderna nasceu com o século XVIII, oca-
cidade – no caso de Florença – ou em vilas disper-
sas em áreas rurais, desenhadas por renomados sião em que ocorreu uma verdadeira revolução na
9 arquitetura residencial do ponto de vista da distri-
buição.11 Segundo Guadet:
Para melhor compreensão das mudanças ocor- adequada aos quartos é a retangular e, na deco-
ração, devem ser evitadas as cortinas pesadas,
ridas com essa nova organização da habitação na
baldaquinos, tapeçarias e videaux de lits.14
cultura francesa, apresenta-se a seguir, de forma
itemizada, os principais pontos da casa moder-
Esse discurso higienista, inicialmente relacio-
na reunidos por Guadet em seu Éléments et théo-
nado com as mudanças de hábitos trazidas pela
rie de l’architecture, primeiramente publicado em
sociedade industrial, poderia estar perfeitamente
1901, e apontados por Maria Cristina como uma
inserido nas análises e descrições empreendidas
democratização na forma de habitar, entendida a
por Le Corbusier durante sua conferência sobre o
partir da independência das três áreas básicas de
Plano da Casa Moderna, realizada em Buenos Aires
uma moradia – área íntima, social e de serviço.
em outubro de 1929. Ao destacar algumas soluções
adotadas na Villa Savoye, naquele momento refe-
rida como uma construção que ainda estava sendo
da habitação
, Le Corbusier as-
13 Idem, ibidem. 14 Maria Cristina Wolff de Carvalho. Op. Cit., 2000, p. 261.
91
Do interior do vestíbulo uma rampa suave con- para o trânsito de empregados domésticos. Eles se-
duz, sem que quase se perceba, ao primeiro an-
rão servidos de água corrente, se possível quente,
dar, onde transcorre a vida do morador: recepção,
quartos, etc. Recebendo vista e luz do contorno para alimentar o meuble-toilette, ou seja, a pia.
regular da caixa, os diferentes cômodos reúnem-
se radialmente sobre um jardim suspenso, que ali Quanto ao móvel-toilette, ele poderá ser de cons-
trução ou simplesmente uma peça de mobiliário.
terminar, observem o corte: o ar circula por todos Mas, em todo o caso, é necessário que a água
os lugares, a luz está em cada ponto, penetra em chegue diretamente no gabinete de toilette e que
tudo.15 ali se encontram as saídas necessárias para as
águas servidas sem que seja preciso transportá-las
através do apartamento.16
15 LE CORBUSIER. Precisões sobre um estado presente da ar- 16 Julien Guadet. Op. Cit., 1909, p. 56. Apud Maria Cristina
quitetura e do urbanismo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 139. Wolff de Carvalho. Op. Cit., 2000, p. 261.
92
seu equivalente com as expressões: grande sal- binete de trabalho e a um salão, e que estas duas
le, parloir, salle d’assemblée, ou simplesmente, la peças estejam próximas e se comuniquem.19
salle. Na habitação senhorial da Idade Média, de- A biblioteca, por sua vez, será acima de tudo
signava uma vasta sala comum, onde se fazia de uma sala de trabalho comum para a família. Ela
tudo um pouco. Ali eram realizadas as refeições, deverá possuir o maior numero possível de paredes
jogos, reuniões, conversações e até mesmo dormia- claras e ter espaço para uma grande mesa de traba-
-se. O salão é a última designação francesa da peça lho. Para Guadet, esse é o programa da biblioteca:
já utilizada na habitação do século XIX, destinada
[...] a menos que se trate de uma desses ama-
à recepção das visitas e à sociedade mundana.17
dores de livros que possuem o equivalente a uma
biblioteca pública. É então um programa excepcio-
nal, que não pode entrar na categoria da habita-
ção ordinária.20
A salle à mager será destinada às refeições da
família e dos convidados. Para a determinação das
dimensões da sala de refeições, é ressaltada a im-
Seu lugar na habitação é difícil de escolher: ela
portância de aspectos como a largura e o compri- deve estar muito próxima da sala de refeições,
mento da mesa, devido à necessidade de circulação sem lhe ser contígua. Deve estar separada por
peças de acesso fácil e não por corredores longos
ao seu redor. Guadet lembra que o aquecimento
não deverá incomodar os comensais e que as pare- atender aos fornecedores, ela deve ser acessível
des deverão ser refratárias à penetração dos vapores diretamente pela escada de serviço. Também deve
e odores, aconselhando, na habitação rica, serem
estar isolada para que seus odores não se espa-
empregados os mosaicos e mármores e, na habita- lhem pelos apartamentos.21
18
ção simples, se recorrer à pintura ou aos vernizes.
Ainda segundo Maria Cristina, Guadet descreve
três partidos de cozinhas, a depender da locali-
zação no rés-do-chão, no subsolo ou, ainda, nos
O gabinete de trabalho é uma peça para receber sótãos. As primeiras constituem o tipo mais apre-
amigos, clientes, fornecedores e mesmo desconhe- ciado pelo autor, pelas vantagens que oferecem
cidos. É preciso que ele se ligue diretamente com na comunicação com as peças que lhe devem ser
a antecâmara para que os estranhos penetrem o contíguas. Aquelas no subsolo, apontadas como as
menos possível na residência. Por outro lado, pode mais frequentes, complicam o fluxo de serviços, ar-
ser que se queira atender o visitante num salão. É gumenta, ainda que este inconveniente seja repa-
preciso então que a antecâmara dê acesso ao ga- rado com o monta-cargas.
19 Idem, Ibidem.
20 Julien Guadet. Op. Cit., 1909, p. 56. Apud Maria Cristina
17 Maria Cristina Wolff de Carvalho. Op. Cit., 2000, p. 262. Wolff de Carvalho. Op. Cit., 2000, p. 263.
18 Idem, p. 263. 21 Idem, p. 264.
93
Diante das orientações de Guadet, nota-se que 7. A presença do escravo no ambiente doméstico no
esta distribuição das peças que conformariam a Brasil Colonial. Ilustração: Jean-Baptiste Debret.
Fonte: www.marcosabino.com (2011)
casa moderna foram bem recebidas pelo raciona-
lismo europeu, que posteriormente se encarregaria área rural, sendo possível que pessoas que moravam
de divulgá-las mundo afora com pequenas modifi- na área urbana também se dedicassem às atividades
cações. A separação e a independência das funções agrícolas.23
na organização espacial da casa moderna talvez Sérgio Buarque de Holanda afirma que, em nos-
tenha sido sua mais influente contribuição para a so país, o século XIX caracterizou-se pela oscilação
arquitetura residencial do século XX. entre o mundo agrário, patriarcal e paternalista, e o
Se para Guadet as origens dessa revolução re- mundo urbano, copiado das nações social e tecnolo-
montam ao século XVIII, para Segre a questão da
autoria desses projetos, ponto fundamental do pre- e o desenvolvimento comercial.24
sente trabalho, só estaria resolvida e difundida a Com a Abolição da Escravatura em 1888 e a
partir da segunda metade do século XIX. crescente abertura para os profissionais liberais
Contudo, mais importante aqui do que precisar imigrantes, o país enfrenta uma grande mudança
o início desse novo método de conceber o espaço nos modos de vida da população, que passa a in-
doméstico, é destacar quando essas ideias apor- corporar novos costumes relacionados ao regime
tam no Brasil e começam, de fato, a fazer parte do trabalho livre. A escravidão que teve papel fun-
do cotidiano de uma sociedade em transformação, damental na sociedade brasileira desde os tempos
como aquela encontrada no Rio de Janeiro e em coloniais é, mesmo depois de abolida, culturalmen-
São Paulo. te mantida através de antigos vínculos de depen-
Mesmo diante dos avanços do comércio nas ci- dência fortemente arraigados e hábitos cômodos da
dades, muitas pessoas mantinham ou dependiam vida patriarcal. Segundo Lucio Costa:
de antigos hábitos rurais ligados à subsistência.
Segundo Maria Cecília Naclério Homem, por volta
de 1860, quase metade da população ainda vivia na 23 Maria Cecília Naclério Homem. O palacete paulistano e ou-
tras formas urbanas de morar da elite cafeeira: 1867-1918. São
Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 63.
24 Sérgio Buarque de Holanda, 1948 apud Maria Cecília Na-
22 CARVALHO, Maria Cristina Wolff. Op. Cit., 2000, p. 264. clério Homem. Op. Cit., 1996, p. 16.
94
Diferentemente dos sobrados e chácaras, con- ca que [ele] inspirou alguns dos mais ricos prédios
siderados últimos redutos da escravidão urbana, a do século dezenove, mas também permitiu alguns
elite cafeeira em São Paulo vai encontrar em casas dos mais absurdos. O ecletismo não propunha regras
burguesas de feições ecléticas a desejada morada automáticas para combinações e não fornecia rela-
de luxo que lhe serviria tanto para suprir as neces- ções óbvias entre função e forma.29
sidades de isolamento e privacidade, como tam- Em nítida referência ao vasto e difundido vo-
bém para cultivar a moda, o teatro a etiqueta e cabulário do chamado Estilo Internacional30, onde
a música. O termo palacete, designou, sempre, em predomina o excessivo purismo das formas brancas
e homogêneas, William Curtis aponta para a busca
de dois pavimentos, em oposição à casa térrea, po- incessante do movimento pela forma autêntica, de-
pular.28
vidamente relacionada com a função nela abrigada.
Segundo Frampton, para Alfred Roth, arquiteto suí-
ço colaborador de Le Corbusier e membro do CIAM,
a referência fundamental do Estilo Internacional era
uma abordagem sensível e estritamente doutrinária
da criação da forma construída.31
No entanto, a busca por uma forma autêntica,
desvencilhada de qualquer discussão estilística e
própria do seu tempo já havia sido iniciada por ar-
quitetos do século XIX. As teorias racionalistas32
de Tony Garnier.34
O interesse pela obra de Dubugras justifica-se
no presente trabalho por sua contribuição particu-
lar à história da arquitetura brasileira, reconhecido
10. Fachada do Théâtre des Champs Élysées - Paris.
como precursor da modernidade e pioneiro no uso
Auguste Perret, 1913.
Fonte: Wikipedia (2011) do concreto armado no país, especialmente por seu
acentuado caráter racionalista, contribuindo para
de Viollet-le-Duc, elaboradas em consonância com
as bases teóricas do Modernismo no Brasil, surgido
as novas possibilidades trazidas pela era da máqui-
no início da década de 1930. Para Nestor Goulart,
na – tais como o ferro, a eletricidade, o vapor, a
tão importantes quanto as pesquisas sobre técnicas
velocidade – e longe do academicismo, vão atingir
estruturais eram seus estudos sobre os sistemas de
resultados expressivos com as proposições de Adolf
acabamento, incluindo os detalhes de vedação, ser-
Loos, Auguste Perret, Tony Garnier e Louis Sullivan.
ralheria, instalações elétricas e hidráulicas, sistemas
Para William Curtis, Violett-le-Duc cunhou a
de telhados e pisos, escadas, vitrais e forros, esten-
ideia de que o grande estilo dos tempos modernos
dendo-se ao próprio mobiliário.35
de certa forma emergiria a partir de novas técnicas
Victor Dubugras apresenta uma ampla obra, na
de construção – e não meramente através de algum
qual percorreu diversas correntes como o neogóti-
tipo de experiência formal pessoal –, assim como os
co, o ecletismo e, por fim, já na década de 1920, o
grandes estilos do passado haviam surgido.33
neocolonial. Entretanto, sua obra mais divulgada,
As preocupações de Viollet-le-Duc, baseadas
por seu caráter moderno, foi a Estação Ferroviária
no uso das técnicas construtivas e dos materiais
de Mairinque, de 1906.
como meio para se atingir a forma desejada, vão
ser interpretadas e difundidas no Brasil, de forma A estação foi projetada como um edifício longo,
pioneira, pelas mãos do arquiteto Victor Dubugras, acompanhando as duas plataformas, com um
cuja produção se notabilizou pelo alto compro- pavilhão central mais alto, resolvido como uma
abóbada, de eixo perpendicular ao conjunto da
metimento com os aspectos construtivos e com a obra. [...] A volumetria era extremamente com-
modernização do projeto arquitetônico. Segundo plexa.
Filho. Racionalismo e proto-modernismo na obra de Victor Dubu- 34 Nestor Goulart Reis Filho. Racionalismo e proto-modernismo
gras. São Paulo: FBSP, 1997, p. 32-33. na obra de Victor Dubugras. São Paulo: FBSP, 1997, p. 28.
33 William J.R. Curtis. Op. Cit., 2008, p. 28. 35 Nestor Goulart Reis Filho. Op. Cit., 1997, p. 34.
97
13. Casas geminadas para João Dente, rua Augusta, São Paulo - 1912.
Fonte: Nestor Goulart Reis Filho (1997)
16. Casa Ernesto e Maria Cecília Fontes - segundo projeto (moderno), Lucio Costa, Rio de Janeiro, 1930.
Fonte: Farès El Dahdah (2010)
patriarcal, com o largo beiral de telhões de faiança, A nova arquitetura brasileira não nasceu de uma
39
lenta maturação da arquitetura local – ela foi re-
É sabido que Lucio Costa, considerado mentor sultado mais uma vez de uma importação pura e
simples do Velho Mundo. Contudo, logo superou
intelectual da chamada Escola Carioca, vertente o estágio da aplicação mais ou menos servil de
do movimento moderno no Brasil, se “converte”, certas regras e princípios e encontrou um caminho
próprio. Isso deve-se indiscutivelmente ao nasci-
39 José Mariano Filho Apud Andre Decourt. Solar Monjope. Pub- mento de uma personalidade artística genuina-
licado no site Foi um Rio que passou em 29 de janeiro de 2009.
18. Casa Ernesto e Maria Cecília Fontes - Lucio Costa, 19. Casa Ernesto e Maria Cecília Fontes - Lucio Costa
Rio de Janeiro,1930 | sala de jantar. Rio de Janeiro, 1930 | estar do primeiro andar.
Fonte: Farès El Dahdah (2010) | acima Fonte: Farès El Dahdah (2010)
102
20. Entrada principal da Exposição Internacional do 21. Vista aérea da Exposição. À direita, o Morro do
Centenário da Independência - Rio de Janeiro, 1922 Castelo sendo desmontado - Rio de Janeiro, 1922.
Fonte: Skyscrapercity (2011) Fonte: Skyscrapercity (2011)
declarado.43
41 Idem, Ibidem.
42 A Exposição Internacional do Centenário da Independência
foi oficialmente aberta em 7 de setembro de 1922, durante o
governo do presidente Epitácio Pessoa, e o seu encerramento se
deu na primeira semana de julho de 1923. O evento ocupou uma
extensa área no Rio de Janeiro decorrente de aterramentos e in-
tervenções diversas. A área destinada à “Avenida das Nações” se
estendeu do Palácio Monroe até a Ponta do Calabouço e dentre
os principais pavilhões ali construídos estava o edifício que hoje 23. Pavilhão da Estatística, à esquerda, e da Caça e
abriga o Museu Histórico Nacional: o Palácio das Indústrias. In: Pesca, à direita.
Fonte: Skyscrapercity (2011)
43 Yves Bruand. Op. Cit., 2005, p. 56.
103
Modernidade heroica
1922-1960
24. Capa do catálogo da Exposição - Semana de Arte 26. Residência - Antonio Garcia Moya | projeto
Moderna - São Paulo, 1922. apresentado na Semana de Arte Moderna de 1922.
Fonte: Google (2011) Fonte: Sylvia Ficher (2011)
104
conhecida como a primeira casa moderna de São A partir da década de 1930, antes mesmo das
Paulo. Segundo Bruand: realizações de caráter monumental protagonizadas
no Rio de Janeiro por Lucio Costa e Oscar Niemeyer
Sua casa apresentava-se como um manifesto,
repercutirem na crítica internacional especializada,
desta vez de ordem objetiva, a favor de um novo
estilo [...] As preocupações formais eram eviden- o papel de pioneiro da nova arquitetura no Brasil,
atribuído a Warchavchik, é frequentemente abor-
dado como uma contribuição pontual e isolada, na
externa, composta por prismas elementares; eram
visíveis as pesquisas de continuidade espacial, de qual se destaca seus projetos residenciais. Muito
48 além dessa importante e restrita produção, Otavio
ligação entre o exterior e o interior.
Leonídio, autor de Carradas de razões: Lucio Costa
e a arquitetura moderna brasileira, esclarece que o
arquiteto ucraniano naturalizado brasileiro foi tam-
bém fundamental para a apresentação e aplicação
da modernidade discutida na década de 1920, so-
bretudo nos domínios da arquitetura.
uma produção nem sempre reconhecida e explorada com realizações monumentais que pressagiavam um
devidamente, Carlos Eduardo Comas afirma que as crescendo na atuação do arquiteto e sua importân-
casas unifamiliares são um capítulo menor, porém cia no panorama nacional.52
atrativo. Lucio Costa não se preocupa com a planta Segundo Frampton, no Brasil a arquitetura mo-
livre nas poucas casas que construiu para membros derna teve suas origens na parceria formada em
seletos da aristocracia carioca, mas trata de conci- meados dos anos 1920 entre Lucio Costa e Gregori
Warchavchik53. Apesar do lapso temporal confirma-
de madeira com a espacialidade moderna.50 do por Lucio Costa ao comentar o curto período em
Pode-se dizer que a produção das chamadas que esteve à frente da direção da Escola Nacional
“casas de arquitetos” no Brasil da primeira metade de Belas Artes, onde, fracassada a experiência em
do século XX foi especialmente profícua, contando
com exemplares formais emblemáticos, como algu- -
fício ‘A Noite’, na praça Mauá) com assessoramento
Artigas em São Paulo, e de Lucio Costa, Oscar Nie-
meyer, irmãos Roberto e Affonso Reidy no Rio de
54
Janeiro. Para Sylvia Ficher e Marlene Acayaba: ; a empresa deixa poucas
realizações, dentre elas o importante conjunto de
O aspecto mais marcante da arquitetura moder- apartamentos proletários da Gamboa (1932), atual-
na brasileira foi a criatividade ao desenvolver os
princípios racionalistas, através da valorização mente bastante desfigurado.
dos elementos plásticos. A ruptura com a ortogo- Nesse momento, a insatisfação de Lucio Costa
e Carlos Leão com o chamado “modernismo esti-
de Oscar Niemeyer, apontou um novo caminho,
caracterizado pela ênfase na função simbólica dos lizado” ou com as casas de ‘estilo’ inglês, francês
edifícios.51 ou colonial, os quais, segundo o próprio, já não
pareciam ajustar-se aos verdadeiros princípios cor-
O desenvolvimento dessa nova arquitetura traz buseanos a que nos apegávamos55; refletia numa
consigo a valorização do profissional em si, a par- escassez de clientes de fato engajados com a nova
tir do momento em que ele é identificado e reco- arquitetura, sobretudo entre 1932-35, anos que an-
nhecido como autor das novas formas geométricas tecederam a construção do Ministério da Educação
criadas pelo uso corrente do concreto armado e de no Rio.
materiais industriais. O compromisso com o raciona-
lismo, aliado à demanda de novas construções que o
desenvolvimento do país criara, faz com que o perío-
52 Idem, p. 73.
53 Kenneth Frampton. História crítica da arquitetura moderna.
50 Carlos Eduardo Dias Comas y Miquel Adrià. La casa latino-
São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 310.
americana moderna: 20 paradigmas de mediados de siglo XX.
Gustavo Gili, Barcelona, 2003, p. 10. 54 Lucio Costa. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa
das Artes, 1995, p. 72.
51 Sylvia Ficher; Marlene Milan Acayaba. Op. Cit., 1982, p.
115. 55 Idem, Ibidem.
107
33. Ministério da Educação e Saúde Pública, atual Palácio Gustavo Capanema - projeto da equipe
brasileira coordenada por Lucio Costa | consultor: Le Corbusier | Rio de Janeiro, 1936
Fonte: Nabil Bonduki (2000)
109
34. Casas da vila operária de Monlevade, Minas Gerais. 37. Maison Citrohan - Le Corbusier, 1920.
Lucio Costa, 1934. Fonte: Le Corbusier (2006)
Fonte: Farès El Dahdah (2010)
gica Belgo-Mineira, até moradias burguesas, as
chamadas ‘casas sem dono’. Essas propostas rea-
lizadas para clientes fictícios, num total de três,
foram diretamente influenciadas pela estética da
máquina divulgada por Le Corbusier. O conceito é
desenvolvido na carreira do mestre suíço a partir
de seu projeto para as casas em série Citrohan56,
elaboradas em 1920 e apresentadas ao público no
Salon d’Automne de 1922, em Paris.
à la réalisation.58
A ossatura do sistema – composto por três lajes
61 Le Corbusier chegou em Buenos Aires em 3 de outubro de
planas armadas nas duas direções, conectadas por 1929 para um ciclo de conferências que se iniciou na capital
portenha e seguiu para Montevidéu, São Paulo e Rio de Janeiro,
uma escada, e duas linhas de pilares devidamente fazendo uma pequena viagem a Assunção. Durante dois meses,
recuados das fachadas –, bem como os componen- o arquiteto suíço se empenhou em difundir aqui suas ideias
acerca do urbanismo e da arquitetura moderna. Como resultado
tes e equipamentos das casas, tais como janelas, das notas das palestras na América do Sul, surge Précisions sur
un État Présent de l’Architecture et de l’Urbanisme, publicado
portas e mobília, foram pensados integralmente em 1930, seu segundo livro oriundo de conferências (o primeiro
para serem pré-fabricados, permitindo assim inú- foi Une Maison – Un Palais, de 1928). Segundo Elizabeth Har-
ris, Le Corbusier abrira um precedente ao transformar palestras
meras combinações e disposições internas. improvisadas em textos impressos. In: HARRIS, Elizabeth. Le
Corbusier: Riscos Brasileiros. São Paulo: Nobel, 1987, p. 27.
Em relação às casas operárias de Monlevade,
62 Apesar do projeto de Le Corbusier para a Maison Errázuris
Farès El-Dahdah59 aponta para um projeto de Le não ter sido realizado, em julho de 1934 foram publicadas na
revista americana “Architectural Records” imagens de uma casa
construída em 1933, nos arredores de Tókio, cujo corte se asse-
melha àquele proposto por Le Corbusier para a casa no Chile.
58 Le Corbusier. Op. Cit., 2006, p. 23.
O autor do projeto é o arquiteto tcheco Antonin Raymond,
59 Notas do seminário Lucio Costa Arquiteto. Museu Nacional radicado nos Estados Unidos, que trabalhou com Frank Lloyd
da República, Brasília-DF, 28 e 29 de julho 2010. Wright e posteriormente emigra para o Japão, onde atualmente
111
48. Residência Henrique Xavier - Urca, Rio de Janeiro Ao comentar sobre uma maior sofisticação pla-
Oscar Niemeyer, 1935-1936.
Fonte: Roberto Segre ; José Barki (2008) nimétrica e espacial no projeto de Niemeyer para
a casa Henrique Xavier (1935-36), na Urca, Rio de
Janeiro, Roberto Segre e José Barki assim se ma-
nifestam:
Segundo Frampton, o gênio de Oscar Niemeyer ácidas considerações sobre a ‘escola brasileira’.77
atingiu seu ponto culminante em 1942, quando, aos A partir do reconhecimento internacional, essa
trinta e cinco anos de idade, criou sua primeira obra escola passa a ser objeto de críticas contundentes,
- e nem sempre bem recebidas pelos arquitetos bra-
terpretou a concepção corbusiana de uma promena- sileiros, como mostra a resposta de Lucio Costa às
de architecturale em uma composição espacial de declarações de Max Bill publicadas na revista Man-
extraordinário equilíbrio e vivacidade.75 chete em julho de 195378, chegando ao seu apogeu
Oscar com a construção de Brasília, projeto de Lucio Cos-
Niemeyer era lançado como o grande arquiteto, om- ta de 1957, cujo plano, segundo Frampton, levou o
bro a ombro com os “notáveis” dos países desen- desenvolvimento progressivo da arquitetura brasilei-
ra a um ponto crítico.79
Enquanto isso, em São Paulo, o cenário cultural
se desenvolvia rapidamente a partir de alguns fatos
que merecem destaque. Em 1947 foi fundado o Mu-
seu de Arte de São Paulo, o MASP, idealizado pelo
empresário e jornalista Assis Chateaubriand e pelo
jornalista e crítico de arte italiano Pietro Maria
Bardi. Sua nova sede, projetada por Lina Bo Bardi
na promissora Avenida Paulista em 1957, só seria
inaugurada em 1968, em plena ditadura militar.
Em 1948, a Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo da USP inicia suas atividades, originada do
curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécni-
ca da mesma Universidade. A primeira monografia
60. Museu de Arte de São Paulo - Lina Bo Bardi, 1957. 61. Casa de Vidro - São Paulo | Lina bo Bardi, 1951.
Fonte: Marcelo Ferraz (1997) Fonte: C. Eduardo Comas; Miquel Adrià (2003)
sobre um arquiteto brasileiro – The Work of Oscar celeste do piso, pelas cortinas a substituir pare-
des, pela sutil curva da cobertura e pelo cuidado
Niemeyer, foi publicada em 1950 por Stamo Papa-
em aconchegar... uma casa para receber pessoas.
afora Niemeyer, so- 82
“Miesiano”, mas já abrasileirado pela natureza recem anseios sociais divergentes, sensibilidade e
que o acolhe, mais orgânico e feminino. Feminino formação artística distintas, além do conhecimento
pela delicadeza dos detalhes, pelo vidrotil azul técnico aprimorado, comum a todos. Distante da
pretensa hegemonia difundida pela Escola Carioca,
65. Casa Rio Branco Paranhos - Vilanova Artigas, São 66. Casa Berta Gift Stirner - Vilanova Artigas, São
Paulo, 1943. Paulo, 1940.
Fonte: Marcelo Ferraz (1997) Fonte: Adriana Irigoyen (2002)
122
67. Residência Giulio Pasquale - Vilanova Artigas, São Paulo, 1939 | fachada, corte e plantas.
Fonte: Adriana Irigoyen(2002)
Em seus primeiros anos de escritório próprio, des- Em seus projetos de 1939, Artigas tenta imitar
de 1938, em seus projetos, Artigas buscou respon-
em duas ocasiões a Casa da Rua Santa Cruz88. Apesar
der a suas próprias exigências. As oportunidades,
em muito, incidiram sobre residências que, de um da afirmação de Dalva Thomaz refletir uma possível
modo ou de outro, relacionam-se entre si. E esse incoerência no discurso do jovem arquiteto, este
passou a ser chamado de seu “período wrightia-
modelo de temática corbusiana será alvo de duras
no”, denominação de que Artigas, em certos mo-
mentos, mostrou não gostar. Isso, provavelmente, críticas nos anos seguintes. A base dessas críticas
pelo fato de esse seu fazer não ter sido visto como estariam relacionadas à maior lição que aprendera
um aprendizado consciente e intencional; o trein-
com a obra de Frank Lloyd Wright: a verdade dos
amento de um discípulo a partir de um mestre, e
não uma simples atitude de cópia. A falta desse materiais. Nesse sentido, em 1942, através de uma
tipo de reconhecimento poderia esconder uma obra de pequenas dimensões, implantada em lote
postura séria e consequente. Tratava-se de um
de esquina a 45º, Artigas pôde formular seu con-
fazer e uma autoria principiantes, tendo o estudo
como embasamento, além do bom senso de per-
ceber que a criação demanda referências, conheci-
mentos e, daí, mesmo de início, um certo saber.87
História, UnB. Brasília, 2006, p. 151.
88 Nas casas Ottoni de Arruda Castanho e Giullio Pasquale,
87 JUCÁ, Christina Bezerra de Mello. João Batista Vilanova segundo Dalva Thomaz, apud Pedro Fiori Arantes. Arquitetura
Artigas, arquiteto: a gênese de uma obra (1934-1941). Disser- Nova: Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre, de Artigas
tação Mestrado Inst. de Ciências Humanas, Departamento de aos mutirões. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 13.
123
Após abandonar uma primeira fase de forma- Segundo Sylvia Ficher e Marlene Acayaba, assim
lismos acadêmicos (1929-1938), as casas de Rino
Levi passam a dialogar mais com o lote na qual se
91 FERNANDES, Fernanda. Rino Levi: a casa. Revista Projeto, n.
111, junho 1988, p. 126.
71. Casa Milton Guper - Rino Levi | São Paulo, 1951.
Fonte: C. Eduardo Comas; Miquel Adrià (2003) A volumetria refinada e austera das residência
do arquiteto (1951) e Oscar Americano93 (1952)
na Escola de Engenharia Mackenzie, se distinguiu compartilham um programa típico de uma família
por seus projetos residenciais. Entretanto, ao con- de classe média alta de São Paulo dos anos 50,
trário de Levi, buscou sempre soluções que integras- muito bem relacionada socialmente, e pioneira na
sem a obra aos jardins externos. Em sua residência ocupação urbana do novo bairro. As casas, sempre
no Morumbi, planta e elevação são retangulares, muito bem organizadas dentro de plantas de base
retangular, geralmente contavam com edifícios de
estrutura modulada de vãos iguais. A independência apoio, como garagens, ateliê e escritórios, espalha-
entre elementos de sustentação e vedação permitiu dos pelos imensos terrenos nos quais se inserem.
a criação, por meio de cheios e vazios, de espaços
semi-abrigados que integram a casa ao exterior.92
-
78. Residência Antônio Maurício da Rocha - David
Libeskind | São Paulo, 1957 | fachada frontal. geniosa y desfasadamente, con la roca de granito
Fonte: Luciana Tombi Brasil (2007) como muro de contención, un mínimo de terraplén
y un máximo de conveniencia: planta libre extro-
O volume e a sensação de peso definidos pela vertida a la brasileña en la parte superior, y cons-
trucción y compartimentación tradicionales en la
altura da platibanda na casa José Felix Louza, tér-
rea e assentada no solo, suportando aquele tabu-
leiro “maciço”, contrasta com a ideia de leveza e
continuidade transmitidas pelo partido adotado na en las capacidades nutritivas del entorno.99
até a Marquise do Parque Ibirapuera (1951), reafir- cial na carreira de Oscar Niemeyer: o projeto para o
Museu de Arte Moderna de Caracas, de 1955.
80. Croquis Oscar Niemeyer | Ibirapuera / Restaurante 81. Casa das Canoas - Oscar Niemeyer | Rio de
(casa de baile) e Hotel Pampulha / Residência Canoas. Janeiro, 1953 | plantas do térreo e semi-enterrado.
Fonte: Jean Petit (1995) | acima. Fonte: Módulo n. 2, ago 1955
131
Segundo Yves Bruand, essa obra, bastante sig- Essa nova tomada de consciência da hierarquia
dos valores arquitetônicos acarretou forçosamente
nificativa, deixa entrever imediatamente a conti-
uma profunda mudança de estilo. Vê-se uma sim-
nuidade da obra do arquiteto e a mudança brusca
ocorrida. Segundo Bruand, essa “mudança brusca”, concentração da atenção numa forma única,
original, mas de clareza ofuscante. A composição
empreendida em prol de uma maior concisão e pu-
com base em elementos múltiplos, até então ca-
reza ao elaborar os novos projetos, decorre de uma racterística do estilo de Niemeyer, desaparece em
viagem à Europa feita pelo arquiteto, na qual per- proveito de uma massa compacta e monumental,
que se destaca nitidamente da paisagem e se im-
corre todo o Velho Continente, de Lisboa a Moscou,
põe à natureza, ao mesmo tempo em que orgulho-
e o que viu foi para ele uma revelação.100 samente a completa.101
100 Yves Bruand. Op. Cit., 2005, p. 181. 101 Idem, p. 182.
132
Os reflexos dessa nova postura vão se expressar da grandeza e da vitalidade do país, de sua capaci-
em grade estilo com os projetos de Niemeyer para
Brasília, já demonstrados a partir de 1956 com a A ideia que ela representava só podia desempenhar
construção do Catetinho e com os projetos para sua missão de galvanizar a opinião pública, através
o Palácio da Alvorada e Brasília Palace Hotel. Com de um êxito arquitetônico grandioso que levasse a
efeito, a nova capital foi concebida, no espírito de marca de uma personalidade forte.102
seu fundador, como um símbolo do desenvolvimento
lação da solução da moradia com o problema da papel social frente aos vultosos problemas hab-
- itacionais e urbanos do país na década de 60.107
ram parte das propostas do Seminário de 1963,
não foram aspectos considerados na política efeti-
Nesse panorama, algumas contribuições me-
vamente implementada pelo BNH ao longo de sua
existência. Entretanto houve um momento inicial recem destaque por representar iniciativas, não
da instituição onde as promessas contidas na ori- isoladas, de uma produção em larga escala social
-
e tecnicamente comprometida com a realidade do
itação continuaram a estimular a produção dos
arquitetos e engenheiros, ansiosos por realizar seu país, cujo déficit habitacional ultrapassava 3,5
milhões de unidades à época da criação do BNH.
Dentro dos princípios da pré-fabricação em madei-
ra, destacam-se as experiências de Severiano Porto
com a arquitetura escolar em Manaus, em 1965, e
de Sérgio Bernardes, no Rio de Janeiro, à frente
da empresa Oca – arquitetura e interiores Ltda.,
84. Escolas pré-fabricadas de madeira - Severiano 86. Construção do Anhembi - Miguel Juliano e Jorge
Porto | Manaus, 1965. Wilheim, São Paulo, 1970-1973.
Fonte: Ana Paula Koury (2005) Fonte: www.anhembi.com.br/40anos
85. Painél pré-moldado em taipa empregado em 87. Construção do Anhembi | Miguel Juliano e Jorge
Cajueiro Seco-PE | Acácio Gil Borsoi, 1965. Wilheim, São Paulo, 1970-1973.
Fonte: Ana C. de Souza Bierrenbach (2008) Fonte: www.anhembi.com.br/40anos
desde as redes de infraestrutura até os projetos Para Roberto Segre, o século XX estava destina-
dos edifícios, foram propostas soluções inovadoras
do a ser associado aos prédios de apartamentos.112
Contudo, por uma necessidade individual da bur-
este projeto criou nos padrões de solução para o guesia em se isolar e desfrutar de espaços mais
problema habitacional.110
amplos, as casas retomam seu lugar de destaque
na história da arquitetura, mesmo diante do cená-
Ela acrescenta que o projeto se tornou um pa-
rio de reconstrução na Europa do pós guerra, mo-
drão para a produção do BNH e que as soluções pro-
mento em que as monumentais Unités d’Habitation
postas, integradas à produção industrial, obtiveram
de Le Corbusier surgem como modelos edificados
resultados no desenvolvimento de novos produtos
da dinâmica urbana; e da confiança irrestrita, no
industriais. Através de pesquisas sobre espaços mí-
Brasil, de que os conjuntos habitacionais seriam
nimos, foi desenvolvido o projeto de equipamentos
a solução para o problema da habitação no país.
domésticos próprios que chegaram a ser testados
Segundo Segre:
como protótipos.111
O surgimento das metrópoles, o aumento ace-
lerado da população e a presença dos operários
nas cidades, assim como o surgimento do siste-
110 Sylvia Ficher. In: Ana Paula Koury. Op. Cit., 2005, p. 216.
111 Idem, Ibidem. 112 Roberto Segre. Op. Cit., 2006, p. 6.
137
-
cial urbana e a imagem do habitat coletivo e
da célula habitacional mínima integrada em
grandes conjuntos de blocos de apartamen-
tos ou de arranha-céus. Imagens presentes
nas propostas utópicas de Le Corbusier , Walter
Gropius e Ludwing Hilberseimer na Europa; Moi-
93. Res. César Prates - piscina e fachada dos quartos. 94. Res. César Prates - pergolado e jardim de entrada.
Fonte: Joana França (2011) | acima Fonte: Joana França (2011)
139
95. Residência César Prates - João Filgueiras Lima | Brasília, 1961 - escada de acesso ao pavimento superior e
painéis pivotantes em madeira da sala de jantar.
Fonte: Joana França (2011)
espaços sombreados para desfrute dos moradores pelo governo sul africano no final dos anos 70 para
e visitantes, prolongando-se como extensões da servir de moradia para o alto escalão de seu corpo
varanda dos fundos e do jardim de entrada. A pre- diplomático na Capital Federal, a casa atualmente
sença de materiais rústicos como a pedra bruta e a encontra-se em péssimo estado de manutenção,
madeira valorizam os ambientes, em razão de seu funcionando como depósito de material da Embai-
emprego cuidadoso e tecnicamente apurado. Prova xada.
disso são os grandes painéis treliçados em madeira Tal qual a Residência César Prates, a Residência
para as janelas do pavimento superior e portão da Paulo Mendes da Rocha ocupa um lote de esqui-
garagem e a escada suspensa de acesso aos quar- na, no qual localiza-se a casa de sua irmã, cujo
tos, primorosamente executada. projeto é semelhante. As casas gêmeas construídas
O muro de alvenaria de pedra que delimita a no bairro Butantã, em São Paulo, evidenciam de
fachada sul da residência possuía um sistema de forma clara e objetiva os principais aspectos físicos
gotejamento em sua face voltada para a sala de e conceituais do Brutalismo paulista. Não há espa-
estar onde a água escorria pelas pedras como se ço para dúvidas. Segundo Yves Bruand, o concreto
dali brotasse naturalmente, auxiliando na manu- tanto triunfa dentro como fora: paredes, vigas e laje
tenção da umidade do ar no interior da casa, espe- da cobertura são deixados como saem das fôrmas,
cialmente nos meses de seca em Brasília. Comprada de acordo com um uso, agora bem implantado, que
140
96. Residência Paulo Mendes da Rocha - casa do arquiteto | São Paulo, Butantã, 1964-1966.
Fonte: Carlos Eduardo Dias Comas; Miquel Adrià (2003)
114 Yves Bruand. Op. Cit., 2005, p. 315. 115 Idem. Ibidem.
141
98. Residência Olga Baeta - Vlanova Artigas e Carlos como se negando o espaço público, no caso das
Cascaldi | São Paulo, Butantã, 1956.
Fonte: FERRAZ, Marcelo (1997) duas outras.
◆
100. Residência Taques Bittencourt II - Vilanova
Artigas e Carlos Cascaldi | São Paulo, 1959.
Fonte: Marcelo Ferraz (1997) 116 Vilanova Artigas. Depoimento. A Construção em São Paulo.
In: Jorge Marão Carnielo Miguel. Op. Cit., 2003, p. 98.
117 Pedro Fiori Arantes. Op. Cit., 2002, p. 23-26.
142
como ‘arquiteto-presidiário’.118
A casa-protesto de Artigas, organizada em tor-
no de um pátio interno coberto por claraboia, reú-
ne referências espanholas com teor político. Sobre
o resultado, descreve o autor:
o início da década de 70), no escritório da 714 lado, o prédio adquiriu leveza e o caráter de dig-
Norte, Lelé coordenou uma equipe de trinta ar- nidade que o programa exige.123
quitetos, realizando um considerável volume de
trabalho.122
Sobre as questões relacionadas à linguagem
adotada nesse projeto, Ana Gabriella explica que:
A residência para Ministro de Estado foi cons-
truída em um dos bairros mais nobres da Capital Embora seja descendente da Linha Carioca e
Federal, o Lago Sul. O local conhecido como Penín- grande admirador de Niemeyer, Lelé deixou-se
seduzir pela estética racional da linha paulista,
sula dos Ministros ainda abriga residências oficiais
fazendo do concreto o seu “mármore” e o maior
do alto escalão dos Três Poderes. O programa foi responsável pela expressão plástica da sua obra.
distribuído entre arquitetos da cidade, e coube a As grandes estruturas, como os pilares ao estilo da
Lelé realizar a casa para o então Ministro do Plane-
jamento. Posteriormente, a casa foi ocupada pelo do avanço da engenharia no âmbito da tecnologia
chefe do Sistema Nacional de Informações (SNI), do concreto armado.124
órgão criado em 1964 no governo Médici.
A concepção da casa fundamenta-se prioritaria- Ao comentar sobre a desenvoltura estrutural
mente na solução estrutural adotada, na qual duas do projeto e sua adequação ao tema da habitação,
vigas vierendeel em concreto armado sustentam o Lelé assim se manifesta:
primeiro pavimento, destinado ao convívio íntimo
A beleza está na estrutura, pois foi um aspecto
da família e apoiado, como se apenas tocasse, em
robustos pilares na forma de troncos de pirâmide. coisa tão destorcida, mas eu acho que devem
existir projetos dessa natureza. Eu considero essa
Encarada posteriormente como uma demonstração
das possibilidades técnicas contemporâneas, o pro- medida que ela é encarada como tal, o arquiteto
jeto representou um ousado exercício de arquite- -
paços são grandiosos. Vejo essa obra como um de-
tura e, sobretudo, uma conquista da engenharia.
Em publicação tardia do projeto na revista Módulo, um ambiente adequado para morar. Eu acho uma
Lelé destaca os seguintes pontos: distorção alguém morar numa casa dessa com es-
paços tão grandes.125
O piso principal da casa foi elevado para aprovei-
-
A estética brutalista trazida pelo uso irrestrito Em ambos os projetos, Joaquim Guedes mostra
do concreto aparente e das estruturas em evidência sua habilidade ao compor o espaço doméstico em
mostrava todo seu vigor em São Paulo nos anos terrenos de acentuado declive, lançando mão de
60 e 70, sobretudo nas residências projetadas por rígidos volumes ortogonais, complementados por
arquitetos oriundos da Faculdade de Arquitetura e um gracioso tratamento paisagístico. Ao descrever
Urbanismo da USP. Segundo Yves Bruand, dentre os o primeiro projeto, Marlene Acayaba assim se ma-
discípulos de Artigas que seguiram a veia brutalis- nifesta:
ta, traçada a partir de 1955, Joaquim Guedes foi o
Esta casa, um edifício de três andares suportados
que chegou mais próximo da fonte original, por suas
por quatro pilares centrais num lote com acentua-
preocupações com o equilíbrio nos contrastes.126 do declive, foi implantada obedecendo ao recuo
Esse equilíbrio, ao qual se refere Bruand, está cla- de frente, a uma certa distância da rua e ligada
a esta por um pontilhão. As fachadas laterais, em
ramente identificado na separação honesta entre
face da exiguidade do terreno original, são pare-
os materiais estruturais e de fechamento, demons- des cegas. Nos fundos, voltada para noroeste e
trado, por exemplo, nas residências Antônio Cunha com vista privilegiada, a fachada dominante é
toda envidraçada.127
Lima (1958-63) e Liliana Guedes (1970-75).
107. Res. Antônio Cunha Lima - Joaquim Guedes, São 108. Residência Liliana Guedes - Joaquim Guedes, São
Paulo, Pacaembu, 1958-1963 | vista da piscina. Paulo, 1970-1975 | corte longitudinal.
Fonte: Marlene Acayaba (1986) Fonte: Marlene Acayaba (1986)
109. Res. James King - Paulo M. da Rocha, São Paulo, 111. Residência Fernando Millan - Paulo M. da Rocha
Pacaembu, 1968-1970 | vista da piscina. São Paulo, Cidade Jardim, 1970-1974 | estar
Fonte: Marlene Acayaba (1986) Fonte: Marlene Acayaba (1986)
plano linear, que inclui no fundo um área quadra- Ao analisar os dois protótipos construídos em
da de meio de quadra. [...] O setor de serviço,
São Paulo, conhecidos como “casas-bola”, uma no
com saída independente, reúne em torno do pátio
pergulado os dormitórios de empregada, a lavan- Itaim Bibi (1974-79) e outra no Morumbi (1985),
deria, a copa e a cozinha, com área mínima. Na Roberto Segre compara seu autor com alguns pre-
cursores da corrente utopista:
jantar iluminada por uma pérgula, o sofá e a la-
reira, organizam o ambiente.129
Longo é, de fato, o único arquiteto utópico do
Brasil. A sua concepção tem raízes na cultura da
ilustração do século XVIII e, ao mesmo tempo,
prenuncia um entorno futurista. A primeira ima-
gem de uma casa esférica foi proposta por Claude
Nicolas Ledoux em 1806, para os guardas rurais
em Maupertuis. Era a racionalidade absoluta,
oposta à liberdade expressiva da natureza. Mas
no caso de Longo, é a crítica à prisão cartesiana
dos prédios de apartamento das grandes cidades.
Neste projeto o íntimo se integra ao global. Na es-
fericidade, resume-se ao cósmico, a calota celeste,
a representação do universo. [...] Esta esfera, que
112. Residência Tomie Ohtake - Ruy Ohtake | São
acomoda superfícies contínuas acompanhando o
Paulo, Campo Belo, 1966-1968 | estúdio.
Fonte: Marlene Acayaba (1986) movimento do corpo nas funções do cotidiano, é
um grito contra a angústia da vida urbana pau-
listana, contra a desumanidade das casas com
Distanciando-se dessa estética do brutalismo,
espaço anônimos e rígidos.131
as casas projetadas pelo arquiteto Eduardo Longo,
de plástica singular e soluções espaciais não con- Os espaços “anônimos e rígidos” construídos
vencionais, constituem verdadeiras experiências pela arquitetura moderna em São Paulo e combati-
rumo ao rompimento com certos paradigmas da dos por Eduardo Longo são os mesmos defendidos
arquitetura moderna. Em seus projetos residenciais por Artigas, cuja definição de paisagem urbana é
durante a fase de juventude, Longo evidencia traços radicalmente oposta, para quem a casa é entendida
característicos de liberdade nos espaços internos e de como um objeto construído com quatro fachadas
organicidade dos ambientes. A postura radical apa- mais ou menos iguais132, e que, apesar de suas ca-
rece depois do contato do arquiteto com as ideias racterísticas próprias, seriam responsáveis por ga-
rantir conjuntos de unidades ao longo dos bairros.
do movimento pós-moderno e do hipersensualismo. Segundo Marlene Acayaba, no século XX, além
Na fase áurea de suas produções, caracterizada pela da cidade, a habitação foi o grande tema dos ar-
experiência de criação do ‘apartamento bola’ e seus
protótipos, o arquiteto paulista estima por projetos
que possam atingir um público maior.130 quitetura e Urbanismo. Universidade Presbiteriana Mackenzie.
São Paulo, v. 4, n. 1, 2004, p. 47.
129 Idem, p. 261. 131 Roberto Segre. Op. Cit., 2006, p. 186.
130 Edite Galote Rodrigues Carranza e Gilda Collet Bruna. As 132 Vilanova Artigas. Depoimento. A Construção em São Paulo.
Casas de Eduardo Longo. Cadernos de Pós-Graduação em Ar- In: Jorge Marão Carnielo Miguel. Op. Cit., 2003, p. 98.
149
- ◆
sier, seria genérica. Contudo, para ambos, a unida-
de de habitação só podia ser pensada a partir de Em meados dos anos 60, em um contexto te-
uma estrutura urbana por vir.” 133
Tendo em vista as órico político e econômico marcado pela forte
inúmeras experiências, nem sempre bem sucedidas, presença de Artigas em São Paulo, pelo caráter
com conjuntos habitacionais inseridos em novos desenvolvimentista dos governos militares e pelo
contextos urbanos, tanto no Brasil como no exte- aquecimento considerável do mercado da cons-
rior, na prática, afirma Marlene, “a casa é muitas trução civil, sobretudo após Brasília; um grupo de
arquitetos, ex-alunos contemporâneos da FAUUSP,
134
experimentar. resolveu consolidar suas ideias inovadoras em torno
Para Lelé, o projeto de uma casa é algo tão pes- de um programa que ficou conhecido como Arqui-
soal que o arquiteto não se arriscaria a fazê-lo para tetura Nova.
desconhecidos. Com exceção da residência para Mi-
nistro de Estado, de 1965, Lelé só projetou casas
para amigos.
135 Entrevista realizada pelo autor com o arquiteto Lelé em
133 Marlene Milan Acayaba. Op. Cit., 1986, p. 16. IBTH, Salvador-BA.
134 Idem, p. 15. 136 Idem.
150
A parceria entre Flávio Império, Rodrigo Lefèvre dos anos sessenta, após a conclusão das experiên-
e Sérgio Ferro baseou-se nas divergências em rela- cias construtivas das casas para Boris Fausto e Ber-
ção às orientações de Vilanova Artigas recebidas nardo Issler, projetadas por Sérgio Ferro em 1961.139
na FAU, e na crítica a uma política de governo que Sobre este assunto, completa a autora:
considerava o atual estágio de desenvolvimento do
As casas projetadas por Flávio Império, Rodrigo
Brasil uma mera etapa, a ser superada em momento Lefèvre e Sérgio Ferro trazem diversas inovações
oportuno, dependente do atraso e do subdesenvol- para a concepção tradicional de moradia. A cober-
vimento. Essa atuação coletiva, segundo Ana Paula tura em abóbada, além de ser uma nova proposta
espacial, constitui uma solução construtiva ela-
Koury, permitiu a consolidação de uma prática ino- borada para enfrentar as demandas de produção
vadora, uma legítima e original contribuição para a de moradia em larga escala, pois poderia ser re-
arquitetura brasileira contemporânea.137 alizada com poucos recursos. [...] As obras reali-
Um dos pontos chaves do debate público gerado favorecidas pela simplicidade dos programas e
no seio do grupo Arquitetura Nova diz respeito ao pela proximidade com os clientes, na maior parte
processo de produção, organização e hierarquia do amigos e familiares, situação esta que possibili-
tou aos autores experimentarem e consolidarem
canteiro de obras, onde o uso de técnicas constru- -
tivas simples e acessíveis garantiriam a realização trutivos, espaciais e estéticos.140
da arquitetura em larga escala. Opunham-se às vi-
-
nicas [...] ao passo que, na Arquitetura Nova, [...]
a formulação do projeto baseava-se no processo de
manufatura, uso de materiais baratos e aplicação de
técnicas construtivas elementares que dependiam de
poucos recursos para se realizarem.138 114. Residência Bernardo Issler - Sérgio Ferro
O sistema construtivo desenvolvido pelos três Cotia-SP, 1961.
Fonte: Ana Paula Koury (2003)
arquitetos para realização de suas obras, sobretudo
as residências, e que de certa forma caracterizou
técnica e plasticamente a atuação do grupo ba- A espacialidade obtida por Sérgio Ferro na Re-
seou-se no emprego das abóbadas. Ana Paula Koury sidência Bernardo Issler será aprimorada por Mar-
explica que a cobertura em abóbada, principal ino- cos Acayaba na casa que realiza para sua cunhada,
vação construtiva e o elemento mais marcante da em 1972, em São Paulo. Nessa obra, desde 1974
Arquitetura Nova, será adotada como solução prefe- ocupada pelo arquiteto e sua família, destacam-se
rencial dos projetos realizados a partir dos meados o agenciamento dos ambientes em meios níveis e
uma forte integração com o espaço circundante.
137 Ana Paula Koury. Grupo Arquitetura Nova: Flávio Império,
Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro. São Paulo: Romano Guerra Edi-
tora: EdUSP: FAPESP, 2003, p. 26. 139 Idem, p. 70.
138 Ana Paula Koury. Op. Cit., 2003, p. 52. 140 Idem, p. 67.
151
115. Residência Marcos Acayaba - casa do arquiteto | São Paulo, Cidade Jardim, 1972.
Planta pavimento térreo e corte transversal.
Fonte: Marcos Acayaba (2007)
152
116. Residência Marcos Acayaba - casa do arquiteto 117. Residência Marcos Acayaba - casa do arquiteto
São Paulo, 1972-1975 | diferença de nível entre o São Paulo, 1972-1975 | difereça de nível entre o
estar e circulação dos quartos. estar e a sala de jantar (bloco de serviços).
Fonte: Marcos Acayaba (2007) | acima. Fonte: Marcos Acayaba (2007) | abaixo.
153
-
dando. Essa que é a verdade. Então a casa, ela
não tem uma proposta construtiva com condições
142 João Filgueiras Lima. João Filgueiras Lima, arquiteto: 143 Entrevista realizada pelo autor com o arquiteto Lelé em
pensamento e obra. Módulo, n. 57, fev. 1980, p. 79.
155
Entre 1971 e 1978, Lelé vai projetar quatro ca- ortogonalidade, resultado do sistema construtivo
sas, com linguagens e concepções distintas, bas- misto adotado, em concreto e alvenaria de tijolo
tante representativas das pesquisas que realizaria aparente, elementos marcantes da identidade visu-
ao longo daquela década, marcada pela experimen- al da casa.
tação plástica, estrutural e construtiva de suas pro- Os ambientes internos foram distribuídos se-
posições. Em ordem cronológica, são elas: Residên- quencialmente ao longo de três linhas de pilares
cias Rogério Ulyssea (1971-1973), Nivaldo Borges robustos, de base quadrada com 40cm de lado e
(1972-1978) e José da Silva Netto (1973-1976) em revestidos de tijolos, sobre os quais repousam as
Brasília, e a Residência Mário Kertész (1977), em lajes abobadadas de arco abatido do pavimento su-
Salvador. perior e da cobertura, sendo esta última dotada de
claraboias retangulares de tamanhos distintos, in-
do Setor de Habitações Individuais Sul (Lago Sul) ternamente delimitadas por um ripado de madeira
em Brasília, em terreno plano de aproximadamen- fixo, atualmente em ferro.
te 800m (20x40m), a Residência Rogério Ulyssea
2
A fachada sudoeste, voltada para a rua, é com-
apresenta uma volumetria simples e marcada pela pletamente fechada e sem janelas, não há comu-
nicação visual com o interior da residência, com
123. Res. Rogério Ulyssea - João Filgueiras Lima
Brasília, Lago Sul, 1971-1973 | fachada frontal exceção do terraço do quarto de hóspedes. Em
Fonte: Joana França (2011) primeiro plano, destaca-se o portão de acesso à
156
124. Residência Rogério Ulyssea - João Filgueiras 125. Res. Rogério Ulyssea - João Filgueiras Lima
Lima Brasília, Lago Sul, 1971-1973 | sala de estar. Brasília, 1971-1973 | mezanino suspenso por cabos.
Fonte: Joana França (2011) | acima Fonte: Joana França (2011)
157
garagem, contíguo ao muro que delimita o pátio de da deste por uma varanda, como se estabelecendo
serviço, para onde se voltam cozinha, lavanderia uma espaço de transição entre a massa ortogonal
e sala de jantar. A entrada social, realizada pela construída e a natureza de formas livres. Hoje essa
- piscina não existe mais, tendo sido substituída na
correr lateralmente um caminho, descoberto, até a reforma que a ampliou e a remodelou em forma de
porta que dá acesso à sala de estar. raia, juntamente com o acréscimo de um novo es-
Ao adentrar o espaço sob a laje do mezanino, paço de lazer.
percebe-se uma riqueza espacial obtida pelo agen- Os quartos da família foram posicionados no
ciamento de elementos como o pé-direito duplo, nível térreo, em área reservada e protegida visu-
o espelho d’água interno, onde se localizava uma almente da sala por grandes painéis treliçados em
saleta semi circular rebaixada, posteriormente de- madeira, atrás dos quais se esconde o corredor de
molida, e, principalmente, uma integração visual acesso aos dois quartos dos filhos e à suíte do
completa com os jardins de fundo, possibilitada casal. Todos os quartos se voltam para um jardim
pelos extensos panos de vidros contínuos da fa- comum que se prolonga junto ao muro do vizinho
chada nordeste. Originalmente, a piscina circular 126. Res. Rogério Ulyssea - João Filgueiras Lima
se desenvolvia em direção aos jardins de fundo Brasília, 1971-73 | vista da piscina a partir do
acréscimo (2009) em estrutura metálica.
como uma continuidade do espelho d’água, separa- Fonte: Joana França (2011)
158
129. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | perspectiva aérea.
Fonte: Módulo, n. 70, mai. 1982.
Lelé desenvolve a casa para o amigo Mário Kertész, estar, jantar, serviços e garagem foram localizados
em 1977, utilizando esse sistema construtivo para no térreo, ficando os quartos, deck, terraço e pis-
contenção das cargas verticais provenientes das la- cina reservados no andar superior. Segundo Lelé:
jes de piso e cobertura, e das horizontais resultan-
A casa de Mário Kertész, [...] é uma casa com um
tes dos arrimos.
programa muito especial, porque ele estava sendo
Ao contrário da maioria das casas projetadas prefeito, tinha uma atividade formal que ele tinha
por Lelé, isoladas em grandes lotes e implantadas que manter na casa. Naquela época não tinha ha-
em áreas planas, a Residência Mário Kertész se in-
atender as pessoas, politicamente, nesse espaço.
sere no tecido urbano da capital baiana, em um Ela tem umas peculiaridades que não são bem a
terreno exíguo e bastante acidentado, em aclive no personalidade do Mário. Foi a personalidade do
Mário naquele período. [...] Foi um período da
sentido da rua para o fundo do lote, com diferença
vida do Mário que ele era político, prefeito, então
da ordem de oito metros. aquela casa tinha assim esse caráter muito for-
A organização da casa, distribuída em dois pa- mal, de receber pessoas, tinha porta que fechava
para poder isolar as pessoas lá em cima,...144
vimentos, foi pensada tirando partido do desnível
do terreno, de forma a garantir uma compatibili-
dade entre a privacidade da família e as atividades 144 Entrevista realizada pelo autor com o arquiteto Lelé em
130. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | perspectiva sala de estar.
Fonte: Módulo, n. 70, mai. 1982.
131. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | planta do nível inferior.
Fonte: Módulo, n. 70, mai. 1982.
161
132. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | perspectiva da área de lazer e pátio.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
133. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | planta do nível superior.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
162
134. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | fachada frontal.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
135. Res. Mário Kertész - João Filgueiras Lima 136. Res. Mário Kertész - João Filgueiras Lima
Salvador, 1977 | salas de jantar e estar. Salvador, 1977 | vista do pátio a partir da piscina.
Fonte: Giancarlo Latorraca (1999) Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
163
137. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | corte longitudinal passando pela
garagem e área descoberta de serviço.
Fonte: Módulo, n. 70, mai. 1982 | acima
138. Residência Mário Kertész - João Filgueiras Lima | Salvador, Pituba, 1977 | corte longitudinal passando pelo
pátio (escalonado) e escritório.
Fonte: Módulo, n. 70, mai. 1982
As peças pré-moldadas utilizadas ao longo das As lajes de piso e cobertura , cujo vão máximo é de
8m, terão nervuramento invertido a cada 90cm,
divisas e nas repartições internas da casa possuem
formando caixões fechados, ora por placas pré-
duas variações, uma típica e outra de canto, cujas moldadas de concreto para receber as pavimen-
dimensões 90x35x3 cm permitiram o transporte tações, ora por pranchões de madeira (piso do
com a espessura final de 20cm. oeste, para onde se voltam dois dos três quartos lo-
140. Residência R.S - Severiano Porto | Tarumã-Açu, AM, 1978 | perspectiva geral.
Fonte: Módulo, n. 53, mar/abr. 1979
141. Residência R.S - Severiano Porto | Tarumã-Açu, AM, 1978 | corte transversal.
Fonte: Módulo, n. 53, mar/abr. 1979
166
142. Residência Nivaldinho - João FIlgueiras Lima | Brasília, 1985 | perspectiva do conjunto.
Fonte: Arquivo Nelson Fonseca
-se um silencioso hiato na década seguinte quando O partido adotado, cujas característi-
ca principal é o seccionamento da cons-
o assunto são casas. O único registro encontrado
trução em três corpos justapostos (estar-
nessa época foi a proposta, não realizada, de um
projeto em Brasília para a residência Nivaldo Borges possibilitando o ajuste futuro às inevitáveis trans-
formações do programa familiar de um casal jovem.
Júnior, ou simplesmente Nivaldinho, como aponta
Lelé em seu anteprojeto, elaborada pelo arquiteto Sob o ponto de vista construtivo, adotou-se um
em 1985 como presente de casamento para o filho sistema de cobertura em abóbodas de argamassa
armada, pré-fabricadas em 2 metades e ligadas
do amigo advogado.
no centro do vão por concretagem no local. Es-
Os desenhos, inéditos, foram cedidos gentil- ses conjuntos se apoiam em calhas de concreto
mente pela família e serão apresentados integral- executadas sobre duas paredes paralelas de al-
venaria aparente, distantes entre si cerca de
mente nos Anexos. Nesta pequena “casa-pavilhão”,
20cm. Esse espaço entre elas, por onde correm
formada por três blocos longitudinais conectados as tubulações, é preenchido com solo-cimento.
diretamente pelos vãos das portas, Lelé recupera a
Nos corpos correspondentes aos quartos e sala
linguagem estrutural das abóbodas empregadas na
de estar, nos trechos dos jardins internos, adja-
Residência Nivaldo Borges (1972-1978), adotando centes às paredes estruturais, as abóbodas serão
outro sistema construtivo e modificando sua curva- dotadas de furos para iluminação ou ventilação.
O isolamento térmico da cobertura será executado
tura. As abóbodas de cobertura em arco abatido do
por colchão de ar ventilado formado pela própria
novo projeto seriam construídas em duas metades cobertura e placas pré-moldadas de vermiculita
com argamassa armada pré-fabricada. Segundo es- apoiadas nas nervuras das abóbodas.150
Lelé atravessa a década de 1980 praticamente Lelé que nenhuma árvore seja retirada do local. Es-
envolvido com os trabalhos da RENURB e da FAEC tava lançado o desafio ao velho amigo arquiteto.
em Salvador, voltados para as soluções de melhoria Com um perfil similar ao bloco de internação do
no sistema de transporte público e a fabricação de hospital Sarah Fortaleza (1991), no qual se destaca
equipamentos urbanos, e com as escolas transitó- a cobertura em curva e os terraços proeminentes,
rias de Abadiânia-GO. No anos 90, com o início da a Residência João Santana (1994) é, em uma esca-
produção de peças pré-moldadas em aço confeccio- la bem menor, a comprovação da versatilidade de
nadas nas oficinas do Centro de Tecnologia da Rede uso e da pluralidade construtiva possibilitada pelos
Sarah (CTRS), em Salvador, Lelé realizará uma série pré-moldados em aço, cuja produção em série só foi
de hospitais e tribunais empregando esses novos iniciada após a criação do CTRS.
elementos, em prol de uma arquitetura mais leve, Ao aceitar a encomenda, Lelé requisitou aos
flexível e econômica. Irmãos Gravia, tradicional indústria de perfilados
Em 1994, Lelé recebe uma encomenda do ami- em Brasília, que produzissem as peças conforme
go jornalista dos tempos da RENURB João Santana, especificado no projeto, de modo a transportá-las
pedindo-lhe uma casa de final de semana em Tran- até a Bahia apenas para serem montadas no local.
coso, povoado do município de Porto Seguro-BA. O Essa seria a primeira experiência de industrializa-
terreno que havia sido escolhido em colaboração ção completa em aço no âmbito da produção resi-
com o amigo em comum Roberto Pinho se caracte- dencial do arquiteto.
riza por uma área densamente arborizada, em meio O programa foi dividido de maneira a preservar
à mata atlântica e bastante acidentado, em declive. a unidade familiar, respeitando, porém, a indivi-
Como se não bastassem todas essas adversidades dualidade de sua composição. Assim, criou-se um
à implantação do projeto, João Santana solicita a conjunto formado pela casa principal, destinada ao
casal, com quarto, escritório e sala de estar, cada
um em um nível diferente, e três módulos indepen-
dentes para os filhos, com dois pavimentos cada,
sendo a sala no térreo e o quarto no piso superior.
Assim, a casa resultou, como o próprio Lelé a de-
fine: “uma nave-mãe e seus satélites conjugados”.
Apesar dos “satélites” não terem sido execu-
tados, a “nave-mãe” foi construída com algumas
modificações para receber os filhos. O piso supe-
rior que estava destinado ao escritório, passou a
funcionar como quarto do casal. Contudo, mesmo
com essas alterações de ordem funcional, o projeto
143. Residência João Santana - João Filgueiras Lima manteve todas a suas características asseguradas,
Porto Seguro, 1994 | perspectiva externa.
especialmente a integração espacial interna, solu-
Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010)
ção mais marcante.
168
144. Res. João Santana - João Filgueiras Lima | Porto Seguro, Trancoso, 1994 | vista da casa a partir do vale.
Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010)
145. Residência João Santana - João Filgueiras Lima | Porto Seguro, Trancoso, 1994 | corte longitudinal à esquerda
e perspectiva interna à direita.
Fonte: Claúdia Estrela Estrela (2010)
169
146. Residência João Santana - João Filgueiras Lima | Porto Seguro, Trancoso, 1994 | vista do pequeno pórtico de
entrada pintado de vermelho.
Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010)
147. Residência João Santana - João Filgueiras LIma | Porto Seguro, Trancoso, 1994 | planta do nível dos quartos à
esquerda e do nível do escritório à direira.
Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010)
170
Apesar do projeto ter sido aprovado pela Admi- casa pra ela foi muito fácil. Mas não deu certo, o
que é que a gente vai fazer? Também esse projeto
nistração Regional do Lago Sul e de todo o cuidado
foi esmiuçado, assim, um programa [feito espe-
com as árvores existentes durante a implantação cialmente] para ela [...] Não deu. Mas eu acho
(apenas uma foi retirada), a casa localizada no Se- que casa é assim mesmo. A gente tem que aceitar
que nem sempre dá certo. Mas eu gosto de fazer
tor de Mansões Dom Bosco acabou não construída.
projeto de casa nessas condições.158
O motivo principal teria sido sua posição junto à
divisa do lote, o que desagradava o vizinho. No O projeto da casa é resolvido em três níveis: um
entanto, essa condição era fundamental para o su- inferior, na cota 94,5, onde se localiza a piscina,
cesso da proposta de Lelé, que em momento algum um intermediário, na cota de acesso 99, onde se
desrespeitou normas urbanísticas. localiza um bloco alongado de serviço, abrigando
estar, jantar e escritório; e um superior, na cota
A Christiana eu conheci desde garota, menina. E o
Fausto Brenner, que é o pai dela, já morreu, nessa 102,10, destinado aos quartos. Um arrimo de altura
ocasião era radiologista do Sarah. Engraçado que variável, acompanhando a declividade do terreno
eu tive um problema, eu fumava muito né? Então,
no sentido longitudinal, resolve o desnível entre o
ele que me fez parar de fumar, e depois morreu
piso intermediário e o inferior.
-
160. Res. Christiana Brenner - Lelé | Brasília, 2003
terraço das artes culinárias com fornos para tinado à iluminação natural da circulação. Além
carne e pastelaria. dessa abertura, foram também criados elementos
Fonte: João Filgueiras Lima (2003) pivotantes piso-teto para a ventilação natural.
Inicialmente, pensei em usar cores fortes (ver-
melho, amarelo, laranja e azul ultramar) nessas
peças pivotantes (incisões verticais contidas na
grade disciplinada do desenho da estrutura) como
se toda a fachada fosse um grande Mondrian. De-
pois contive minha exacerbação pictórica e resolvi
inserir apenas tonalidades de azul nos elementos
pivotantes a meu ver mais ajustadas ao rigor tec-
nológico do prédio.160
1978) foi totalmente concebida dentro de um siste- O quarto e último projeto a ser analisado é re-
ma estrutural baseado no uso de arcos e abóbadas presentativo de uma fase mais leve na arquitetura
em “meio-ponto”, cuja execução ficou à cargo do de Lelé, caracterizada pelo uso extensivo do aço
mestre espanhol Tião, exímio construtor e amigo como elemento estrutural e plástico. Empregada de
da família. forma pioneira durantes os anos da FAEC em Sal-
No que se refere ao uso do tijolo como técni- vador (1985-1989), essa tecnologia foi a base de
ca e linguagem, esta não foi uma experiência iso- uma experiência subsequente bastante frutífera, o
lada. Em 1973, Lelé adotaria novamente o tijolo Centro de Tecnologia da Rede Sarah (1991), conti-
aparente na Residência Rogério Ulyssea, também nuada e aprimorada no Instituto Brasileiro de Tec-
em Brasília. Contudo, diferentemente da primeira, nologia da Habitat (2009).
nesta residência o uso do concreto se faz mais pre- As residências Roberto Pinho (Brasília, 2007)
sente, sobretudo na estrutura abobadada das lajes e João Santana (Porto Seguro, 1994) descendem
do primeiro pavimento e da cobertura, claramente diretamente dessa nova linguagem. Entretanto, o
identificadas também pelo lado externo. que se percebe ao comparar os dois projetos é que,
O terceiro projeto pode ser considerado uma ode dentro dessa nova expressão da arquitetura em aço,
ao concreto armado e às soluções técnicas arroja- na casa de João Santana em Trancoso Lelé ainda
das advindas deste material. Na Residência José encontra-se formalmente vinculado à estética dos
da Silva Netto (1973-1976), Lelé adota um partido hospitais da Rede Sarah. Enquanto na residência
com uma lógica construtiva simples, porém bas- do Altiplano Leste o arquiteto demonstra maior li-
tante sofisticado do ponto de vista da execução. O berdade de criação e maturidade compositiva. Por
cálculo da estrutura envolvia pórticos e balanços esses motivos e pela facilidade de acesso, a Resi-
que sustentavam uma grande laje atirantada nas dência Roberto Pinho foi escolhida para análise.
vigas de cobertura da própria residência, elevada 5 Uma importante orientação para as análises que
metros do chão. se seguem foi o estudo realizado por Geoffrey Baker
Lelé explora as possibilidades do concreto não em seu livro Le Corbusier: uma análise da forma2.
como um desafio à sua capacidade profissional, Este, por sua vez, baseou-se na técnica analítica
como fizera em 1965 na Residência para Ministro da tese de doutorado de Peter Eisenman, The For-
1
de Estado . No caso da residência oficial, o pro- mal Basis of Modern Architecture (Universidade de
grama impessoal permitiu ao arquiteto conduzir o Cambridge, 1963). Complementarmente, adotou-se
projeto na orientação brutalista de sua escolha. Já também o modelo de análise empregado por Iñaki
na residência Silva Netto, a solução adotada repre- Ábalos em seu A boa-vida: visita guiada às casas da
sentou uma interpretação de um desejo claramente modernidade, onde o autor parte de uma simpli-
expresso pelo seu cliente e amigo: a vista desimpe- ficação do objeto (redução) para extrair suas ca-
dida do Lago Paranoá.
A visita à Residência Aloysio Campos da Paz formas estereométricas simples são os paradigmas
fundamentais à obtenção da verdadeira beleza ar-
contou com a presença do arquiteto Haroldo Pi-
quitetural, esta obra segue o rastro das tradições
nheiro, amigo e colaborador de Lelé, que gentil- formais de Niemeyer.1
mente se ofereceu para nos acompanhar e com-
partilhar toda sua experiência no desenvolvimento Ao colocar a casa do Dr. Campos da Paz no
daquele projeto. “rastro das tradições formais de Niemeyer” e, logo
Trata-se de uma residência de final de sema- abaixo, apresentar sua planta baixa disposta lado a
na, localizada próximo à barragem do Lago Para- lado com a planta da Casa das Canoas, Ana Gabriella
noá em Brasília, concebida originalmente para o sugere, em uma relação imediata, uma aproximação
médico cirurgião e sua esposa. A escolha do sítio, formal entre os dois projetos. Ao comentar sobre as
bem como dos materiais empregados na obra, foi características do sítio, Lelé assim se manifesta:
decidida em conjunto com o amigo e proprietário.
A casa foi implantada num tipo de terreno carac-
Dessas conversas surgiu a ideia de implantar a casa
terístico de Brasília dessa época, hoje não existem
junto ao rochedo em declive, como se encrustada terrenos tão pedregosos. Eu escolhi o melhor lugar
no solo e dele partisse nivelada pelo topo por uma para locar a casa e combinei com o Aloysio que o
próprio caseiro iria coletar as pedras, amontoan-
laje de cobertura em forma livre. Essa laje funcio-
do-as de acordo com meu interesse. Foi o caseiro
naria como terraço, de onde se pudesse desfrutar
das belas visuais para o lago e de toda natureza implantação, mas eu tinha em mente três áreas:
uma grande sala de estar na área central da casa,
circundante. Segundo Ana Gabriella:
o ateliê e a parte dos dormitórios.2
1. Residência Aloysio Campos da Paz - João Filgueiras 1 Ana Gabriella Lima Guimarães. Op. Cit., 2003, p. 73.
Lima | Brasília, 1969 | fachada sudoeste
2 Entrevista realizada por Ana Gabriella Lima Guimarães com o
projeto de aprovação
arquiteto Lelé em 06/03/2001, Salvador-BA, in: Ana Gabriella
Fonte: Administração Regional de Brasília (2010) Lima Guimarães. Op. Cit., p. 74.
185
No projeto de Niemeyer, a laje branca e ameboide 3. Residência Aloysio Campos da Paz - João Filgueiras
é deleite e destaque na paisagem exuberante da Lima | Brasília, 1969 | planta baixa.
Fonte: autor (a partir do projeto aprovado na
mata atlântica, na Gávea; para Lelé, é terraço de Administração Regional de Brasília
contemplação e convívio de amigos em meio ao
residência carioca. Enquanto na casa de Niemeyer
cerrado e as belezas do lago.
a natureza figura como um perfeito cenário, en-
A apropriação do espaço na casa de Brasília
volvendo o artefato branco de curvas sinuosas,
é completamente diferente daquela verificada na
chegando a adentrá-lo em determinado momento;
na residência de Lelé, percebe-se uma total fusão
arquitetura/paisagem, bem ao estilo wrightiano,
onde o objeto construído, ao invés de destacar-
-se por sua volumetria, desaparece semienterrado,
completamente mimetizado pelo ambiente.
Essa primeira solução, construída em alvenaria Com base no anteprojeto, o Ernesto Walter calcu-
lou a laje de concreto. Lelé marcou a obra para
de pedra, foi posteriormente acrescida por dois blo-
fazer o sistema mural, de pedra, e fundiu a laje.
cos em estrutura metálica, conectados entre si por E fez também esse deck. Então, em 1969 foi feito
uma marquise de ligação, resultado das obras de só isso: as paredes de pedra, a laje de concreto e
5. Residência Aloysio Campos da Paz | primeira 6. Maquete da Secretaria de Turismo da Bahia - Lelé
proposta de ampliação (1975), não executada. Salvador, 1988 | projeto não executado.
Fonte: Elane Peixoto (1996) Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)
que permitisse a sobreposição das edificações sem prédio existente, informal, integrado ao terreno e
No início da década de 1990, o plano de expan- rimo de pedra foi criado, delimitando a varanda de
são da residência finalmente saiu do papel. O novo saída dos quartos e escritório. As fachadas dos dois
bloco, construído parcialmente sobre a casa exis- blocos foram revestidas com painéis de azulejos
tente, apresentava uma linguagem simples do pon- projetados por Athos Bulcão. Sobre as mudanças
to de vista da distribuição, embora menos sofis- ocorridas na distribuição dos espaços e quanto à
6 Entrevista realizada pelo autor com o arquiteto Haroldo Pi- 8. Residência Aloysio Campos da Paz | painel de
nheiro em 28/07/2011. Escritório do Arquiteto, Brasília-DF azulejos | Athos Bulcão (1969).
Fonte: Fundação Athos Bulcão
7 Idem.
189
9. Residência Aloysio Campos da Paz | vista do deck de madeira (casa de pedra) para o primeiro acréscimo.
Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010)
Em 1994, o casal deixa aquela primeira casa da família. Desta vez, a casa de pedra será alvo das
principais alterações. A sala de estar ganhará um
-
sa a ocupar esse novo bloco, que na verdade é espaço maior com equipamentos de projeção, os
quase um apartamento. Pra você ver, tem uma banheiros serão reformulados e a cozinha amplia-
pequena cozinha, uma lavanderia, dois quartos de
da. Segundo Haroldo:
empregada, um banheiro que serve como lavabo
também, a suíte do casal e isso aqui que você
Então as refeições eles ainda fazem lá em baixo
pode chamar de escritório.8
mudam definitivamente para a casa à beira do lago. hóspedes, essas coisas assim....a sogra, e aqui
Aquele local que no final dos anos 1960 apresenta- (apontando para o outro bloco) o apartamento
va pouca, ou quase nenhuma, condição de moradia, do casal.9
hoje encontra-se urbanizado e com acesso facili-
tado pelas pontes construídas no Lago Sul. Atu- Ao comentar a inserção dos dois acréscimos
almente a residência passa por uma reforma com- feitos à casa preexistente, Lelé expressa seu des-
pleta, na qual está prevista uma redistribuição dos contentamento com a solução adotada, obtida por
ambientes, em acordo com as necessidades atuais algumas limitações impostas pelo cliente e amigo.
8 Idem. 9 Idem.
190
10. Residência Aloysio Campos da Paz | sala de estar 11. Residência Aloysio Campos da Paz | varanda aberta
do primeiro acréscimo. para o terraço descoberto.
Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010) | acima Fonte: Cláudia Estrela Porto (2010)
191
12. Residência Aloysio Campos da Paz | janelas da casa de pedra na fachada sudoeste.
Fonte: autor (2011)
192
16. Residência Aloysio Campos da Paz | cozinha em 18. Residência Aloysio Campos da Paz | sala de estar
reforma. em reforma.
Fonte: autor (2011) Fonte: autor (2011)
p/ Paranoá
Lago Sul
(barragem)
DF-005
(EPPr) Estrada
Parque Paranoá
Acesso
p/ Varjão
Lago Norte
19. Residência Aloysio Campos da Paz - João Filgueiras Lima | Brasília, 1969.
Planta de situação com o lote da residência em destaque.
Fonte: autor (a partir da base SICAD e informações da Administração de Brasília)
eix
oN
E-S
O
SE
O-
oN
eix
21. Resdiência Aloysio Campos da Paz | corte transversal no sentido do eixo NE-SO.
situação anterior aos acréscimos em estrutura metálica.
Fonte: autor (a partir do projeto aprovado na Administração Regional de Brasília)
196
guarita
acréscimo 2
1994
acréscimo 1
1991
casa existente
inal 1969
itud
long
eixo
acréscimos
entrelaçamento
eixo
longitudinal
zona de acesso
l
ina
ud
lon o
git
eix
198
Marquise
27. Residência Aloysio Campos da Paz | ancoragem entre o acréscimo 1 e a casa preexistente.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
ancoragem e Ligação
As sacadas presentes no projeto foram cons- Na casa de pedra, o deck de madeira é definido
truídas em momentos distintos segundo o próprio como elemento de destaque na composição, evi-
desenvolvimento da residência. Na saída do quarto denciado por suas dimensões (65 m2) e pela forma
de casal do acréscimo 2, uma pequena sacada sur- trapezoidal da grande plataforma em balanço.
ge em meio às árvores interrompendo de maneira Os terraços localizados em frente às áreas ín-
centralizada o painel de Athos Bulcão na empena timas dos acréscimos também garantem uma vista
norte. privilegiada para o lago.
30.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
202
e
a
d
F
H
C
G
203
Setorização
Apartamento do casal
Escritório
Pequenos serviços
Estar íntimo
Quartos de hóspedes/filhos
Quarto da sogra
Cozinha
Lavanderia
Quarto de empregada
Sala de Jantar
Estar / multimídia
204
Residência Nivaldo Borges
Brasília-DF, 1972-1978
206
Nossa visita à Casa dos Arcos, como também Estamos no caminho certo. A ausência de grades
é conhecida a Residência Nivaldo Borges, começa ou portões nos intimida a prosseguir, mas continu-
antes nas proximidades de seu bairro, o Setor de amos nosso caminho com uma desconfortável sen-
Mansões Park Way (SMPW). Trata-se de uma região sação de estar invadindo propriedade alheia. Como
criada em 1961 de uso exclusivamente residencial, não há como anunciar a entrada, seguimos até o
característica mantida até hoje. O tamanho dos lo- estacionamento.
tes, cerca de 10.000 m , favoreceu o parcelamento
2
Esse percurso da rua até a entrada revela-se
da unidade e a posterior criação de inúmeros con- fundamental por representar um primeiro contato
domínios fechados. Esta configuração, atualmente do visitante com as formas elementares responsá-
mais representativa que o grande lote isolado, es- veis por toda a organização do projeto: os arcos e
barra em um problema de planejamento: o aumento as abóbadas. Esse tour preliminar, por assim dizer,
da densidade não é acompanhada pela oferta de faz uma breve introdução, externa, da importân-
serviços, que aliás, ainda depende consideravel- cia do tijolo como material explorado em toda sua
mente da região vizinha, o Núcleo Bandeirante. potencialidade, plástica e construtiva, ao mesmo
Nosso endereço é a quadra 07, localizada próxi- tempo em que instiga a imaginação dos mais curio-
mo à estrada de ferro da antiga RFFSA (Rede Ferro- sos, ávidos por descobrir o espaço resultante no
viária Federal S/A). Ao nos aproximarmos do local, interior.
avistamos a casa bem ao fundo do lote. Seus arcos A área do estacionamento é bastante arboriza-
e sua coloração avermelhada são inconfundíveis. da e aprazível. O abrigo de carros foi resolvido no
33. Residência Nivaldo Borges - João Filgueiras Lima | Brasília, Park Way, 1972-1978 | fachada (N) voltada para rua.
Fonte: Joana França (2011)
207
36. Residência Simão Fausto - Flávio Império | 37. Residência Simão Fausto - Flávio Império |
Ubatuba, São Paulo, 1961 | vista interna. Ubatuba, São Paulo, 1961 | elevação, corte
Fonte: Ana Paula Koury (2003) | acima e planta.
Fonte: Ana Paula Koury (2003)
209
Os espaços no interior da Residência Nivaldo terais, uma voltada para o norte, onde se reúnem os
Borges impressionam pela amplitude e sobrieda- quartos e o estar, e outra para o sul, reservada aos
de quase monástica. O silencio e o isolamento da serviços e sala de jantar. Voltaremos a essas áreas
casa contribuem para essa sensação. Contudo, ao mais adiante.
analisarmos os desenhos de Lelé para este projeto, Ao ser perguntado sobre suas habilidades na
percebemos através das perspectivas uma necessi- representação gráfica dos espaços criados em seus
dade de retratar fielmente sua concepção marcada projetos, especialmente aqueles verificados para
pela monumentalidade do eixo central, com quase este projeto, Lelé assim se manifesta:
8 metros de pé-direito, onde se localizam o estar
íntimo e a sala de estudo, permeados por jardins e
38. Residência Nivaldo Borges | perspectiva da sala de
espelho d’água; espaço simbólico e funcionalmente estar no eixo central.
responsável pela separação entre as duas naves la- Fonte: João Filgueiras Lima (1972)
212
39. Residência Nivaldo Borges | porta de entrada localizada em uma das “naves lateriais”.
Fonte: Joana França (2011)
Sabe que isso eu sempre levei muito em conta, e projeto não é diferente. A porta de acesso aqui não
antes, no anteprojeto, o que aconteceria depois. assume posição alguma de destaque, pelo contrá-
Eu acho que às vezes acontecem muitas surpresas, rio, ela poderia até se confundir com outro acesso
e eu sempre tive essa preocupação de aprimorar qualquer. Porém, ao analisarmos mais atentamen-
essa minha relação com o objeto. E isso muito a
custa de desenho mais precisos. Porque, de um te sua localização, percebemos que a intenção do
modo geral, o arquiteto, ele usa o desenho mais arquiteto em explorar os sentidos do visitante a
para, vamos dizer, para transferir a ideia para o partir daquele momento se evidencia em situações
cliente. Nessa época em que o desenho era básico.
extremamente simples e sofisticadas.
Hoje não, hoje é o computador quem faz.12
Ao passarmos pela porta de entrada, nos depa-
ramos com duas situações espacialmente distintas.
Talvez, uma das características mais sutis ob-
A primeira e, sem dúvida, mais impactante, revela-
servadas em boa parte das casas projetadas por
-se de maneira inesperada e surpreendente. Esta-
Lelé seja a maneira discreta como o arquiteto lo-
mos falando do vão central da residência, de pé-
caliza a porta de entrada dessas residências. Neste
-direito triplo, espaço monumental e de certo modo
solene, criado como uma grande nave central de
12 Entrevista realizada pelo autor com o arquiteto Lelé em
04/05/2011, no Instituto Brasileiro de Tecnologia do Habitat – uma igreja românica, cujo objetivo foi enaltecer a
IBTH, Salvador-BA.
40. Residência Nivaldo Borges | sala de jantar.
Fonte: FRANÇA, Joana (2011)
presença do verde, trazendo a natureza para dentro Questionado sobre a distribuição espacial in-
da casa. terna de suas casas, ponderando se o resultado é
A segunda diz respeito à continuidade visual ga- obtido pela interpretação pura do programa de ne-
rantida por uma profunda perspectiva que se inicia cessidades ou se existem premissas projetuais es-
na sala de jantar e termina no quarto de costura. pecíficas, Lelé é enfático ao dizer que:
Apesar de perpendicular ao sentido das abóbadas,
Existem premissas. A concepção de espaço, ameno,
esse eixo, de pé-direito mais baixo, é reforçado
de sempre ter uma interlocução com a natureza,
pelo enquadramento da cena, obtido, à esquerda, dos espaços internos terem uma continuidade....é
pelo alinhamento dos pilares, no topo, pela base lógico que cada interlocução é diferente. No caso
da do Roberto [Pinho] é uma interlocução visual.
da viga de concreto, e à direita, por uma sucessão
de texturas. Painéis móveis de madeira treliçada todos os seus sentidos, pelo tato, pela visão, etc.
delimitam o espaço da sala de jantar, localizada em Então, por exemplo, eu tenho uma relação muito
forte com a coisa do verde. É claro que a inte-
área reservada à direita da porta de entrada.
gração do verde, a proximidade do verde com a
casa, esse convívio com o verde, é uma coisa que
214
E completa:
Deixemos de lado as analogias religiosas e par- A percepção de quem entra em um quarto típico
tamos para a área mais reservada da casa, forma- pela primeira vez é de que existem dois momentos
da pelos quartos, área de estudo e estar íntimo. A distintos: um anterior, mais escuro, formado pelo
pedido do proprietário, foram criados sete quartos, banheiro, que nesta solução terminou conjugado
sendo um do casal e seis para os filhos e netos, to- e iluminado por uma pequena claraboia, e um pos-
dos suítes. À exceção do quarto do casal que ocupa terior, do dormitório propriamente dito, acolhedor,
dois módulos, os demais dormitórios foram dimen- bastante iluminado e com vista frontal para um jar-
sionado pela largura da abóbada, ou seja, 3,5m. dim interno. Esses jardins foram dispostos ao longo
de toda a fachada nordeste, criando uma espécie de
proteção visual à sequência envidraçada de quartos
e também da sala de estar.
Por uma questão de proteção solar, essas peles
de vidro foram devidamente recuadas da fachada.
Cabe ressaltar que a ideia de Lelé em implantar bri-
ses pré-moldado de concreto (pestanas) na cober-
tura desses jardins para diminuir a incidência da
radiação solar nas janelas dos quartos foi abando-
nada pelo proprietário durante a construção. Hoje,
44. Residência Nivaldo Borges | vista do estar íntimo. o que se vê nestes ambientes é a adoção de persia-
à direira localizam-se os quartos e à esquerda o nas como solução paliativa.
setor de serviços.
Fonte: Joana França (2011)
218
45. Residência Nivaldo Borges | estudo para painel (não realizado) | Athos Bulcão, sem data, guache sobre papel
Fonte: Joana França (2011)
A transição da parte íntima da casa para a parte visória, cujo verso voltado para o espelho d’água
de serviços se faz através do grande vão central. receberia um painel de Athos Bulcão. O projeto do
Neste amplo espaço integrado, um grande jardim artista chegou a ser feito, mas infelizmente não foi
interno faz a separação entre uma área de estudo executado.
ao fundo e o estar íntimo próximo à estante di- 46. Residência Nivaldo Borges | bloco de lazer.
Fonte: Joana França (2011)
219
49. Residência Nivaldo Borges | vista desimpedida para a grande área à frente do lote.
Fonte: Base SICAD com intervenção do autor (2011)
223
ante
o domin
eix
Geometria Básica
B
C
B linhas
principais
da
a estrutura
32,85 / 8,20 = 4
acesso
Dentre as casas analisadas, a Residência Nival-
do Borges apresenta algumas particularidades que
merecem ser destacadas. Primeiramente o modo de
acesso:
Todo acesso de veículos e pedestres é feito pela
parte posterior da casa (fachada sudoeste). Por
uma questão de diferença de nível e diretrizes de
projeto, a fachada voltada para a rua, nordeste, não
é acessível. Em segundo lugar, ausência de grades
ou portões:
A Residência Nivaldo Borges foi concebida sem
grades ou portões, ou qualquer outro tipo de fe-
chamento. Há neste projeto uma sensível/delicada
relação entre as esferas pública e privada, demons-
trada sobretudo na parte externa. O único caminho
pavimentado até a entrada da casa conduz o mora-
dor/visitante até um estacionamento, distante da
rua 240 metros.
alterações
Além do projeto ter tido sua implantação ro-
tacionada, alguns elementos da casa sofreram pe-
quenas alterações. O caso da piscina foi o mais
expressivo.
No desenho original, mais compacto, rampa e
escada permaneciam em lados opostos da piscina,
conferindo mais elegância e um certo equilíbrio di-
nâmico na forma escolhida.
A piscina executada terminou mais alongada,
com a rampa e a escada do mesmo lado. A solução
perde em proporções estéticas, mas ganha ao ofe-
recer uma área de banho bem maior que a anterior,
sem a intercomunicação direta dos pontos de aces-
so (rampa/escada), separados aqui por uma faixa
de lajotas de piso.
Supressões
60. Pestanas de concreto impedem a incidência solar direta nos quartos voltados para a fachada norte.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
Brises de concreto
Outro elemento suprimido do projeto foram as
pestanas de concreto (brises) criadas para proteger
as fachadas envidraçadas dos quartos da radiação
solar direta (nordeste). Com essa supressão, o pro-
blema foi paliativamente resolvido com o uso de
persianas. Ao comentar o assunto, Lelé assim se
manifesta:
61.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do
É, eu tirei depois. Mas isso foi por uma questão autor
até construtiva, sabe? Esse lugar onde tem
a vista mais favorável para os quartos tem um -
dade, que não comportava.16
dizer, engastada no tijolo, de fora a fora,...
-
tural de engasgamento dessa peça na alvenaria,
64. Vista de uma das “naves lateriais”. 65. Vista do vão central sem equadrias.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do Fonte: Rômulo Araújo (2011) com interveção do
autor autor
Íntimo
Social
Lazer
Hall de
Serviços
distribuição
233
O partido surge com a separação funcional dos A presença do verde nesta residência teve im-
dois blocos, lazer e residência, acomodados em portância fundamental em sua concepção original.
plantas tradicionais, retangulares, por uma própria É através da inserção das grandes áreas ajardina-
exigência do sistema construtivo adotado. das, dentro e fora da casa, que Lelé obtém a deseja-
Posteriormente conectados pelo abrigo de car- da integração arquitetura/natureza, em um espaço
ros, passa a definir um novo eixo baseado na se- quase religioso. É a consagração do verde.
quência A-B-A, cheio/vazio/cheio.
Este eixo será definido/marcado por um volume
com pé-direito mais alto destacando-se na compo-
sição pelas grandes janelas em arco pleno, respon-
sáveis pela entrada de luz no vão central.
68.
Fonte: autor (2011)
77.
de cobertura, responsáveis pela sustentação da laje do primeiro pavimento.
Fonte: Joana França (2011)
245
No hall de entrada, uma sequência de quadros seu escritório em um espaço cedido pelo amigo.
e esculturas colocados no verso cego de uma das O alto poder aquisitivo e o desejo de ver suas as-
estantes recebe os visitantes como numa espécie pirações se concretizarem de um modo nada con-
de boas-vindas, indicando que naquela casa a arte vencional motivaram o Sr. José da Silva Netto a
não só é valorizada como se faz presente. De fato, buscar a solução pelas mãos do arquiteto Lelé, cujo
desde a mobília de Joaquim Tenreiro e Sérgio Ber- trabalho já o chamara a atenção desde as obras da
nardes até o painel de Athos Bulcão, nota-se que o concessionária DISBRAVE (Volkswagen), em 1965.
proprietário possuía uma certa predileção pela ex- De volta à nossa visita, nos dirigimos à parte
pressão artística, sobretudo a de caráter moderno. mais reservada da casa, onde se localizam os quar-
Do contrário, quem encomendaria uma casa desse tos, estar íntimo e sala de estudo. Nessa área pre-
porte e com essa linguagem se não estivesse con- dominam os espaços fechados e mais segmentados,
vencido do potencial de seu autor? em oposição ao espaço fluido e permeável da parte
Apesar de terem convivido mais durante o pe- social, obtido pela ausência de paredes, disposição
ríodo de projeto e das obras da residência, Lelé e da mobília e, sobretudo, pelas faces envidraçadas
o “Zé” da Silva Netto, como era chamado, desen- voltadas para as fachadas norte e sul. A privacidade
volveram ao final do trabalho uma boa relação de aqui é obtida pela mesma sequência modular ado-
amizade. A maior parte dos desenhos foram feitos tada nos quatro dormitórios, dentre eles a suíte do
na própria concessionária do proprietário, a CODIPE casal, privilegiada por ocupar uma faixa contínua
Comércio e Distribuidora de Peças e Veículos (Mer- na extremidade da casa, o que permitiu seu contato
cedes-Benz), onde Lelé instalou provisoriamente com duas fachadas opostas. Resultado: ventilação
78. Residência José da Silva Netto | sala de jantar. cruzada e maior índice de iluminação.
Fonte: Joana França (2011)
246
82. Residência José da Silva Netto - João Filgueiras Lima | Brasília, Lago Sul, 1973-1976.
bloco de serviços revestido com painel de Athos Bulcão.
Fonte: Joana França (2011)
Forças do Lugar
85. Residência José da Silva Netto | laje do pavimento superior pendurada por tirantes de aço.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
apresentava um auditório suspenso atirantado por ção. Nesse caso, os brises protegem o escritório da
cabos de aço na grelha de cobertura. residência, localizado parcialmente sobre a piscina.
A fim de obter as melhores visuais da paisagem,
Lelé decide voltar os quartos e as salas da residên-
cia para a fachada norte. Ao fazer isso, o arqui-
teto desenvolve uma volumetria rígida e simétrica
na parte elevada, empregando nas duas fachadas
longitudinais (norte-sul) a mesma medida de pro-
teção solar, ou seja, recuar a caixa envidraçada e
dotá-la de varandas.
No sentido leste-oeste, há uma distinção fun-
cional dos fechamentos nas fachadas menores,
embora seja mantida a simetria no pavimento sus-
penso como um todo. Na face leste, a empena cega
representa o limite da suíte do casal, cujas abertu-
ras se voltam para as fachadas norte e sul. Na face
oeste, um conjunto de brises verticais pintados de
branco garantem (fechados) a mesma unidade de
linguagem (opacidade) da fachada leste, porém, 86. Residência José da Silva Netto | orientação solar.
com a possibilidade das visuais para aquela dire- Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do
autor.
253
87. Residência José da Silva Netto | o papel da vegetação na composição dos espaços.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com interveção do autor.
estratégia principal
89.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
255
91. Residência José da Silva Netto | tensão na organização das formas no térreo.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
92. Residência José da Silva Netto | tensão na organização das formas no pavimento superior.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
257
Em nossa última visita, abordaremos uma das Leste se localiza entre o Lago Sul, bairro de classe
obras mais recentes de João Filgueiras Lima em alta de Brasília, e o Paranoá, cidade satélite cria-
Brasília: a Residência Roberto Pinho. Trata-se de da em função da construção da barragem do lago
uma descrição detalhada e interessada dos as- homônimo.
pectos mais relevantes no tocante à composição A área do Altiplano Leste está vinculada à ci-
daquele objeto arquitetônico, apresentado aqui a dade do Paranoá, designada na divisão político-
partir da leitura que se faz de suas características -administrativa do Distrito Federal como RA-VII
estéticas, físicas e funcionais. A oportunidade de (Região Administrativa VII), e se constitui pelo
ter visitado o canteiro de obras desta residência foi agrupamento de pequenas chácaras isoladas en-
bastante enriquecedora. Essa experiência será com- tre si, onde os terrenos possuem grandes áreas e
partilhada ao final do capítulo, na parte dedicada onde a ausência de alguns serviços de urbanização,
ao relato de visita à obra. Antes de prosseguirmos, como pavimentação e iluminação pública, contri-
convém esclarecer alguns aspectos gerais do proje- buem para uma nítida distinção entre os limites do
to, sobretudo no que diz respeito à localidade na perímetro urbano e rural da cidade.
qual se encontra: o Altiplano Leste. Seguindo a regra dos projetos residenciais de
Localizada a mais de 20 km do centro do Pla- Lelé, realizados quase que exclusivamente para
no Piloto, a Residência Roberto Pinho se insere de amigos, a Casa do Altiplano não é exceção. Ela-
forma discreta na paisagem, apesar de suas formas borada a partir de uma provocação entre amigos,
arrojadas, predominantemente brancas, contrasta- o proprietário sugeriu ao arquiteto que explorasse
rem com a arquitetura tradicional das edificações a vista para um grande vale ao final do terreno,
da região. Caracterizado pelas cotas elevadas, cerca apontando para uma área, em cota mais baixa,
de 1100m acima do nível do mar, e por acidentes como passível de implantação.
topográficos responsáveis por belas paisagens na- O terreno colocado à disposição do arquiteto
turais como vales, grotas e ribanceiras, o Altiplano para elaboração do projeto apresenta algumas par-
ticularidades. A pedido do proprietário, Lelé defini
a distribuição do programa em duas edificações:
a residência do caseiro, localizada junto à divisa
do lote, servindo como controle de acesso e canil;
e a residência principal, mais interna, de onde se
descortina vista privilegiada. Conforme relatos do
arquiteto,
180 graus marcada pela beleza nativa do cerrado
ainda intacto, sulcado por três grotões que descem
em queda acentuada para a mata ciliar.20
94. Altiplano Leste | aspecto geral. 20 Descrição integrante do memorial descritivo de elaboração
Fonte: Flickr | Rafael Fernandes (2009) do projeto. Caderno “Residência Altiplano Leste”, ante-projeto,
Arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé). Salvador, 2006.
261
A implantação em curva da casa principal se deu e a parte de lazer. A composição radial concêntri-
sobre parte mais aplainada do terreno, em cota in- ca do projeto é explicada pelo arquiteto, conforme
ferior, a pouco mais de 100 metros de distância do descrição que se segue:
portão de acesso. Sua comunicação com a casa do
A residência foi implantada em duas plataformas
caseiro é feita por meio de um caminho pavimen-
em níveis diferentes, limitadas por arrimo de pedra.
tado servindo tanto como calçada quanto acesso Cada uma delas acompanhando o contorno de dois
de veículos. No local escolhido para a implantação círculos concêntricos com raios respectivamente de
6m (nível superior – cota 1043) e 23m (nível infe-
da residência principal, Lelé definiu a separação do
rior – cota 1040). A plataforma do nível superior
programa em três níveis delimitados por arrimos de destina-se ao acesso e estacionamento de veícu-
pedra: o abrigo de carros, a casa propriamente dita los e a do nível inferior às demais dependências.
96.
pedra | implantação da residência.
Fonte: João Filgueiras Lima (2007)
21 João Filgueiras Lima. Op. Cit., 2006.
262
Fui informado que o número de pessoas envol- A pequena espessura das paredes internas, 7
vidas com o processo construtivo in-loco não ul- cm, intriga os visitantes mais atentos. As placas
trapassava 10, o que é no mínimo curioso tendo de argamassa armada, normalmente com 3 cm, são
em vista uma construção não convencional como totalmente teladas antes de receberem o reboco. A
o projeto em questão. No momento da visita, a redução de área não-útil, como é o caso das pare-
obra encontrava-se com as paredes em argamassa des, favorece um maior aproveitamento dos espa-
armada já erguidas, cobertura instalada (treliças e ços internos, ampliando assim a área efetiva.
telhas), sem forro, e contra piso executado.
No que diz respeito à cobertura, o proprietário
informou que foi realizado um projeto específico
para as telhas metálicas em uma empresa especia-
lizada de Brasília. Contudo, tal medida não elevou
o custo final da obra, pelo contrário, a adoção da
telha metálica sanduíche calandrada reduziu con-
sideravelmente os gastos deste item se comparado
às estruturas de madeira aplicadas na cobertura 100. Res. Roberto Pinho | varanda.
Fonte: Joana França (2011)
tradicional.
266
área sensivelmente
mais plana
mata ciliar
nativa área de implantação da
residência escolhida pelo
proprietário
275
114.
principal (amarelo).
Fonte: João Filgueiras Lima (2007)
116.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
120. Residência Roberto Pinho | tensões internas geradas pela forma da cobertura.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção do autor
Tensões
O movimento gerado pela curvatura da residên-
cia em planta somado à cobertura definida por Lelé
como “coroa circular”, cria uma tensão interna in-
duzida pela própria força centrífuga do partido.
As tensões provenientes da forma em leque ad-
vêm da curvatura da residência em planta, inter-
rompida por duas empenas laterais, responsáveis
121. Residência Roberto Pinho | tensões externas
por encerrar de maneira repentina o movimento ali provenientes do movimento circular em planta e
criado.
Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção
O painel de azulejos criado por Lelé22 para do autor
revestir as duas paredes em questão ameniza os
efeitos da interrupção, na medida em que sua pa-
ginação em estrias verticais verdes e azuis sobre
22 Nos últimos anos de vida, Athos Bulcão (1908-2008) en- fundo branco dissipa as tensões de continuidade da
contrava-se bastante debilitado pelo Mal de Parkinson, doença
contra a qual lutava desde 1991. Sua produção tornou-se cada curvatura no plano horizontal.
vez mais escassa à medida que a enfermidade progredia. Diante
da situação em que se encontrava o amigo, Lelé decide criar o
painel da Residência Roberto Pinho por conta própria, motivado
pela amizade e pelos ensinamentos transmitidos ao longo de
anos de colaboração com o artista.
279
estrutura
A estrutura do pavimento inferior é constituída
por 29 vigas curvas idênticas de seção variável, es-
paçadas radialmente a cada 5°. No trecho interno,
as vigas são formadas por treliças metálicas. No
trecho externo (varanda), prolongam-se em balan-
ço (2,5m) como perfis (i) de alma cheia.
Na fachada interna, voltada para o arrimo de
pedra do espelho d’água, as vigas curvas da cober-
tura se apoiam em uma grande calha circular, que
por sua vez descarrega em pilares de seção quadra-
da, dispostos a cada 3 módulos.
As vigas continuam sobre o espelho d’água em
forma de pergolado, convergindo radialmente para
o centro da composição (eixo do pilar do abrigo de
carros), onde descareegam os esfoços no arrimo de 122. Residência Roberto Pinho | perspectiva do
pedra. esquema estrutural.
Fonte: João Filgueiras Lima (2007)
280
Setorização Íntimo
Lazer/Social O setor íntimo também foi dividido em duas
Composto pelas salas de estar, jantar, home partes. Diferentemente dos serviços, as partes aqui
theater, piscina e mirante, o setor social de lazer foram dispostas cada qual em uma extremidade da
está completamente integrado graças aos extensos casa. De uma lado, biblioteca e quarto de hóspe-
panos de vidro que os separa. A continuidade visual des foram organizados de modo a permitir o con-
e sua posição no eixo da composição, próximo à tato visual com as duas fachadas, interna (espelho
escada de acesso, marcam o espaço de recepção e d’água) e externa (cerrado), favorecendo a venti-
convívio por excelência. lação cruzada; do outro, três quartos e um atelier
organizados modularmente em sequência voltam-se
Serviço para o exterior, descortinando uma vista magnífica
O setor da casa destinado aos serviços encon- da natureza.
tra-se dividido em duas partes distintas, separa-
das por uma porta: uma mais exposta (pública),
formada pela cozinha e despensa, completamente
integrada à sala de jantar; e outra mais reservada
(privada), onde se localizam os quartos de empre-
gados, lavanderia e pátio de serviço.
Social / Lazer
Íntimo
Íntimo
Serviço
281
126. Residência Roberto Pinho | planta (anteprojeto) 129. Residência Roberto Pinho | planta (executivo)
Fonte: João Filgueiras Lima (2007) Fonte: Rômulo Araújo (2011) com intervenção
do autor
cessivas fábricas que criou e instalou, o coloca em que errar. Aprender com o erro faz parte da nossa
uma posição de destaque na história da arquitetura experiência.3
moderna no país, justamente por ter se voltado a No conjunto de sua obra, onde os hospitais,
questões geralmente abandonadas pelos arquitetos escolas e tribunais ganham maior visibilidade, as
de sua geração. Se Le Corbusier se auto intitula residências ocupam um capítulo à parte, não che-
homme de lettres, Lelé será nosso homme d’usine. gando por vezes ao conhecimento do grande públi-
Nesse sentido, a arquitetura de João Filgueiras co. Embora pouco divulgadas e em pequena quan-
Lima, inicialmente de filiação racionalista carioca, tidade, estas casas refletem o momento em que
vai se mostrar bem mais plural e diversificada que foram realizadas e traduzem, de forma coerente, as
um simples rótulo. As obras de Lelé são permeadas experiências do arquiteto com os diversos sistemas
por suas referências principais, confirmadamente construtivos empregados ao longo de mais de 50
Oscar e Lucio no Brasil, e Neutra, Mies, Corbusier e anos de profissão. Se os equipamentos urbanos me-
Aalto no estrangeiro. Contudo, percebe-se em seu nores diluem-se na paisagem, suas casas se mos-
fazer uma ênfase excepcional do ponto de vista da tram presentes, dignas de menção.
tecnologia da construção e um alto grau de cons- Esse foi o sentimento que motivou essa dis-
ciência dos condicionantes ambientais. Tudo isso sertação, tal qual as casas de Lelé, construída à
acabará por definir uma contribuição autêntica, base de tijolos, em alusão às milhares de palavras
sem que os princípios estéticos e ordenadores se- escolhidas para edificar uma ideia que nasceu da
jam ignorados. Pelo contrário, a técnica em Lelé é admiração por uma obra exemplar; erigida com do-
uma aliada para obtenção da beleza, uma beleza ses de interesse, esforço e dedicação, ingredientes
que aprendeu com Artigas, baseada na verdade es- indispensáveis ao traço da pesquisa concreta; por
trutural, mas que também se impõe leve, como a vezes se deparando com muitas pedras que se in-
arquitetura de Oscar. terpuseram nesse longo caminho, mas que ao final
Ao percorrermos suas obras, nos deparamos com lhe fortalecem e lhe asseguram, com a precisão do
uma arquitetura com alto grau de permeabilidade aço, que o resultado foi, ao menos para mim, gra-
social. O interesse pelas soluções coletivas sempre tificante.
motivaram suas pesquisas, por vezes levando-o às
últimas consequências em razão de seu exacerbado
envolvimento pessoal. Não há como separar o tra-
balho da vida de um arquiteto que se iniciou em um
canteiro de obras e dele fez seu grande laboratório
de experimentações. Recentemente, ao realizar um
panorama de sua obra durante Aula Magna na Uni-
versidade de Brasília, Lelé não se intimida em falar
abertamente de seus fracassos, e nos alerta para 3 João Filgueiras Lima. Notas da Aula Magna proferida por Lelé
uma necessidade urgente: Temos que parar com no Memorial Darcy Ribeiro (Beijódromo) da Universidade de Bra-
sília em 02 de junho de 2011.
essa ideia do arquiteto infalível. O arquiteto tem
287
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Anexo 1 | Entrevista
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a um passado, Vitruvio, Palladio, a Europa. Então fessor. Então a minha influência na parte do ensino
eu ia fazer engenharia, mas de repente, houve as- não foi muito relevante. Até nosso paraninfo, ao
sim um sujeito amigo meu, que era amigo do traba- invés de ser um professor de arquitetura, ele era um
lho, oficial da Marinha, e ele disse assim: “Por quê engenheiro. Ele estudou mecânica racional.
você não vai fazer arquitetura? você gosta de fazer
[AV] O senhor se lembra o nome dele?
caricaturas.” Eu gostava de desenhar...
[Lelé] Agora não me vem à cabeça.
[Adalberto Vilela] Era o Acioly?
[AV] Tudo bem. Mas naquela época em que o
[Lelé] Não, não, esse era um subtenente da
senhor frequentou aquelas noites na casa de Al-
Marinha. O Acioly era outro amigo. Então o que
dary Toledo...
aconteceu foi que eu fiz o vestibular. A dificuldade
é que eu entrei completamente sem saber fazer de- [Lelé] Aí foi uma coisa paralela. O Aldary Toledo
senho figurado, não sabia aquelas normas, e o Ubi foi meu professor, mas informalmente. Eu frequen-
Bawa, que era o responsável, ele passou na minha tava sistematicamente sua casa junto com outros
e disse: “você vai ser reprovado.” Ele olhou meu [AV] E dele veio a ponte para o IAPB?
desenho e disse que eu ia ser reprovado. Eu disse:
[Lelé] Isso. Foi através dele que eu fui para o
“o que que eu tenho que fazer?”. E ele foi me ensi-
IAPB. E do IAPB eu fui para Brasília. A ponte para
nando. Durante a prova. E eu teria sido reprovado
eu ter chegado em Brasília foi o IAPB.
se não fosse ele. Ele me ensinou praticamente a
fazer o desenho. Ele percebeu que eu já tinha... [AV] Nessa época em que o senhor cursava ar-
quitetura, o que estava em voga, o que era obra
[AV] Tinha um traço. Alguma coisa que se trei-
tida como de referência pelos professores?
nasse chegaria lá.
[Lelé] Oscar Niemeyer já tinha surgido no cená-
[Lelé] Acho que sim. Bom, depois ele foi meu
rio, mas o principal era Lucio Costa. As referências
professor.
principais eram Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Rei-
[AV] Mas da área de projeto ou da parte de dy, Affonso Eduardo Reidy.
plástica?
[AV] Enquanto obra, poderíamos citar exem-
[Lelé] Plástica. plos bastante comentados como o Pedregulho,
não tive contato com eles depois quando eu sai da me formei, em 1955, aquelas obras do Aterro ainda
faculdade. Alguns professores que já eram profis- não estavam concluídas. Quer dizer, das obras do
sionais e atuaram lá, como o Sérgio Bernardes por Reidy já tinha o Pedregulho pronto. O Museu de
exemplo, sim. Mas ele não chegou a ser meu pro- Arte Moderna não. Ele estava em construção.
299
[AV] Jorge Moreira também não tinha iniciado sobre a Torre Eiffel. Ele tinha sido amigo do Eiffel, e
os trabalhos na Cidade Universitária? ficou explicando a construção da Torre Eiffel, como
[Lelé] Jorge Moreira já estava trabalhando no funcionava a estrutura... Ele era muito preocupado
Fundão, no Hospital Universitário. com essas questões de estrutura. Depois eu tive
outros contatos com ele. Mas ele sempre tratava o
[AV] Inclusive Aldary era da equipe.
Oscar assim com uma deferência especial. Até por-
[Lelé] Sim, ele era da equipe da Cidade Univer- que o Oscar, naquele episódio do projeto da ONU,
sitária. chegou a fazer o projeto junto com ele.
[AV] Certa vez escutei uma história de que o [AV] Na verdade o projeto do Oscar tinha sa-
queridinho de Le Corbusier no Brasil era o Reidy. O -
senhor saberia dizer alguma coisa?
[AV] Ainda dentro das perguntas sobre o perí- [Lelé] Mas tem um outro traço também. Mate-
odo de formação, como ex-aluno da escola militar mática, o nosso professor era o Malba Tahan, que
no Rio, o senhor atribuiria o interesse e a facili- tinha aquele livro...
dade para lidar com cálculo e com as disciplinas
[Roberto Pinho] “O homem que calculava”, que
exatas a esse período?
era o nome de ficção dele, né?
[Lelé] Não, foi a formação do Colégio Militar,
[Lelé] Isso, era um nome de ficção. E ele foi
principalmente. Mas eu diria que foi dessas coin-
nosso professor de matemática. Era um excelente
cidências, primeiro foi o Ademar Fonseca, que foi
professor.
professor de Mecânica Racional e que chegou a ser
nosso paraninfo. A nossa turma com ele tinha um [RP] Ele era maravilhoso.
conceito muito alto. Ele era muito bom professor. [Lelé] Então a gente aprendeu matemática gra-
E nos aprendemos mecânica racional. Até hoje eu ças ao Malba Tahan, e aprendeu mecânica racional
sei mecânica racional, disciplina básica para o cál- graças ao Ademar Fonseca. Com esses dois profes-
culo, graças a este professor. Ele não era professor sores...
da Faculdade de Arquitetura. Ele foi um professor
[Lelé] Depois o que ocorreu foi o seguinte: nós
eventual porque lecionava na Escola Técnica do
tivemos um professor de cálculo, que não era bem
Exército, então naquele ano, e por uns dois anos,
quisto, porque era terrível, muito exigente, que é
ele ficou como professor de mecânica racional, ta-
o Adelson Moreira da Rocha, mas que de qualquer
pando lá um buraco quando um professor ficava
maneira escreveu todos esses livros sobre cálculo.
doente.
Então, pra passar com ele tinha que saber.
[AV] E ele tinha uma relação boa com a turma?
[RP] Eu lia muito Malba Tahan. Adorava. Eu era
[Lelé] Muito boa. Muito bom professor. E a gen- garoto... Ele pegou esse nome... É um nome árabe.
te ficou apaixonado por mecânica racional graças
[AV] Então assim, o senhor se forma em 1955.
a ele.
Numa entrevista a Roberto Pinho e Marcelo Ferraz,
[AV] Então isso explica muita coisa. Nós ar- naquele livro vermelho, o senhor diz que foi para
quitetos, num determinado momento histórico, Brasília por uma questão de circunstância, por es-
-
técnica e a famosa École de Ponts et Chausées, na por acreditar propriamente naquilo que represen-
França. Os arquitetos tomaram o rumo das Belas tava o Plano Piloto e toda aquela discussão.
-
[Lelé] Veja bem, eu acreditava extremamente
gados ao cálculo...
no Plano Piloto, principalmente por causa de Dr.
[Lelé] E hoje abandonaram. Isso é que é pior. Lucio, mas eu não tinha era uma convicção daquilo
Agora eles só querem saber de gerência, marketing, que eu iria fazer. Eu, um recém formado, no meio de
essas coisas... um enorme canteiro: “O que que eu vou fazer lá?”
[AV] Exatamente.
301
Mas eu fui assim mesmo, sem nenhuma convicção [Lelé] Não tinha nenhuma convicção. Eu levei
de que eu seria útil. uma porção de livros. Eu não ia para projetar. Eu ia
para construir.
[AV] Como recém formado não tinha a menor
condição de exigir essa convicção... [AV] O papel do senhor era de administrador
da obra?
[Lelé] Não tinha. Mas ninguém queria ir. Me pe-
garam a laço. Aí eu fui procurar o Oscar, sabe. Esse [Lelé] Veja bem. Naquela época esses contra-
episódio é engraçado: primeiro eu conversei com o tos eram feitos por administração. Não eram con-
Nauro Esteves, que era quem coordenava a equipe. tratos por empreitada como hoje as firmas assu-
Ele disse: “Não, você deve ir, vai lá.” Depois eu fui mem. A responsabilidade era muito dividida. Então
falar com o Oscar, e aí me deram um bolo de dese- montou-se uma comissão de cada instituto, eu era
nhos dos apartamentos da 108. Eu peguei aquilo do IAPB, e essa comissão ia trabalhar junto com
e fui pra Brasília, mas sem nenhuma convicção. A essa empresa, que era a ECG, Empresa de Constru-
situação era tão precária que eu tinha que fazer ções Gerais, a primeira, depois foi a ECISA. Eram
os acampamentos para começar as obras. Eu não muitas pessoas amigas de Juscelino. Por exemplo:
tinha prancheta, não tinha mesa, não tinha nada. Juca Chaves que era dono da empresa tinha um bar
Eu levei uma régua e um esquadro. Os primeiros lá no Hotel Ambassador, que todo mundo frequen-
barracões de obra foram feitos assim, sem desenho, tava, Oscar frequentava.... Brasília foi construída
pegando os profissionais... muita assim na base das amizades. O Juca Chavez
foi montar o Catetinho.
[RP] Isso era 58?
[RP] O Juca Chavez?
[Lelé] 57.
[Lelé] Não, um outro Juca Chavez.
[RP] Três anos antes.
[AV] Já que o senhor mencionou essa questão
[Lelé] Não tinha nada. Até o avião do Juscelino
atolava no Gama, na terra...
caminhos da pré-fabricação passou por uma ques-
[AV] Na Fazenda do Gama? tão circunstancial, como essa que o senhor pre-
[Lelé] Sim, na Fazenda.
criando barracão para mais de 2.000 operários na
[Lelé] Então essas coisas..., é claro, só para re-
108, ou de fato aquilo já era uma garantia de agili-
tificar: não é que eu não acreditasse no projeto. Eu
dade, economia de recursos e de tempo?
acreditava e tinha um envolvimento enorme com
essas duas figuras, que eram símbolos da arquite- [Lelé] Principalmente de tempo. Naquela épo-
tura brasileira. Eu não acreditava que eu... que que ca todos esses barracões eram feitos de madeira.
eu ia fazer lá? Então nós montamos, já na superquadra 109, que
também era do IAPB, nós montamos uma grande
[AV] Entendi.
oficina lá, com dois marceneiros alemães, que era
302
o Werner, que já morreu, e o Walter que ainda tem [AV] Imagina, o Presidente da República está
uma oficia hoje na iniciativa privada, mas ele era lá na obra.
funcionário do IAPB nessa época, e com esses dois [Lelé] Era toda semana. Toda semana ele estava
marceneiros eu montei uma oficina lá, uma grande lá. Como eu tinha uma relação muito estreita com
oficia para produzir o canteiro de obras, nem era César Prates, primeiro projeto de uma casa que eu
pra produzir a obra em si, apenas o canteiro. Era fiz...
um volume de gente enorme, então você tinha que
[AV] Sim, eu a visitei há algumas semanas.
fazer, não apenas as oficinas, você tinha que fazer
Hoje pertence à Embaixada da África do Sul.
também alojamento para operário, refeitório... Nós
fizemos até um refeitório bastante caprichado lá. [Lelé] Eles esculhambaram tudo depois.
O Oscar quando ia para Brasília ele ia almoçar lá [AV] Virou casa de depósito. A sala inteira está
conosco, no nosso refeitório. E a gente hospedava abarrotada de caixas. O espelho d'água não existe
muita gente. Lá no IAPB nós fizemos um alojamen- mais...
to para visitantes. O presidente do IAPB, que era
[AV] O que eles mantêm em dia e bem conser-
o Sadoki Samota, ele acreditava muito em Brasí-
vada é a piscina, mesmo porque é uma questão de
lia e ia sistematicamente lá. Ele gostava muito do
saúde pública.
exemplo de Juscelino que toda semana estava lá
(na obra). Então nós tínhamos um alojamento mais [RP] Mas foi pela Embaixada da África do Sul?
caprichado.
[AV] A África do Sul é proprietária daquela
[AV] E obviamente tinham as festas de cume- casa desde os anos... se não me engano 80. No co-
eira. Terminou um bloco se não tivesse a festa de meço dos anos 80.
cumeeira...
[Lelé] O que houve ali foi o seguinte: essa casa
[Lelé] Não só os de cumeeira mas outras fes- foi projetada em 1958. O César era amicíssimo do
tas também (risos). Tinha festa de tudo quanto era Juscelino, acompanhava ele na boemia. E eu toca-
tipo. va acordeão naquela época, então eu ia também.
[Lelé] Não, essas eram na obra. Quando o Jus- [Lelé] Dilermando Reis, essa turma.
celino esteve lá, foi quando nós fizemos a cumeeira
[AV] Ele era da área da construção civil ou não
do primeiro prédio. E de noite houve uma grande
tinha nada a ver?
festa no acampamento da Cincinato, uma empresa
que fazia terraplanagem. Cincinato Braga. E o Jus- [Lelé] Não tinha nada a ver. Era apenas acom-
[RP] Da Granja do Torto. Carlos. Isso ainda antes de eu vir para Salvador.
Mas quando chegou em 1979, com primeira admi-
[Lelé] Ele também construía ao mesmo tempo
nistração do Mário...
essa casa. Foi ele quem construiu também o pri-
meiro palácio do Catetinho, de madeira. [AV] Então a aplicação imediata disso foi na
RENURB?
[AV] Sem ser esse que depois foi reconstruí-
do... [RP] Foi, foi em 1979.
dele, que era o Khristian Schiel, trabalhou comigo [Lelé] Eu vim aqui e depois fiz o projeto da
no meu escritório. Igreja. E Coleguinha era ligado ao Mário. Então
[AV] Aqui ou lá em Brasília? essa ligação com o Mário, ela foi importante. Eu já
tinha uma ligação anterior com o Aloysio Campos
[Lelé] Lá em Brasília, mas ele trabalhou aqui
da Paz. Um acidente que eu tive ainda em 63, 64,
também. Aí ele me aproximou do pai dele, que fazia
não me lembro ao certo... No Natal de 1963, com
essas experiências com argamassa armada em São
304
Alda. Então eu fui para o hospital, naquela época foi a seguinte: os médicos, quando entrou o Costa
era o Hospital Distrital de Brasília, e o Aloysio era o e Silva, naquela época o prefeito era nomeado, e
cara da ortopedia. Fiquei conhecendo ele lá. Então o Wadjô Gomide, que foi para a prefeitura, era um
depois disso, além de conviver sempre com Aloy- antigo engenheiro da construção da cidade. Então
sio, por causa da música, ele tocava piston, havia houve aí uma certa facilidade aí no relacionamen-
também uma discussão em torno dos problemas do to. O secretário de saúde passou a ser o Wilson
hospital. Eu fiz muitos desenhos pra ele melhorar o Cesana, que era também amigo meu, e o Oscar né,
décimo andar do hospital, que era onde ele atuava eu acho até por essa relação de amizade que eu
como médico. Então, essa ligação que mais tarde, tinha com o Carlos Ramos, e com o próprio Aloysio,
por uma coincidência, o Eduardo Kertész, irmão de ele achou bom que eu ficasse nessa função de fazer
Mário, ele era do IPEA, uma pessoa muito ligada ao esse hospital (de Taguatinga).
Ministro Veloso, e foi através dessa ligação Mário
[AV] Ali foi o prenúncio de muitos princípios
Kertész, eu e Aloysio, esse triângulo, que surgiu o
que depois foram aplicados e só aperfeiçoados.
Sarah.
[Lelé] Exatamente.
[AV] Então o próprio Aloyio Campos da Paz foi
responsável por colocar o senhor à frente do proje- [AV] Eu coloquei aqui uma pergunta sobre um
[AV] Mas quando o senhor fala em frustra- [Lelé] Antes de Abadiânia. Foi antes de Abadiâ-
ção.... Eu particularmente considero que foi uma nia porque foi, assim ... Quando ele foi demitido da
vitória, uma experiência bem sucedida. Foi feito Universidade de Brasília, isso foi em 65, ele ficou
um protótipo de madeira para a primeira escola, mais ou menos envolvido com o projeto da Univer-
sidade Católica de Goiás. Então foi antes.
[Lelé] Mas sabe o que que eu acho, assim... [AV] Então o senhor junto com o professor Gra-
aquilo poderia ter, vamos assim dizer, se multipli- eff que...
cado. E acabou com a minha saída. Não houve um
[Lelé] É, mais tarde eu participei. O Graeff me
tempo suficiente pra aquela experiência...
chamou para ir pra Goiânia. E eu acho que Goiás, de
uma certa maneira, ... e o Frei Mateus, que também
[Lelé] Frutificar. Isso. era reitor da Universidade, e a relação estreita dele
passou a ser muito mais com Goiás do que com
[AV] Entendi. Nesse aspecto, o senhor consi-
Brasília.
dera que foi uma perda.
[AV] Eu sou goiano. Eu falo assim porque eu
[Lelé] Foi uma perda, sim. Pra mim foi uma
vim do interior de Goiás, de uma cidade chamada
frustração. Até hoje eu considero uma frustração.
Mineiros, distante 620 Km de Brasília, no Sudoes-
[AV] O prefeito Almada, é.... Walter... te do estado, divisa com o Mato Grosso. Então, eu
[Lelé] Wander Almada, Wandinho. fui para Brasília com 17 anos, e aquilo para mim
era muita novidade, eu praticamente já conhecia
[AV] Ele era amigo do senhor?
toda a cidade sem nunca ter ido lá. Seu funcio-
[Lelé] Sim, ele era cria de Frei Matheus. Ele foi namento, sistema viário, tudo através dos livros
levado pra Brasília por Frei Mateus. Ele cursou a e enciclopédias. Então, eu pergunto essas coisas
Universidade ainda ajudado por Frei Mateus. porque eu também tenho um carinho pelo Estado
onde eu nasci.
[AV] Me veio agora na cabeça uma coisa ligada
a isso: essa ponte com a Universidade Católica de [Lelé] Bom, dali eu fiquei muito ligado a Goiás.
Goiás, isso tudo já vinha acontecendo quando o Fui professor da Universidade também. O Graeff me
senhor ajudou a reformular o curso de arquitetura levou pra lá, pra Universidade Católica de Goiás,
lá? e tenho muitos amigos em Goiânia. Muito embora
eu continuasse a trabalhar em Brasília, a atividade
[Lelé] Pois é, isso tudo já é um outro mecanis-
mais ligada ao ensino ficou sendo com Goiás.
mo. Foi o Edgar Graeff, que foi professor comigo na
Universidade, então ele assumiu o ensino da Uni- [AV] Bom, essa é a última pergunta da parte da
versidade de Goiás. trajetória, antes da gente entrar nas residências.
[Lelé] Claro, claro, várias vezes... Agora, eu Atualmente nós temos um terreno escolhido
acho que a industrialização até... A caso do Rober- pelo Estado para fazer um protótipo dessa proposta
to, por exemplo. Ela é uma casa que, de uma certa para o Minha Casa Minha Vida.
maneira, ela usa todo o processo de industrializa- [AV] Quando o senhor fala em "coisinhas", as-
ção. Ele foi toda planejada, foi feita fora e depois sim no diminutivo, eu me lembro dos textos de um
montada, principalmente a parte da estrutura me- -
tálica, da cobertura, usando a oficina do Gravia, lá mán, que, analisando a obra do senhor, ele comen-
em Brasília. Então eu acho que... Agora mesmo, o ta o seguinte: Lelé é um dos poucos arquitetos no
Instituto está propondo, com esse programa Mi- Brasil que se atem às coisas diminutas, que para
nha Casa, Minha Vida, uma solução híbrida, que -
não precisa de uma usina. É um projeto, a nível teresse por uma simples guarita, por um banco de
de industrialização, bastante rigoroso, mas com praça, por uma contenção de encosta, por uma es-
pequenas fábricas que seriam montadas no próprio cada drenante, isso é desprezado pela grande par-
canteiro. Pra esse programa, que tem uma amplitu- te dos arquitetos, por se tratar de uma obra que
de nacional... desaparece na paisagem, menor, e que na verdade
[AV] Isso para habitação de baixa renda, com não é. Ela está inserida no cotidiano e nas vidas
casas com áreas reduzidas... das pessoas, e faz toda a diferença. Eu acho que
isso é uma grande obra, que está pulverizada no
[Lelé] Edifícios.
cotidiano e que as pessoas não percebem.
[AV] Ah, edifícios...
307
rado dele foi aqui na Bahia sobre Lina Bo Bardi, [Lelé] Não, a do Aloysio está bem, eu digo,
e comentamos sobre o momento em que vocês se por exemplo, a do Mário. A Casa de Mário Kertész
ela foi feita num momento... E ela não chegou a
na Ladeira da Misericórdia, e toda a reformula- atingir plenamente... É uma casa com um programa
ção do Centro Histórico, o desenho de Lina tinha muito especial, porque ele estava sendo prefeito,
várias peculiaridades. Ele não queria retratar a tinha uma atividade formal que ele tinha que man-
realidade. Hoje eu vejo, comparando os dois de- ter na casa. Naquela época não tinha habitação
senhos, que cada arquiteto tem sua forma de se oficial para o Prefeito. Então ele tinha que atender
expressar. Lina vinha de uma escola tradicional as pessoas, politicamente, nesse espaço. Ela tem
de artes na Itália, então não era algo ingênuo. umas peculiaridades que não são bem a persona-
Mas também não era um desenho com o do Lelé, lidade do Mário. Foi a personalidade do Mário na-
do Bratke, aquela coisa... Eu até hoje desconheço quele período.
um arquiteto com os traços do Bratke. Eu admiro
[Lelé] Essa aqui é do Nivaldo! Essa aqui é do
os desenhos do senhor, mas acho que o Bratke foi
Nivaldo, assim como a do Roberto é a do Roberto.
um exímio desenhista. Dr. Lucio também quando
fazia seus desenhos, eram belas aquarelas, como [AV] Eu falei que o senhor Nivaldo Borges fale-
aquelas de Diamantina...eu nunca via uma aqua- ceu há pouco tempo, né?
rela como aquela. [Lelé] Sim, fiquei sabendo...
[Lelé] Era, existiam outras preocupações. Essa [Lelé] A do José da Silva Netto é do José da
preocupação do desenho em ser expressivo. Era Silva Netto. Todas elas são. A do Aloysio é dele
uma coisa daquela época. Hoje isso está se per- também, embora o Aloysio tenha sido muito cer-
dendo. ceado por questões financeiras. Foi uma casa di-
[AV] Mas o que que o senhor me diz dessas fícil de se fazer porque havia sempre muito pouco
quatro casas? Eu tenho um grande problema: eu dinheiro, que não é o caso dessa daqui, nem da
preciso analisar quatro casas. Eu queria trocar José da Silva Netto. E o Roberto, muito embora ele
uma ideia com o senhor. Eu queria de fato que o também não tivesse..., como ele próprio fez a obra,
senhor opinasse sobre essa minha escolha. então a gente conduziu de uma forma que fosse
mais econômica.
[Lelé] Eu não sei. Se você quisesse pegar uma
bem mais atual, que é a do Roberto Pinho, né.... [AV] Entendi.
[AV] Isso pra representar essa fase mais nova? [Lelé] Então eu acho que esses projetos são...
não é que eu queira lhe induzir. A do Mário tudo
[Lelé] Isso.
bem, eu acho que...
[AV] Por quê que eu pensei na casa do Dr. Aloy-
[AV] A minha consideração com Mário Kertész
sio? Porque lá tem essa sobreposição de tecnolo-
é que ela é uma das poucas casas do senhor, senão
gias...
a única, que está inserida no lote de uma forma
309
não isolada e num lote grande. Então a inserção dados técnicos da casa. Vem o histórico: advoga-
urbana dela é totalmente diferente de qualquer do, pernambucano... chegou em Brasília em tal
uma outra.
falo do seu Tião artesão...
[Lelé] Completamente diferente de qualquer
outra. [Lelé] Tião, que era um agregado da família.
[AV] Nas outras nós temos grandes terrenos, e [AV] Isso, e casa que foi construída ali na mão,
uma casa isolada... com as crianças participando, levando tijolo...
[Lelé] Então tudo bem, deixa a do Mário. Eu [Lelé] Isso, e ele era único.
te conto a história de cada casa dessas detalhada-
[AV] Aqui eu marco a casa no espaço urbano,
mente. Porque eu acho que o projeto de uma casa é
faço essa representação da malha, venho com es-
uma atividade assim, muito excepcional do arquite-
ses desenhos que eu trouxe aqui para o senhor.
to. Porque ela é feita para um indivíduo e não para
São esses. [mostro os desenhos técnicos]. Casa
a coletividade. Então, todo programa é direcionado
foi redesenhada no computador, uma por uma...
para o bem estar daquela pessoa. Por isso que eu
digo, só faço casas para amigos. [Lelé] Você é incrível.
[AV] O senhor não aceitaria uma encomenda [AV] Então foram desenhos realizados em cima
[Lelé] Não, não aceitaria. A não ser que ele [Lelé] Ótimo.
quisesse conviver comigo durante muito tempo. [AV] Estão todos em CAD, e se o senhor quiser
(risos) eu posso passar todos os arquivos digitais para o
[AV] A implantação como está lá, não da forma adequada para explorar essa parte da arquitetura
como mostra o livro vermelho, reta. em aço...
[Lelé] Tem César Prates, Rogério Ulyssea... ordem cronológica, Aloysio Campos da Paz, José da
Silva Netto, Nivaldo Borges e Mário Kertész. Seria
[AV] Eu estive lá há poucos dias. Fiquei feliz
isso? O senhor acha esse conjunto representati-
por essa casa de Rogério Ulyssea estar nas mãos
vo? Porque nesse momento eu não tenho como ir
da família Borsoi. Renata Borsoi. Ela é neta do
a Porto Seguro para ver a residência do João San-
Acácio Gil Borsoi. Está tudo entre arquitetos. Eles
tana, seria também um representante bom, dessa
adoram a casa.
tecnologia mais nova.
[Lelé] Que bom.
[Lelé] Agora, tem uma construção mais nova de
[AV] Então, só pra gente concluir aqui. Dessas João Santana aqui em Salvador, não chega a ser
quatro casas,... uma casa, é um pavilhão de piscina. Mas ele foi
[Lelé] Não, deixa do jeito que você fez. feito muito assim, de acordo com o que o João
Santana gostaria. Você conhece o projeto?
[AV] Roberto eu acho muito importante, só que
eu falei com ele e disse: doutor Roberto, eu preci- [AV] Não, esse eu não conheço.
so fazer uma análise detalhada. Por uma questão [Lelé] Eu estava até organizando uma palestra
de privacidade, ele me pediu para a dele não ser que eu vou fazer, e eu tinha posto ele aqui... [pro-
uma destas. Apesar da casa ter sido publicada em curando no computador]. Tenho que fazer uma coi-
revista de circulação nacional.... Se o senhor qui- sa lá em São Paulo agora...
ser mudar a cabeça dele....
[AV] E isso que está aí na tela, no papel de pa-
[Lelé] Não não, então fica a do Mário. Vamos rede, é o Beijódromo?
ficar com a do Mário.
[Lelé] Não, não, esse é um projeto até um pou-
[AV] Eu teria um representante dessa tecnolo- co parecido, mas é um projeto que eu fiz pra El
gia mais ligada ao CTRS, mais leve, feita com aço. Salvador.
A residência do Dr. Campos da Paz não seria a mais
[Lelé] Agora, eu gosto da casa do Roberto sabe
por causa de quê? Porque ali, como o Athos Bulcão
311
já tinha morrido, eu fiz o projeto dos azulejos, eu [Lelé] É tudo em balanço. Quer dizer, ela está
mesmo desenhei os azulejos, então eu acho que ancorada aqui e apoiada aqui e cada viga dessa
tem esse lado assim... vence o balanço de sete metros.
[Lelé] Espera aí que eu vou ampliar pra você. É [Lelé] Eu fiz pra João Santana essa também. E
o pavilhão da piscina. Então eu fiz a piscina com tem a casa do Roberto, que esse tipo de constru-
o pavilhão, mas é uma coisa assim... Não chega a ção.
ser a casa.
[AV] Sim, aquela eu visitei em 2007, quando
[AV] O projeto é lindo. Está construído? as peças começaram a chegar... Acho que foi 2007
mesmo.
[Lelé] Sim, está pronto.
[Lelé] Mas eu acho que você está bem servido aí
[AV] Dessas coberturas que eu admiro demais,
com a casa de Mário.
particularmente eu gosto de uma que foi feita lá
no Maranhão, em Ribamar, como se fosse praça, [AV] Então a gente fecha nessas quatro. Na
verdade, eu vou pegar uma dos anos 60 e três dos
assim, muito elegante. anos 70, né?
traumatizar, a gente levou tudo pronto lá e montou. [AV] Eu agradeceria. Seria bom a gente ter um
[AV] Entendi. E pelo que estou vendo, parece representante mais atual no estudo. Não só anos
que ele tem uma coisa assim meio, como uns ar- 70...
cos, entre um vão e outro....ou não? [Lelé] Eu acho que a casa dele, no meu enten-
e escolhido. E ela tem uma proposta construtiva escolher o sítio, ver qual é o lugar melhor." Então
geométrica, apesar de ter uma implantação mais eu acho que essa participação... Esse sítio foi esco-
livre né, mas ela tem uma proposta construtiva ge- lhido junto com ele e com a Elsita, a mulher.
ométrica muito rígida.
[Lelé] Então, esse desenho aqui [apontando
para o projeto Res. Aloysio Campos da Paz], era o
cobertura.... Se não me engano dá cinco graus. desenho inicial quando eles já tinham adotado uma
criança, depois já tinham nascidos os filhos dele...
[Lelé] Isso, se não fosse assim não precisava
Então, foi uma fase em que a casa... A casa também
ser industrializada. Se não houvesse essa geometria
é uma coisa complicada, porque ela também vai
rigorosa, como é que seria possível sua realização?
mudando as funções de acordo com o desenrolar da
[AV] E o momento da entrada na casa, esse vida de cada um.
mergulho no espaço doméstico, eu acho fantás-
[AV] Eu vi um desenho do senhor, com uma
tico. Você entra na casa e percebe de imediato a
sugestão de acréscimo. Uma estrutura, que não
setorização, a transparência... Primeiro a trans-
foi construída, com uma viga treliçada, que avan-
parência para o cerrado, com vista para os morros
çava em balanço, se não me engano 10 metros, e
do Altiplano, e depois, de um lado, o escritório
mostrei para o Haroldo. Ele me perguntou onde eu
resguardado, e, do outro, os quartos através de
tinha conseguido aquele desenho, que ele nunca
uma circulação com fácil acesso e os serviços aqui.
mais tinha visto... Depois eu mandei pra ele es-
caneado, junto com uma carta na qual o senhor
[AV] E eu acho a implantação fantástica na- explica o partido.
quela casa.
[AV] Aquilo ele recusou?
[Lelé] Pois é, ela foi toda feita assim, dividindo
[Lelé] Não foi que ele recusou. Ele não tinha
as coisas. Por isso que eu acho que é importante
dinheiro pra fazer.
que a gente faça casas para amigos. A implantação
foi discutida com ele. [AV] Entendo...
[AV] A implantação ali é genial. [Lelé] Mas aí a gente desistiu. Acho que é as-
sim, aquele acréscimo e a coisa do Aloysio também
[Lelé] Aliás, nessas casas todas, tudo é dividi-
foi sempre assim, com muito pouco dinheiro, então
do....
eu acho que a casa, ela tem que ser feita levan-
[AV] Dividido que o senhor fala é essa conversa do em conta não só as alternativas econômicas de
com o cliente. cada proprietário, mas aproximando-se o mais pos-
[Lelé] A casa do Aloysio, por exemplo: primeiro sível de seu bem estar, das suas funções, de acordo
que eu fiz um barracão pra ele passar ali os finais o interesse dele.
de semana, depois a gente discutiu, "olha, tem es-
sas pedras, vamos fazer com essas pedras. Vamos
313
[AV] Tem uma casa que também não saiu do [AV] Imagino.
papel, que me foi passada por um amigo, o Fred, lá
[Lelé] Mas não deu certo, o que é que a gente
da Prefeitura da UnB, Frederico Carvalho.
vai fazer? Também esse projeto foi esmiuçado, as-
[Lelé] Ah que bom... sim um programa para ela...
[AV] "Olha Adalberto, estão aqui os croquis do [AV] Eu vi. Tinha a parte da cozinha, com o for-
mestre..." Ele tem um carinho pelo senhor imen- no ali para receber os amigos, a solução da placa
so, lhe admira demais. Há alguns meses ele me coletora que passava no eixo de todos os sanitá-
passou uns desenhos de uma casa da Christiana rios, e já tirava partido daquela pestana metálica.
Brenner. Ele me disse que tentou na Administra- Olha, impecável aquele projeto.
ção do Lago Sul, aprovaram o projeto....
[Lelé] Não deu. Mas eu acho que casa e assim
[Lelé] Foi uma luta aquilo... mesmo. A gente tem que aceitar que nem sempre
dá certo. Mas eu gosto de fazer projeto de casa
[AV] Mas que infelizmente, por conta dos vizi-
nessas condições.
nhos....não deu. Uma pena. É um projeto lindo. As
- [AV] Não faria diferente....
cia é clara, direta, e aquela escada na varanda.... É
[Lelé] Jamais cobrei um tostão pelo projeto de
lógico que a solução para preservar as árvores era
uma casa, entendeu, e quase sempre me dão um
encostar a casa junto ao muro e liberar o terreno,
prejuízo enorme, porque eu acabo trabalhando de
preservando as curvas de nível, sem ter grandes
graça e envolvendo outras pessoas que trabalham
-
pra mim.
cava interessante do ponto de vista plástico você
ter duas barras, uma perpendicular à outra. Não [AV] E o trabalho é intenso. Não é brincadeira
[Lelé] Não deu muito embora a Christiana.... [AV] Então, só pra gente concluir, eu coloquei
de garota, menina. E o Fausto Brenner, que é o [Lelé] Você sabe tudo! Você fez uma pesquisa
pai dela, já morreu, nessa ocasião era radio objeta incrível.
do Sarah. Engraçado que eu tive um problema, eu
[AV] (risos)
fumava muito né? Então, ele que me fez parar de
fumar, e depois morreu de enfisema porque fumava [AV] Eu me interesso, eu gosto da casa. Já
"desbragadamente". construí algumas.
[Lelé] É, eu também acho. Agora, existem cer- isso aqui [apontando para a parte dos quartos na
tos... planta da casa]. Era só o quarto dele, porque ele
não tinha filhos. E a mulher dele, a Elsita achava
[Lelé] Ô João, será que você podia fazer uma
que não podia ter filhos. E aí resolveram, depois,
gentileza de servir um cafezinho pra nós? Vai que-
adotar uma criança. Quando foram adotar a crian-
rer água também Adalberto?
ça ela engravidou. Então de repente, a vida dela
[AV] Eu aceito sim, água e café. mudou. Primeiro porque adotou e depois porque
[AV] O senhor comentou certa vez que essas surgiu a criança. Eu tive que imediatamente fazer
casas, entre aspas burguesas, seriam mero exer- essa modificação, e acrescentar isso aqui para as
crianças poderem passar o final de semana lá.
[Lelé] Não, é um exercício profissional que... [Lelé] Era uma casa pra fim de semana.
[AV] Que futuramente seriam substituídos por [AV] Essa é uma que eu não consegui entrar
modelos coletivos, o senhor acredita ainda mais ainda. Não está fácil.
na coletividade? [Lelé] É difícil.
[Lelé] Acredito, mas eu acho que existem dois [AV] Não está fácil, Haroldo está tentando fa-
fatores. Agora mesmo o Aloysio, depois desse tem- zer o meio de campo...
po todo que mora na casa, a família dele ficou res-
[AV] Porque não faz sentido. Eu não consigo
trita. Até a sogra morreu. Então, com aquela coisa
escrever sobre algo que eu não conheço. O senhor
toda...ele até pediu o Haroldo pra fazer uma refor-
concorda?
ma, estão tirando lá as coisas. Porque..., a vida da
gente vai mudando. Essa que é a verdade. Então a [Lelé] Concordo.
casa, ela não tem uma proposta construtiva com
[AV] Deixa eu tirar esses manteigas daqui que
condições de absorver essas modificações.
pode acontecer um acidente.
[AV] Mas o senhor acha que essas estruturas
[Lelé] Mas eu acho que é isso, sabe Adalber-
isoladas hoje, com essa crescente demanda por
to. Eu acho que a vida muda muito rapidamente.
condomínios nas periferias das grandes cidades,
Por exemplo o Nivaldo. Você tinha aquela filharada
isso ainda é um modelo ultrapassado ou não tem
toda, sempre aquela coisa muito de pernambucano,
como, a gente sempre vai ter...
de achar que todo mundo ia ficar junto, moran-
[Lelé] Não, não, a gente sempre vai ter isso. do lá. Isso jamais aconteceu. Ele gostava tanto da
Agora, eu acho é que o mundo de hoje ele torna a casa, tinha paixão pela casa...
vida da gente.... os períodos muito efêmeros. Então
[AV] Tinha, ali era um apaixonado...
a coisa muda muito rapidamente. Por exemplo, fa-
zendo um comentário sobre a casa do Aloysio. Você [Lelé] É... e ele ficou morando lá sozinho. Che-
viu essa proposta aqui. Esse aqui já é um segundo gou a morar sozinho naquela casa gigantesca. En-
desenho que eu fiz. O primeiro desenho não tinha tão eu acho que....
315
da década de 1920, se não me engano... Primei- bastante sério, com uma cara de mau... E não era
sido um choque para a sociedade. Por mais que, [Lelé] Não, não. E a mulher dele também era
tecnologicamente, a gente não tivesse inda condi- uma pessoa que cuidou muito da obra dele, do tra-
balho dele... Enfim, a gente sempre tem as refe-
na Europa, era ainda uma telhado escondido por rências...
platibanda, a gente estava no caminho, buscando
[Lelé] Mas o trabalho do Alvar Aalto é muito
aqueles ideais que víamos na Europa. O que Le Cor-
mais genérico também né? Aliás a relação dele com
busier conseguiu fazer na Villa Savoye, por exem-
a habitação é pequena.
plo, foi uma demonstração clara dos cinco pintos.
316
[AV] Tirando aquela alojamento para estudan- [Lelé] Não me chama de senhor não Adalberto.
tes no MIT, em Massachussets, nos Estados Uni- Eu sou velho, mas não sou tanto assim...
dos, as casas são realmente poucas. Meu projeto
[AV] Está bem, então... Lelé.
-
dantes na UnB. Como eu morei durante minha vida [Lelé] O sujeito que atende por Lelé não pode
acadêmica no CO, aqueles prédios próximos ao ser senhor, não é?
[Lelé] Sim. Ele plantou um pomar e o pomar vai escritórios. Fizeram um pastiche na ampliação a
crescer. E veio me dizendo: "Eu e minha mulher nós área de exposição...
queremos... Se você puder fazer um mirante aí pra [Lelé] Uma coisa horrorosa.
mim, eu posso ver o lago. E eu quero gastar todo
[AV] Eu não sei o que aconteceu ali...
meu dinheiro nessa casa. Eu estou muito rico..."
Isso ele dizia assim, sem nenhuma cerimônia. "Faz [Lelé] É o filho dele.
aí o que você quiser, minha única reivindicação é [AV] Não tem o menor comprometimento. Eu
ter um mirante lá em cima para eu conseguir ver o visitando a obra com alguns arquitetos suíços,
lago, porque esse pomar está crescendo...." eles me mostraram com orgulho o projeto de am-
[AV] E tem que passar por cima da copa das ár-
vores....
não acreditei quando eu vi a naquele eletrônica...
[Lelé] Aí eu disse: "Olha Zé, eu não sei, é me-
lhor então você levantar essa casa, fazer uma casa [Lelé] Você sabe que eu fiz já, eu sempre fiz es-
de Tarzan e a gente resolve o assunto." Aí ele gos- ses projetos todos para o Taurisano, fiz pelo menos
tou da ideia, sabe? para aquela área ao lado três projetos.
[Lelé] Foi recente. Aí eu entrei em contato com [AV] Ele não mora mais naquela casa?
a Fundação Athos Bulcão. [Lelé] Não, não mora. É o mais engraçado é o
[AV] Valéria... seguinte: o sujeito que comprou a casas dele, co-
nhecido meu, ele veio falar comigo que ia comprar
[Lelé] Disse a ela, olha estão querendo tirar o
a casa e agora já vendeu também. Então a casa já
painel da Disbrave.
passou por três moradores.
[Lelé] Pois é, já tive uma briga danada, ela dis-
[AV] Quem sabe um dia eu consiga comprar
se pra mim que já tinha brigado, mas que era ine-
uma casa projetada pelo senhor, digo, por você.
vitável, porque eles queriam remover o painel pra
fazer uma coisa lá... Não adianta sabe? Não adianta [Lelé] Mas essa aí eu nem sei se vale a pena
a gente brigar. porque eu acho que é uma casa..., aquele negócio
que eu te falei, foi um período da vida do Mário
[AV] Ali foi uma perda muito grande. Mas eu
que ele era político, prefeito, então aquela casa
não posso exigir comprometimento das pessoas.
tinha assim esse caráter muito formal, de receber
Se não valoriza o patrimônio que tem, então va-
pessoas, então tinha porta que fechava para poder
mos exigir o quê?
isolar as pessoas lá em cima,....
[AV] Mas vamos lá. Bom, já comentamos so-
[AV] Ela é bem inserida na cidade. Não sei onde
bre método de projetação, você já falou sobre as
residências Aloysio Campos da Paz, José da Silva
Netto, Nivaldo Borges, Mário Kertész que eu ia [Lelé] Agora esse local passou a ser muito co-
pedir só uma dica assim, a respeito de avaliação mercial, sabe? É aqui perto.
construtiva e partido... [AV] O gabarito do local é alto?
[Lelé] Mas você quer que eu fale algo mais? [Lelé] Agora eles estão conseguindo já sus-
pender. Quer dizer, era um gabarito só para casas,
para residências, mas agora estão fazendo prédios
[Lelé] Você sabe tudo. (risos)
de dois, três pavimentos. Qualquer dia estão cons-
[AV] Não, eu não sei tudo não. Essa história truindo em cima.
aqui do Aloysio eu não sabia. (risos)
[Lelé] Mas como são casas relativamente caras,
[Lelé] De quê? a demolição dessas casas está sendo um pouco sus-
tada.
[AV] Entendi.
da casa do José da Silva Netto é interessante, do
[AV] O que me vem à cabeça aqui agora é o se-
Aloysio também, do Mário Kertész eu não conheço
guinte: eu sempre tive uma grande admiração pe-
porque é uma casa que eu nunca entrei, então...
las casas do Artigas. Acho que ele foi um arquiteto
[Lelé] Ele vendeu a casa. que projetou e construiu muitas casas. Se a gente
319
[...]
Algumas casas vão ser frontalmente fechadas,
sem comunicação visual com a cidade, abrindo as [Lelé] As minhas casas são tão diferentes umas
fachadas laterais e no meio um pátio, geralmente das outras, nas suas concepções...
espaços bastante ricos e bem elaborados. Quem [AV] Embora na obra do Artigas a gente con-
passa por fora, não percebe muita coisa. São vo- siga enxergar uma linguagem mais homogênea ao
lumes que não chamam a atenção, simples, aus- longo da trajetória dele, claro, excetuando aquele
teros. período wrightiano...
[AV] Eu cheguei a visitar algumas casas do Ar- [Lelé] É fácil perceber: é do Artigas!
tigas em São Paulo, fui até Jaú de ônibus para co-
[Lelé] Engraçado, não sei se você conhece uma
nhecer a Rodoviária, era uma época que eu estava
casa do Le Corbusier na Argentina...
muito envolvido com a obra dele.
[AV] Casa do Dr. Currutchet.
[Lelé] Eu acho que o Artigas era um homem de
uma personalidade tão forte que não há como con- [AV] Sim, foi feita para um médico em La Plata.
testar: a casa é do Artigas. Ele impõe. Eu acho que Não conheço pessoalmente, mas pelos livros. Já
o Artigas impunha ao proprietário um projeto. Ele tive a oportunidade de estudar os planos daquela
fazia para o sujeito, mas não havia essa conversa casa que por sinal foi implantada em um lote meio
toda... estreito, com o portão enviesado...tem uma árvo-
re no meio, sobem as rampas, o consultório...
[AV] Eu acho que ele não tinha essa paciência
de tentar encontrar o projeto através da conversa. [Lelé] É linda. Uma maravilha a casa, mas quan-
do você entra... É Le Corbusier.
[Lelé] Com ele não.
[Lelé] Não tem outra explicação poxa, isso aqui
[Lelé] Porque o Artigas, eu tive assim um con-
é Le Corbusier.
tato com ele, conversei com o Artigas durante mui-
to tempo. Ele era um soldado. Era uma pessoa... [AV] É forte.
320
[Lelé] Sim, e eu acho que a arquitetura do Arti- [Lelé] Existem premissas. A concepção de es-
gas sempre teve essa característica, como o Oscar paço, ameno, de sempre ter uma interlocução
tem, mas por um outro lado. com a natureza, dos espaços internos terem uma
continuidade....é lógico que cada interlocução é
[AV] Oscar não construiu muitas casas...algu-
diferente. No caso da do Roberto [Pinho] é uma
mas né?
interlocução visual. O homem afinal de contas ele
[Lelé] A dele próprio... se identifica por todos os seus sentidos, pelo tato,
[AV] Sim, na estrada das Canoas, aquela em pela visão, etc. Então, eu por exemplo eu tenho
Brasília, as de Minas Gerais, a Cavanelas... Aquela uma relação muito forte com a coisa do verde. É
é muito linda, com o jardim do Burle Marx... claro que a integração do verde, a proximidade do
verde com a casa, esse convívio com o verde, é
[Lelé] Eu desenhei muitas casas para o Carlos
uma coisa que eu sempre coloco. Talvez seja uma
Leão, que era um arquiteto assim muito bom, sabe?
contribuição minha, pessoal.
Eu desenhava pra ele, as casas para aprovar na pre-
feitura. Ele era muito amigo do Aldary Toledo. [AV] Fica claro que desde os croquis e agente
vê a importância do verde na obra do senhor.
[AV] Aldary se tornou arquiteto por conta de
Carlos Leão. Para ele era o grande arquiteto... [Lelé] Por exemplo, nessa casa do Nivaldo, com
aqueles jardins no meio, essa casa do Nivaldo é um
[Lelé] Sim, o desenho do Aldary é muito pare-
exercício, sabe? É um exercício porque eu conversei
cido com o do Carlos Leão. O nível de detalhes...
muito com ele. Quando nós chegamos à conclusão
[AV] Dizem que o meu calunga, a represen- que tinha que aproveitar o Tião para fazer isso aí,
tação da escala humana no projeto, é igual ao do eu acho que tinha que explorar no Tião com todo o
Lelé. Essa que a gente esta vendo aqui....[apon- seu potencial de artesão. E só ele era capaz de fazer
tando para o manteiga] Não tem como, vamos uma coisa dessas. Então a casa foi muito [estuda-
pegar alguns elementos dos arquitetos que admi- da], já que o Nivaldo queria fazer uma coisa enorme
ramos e, não tenho vergonha de admitir isso, de para toda família morar. Agora nesse modelo aí, a
forma alguma. integração do verde ela foi fundamental nessas áre-
[Lelé] É lógico, influências são sempre bem as internas aqui.
vindas. Todos nós sofremos influências, eu tive [Lelé] Esse espaço que no fundo parece uma
uma influência fortíssima do Oscar e do Aldary, por igreja, com a nave principal e as naves laterais.
exemplo. Aqui a nave principal é recheada de verde. Então
[AV] Duas perguntas aqui pra gente terminar: isso aqui é uma contribuição minha, pessoal.
distribuição espacial interna de cada casa é resul- [AV] De fato.
tado do programa de necessidades ou existem pre-
[Lelé] É pré projetual.
missas projetuais?
321
[AV] Isso já parte como premissa. Essa inte- [Lelé] Não, não....eu cedi e cedi convicto por-
gração ela é bem vinda e ela tem que acontecer. que a Cristiane [esposa] ... A preocupação da Cris-
[Lelé] Nesse caso específico, sim. Para explorar tiane, pra você ver as coisas, é que nos quartos ela
tudo isso: quer dizer, você ter essa incidência de não ia ver o menino [filho].
luz, toda essa coisa que é um pouco religiosa, mas [AV] Entendi.
que é um discurso aí que acaba enaltecendo o ver-
[Lelé] Ela queria vigiar, ele estava na piscina,
de, com esse discurso de luz entrando pelos lados,
depois no jardim....essa era uma das preocupações
como se fosse uma nave de igreja.
dela.
[AV] E no caso de José da Silva Netto, a relação
[AV] Bom, se não esta fazendo falta até ago-
ela é direta quando eu saio nas varandas, visual, e
ra...
no pilotis ela é totalmente livre. Ali sim [há uma
integração espacial]. Aquilo faz parte do projeto. [Lelé] Não está.
O jardim ora entra, ora sai, contorna a caixa de ele- [AV] Tem uma pestana de concreto que eu vi na
vador. Casa Nivaldo Borges...
[Lelé] Então eu acho que essa é uma contri- [Lelé] É que eu tirei depois.
buição pessoal, realmente. É uma premissa, não é?
[AV] O que que aconteceu?
[AV] Existiria mais alguma? Em termos de pri-
[Lelé] É, eu tirei depois. Mas isso foi por uma
vacidade, separação de função...
questão até construtiva, sabe? Esse lugar onde tem
[Lelé] Existe, existe. Mas aí vai de acordo com a vista mais favorável para os quartos tem um pro-
o programa. Por exemplo, no caso do Roberto, mui- blema de insolação. Ela ficaria, vamos dizer, engas-
to embora você tenha identificado muito bem o tada no tijolo, de fora a fora,...
zoneamento que a casa tem, os ambientes vão se
[AV] Eu tenho as foros da maquete. Dava pra
integrando, não existem barreiras.
ver a lâmina enconstando no módulo de tijolo. Aí
[AV] Aquele painel móvel, abriu e surge um ele passa para o próximo, e assim sucessivamente.
novo espaço, integrado com a sala de estar... E isso virava um volume interessante...
[Lelé] Eu acho que isso é o Roberto. É a perso- [Lelé] Mas eu abri mão por causa da dificuldade
nalidade dele. Essa coisa de estar sempre conviven- estrutural de engasgamento dessa peça na alvena-
do com esse negócio de... ria.
[AV] Que pena que os brises não foram colo-
cados. si [da peça].
[Lelé] Pois é... [Lelé] Não, não. Até porque o Tião ia ter muita
[AV] Não sei, talvez hoje eles não sintam a ne- dificuldade de fazer essas duas coisas simultâneas.
cessidade dos brises.
322
[AV] Isso teria que ser içado com guindaste, vinha aqui. Então, eu acho incrível que ele soube
para levantar e encaixar uma peça dessas... treinar muita gente, pegar os pedreiros pra ir fazen-
[Lelé] Senão ele teria que botar essa peça em do. A igreja é um pavor, está toda fora do prumo.
pé, e depois fazer a alvenaria em volta, que tam- [AV] É aquela que tem um grande arco, com o
bém era uma dificuldade, que não comportava. trabalho do Athos...
[AV] O que eu vi de alteração nessa casa foi a [Lelé] Isso mesmo. Aqui nos Alagados, exata-
pestana, suprimida, a implantação, a casa foi ro- mente...
tacionada no terreno, talvez em função de uma
[Lelé] E a rigor, foi o Tião quem fez a igreja.
melhor orientação solar...
[AV] Eu não sabia, interessante...
[Lelé] Foi orientação solar e também uma ques-
tão de implantação nas curvas de nível. A casa co- [Lelé] E tem um detalhe incrível: no casamen-
meçou um pouquinho menor, depois foi crescendo, to da filha dele, o casamento foi comemorado na
foi crescendo, de forma que para você não ter gran- casa de Nivaldo, e eu fui convidado pelo Tião para
des movimentos de terra, porque ela está implanta- ser padrinho. Acabei recusando porque eu tive
da no mesmo nível... que chegar mais tarde na cerimônia, mas ele fazia
questão que eu fosse padrinho. Estabeleceu-se uma
[AV] Sim, o bloco social, de festas e da sala de
relação muito boa entre mim e ele, Tião. Nivaldo
também, é claro.
[Lelé] Vai escalonando um pouquinho, porque
[Lelé] Então eu fui lá para o casamento da filha
ali já começou a cair o terreno.
dele, e eu tinha feito um projeto aqui porque o
[AV] E a piscina, que teve uma leve inversão da Papa vinha inaugurar. E não só pelo prazo que era
rampa com a escada, que acabou... muito curto para execução, havia também a ques-
[Lelé] Poxa, você verificou tudo. Você devia ser tão do local, que era os Alagados, que era um local
além de arquiteto, você devia ser um historiador. muito pobre né, fazer uma igreja monumental ali
Porque eu acho que essa preocupação que você não caia bem. Então eu fiz um projeto assim, meio
tem, histórica, do projeto, eu acho fundamental. Alvar Aalto, singelo assim, com os telhadadinhos.
Eu acho que todo prédio tem uma história. Porque Mas aí Dom Avelar não gostou.
a história muda radicalmente, às vezes até o pró- [AV] Não gostou?
prio espaço e a própria concepção em determinadas
[Lelé] Eu já tinha feito a Igreja da Ascenção do
situações.
Senhor e tinha uma relação boa com ele. Ele disse:
[AV] Eu agradeço. "Lelé, veja bem, você não pode fazer uma coisa tão
[Lelé] O Tião fez uma igreja aqui na Bahia com simples. O Papa vem aqui." Olha, num lugar tão
esse mesma tecnologia, para o Papa inaugurar. Ele pobre daquele....
demorou cinco anos fazendo essa casa. E a igreja [AV] É, no mínimo, coerente com a realidade.
ele teve que fazer em três meses porque o Papa
323
[Lelé] "Ah, mas se gente fizer... Você vai estu- [AV] Exatamente.
dar qualquer coisa." Intimamente eu já tinha desis- [Lelé] E o intercolúnio até não era muito dife-
tido de fazer aquele projeto. rente não. Aí houve isso. Eu fiz esse desenho ainda
[AV] É, a gente perde o estímulo. lá em Brasília. Era a mesma implantação, mas já
com tijolo.
[Lelé] Aí eu disse, pois é Tião, se você quises-
se fazer uma igreja lá em Salvador toda em tijolo, [AV] Aquele volume anterior é muito bonito.
feita essa casa, eu até fazia o projeto. Ele disse: Não que este não seja, mas a graça estava na incli-
"pois eu vou!" nação, nos planos inclinados, como o senhor mes-
mo disse....meio Alvar Aalto. É forte.
[AV] De imediato.
[Lelé] Claro, mas o Dom Avelar não gostou.
[Lelé] Aí eu fiz o projeto, foi num sábado o ca-
samento da filha dele. Eu fiz o projeto no domingo. [AV] A concepção continua simples. Como ele
Quando chegou na segunda feira eu já entreguei.
Dom Avelar gostou e ele veio pra cá. Na outra se- Tornar a cobertura plana, ou seja, adotar o pris-
mana a obra já iniciou. ma regular em detrimento do plano inclinado não
mudou muita coisa nesse aspecto. A simplicidade
[AV] Ou seja, aquele projeto que foi construído
do projeto continua. Mas vai entender a cabeça...
já é essa segunda proposta?
[AV] Lelé, então pra terminar: uma amiga em
[Lelé] É, é a segunda proposta.
Brasília resolveu entrevistar 12 arquitetos como
[AV] Entendi. parte de sua dissertação de mestrado. Dentre os
[Lelé] Eu tenho aqui [volta-se para o compu-
tador]. Paulo Zimbres, Marcílio Mendes, que faleceu re-
centemente, José Galbinski, Sérgio Parada, Gilson
[AV] Oscar também fez uma igreja simples
e Paulo Henrique Paranhos, entre outros. A se-
para receber o Papa em Brasília. Tudo bem que es-
guinte pergunta de seu plano de entrevista - qual
tava num lugar privilegiado, no meio do Eixo Mo-
arquiteto você mais admira? - teve um resultado
numental...
[Lelé] Aquilo era um altar, que foi transferido. foi o nome citado por unanimidade. A que o senhor
[AV] É verdade, primeiro foi montado na Espa- atribui tal reconhecimento? E se essa pergunta
nada, na frente do Congresso, depois foi levada lá fosse dirigida ao senhor, qual seria a resposta?
[Lelé] Isso. Foi transferida. foi feito como enquete entre os estudantes?
[Lelé] O projeto original é esse aqui. O telha- [AV] Não, foi feito por uma amiga do Mestrado
ta. E Lelé foi o arquiteto citado por todos eles. Eu [AV] E no exterior?
acho que isso tem uma razão de ser.
[Lelé] No exterior... Você sabe que eu gosto,
[Lelé] Eu não sei, eu atribuo assim talvez até por exemplo, do Renzo Piano. Desses atuais. Gosto
a um relacionamento profissional que eu mantenho de muitos outros. Gosto de todos, eu não tenho
com a categoria. Por exemplo, agora, ... é lógico restrições.... Dos antigos, que foram evidentemen-
que o EREA, esses ENEAs, esses encontros dos estu- te...., eu gosto do Alvar Aalto, Neutra.... Eu acho
dantes, eles sempre me convidam. Eu estou sempre que sempre tem lugar, sabe? Eu não consigo ver
disponível. Eu escrevi para eles agora mesmo, pra uma coisa assim como o sujeito que tem um time
Mato Grosso. Eu sei que vai ser um sacrifício dana- de futebol, eu sou aquele e não abro mão. Eu acho
do, mas eu vou. Se o IAB me pede, eu vou. Então que a arquitetura de repente.... eu estudei tanto
essa disponibilidade, eu acho que cria uma relação Alvar Aalto, sabe? Apesar de ser um arquiteto tão
afetiva assim, maior, eu acho que mais que um re- distante da nossa cultura. O Le Corbusier era o mais
conhecimento profissional. próximo. Eu traduzi tudo. Naquela época, em fran-
cês, aqueles livros...
[AV] É muita modéstia. Eu acho assim: não tem
como a gente ignorar a contribuição que o senhor [AV] As Obras Completas.
deu pra arquitetura brasileira. Isso é fato.
[Lelé] Isso, as Obras Completas. Eu estudei
[Lelé] Isso aí foi mais num campo específico. todos os projetos. Traduzi todas as obras. Todas.
Eu tive oportunidades também, principalmente Escrevia com o dicionário do lado. Eu não sabia a
nessa área da industrialização. Mas isso foi só uma palavra, ia lá... Então eu sempre tive essa preocu-
oportunidade. Não quer dizer que eu seja melhor pação de saber o que os outros estavam fazendo e
que os outros. Quer dizer que, na verdade, eu tive admirar a contribuição de casa um, né. Claro que
essa oportunidade que os outros não tiveram. E no plano atual o Renzo Piano me comove mais que
talvez até por uma vocação de querer gostar de os outros. Isso não quer dizer que eu não admire a
construção. Então eu acho que, examinando minha obra dos outros.
trajetória de trabalho, na minha idade, eu vejo que
[AV] Muito bom. Muito obrigado. Tenho só a
essa trajetória ela talvez seja bem peculiar entre os
agradecer o tempo dispensado a essa entrevista.
arquitetos por causa disso, por causa das oportu-
nidades que se criaram de fazer arquitetura indus- [Lelé] Foi muito bom Adalberto, foi muito
trializada, de racionalizar o processo construtivo. bom. Quer dizer, conversar com uma pessoa como
Eu acho que isso é uma diferença que exista talvez você...., não só as perguntas que você fez, e o co-
em relação aos outros que não tiveram a mesma nhecimento que você demonstrou das coisas rela-
2. Localização
2.1 UF 2.2 cidade 2.3 localidade
1961 Luigi Pratesi 1970 71620-225 15º 50’ 37.76” S / 47º 53’ 32.53” O
Casa 01 | RCP
planta do conjunto
locação
fachada SO
fachada SE
planta térreo
corte AA
corte BB
330
2. Localização
2.1 UF 2.2 cidade 2.3 localidade
1965 Ernesto Guilherme Walter 1972 71630-355 15º 49’ 39.22” S / 47º 51’ 27.01” O
Casa 02 | RME
situação
planta térreo
fachada SO
fachada SE
corte AA
2. Localização
2.1 UF 2.2 cidade 2.3 localidade
1969 Ernesto Guilherme Walter 1983 71540-121 15º 47’ 12.68” S / 47º 48’ 23.19” O
Casa 03 | RACP
corte EE
corte AA
corte BB corte FF
corte CC
fachada N
corte DD
2. Localização
2.1 UF 2.2 cidade 2.3 localidade
1971 Ernesto Guilherme Walter 1973 71620-255 15º 50’ 29.88” S / 47º 53’ 19.65” O
Casa 04 | RRU
planta do conjunto
planta térreo
fachada NO
corte AA
corte BB
0 3 9 21 m
336
2. Localização
2.1 UF 2.2 cidade 2.3 localidade
1972 Ernesto Guilherme Walter 1978 71740-703 15º 53’ 16.07” S / 47º 57’ 47.46” O
de borracha vulcanizada isolados termicamente por terra e jardins foi chama a atenção a mudança sofrida na implantação da residência
substituída, no momento da execução, por espessa camada de piche. principal, provavelmente devido à orientação solar mais favorável.
Casa 05 | RNB
fachada SO
fachada NE
locação
fachada SE fachada NO
corte AA corte BB
corte CC corte DD
planta
01 350 7 14 21m
338
2. Localização
2.1 UF 2.2 cidade 2.3 localidade
1973 Mário Rosa 1976 71600-510 15º 51’ 13.18” S / 47º 54’ 14.76” O
Casa 06 | JSN
corte AA
locação
corte BB
fachada SO
planta térreo
0 4 8 24 m
340
2. Localização
2.1 UF 2.2 cidade 2.3 localidade
2007 João Filgueiras Lima 2008 71617-991 15º 49’ 4.34” S / 47º 45’ 16.93” O
Casa 07 | RRP
corte AA
corte BB
corte CC
fachada S
fachada N
fachada O
fachada L
0 5 15 35 m
Anexo 3 | Projetos Inéditos
Anexo 2 | Fichas de Inventário
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